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DO OUTRO LADO DO ESPELHO A INVERSÃO DAS IMAGENS DO ESTADO NOVO NO CINEMA DE JOÃO CANIJO SUSANA GUERRA* 1 Nas suas aventuras subterrâneas [Alice] é atormentada pela ideia de não ser quem ela pensa que é, ou até de deixar de ser, o que leva, inevitavelmente, ao terrível enigma que lhe coloca a lagarta: “Quem és tu? […] Alice responde com certa timidez: -Pois... pois acho que neste momento não sei, senhora...”. [...] Alice e a lagarta sabem que nos definimos pelo que recordamos, já que as nossas lembranças são as nossas biografias e guardam uma imagens do nós próprios. [...] Alice concebe uma maneira diferente de decidir por si própria quem poderia ser. Presa na toca do coelho, pergunta-se quem é realmente e nega-se a ser quem não quer. Alberto Manguel. Una historia natural de la curiosidad. Alianza Editorial: Madrid, 2015, pp.208;210. (Tradução da autora) Em 1940, é inaugurada em Lisboa a Exposição do Mundo Português. Por essa altura, o mundo estava convulsionado, mas a agitação em Portugal era de outra ordem. Em Lisboa, a capital resplandecente de luz, festejavam-se as datas pátrias da fundação da nação e da restauração da independência tingidas de sublime, enquanto que a Europa, oprimida pelo blackout, se cobria de escuridão para desaparecer noite dentro. Governava o país uma aliança entre as Forças Armadas, a Igreja Católica e uma série de grupos econômicos, que daria lugar a um regime de carácter corporativo, fortemente repressivo e violento, aninhado no seio do autoritarismo que assolava a Europa. Instável e em crise, a ditadura militar que havia encerrado a breve experiência republicana, chamara António Oliveira Salazar ao poder em 1928, que num ano resolve o problema financeiro. Em 1933, Salazar substituíra o governo militar pelo Estado Novo, do qual seria líder incontestado até à sua morte, em 1970. Indiferente aos dramas sociais da maioria da população, 1 *Bolsista de pós-doutorado pela UFPA/CAPES/PNPD.

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DO OUTRO LADO DO ESPELHO

A INVERSÃO DAS IMAGENS DO ESTADO NOVO NO CINEMA DE JOÃO CANIJO

SUSANA GUERRA*1

Nas suas aventuras subterrâneas [Alice] é atormentada

pela ideia de não ser quem ela pensa que é, ou até de deixar de

ser, o que leva, inevitavelmente, ao terrível enigma que lhe

coloca a lagarta: “Quem és tu? […] Alice responde com certa

timidez: -Pois... pois acho que neste momento não sei,

senhora...”. [...] Alice e a lagarta sabem que nos definimos pelo

que recordamos, já que as nossas lembranças são as nossas

biografias e guardam uma imagens do nós próprios. [...] Alice

concebe uma maneira diferente de decidir por si própria quem

poderia ser. Presa na toca do coelho, pergunta-se quem é

realmente e nega-se a ser quem não quer.

Alberto Manguel. Una historia natural de la curiosidad.

Alianza Editorial: Madrid, 2015, pp.208;210. (Tradução da autora)

Em 1940, é inaugurada em Lisboa a Exposição do Mundo Português. Por essa altura, o

mundo estava convulsionado, mas a agitação em Portugal era de outra ordem. Em Lisboa, a

capital resplandecente de luz, festejavam-se as datas pátrias da fundação da nação e da

restauração da independência tingidas de sublime, enquanto que a Europa, oprimida pelo

blackout, se cobria de escuridão para desaparecer noite dentro.

Governava o país uma aliança entre as Forças Armadas, a Igreja Católica e uma série

de grupos econômicos, que daria lugar a um regime de carácter corporativo, fortemente

repressivo e violento, aninhado no seio do autoritarismo que assolava a Europa. Instável e em

crise, a ditadura militar que havia encerrado a breve experiência republicana, chamara

António Oliveira Salazar ao poder em 1928, que num ano resolve o problema financeiro. Em

1933, Salazar substituíra o governo militar pelo Estado Novo, do qual seria líder incontestado

até à sua morte, em 1970. Indiferente aos dramas sociais da maioria da população,

1 *Bolsista de pós-doutorado pela UFPA/CAPES/PNPD.

