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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Felipe dos Santos Durante Direito Natural e Direitos Fundamentais: A Atualidade de Schopenhauer para o Debate Acerca dos Direitos Humanos Campinas 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Felipe dos Santos Durante

Direito Natural e Direitos Fundamentais: A Atualidade de

Schopenhauer para o Debate Acerca dos Direitos Humanos

Campinas

2017

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Ficha Catalográfica

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 18 de outubro

de 2017, considerou o candidato Felipe dos Santos Durante aprovado.

Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Junior

Profa. Dra. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola

Prof. Dr. Vilmar Debona

Prof. Dr. Leandro Pinheiro Chevitarese

Prof. Dr. Flamarion Caldeira Ramos

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica do aluno.

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Al nonno Giuseppe, il mio esempio di brava persona

A nonna Sinaida che mi ha insegnato le prime parole in italiano e mi cucinava la pasta

À vó Bel, que sempre fazia rindo o que eu pedia a ela chorando

In memoriam

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Agradecimentos É findando um recorte de tempo burocrático que envolveu o

desenvolvimento desse trabalho. Um período que formalmente começou em março de

2012, com a matrícula no curso 74 – Doutorado em Filosofia na Universidade Estadual

de Campinas (UNICAMP), mas que teve início real em 2007, com minha primeira

conversa sobre a possibilidade de pesquisar a filosofia schopenhaueriana com meu

orientador, o Professor Oswaldo Giacoia Junior, e início afetivo em 2003 quando decidi

que iria cursar filosofia, embora tenha ingressado no curso apenas em 2005. Desde

então, foram duas bolsas de iniciação científica (PIBIC/CNPq), uma bolsa de mestrado

(FAPESP), uma bolsa de doutorado (FAPESP), duas bolsas de pesquisa no exterior

(BEPE/FAPESP), 57 apresentações em eventos, 5 eventos organizados, 4 capítulos de

livros, 11 artigos publicados (contando publicações em anais de eventos), o estudo de

várias línguas, 3 países, 4 Estados, 5 cidades, 9 mudanças de casa, e muitas pessoas

fantásticas que participaram disso tudo ou de parte disso tudo. Algumas delas,

infelizmente, não poderão partilhar esse momento comigo.

Mais do que agradecer, devo tudo o que sou e que conquistei aos meus pais,

José Francisco e Sandra Esmeralda – dos quais, segundo Schopenhauer, herdei o caráter

e a inteligência. Ao meu irmão, Marcelo, pelas brigas e pela amizade. Ao Faísca,

companheiro canino de longa data, que infelizmente nos deixou durante o período da

tese. Espero poder retribuir de forma responsável à sociedade o privilégio que vocês me

possibilitaram usufruir.

Ao professor e amigo Oswaldo Giacoia Junior, pela orientação precisa, pela

atenção, e por caminhar junto comigo desde meus primeiros passos na graduação,

sempre com palavras de incentivo e com muita paciência (a palavra certa é realmente

paciência). Eu não sei como agradecer pela ajuda e pelo privilégio de tê-lo como amigo

e interlocutor. Aos amigos do CriM (Grupo Critica e Modernidade); à professora

Regina Célia Silva, que ao me ensinar a língua italiana ajudou-me a conhecer mais de

mim mesmo; ao Erik Petschelies, que, além da amizade, ao me ensinar a língua alemã,

ajudou-me no contato com os textos originais de Schopenhauer e a encarar o desafio de

morar naquele país; ao professor Flamarion Caldeira Ramos, pelas discussões, textos

cedidos, e por participar das minhas bancas de qualificação e defesa do mestrado e por

ter aceitado compor à banca de defesa do doutorado; à professora Yara Frateschi, pelas

indicações no exame de qualificação do mestrado, que me foram úteis durante todo o

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doutoramento – e ela provavelmente não sabe, mas não desisti do curso durante a

graduação por uma conversa que tivemos na monitoria da disciplina de redação

filosófica; ao professor e amigo Angelo Marinucci pela amizade, pelas discussões,

debates, bandejões e pelos apontamentos feitos por ocasião do exame de qualificação.

Ao amigo e professor Wander de Paula pela leitura e sugestões no exame de

qualificação.

Aos membros de minha banca de doutoramento, que me acompanharam ao

longo de minha trajetória e puderam observar e participar do desenvolvimento desse

trabalho, com críticas e sugestões, ao longo de vários anos. É uma honra que esse ciclo

de trabalho possa ser encerrado com a presença de vocês: professora Maria Lucia

Cacciola, Flamarion (mais uma vez), Leandro Chevitarese, Vilmar Debona, Kleverton

Bacellar.

