disertação oriana hadler

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA FACULDADE DE PSICOLOGIA

ORIANA HOLSBACH HADLER

Nas trilhas de Joo e Maria: a produo do sujeito jovem entre prticas de institucionalizao, polticas pblicas e formas de governo

PORTO ALEGRE 2010

ORIANA HOLSBACH HADLER

Nas trilhas de Joo e Maria: a produo do sujeito jovem entre prticas de institucionalizao, polticas pblicas e formas de governo

Dissertao apresentada como requisito para obteno do grau de Mestre, pelo Programa de Ps-Graduao da

Faculdade de Psicologia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

Orientadora: Professora Dra. Neuza Maria de Ftima Guareschi

Porto Alegre 2010

ORIANA HOLSBACH HADLER

Nas trilhas de Joo e Maria: a produo do sujeito jovem entre prticas de institucionalizao, polticas pblicas e formas de governo

Dissertao apresentada para requisito para obteno do grau de Mestre, pelo Programa de Ps-Graduao da

Faculdade de Psicologia da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

Aprovada em ______ de ______________ de _______.

BANCA EXAMINADORA Dra.Neuza Maria de Ftima Guareschi (PUCRS) Orientadora

________________________________________________

Dra. Cludia Fonseca (UFRGS)

________________________________________________

Dra. Llian Rodrigues da Cruz (UNISC)

________________________________________________

Dra. Marisa Vorraber Costa (ULBRA)

________________________________________________

A Cristiano, por ter dividido sua histria comigo e me ensinar a percorrer as trilhas do desassossego.

AGRADECIMENTOS

orientadora, Neuza Guareschi por me mandar para a zona e me ajudar a encontrar as pedrinhas da dissertao. Aos meus pais por acreditarem em mim incondicionalmente, me motivarem a continuar sempre e serem as minhas bssolas pessoais para a vida. minha irm, pela fora, potencial invencvel e vontade de vida. Por me lembrar que as coisas que realmente importam so invisveis aos olhos e acontecem a cada pequeno momento nessa nossa passagem. Ao Marcos, pelos olhares, gestos, afagos e afetos. Por me mostrar que a sombra uma paisagem, por trazer o seu sossego, atrasar o meu relgio, acalmar a minha pressa, entre palavras e sussurros ao ouvido... S o que me interessa... 2010. E continua... Gi, pelo carinho e amizade imprescindveis. Por dividir comigo as angstias, as alegrias, as torcidas e me dar fora nos (des)caminhos da escrita. Andrea e Lucielle, pelas sugestes valiosas e conversas intensas. Por me ajudarem nessa trilha dissertativa e acadmica. Aos colegas do grupo de pesquisa pelos momentos de questionamentos e espao de problematizao, por me ajudarem a amadurecer o meu modo de pensar o mundo. Ao Mario, por ser um exemplo de persistncia para mim. Por ser esse guerreiro incansvel frente s vicissitudes da vida. To Sir Duncan and to the entire PH2O group, for the strength you have sent me even though you were not aware of that. May the force be with you. Ao Dr. Joo Francisco Neves, Marilda Moreno e a todo o corpo de funcionrios do Instituto de Menores Dom Antonio Zattera, pela receptividade e acolhida sempre que quis me enveredar na instituio, por apoiar meus desejos e acreditar no trabalho desenvolvido. gurizada do Instituto, pelas histrias compartilhadas, momentos vividos, pela potncia no desvio e provocaes emergidas. Rosria Sperotto e ao Sr. Monquelat, pela disponibilidade e ajuda, com suas obras primas e valiosos anos de pesquisa e histria. minha tribo moreniana, pelo aqui e agora, por acreditar no meu potencial criativo, pelos colos dramticos e experincias divinas nos gritos de vida!

O desejo diz: Eu no queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; no queria ter de me haver com o que tem de categrico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparncia calma, profunda indefinidamente aberta, em que os outros respondessem minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu no teria seno de me deixar levar, nela e por ela, como um destroo feliz. E a instituio responde: Voc no tem por que temer comear; estamos todos a para lhe mostrar que o discurso est na ordem das leis; que h muito tempo se cuida de sua apario; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, de ns, s de ns, que ele lhe advm. (Foucault, A Ordem do Discurso)

7 RESUMO

Esboada nas trilhas de questionamentos sobre a tomada do sujeito jovem como objeto de investimento, esta dissertao busca compreender como certas prticas de institucionalizao da juventude so produzidas e refletir quais efeitos tais prticas, ao serem tomadas no campo das polticas pblicas juvenis, tm sobre o sujeito jovem. O fio condutor para esta anlise parte uma instituio de apoio socioeducacional localizada na cidade de Pelotas o Instituto de Menores D. Antonio Zattera (IMDAZ) , elegendo como recorte as oficinas ministradas no local bem como a articulao destas com programas apresentados no Guia de Polticas Pblicas de Juventude. A escolha em trazer as oficinas e o Guia como as duas materialidades utilizadas como campo de anlise toma forma no momento em que ambas vm servir como estratgia de governo sobre o sujeito jovem. Trata-se de colocar em destaque as articulaes do processo de objetivao do sujeito jovem, observando as condies de possibilidade pelas quais a vida (jovem) entra na histria a partir de mltiplas relaes de poder/saber que atravessam e institucionalizam verdades sobre a populao juvenil. Oficina e Guia, nesse sentido, so compreendidos como processos que promovem a construo do sujeito jovem cidado produtivo. Para essa discusso, este trabalho aposta na estratgia genealgica arquitetada por Michel Foucault para problematizar a configurao do sujeito jovem no decorrer da histria. Portanto, este estudo apresenta reflexes sobre as condies de possibilidade para o surgimento das prticas de institucionalizao da juventude no Brasil, problematizando o quanto elas produzem determinadas formas de ser jovem.

Palavras-chave: prticas de institucionalizao, polticas pblicas de juventude, sujeito jovem.

8 ABSTRACT

Sketched in the tracks of questioning the taking of the young subject as an object of investment, this dissertation aims to understand how certain institutionalization practices of youth are produced and to reflect on which effects such practices have on the young citizen, when taken in the field of Youth Public Politics. The conducting line for this analysis emanates from a socio-educational foundation located in the city of Pelotas the so-called Institute of Minors D. Antonio Zattera (IMDAZ) , choosing as analysis source the workshops offered there and their connection with programs presented in the Guide of Youth Public Politics. The choice of bringing both workshops and Guide as the two material fields of analysis has its purpose when considering them as strategies of government over the young subject. This is an attempt to highlight the articulation of the objectifying process of the young subject, observing the possible conditions in which life (the young) enters in history through multiple relations of power/knowledge that pierce and institutionalize truths on the youthful population. Therefore, workshops and Guide are equally understood as processes that promote the construction of the young productive citizen. For this discussion, this paper bets in the genealogical strategy put forward by Michel Foucault in order to problematize the configuration of the young citizen in elapsing of history. Therefore, this study presents reflections on the conditions of possibility to the emergence of institutionalization practices regarding youth in Brazil, problematizing which effects are produced upon the young subject.

Key Words: institutionalization practices, Youth Public Politics, young subject.

9 LISTA DE SIGLAS

ASEMA Apoio Scio-Educativo em Meio Aberto C&A Clemens e August: loja de moda varejo CETRES Centro de Extenso em Ateno Terceira Idade CONRERP Conselho Regional dos Profissionais de Relaes Pblicas DNCr Departamento Nacional da Criana ECA Estatuto da Criana e do Adolescente EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria FENADOCE Feira Nacional do Doce IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IMDAZ Instituto de Menores Dom Antnio Zattera ONU Organizao das Naes Unidas PAIF Programa de Ateno Integral s Famlias PETI Programa de Erradicao do Trabalho Infantil S.A.M Servio de Assistncia a Menores SENAC Servio Nacional de Aprendizagem Comercial SINPRORP Sindicato dos Profissionais Liberais de Relaes Pblicas SNJ Secretaria Nacional de Juventude UCPel Universidade Catlica de Pelotas

10 SUMRIO

INTRODUO .............................................................................................................11 PRLOGO .....................................................................................................................14 Escolhendo as pedrinhas: mapeando o caminho da pesquisa .....................................14 1. ENTRANDO NA FLORESTA... ..............................................................................23 1.1 "... edificada sobre rochas": da fundao do instituto ...........................................26 1.2 "... e vieram as chuvas, sopraram os ventos e esta casa no caiu..." .....................36 2. CATANDO AS MIGALHAS DE PO....................................................................41 2.1 Desfazendo as trilhas da juventude com a governamentalidade e a biopoltica ...45 2.2 Pensando a juventude como dispositivo: entre a qualidade de vida e os direitos humanos .......................................................................................................................54 2.3 Direitos humanos e polticas pblicas: o sujeito de direitos e a produo do sujeito jovem............................................................................................................................62 3. COMENDO AS PAREDES DA CASA DE DOCES ..............................................70 3.1 As oficinas de gente e o Guia: objetivando o sujeito jovem ..................................77 3.1.1 O marcador "oportunidades": o sujeito jovem produtivo ..............................85 3.1.2 O marcador "direitos": o sujeito jovem cidado ............................................88 3.2 A produo do sujeito jovem cidado produtivo ...................................................91 PS-ESCRITO: JOGANDO A VELHA NO FORNO ..............................................96 Entre o desejo e a Instituio .......................................................................................98 REFERNCIAS ..........................................................................................................103 ANEXOS ......................................................................................................................109 Anexo I: Trilha (Sonora) da dissertao ....................................................................109 Anexo II: Folder do Instituto .....................................................................................110 Anexo III: Discurso Oficial de Inaugurao do Instituto...........................................111 Anexo IV: Projeto de Oficina ....................................................................................119 Anexo V: Lpides dos Joos e Marias ......................................................................122

11 INTRODUO

A presente dissertao Nas trilhas de Joo e Maria: a produo do sujeito jovem entre prticas de institucionalizao, polticas pblicas e formas de governo aborda a temtica da juventude e a construo de prticas de institucionalizao voltadas para o sujeito jovem. Ao pesquisar informaes sobre a juventude nos ltimos anos, depareime com dados apontados pelo World Youth Report, os quais apresentam os jovens como constituindo 18% da populao mundial, mostrando que, em comparao a registros anteriores, nunca houve conhecimento de porcentagens to expressivas como as atuais (United Nations, 2007). O relatrio destaca que os desafios no campo das polticas pblicas voltadas para os jovens encontram-se no somente no que tange a questes relativas ao bem-estar desse grupo, mas na nfase a um investimento de cunho muito mais complexo, atingindo uma multiplicidade de reas educao, cultura, sade, desenvolvimento social etc. que vo proporcionar a formao dos sujeitos. J no Brasil, segundo estatsticas apresentadas pelo IBGE (apud Bastos, 2006, p.304), a evoluo da juventude apresentou diferenas marcantes em relao populao total, havendo uma queda no seu ritmo de crescimento entre as dcadas de 1970 e 1980 (de 3,0% ao ano para 1,2% ano), voltando a elevar-se nos anos de 1990 (para 2,0% ao ano). Assim, a justificativa para tal estudo ocorre no momento em que, nas ltimas dcadas, a juventude vem ganhando maior relevncia na agenda poltica do pas, tornando-se alvo de investimento principalmente de polticas pblicas do Governo Federal. Nesse sentido, ao serem apontados dados como os referidos anteriormente, o sujeito jovem deixa de ser considerado como indivduo para ser tratado como uma populao; populao essa que apresenta traos particulares e saberes especficos e sobre a qual recai uma preocupao na mira de prticas de governo. Sendo assim, os