2

predominantemente rural e isolada naquele que era o país mais miserável da Europa, o Estado

Novo de Salazar beneficiava da “vasta retaguarda social e mental desse país de camponeses,

artesãos, comerciantes, pequenos funcionários, o viveiro natural da cultura de resignação e

obediência que impregnava a mentalidade geral e o ‘ser social’ português”2. Num artigo de

jornal publicado em 1932, o jornalista António Ferro (que no ano seguinte seria o diretor do

Secretariado de Propaganda Nacional) dizia do modo de suavizar os efeitos da violência sobre

a população:

As paradas, as festas, os emblemas e os ritos são necessários, indispensáveis, para que as

ideias não caiam no vazio, não caiam no tédio… A supressão forçada, necessária, de certas

liberdades, de certos direitos humanos, tem de ser coroada através de alegria, do

entusiasmo, da fé. (FERRO apud SANTOS, 2008: 63)

A violência evocada por Ferro se tornaria omnipresente na vida dos portugueses,

inculcando o medo no cotidiano. Desde 1945, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do

Estado) procede à disseminação do terror assente, sobretudo, na prática da delação: todos

podiam ser “bufos”, e estavam por todos os lados -uma breve conversa entre vizinhos ou

familiares podia condenar, em regime de exceção, à detenção, tortura e assassinato. Entre os

visados se encontrava a grande maioria da população, quer os que engrossavam a resistência

ao regime e à ordem estabelecida (sendo os comunistas o alvo preferencial das perseguições),

quer os que se encontravam alheados ou descomprometidos com o político.

Aliado à repressão, o SPN (Secretariado de Propaganda Nacional) procedia à

estetização do salazarismo, com base a doutrina da “política do espírito”, criada por Ferro – o

programa cultural oficial que determinava a orientação da produção artística dentro do

enquadramento ideológico do regime, em nome da sua exaltação e manutenção. Segundo

Graça dos Santos:

Com a “política do espírito”, que inclui iniciativas como a “Campanha do bom gosto” (que

tentava apagar as imagens de pobreza), António Ferro consegue ao mesmo tempo utilizar o

mundo das artes para a promoção da ideologia salazarista e impor alguns traços e processos

identificáveis, procedendo à criação dum país mítico com a maquilhagem do real. (SANTOS,

2008: 64)

2 Segundo Fernando Rosas.

3

A 25 de Abril de 1974, abre-se finalmente o caminho à democracia em Portugal, com

uma revolução que põe fim a quarenta e oito anos de ditadura. Abril também colocou um fim

à guerra colonial, conflito iniciado por Salazar contra a autodeterminação dos territórios

ultramarinos em África, que se prolongou por treze anos.

*****

Invariavelmente, quando falamos da ditadura, remetemos o evento para o passado; no

caso português, algo que já passou, que teve o seu termo, há quarenta anos. Impondo-lhe um

encerro, tratando o tema da ditadura como algo que está concluído, esconjuramos,

inconscientemente, um período da história que, longe de reunir consenso quando abordado,

ganha por vezes essa forma ambígua e incômoda das imagens pouco evocadas. Contudo, ao

empreender o trabalho de resgate das memórias da ditadura constatamos que esse fim não é

mais que uma ilusão. Essa persistência do passado ditatorial no presente democrático tem sido

evocada de forma singular por uma série de produções cinematográficas a que temos vindo a

assistir em Portugal, movidas pela resistência aos discursos que alegam o passo do tempo,

mas também pela resistência às amnistias concedidas, à crescente banalização do tema e à

indiferença generalizada por uma justiça que não chegou nunca a ter lugar.