Aos amigos que fiz nos eventos sobre Schopenhauer: conversar e debater

com vocês influenciou decisivamente os rumos dessa pesquisa. A nossa caminhada lado

a lado na pesquisa Schopenhauer tem quase dez anos, e muitos desses laços

transpuseram a vida acadêmica. Agradeço, em especial, Eduardo R. Fonseca, Felipe

Cardoso, Flora Bezerra, Gleisy Picoli, Guilherme Germer, Iasmin Martins, Jair Barboza,

Jarlee Salviano, Jorge Prado, Leo Staudt, Luan Corrêa, Lucas Lazarini, Márcio

Benchimol, Maria Lucia Cacciola, Roberto Barros, Selma Bassoli, Sidnei de Oliveira,

Vinícius de Castro Soares.

Aos amigos que cresceram comigo, que me apoiaram na época em que

prestei vestibular, durante a graduação, que me deram apoio durante o mestrado, e que

me dão apoio até hoje. São muitos, mas eles sabem exatamente da importância que

possuem em minha vida. Alguns eu não posso me furtar de mencionar: amigos do bairro

onde cresci, Pirituba, do Portal dos Bandeirantes, do Abravanel, Brunö Zanardo, Diego

Bertola, Fábio Hosoi PX, Fernanda Bastos, Isabelle Oliveira, Rafael Bertola.

Aos amigos que fiz por conta da UNICAMP, das repúblicas em que morei,

do curso de filosofia, das conversas, dos cafés, das inquietações, do bandejão nosso de

cada dia: Adriane Bagdonas, Adriano Godoy, Adriano Januário, Amanda Inocêncio,

Amanda Monteiro, Ana Carolina Verdicchio, Bárbara Luísa Pola, Bia Davanço, Brunela

Succi, Caio Pedrosa, Carlos Aloísio Garcia Netto, Carlos Guilherme, Chiara Cuatto,

Cláudio Marcelo, Denise Monzani, Eugênio Gonçalves, Fabrício Cavalcante, Felipe

Ferrari, Fernando Bee, Flávia Ginzel, Fredy Frigieri, Guilherme Andriguetti, Guilherme

Christol, João Batista Bittencourt, Luiz Gustavo ‘Kconde’, Marcela Moretto, Maria

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Érbia, Mariana Pacheco Galgaro, Mariana Teixeira, Mariana ‘Nariz’, Nathália de Ávila,

Otavio Carneiro, Paulo Eduardo Bodziak, Paulo Yama, Rafael Café, Rafaela Jorge,

Raphael Concli, Raul Mariano Cardoso, Rodrigo Rabelo, Rubens Pássaro, Vinícius

Andrade, Wagner Richter, Willian Pereira.

Aos funcionários da universidade, em especial os que fazem o nosso IFCH

funcionar: Bene, Daniela, Devison, Fábio, Maria Cida, Maria Rita, Regina, Sônia, Su,

Terezinha e ao grande Benetti.

Agradeço aos amigos e amigas da Itália, que me acolheram de forma tão

calorosa e radical no ano de 2014. Leandro Sardeiro, Julia Sampaio, Alexandre “Titio”:

obrigado por me receberem, ajudarem, e também por cuidarem de mim. A maioria deles

entende e fala bem a língua portuguesa, mas eu gostaria que todos pudessem entender a

pequena mensagem de gratidão: ringrazio il Professore Domenico Fazio, che mi ha fatto

l’onore di considerarmi un suo allievo e mi ha accolto a Lecce come se fossi un figlio.

Un pensiero di gratitudine va anche a Fabio Ciracì, Irene Gianni, la madre de Irene, la

suocera di Fabio, la fantastica signora Rita e a Alessandra Tinelli. Un ringraziamento va

anche a Maria Eugênia Verdaguer, Francesco Morleo e a Germana Rodrigues. Non

posso mancare di ringraziare i ricercatori, gli studenti e gli amici del Centro

interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del

Salento: Alessandro Novembre, Francesco Giordano, Maria Vitale, Marilena Passabì,

Mario Carparelli, Simona Apollonio. Voglio ricordare anche i miei baristi preferiti

Vitantonio e Linda. Un sentito ringraziamento, infine, alla mia famiglia che ho potuto

conoscere e ritrovare: Monia Negusini, zia Rosa, zio Alfredo, zia Dina, Rinuccia, Pippo,

Donatello, Sabrina, Francesco, Rachele, Gaetano, Ivan, David, zia Lina, Francesco,

Gianpiero, zio Giovannino, zia Nina, Mariel, Basilio e tutti i Durante e parenti che mi

hanno aiutato in questo periodo in Italia!