12 objetivos desse estudo so problematizar como as prticas de institucionalizao do sujeito jovem so produzidas e refletir quais efeitos tais prticas, ao serem tomadas no campo das polticas pblicas de juventude, tm sobre a populao juvenil. Sob esse vis, este trabalho apresenta reflexes sobre as condies de possibilidade para o surgimento dessas prticas, problematizando o quanto elas produzem determinadas formas de ser jovem. Compreendendo que as prticas de institucionalizao esto inseridas nos mais diversos campos de atuao, elejo uma instituio de apoio socioeducacional Instituto de Menores D. Antonio Zattera como recorte para os delineamentos aqui esboados. Para tal, foram utilizados os documentos histricos da fundao do local, bem como folders de apresentao do estabelecimento e reportagens sobre ele. Entretanto, os objetivos de pesquisa passam por um carter que busca sair dos discursos ditos e escritos. Tomando o discurso como prticas que produzem sujeitos, revelo que a metodologia desse trabalho aposta na estratgia genealgica arquitetada por Michel Foucault, e desenvolvida posteriormente por outros autores contemporneos como Coimbra, Bocco e Nascimento (2005), Dreyfus e Rabinow (1995), Giacia (2008), Lobo (2008) e Veiga-Neto e Lopes (2004, 2007), para problematizar a configurao do sujeito jovem no decorrer da histria. Em outras palavras, conforme incitam Veiga-Neto e Lopes (2004, p.232) ao invs de nos concentrarmos apenas no imediatamente visvel do texto imagtico, talvez possa ser mais produtivo tentar l-lo a partir do tempo e do espao que ele evoca. Assim, a fundamentao terica construda sob a perspectiva foucaultiana, em que se faz uso das noes de governamentalidade e biopoltica para pensar a configurao do sujeito jovem no decorrer da histria. Nessa linha de pensamento, a relevncia desta escrita est em colaborar com os movimentos de problematizao sobre

13 como so construdas as polticas pblicas de juventude, bem como no desejo de por prova os saberes e as capturas que nos envolvem, possibilitando deslocamentos na direo de uma crtica no sobre ser governado ou no ser governado, mas sobre as relaes que se mantm com a verdade, com os jogos de poder; uma crtica sobre as formas de nos colocarmos no mundo, sobre aquilo que se toma por governo em si e o modo como se governa; uma crtica pela implicao de nossas prprias prticas enquanto formadores de subjetividades. Diante disso, a dissertao est organizada em trs captulos, como um conto que se abre em vrias tonalidades de atos sobre seu personagem. Entretanto, antes de partir para o texto propriamente dito, comeo articulando a minha prpria trilha com a do sujeito jovem enquanto processos que se constituem e atravessam. Aps, no primeiro Captulo, busco mostrar como as prticas de institucionalizao da juventude foram emergindo no Brasil e como essas foram tomadas por polticas pblicas. No segundo Captulo, o foco de investigao problematizar como essas prticas se tornam formas de governo, passando a pensar aquilo que constitui a juventude como um dispositivo. Posteriormente, finalizo a dissertao, buscando pensar como o dispositivo da juventude aparece nas aes desenvolvidas no Instituto, so apresentadas as oficinas ministradas no local com o intuito de mostrar a articulao dessas com as polticas pblicas de juventude e os efeitos de tais prticas na produo do sujeito jovem.

14 PRLOGO Escolhendo as pedrinhas: mapeando o caminho da pesquisa

Comeando no pelo princpio, mas pelo meio pois nesse aspecto concordo com Larrosa (2003, p.112) em relao s citaes de Adorno, quando aquele profere que sempre se comea pelo meio, sempre j se est em alguma coisa , apresento nesta parte a trajetria que mobilizou a escolher o tema da pesquisa: o sujeito jovem e as prticas de institucionalizao que o transformam em uma populao alvo de investimento. Na verso original do conto infantil Joo e Maria1, h uma cena, logo no comeo da histria, em que as crianas, aps ouvirem seus pais combinarem de larglos na floresta, esperam o casal dormir para planejarem maneiras de escapar do destino que os aguardava. Joo decide, ento, sair em busca de pedrinhas que marcassem o caminho de casa e, sob a luz da lua, sai catando seixos que garantissem o retorno. Do mesmo modo que no conto, o casal de irmos separa esses marcadores para sinalizar o percurso de volta sua casa, apresento nesta seo da dissertao as motivaes e1

Cf. Grimm Brothers (1944), esse conto a adaptao da verso final, Hansel and Gretel no original, publicado pelos irmos Grimm em 1857. A histria narra s aventuras de um casal de irmos que so levados at uma floresta por seus pais e l abandonados em decorrncia da falta de comida para todos.

15 preparaes que tomei para embarcar na trilha desse estudo. Com a inteno de apresentar o mapa da dissertao, mostrarei a seguir como escolhi as pedrinhas norteadoras dessa pesquisa e o caminho que ser delineado no decorrer da escrita. Antes de qualquer movimento, entretanto, importante mencionar que a ideia propulsora para esta dissertao nasceu de uma vontade de romper com o padro naturalizado da cincia que toma o objeto como algo distinto e definido a priori. Os esboos desta escrita despontaram de um desejo em me deixar levar pelas caladas dos desvios, pela potncia na errncia, no como o contrrio daquilo tido como correto, mas a partir da deriva, do vir-a-ser (Deleuze, 2006); uma provocao que o mestrado fez insurgir em certo sentido, para que minhas anlises fossem tomadas por um espao de problematizao, percorrendo o caminho de como a produo dos sujeitos vai sendo estabelecida a partir das prticas que os constituem e atravessam, como as pedrinhas de Joo e Maria que marcam a trilha de volta para casa, determinando o percurso a ser feito. Buscando me deixar envolver por um desejo de percorrer os atalhos escondidos, revelo que os primeiros bosquejos referentes temtica da juventude ocorreram quando minha trilha cruzou com uma instituio de apoio socioeducacional para crianas e adolescentes O Instituto de Menores Dom Antonio Zattera (IMDAZ), localizado na cidade de Pelotas/RS. Conheci a Instituio nos ltimos anos da graduao em Psicologia e, a partir de experincias vivenciadas como coordenadora de oficinas ali desenvolvidas2, fui rumando para tensionamentos que possibilitaram a escrita que aqui toma forma. Atualmente, o Instituto atende cerca de 150 crianas e adolescentes, entre 7

2

As oficinas mencionadas dizem respeito a dois momentos referentes ao trabalho que desenvolvi no Instituto: o primeiro momento ocorre quando participei de uma oficina como estagiria do curso de Psicologia da UCPel durante o primeiro semestre do ano de 2005; no segundo, quando retornei ao IMDAZ trs anos aps formada, para tambm ministrar outra oficina, a qual ser apresentada logo adiante neste prlogo. Vale ressaltar que a trajetria de ambos os trabalhos ser abordada com maior profundidade nas duas ltimas sees desta dissertao.

16 e 17 anos, e oferece oficinas profissionalizantes, bem como reforo acadmico no turno inverso ao da escola. Alm de tais programas, e de contar com uma rede multiprofissional que envolve as reas de Nutrio, Assistncia Social, Educao Fsica, etc., a Instituio possui convnios com patrocinadores (C&A, SENAC, EMBRAPA, entre outros) que disponibilizam aes filantrpicas no prprio Instituto como, por exemplo: a criao de uma biblioteca nomeada Descobrindo Um Novo Mundo, a oficina temporria de informtica e web design e o estgio de Office boy por 10 meses. Pensando sobre o desejo de utilizar o IMDAZ como recorte para a dissertao, vejo que a escolha no acidental. Ao pensar sobre a trajetria da Instituio, possvel ver o quanto ela se mostra articulada com as prticas de institucionalizao da juventude no Brasil e, mais ainda, ao tecer seu percurso, torna-se possvel problematizar a constituio do sujeito jovem como uma populao alvo de investimento de prticas institucionais, de polticas pblicas e de governo. Ao prestar ateno histria desse estabelecimento, busquei lanar o olhar s vidas que ali transcorrem e, ao me debruar sobre essas vidas, pensar sobre os saberes produzidos e os equipamentos (rgos, leis, tratados, diagnsticos, etc.) de controle e regulamentao fabricados sobre a juventude. Mais ainda, nesse lugar possvel experimentar o sujeito jovem nas articulaes de experincias, discursos e relaes de poder que o atingem. Entre as prticas desenvolvidas no IMDAZ, as que me marcaram intensamente foram as oficinas oferecidas aos jovens. Enquanto estagiria do curso de Psicologia, foi participando de uma oficina que iniciei meu vnculo com o Instituto, e foi assim que l voltei, depois de trs anos, com o diploma de profissional psi na parede: com a proposta de comear uma oficina chamada Que cinderela que nada! inventando histrias, na qual cada jovem tomaria antigos contos infantis desfazendo-os na produo de novos personagens e diferentes histrias. Porm, no decorrer desse

17 trabalho, entre as linhas de contos como Joo e Maria, fui atravessada pelas histrias de vida dos participantes, as dos Joo(s) e Maria(s) com quem cruzei a cada dia naquele local. Esses personagens provocaram um movimento de desdobramento sobre as minhas prprias prticas, um desejo de pr prova os saberes que me vinham motivando at aquele momento e questionar as capturas as quais eu perpetuava. Brotava em mim no uma posio de incredulidade generalizada, de resistncia a tudo ou de questionar por questionar, mas de colocar a minha vontade sob as lentes de um microscpio, buscando exercer uma anlise crtica, problematizando como determinadas prticas de institucionalizao vm produzindo efeitos sobre os sujeitos, compreendendo que essas prticas so tambm construdas e perpetuadas por minhas prprias aes enquanto profissional implicada em uma realidade social, econmica, cultural etc. Sendo assim, so observadas duas questes que se atravessam neste estudo: o olhar sobre as prticas do Instituto e o olhar voltado para a minha implicao. Adianto, porm, que a anlise sobre minhas prprias prticas, apesar de ser abordada com maior proeminncia na ltima seo da dissertao, acontece no percurso de toda a escrita. Afinal, ao me deparar com as histrias dos mltiplos Joos e Marias, fui deslocando as verdades naturalizadas, me enveredando floresta adentro, sem querer buscar as origens dos processos ou os porqus das perguntas, mas indo na direo dos acontecimentos, tendo em vista uma atitude indcil frente a uma imagem de verdade. Isso no quer dizer que minha proposta com a dissertao partia em busca de uma verdade, mas se construiria ao refletir como funcionam as coisas ao nvel do processo de sujeio (Foucault, 2007, p.182). Dessa forma, os delineamentos aqui feitos adotam a postura de uma escrita a cursar, para que a descoberta do caminho fosse feita enquanto passo adiante, tratando o texto como fora que nos leva estrada afora. Esboada nas trilhas de questionamentos sobre a tomada do sujeito jovem como objeto de investimento, o foco