Marcadas por uma visão crítica renovada, e com o fim do impedimento legal que

condicionava os arquivos da ditadura, as abordagens cinematográficas mais recentes têm-se

centrado no uso das imagens oficiais entretanto recuperadas. Ainda que produzidas pelo

regime, estas imagens abrem-nos a possibilidade de rever temas esbatidos pelo tempo e

relançar o debate sobre uma série de questões inerentes à própria produção dessas imagens, ao

seu uso pelo poder e ao modo em que finalmente, hoje, podemos entender essas imagens fora

do aparato ideológico que as originou. Ao mesmo tempo, essa nova geração de realizadores

tem vindo a valorizar a memória contida nos testemunhos dos que viveram esses

acontecimentos, num confronto tenso e difícil com a sedimentação da memória oficial da

ditadura que, em muitos casos, de forma unilateral e acrítica, sobredeterminara os programas

educativos, a pesquisa acadêmica e a significação dos eventos cívicos. Na tentativa de

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interromper o silêncio, exigindo justiça onde esta não existe, vão desfiando os mitos do

salazarismo e a sua velada consumação no presente.

* * *

Em 2010, João Canijo produz Fantasia Lusitana, filme que propõe uma releitura das

imagens do regime salazarista, procurando exceder o seu funcionamento ideológico em

direção ao profundo mal-estar que ocultam.

O filme está fundado sobre uma seleção de jornais cinematográficos das décadas de 30

e 40, produzidos pelo Secretariado de Propaganda Nacional, e começa com uma sucessão de

atualidades onde predominam as imagens militares e bélicas. Assistimos ao desfile das tropas

exibindo o material de guerra, a exercícios sincronizados de ginástica masculina, à celebração

de datas históricas e manifestações populares, de apoio ao governo. Seguem-se peças sobre a

guerra que decorre na Europa, sucedem-se as imagens de bombas sendo lançadas sobre uma

cidade que se desmorona em meio a grandes incêndios; uma notícia pretende explicar o que é

uma blitz; mais bombardeamentos, populações em fuga, cenas de despedidas, crianças que se

amontoam, coisas que são deixadas para trás. Acompanhadas por uma locução off, lembram-

nos dos horrores que causa a guerra nos países beligerantes. O bloco encerra com imagens das

ruas de Lisboa, onde os prédios exibem as janelas cobertas com faixas para evitar os

estilhaços, na eventualidade de um ataque aéreo, em ruas barricadas com artilharia. Em meio

a tudo isto, a elite reúne-se nos encontros oficiais do governo, ou marca presença em

celebrações religiosas e eventos culturais. Compreendemos que a preocupação que subjaz a

todas estas imagens é a de reafirmar a neutralidade portuguesa na guerra, feito atribuído a

Salazar, e o seu corolário imediato: o estado de paz (em plena guerra) e de permanente

celebração (num dos períodos mais obscuros da história), que se vive nas ruas de Lisboa.

Trechos dos discursos de Salazar, inseridos no filme, acabam por impor às imagens esse

sentido.

Procurando problematizar essa evidência, Canijo introduz no filme outras vozes.

Trata-se do testemunho de refugiados que passam por Lisboa, como destino final ou

plataforma de trânsito a caminho do exílio na América, e que enchem as ruas da capital de

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gente das mais variadas proveniências e costumes. Alfred Döblin, Erika Mann, Antoine de

Saint-Exupéry são as vozes solitárias, improváveis mas privilegiadas, que permitem ouvir (e,

indiretamente, ver) uma outra história, pela perspectiva marginal e inesperada que abre a uma

reflexão em desarmonia com as narrativas do regime. A recuperação de breves trechos destas

considerações, das experiências registadas em cartas e diários, revela-nos o que seria, para um

estrangeiro, viver na Lisboa de 40: entristecem-se com a extravagância da luz do sol,

desesperam nos espaços públicos repletos, condenam as exibições opulentas e incômodas dos

que encenam uma falsa rotina, conhecem a angústia do exílio e a vulnerabilidade em que se

encontram. Com eles, sentimos o peso de presenciar uma farsa em cada manifestação

cotidiana, em cada celebração, em cada ato de governo. Da mesma forma, pouco a pouco, as

