do azul mais distante, poesia, livro de antonio miranda
DESCRIPTION
O aZUL MAIS DISTANTE é um longo conjunto de poemaqs que constituem uma saga nordestina. Valendo-se de uma linguagem esperpêntica, suprarreal, de realismo mágico e até, em certo momento, escatológico, conta a trajetória de uma família do Piauí no período de entre-guerra, o êxodo para o Rio de Janeiro e as transformações cociais, culturais e morais susequentes. O autor ainda nos deve a seguna parte a história, mas esta primeira já foi traduzida e publicada na Espanha. "O coito do sátioro", um dos poemas do livro, é dos maisl lidos na internet no original em português e na versão espanhola .TRANSCRIPT
![Page 1: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/1.jpg)
![Page 2: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/2.jpg)
1
![Page 3: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/3.jpg)
2
![Page 4: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/4.jpg)
3
Antonio Miranda
com ilustrações de Zenilton Miranda
Brasília, 2008
![Page 5: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/5.jpg)
4
© by Antonio Miranda e Zeniltom Miranda 2008Todos os direitos reservados
Capa: Elmira Simeão, a partir da ilustração de Zenilton MirandaProjeto Gráfi co: Elmira SimeãoEditoração: Beto PaixãoIlustrações e arte: Zenilton MIrandaRevisão: Antonio Miranda
Publicação especial com tiragem limitada (200 exemplares) não comercializada e lançamento especial programado na I Bienal Internacional de Poesia - Brasília, 2008.
Do Azul Mais Distante / Antonio Miranda e Zenilton Miran-da. - Brasília :
Publicação especial em lançamento limitado por 000 p. ; . - (poemas)
ISBN 85-XXX-XXX-X
I. Miranda, Antonio. II. Miranda, Zeniltom.
![Page 6: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/6.jpg)
5
Sumário
Retrato Na Parede ......................................... 15As Origens ........................................................ 18Havia o Trem .................................................. 25Aves de Arribação ......................................... 27O Cabra Fornicador .................................... 29As Virtuosas ..................................................... 33Teias e Tramas Genealógicas .................... 35O Parto da Virgem Endiabrada .............. 39Os Albinos do Quilombo .......................... 45Poetas Malditos ............................................... 49O Circo Chegou ............................................ 51O Vaticínio ........................................................ 53Ventos Aziagos ................................................. 55O Casamento ................................................... 59A Língua dos Mortos .................................... 61Tanto Sol .......................................................... 63O Passamento .................................................. 67O Coito do Sátiro ........................................ 69A Penitente ........................................................ 76Ciclos .................................................................... 78
![Page 7: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/7.jpg)
6
A Decisão ......................................................... 80Tralhas e Trilhas ............................................ 82Lampejos .............................................................. 84Absorto ................................................................ 86Horror ................................................................... 87In Memoriam ....................................................... 89O Quarto de Nelson .................................. 92Monogramas ....................................................... 95Acasalamentos .................................................. 97A Gata Borralheira ....................................100Longa Jornada Noite Adentro .............103Do Outro Lado da Vida .........................111Visita à Casa Paterna ................................113Repasso .............................................................116Os Nervos da Memória ............................117Solistício de Inverno ......................................119Paisagem com Sombras ..............................121O Trem ..............................................................123Monólogo da Enjeitada ...............................127Ubiquidade .......................................................130
![Page 8: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/8.jpg)
7
Do Azul Mais Distante
Tive o privilégio de escutar estes poemas, ainda inéditos, recitados pelo próprio autor. A intensidade, a força, a ternura me conquistaram desde as primeiras linhas até envolver-me no enredo, urdido brilhantemente. A aspereza da história era mitigada pela calidez da voz e pela singularidade do lugar onde estávamos: a Biblioteca Nacional de Brasília, belíssima construção de Niemeyer de onde contemplávamos a Esplanada dos Ministérios. Espaço amplo e aberto criado pelo engenho que também favorece a liberação dos sentidos, o proceso criativo da palabra e o desdobramento da imaginação.
Este poemario que teme mão, leitor, não se parece a nenhum dos outros muitos escritos por Miranda, de fato não se parece com nenhum outro libro que tenha lido, é um libro-conto, um libro-origem, um libro-história, um libro-sonho, um enredo genealógico de enredos, de equipagem e percurso, de horror, em definitivo, um legado da memoria abandonada na lembrança de adolescente mas com a lucidez que propicia uma vida plena, uma vivida vivida, uma mirada serena.
Um livro-conto, que narra, nos conta a história das irmãs Teixeira, com seus anseios, ambições, suas paixões e misérias, enfeitadas com pó-de-arroz e folhetim, com amor, ódio, concubinato, violações e adoração até a morte: todo um conto.
![Page 9: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/9.jpg)
8Um livro-história, repleto de referências a uma etapa da história do Brasil, momento concreto em que se desenvolve a ação, momento difícil, na primoeira metade do século XXX, numa das mais pobres e abandonadas regiões do pais —o Piauí. Uma história que também faz referencia à riquíssima arqueología da região. História da terra, de su aterra.
Um livro-origem, que permite ao autor evocar lembranças de sua infancia e traê-las ao século 21, com a ternura de um menino e rudeza de um camponês nordestino. Com a memoria nos fala do principio e nos remete às origens. Uma introspecção que parte do vestigio e se enfeita com a caligrafia do escritor, do adulto-menino, do ser humano capaz de dar forma artística, beleza, a uma crónica trágica.
Um livro-sonho, cheio de elementos mágicos que convertem o sobrenatural em algo cotidiano. Maravilha do escritor, feitiço de poeta. O realismo mágico brilhou intensamente na literatura hispano-americana dos anos sesenta e setenta, movimento literque não se expressou principalmente através da poesía, mas da narrativa; no entanto, o poeta Antonio Miranda nos faz conviver com a língua dos mortos, paisagens com sombras, ubiqüidade e vaticínios tristemente cumpridos. É aquí onde o onírico permite ampliar-nos, comprometer-nos, reconoher-nos? Podia ter sido o destino de qualquer outro Édipo coetâneo que a contragosto não impusesse seu desejo.
Os poemas têm uma continuidade linear, entrelaçados por um discurso interno, calibrado, que modera a intensidade de alguns poemas, muito duros, próximos do primitivismo animista original, intercalando outros mais leves, mais líricos, envoltos no devir dos días, capaz de aligeirar o recorrido, protegendo contra o excesso de angustia.
![Page 10: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/10.jpg)
9
(...) As irmãs Teixeira andavam alvoroçadas
com a chegada do circo.