18 de problematizao dessa dissertao analisar as prticas de institucionalizao da juventude a partir do Instituto de Menores D. Antonio Zattera em Pelotas, investigando como essas, ao serem tomadas no campo das polticas pblicas juvenis no Brasil, produzem efeitos sobre a populao em questo. Assim, utilizo o IMDAZ e a experincia com as oficinas como fio condutor desta escrita, sendo que, para tal, utilizo a metfora do conto Joo e Maria com o intuito de traar o percurso dos jovens em meio a discursos de saber/poder que os vo constituindo como sujeitos institucionalizados. Invoco esse conto infantil como metfora para o processo de escrita porque ele est relacionado ao modo como comecei a me implicar com as questes colocadas em xeque nesse trabalho, sendo atravs da segunda oficina realizada com jovens que assumi o olhar atento s surpresas, iniciando um processo de desconfiana das regularidades, negando a origem legitimadora da cincia. Uma oficina de histrias e personagens que desembocou em contos verdicos de vidas que se atravessaram, na qual percorri um caminho que se enveredou com o dos jovens participantes; isto , tanto a pesquisadora quanto o sujeito jovem eram produzidos por um emaranhado de regimes de verdade e formas de governo, assim como as crianas da histria Joo e Maria que se encontravam perdidos na floresta e foram capturados pelos artifcios da casa de doces. Vale ressaltar que a minha ideia aqui no trabalhar o conto em si, mas descontinuar pelas trilhas de uma floresta discursiva, fazendo o (des)caminho das migalhas de po e observando as condies de possibilidade pelas quais a vida (jovem) entra na histria e como determinadas concepes sobre a juventude marcam territrio em prticas institucionais. No entanto, ressalto que ao partir do Instituto no o fao com a finalidade de julg-lo, como se houvesse uma supremacia estabelecida ali, pois no acredito que os discursos se mantenham isolados ou que se deem a partir de simples

19 relaes causa/efeito, mas que as coisas se produzem a partir de mltiplas relaes de saber/poder que perpassam e vo dar cor ao funcionamento daquilo que se toma por verdade. Portanto, para a anlise sobre as prticas de institucionalizao da juventude, me uno a Foucault (1977, 1988, 1995, 1996, 2005, 2007, 2008a, 2008b) a fim de utilizar suas noes de governamentalidade e biopoltica na medida em que me envolvo nos labirintos da histria. Deixo claro, porm, que a ligao entre esses operadores e tais prticas ser desenvolvida no decorrer da dissertao, sendo a ancoragem terica discutida no segundo Captulo. Todavia, para caminhar nesse movimento de anlise, necessria a clareza quanto ao lugar de onde falo, que o do estranhamento, o de colocar em destaque as articulaes do processo de subjetivao do sujeito jovem, um lugar de movente na arbitrariedade, o lugar da genealogia. Ao tratar a pesquisa como um exerccio genealgico, a ordem cronolgica dos acontecimentos no tomada como prioridade, todavia so investigadas as condies de possibilidade de emergncia para a constituio da juventude como um conjunto heterogneo de saberes e prticas. Isso no significa, entretanto, homogeneizar a histria, mas reconhecer os efeitos que determinados fatos e desenrolar de eventos tm sobre os movimentos contemporneos. Sob esse vis, a genealogia (...) busca descontinuidades ali onde desenvolvimentos contnuos foram encontrados. Ela busca recorrncias e jogo ali onde progresso e seriedade foram encontrados. Ela recorda o passado da humanidade para desmascarar os hinos solenes do progresso. Ela evita a busca da profundidade. Ela busca a superfcie dos acontecimentos, os mnimos detalhes, as menores mudanas e os contornos sutis. (Dreyfus & Rabinow, 1995, p.118)

20 A idia de lugar genealgico nos faz entender que as prticas de institucionalizao no fazem parte de uma moldura fechada, mas ocorre como um jogo de vrios discursos que transbordam no terreno da economia, da sade, do direito, da educao, e assim por diante, e que vo formatando um campo que produz sujeitos. Dito de outra forma, para problematizar como o sujeito jovem se constitui objeto de interveno, preciso rastrear os efeitos que certas prticas oblquas tm na formao da categoria juventude. Compreendendo isso, a sua produo no ser pensada somente olhando para aquilo que envolve diretamente a questo da juventude, mas sim ao dar voz para uma rede de acontecimentos que, indiretamente, produzem efeitos sobre a constituio dessa categoria. De tal modo, se torna possvel descobrir as racionalidades que atravessam as prticas de institucionalizao do sujeito jovem. Portanto, no momento em que menciono algumas prticas desenvolvidas no IMDAZ, por vezes tambm trarei certos programas da mdia, notcias publicadas em peridicos, sentenas no judicirio, configuraes sobre direitos humanos e polticas pblicas, pois, dessa forma, se observa a formao de uma trama que constitui modos de subjetivao sobre o sujeito jovem. Assim tambm se coloca a noo de sujeito sob a tica foucaultiana. Nota-se que desde o comeo dessa escrita me refiro a sujeito jovem; isso revela uma postura que concebe o ser humano como o resultado de processos mltiplos, os quais o constituem na medida em que ele se encontra em um sistema cultural e atravessado pelas relaes que o envolvem (Foucault, 1995). Nesse sentido, quando falo em sujeito jovem o que est em questo no uma categoria juvenil, ou seja, no estou falando de um grupo em particular ou de um indivduo, mas de uma populao objetivada, que institui regimes de verdade e produz modos de ser. Isso significa que, no momento em que se tm lojas para jovens, msica para a gurizada, programas juvenis, existe um jeito de ser jovem

21 que colocado como universal e que dita maneiras de se comportar no mundo. Do mesmo modo, quando se fala em esprito jovem, manuteno da juventude, direito qualidade de ser jovial, se tem uma juventude que tomada como produto ao qual qualquer pessoa tem acesso. Pode-se compreender, dessa forma, que todos ns podemos ser interpelados pelos efeitos daquilo que se toma por juventude, ou melhor, todos ns podemos ser subjetivados pelo sujeito jovem. Vale ressaltar, entretanto, que no decorrer do texto utilizarei a terminologia jovens por ser uma forma de deixar claro ao leitor e diferenciar tipograficamente o grupo com o qual cruzei nas oficinas do IMDAZ. Seguindo adiante, com a finalidade de investigar os efeitos que determinadas prticas tm na construo do sujeito jovem, o primeiro delineamento dessa pesquisa foi buscar fazer um exerccio genealgico sobre quando e como as prticas de institucionalizao da juventude surgiram no Brasil e a que polticas pblicas elas correspondem. Tendo em vista esse pano de fundo, sigo na segunda parte da dissertao problematizando a que racionalidades essas prticas recorrem, buscando mostrar como determinadas polticas, aes e prticas vm constituir um dispositivo de governo sobre o sujeito jovem. Para ilustrar esses movimentos, como ltimas articulaes aprofundo o recorte das oficinas ministradas no IMDAZ a fim de dar visibilidade aos efeitos que essas prticas de institucionalizao produzem nos jovens que ali se encontram. E j que essa escrita um convite a percorrer as trilhas de como o sujeito jovem vem sendo constitudo, aviso aos caminhantes que algumas preparaes podem ser necessrias nesse percurso como se despirem de verdades imutveis e se aparelharem de sapatos que desestabilizem saberes e conhecimentos. Enquanto o processo de pesquisa transcorria, me dei conta de que escrever no se faz s de livros acadmicos. Sendo assim, fiz uso de outros aparatos que me ajudaram a cursar o (des)caminho da dissertao, colocando na mochila de itinerante algumas provises especiais que me

22 fizeram seguir floresta discursiva adentro: barrinhas de chocolate, o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa e um cd (Anexo I) com a seguinte trilha sonora: Transpirao, de Ney Matogrosso; Little Red Rooster, do lbum Blue Eyed Blues, dos Yardbirds; Come Together cantado por Joe Cocker; Lonely is the world, de Black Sabbath; Across the universe, dos Beatles; Rock me baby, mas a verso Rolling Stones e ACDC juntos; Joo e Maria, de Chico Buarque e J'y Suis Jamais Alle, de Yann Tiersen.

23 1. ENTRANDO NA FLORESTA...

"Portanto exatamente o inverso do historicismo que eu gostaria de estabelecer aqui. Nada, portanto, de interrogar os universais utilizando como mtodo crtico a histria, mas partir da deciso da inexistncia dos universais para indagar que histria se pode fazer." (Foucault, 2008b, pp.5-6)

Por vezes, passeando nos bairros de minha cidade natal, o caminho que tomava acabava me conduzindo a muros que me chamavam a ateno. A pintura que neles havia era de um menino sendo carregado por outro e, sob seus ps, destacava-se, na parede azul, o seguinte lema: Ele no pesa, meu irmo.