imagens da propaganda tornam-se cada vez mais ambíguas, ganhando um sentido inesperado,

presas da mesma angústia manifestada pelos estrangeiros. Vemos imagens de homens e

mulheres, sozinhos ou em grupos, congelados numa espera indefinida, em filas para obter

qualquer coisa, seja notícias, correspondência ou alimentos. Muitas das imagens mostram

pessoas sentadas ao lado de malas e embrulhos, amontoados na rua ou na gare de estações de

trem. Rostos apáticos preenchem os planos. Olham algo distante, manifestam cansaço,

revelam uma vida interrompida. E as imagens, conciliadoras e consensuais, deixam então de

ser meros acessórios do mito para passar a perturbá-lo.

Gradualmente, percebemos o desajuste entre o que é dito e o que é mostrado que

acaba por suspender o funcionamento do discurso da propaganda, num movimento que revela

que o mito salazarista da neutralidade e da paz social, é apenas isso -uma ficção, uma fantasia.

Quando o filme retome as narrativas do regime e as imagens oficiais, já nada fará sentido. O

seu funcionamento ideológico foi perturbado irremediavelmente.

Canijo identifica no Estado Novo uma fantasia, uma forma de carnaval que,

sobrepondo-se ao real, anulou-o durante quase cinquenta anos. Não o faz explicitamente (não

há no filme uma narrativa que conduza as imagens), mas a montagem paralela dos

testemunhos dos refugiados proporciona essa subtil abertura, excedendo e questionando as

imagens conciliadoras do regime. O desajuste entre o que é dito e o que é mostrado suspende,

assim, o discurso hermético da propaganda.

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Vejamos um exemplo. Vemos imagens da Exposição do Mundo Português de 1940,

que celebram o papel civilizador assumido nos territórios ultramarinos. A grande atração são

as reproduções de aldeias portuguesas, com figurantes encenando a vida cotidiana. O que

observamos são pessoas, dispostas em aldeias cenográficas, trajando roupas regionais e

entregues a tarefas arcaicas: um homem lava roupa num tanque, outros dois cortam madeira,

as mulheres entrançam palha com a qual fabricam artefatos ou cozem roupa sentadas na

soleira da porta; vão a missa, recolhem água de uma fonte, um pastor guarda um rebanho, as

paisagens são dominadas pela luz avassaladora do sol. Mais adiante, assistimos ao desfile dos

“grandes homens de pedra”, onde figurantes se transvestem de personalidades históricas, e

desfilam ao lado de animais: há um imenso leão, que jaz adormecido enquanto é transportado

por um carro de bois, arquejante e sofrendo sob o calor do sol. Também desfilam outros

animais de grande porte e exotismo: um elefante, vários cavalos, aos quais, curiosamente, se

segue um grupo de figurantes que caminham juntos, retratando judeus, curvados e andrajosos,

seguidos pelos “moiros”, trajando claro e portando uma atitude altiva. Para além das

reproduções de aldeias portuguesas, há também as aldeias dos indígenas, vividas por

figurantes trazidos do império. Mais uma vez, a câmara desfila pelas tarefas cotidianas

representadas nestes cenários: uma família exibe-se em seus trajes típicos de guerra, uma

criança executa uma dança, outras crianças recebem aulas das freiras da missão. As tarefas da

vida da comunidade não parecem diferir muito das antes representadas no palco português, do

seu universo rural.

Em paralelo ao falso ouropel das celebrações, Canijo introduz novamente as imagens

dissonantes dos refugiados. Novamente imagens de espera, mas que carregam em si uma

angústia maior. A voz que narra fala em tristeza, reflexo do sentimento de opressão que

domina os estrangeiros, e as imagens revelam essa tristeza: os olhares são vagos ou ansiosos,

as mãos estão quase sempre perto do rosto, ou escondendo-o; a multidão domina as ruas,

caminha apertada e enche os espaços confusamente. As filas e os papéis parecem igualmente

dominar as cenas – há quase sempre alguém que está segurando um papel, e a maioria parece

estar perdida.