Um engolidor de facas, a mulher barbada,
os palhaços (farrapentos), leões (famintos),
e o trapezista bonito de olhos azuis
que fisgavam os corações das meninas!!! (...)
Continúa com alusões à tradição dos costumes nordestinos, com regionalismos plenos de sabor local, que constituem a crônica de uma época.
(...) As crianças correndo atrás de um cabrito assustado.
Sombra de ingazeira generosa
e um claror repentino
que apagava tudo no céu sem fundo. (...)
——
(...). Um sol sempre vermelho e reverberante,
gado importado (quem sabe?) de Cabo Verde
nas terras novas de plantio
voltadas para o curso do rio Parnaíba.(...)
——
![Page 11: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/11.jpg)
10
(...) Havia homens recitando sonetos
e carcamanos
com seus fardos ambulantes.
Seriam judeus errantes cristianizados,
miscigenados com índias apresadas, (...)
Tensão-contradição, jogos de palabras que estremecem na mescla do terrestre com o divino, imagens que comovem enquanto espantam, como no imponente poema Ventos aziagos:
(...) Passava a procissão do Senhor Morto,
passava a procissão de São Pedro de Alcântara,
passava fome
e um bumba-meu-boi em farrapos.
Vivia-se de enfermidades
aviando medicamentos.
Morria-se na véspera,
antes mesmo de nascer:
corpos adubando o solo.
—
![Page 12: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/12.jpg)
11
Havia mais mortos enterrados
do que vivos, e do fundo
da terra, milhares de olhos
observando os mortos futuros.
Ventos aziagos que assinalam, a pesar do poder religioso que a procissão indica, a dor permanente, a fome indomável. A perpétua doença que os remédios não alcançam curar, a morte que se antecipa à própria vida, morte que se torna morte antes que a vida seja vida. O vazio, o buraco, a ausência. A morte.
Personagens que amam, sofrem, conquistam, temem, anseiam, ambicionam, morrem e voltam à vida com o imponente saber da morte. A estas outras passagens do poemario que não permitem desejar, como acontece com Nazinha, na lembrança compartilhada, como a vida que nos vai construindo-descontruindo
Nazinha, a mais velha, é a mais tímida.
Sonha com homens fardados,
varões engalanados em desfiles militares.
—
A virgem que acasalou com o trapezista:
![Page 13: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/13.jpg)
12
grávida, escorraçada, seguiu o circo mambembe.
Avós putrefatas, tios decapitados, bestiários.
Tio Nelson era o único testemunho do Além.
—
Queria morrer. Via sargaços e aves
e revia o gado perdido no campo.
Chorava para si.
lava nem ouvia.
Nem via mais o mar,
olhava para dentro.
Devia contrapor as sensações
que estão em tempos diferentes
e em espaços sem contigüidade,
inteligindo
sem a razão do entendimento.
Do azul mais distante, um título lírico, um verso doce, que realça um poemário duro, penetrante e profundamente intenso, lembrando Antonio Machado em
![Page 14: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/14.jpg)
13
seu último verso: Estos días azules y este sol de la infancia, que com estas palavras o poeta espanhol concluía sua obra. Poeta, sim; filósofo também, certamente um pensador, como também Antonio Miranda nos conclama a pensar, sem deixar de imaginar. Do azul mais distante parece marcar também uma etapa, a da maturidade expressiva que proporciona o conhecimento, o saber da experiência vital acumulada nos estratos pouco erodidos pelo tempo, pela reflexão capaz de sobrepor-se ao passado, vertendo distantes días azuis em páginas comovedores, para o gozo dos leitores
Aurora CuevasMadri, julho de 2008
![Page 15: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/15.jpg)
14
![Page 16: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/16.jpg)
15
1
Retrato Na Parede
(Floriano, 1935)
As irmãs Teixeira sentadas na poltrona acolchoada,
espaldares arredondados, fundo estampado:
uma foto ensaiada, retocada pelo fotógrafo
em seu estúdio. Moldura em relevo.
Os olhos das meninas saltam do espaço
recortado, antecipando migrações.
![Page 17: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/17.jpg)
16Estão vestidas assim tão arrumadinhas
com golas e franzidos nas mangas,os cabelos cacheados, enfeitadas.
Olhares de horizontes largos,sem precisão do que pretendem.
Nada da aparente placidez de ovelhasamestradas, de sujeição.
Os irmãos já se foram para o sul.Nascem e já saem na direção
do marcomo alimárias errantes.
![Page 18: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/18.jpg)
17
![Page 19: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/19.jpg)
18
As Origens
Estas terras nunca foram benfazejas.Sem os metais preciosos,
o litoral piauiense nunca teve porto de atracação.
Um sol sempre vermelho e reverberante,gado importado (quem sabe?) de Cabo Verde
nas terras novas de plantiovoltadas para o curso do rio Parnaíba.
Dunas e areias movendo-se em direçõesazarosas, sobre lençóis movediços,
sediços, luzidios, fulgurantes, fugidios.
2
![Page 20: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/20.jpg)
19Os navios passam ao largo, indiferentes.
Léguas de terra em quadro,fazendas criadas por Domingos Afonso Mafrense
em ciclos de crescimento e estagnaçãodesde a expulsão dos jesuítas.
(Havia ossos deles enterradospelos cemitérios abandonados,
adubando o chão cáustico.)
Trilhas mulares do sertãopela ausência de horizontes.
Veredas infindas, chapadas rasase baixios ribeirinhos,
passo dos viandantes.
![Page 21: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/21.jpg)
20Carnaubais, babaçuais.
Cemitério marinho fossilizadono leito de mares extintos:
um mar entranhadoque ainda ruge do fundo da terra.
![Page 22: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/22.jpg)
21
O Ressurrecto(Floriano, 1936)
Desenterrado vivo depois de anos de escuridão:intacto sob uma cobertura de pó
em camadas de fina tessitura.
A palidez ebúrnea, vinda das paragensdesconhecidas da morte, cheiro súbito
de coisa parada no tempo, sambaqui enterrado.
Inscrições rupestres na Serra da Capivara.No Piauí vagam animais da mais remotaantiguidade. Vestígios por toda parte.
3
![Page 23: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/23.jpg)
22Do chão arcaico emanam forças
capazes da ressurreição das espécies.
Havia relatos de outros casos em Oeiras e Picos.
Havia também pássaros descomunais com bicosde carcará e asas de morcegos vindos
das cavernas e peixes migrandodo delta do Parnaíba na direção das águas
enterradas da Gurguéia, para a derradeira morte.