24 Foi essa imagem que me cativou o olhar quando vi, pela primeira vez, o Instituto de Menores D. Antonio Zattera (IMDAZ), at pouco tempo conhecido como Instituto de Menores de Pelotas. E essa mesma imagem que me fez aceitar a insinuao de Foucault apresentada na epigrafa desta seo para entrar na floresta discursiva que envolve o sujeito jovem e interrogar como esse se constitui objeto de interveno. Da mesma forma que o clebre lema do Instituto tem sua histria, surgindo no dia de comemorao dos 25 anos de existncia e mantendo-se at os dias de hoje, o desejo aqui tecer a primeira parte deste estudo invocando a histria de construo do IMDAZ a fim de utiliz-la como linha condutora para uma possvel gnese do processo de institucionalizao da juventude. Logo, tomando a gnese no como um movimento que busca a origem, mas como o resultado de uma trama invisvel que serve para clarificar os sistemas heterogneos que produzem sujeitos (Peruzzo, 1997, p.48), buscarei apontar, como primeiros delineamentos desta dissertao, de que forma a histria do IMDAZ expe a emergncia de certas prticas de institucionalizao do sujeito jovem. Assim, neste captulo procurarei mostrar alguns esboos de como as prticas de institucionalizao da juventude foram emergindo no Brasil e como essas foram sendo tomadas por polticas pblicas. Entretanto, antes de deslocar a histria e partir para a trilha singular da tessitura do sujeito jovem, torna-se necessrio colocar o que se compreende por prticas e qual significado atribudo terminologia institucionalizao. Primeiramente, a questo das prticas torna-se essencial, pois o domnio de anlise foucaultiana ocorre das localidades para os universais, ou seja, se a busca por um sujeito jovem, deve-se partir de prticas localizadas em certo tempo e espao histrico para indagar como esse foi sendo constitudo. As prticas locais so entendidas como fenmenos concretos que

25 demarcam a formao de domnios de saber que no somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas tcnicas, mas tambm fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento (Foucault, 1996, p.8). Considerando isso, as prticas so tomadas como aes que transcorrem na histria, operando sobre os indivduos e dirigindo o modo pelo qual eles se conduzem e devem ser conduzidos, fabricando-os sujeitos. Nesse sentido, institucionalizar no diz respeito somente a aes de encarceramento ou internao de pessoas em estabelecimentos fechados ou abertos, mas o conjunto de regras e discursos annimos que estabelecem regimes de verdade, legitimando e formatando modos de ser sujeito (Foucault, 1996). Assim, compreendemse prticas de institucionalizao como as verdades que atravessam e fabricam sujeitos. Ao problematizar o conceito de institucionalizao, Lins e Ceclio (2008) assinalam o quanto o movimento institucionalista francs, no qual se destacam trabalhos como os de Ren Lourau e George Lapassade, contribuiu para modificaes sobre a noo de instituio no decorrer da histria. Baseado nesses autores institucionalistas, esse conceito foge da ideia fechada de estabelecimento, local ou organizao, e passa a ser considerado como um permanente processo histrico e social. Colocar a juventude sob esse vis consider-la como algo que constantemente produzido no decorrer da histria. Significa questionar as condies que deram sentido e corpo a essa categoria juvenil, pensando o sujeito jovem a partir de sua gnese. Lobo (2008) mostra que seria adotar uma postura em que se recusa a naturalizao do objeto e tom-lo como acontecimento. Nesse ponto, a autora esclarece que tomar determinada populao e suas prticas como instituio significa: Trabalhar o passado, seguir a trilha das antigas provenincias, articular pontos de emergncia das atuais formaes (...) tom-las imediatamente em sua

26 historicidade, admitindo que, no mesmo momento em que surgiram certos cuidados com elas, comearam a engendrar-se no s os sentidos que hoje lhes atribumos, como a preocupao com seus destinos. (pp.20-21). Tendo colocado, neste estudo, o modo como sero articulados os conceitos prticas e institucionalizao, passo a buscar as prticas de institucionalizao que foram constituindo o sujeito jovem na histria brasileira para, logo adiante, pensar como essas foram tomadas por polticas pblicas de juventude. Pensando em que ponto me largar nesse caminho tortuoso, atravessado por composies de foras que nos subjetivam, me lancei com o sujeito jovem na direo daquilo que usualmente passa despercebido. Assim, tratei de procurar detalhes, fragmentos, descontinuidades nas formaes que se manifestavam como verdades no campo das prticas de institucionalizao da juventude. Entendendo que so muitos rumos que compem o movimento de produo do sujeito jovem, tomo a histria do IMDAZ como bssola para me guiar nesse percurso. Dessa forma, saio do Instituto de Menores D. Antonio Zattera, da cidade de Pelotas, para pensar como as histrias e os saberes locais fazem parte de prticas que se agenciam Brasil afora.

1.1 "... edificada sobre rochas": da fundao do Instituto

Ao pesquisar no arsenal de documentos sobre o nascimento do IMDAZ, encontro, entre papis amarelos e novas impresses, um folder publicitrio divulgando a Instituio (Anexo II). Datado de 2004, apresenta a atual direo, bem como os trabalhos que so desenvolvidos no local. No anverso, h uma foto da entrada do Instituto onde, centralizados abaixo da inscrio Instituto de Menores e sentados nos degraus de cimento cinza, esto os jovens que l freqentam como estudantes e

27 participantes de oficinas. No verso, encontra-se a seguinte mensagem Instituto de Menores D. Antonio Zattera: ...e vieram as chuvas, sopraram os ventos e esta casa no caiu... pois foi edificada sobre a rocha. Intrigada com esse enunciado, comecei a questionar o modo como o local foi constituindo-se na histria do nosso pas. Pensando nisso, fui atrs das pedras que deram subsdios para sua fundao. Assim, contarei a seguir um pouco do percurso do IMDAZ e, ao faz-lo, vou bordando sua histria com outras linhas, com certos movimentos que atravessam e sustentam sua existncia. Nesse sentido, por pedras quero dizer os processos e as particularidades que serviram de condio de possibilidade para a criao da Instituio de cunho assistencial e filantrpico voltada para a populao juvenil. Entre os movimentos que deixaram sua marca na construo do Instituto, a escravido encontra-se em primeiro plano. Em um pas que tem como herana mais de 300 anos de escravido, no possvel falar das aes sobre o sujeito jovem sem mencionar os rastros deixados pelo regime escravocrata no Brasil, principalmente quando se investigam as condies de emergncia que contriburam para prticas de institucionalizao sobre a juventude. Na histria da cidade de Pelotas, as marcas desse regime podem ser vistas at o presente. As charqueadas na beira do rio so apenas a face visvel de um gigantesco matadouro subterrneo, as pontas de um iceberg de bois degolados que esse tabuleiro de ruas com belas moradias acoberta. (...) Fbricas de sabo, de velas e curtumes tambm esto a pleno vapor embaixo de ns. (...) Qualquer pobrebicho que transite nestas ruas sente algo aristocrtico em seu andar. (...) S o tiquetaque desordenado das charretes pode expressar a passagem do tempo por aqui. Ateno, l vem a guria. Ela no nada, mas julga-se uma delicada

28 princesinha que leva pastis de Santa Clara para a avozinha baronesa. (Ramil, 2008, pp.127-128). Sendo a nica colnia francesa do Rio Grande do Sul (Betemps, 1999), Pelotas ou a Princesa do Sul como conhecida por seus contemporneos traz os efeitos da colonizao europia no somente no cultivo das famosas compotas de pssego, nas receitas de doces aprendidas por geraes de serviais ou pela fama dos costumes delicados, nas palavras de Magalhes (1993, p.9) [] regra geral caracteriz-la atravs de conceitos como riqueza, opulncia, refinamento, elegncia, cultura e at aristocracia. Os filhos dos novos bares, enviados a Paris para aprender o requinte e o culto s letras e arte, voltavam tambm com a vontade de prosperidade e soberba, o que gerava a busca pelo aumento da mo-de-obra escrava a fim de potencializar a pequena vila graciosa em uma cosmopolita urbana a la franaise. Hoje conhecida por seus casares robustos, pelas belas charqueadas sedes de formaturas e casamentos, e pelos doces tradicionais, Pelotas surgiu como terra frtil no polo escravista, uma vez que se situava privilegiadamente entre arroios e campos para criao de gado (Monquelat, 2009). O trabalho do charque, carne salgada e seca ao sol, exigia lide violenta do trabalhador, o que colocava os escravos como os corpos adequados para a produo nos saladeiros (charqueadas). Com grande parte da sua populao composta por escravos em seus primeiros anos, estima-se que metade da populao pelotense era de escravos (Bakos, 1982) os senhores das terras sofriam grandes movimentos de resistncia e fugas escravistas em massa, o que gerava um aumento de medidas disciplinares mais intensas voltadas para o melhor adestramento dos sujeitos. Porm, no auge das torturas e punies aos escravos que tambm surgem movimentos de outro cunho, voltado no para a mortificao dos servos, mas para sua salvao.

29 O Solar da Baronesa, obra arquitetnica construda por escravos e tombada como patrimnio histrico de Pelotas, guarda a histria de um baro charqueador, de sua baronesa e da filha Sinh Amelinha que l moravam. A famlia tornou-se conhecida por dar alforria aos escravos antes mesmo da Lei urea ser instituda (Lopes, Paula & Tomaschewski, 2003); as mulheres da casa distinguiam-se por sua benevolncia e assistncia aos carentes. Entre a salvao e a obedincia, vamos observando os efeitos da escravatura em Pelotas e como so iniciados os rituais de ateno aos desvalidos. Tanto a questo do condicionamento e submisso dos jovens negros e pobres como o ideal de salvao desses inglrios podem ser observados no discurso oficial de inaugurao do Instituto (1959, pp.3-6)3. Segue assim disposto em suas linhas: Nascidos sem lar, sem aconchgo, sem confrto, sem proteo, sem noes mais rudimentares de convivncia - essas crianas encontram, aqui, vencidos os receios iniciais da surprsa, aquilo que, impiedosamente, a vida lhes negou, marcando-os com o signo da desgraa, como ferrete a conspurcar a pureza de suas almas juvenis. No so elementos perniciosos, nem perdidos, nem nocivos. So simplesmente, elementos apartados da linha humana, por estas contingncias do destino. (...) ste Instituto poderia ostentar, no prtico, o dstico honroso de Templo do Trabalho. Realmente, aqui se enraza, no mago de cada jvem, a idia de que, na exaltao magnfica de Ruy Barbosa4, o trabalho no castigo: santificao das criaturas. Tudo o que nasce do trabalho bom. Tudo que se amontoa pelo trabalho justo. Tudo o que se assenta no

3 4

Cpia integral do discurso oficial se encontra no Anexo III.

Ruy Barbosa foi Ministro da Fazenda em 1889, conhecido por ser contra a indenizao que os exsenhores escravagistas requeriam para reparar suas perdas com a abolio; sendo assim, o ento ministro manda incinerar os livros de matrcula dos escravos com a inteno de apagar os vestgios da escravatura no pas (Monquelat, 2009).

30 trabalho til. (...) J o notvel Leo XIII5, na sua referida mensagem de confraternizao das classes, em fins do sculo XIX, afirmava com nfase: O que vergonhoso e desumano usar dos homens como vis instrumentos de lucro e no os estimar seno na proporo do vigor de seus braos. Apesar de, ao final do discurso oficial, os fundadores colocarem o quanto o Instituto busca redimir os erros sociais, como j se antecipara, no passado, abolio da escravatura negra no Brasil (Discurso oficial, 1959, p.8), observa-se na fala proferida acima os efeitos do regime escravo na preocupao com a fortaleza do corpo (corpos possantes para potencializar a produo), na domesticao da alma (corpos dceis para serem bem governados), na urgncia para o trabalho (corpos teis para a capitalizao dos senhores da terra) e na diferenciao entre os benfeitores e seus assistidos, ou seja, a noo de filantropia como salvao para aqueles considerados simplesmente, elementos apartados da linha humana (p.3). Esse discurso mostra como surgem estratgias para chamar a populao jovem para o trabalho. Isso se deve ao legado da escravido, pois questo do trabalho ainda vigorava o peso da servido. Para ser retirado esse teor, esse estigma de condio servil, era preciso cativar a sociedade e, principalmente, o seu ponto forte a populao jovem para o trabalho, que se torna, assim, o lugar de dignidade e a sada do cio que vingava nas cidades. Entretanto, para esse movimento acontecer, a Igreja une-se ao Estado6 oferecendo o trabalho como salvao: o trabalho no castigo: santificao das criaturas (Discurso oficial, 1959, p.5).