A dada altura, a narrativa retoma o discurso oficial das atualidades sobre a carestia

vivida nas cidades europeias sujeitas à guerra. As imagens que as ilustram mais uma vez

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representam as condições de vida da população portuguesa. Numa feira, vemos os produtos da

terra exibidos em grandes quantidades. A câmara pretendeu filmar a abundância, mas filmou

também, revelando, os modos arcaicos: os burros no curral são descritos, inacreditavelmente,

como o meio de transporte mais eficaz (em 1940!). Mas, sobretudo, as imagens já não

convencem, parecem infetadas de irrealidade: a fantasia trai o pesadelo.

Numa nova sequência, Salazar discursa no Terreiro do Paço, e as imagens mostram a

aclamação popular do líder do Estado Novo (são milhares de pessoas acantonadas numa das

praças principais de Lisboa, portando cartazes de agradecimento). Assistimos, novamente, ao

constante clima de festa de que se jacta o regime. Mas Canijo subverte habilmente essas

imagens deixando ouvir um fado de fundo: a letra diz (involuntariamente?) das condições

inumanas do trabalho, da pobreza resignada, do atraso no qual o país está mergulhado. E tal

como nas imagens das atualidades anteriores, a luz do sol banha as cenas, mas agora parece

colocar em risco o próprio filme, envolvendo as figuras numa claridade abrasadora. Seguem

imagens de camponeses deslocando-se para os seus trabalhos; vemos as vindimas, a apanha

do arroz, as pessoas submergidas em água e lama até aos joelhos, sob um sol enlouquecedor.

Mulheres e crianças carregam baldes de água, fardos de palha ridiculamente grandes à cabeça

– tudo parece equilibrar-se na cabeça dessas pessoas, dobrando-as. Vestidas de negro,

arrastam-se pelo chão pagando promessas; estão quase sempre descalças; com o corpo e a

cabeça coberta por mantas, dormem no chão, estão isoladas. Essa é a natureza do seu

cotidiano, não a fantasia que propaga o regime.

Finalmente, as tensões subjacentes (que existiam mas não se viam, ocultadas pela

produção e difusão das imagens do consenso) também passam a manifestar-se nestas algumas

fotografias e filmes da época (as imagens oficiais do regime). As imagens fazem isso sozinhas

ou foram as intervenções preliminares de Canijo que as abriram a essa variação do sentido? O

certo é que, quebrando o encantamento sob o qual se mostrava o regime, o filme resgata um

ruído de fundo que nos incomoda, que nos faz pensar em tudo o que vimos até aqui (no filme

em questão mas também nos livros de história, nos documentários tradicionais e nos arquivos

fotográficos). E, no final, duvidamos de tudo.

De que modo Canijo consegue pôr-nos a pensar nestas imagens, onde parecia não

radicar pensamento nenhum? À medida que o filme se acerca do final, a manifestação das

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tensões que atravessam o regime acaba por ganhar uma forma mais evidente. Uma vez mais

sob a voz de Salazar, retomando o discurso do governo, a violência surge em imagens de

pobreza e perseguições. Um grupo de mulheres (operárias) corre pelas ruas perseguidas pela

polícia armada. Uma delas, em primeiro plano, arrasta, angustiada, o filho, em traje escolar.

Ao lado dela, uma idosa grita, a cabeça envolta num pano escuro. Outra mulher corre

descalça. Antes, um plano de um pormenor da imagem põe em evidência o momento em que

um polícia se prepara para atingir com a coronha da sua arma o rosto de uma das mulheres em

fuga. Fora de cena, deslocadas, continuam as imagens de extrema vulnerabilidade em

pescadores e varinas, numa imagem em que a recolha do peixe no cais, de madrugada, os

apresenta no seu aspeto despojado, roupas escuras indistintas, marcas da pobreza no rosto.

Nas estradas de terra, gente que caminha ao lado de burros.