Pedaço do fim do mundo antediluviano.Terras profanadas pelos colonizadores.
A maldição:os peixes serão impedidos de subir as águas
![Page 24: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/24.jpg)
23do rio com a construção de uma represa;
as águas cada vez mais poucas e barrentasimpedirão a navegação dos últimos vapores.
![Page 25: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/25.jpg)
24
![Page 26: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/26.jpg)
25
Havia o trem para São Luis do Maranhãopassando pela ponte estrepitosa
em seus metais antigos.
Teresina com suas ruas retas, cruzando-se.Uma população invisível
convivendo com os falsos vivos.
Havia homens recitando sonetose carcamanos
com seus fardos ambulantes.Seriam judeus errantes cristianizados,
Havia o Trem4
![Page 27: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/27.jpg)
26miscigenados com índias apressadas,
pregadores da volta de Cristo nos cafundó do Judas,seriam desgraçados jurados de morte
e homens-bodes sobrevivendo às agrurasda seca e da fome. Gibões de couro
e um sebastianismo recalcitrante.
![Page 28: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/28.jpg)
27
Notícias da Guerra chegavam a intervalos.O gado morrendo de sede,
carnes humanas calcinadas, desidratadas,soldados federais caçando cangaceiros,
justiceiros a soldo saldando dívidas de honra,cobranças, desavenças.
Os arroubos versejantes da intelectualidade ludovicencenos sobrados assustados da Atenas brasileira;
bondes trôpegos e morosos,
chapéus da moda,
5Aves de Arribação
![Page 29: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/29.jpg)
28os ternos claros dos comerciantes cearenses.
Almanaques entretidos e folhetins romanescos
não eram muitos naquelas lonjuras.
Meninas sonhadoras, os olhos esbugalhados,
vôos contidos de aves de arribação.
![Page 30: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/30.jpg)
29
Tio Nelson colecionava palavras em cadernos volumosos
numa mala velha de couro ressecado.
Caligrafia de ourives,
pescava palavras na beira do rio,
nas rodas de pescadores,
nas prédicas do sacerdote,
e nas preleções do juiz de fora.
Palavras de redenção.
As palavras estão na origem do mundo
—garantia—, criadas por Deus
6O Cabra Fornicador
![Page 31: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/31.jpg)
30para facilitar o entendimento das coisas.
Os sábios gregos falavam diretamente com os deuses,recebiam deles os ensinamentose podiam dissentir e argumentar.
O povaréu de Floriano ouvia o discursoenviesado com fascínio e escárnio.
Ressurrecto, tio Nelson conhecia o outro lado da vida.Passava horas lendo em voz alta,seus olhos de cera ainda mortos,
a única intimidade era mesmocom as palavras de seu dicionário.
Dizem que tio Nelson fornicava com as cabras,seria um sátiro, pênis espiralado,
no desespero de sua solidão.
![Page 32: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/32.jpg)
31Dizem que tio Nelson fornicava com as cabras,
seria um sátiro, pênis espiralado,no desespero de sua solidão.
![Page 33: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/33.jpg)
32
![Page 34: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/34.jpg)
33
Nazinha, a mais velha, é a mais tímida.Sonha com homens fardados,
varões engalanados em desfiles militares.Militar de verdade, não um capitão-do-mato como o avô.
Inês sonha com um homem de letras,um poeta, um advogado com a melhor oratória.
Culto, refinado, galante.Capaz de escrever belas cartas de amor
e recitar textos arrebatadores.
Neusa, a mais nova, é arredia e irritadiça,
7As Virtuosas
![Page 35: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/35.jpg)
34na contramão das vontades alheias.
Freqüenta as aulas de francêse as práticas de um piano desafinado.
Quer um príncipe de verdade.
Minhocas na cabeça! —vocifera o pai Florêncio.A cartomante, depois de comer do famoso
doce de limão da casa dos Teixeira,vislumbrou tragédias e desassossegos na famíliamas, agradecida, vaticinou um futuro retumbante.
![Page 36: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/36.jpg)
35
O patriarca costumava reunir a parentelapara contar a história dos antepassados.
As mulheres abanavam leques fingindo interesse.As crianças, impacientes, sonhando com o bolo
depois da litania genealógicae da liturgia dos defuntos.
Fotos ovaladas, ornadas com flores de papel crepom. Heráldica difusa, inventários imprecisos.
(Ocultava os crimes, os abusos, aberrações.)Cronologia desencontrada, discurso labiríntico.
8Teias e Tramas Genealógicas
![Page 37: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/37.jpg)
36Notícias de freguesias extintas,
referências a arquivos queimados,lápides de um cemitério afogadona última cheia do rio Parnaíba.
Não havia certificados de sesmarias e datas,nem herdades patrimoniais claras nos cartórios.
Não obstante o zelo da religião em suas vidas,uma miscigenação aleatória e até promíscua,
incertos acasalamentos com padres estrangeiros,e incestos, rizomas subterrâneos, tramas insondáveis.
A tia empertigada na foto como se usasse espartilho,saía do baú para as assombrações noturnas.
Morrera de peste seguida de febres e estertores,
![Page 38: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/38.jpg)
37recolhida ao monte de cadáveres a serem queimados
a céu aberto para excomungar as penas inculcadas em suas carnes ímpias
onde o fogo-fátuo acendia a libertação de suas almas de bodes e calangos
—derradeiras agonias.
A virgem que acasalou com o trapezista:grávida, escorraçada, seguiu o circo mambembe.
Histórias do destino humanovigiando fontes e riachos temporários
para garantir a sobrevivência da estirpe,pastando cabras como ovelhas bíblicas.
O Amor seria o resultado indesejávelde uma química perversa,
![Page 39: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/39.jpg)
38alheio ao controle humano, subjugante
—garantia o patriarca—,próprio dos seres fracos e incivilizados.
Neusa dedilhava, depois, valsas no piano fanhoe era então servido o patrimônio culinário
de bolos, biscoitos e doces de família.Dona Filomena palavreando receitas
com o eco de vozes defuntas.
Avós putrefatas, tios decapitados, bestiários.Tio Nelson era o único testemunho do Além.
As crianças ficavam cativas de pesadelos:bois encantados, pavões delirantes, cabeças-de-cuia.
![Page 40: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/40.jpg)
39
A Enjeitada começou a dar sinais de transtornose convulsões, tonteiras e derramamentos de sangue.
Foi logo enclausurada no quartode onde nunca deveria ter saído
—na condenação verbal da mãe Filomena.