5

Leo XIII, eleito papa pela igreja Catlica em 1878, foi conhecido por influenciar o pensamento social catlico, tendo escrito a encclica Rerum Novarum (em latim significa "Das Coisas Novas") na qual debateu as condies das classes trabalhadoras (Vaticano, 1891).6

No Captulo 2, sero abordados com maior profundidade os efeitos da relao Igreja-Estado no processo de constituio do sujeito jovem.

31 Dessa forma, pode-se observar que, mesmo 70 anos aps a Lei urea, o cativeiro ainda permanecia, pois os grilhes tomavam a forma de vigilncia sobre os considerados desclassificados e vadios, ou seja, a grande massa que explodia nas zonas urbanas. Quando o industrialismo solapa a escravido, a crescente populao de homens livres acaba culminando em uma saturao do mercado de trabalho, provocando aumento excessivo da pobreza nas cidades, gerando aquilo que se toma por resduos marginais ou, conforme influncias dominantes (mdicos e juristas, por exemplo) os nomeiam, os degenerescentes e as classes perigosas. Nesse momento de falsa liberdade falsa porque mesmo tornando-se livres os sujeitos passaram a submeter-se a uma ordem social e a uma essncia econmica voltada para o capital humano , a interveno sobre os jovens fortalecida sob o cunho da ordem e do progresso os estimar seno na proporo do vigor de seus braos (Discurso oficial, 1959, p.6). Vai compondo-se, assim, o quadro de institucionalizao do sujeito jovem, uma vez que a juventude passa a ser alvo de investimento nessa sociedade industrial. Sendo visto como possibilidade de alterao do status quo cultural, o sujeito jovem passa a ser colocado como parte essencial no desenvolvimento da sociedade (Lyra et al, 2002). Para conter, ajeitar e promover a juventude desclassificada a sua mxima capacidade, medidas contra a pobreza tornam-se necessrias. No meio dessa lgica capital, compreende-se que, para pr os jovens no trabalho preciso outra forma de purificao do corpo e da alma: preciso manter a populao saudvel. Assim, entram em cena, nesse perodo, os propsitos para o movimento higienista, que emerge de um casamento entre juristas e mdicos (Coimbra & Nascimento, 2005). Em 1923, era fundada, no Rio de Janeiro, a Liga Brasileira de Higiene, que tinha por misso erradicar os surtos epidmicos e controlar a desordem social que se alastrava com o urbanismo. Na busca pela higienizao do corpo social, as escolas comearam a

32 adotar ensinamentos sobre hbitos saudveis com o intuito de atingir a populao adulta atravs de suas crianas. Isso provoca, concomitantemente, um mandato de repdio indigncia e a classe trabalhadora passa a ser considerada ignorante. Dessa forma, aqueles que no frequentavam a escola deveriam ser civilizados para educao higinica de outra maneira. Tem-se, a, a articulao com as propostas do eugenismo. Conforme o mdico fundador da Sociedade Eugnica de So Paulo, Renato Kehl, a eugenia tinha como meta bsica a regenerao de certos tipos (os pobres, os improdutivos, os considerados delinquentes, entre outros) para a melhoria da sociedade. Dito de outra forma, apoiando-se nos ideais darwinistas de evoluo dos seres mais aprimorados, as prticas eugnicas visavam purificao das raas. Enquanto grupos hegemnicos passavam a promover campanhas contra a reproduo daqueles considerados degenerados, cientistas estudavam formas de identificar e expor as classes menores, culminando no aparecimento de testes quantitativos que chegam para formatar e mapear os sujeitos impuros (Boarini & Yamamoto, 2004). Com esse quadro, possvel perceber a importncia da instituio educao na preveno daqueles chamados desviantes, expondo uma operao doutrinal, associada ao projeto da modernidade de ordem e progresso, que vai colocando os corpos mundanos no patamar da cincia. Ambos os movimentos so importantes, pois, a partir das prticas sanitrias que deles decorrem, vai sendo construdo um institudo de higiene social sobre a juventude pobre. Os efeitos dos imperativos sanitrios podem ser vistos inclusive nos dias de hoje, quando a crena na higiene tornou-se mandato coletivo: creches e escolas primrias ensinam as crianas a escovar os dentes, a lavar as mos antes e aps as refeies e, em entidades sociais, v-se a instruo para uma rotina de sade pblica. Retornando para o incio do sculo XX, sob o pano de fundo de cunho sanitarista, vemos os anos 1920 e

33 1930 sendo marcados pelo fortalecimento de polticas de internao populao juvenil que vaga pelas ruas, fazendo com que as figuras dos meninos desvalidos e abandonados transformem-se na do menor. Nascem, assim, os jovens anormais e, para acompanhar a regulamentao dessa populao, novos dispositivos de controle em torno da norma, do que se deve ou no fazer com eles, vo surgindo. O crescimento das polticas de controle infantojuvenis no pas so exemplos desses dispositivos normalizadores que emergem tendo como preocupao inicial a higienizao social daqueles que desordenavam as reas urbanas o jovem acaba sendo considerado tanto um perigo como um fardo social. Sob esse discurso, promove-se a criao do Juizado de Menores em 1923 e, logo imediatamente, em 1927, o surgimento do primeiro Cdigo de Menores. Nos entremeios dos movimentos de vigilncia sobre os ditos menores possvel observar o arranjo das pedras de fundao do Instituto que venho apresentando desde o comeo desta escrita. Eis que nascia em Pelotas no dia 3 de julho de 1924, instituda pelo Bispo da cidade, a Associao Protetora de Meninos Desvalidos. Posteriormente nomeada como Asilo de Meninos Desvalidos, essa organizao o atual Instituto de Menores D. Antonio Zattera. Durante os primeiros anos de sua existncia, o Instituto foi mantido pelos irmos Lassalistas, substitutos dos Padres Jesutas7 que, juntamente com a colaborao de abastados segmentos da sociedade, conseguiram construir um prdio prprio para alojar os menores. Esses eram meninos entre 8 e 18 anos, que ali ficavam em regime de internato recebendo instruo moral e profissional. Apesar de a faixa etria da gurizada que frequenta o Instituto permanecer a mesma, o sistema de moradia

7

A transio dos jesutas para os lassalistas como ordem responsvel pelo Instituto deve-se aos efeitos da I Guerra Mundial no movimento de colonizao de certas confrarias no Rio Grande do Sul, uma vez que a congregao jesutica alem foi impedida de trazer demais prelados para o Brasil. Com isso, os jesutas mudaram-se de cidade e o IMDAZ, como tambm outros internatos e escolas de Pelotas, passaram a ter sua administrao gerenciada pela congregao lassalista (Amaral, 2006).

34 se manteve somente at incio dos anos 1980; a partir dessa dcada o local abriu suas portas para jovens de ambos os sexos, provindos de famlias carentes. Esses movimentos que envolvem o IMDAZ, desde sua abertura como casa de reteno e moralizao dos invlidos sociais at o carter catequizante, docilizante e redentor pelo trabalho apresentado em seu discurso oficial, demonstram como as prticas de institucionalizao sobre essa populao jovem vo sendo construdas sob os artifcios de interveno, de preveno e de controle. Quanto a isso, Bulco (2002) destaca que a implementao de rgos especficos para tratar do jovem desamparado, como o Departamento Nacional da Criana criado em 1940 com o intuito de ordenar atividades concernentes ao cuidado, maternidade, infncia e adolescncia e o Servio de Assistncia a Menores criado em 1941 para dirigir todo o servio de auxlio e proteo aos jovens desvalidos e delinquentes reflete a manuteno da norma e disciplina com o intuito de tornar esses menores menos ameaadores para a sociedade elitista, gerando, portanto, a noo de sade social. A mesma autora apresenta a compreenso acerca do termo menor, que envolve um entendimento para alm da menoridade relacionada a questes penais. Longe de lembrar a lgica dos devires e acontecimentos singulares propostos por Deleuze e Guattari8, esta menoridade aqui colocada est vinculada problemtica de ameaa do pobre ao poder pblico, uma vez que crianas abandonadas transcorrem pelas ruas a partir de mudanas polticas e econmicas que ocorreram no pas (abolio da escravatura, vinda de imigrantes europeus, saturao das cidades). Consequentemente, as casas de assistncia e amparo surgem sob o olhar da vigilncia e do controle, ligadas s medidas higienistas, com o intuito de proteger e tirar os menores da rua. Assim, vai tomando forma a noo de periculosidade em que o indivduo deve ser considerado

8

Cf. Deleuze e Guattari (1978).

35 pela sociedade ao nvel de suas virtualidades e no ao nvel de seus atos (Foucault 1996, p.85), ou seja, o perigo no est no que se faz, mas no que se pode fazer. A assistncia apresenta-se, como visto no discurso do IMDAZ, como sinonmia de programas para reeducao, internao e preparao para o trabalho (Coimbra & Nascimento, 2005). A disciplinarizao dos jovens desviados vai mostrando uma cultura do perigo (Foucault, 2008b) e, dentro de uma lgica preventiva e de segregao, o institudo do violento nato vai se espalhando capilarmente na sociedade, arraigando os modos de ser e viver de cada indivduo, em cada fala, a cada discurso cientfico e nos saberes que se manifestam, produzindo e forjando (as)sujeitos. Assim, um complexo sistema poltico social vai sendo criado, cujos instrumentos se direcionam tessitura de um sujeito jovem prprio. Nesse palco, [a]s polticas, bem diferentes entre si, de parcerias preventivas e de segregao punitiva deveriam ser vistas, ambas, como iniciativas poltico-administrativas que jazem sobre esta superfcie social e que so condicionadas pelos contornos e caractersticas desta. Longe de serem criao exclusiva dos polticos ou da mdia, tais estratgias dependem para sua operao prtica, bem com para seu apoio poltico de arraigados modos de pensamento, rotinas de ao e de estruturas de sentimentos que recentemente vieram a caracterizar a sociedade civil. (Garland, 2008, pp.347-348). Nessa floresta discursiva, observa-se o quanto o surgimento das prticas de institucionalizao da juventude no Brasil permeado pelo olhar sobre as deficincias e sobre os problemas relacionados aos jovens, produzindo estigmatizaes,

normalizaes, regulamentaes. Porm, na segunda metade do sculo XX, vemos surgir acontecimentos no campo dos direitos humanos que tanto causaram movimentao nas prticas adotadas no IMDAZ como tambm provocaram

36 questionamentos sobre a terminologia menor. A seguir, trarei alguns desses episdios que mobilizaram outros modos de pensar o jovem, mostrando como esses foram envolvidos por polticas pblicas de juventude.