Às amigas e aos amigos do período de pesquisa em Mainz, meu muito

obrigado. Ao professor Matthias Koßler que me recebeu e me ajudou durante esse

período, meu sentimento mais sincero de agradecimento. Angie Athan, Greta Fertillo,

Roberta Santucci, Aina Flam Colovila, Alessandro Fascioli, Francesco Pugliaro, Giulio

Costantini, Antonio Campo, Marta Fiori, Erika Norcini, Carl Hauck, Diego Trevisan,

Jakub Sypianski. Aos amigos do curso de alemão: Rodrigo Pereira, Pedro Emmel, Jorge

Ivan, Elise Marie, Mariana Reys, Omar Eizalden, Daniel Muñoz, Jay Fischer. E

obrigado, Kisselberg!

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Na última etapa dessa caminhada, no final da redação do texto, cheguei em

Vitória para minha primeira experiência como professor universitário na Universidade

Federal do Espírito Santo (UFES). Cheguei sozinho, mas logo encontrei amigas e

amigos que tornaram o processo de mudança mais ameno: Jorge Luiz Viesenteiner,

Isabel Soares Viesenteiner, Michela Bordignon, José Renato Salatiel, Francineide

Martins Ferreira, Wander de Paula, e as também recém-chegadas ao departamento

Luiza Hilgert e Rizzia Rocha. Às minhas alunas e alunos, que me fizeram melhorar.

Os últimos anos desse processo todo não seriam possíveis sem a ajuda, a

paciência e o companheirismo da Thais Machado Dias, um exemplo de pessoa que tive

a sorte de ter como confidente, amiga e companheira. Por causa dela eu conheci a Pagu,

uma simpática rottweiler que me levava para passear quando eu estava sem condições

de continuar o trabalho. Obrigado a vocês duas por todo afeto e carinho.

Aos que por ventura omiti, peço desculpas. Mas, sem cada um de vocês

todas essas páginas teriam sido impossíveis de serem escritas. Foi com vocês que dividi

minhas dificuldades, frustrações, ansiedades e angústias (e haja frustração, ansiedade e

angústia!), e com vocês que eu comemorei cada um dos meus passos durante esses

longos anos de formação. Vocês me ajudaram a buscar paixão para conceber novas

ideias, a entender que o pior sempre seria menos que o insuportável, e a ser mais. A

cada café, a cada conversa, a cada risada ou desespero compartilhado, e a cada

ansiedade discutida. Agradeço a todos vocês que me ajudaram a manter o foco durante

esse tempo difícil, porém enriquecedor e de superação que foi o doutorado.

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

(FAPESP) pelo financiamento que tornou possível a realização desse projeto (Processo

Fapesp: 2011/23291-5), as viagens para dois centros de excelência no exterior para que

eu pudesse debater e aprender com os grandes nomes da pesquisa Schopenhauer

mundial, através das Bolsas de Estágio e Pesquisa no Exterior (BEPE - Processo

Fapesp: 2013/20268-8 Itália; Processo Fapesp: 2016/00223-8 Alemanha), a aquisição de

livros clássicos e dos últimos lançamentos para a biblioteca de nossa Universidade –

fatores decisivos para qualidade da minha pesquisa e que, no caso dos livros, certamente

serão muito úteis para as futuras pesquisas sobre Schopenhauer na UNICAMP –, e a

minha dedicação integral à pesquisa.

A todos que me potencializaram com seus afetos positivos, o meu muito

obrigado.

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Das Herz bleibt ungebessert, aber der Kopf wird noch aufgehellt

[O coração permanece incorrigível, mas a cabeça ainda pode ser esclarecida]

(Paródia de frase de Arthur Schopenhauer)

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Resumo O objetivo geral desta pesquisa é formular a questão da possível atualidade

do autor de O Mundo como Vontade e Representação, Arthur Schopenhauer (1788-

1860), no campo da moral, da ética, da política e do direito, sobretudo no que se refere a

uma questão específica que parece constituir a imbricação desses quatro campos, a

saber, a questão dos direitos humanos, verificando a extensão e o impacto dessa

atualidade.

Este esforço compreende quatro etapas: (i) exegese dos textos

schopenhauerianos, sobretudo daqueles que tratam de sua filosofia prática; (ii) procurar

nos manuscritos póstumos de Schopenhauer anotações que serviram como base para

formulação de sua ética, e, assim, buscar a superação de possíveis lacunas expositivas

do filósofo; (iii) exposição de possibilidades hermenêuticas atuais, as quais

possibilitariam o processo de atualização da filosofia schopenhaueriana; (iv)

contextualização de questões referentes aos direitos humanos que se relacionam com os

objetivos de nossa tese; e (v) avaliar a inserção, a extensão e o impacto de

Schopenhauer nessas disputas.