Sentia cólicas e erupções, queimando gases venenosos,suores peçonhentos, desmaios constantes.
Banhos-maria, rezas de benzedeira,chás e emplastros vegetais, pomadas
e ungüentos nas têmporase nas regiões úmidas e abrasantes
9O Parto da Virgem Endiabrada
![Page 41: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/41.jpg)
40
![Page 42: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/42.jpg)
41de seu sexo de adolescente,
os lábios inchadose o ventre crescendo a olhos vistos.
Amarrada ao madeiro do catrecomo fera encurralada,
babava e grunhia.Padre Fernandes (que não era um exorcista)
acudiu com preces e ladainhasinúteis.
Gravidez estranha, de virgem enclausurada.Espírito maligno encostado, entendeu o pai-se-santo:
Exu e suas mulheres-hospedeiras,ovo de serpente do diabo em gestação interminável.
![Page 43: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/43.jpg)
42Estranhos desígnios!
Onde já havia um morto-vivoagora a possuída pelo Belzebu em carnatura.
Movimentos da besta nas cavidades profundasda menina inocente. Rezas, descarregos.
Na madrugada escura, finalmente, uma coisa pardacenta e gelatinosa,
movente e sem cabeça, sem cordão umbilical,na gosma visguenta e luminosa,é recolhida em urinol de ágata,
e logo enterrada no quintalcom várias camadas de terra.
Livre da abdução, a menina desfalece.Neves, a enjeitada, era uma brotação indesejada
![Page 44: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/44.jpg)
43que a própria mãe esconjurava.
Castigo do céu pelos pecados cometidos,estrupício, produto de estupro,uma cruz que levava ao calvário.
Havia que buscar um marido para a desgraçada.
![Page 45: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/45.jpg)
44
![Page 46: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/46.jpg)
45
O bairro dos quilombolas era invisível,coberto por uma nuvem de pó e dissimulo.
Não pagava impostos aquela gente miserável,sem registro no cartório. Analfabetos.
Ruelas sem árvores, sem iluminação,desolação a céu aberto, deserdados da sorte,
condenados à morte, sem remissão.Casebre de pau-a-pique com folhas de palmeiras.
Sorte que viviam à jusante do rioe as sujeiras desciam na enxurrada.
10Os Albinos do Quilombo
![Page 47: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/47.jpg)
46Prófugos da escravidão, desmemoriados,
descendentes de escravos forros esquecidos.
Albinos escondidos, como leprososvivendo com os espíritos errantes,possuindo seus corpos em transe
em noites argênteas e premonitórias.
Conhecido como bairro dos albinospor causa de seus hábitos noturnos.
Extrema brancura da pele, não obstanteas feições negróides e cabelo enrolado.
Ostentavam olheiras escuras e usavamroupas folgadas até às extremidades.“São holandeses”, garantia uma velha
![Page 48: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/48.jpg)
47já centenária e cega de catarata.
Bastardos abandonados pelas nauscondenados à diáspora infinda dosnão-cristãos, primitivos, animistas.
Nas labaredas eternas do infernodas regiões equatoriais, a pele em chagas.
Havia também espécimes listradose malhados como vacas e zebras.
Expostos como atração bizarraou exterminados em partos clandestinos
para não se ter que alimentá-losna penumbra de choças, como inúteis.
![Page 49: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/49.jpg)
48Protegidos pela escuridão e o anonimato,
dialogando com as almas dos falecidos,comendo raízes sem sal, com papeirasdeformes como galinhas agourentas.
Um deles trajava vestes femininasquando deu à luz um monstro
que ostentava um rabo de réptile uma genitália de jumento.
![Page 50: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/50.jpg)
49
Sabia Rimbaud de memória,ruminava versos de poetas malditos.
Poetas de almas doentesvivendo em paraísos artificiais,
flores do mal.
Que paraíso haveriaalém daquele criado por Deus(que era um inferno, admitia).
Nelson havia ressurgido da tumba.
11Poetas Malditos
![Page 51: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/51.jpg)
50Havia precedentes na Bíblia,
ressurreições, mistérios insondáveis.
“Aprendeu francês com o demônio”—sentenciou o pároco Fernandes—,
no inferno,onde conversava com hereges e degenerados.
![Page 52: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/52.jpg)
51
As irmãs Teixeira andavam alvoroçadascom a chegada do circo.
Um engolidor de facas, a mulher barbada,os palhaços (farrapentos), leões (famintos),
e o trapezista bonito de olhos azuisque fisgavam os corações das meninas!!!
Artistas tocando tambor pelas ruas da cidade.Uma contorcionista, e sobre um elefante,o empresário com chapéu de lantejoulas.
A lona (remendada) no descampado
12O Circo Chegou
![Page 53: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/53.jpg)
52ás margens do rio Parnaíba.
Um galinheiro de gente apinhadomas era mesmo bonito o trapezista de olhos azuis.
Louro como nos contos de fada.
Só não estava láa desafortunada da Nevesporque estava prometida
a um fazendeiro rico.
![Page 54: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/54.jpg)
53
O espírito baixou no terreiro dos albinos.—”Vosmicê vai ser como uma cortesã,
coberta de jóias, vai ver o mar
e morrer pelas próprias mãos”.
Desconjuro!Neves estremeceu.
Quem seria o rico fazendeirocom quem esposaria?
Só podia ser um velho feio,
13O Vaticínio
![Page 55: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/55.jpg)
54um gordo sujo.
Mas havia o consolo do mar.
Pra que serviriam as jóiasa uma prisioneira?
![Page 56: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/56.jpg)
55
A miséria como maldição.Secas intermináveis
devastavam plantação e gado.
As vendas de muitas portasna rua de São Pedro
e poucos compradores.
Passava a procissão do Senhor Morto,passava a procissão de São Pedro de Alcântara,
passava fomee um bumba-meu-boi em farrapos.
14Ventos Aziagos
![Page 57: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/57.jpg)
56Passavam a febre amarela
e a cólera-morbocombatidas com suco de limão,infusões de pimenta malagueta,
enxofre em pó nas meiase a simpatia das moedas de cobre
penduradas no pescoço.
Apensados, obstrutos e ventruosidades—nó nas tripas e beriberi.
Passava sezão, gota, pleurismaligna e verminose.
Vivia-se de enfermidadesaviando medicamentos.
![Page 58: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/58.jpg)
57Morria-se na véspera,
antes mesmo de nascer:corpos adubando o solo.
Havia mais mortos enterradosdo que vivos, e do fundo
da terra, milhares de olhosobservando os mortos futuros.