1.2 "... e vieram as chuvas, sopraram os ventos e esta casa no caiu..."

Tendo

visto,

anteriormente,

o

surgimento

de

certas

prticas

de

institucionalizao do sujeito jovem os resduos da ordem escravocrata, o controle sobre a juventude pobre, a questo dos desvalidos e menores, a internao, educao e ressocializao dos jovens marcados com o signo da desgraa (Discurso oficial, 1959, p.3) , passo para a segunda metade do sculo XX, na qual comeam processos diferenciados no pas. Nesse perodo, vemos as prticas de institucionalizao do sujeito jovem sendo tomadas por polticas pblicas de juventude. Como isso ocorre? Sob os discursos dos direitos humanos, de proteo populao infanto-juvenil que se encontra em situao de risco, de incluso social e resgate da cidadania. Esses discursos vo promover a criao de outras estratgias de conduta sobre o sujeito jovem, as quais passam a ser reguladas no apenas pela disciplina que controla os corpos juvenis para a obedincia e servitude, mas por aparatos de normalizao que vm conduzir o sujeito jovem para o manejo de sua circulao: comea a ser manufaturado um sistema de produo da juventude. Sposito e Carrano (2003) revelam, ao delinear a trajetria das polticas pblicas para jovens, o quanto as intervenes preventivas brasileiras tm seu caminho marcado pelo controle social daqueles considerados ameaas ao mercado capitalista. Os autores mencionam que, nesse campo, as aes sociais para juventude tinham como finalidade um nico objeto: controlar aqueles cujas virtualidades precisavam ser vigiadas, os

37 criminosos em potencial, os jovens do desvio. Assim, eram necessrias medidas que os assegurassem como futuros agentes cidados, levando-os a sair da inatividade danosa. O combate ao perigo social acontecia nas prticas para capacitar, tornar apto e incluir o jovem, domesticando-o como cidado. Vale ressaltar que a noo de cidadania est intrinsecamente ligada com a questo dos direitos humanos. Sendo assim, torna-se imprescindvel, no que tange a produo do sujeito jovem, discutir essa temtica. Apesar de o assunto dos direitos humanos ser abordado com maior profundidade no segundo Captulo deste estudo, preciso ao menos mencionar certas informaes sobre alguns movimentos que vo firmar a emergncia de um sujeito jovem de direitos como, por exemplo, a criao da Organizao das Naes Unidas (ONU), em 1948. Coimbra (2001) ressalta que, apesar de ser um marco da histria mundial, os direitos humanos defendidos por esse movimento apontam quais direitos devem ser garantidos e para quem eles devem ser estendidos (p.141); dito de outra forma, esses direitos tambm so compreendidos como objetos produzidos scio-historicamente. A autora nos mostra que, no Brasil, novas polticas voltadas para os direitos da populao aparecem na resistncia ditadura militar que assolou o pas com o golpe de 1964. Com a luta pela liberdade de expresso, novas propostas de ao social e polticas tomam forma no cenrio brasileiro at que, em meados da dcada de 1980, chega-se na Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, que vem colocar os direitos humanos no campo de ao das polticas governamentais. Aps a Constituio de 88, na esfera infanto-juvenil vemos o surgimento da Conveno sobre os Direitos da Criana de 1989. A partir desse episdio, novos paradigmas so postos em cena para incorporar as legislaes, afirmando o valor das crianas e dos adolescentes como portadores da continuidade do seu povo, da sua

38 famlia e da espcie humana. Sendo reconhecida a sua vulnerabilidade, essa populao passa a desenvolver um novo papel, aparecendo como merecedora de proteo integral por parte da famlia, da sociedade e do Estado, o qual, por sua vez, dever atuar atravs de polticas especficas para o atendimento, a promoo e a defesa de seus direitos. Uma implicao dessas articulaes a criao do ECA Estatuto da Criana e do Adolescente que vai, ento, delinear normas que dirigem a proteo da infncia e adolescncia visando o desenvolvimento integral desses sujeitos, estipulando os direitos concernentes desde a convivncia familiar at comunitria, e determinando tambm os processos de lazer e socializao que fazem parte dos cuidados adequados de toda criana (Brasil, 1990). O ECA surge para descolar os sentidos do termo menor das crianas e adolescentes pobres, carentes e necessitados, buscando engendrar novos parmetros de compreenso acerca da infncia e juventude. Hning (2003) menciona que a promulgao dessa lei promove uma srie de mudanas no que tange s prticas e polticas voltadas ao novo sujeito de direitos que ela regulamenta. Porm, a autora alerta que, apesar de garantir que o menor deixe de existir legalmente, essa terminologia ainda se mantm nos discursos de vrias prticas e aes com infantes e adolescentes. Da mesma forma, mesmo o ECA possibilitando uma mudana nos enfoques pragmticos e um avano nas prticas institucionais voltadas para a populao infanto-juvenil, Cruz, Hillesheim e Guareschi (2005) indicam que ele traa uma normalizao da infncia, a qual passa a predispor uma essncia fixa e imutvel a ser seguida, caracterizando os jovens em um patamar que promove polticas de atendimento e medidas de proteo que produzem rotulaes sobre a alteridade. Em outras palavras, surge um roteiro sobre os modos de ser sujeito, sobrando para aqueles que no o seguem (os que no frequentam a escola, os meninos de rua, os infratores, aqueles que

39 no tm certido de nascimento etc.) o estigma de estarem fora do que seria considerado normal. Assim, apesar de insurgir uma oposio referente ao menor, ainda se fazem presentes os discursos que vm marcar aqueles considerados fora da lei, os excludos do padro da normalidade. Alm do ECA, temos a introduo da Lei Orgnica da Assistncia Social LOAS, Lei n. 8.742, de 1993. Juntos, eles promovem uma ateno criana e ao adolescente que se encontra em situao de risco pessoal e social. Esse discurso do risco acaba rotulando os excludos mencionados anteriormente, produzindo

regulamentaes sobre modos corretos de ser gente, o que, consequentemente, passa a determinar maneiras de conduzir a populao juvenil. Assim, constitui-se um sistema de prticas que vo produzir e institucionalizar uma juventude ideal e universal. Tais prticas podem ser observadas no IMDAZ atravs das aes desenvolvidas no local com parcerias com o governo do Estado. Destacam-se, entre essas aes, trs programas conveniados com a Secretaria Municipal de Cidadania: ASEMA, PAIF, PETI, os quais podem ser vistos ao abrir o folder de apresentao mencionado anteriormente. O Instituto articula-se com o primeiro desses projetos, Apoio Scio-Educativo em Meio Aberto (ASEMA), no momento em que oferece atividades, em turno inverso ao da escola, as quais visam promover a proteo, socializao e profissionalizao da populao infanto-juvenil que se encontra em situao de vulnerabilidade (Brasil, 2003). O Programa de Ateno Integral Famlia (PAIF) e o Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (PETI) aparecem no Instituto atravs dos acompanhamentos feitos s famlias daqueles que l frequentam. Ambos os programas buscam a preveno e o combate aos jovens que se encontram em situao de risco, embora o PETI tenha tambm como objetivo a erradicao do trabalho infantil, estando inserido em um processo de resgate da

40 cidadania e promoo de direitos de seus usurios, bem como de incluso social de suas famlias (Brasil, 2009, s/p.). Nota-se que nos trs programas aparece a preocupao com a proteo integral da populao infanto-juvenil andando lado a lado com a questo do risco. Nesse sentido, as polticas pblicas vo sendo constitudas por meio de uma preocupao com o jovem, o qual passa a estabelecer-se sob as diligncias de problema, incorporando o sentido do risco, do diferente que precisa ser normalizado. Vemos, ento, a manuteno de uma racionalidade de controle e vigilncia sobre essa populao: so as antigas prticas de institucionalizao do sujeito jovem tomadas por polticas pblicas de juventude que, apesar de vigorar por outros meios (projetos e aes sociais) e atravs de diferentes estratgias (o jovem no como menor mas como cidado, por exemplo), apresenta sutilmente um institudo de menores que ainda permanece. Afinal, no toa que, aps tantas mudanas em sua nomenclatura, o IMDAZ ainda se mantenha Instituto de Menores "... e vieram as chuvas, sopraram os ventos e esta casa no caiu...". Finalizo, assim, esta primeira parte expondo que, para o captulo a seguir, buscarei catar as migalhas de po que mostram a que racionalidades as polticas pblicas de juventude recorrem. De tal modo, ser problematizado como as prticas de institucionalizao tornam-se formas de governo sobre o sujeito jovem, marcando a formao de um dispositivo da juventude. Para tal, sero conceituadas as noes de governamentalidade e biopoltica, agenciando a histria de construo do sujeito jovem atravs desses operadores.

41 2. CATANDO AS MIGALHAS DE PO...

Para o alto Juventude Do instituto, nosso lar Para a frente Juventude Futuro conquistar. Das lies provenientes da vida, do exemplo emanado da cruz, da cincia da escola aprendida, para a Ptria os seus jovens conduz. (Hino do Instituto de Menores de Pelotas, 1969)

na transio dos anos dourados para a dcada de 1970, em meio a movimentos de regime militar, entre resistncias e perseguies, pouco antes do ttulo de tri-campeo mundial de futebol e do grito dos noventa milhes em ao, pra frente Brasil, que nascem o smbolo, lema e hino do IMDAZ. A partir de reflexes feitas sobre a histria do Instituto, desacomodando os versos apresentados em seu hino, por exemplo,

42 possvel percorrer as tramas da prpria histria brasileira em torno do processo de objetificao da juventude. Ao olhar a gnese de construo do Instituto e dos discursos que ali tomam forma, pensamos nos rumos que agenciam a constituio do sujeito jovem como alvo de investimento no campo das polticas pblicas: como futuro da nao, populao para a ptria servir, ningum segura a juventude do Brasil9. Do mesmo modo, conforme utilizei a histria do IMDAZ no primeiro Captulo como fora propulsora para dar voz aos tensionamentos sobre a emergncia das prticas de institucionalizao e como essas foram tomadas por polticas pblicas no Brasil, neste captulo seguirei aproveitando sua histria para mostrar a que racionalidades essas prticas remetem. Assim, o olhar que coloco sobre o smbolo-chave do Instituto um menino sendo carregado por outro, e seu hino aquele que os v como processos historicamente produzidos, marcas que carregam em suas linhas e sombras um arranjo de como a juventude foi sendo construda. Sob esse vis, farei uso dessas marcas como se fossem migalhas de po, as quais me ajudaro a percorrer a trilha das polticas pblicas, problematizando como essas tornam-se formas de governo e legitimam regimes de verdade sobre o sujeito jovem. As polticas pblicas de juventude no aparecero diretamente neste captulo, nem um programa ou projeto em particular, pois buscarei fazer um exerccio de investigao sobre os momentos particulares e a gnese das questes que implicam a constituio de tais polticas. Da mesma forma que a fundao do Instituto e seu hino nascem dos atravessamentos de um contexto histrico como mencionado anteriormente, pretendo investigar quais acontecimentos permeiam a criao das polticas de juventude. A inteno tomar a anlise como aquele sujeito que projeta ou dirige construes: partindo dos esboos para pensar na arquitetura singular da composio de9

Referncia msica Brasil eu te amo, criada por Dom e Ravel em 1970, e utilizada posteriormente em ocasies cvicas e polticas.