Espera-se, ao desenvolver as etapas supracitadas, explicitar a relação entre

moral, ética, direito e política na filosofia schopenhaueriana, expor a atualidade do

filósofo da Vontade no debate contemporâneo acerca dos direitos humanos,

evidenciando as questões relevantes que ele traz para a discussão, bem como as razões

pelas quais outras questões, nele presentes, não demonstram relevância pronunciada.

Tal percurso permitirá o melhor entendimento e exposição da importância de

Schopenhauer nos debates contemporâneos de filosofia política e de filosofia do direito.

Palavras-chave: Schopenhauer, Arthur; Moral; Ética; Direito; Direito Natural; Estado;

Política; Direitos Humanos;

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Abstract The general objective of this research is to formulate the question of the

possible current relevance of The World as Will and Representation’s author, Arthur

Schopenhauer (1788-1860), in morals, ethics, politics and law, especially in regard to a

particular issue that seems to be the imbrication of these four subjects, namely the issue

of human rights, verifying the extension and impacts of this author’s contemporary

relevance for this theme.

This effort comprises four stages: (i) exegesis of Schopenhauer's texts,

especially those about his practical philosophy, (ii) investigating through

Schopenhauer's manuscripts in order to find remains of his notes that were the basis for

his ethics formulation, and therefore enabling explanations for possible gaps in

Schopenhauer’s argument (iii) to expose the current hermeneutical possibilities which

would make possible the update process of Schopenhauer’s philosophy; (iv) to

contextualize some human rights issues related to the aims of our thesis; and (v)

evaluating the extent and impact of Schopenhauer in these disputes.

When developing the foregoing stages, it is expected to explain the

relationship between morality, ethics, rights and politics in Schopenhauer’s philosophy,

and to introduce his current thought to the contemporary debate on human rights. We

aim to highlight all of the relevant issues that he brings to the discussion as well as the

reasons why other issues there present do not show pronounced relevance. Such journey

will allow a better understanding and exposition of the importance of Schopenhauer in

contemporary debates on political philosophy and philosophy of law.

Keywords: Schopenhauer, Arthur; Moral; Ethics; Right; Natural Rights; State; Politics;

Human Rights;

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Zusammenfassung Das Hauptziel dieser Forschung ist die Fragestellung über die mögliche

Aktualität des Autors des Werkes Die Welt als Wille und Vorstellung, Arthur

Schopenhauer (1788-1860), in den Bereichen der Moral, Ethik, Politik und Rechtes zu

konzipieren, hauptsächlich in Bezug zu einer bestimmten Angelegenheit, in der diese

vier Bereiche scheinbar verflechtet sind, nämlich die Menschenrechte.

Dieser Einsatz umfasst vier Etappen: (i) Die Exegese der

Schopenhauer'schen Schriften, insbesondere derjenigen, die von seiner praktischen

Philosophie handeln. (ii) Die Suche nach Anmerkungen in Schopenhauers

handschriftlichem Nachlass, die als Ausgangspunkt für die Formulierung seiner Ethik

gedient haben können, und dadurch die Überwindung von möglichen Erklärungslücken

in dessen Philosophie. (iii) Die Darstellung von aktuellen hermeneutischen

Möglichkeiten, die den Aktualisierungsprozess der Schopenhauer'schen Philosophie

ermöglichen würden. (iv) Die Kontextualisierung der Fragestellungen, die sich auf die

Menschenrechte beziehen und somit auf die Ziele dieser Dissertation. (v) Die

Überprüfung der Einsetzung, Ausbreitung und Auswirkung Schopenhauers in diesen

Debatten.

Es wird gehofft, indem die oben beschriebenen Etappen ausgebaut werden,

die Beziehung zwischen Moral, Ethik, Recht und Politik in der Schopenhauer'schen

Philosophie aufzuklären, die Aktualität des Philosophen der Wille in der Debatte um

Menschenrechte darzustellen, während bedeutsame Fragestellungen zur Diskussion

aufgezeigt werden sollen, sowie die Gründe, warum andere Fragestellungen nicht

dieselbe Relevanz erreichten. Dieser Weg soll zu einem besseren Verständnis und zur

Darstellung der Wichtigkeit Schopenhauers in den gegenwärtigen Debatten der

politischen Philosophie und der Rechtsphilosophie führen.

Stichwörter: Schopenhauer, Arthur; Moral; Ethik; Recht; Naturrecht; Staat; Politik;

Menschenrechte;

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Lista de Abreviaturas e Siglas

Obras de Schopenhauer

ASV: Aphorismen zur Lebensweisheit. (Aforismos para Sabedoria de Vida)1

Briefwechsel: Correspondência de Arthur Schopenhauer

E: Die beiden Grundprobleme der Ethik (Os dois Problemas Fundamentais da Ética).