![Page 59: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/59.jpg)
58
![Page 60: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/60.jpg)
59
O noivo veio a cavalo.
Não tinha parentes nas redondezas.
Recebeu a menina depois dos ofícios
(do sacrifício no altar)
como quem recebe uma encomenda
e enganchou-a na garupa
para uma viagem de incômodos
e soluços.
Via-a como um fardo
que agora deveria alimentar
15O Casamento
![Page 61: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/61.jpg)
60e servir-se dela como esposa.
Ela sentiu a gravidade de seu desterro.
![Page 62: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/62.jpg)
61
Aprendeu a língua dos mortos.Em vez de roncar, recita textos em língua ininteligível.
Coisa de sonâmbulo, de morto-vivoque vive duas vidas:
uma regular, como todo mundo,e a outra habitada por divindades e demônios.
Deve ser o sânscrito, o aramaico,um dialeto da Ásia menor
ou o tal de papiamento que ninguém sabe de onde é.
16A Língua dos Mortos
![Page 63: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/63.jpg)
62Não pode ser o latim
—garante o pároco— que é língua de santose não de bruxos.
Tio Nelson escrevia versos na calada da noitenaquela caligrafia que nem ele entendia.
Palimpsestos sobre papel de padaria, matéria de paleógrafos.Escrevia-os para os espíritos.
“– Todo homem deve escrever os seus pensamentos, para a posteridade.
Mas só deve revelá-los depois de morto.”
– Mas ele já morreu...
![Page 64: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/64.jpg)
63
A bússola apontapara
o sul.
As galinhas uivame os gatos assoviam;
os patos solfejame as vacas sonham.
Nestas terras abandonadasnão se pronuncia
17Tanto Sol
![Page 65: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/65.jpg)
64o nome de Deus
sem o arrepio da dor—clamor e penitência.
Carcarás domesticadosos homens-jegues arrependidos
com seus fardos .
Os pássaros desencantadosos romeiros e as rameiras
e os retirantes, penitentesos esmoleres conformados
e os tropeirose os ciganos
—discursos ensarilhados.
![Page 66: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/66.jpg)
65Nestas terras de usura
não tem fartura,se tortura, não hásossego e perdão;
tem gibãoe fogo na carnatura— ave de arribação.
Nas agruras do sertãonas lonjuras insondáveis
vaga o homem, e cismaem seu confinamento— tanto sol e solidão.
![Page 67: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/67.jpg)
66
![Page 68: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/68.jpg)
67
Dona Filomena amanhecera mortaao lado do marido.
A mão na testa—sentiu a frieza da ausência de vida.
Florêncio não saberia mais viver sósem o amparo da mulher (ou mãe).
Não sabia onde estavamos chinelos e a ceroulaque ia usar naquele dia.
18O Passamento
![Page 69: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/69.jpg)
68Depois vieram as carpideiras
e um enterro com pompase luto fechado.
Mal não fariam à defuntaaquelas ladainhas e orações solenes.
![Page 70: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/70.jpg)
69
Na penumbra de uma lua minguante enxergouuma casa modesta, coberta de telhas arruinadas
e nenhuma cama decentepara descansar da fadiga caminheira.
Redes no meio de um quarto sem adorno e sem móveis.Um cenário de sombras.
O sátiro arrojou-a na rede sujae esforquilhou-se sobre seu corpo trêmulo,
despindo-a com rudeza,com os pés plantados no assoalho.
O Coito do Sátiro
19
![Page 71: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/71.jpg)
70
![Page 72: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/72.jpg)
71Desvestiu-se da camisa e,
uma pernadepois da outra,
desvencilhou-se da calça de brim escuro.Apareceram, então, entre as pernas,
dois pênis imensos excitados e vibrantescomo duas serpentes libertas.
Dois pênis sobrepostos, olhos de fera, faiscantes.
A lamparina extinguia-se lampejante,exalando um cheiro de queimado.
Carnes indefesas,busuntou-a com sucessivas demãos de saliva grossa
e começou a introduzir-se com fúria.Tamanha a dor e acabou desfalecendo.
![Page 73: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/73.jpg)
72Depois ele repetiu o assalto pelo ânus.
Começou a penetrar as cavernas até não mais poder.
Um estrebucho de frêmito até aos estertoresdo gozo, relinchando vitorioso.
Acordou as galinhas nos poleiros e os animais nas coxias.O sangue jorrava dela
enquanto o fauno saía correndopara o riacho próximo,
arrojando-se nas águaspara apagar as brasas de seu corpo enfermo.
IIO silêncio acometeu os corpos exauridos.
O homem estremecia no sonho saciado
![Page 74: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/74.jpg)
73e perturbava a noite com os roncos de bicho extenuado.
A jovem no torpor de um pesadelo e gemidos constantes.
Na tarde do dia seguinte abriu os olhos e viuas réstias de luz invadindo o quarto hediondo.
O companheiro dormia um sono ruminante.
Saiu engatinhando até a soleira da portapara ofuscar-se com as luzes invasoras
de uma tarde declinante.
Avistou uma ingazeira portentosa e um pasto ralono horizonte difuso.
Encontrou mais adiante um cocho com água da chuvae meteu a cara até sentir afogamento
![Page 75: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/75.jpg)
74quando percebeu que estava nua.
Viu um machado repousando junto à porteirae agarrou-se a ele com a força que não tinha.
Sentiu o ímpeto de salvar-sevalendo-se daquele instrumento de justiça.
Tentou arrancá-lo das entranhasda madeira de um tronco caído
mas não foi capaz.
Ainda intacto o saco em que trouxera seus minguados pertences.O vestido de noiva prostrado sobre o chão poeirento.
Saiu avexada até embrenhar-se na caatingaem direção desconhecida.
Errando pelos caminhos de tropeços e espinhos.Arfando e farejando “com sôfregas narinas”
como escreveu o poeta Humberto de Campos.
![Page 76: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/76.jpg)
75
![Page 77: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/77.jpg)
76
Minhas sandálias puídas,minhas ancas aviltadas,
minhas entradas sofridas.
Aves desterradas, potrancas.Andar fatigante. Feridas.
Sol luzidio, inclemente, assim arredio e abrasante,
— estradas, sustos, arrepio..
A Penitente
20
![Page 78: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/78.jpg)
77 A que pecados corresponde
semelhante castigo;a que infâmias e insânias
estarei sujeita— umbigo cortado, mal
das entranhas, encarnações.