Canijo seleciona e monta este material com um objeto – problematizar o sentido das

imagens da ditadura e questionar o mito da neutralidade portuguesa e da paz social salazarista

durante a Segunda Guerra. Naquilo que a obra tem de mais notável, reconhece o poder dos

recursos imagéticos usados pelo regime, e pelo uso dos mesmos meios utilizados – o cinema –

faz com que surja um novo ponto de vista, que não oculta um mundo (in)existente, mas que o

revela. Expondo as imagens a uma interpretação distinta e alternativa, quebra a tendência do

nosso olhar conformado pela evidência das representações reproduzidas ainda hoje de forma

acrítica.

* * *

Como consegue Canijo operar todos esses fenômenos de sentido? O que faz, para por

a falar as imagens, fora daquilo que elas sempre disseram, alterando a função para a qual

foram criadas? E o que diz isso do cinema, da sua potência para criticar aquilo para cuja

edificação contribuiu?

1) Para começar, Canijo opera um deslocamento das imagens, dos seus lugares

originais de consumo para um espaço novo, associado ao cinema de arte. Nesse circuito

alternativo de exibição, as imagens já não se oferecem apenas ao consumo, mas apelam a que

nos relacionemos criticamente com o que vemos. Isto não é secundário, se tivermos em conta

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o espaço no qual circularam as imagens em questão na época em que foram produzidas (e os

modos de recepção que esses espaços privilegiavam). Nos primeiros anos do cinema como

indústria, as imagens ganharam muitas vezes uma função peculiar quando projetadas no

âmbito de regimes autoritários, e a projeção de filmes esteve sujeita a uma lógica distinta da

que conhecemos hoje. O cinema, aliado à propaganda, afirmou-se nomeadamente como um

espaço de doutrinamento. Produzindo pequenas peças de atualidades cinematográficas e

documentários oficiais, contribuía para impor uma imagem oficial do estado das coisas. À

semelhança de outros produtos análogos, o Jornal Português3 estava composto por notícias e,

nessa medida, reclamava um valor de verdade intrínseco. Ao mesmo tempo, a esta breve

amostra de informação, à exposição das imagens do documentário oficial do regime,

costumava seguir-se imediatamente a exibição de longas-metragens de ficção. Esse

movimento, do momento informativo, a priori sério e verdadeiro, ao momento da fantasia e

da ficção, logo, da suspensão da incredulidade, dificultava a possibilidade de uma reflexão

sobre o que se acabava de ver e ouvir nas atualidades. A isto há que somar que a ficção

portuguesa da época também não se subtraía ao caráter ideológico do regime, e estava sujeita

à censura prévia, filmando em geral argumentos de concepção simples e popular, que

veiculavam e reforçavam os valores morais tradicionais afetos ao governo. É o tempo da

evocação dos heróis históricos, em dramas de exaltação nacionalista, e das comédias

musicais, personificadas por atores do teatro de Revista, que se desenrolavam em pitorescos

cenários populares, que se ofereciam como retrato fiel da vida e da população portuguesa.

Pensados para um consumo tão rápido quanto decodificado, não permitiam qualquer margem

para a inquietação ou a dúvida. Em resumo, a relação com as imagens das atualidades estava

fortemente condicionada pela dinâmica do dispositivo de exibição. Não se pode passar por

alto a preocupação com a produção e difusão do cinema pelo regime, que em parte cifrava nas

suas imagens a doutrinação de uma população constituída na sua maioria por analfabetos.

Notemos que os dispositivos cinematográficos onde filmes como os de Canijo se inscrevem

apresentam caraterísticas muito diferentes (que inclusive acabaram por condenar esses

espaços ao encerramento face à hegemonia da indústria de lazer). Em festivais ou

cinematecas, no segundo canal da televisão pública ou nas edições em DVD, somos

3 O Jornal Português foi a primeira edição de atualidades cinematográficas produzida em Portugal.

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convidados a assumir uma posição singular, onde se privilegia a reflexão do que vemos por

oposição à assimilação acrítica. Retiradas do seu contexto original, inclusive as imagens do

Estado Novo nos põem a pensar.