HN I: Der handschriftliche Nachlass 1804-1818 (Manuscritos de Juventude 1804-

1818).

HN III: Berliner Manuskripte 1818-1830 (Manuscritos de Berlim 1818-1830)

HN IV-I: Die Manuskriptbücher der Jahre 1830-1852 (Manuscritos dos anos 1830-

1852, tomo I).

HN, Metafísica dos Costumes: Metaphysik der Sitten (Preleções de Berlim sobre a

Ética).

MVR: Die Welt als Wille und Vorstellung – Erster Band (O Mundo como Vontade e

Representação).

MVR II: Die Welt als Wille und Vorstellung – Zweiter Band (O Mundo como Vontade

e Representação – Segundo Tomo [Complementos]).

PP: Parerga und Paralipomena (Parerga e Paralipomena).

QR: Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde (Sobre a

Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente).

SFM: Preisschrift über die Grundlage der Moral (Sobre o Fundamento da Moral).

SLV: Preisschrift über die Freiheit des Willens (Sobre a Liberdade da vontade).

SVN: Über den Willen in der Natur. (Sobre a Vontade na Natureza).

Obras de Outros Autores

Hugo Grotius:

DPG: De iure belli ac pacis (Direito da Guerra e da Paz).

Thomas Hobbes:

De Cive: De Cive (Do Cidadão).

Leviatã: Leviathan, or the Matter, Forme, and Power of a Commonwealth,

Ecclesiastical and Civil (Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e

civil).

1 Apesar de ser um capítulo do primeiro tomo dos PP, recebe uma abreviação própria.

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Rousseau:

Segundo Discurso: Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les

hommes (Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os

Homens).

Do Contrato Social: Du Contrat Social (Do Contrato Social).

Immanuel Kant:

KrV: Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura).

KpV: Kritik der praktischen Vernunft (Crítica da Razão Prática).

MdS: Die Metaphysik der Sitten (Metafísica dos Costumes).

GMS: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentação da Metafísica dos

Costumes).

As referências bibliográficas completas encontram-se ao final do texto.

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Sumário

1 Introdução ............................................................................................................. 18

2 A Reconstrução das Doutrinas do Direito e do Estado ..................................... 28

2.1. A Dimensão Ética do Sistema: Metafísica dos Costumes e Ética .................... 28

2.1.1. Significado Ético do Sistema Filosófico Schopenhaueriano ..................... 28

2.1.2. A Teoria da Ação ou Sobre a Liberdade da Vontade ................................ 34

2.2. A Doutrina do Direito (Rechtslehre) de Arthur Schopenhauer ........................ 46

2.2.1. A Doutrina do Direito (Rechtslehre) ou Justiça Temporal (zeitliche Gerechtigkeit) ... 46

2.2.2. Egoísmo (Egoismus) como Origem da Guerra de Todos Contra Todos ... 47

2.2.3. A Relação do Egoísmo com a Injustiça e o Injusto ................................... 51

2.2.4. A Prática da Injustiça ................................................................................ 61

2.2.5. O Subjugar a Vontade de Outro Indivíduo: Pobreza, Proletariado,

Escravidão e Servidão ............................................................................................ 64

2.2.6. Dedução e Explanação da Justiça e do Justo ............................................. 70

2.2.7. A Consciência Moral (Gewissen) .............................................................. 72

2.2.8. Direito Natural é um Direito Moral ........................................................... 74

2.2.9. Direito Moral à Mentira ............................................................................ 78

2.2.10. Direito Moral à Propriedade ...................................................................... 79

2.2.11. A Origem e Finalidade do Estado (Staat): O Papel da Recta Ratio (Reta Razão) . 83

2.2.12. Contrato Social como forma de Legitimação do Estado ........................... 91

2.2.13. Os limites e a Extensão da Moralidade no que Concerne à Fundação do

Estado e às suas Funções. ....................................................................................... 94

2.2.14. Direito Internacional, Estado de Direito, e Direito de Resistência ........... 96

2.2.15. As Formas de Governo e a Arte de Governar ........................................... 99

2.2.16. A Transferência da Doutrina Moral do Direito, por Inversão, para a Legislação 107

2.2.17. Direito Penal (Strafrecht) ........................................................................ 111

2.2.18. Um Aparente Paradoxo: A Questão da Imputabilidade .......................... 115

2.2.19. Considerações Sobre a Justiça Temporal (zeitliche Gerechtigkeit) e seus Limites ..... 116

2.2.20. Um tipo de Justiça Infalível: a Justiça Eterna (ewige Gerechtigkeit) ..... 119

2.3. Situando as Doutrinas do Direito e do Estado: o Utilitarismo, Kant e o Jovem Schopenhauer 124

2.3.1. Seria Moral o Fundamento das Doutrinas Schopenhauerianas do Direito e

do Estado?............................................................................................................. 124