Medos, tamanhas provações.Uma dor estranha e alheia— sem culpa, sem remissão,
de um perdão que nãose alcança: previsão insana.
Espinhos, cansaços, solidão.
![Page 79: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/79.jpg)
78
O rio é uma coisa viva como uma serpente,
uma nuvem em estado líquido.
Sem estribeiras,destruindo choças e roças
ao longo das ribeiras.Penitências.
O rio é vingativoe violento
quando se vê encurralado
Ciclos21
![Page 80: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/80.jpg)
79mas as cheias
depositam húmus sobre as terrasde plantio.
Depois, o estioe suas consequências.
![Page 81: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/81.jpg)
80
22A Decisão
O patriarca definhava: ácido, distraído, casmurro. Falando pelos corredores, imprecação aos muros,
mais acordado que dormido, dormido quando acordado.
Convivendo com a defunta, alma ausente. Mais morto que vivo.O irmão Nelson não dava sinais de envelhecimento
— meio-morto ou meio-vivo. Restavam as filhas, descartada a fugitiva.
Pior eram as secas, acentuadas pelo desmatamento. Seres predatórios, merecendo a fúria dos elementos
— castigo pela insânia e pela ignorância. Era hora de partir.
![Page 82: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/82.jpg)
81Que viesse a represa prometida, que os afogasse a todos
e extinguisse peixes e sonhos: pasmaceira e atraso. Política menor, sem voz própria.
De circunlóquios e ventríloquos.
Restava o caminho do sul.
Decidiu não mais recompor os estoques da farmácia.
![Page 83: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/83.jpg)
82
23Tralhas e Trilhas
Havia uns móveis antigos e arruinados que ainda lembravam a linhagem dos Teixeira.
Fotos de família em molduras ovaladase um piano decrépito, descascado
que guardava pompas antigas da estirpe.
Vendeu tudo ao preço que podiam pagar. Jogou o que sobrou num baú velho,
umas roupas em malas de couro e negociou um frete até Fortaleza,
de onde partia o Ita para o sul. ***
![Page 84: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/84.jpg)
83
O mar era verde, era azul, era vermelho, era branco, era cinza.Vastidões sem termo, espaço-tempo refletindo angústias.
Queria morrer. Via sargaços e aves e revia o gado perdido no campo.
Chorava para si.
Mermavam suas forças. Não falava nem ouvia. Nem via mais o mar, olhava para dentro.
Aguas revoltas apoucavam as criaturas.As filhas, mocinhas, em estado de graça, libertas
numa taça de champanha, borbulhantes, as espumas subiam das quilhas ao convés.
![Page 85: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/85.jpg)
84
Florêncio via a claridade brancada caatinga nos dias excessivos.
As crianças correndo atrás de um cabrito assustado.Sombra de ingazeira generosa
e um claror repentinoque apagava tudo no céu sem fundo.
Remoia e ruminava sempreos mesmos episódios de sua vida pequena.
Havia um sol branco que cegava,que vinha da infância.
24Lampejos
![Page 86: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/86.jpg)
85
Queria morrer,ultrapassar as fronteiras da vida,
reencontrar-se com Filomenaque partira desta para melhor.
![Page 87: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/87.jpg)
86
Nelson vivia absortodentro de um terno de defunto.
Não falava nem ouvia.
Devia contrapor as sensaçõesque estão em tempos diferentese em espaços sem contigüidade,
inteligindosem a razão do entendimento.
25Absorto
![Page 88: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/88.jpg)
87
Acometido por uma síncope fulminante,nem chegou a pedir socorro.
Em sua menteimagens
numa sucessãode fogos de artifício:
a casa em que nascera,o rio manso deslizando,
as cabras galgando as pedras insolentes,relíquias de família no oratório da sala,
e a cena do estupro
26Horror
![Page 89: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/89.jpg)
88da esposa
pelos bandidosna noitedo cerco
à fazenda.
O horror estampado na face do morto.
![Page 90: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/90.jpg)
89
Morto, irei por onde queira a força do vento
por não haver pensamento.
Como poeira ou nuvem passageira
sem destino algum.
Livre, finalmente sem constrangimento
e contente.
27In Memoriam
![Page 91: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/91.jpg)
90Contente, sem sentimento
do mundo, no silêncio profundo.
Contente, de contido redimido de culpa
e sofrimento.
Ido, simplesmente por não ir por conta
própria.
Desponta o quê na outra ponta ao não-crente?
![Page 92: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/92.jpg)
91Permaneço ente ou desapareço para sempre?
Vagarei com os mortos esperando a volta
como castigo?
Recolhido ao jazigo quer-se paz
ou tanto faz?
![Page 93: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/93.jpg)
92
Para quem nada tinha,nada lhe faltava.
Um guarda-roupa improvisado com tábuase uma velha poltronasuspensa no tempo.
Sem exigências de espaço.Celibatário.
Lia e reescrevia os mesmos livros,escrevia e reescrevia os mesmos textos.
28O Quarto de Nelson
![Page 94: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/94.jpg)
93
![Page 95: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/95.jpg)
94Mergulhado nas trevasvislumbrando paisagens
intermitentesde abandono
e extrema felicidade.
![Page 96: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/96.jpg)
95
As irmãs Teixeira foram morar no Rio de Janeiro.Fizeram curso de datilografia
e para auxiliar de escritório e secretária. Que mais havia?
Neusa trabalhava na agência dos correiose ganhava para comprar os tecidos
com que costurava as próprias roupas(e para o pó de arroz).
Bordavam monogramasincompletos
29Monogramas
![Page 97: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/97.jpg)
96em peças de enxovais adventícios.
Pontos de cruz e meandros de crochê.
Iam às matinês dos cinemase ao clube
ávidas de futuroe folhetim.
Tio Celino alertava para as licenciosidadese promiscuidades da cidade grande.
![Page 98: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/98.jpg)
97
Nazinha conheceu um militar no bonde—era bonito e altivo
e ostentava bigodes de bolero—e casou com véu e grinalda.
Ela falava umas coisas,ele ouvia outras.
Arrumava a sala todos os diase passava cera e escovão no assoalho.
Neusa nunca desceu da nuvemem que pairava sobre a terra.
A face redonda como lua prateada,
30Acasalamentos
![Page 99: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/99.jpg)
98falava direto às estrelas.
Adorava sonetos de Fagundes Varela e Olavo Bilac.Sempre arrumadinha, coque e coquete
esperando algum confete.Casou com um português
que se dizia fidalgoe lidava com secos e molhados.