2) Em segundo lugar, Canijo nos propõe, como vimos, uma montagem surpreendente

das imagens que já foram usadas pela propaganda do Estado Novo. Procurando problematiza-

las, as justapõe como numa colagem dadaísta, colocando em contato imagens e palavras cuja

inesperada vizinhança produz uma forte sensação de estranhamento. Não as alinha numa

narrativa polarizada, mas as deixa decorrer em uma ordem aparentemente sem direção prévia

(não pressupõe uma intriga, não parte de um argumento). E, nessa excêntrica repetição, veem

muitas vezes o seu sentido invertido, suscitando no espectador reações contraditórias, e uma

inevitável ironia, pelo ridículo que resulta da montagem, expondo-as a uma variação

imponderável do seu sentido.

3) Por fim, fazendo proliferar o sentido dessas imagens que pareciam esgotadas,

encerradas na desgastada glorificação do Estado Novo, Canijo provoca um questionamento do

próprio cinema. O estado corporativo de Salazar desprezava o progresso, mas servia-se do

meio mais moderno para veicular o seu programa, porque sabia do seu poder de persuasão. As

imagens produzidas pelo Estado Novo não só eram conduzidas à população, fazendo-a aceitar

e confiar no seu lugar providencial e nas suas consequências, como também as colocava à

disposição da elite, fazendo-a acreditar que a presença nas colônias se revestia de prestígio e

sucesso. Grande parte da população, seduzida, consumiu a ilusão, viveu a ficção montada pelo

regime (e por vezes parece continuar a fazê-lo). Com a revisitação do modo em que as

imagens construíram e reforçaram o mito salazarista, Canijo abre a oportunidade para uma

reflexão sobre a potência do cinema, concretizando, na autocrítica que subjaz ao filme, a

capacidade do próprio cinema para interromper as imagens de consenso, tornando possível

que as imagens nos afetem de outro modo (interrogando-nos, questionando-nos e, em última

instância, despertando-nos para que assumamos a nossa responsabilidade perante o mundo

que as imagens refletem ou refratam). Ao explorar as possibilidades do cinema enquanto

propagador de uma ilusão, Fantasia Lusitana recorda-nos do papel do cinema e das imagens

para a história, do seu poder e eficácia na construção de mitos e ideias que serviram muitas

vezes para consolidar e perpetuar regimes autoritários. Fazendo isso, o cinema converte-se em

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um dispositivo crítico e se redime, em certa medida, dos pesados compromissos que assumiu

no passado (e continua a assumir frequentemente no presente).

* * *

Na releitura que faz do passado, o filme de Canijo vê o Estado Novo como uma farsa

assente numa construção fictícia do que seria Portugal. Numa conjuntura em que a ordem se

ressentia dos confrontos internos e externos, que colocavam em causa a própria legitimidade

do governo, as imagens do poder alinhavam a “realidade” com o discurso hermético da

propaganda, consagrando-o. O que não se encaixava nesse discurso era apagado, não era

visto, anulado por uma intenção inicial que não permitia a criação da dúvida perante a

encenação – e essa intenção era o desejo de esconder a violência que estava a ser exercida

nesse momento sobre a população portuguesa.

Uma descrição final, porventura a mais significativa de todo o filme, de uma imagem

que, nas diversas leituras que permite, parece a um dado momento, querer abranger dois

pontos essenciais da obra de Canijo: por um lado, metáfora da decadência e queda do regime;

por outro, crítica ao próprio funcionamento do cinema, uma crítica feita no mesmo lugar da

sua produção, uma crítica ao cinema pelo cinema – o seu filme, denunciando os mecanismos

do uso da imagem, da potência e dos riscos da montagem.