2.3.2. As Objeções Feitas por Arthur Schopenhauer à Doutrina Kantiana do Direito ... 128

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2.3.3. As formulações das doutrinas do Estado e do Direito elaboradas pelo jovem

Schopenhauer: extensão, limites e mudanças em relação à publicação de sua obra principal.. 139

2.4. Compaixão: Da Justiça Voluntária ao Rompimento com a Ética ................... 147

2.4.1. A Compaixão (Mitleid) como Origem das Virtudes Cardeais ................ 147

2.4.2. As Virtudes Cardeais: A Justiça Voluntária (freiwillige Gerechtigkeit) e a

Caridade (Menschenliebe) .................................................................................... 151

2.4.3. Ascese (Askesis): A Negação da Vontade para Vida .............................. 154

3 Schopenhauer: Leitores e Leituras ................................................................... 157

3.1. A Escola de Schopenhauer – A contribuição dos Estudos Italianos ................. 158

3.2. Rudolf Malter e o pessimismo crítico schopenhaueriano ............................... 167

3.3. Ludger Lütkehaus: Esquerda e Direita na Interpretação da Filosofia Schopenhaueriana .. 172

3.4. Schopenhauer no Brasil: a esquerda schopenhaueriana ganha força .............. 179

3.5. Permitir-nos-emos ser heréticos em nossa interpretação ................................ 188

3.6. O Engano de Ernst Tugendhat ........................................................................ 190

4 Direitos Humanos: entre o Problema de sua Fundamentação e sua Efetividade ..... 198

4.1. O Direito Natural ou Jusnaturalismo .............................................................. 199

4.2. O Problema da Fundamentação dos Direitos Naturais ................................... 204

4.3. As Cartas de Direitos como Reverberação das Teorias Jusnaturalistas: a

Passagem do Plano Teórico para o Plano Prático...................................................... 211

4.3.1. A Declaração de Direitos (Bill of Rights) Inglesa de 1689 ..................... 213

4.3.2. As Cartas de Direitos Estadunidenses ..................................................... 214

4.3.3. As Cartas de Direito Resultantes do Processo Revolucionário Francês . 218

4.4. As Principais Mudanças Político-Sociais Engendradas pelos Movimentos

Revolucionários estadunidense e francês .................................................................. 228

4.5. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948................................ 234

4.6. Os Direitos Humanos e suas Gerações ........................................................... 243

5 Considerações Finais: Atualidades de Schopenhauer ..................................... 249

5.1. Direitos Humanos de primeira geração........................................................... 251

5.2. Direitos Humanos de segunda geração ........................................................... 253

5.3. Direitos Humanos de terceira geração ............................................................ 255

5.4. A Pedagogia do Egoísmo como Caminho para Redução de Danos: a

Possibilidade do ‘Menos Pior dos Mundos Possíveis’ .............................................. 261

6 Referências Bibliográficas ................................................................................. 263

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18

1 Introdução

A questão do que é o justo e o injusto, tal como os fundamentos do direito –

e até mesmo o que é o direito – são indagações que permeiam toda a história da

filosofia. Questões correlatas, igualmente filosóficas e espinhosas, surgem quando

inicia-se a refletir sobre essa temática: “qual a origem da sociabilidade entre os seres

humanos?”, “qual a origem dos direitos?”, “qual a finalidade do direito?”, “que deveria

ser o direito?”, “qual a diferença entre o direito e a moral?”, “por que a lei obriga?”,

“qual o fundamento do direito de propriedade?”, “qual o fundamento do direito de

punir?”, “qual a origem do Estado?”, “qual a função do Estado?”, “qual a melhor forma

de organização do Estado?”, “em que se funda o direito positivo?”, “sob quais

condições é legítima uma autoridade jurídica e política?”, e “é legítimo que os homens

vivam em relações jurídicas e políticas, i.e., sob regras coercitivas?”.

Muitos filósofos se empenharam em responder a tais indagações; mas qual

seria a resposta de um filósofo que constrói suas doutrinas do direito e do Estado

inseridas em uma ética descritiva, e que defende a primazia da vontade sobre a razão?