Inês era tão recatadae foi às núpcias com um francês
que era professor da Universidade do Brasil—ela dedicou-se aos cuidados da casa,
ele às discussões sociológicas e ideológicas de diae às farras e fanfarras de noite
nos inferninhos da zona sul.
![Page 100: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/100.jpg)
99Neves, desaparecida
desde a fuga da lua de felde um casamento forçado.
Livre, e entregue à própria sorte.
![Page 101: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/101.jpg)
100
Mulher no mundo dos homens,Neves reunia forças
para vencer os preconceitos.
A versão sempre no lugar do fato,vivendo de aparências.
Vivia com um homem desquitadosujeita ao disse-me-disse,
a toda resistência.
Teúda e manteúda,evidência pública de concubinato.
31A Gata Borralheira
![Page 102: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/102.jpg)
101Neves só percebeu a dimensão da anomalia
de seu relacionamento privadoquando reencontrou a família.
As irmãs casadas de papel passadoe ela em amasiato escancarado.
O Piauí de sua infânciaera um subúrbio no Rio de Janeiro
nos tempos do pós-guerra.Descobriu que há várias cidades
numa sóe que há vários tempos
em um tempo só.
Só se tem uma vida para vivere deu a volta por cima.
![Page 103: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/103.jpg)
102
![Page 104: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/104.jpg)
103
I Andava amarrotado, mas limpo.
Ia à Lapa pela rua Mem de Sá,
um gentio despejado nas calçadas.Famílias congestionavam os sobrados decadentes.
Idosos na porta dos prédios,vendedores ambulantes, prostitutas
postadas nas esquinas e subindoescadas
de pensões soturnas
32Longa Jornada Noite Adentro
(Rio de Janeiro, 1955)
![Page 105: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/105.jpg)
104e bêbedos trôpegos pelo caminho.
Alamedas opacas do Passeio Público,(ainda havia) filas nos cinemas do calçadão da Mesbla.
Ia do Hotel Serrador ao bar Amarelinho.Casais saíam do Teatro Municipal,
pederastas em alvoroço próximos ao Palácio Monroe,e aquelas ruelas fedorentas atrás da Cinelândia.
Havia teatros de variedades, gafieirase uma concentração de bondes no Tabuleiro da Baiana,
bares e becos na solidão dos esquecidos.
IIMulheres fantasiadas para o prazer alheio,
lojas fechadas, portas com grades e ferrolhos—que a noite descia com seus disfarces.
![Page 106: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/106.jpg)
105Na Praça Tiradentes havia hotéis iluminados,
sons vinham de dancings,marinheiros abraçados com suas namoradas
e os desempregados na direçãoda estação D. Pedro II para os derradeiros trens.
No Campo de Santana, sem grades e portões,os notívagos buscavam aventuras,
os saídos de sinucas e bilhares vinham urinarno mictório ou nas árvores
entre gatos e preás, ratos e deserdados da sorte.
Fazia aquele percurso até muito tarde.A boca é que ouvia, os ouvidos enxergavam,
as mãos gesticulavam —grandiloqüentes—e sentia odores e pressentimentos.
![Page 107: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/107.jpg)
106III
Comia um pastel com caldo de cana.Já na Praça 11, depois do canal e das palmeiras,havia passagens obscenas na Zona do Mangue.
Nádegas gordas e a plumagem das vaginase a língua revolvendo com insinuações insidiosas.
Soldados das forças armadas e senhores bem vestidosentravam e saiam de casas mal iluminadas.
Nelson voltava, extenuado, os pés ardendoe a mente perturbada, para o quarto
vazio e tomava um banho precário,quando não faltava água, e logo dormia.
IVNa noite seguinte, e nas demais,
![Page 108: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/108.jpg)
107atravessava a Avenida Presidente Vargas
e voltava pela Marechal Florianona direção da Praça Mauá. Circunlóquios.
Na rua do Acre, os armazéns atacadistas,sisudos, fechados, imensas portas blindadas.
Detrás do Edifício A Noite havia filaspela madrugada —gente disputando
entrada para os programas de auditórioda Rádio Nacional. Passavam os últimos lotações.
Na porta do bar Flórida, mulheres de alugueldiante de navios insones do porto.
Podia depois seguir pela Avenida Rio Branco,passar pela igreja da Candelária e logo,
pelos becos empedrados, pelo Arco do Teles,
![Page 109: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/109.jpg)
108divisar a estação de barcas da Cantareiraonde havia barracas servindo angu quentee mate gelado e, mais adiante— e triste!—,
o desmantelamento do velho mercado central.
E por último, já cansado, fitavaas fachadas hieráticas dos edifícios públicos
do Castelo até retornar à pensãoem que vivia, detrás do morro de Santo Antonio,
já em fase de desmonte e desolação.
Tantas igrejas mudas, batentes friose alguma vela para os penitentes.
![Page 110: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/110.jpg)
109
33
Às vezes vagava pelas lembranças renitentes, como as do túmulo durante seus anos de ensimesmamento. Outras vezes revia episódios tristes como a partida de Neves depois do casamento forçado.
Inerte sobre o catre, olhando o teto indevassável, fluía e pervagava por espaços e tempos sem continuidade ou contigüidade, sem controle. Deambulava pelas ruas antigas do Rio de Janeiro em presença e em ausência, ruminando sensações e impressões na memória inconsútil em que os momentos e lugares fugiam da lógica das cronologias e das topografias.
Refazia percursos gravados e revividos numa sucessão aleatória. E até podia passar de um beco nas proximidades da Praça XV, no Rio de Janeiro, para as barrancas do rio Parnaíba, ou passar pela Igreja de Santa Luzia no bairro carioca do Castelo e entrar na de São Pedro
![Page 111: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/111.jpg)
110de Alcântara, em Floriano, sem nenhum sobressalto. Numa dessas relembranças estava na casa da fazenda dos Teixeira, já em estado de abandono, depois do cerco dos jagunços e do estupro — guardado em segredo por tanto tempo — de sua cunhada.
Talvez a casa nem existisse mais por lá, mas ele estava lá, chamado para um encontro com os antepassados, entre as penumbras da sala de visitas. Ali estavam os mortos da família, de diferentes épocas. Alguns ele nem sabia que viveram, todos reunidos silenciosamente, bastando-se com suas imanências, vagando pelos aposentos, ou postados à mesa para um diálogo sem palavras.
De repente, estava de volta às ruelas traseiras da Praça Tiradentes dos tempos em que freqüentava os teatros de variedades. As imagens da visita à fazenda dos antepassados vagando intermitentemente nas horas seguintes. Para livrar-se delas, escreveu um poema, prática que acreditava não mais fazer parte de sua rotina.