43 foras e saberes que constituem certas prticas. Sendo assim, buscarei problematizar os discursos presentes no IMDAZ a fim de pensar a formao das polticas pblicas voltadas para o sujeito jovem e como elas expem aquilo que se compreende por um dispositivo da juventude. Destarte, o foco de problematizao desta segunda parte est em investigar como as prticas de institucionalizao tornam-se formas de governo sobre o sujeito jovem. Para tentar responder esse questionamento, preciso elucidar o modo como est organizado este captulo e o porqu de assim o fazer. Em um primeiro momento, explicarei a questo do governo para Foucault e os operadores dos quais fao uso para pensar as prticas de institucionalizao. Uma vez que os conceitos tenham sido esclarecidos, mostrarei o que se entende por dispositivo e o que significa pensar a juventude como tal. A partir disso, passo a problematizar como esse dispositivo atravessado pelos discursos de qualidade de vida e direitos humanos, sendo esses os discursos alicerces que aparecem nas polticas pblicas de juventude. Essa discusso leva-me ao final do captulo, no qual tento abordar a ligao entre o sujeito de direitos e a produo do sujeito jovem. Porm, antes de partir na trilha para essa pergunta, cabe explicar por que escolhi no trabalhar com a noo de adolescncia ou inclu-la dentro de uma categoria juventude. Referente a isso, fao aluso a postura de Coimbra, Bocco e Nascimento (2005), as quais apontam para a naturalizao que existe sobre a adolescncia, que se cristalizou como objeto natural com caractersticas universais e atributos invariveis associados. Tendo nas cincias humanas o apoio para a legitimao dessa fase da vida, ao adolescente determinada uma identidade e homogeneidade, fazendo com que seja aprisionado em um crcere evolutivo, cuja sentena ser o sujeito resultante de um processo desenvolvimentista.

44 De tal modo, alio-me a Bocco (2009, p.81) quando revela que pensar em juventude pareceu, at agora, a melhor forma de trazer uma intensidade invs de uma identidade (...). Com esse deslocamento, ganham relevo as foras mais que as formas, enfatizando processos onde parecia haver apenas produtos. Dessa forma, trago a juventude, com seus limites e possibilidades, com o intuito ingnuo de tentar romper com noes pr-estabelecidas e caminhar por lugares estranhos. Nesse sentido, ao tomar juventude, no sei dizer que idade tm, simplesmente so os Joos e Marias com quem cruzei no Instituto, em meio a meus questionamentos que Foucault me incitava quando eu percorria a sua maneira genealgica de pesquisar. Contudo, necessrio esclarecer que, ao optar por juventude, tampouco pretendo fugir de institudos, pois acredito que independente de onde o sujeito tomado como adolescente ou jovem, criana ou idoso, hippie ou militar, casado, solteiro ou noivo... ele far parte de um sistema de governo e regimes de verdade, agindo sobre ele determinadas capturas. Isso significa que o importante, ento, salientar a existncia de um sujeito jovem que comea a tomar forma a partir da constituio de uma nova racionalidade de governo. Uma noo de juventude que aparece no momento em que se constitui uma urgncia histrica, quando o sujeito jovem visto como vida a ser manejada, que vem gritar o estabelecimento de um novo campo de saber: de uma populao que preciso abarcar, de um novo corpo que se precisa monitorar que vai surgir como o jovem/a juventude/uma populao juvenil. Entra-se, assim, na noo de governamentalidade, que vai constituir um sujeito jovem que passa a ser mais do que objeto de estudo, uma populao que se visa conhecer e governar, um veculo de operaes polticas, de intervenes econmicas, campanhas ideolgicas de moralizao e de escolarizao, de uma interveno calculada (Bujes, 2000, pp.27-28). Dessa forma, se o primeiro Captulo serviu para

45 mostrar como as prticas de institucionalizao do sujeito jovem emergiram e foram tomadas por polticas pblicas de juventude, faz-se necessrio pensar como essas prticas se tornam modos de governo sobre os indivduos, ou seja, preciso pr mesa uma discusso sobre a questo do governo.

2.1 Desfazendo as trilhas da juventude com a governamentalidade e a biopoltica

Primeiramente, vale ressaltar que falar de governo sob um ponto de vista foucaultiano no tom-lo como sinnimo de Estado, ou de instituies como objetos centrais de poder, mas se trata da maneira como se conduz a conduta das pessoas (Foucault, 2008b, p.258). Foucault (2007) chama de governamentalidade o ponto de contato entre o modo como ocorre uma manipulao por regimes de verdade e conhecimento e o modo pelo qual os indivduos se conduzem e conhecem a si prprios. Em outras palavras, essa noo de governo diz respeito ao governo de uns sobre os outros, no de um poder vertical e centralizado, mas que se remete ao governo das crianas, dos jovens, dos professores sobre os discpulos, dos conventos etc. Existem, portanto, muitos governos (p. 280). Esse modo de governar est intrinsecamente ligado a um conjunto de prticas que foram surgindo a partir de modificaes originadas no sculo XVI. Essas remetem ao governo da pastoral crist, em que os sditos, para que suas almas fossem salvas, tinham suas condutas veladas no somente pelos clrigos, mas tambm por si mesmos. Tratava-se de mudanas nos modos de governo; ou seja, ocorre a transio de uma sociedade feudal, cujo governo centrava-se no territrio, para uma sociedade disciplinar, de controle e regulamentao que ultrapassava questes de espao fsico. Assim, surge

46 um Estado moderno que vai se preocupar em governar no a superfcie ocupada pelo povo, mas em dirigir uma populao: a virada da soberania ao biopoder. Compreender essa passagem essencial, pois conforme Foucault (2007, p.292) revela, desde o sculo XVIII, vivemos na era da governamentalidade.Em estudos recentes, Veiga-Neto e Lopes (2007) expem que as manifestaes desse modo de governar podem ser vistas nas polticas pblicas e em toda a discursividade que a rodeia. Dessa forma, as estratgias de governamentalidade aparecero nas maneiras

como a sociedade controla sua massa populacional, seus grupos e sujeitos, como a gurizada jovem, por exemplo. Entretanto, para pensar nessas tticas de governo no campo das polticas pblicas de juventude, preciso voltar no tempo e investigar os percursos da construo da juventude a fim de mostrar como essa foi se transformando atravs de tcnicas de controle, regulamentao, normalizao, colocando-se como uma forma de governo das condutas, ou seja, o modo pelo qual os indivduos se tornam sujeitos. Enquanto trao as linhas desta investigao, mostrarei o percurso do Instituto no meio desses trmites. Tendo isso em mente, o que procurarei fazer a seguir pensar a mudana nos modos de governo atravs da histria do sujeito jovem, investigando os caminhos para a construo de uma srie de aparelhos que vo tecendo aquilo que se coloca como o dispositivo da juventude. Assim, comeo a trilha da constituio do sujeito jovem partindo da sua inexistncia. Passando singelamente pela Grcia Antiga, apenas a ttulo de exemplo, possvel observar que o aparato juventude no tinha o sentido que hoje possui, no fazendo parte do dia-a-dia das pessoas. As crianas eram consideradas adultos em miniatura que, ao completar 7 anos, passavam a ser responsabilidade do Estado, o qual as assumia a fim de transform-las em guerreiros para proteo da sociedade. Aps um perodo de treinamento, esses soldados mirins tomavam o lugar de homens

47 amadurecidos, passando a frequentar conselhos e assembleias, sendo incorporados como cidados (a essa altura com mais ou menos 20 anos) (Faleiros & Faleiros, 2007). Na Idade Mdia, tambm a questo da juventude no vigorava tal como a conhecemos, o importante ainda era o governo das terras e no das pessoas. A racionalidade na poca pr-industrial era a soberania, cuja caracterstica consistia em fazer morrer e deixar viver seus sditos, conforme vontade nica do regente para apreender subsdios, tomar bens e aumentar seu territrio. O rei detinha o direito sobre a morte dos indivduos, podendo executar os indesejveis. Esse poder soberano no tinha conscincia de uma populao ou eficincia do trabalho, mas se exercia sob a lgica das individualidades que representavam produtos e riquezas (Foucault, 2007). Conforme a noo de famlia vai pesando, a questo etria comea a se tornar importante e uma ideia de juventude vai surgindo. O conhecimento sobre as fases da vida, antes campo de domnio somente de cultos e cientistas, comea a ser disseminado na vida diria de cada indivduo. Isso acontece, pois na gesto do ncleo domstico que o soberano era reconhecido como o bom dirigente de seu povo. Sendo assim, para melhor dirigir a economia, era preciso que o governante tivesse controle sobre os micro-ncleos dos quais seus membros faziam parte. Tal movimento provoca uma dissipao do saber desenvolvimentista, que deixa de ser domnio privativo de um grupo elitizado para ser envolvido no discurso corriqueiro das pessoas comuns. De acordo com Aris (1981), as idades da vida deixam de pertencer a um campo exclusivamente cientfico e passam a ser tomadas como saberes cotidianos, o que transforma a vida em pedaos de fragmentos etrios. Saindo fora de espaos acadmicos, o sujeito jovem vai emergindo em todas as brechas sociais. Nem o outro da criana, nem o outro do adulto; ele vai aparecendo em um lugar de estranhamento, entre-idades, pois no era tomado nem como o contrrio do infante como tambm no

48 se encaixava no avesso do adulto afinal no estava completamente maduro, nem completamente infantil. Logo, o sujeito jovem vai sendo colocado em um lugar no meio das idades, em que lhe so associadas caractersticas contraditrias que vo desde ser visto como um objeto de potncia para o trabalho, at ser marcado como um ser que se encontra no auge da pujana, devendo ter seu corpo indcil disciplinado. Por essa razo, ocorre um movimento de controle e regulamentao da famlia pela Igreja, sob a ideia de que os fiis precisavam ter suas condutas governadas para alcanar a salvao. Aproveitando para controlar a sexualidade do jovem viril, a vigilncia da juventude passa por uma arte de governar regida por, como denomina Foucault (1995, 2005, 2007), um poder pastoral. Neste quadro, obras de caridade passam a institucionalizar-se e, entre o domnio na terra e a redeno no reino dos cus, a caridade pblica passa a ter nova relao entre os benfeitores e aqueles que eram amparados. A assistncia aqui aparece como sinnimo de salvao, e o que resta aos jovens infames e descontrolados serem colocados em instituies que os disciplinassem para a moralidade como homens de bem. Esse ideal da salvao na assistncia importante, pois se torna, no Brasil, um dos marcadores para a construo do IMDAZ. Tal configurao visibilizada pelo nobre lema que emprega o grito Ele no pesa, meu irmo sobre seus jovens, bem como no discurso de inaugurao10 em que se observa o propsito de santificao das criaturas (Discurso oficial, 1959, p.5) juvenis que passavam a ser catequizadas naquele local. Porm, conforme vai surgindo um novo mercado com a afluncia de riquezas, as cidades comeam a aparecer, o que vai agenciando uma revoluo na compreenso da assistncia. A pobreza passa a ter um significado pejorativo no mais uma elevao

10

Ver a citao do discurso no Captulo 1.