Esses dois fatores já seriam suficientemente idiossincráticos para tornar o estudo da

doutrina do direito de Arthur Schopenhauer (1788-1860) pertinente.1 Contudo, deve-se

1 Adotou-se a edição das obras completas em alemão organizadas por Paul Deussen: SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauers sämtliche Werke. Hrsg. von Paul Deussen. Munique: R. Piper, 1911-1942. A tradução adotada de Die Welt als Wille und Vorstellung para uma leitura cotejada com a obra em idioma alemão foi feita por Jair Lopes Barboza: O mundo como vontade e como representação, 1º Tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. Doravante abreviado como MVR, seguido da indicação de parágrafo e página, e do tomo e da paginação em referência à edição alemã. Doravante, faz-se referência ao segundo tomo d’O Mundo como Vontade e Representação por MVR II, seguida da indicação de capítulo e de página na edição alemã. Quando necessidade de citação de MVR II, a tradução para o português será de minha autoria, a partir do idioma alemão, salvo indicação contrária. Para a obra Über die Grundlage der Moral adotou-se a tradução brasileira Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lucia Mello Oliveira Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Doravante abreviado por SFM, seguido de capítulo, de página e do tomo e da paginação em referência à edição alemã. Para leitura da obra Parerga und Paralipomena adotou-se as traduções brasileiras do professor Flamarion Caldeira Ramos: Sobre a filosofia e seu método. São Paulo: Hedra, 2010 (capítulos I-VII) e Sobre a ética. São Paulo: Hedra, 2012 (capítulos VIII-XV). Doravante abreviada por PP, seguido de parágrafo, página, e do tomo e da paginação em referência à edição alemã. Para a leitura cotejada da tese de doutoramento de Schopenhauer, Ueber die vierfache Wurzel der Satzes vom zureichenden Grunde, foi utilizada a tradução espanhola De la cuádruple raíz del principio de razón suficiente. Tradução de Leopoldo-Eulogio Palacios. Madrid: Gredos, 1981. (Biblioteca Hispánica de Filosofía – Clásicos de La Filosofía 1). Doravante abreviada por QR, seguida de parágrafo, página, e do tomo e da paginação em referência à edição alemã.

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ressaltar que o pensador em questão é considerado por grande parte da tradição de

comentadores como um autor pessimista. Considerado desse modo, nossa esfera de

questões a respeito das doutrinas do direito e do Estado de Schopenhauer se expande,

encampando outros questionamentos relevantes: como são construídas uma doutrina do

direito e uma doutrina política em um sistema filosófico que afirma ser este o pior dos

mundos possíveis, um sistema que afirma que este mundo é o que ele não deveria ser?

Como é possível pensar a imputabilidade e a responsabilidade, conceitos fundamentais

do direito e que pressupõem o livre-arbítrio, i.e., a liberdade de poder escolher, em um

autor considerado determinista? Como essa doutrina se relaciona com o restante de seu

sistema filosófico e com a tradição? Quais os principais conceitos constituintes de sua

teoria da justiça? Em suma, a quais artifícios teóricos o filósofo da vontade precisa

recorrer para que seja possível formular e constituir suas doutrinas do direito e do

Estado?

Para tanto, será necessário explicitar os postulados éticos do sistema

schopenhaueriano, trazendo à luz sua metafísica dos costumes, para, então, analisar os

princípios jurídicos derivados de seu sistema filosófico e, assim, delinear o papel da

reflexão política na obra do filósofo da vontade, i.e., entender os problemas da esfera

política, a proposição de meios que possibilitem a resolução deles, e apresentar o lugar

sistemático de tal reflexão no sistema filosófico do autor.

Será enfrentada a difícil tarefa de buscar em toda a obra de Schopenhauer os

capítulos e excertos que versam sobre a sua doutrina do direito, para que a exposição

Para leitura dos Manuscritos Póstumos utilizamos a edição clássica SCHOPENHAUER, A. Der handschriftliche Nachlaß in fünf Bänden. Vollständige Ausgabe in sechs Teilbänden. Herausgegeben von Arthur Hübscher. Band 1: Frühe Manuskripte (1804 - 1818). - Band 2: Kritische Auseinandersetzungen (1809 - 1818). - Band 3: Berliner Manuskripte (1818 - 1830). - Band 4, I: Die Manuskriptbücher der Jahre 1830 - 1852. - Band 4, II: Letzte Manuskripte. Gracians Handorakel. - Band 5: Randschriften zu Büchern. - 5 Bände in 6 Bänden (vollständig). (= dtv klassik). München, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1985. Doravante abreviado como HN, seguido de indicação de Tomo, fragmento/capítulo e página. Quando necessidade de citação dos HN, a tradução para o português será de minha autoria, a partir do idioma alemão, salvo indicação contrária. Para a leitura cotejada das notas de aula de 1820 (Vorlesungen) sobre a ética (Arthur Schopenhauers handschriftlicher Nachlaß. Philosophische Vorlesungen – Metaphysik der Sitten. In: SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauers sämtliche Werke. Hrsg. von Paul Deussen. Munique: R. Piper, 1911-1942. v.X, p.367-584), adotou-se a tradução espanhola feita por Roberto Rodríguez Aramayo: Metafísica de las Costumbres. Introdução, tradução e notas de Roberto Rodríguez Aramayo. Madri: Editorial Trotta SA, 2001. (Coleção Clássicos de la Cultura). Doravante abreviado como HN, Metafísica dos Costumes, seguido de indicação de capítulo, página e da paginação em referência à numeração dos manuscritos originais. Após cada citação, serão apresentados em nota de rodapé os excertos utilizados em seu idioma original.