A imagem é a captada no batismo da nau Portugal, uma embarcação alegórica em

alusão aos descobrimentos, durante a Exposição do Mundo Português de 1940. As câmaras

estão a postos. A nau destaca-se ao longe, elevando-se por detrás de uma série de barcos

menores, presos ao cais. A população observa a cerimônia. A câmara oferece-nos o plano

dessa multidão através da portinhola de um canhão. Alguns homens quebram as escoras, os

marinheiros acenam da proa e se equilibram nos mastros. A nau desliza, toca as águas. Mas

não chega a avançar. Sob os olhares do público, perante as câmaras que estão aí para

perpetuar o momento, o barco tomba e naufraga. Os marinheiros abandonam a nau, saltam à

água, é cada um por si. A alegoria da glória do império devém imprevisivelmente alegoria da

sua decadência. E o cinema, que durante décadas se dedicara a ocultar tudo isso, procura

agora revelar, ao mesmo tempo, a realidade velada e o seu papel na construção da fantasia.

12

Essas imagens, ao mesmo tempo hilariantes e trágicas, que tiram toda a credibilidade ao

regime salazarista, quiçá devolvam ao cinema a sua ambiguidade essencial.

***

Fantasia Lusitana deu lugar a uma série de entrevistas de Canijo em torno da relação

entre o cinema e a história. Para concluir, gostaria de deter-me sobre algumas dessas

intervenções.

Em 20114, Canijo revela-nos o inesperado motivo que o faria alterar o protejo inicial

do seu filme, levando-o a assumir uma obra completamente distinta da que lhe havia sido

encomendada: uma conversa com o seu filho adolescente sobre uma aula de História. Canijo

diz: “pouco tempo antes, um professor de História do meu filho, que andava no 9º ano, deu

uma aula em que explicou algumas das virtudes do salazarismo. Então decidi fazer o filme

para o meu filho, para os miúdos, e explicar-lhes como as coisas realmente eram”. Canijo

identifica uma continuidade entre as diferentes formas de governo em Portugal, que

perpetuam, ainda hoje, a fantasia do que significa ser português, contribuindo para o

enraizamento de certos mitos identitários: “Há aquele discurso sobre o verdadeiro espírito

português, a humildade, a disciplina... O Dr. Cavaco continua a dizer a mesma coisa. (...)

Estamos convencidos de que temos uma história gloriosa. Isso percebe-se ao ver a Exposição

do Mundo Português: continuam a ser esses os mitos dos miúdos do liceu” (Câmara, 2010).

O pessimismo toma conta das respostas de Canijo. Teme que nada vá mudar nunca,

que as coisas não têm remédio. Podemos entender esse pessimismo: ao penetrar na relação

que mantém com o cinema, vemos que os seus filmes não nos oferecem respostas; antes,

apelam a que nos atrevamos a reconhecer as questões que são colocadas. Fantasia Lusitana

simplesmente pretende desmistificar, ironizar e subverter os valores que sempre tivemos

como dados – a construção artificial da realidade portuguesa.

Não obstante, esse ato constitui, claramente, uma denúncia: Canijo revela uma

estrutura de poder, cujo aspecto mais nocivo se encontra nas consequências que projeta sobre

4 Por ocasião da estreia de “Sangue do meu Sangue”.

13

o nosso futuro – é esse estado de coisas que impede que hoje exista uma perspectiva de

mudança em Portugal. Mas, o que é Portugal se não essa fantasia, que induz o cepticismo e a

resignação à hora de agir?

Responder a essa pergunta implica uma tarefa. Canijo pretende que cada um procure a

sua interpretação sobre aquilo que vê. A sua proposta está associada a uma possibilidade de

ação – a resistência. Acredita na possibilidade de minar a estrutura que conserva os mitos,

através da luta contra as estruturas de sentido que determinam aquilo a que podemos ou não

aspirar, aquilo que é ou não é possível.

Pensar quem somos e o que queremos ser é crucial para reverter a relação de forças

naturalizada por uma forma da ideologia que não conseguiu desfazer completamente a

revolução de Abril. Assim, num movimento sobre nós próprios, voltando o olhar sobre o

nosso passado, quiçá consigamos abrir a possibilidade de compreender a realidade dupla do

nosso presente, reconhecendo debaixo da superfície frágil das democracias em que vivemos, a

agitação de uma história que não se encontra encerrada.

Referências bibliográficas

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(http://www.dn.pt/inicio/artes/interior.aspx?content_id=1549191&seccao=Cinema,

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