49 espiritual atravs do sofrimento , sendo associada com uma imagem de inutilidade social. H uma condenao daqueles considerados vagabundos, que passam a ser uma questo pblica e um problema industrial (Marclio, 2006). Aqui tem incio a preocupao que as ilhas urbanas lanam sobre o governo: j no h mais um povo que deve ser relocado, mas grupos populacionais que devem ser contidos, regulamentados, segurados. Esse perodo marca a sociedade de industrializao, na qual o Estado torna-se objeto de conhecimento e instrumento de poder, abrindo espao para a gerao do mercado que se insere como primordial para a questo do governo, uma vez que a melhoria nas condies de vida da populao est intrinsecamente ligada produo econmica. Os jovens, que agora podem ser chamados tambm de abadias ou corpos juvenis, tornam-se responsabilidade no s dos benfeitores e da Igreja, mas de uma parceria dessa com o Estado (Faleiros & Faleiros, 2007, p.18), uma vez que a vigilncia sobre a boa conduta torna-se um dos elementos essenciais para a transformao do sujeito jovem em um corpo dcil para o acmulo de capital. Essa nova racionalidade, que chamarei de assistncia mercantil devido ao apoio sobre os desassistidos que vigora na lgica do rendimento, pode ser visualizada no discurso do Instituto quando neste apresentada a ideia de que Tudo que se amontoa pelo trabalho justo (Discurso Oficial, 1959, p.5), revelando a importncia de colocar os desvalidos no campo da produtividade. Assim, um poder disciplinar, atrelado aos corpos dos indivduos, apresenta-se enquadrando mecanismos de vigilncia a fim de assegurar no homem sua fora produtiva. Como fora centrpeta, esse poder classifica, hierarquiza e assujeita os indivduos, dizendo o que devem ou no fazer, distinguindo aqueles que sero incapazes e inativos com o intuito de fixar os procedimentos de adestramento, tornando os sujeitos

50 dceis e teis (Foucault, 2008a). Dessa forma, so construdas tcnicas que se voltam para o condicionamento do sujeito jovem, tais como o desenvolvimento de punies queles incorrigveis, os lugares determinados a cada aluno na escola, o catlogo das eficincias, a vigilncia nos registros de nascimento e a categorizao das classes: o processo de enquadramento da vida que toma forma pela disciplina (Foucault, 1977). Nessa ordem disciplinar, o poder centraliza-se no corpo como mquina: no seu adestramento, na ampliao de suas aptides, na extorso de suas foras, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integrao em sistemas de controle eficazes e econmicos (Foucault, 1988, p.131). Com isso, observam-se os primeiros movimentos da disseminao do governo das pessoas para um mbito mltiplo, pois comea a tomar forma com a exploso industrial na Alemanha, Frana e Inglaterra, uma medicina estatal que suscita a observao da morbidade e a formao da polcia mdica. O surgimento dessas tcnicas de governo chega com o intuito de promover o bem comum e, consequentemente, garantir aumento mercantil (Foucault, 2007), pois, afinal, ao observar a morte da populao pode-se trabalhar mecanismos que garantam a vida. Essa a virada no modo de governar a sociedade, conforme narra Foucault (2005; 2008a), que se apresenta no sculo XVIII. Isso demonstra o aparecimento de uma nova racionalidade, que antes era soberana e visava o bom governo do povo, agora vem adquirir outra preocupao: o bem comum de uma populao que se quer conduzir. Esse novo governo vem carregado com a universalizao de prticas de controle do corpo pelo naturalismo mdico e com a legitimao de prticas sanitrias tambm de marginalizao e excluso de infelizes segmentos da sociedade pelos discursos cientficos. Assim, entra-se em um campo de manejo sobre as doenas (a segurana sobre as epidemias), de prticas de higienizao (a manuteno das cidades) e de garantia da

51 sociedade (controle sobre a pobreza) (Foucault, 2008a). Aparecem diferenciaes entre o pblico e o privado em que a salubridade, ou o estado de qualidade de vida, torna-se a base para as prticas governamentais, que vo desde vacinao em massa at novos parmetros do que sade e doena, e do que normal e aceitvel. Assim, preciso definir a melhor forma de governar a moral, a economia e a poltica o governo de si, da famlia e do Estado (Foucault, 2007). Nos trmites desses movimentos, os jovens, de guerreiros protetores da sociedade passam agora por todo um cuidado seus corpos educados, sua sexualidade velada e sua conduta domesticada. O governo sobre os corpos revela a apario de uma nova tecnologia de poder, com novas tcnicas de controle e regulao voltada para uma populao que aparece como sujeito de necessidades, de aspiraes, mas tambm como objeto nas mos do governo (Foucault, 2007, p.289). Dessa forma, aos mecanismos que envolvem o sujeito jovem somam-se tecnologias que no excluem a disciplina, mas que vem somarse a ela: uma segurana que vem regular a realidade, atuando no manejo do meio em que se encontra a populao (Foucault, 2005). Essa segurana est ligada aos modos de produo, s regras de circulao das riquezas, ao mercado e economia. Segurana que vem regulamentar tudo, buscando entender e mapear as relaes de vida. V-se, assim, um movimento nas formas de governo, no qual existe um alvo (populao), uma forma de saber que lhe dirigida (regimes de verdade) e instrumentos (procedimentos tcnicos) que vo, por sua vez, ditar as regras do que pode, deve, segue etc. Isso pode ser elucidado no processo de constituio do sujeito jovem no momento em que se toma a produo do jovem infrator, por exemplo. Tem-se nesse sujeito uma populao alvo de investimento; na sua medicalizao, diagnstico e julgamento, os discursos e saberes que o forjam; nas polticas pblicas e medidas de segurana para a juventude criminal, os instrumentos tcnicos que o regulamentam.

52 Essa regulamentao e normalizao atuam no na ao direta, mas no detalhe, naquilo que circunda os sujeitos. Neste sentido, h uma tendncia em buscar regularidades para o controle da vida, fazendo com que surjam sequncias de problemas que produzam alertas sobre as formas de poder. a questo do caso risco perigo crise que se apresenta (Foucault, 2008a): casos referentes a algo que ameaa a populao so identificados; um alerta sobre situaes de risco gerado para preparar a populao; o alarme do perigo se potencializa, fazendo com que medidas precisem ser tomadas contra a ameaa iminente e, finalmente, a noo de crise estabelecida. Veremos, a seguir, que a utilizao desse jogo de segurana pode ser observado na fundao do Instituto e nas relaes de poder que determinam qual populao jovem o estabelecimento deveria conter: os menores desvalidos. Pesquisando sobre o nascimento do IMDAZ, encontro um artigo publicado no conhecido jornal Dirio Popular da cidade de Pelotas (Piccinini, 2002), no qual foram recuperadas informaes sobre as autoridades que colaboraram para a fundao da atual casa onde se localiza o Instituto. No referido texto, informado que, dentre as clebres presenas que ajudaram o antigo Asilo de Meninos Desvalidos a se transformar no Instituto de Menores de Pelotas, destacam-se, alm do bispo fundador, o juiz de Menores e o delegado da poca. Era 1944 e essas figuras nomeavam tal instituio com a finalidade de amparar e recuperar os menores abandonados e desajustados [grifo meu] do sexo masculino que no possuam recursos, conforme discorrido em documentos histricos do local. Bispo, juiz e delegado: a salvao, a lei e a segurana. Essa trilogia vem determinar como o sujeito jovem deve ser e como deve se comportar nos limites do que correto e aceito, ou seja, esse trio ajuda a sinalizar as diferentes curvas de normalidade da juventude. Sob a moral da Igreja, sob as regras da lei e sob a vigilncia da polcia,

53 ocorre um processo de legitimao do sujeito jovem. Um movimento que transcorre desde a descoberta daqueles considerados jovens desviantes (caso), passando pelo alarme de que existe uma populao criminosa juvenil (risco), chegando s estatsticas que comprovem os altos ndices de criminalidade entre os jovens (perigo), at o estabelecimento de uma juventude que est fadada ao caos (crise). Esse processo aponta os caminhos para que o poder intervenha sobre essa populao, sobre a vida em si. Nas palavras de Foucault (Foucault, 2005, pp.297-298), esse poder uma tecnologia que visa portanto no o treinamento individual, mas, pelo equilbrio global, algo como uma homeostase: a segurana do conjunto em relao aos seus perigos internos. (...) Uma tecnologia que mesmo, em ambos os casos, tecnologia do corpo, mas, num caso, trata-se de uma tecnologia em que o corpo individualizado como organismo dotado de capacidades e, no outro, de uma tecnologia em que os corpos so recolocados nos processos biolgicos de conjunto. (...) Temos, pois, duas sries: a srie corpo organismo disciplina instituies; e a srie populao processos biolgicos mecanismos regulamentadores Estado. Se at agora ficou claro o que disse, compreende-se a governamentalidade como um processo de governar condutas, tanto o de si mesmo como de outros, possibilitado pelo surgimento do biopoder, sendo o biopoder a juno que ocorre das tecnologias disciplinares e biopolticas. Nas palavras de Sibilia (2002, p.163), esse poder fundamental para o desenvolvimento do capitalismo, cujo objetivo produzir foras, faz-las crescer, orden-las e canaliz-las, em vez de barr-las ou destru-las. O biopoder ser aplicado no homem enquanto ser vivo, revelando uma preocupao relacionada espcie humana e populao, o que passa a vigorar como problema poltico. Em prol da proteo e segurana dessa massa populacional, o Estado deixa a

54 vida humana exposta, investindo nela. Como Foucault (1988) nos fala, esse um poder que se exerce no inverso daquele manifestado pelo soberano que, ao decretar a morte dos sditos, tambm exercia controle sobre a vida, mas no sentido de que se causava a morte e se deixava viver. O biopoder aparece para gerir a vida, fazendo viver e deixando morrer aqueles que pem em risco a consagrao do futuro da espcie, o continuum biolgico e a assuno da vida. Portanto, vai se permitindo estabelecer um conjunto de prticas que se utilizam da lgica do evolucionismo, de que ou sobrevive o mais forte, ou se fortalecem os mais fracos: um direito que vem intervir para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficincias (Foucault,