![Page 112: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/112.jpg)
111
os ponteiros dos relógios em qualquer direção, e as estações trocadas:
não há roce nem orgasmo nem suoresmas o corpo está ávido, aflito, lívido
haja espera e esperança (e desconsolo)no reverso incongruente da vida:
nesse viver em morte contíguae exígua, irredutível, solerte
34Do Outro Lado da Vida
![Page 113: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/113.jpg)
112sentado na poltrona, adernoe o tempo, lá fora, estanca:
eu aqui dentro, a vida forade mim, exangue e ausente
— buscando lugares inexistentesnuma inteléquia de despistamentos
ou numa estratégia de inconformidade.
![Page 114: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/114.jpg)
113
Os mortos da família— tataravós, avôs, mães, filhos, netas —
em conclave familiar— intactos e imputrescíveis
desde as suas mortes.
(Os mortos eternizamsuas idades de mortos:
não caberia dizerconvivendo entre mortos).
Mortos de diferentes idades,
35Visita à Casa Paterna
ttt
![Page 115: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/115.jpg)
114mas eternos
— imortais, se se quer.
Alguns jovens comfilhos mais velhos
— ironia da eternidade.
Reunidos à mesada casa paterna, fartos,
não demandam banquetes— inertes, impávidos, e graves.
Vêm de tempos alternose descompassados
ao colóquio,numa genealogia
![Page 116: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/116.jpg)
115de afirmações e recorrências.
Antepassados?À mesa, presentes, constantes,
vigiando suas passadas existências— nos parentes, pelo sangue extinto
e permanência.
Nas sombras,entre os mortos futuros
das gerações conseqüentes.
![Page 117: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/117.jpg)
116
Entra ano e sai anoe não saio do lugar.
36Repasso
![Page 118: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/118.jpg)
117
É quando a memória me impõe suas condições, me contradiz, refaz situações
que relegara ao esquecimento. Desencontros, desconsolos, descalabros.
Recupero detalhes que nem percebera antes! Aparta de mim estas evidências!
Revejo o que nem havia visto! Basta! Quero escapulir pela tangente,
pelas mãos do amor que já esqueci e que era único, definitivo, insubstituível.
Às calendas! Que não venham as amargas lembranças
37Os Nervos da Memória
![Page 119: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/119.jpg)
118que eu releguei ao esquecimento, mas que afloram como cogumelos.
Que ressuscitem as paixões que me incendiaram até se desvanecerem em situações tão adversas. Não agüento mais!
Quero recuperar o que mais queria e me vem o que mais desprezei.
A memória é infensa aos meus apelos (tem nervuras sensíveis:
contradizem minha vontade) e me devolve o que já ruminei
e vomitei tantas vezes.
![Page 120: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/120.jpg)
119
Em solstício me esqueço e permaneçoinerte, centrado, desabitado de “outremninguém”, no solilóquio desfreqüentado,
em precipício, insulado, no artifíciode manter-se uno, desobrigado, inteiro
e poder bastar-se, derradeiro, e asilar-se.
No meu solipsismo radical de celibatonem cultivo o recato, afinal presumido,
possuo sem ser possuído, se possuído nãocultivo sentimentos, assumido temporão.
38Solistício de Inverno
![Page 121: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/121.jpg)
120Não, não e não! Eu me afasto do mundo
no mais profundo desvão, nem por isso castopois a sina do recato me alucina
com sortilégios, impropérios e falsos remédios.sombras densas diluindo-se
![Page 122: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/122.jpg)
121
sombras cruzadas sombras
em direções opostas
justapondo-se
( sombrasombras )
sombras de sombras
39Paisagem com Sombras
![Page 123: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/123.jpg)
122
![Page 124: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/124.jpg)
123
A casa com muitas portas e nenhuma saída ou entrada.
O caminho de muitas voltas, sem retorno.
Havia muitos livros mas era o mesmo
livro que eu lia sem fim nem começo.
Depois o trem me trazia de onde eu não estivera
O Trem40
![Page 125: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/125.jpg)
124ou, estando, não sabia
se ia ou se voltava.
Mas eu ia e voltava, voltava e reconhecia sem ter visto antes —se é que eu via.
Não havia ir nem voltar, conhecer ou reconhecer
mas havia, sim, havia o trem que ia e vinha.
O caminho é que é (nem mais) era outro
— estoutro, se dizia —
![Page 126: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/126.jpg)
125e de trem é que se ia.
Não sei bem aonde, menino que eu era,
pois já devia ser memória do não ser.
Mas, se o trem era, eu haveria também de ser,
e a paisagem, se havia ah, se havia, já não era.
Os trilhos que iam e vinham, eram os mesmos
mas o trem que ia não era o mesmo que voltava.
![Page 127: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/127.jpg)
126E eu, se ia, não voltava
ou era outro, o trem em trilhos imóveis
de ir e vir.
![Page 128: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/128.jpg)
127
Hei de morrer pelas próprias mãos.
Não, eu não pedi para nascer,posso morrer a gosto e a destempo.
No mundo dos homens— ledo engano!!! ,
apenas uma mulher...
Meu imposto marido feneceu.Eu não sou viúva, sou livre!
Mas a família — crosta ósseae impermeável —me segrega.
Monólogo da Enjeitada41
![Page 129: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/129.jpg)
128
![Page 130: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/130.jpg)
129Quando estiver realmente só,
irremediavelmente só,meu companheiro ido, havido,
e não puder viver sozinha
hei de morrer pelas próprias mãos.Cumprindo meu desígnio,
meu arbítrio, minha maldição.
![Page 131: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/131.jpg)
130
Nasci em 1888 (ou em 1899) no Piauí,na cidade antiga de Floriano.
(Não sou monarquista nem republicano.)Fui enterrado vivo em 1925durante uma peste sazonal.
Desenterrado dez anos depois,vivo em vários tempos
simultâneose em lugares
diferenciados.
42 Ubiquidade
![Page 132: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/132.jpg)
131Personagem de mim mesmo,
não durmoe troco as noites pelos dias
sem a certeza da morte.
(Não sou albinonem guarda-noturno:
sibilino,do azul
maisdistante.)
Vou sobreviverao meu criador.
Assino, Nelson Teixeira.
![Page 133: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/133.jpg)
132
![Page 134: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA](https://reader034.vdocuments.site/reader034/viewer/2022050803/568c4ad41a28ab491699c62c/html5/thumbnails/134.jpg)