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mais completa possível dessa questão seja feita. Isso significa tentar coadunar, fazendo

confluir a exposição sintética a priori da obra principal do autor, com as exposições

analítica e sintética a posteriori de Sobre a Liberdade da Vontade (SLV) e Sobre o

Fundamento da Moral (SFM),2 e a exposição pragmática de Parerga e Paralipomena

(PP), o que, por si só, já é um grande desafio.

A análise aqui empreendida será focada em uma das acepções assumidas

pelo conceito de justiça na obra schopenhaueriana: a justiça temporal (zeitliche

Gerechtigkeit), que tem por sede o Estado (Staat) e com a qual a doutrina do direito

(Rechtslehre) está diretamente relacionada. Questões correlatas, como a teoria da ação,

as justiças voluntária e eterna (die freiwilligen und ewigen Gerechtigkeiten), a

compaixão (Mitleid), e a ascese (Askese) serão introduzidas e explicadas na medida em

que auxiliam na resolução das questões propostas.

Para o exercício de entender a leitura que o filósofo faz da tradição foram

selecionadas algumas fontes. No que tange à fundamentação de seu sistema dos

princípios do direito, nota-se a influência do mesmo tripé teórico já conhecido pelos

leitores de Schopenhauer: (i) a filosofia oriental, quer quando Schopenhauer cita como

exemplo as Leis de Manu – um código legislativo sânscrito contido nos escritos

bramânicos –, quer quando invoca o mito da transmigração das almas para explicar de

modo mais claro e ilustrativo o conceito de justiça eterna; (ii) a filosofia kantiana, a qual

é tomada como interlocutora; e (iii) Platão, ao ter trechos de seus diálogos – tais como

Górgias, Leis, Protágoras, e a República – utilizados como referência.

Mas, como esperado, o leque de influências enunciadas e cifradas é bem

mais amplo, e não se restringe apenas às três fontes citadas. Notadamente, ao

fundamentar sua doutrina do direito e abordar o tema da política, as influências mais

diretas de Schopenhauer, além de Kant e de Platão, são Thomas Hobbes, Samuel von

2 No primeiro prefácio à obra Os Dois Problemas Fundamentais da Ética se lê: “São propriamente explicações especiais de duas doutrinas, as quais em seus traços principais são encontradas no quarto livro de O Mundo como Vontade e Representação, mas enquanto naquela obra são deduzidas a partir da minha metafísica, ou seja, de modo sintético e a priori; nesta, pelo contrário, onde à questão não foi permitido nenhum pressuposto, fundamenta-se tais explicações de forma analítica e a posteriori: por isso o que foi ali o primeiro, aqui será o último.” E, III 433. No original alemão: „Es sind eigentlich specielle Ausführungen zweier Lehren, die sich, den Grundzügen nach, im vierten Buche der »Welt als Wille und Vorstellung« finden, dort aber aus meiner Metaphysik, also synthetisch und a priori abgeleitet wurden, hier hingegen, wo, der Sache nach, keine Voraussetzungen gestattet waren, analytisch und a posteriori begründet auftreten: daher was dort das Erste war, hier das Letzte ist.“

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Pufendorf, e Feuerbach.3 Como influências ocultas, com as quais Schopenhauer

estabelece um diálogo latente – seja de aprovação ou refutação – podem-se reconhecer,

por exemplo, Hugo Grotius e Jean-Jacques Rousseau.

Schopenhauer, ao formular sua teoria do direito, faz um acerto de contas

com certas teorias em voga, notadamente com esses autores que pertencem a um

determinado período da história da filosofia, denominado pelos historiadores da

filosofia por moderno. A história da filosofia moderna do direito confundiu-se em boa

medida com o jusnaturalismo moderno e com a teoria do contrato social.4 Como nosso

trabalho não se trata de uma investigação exaustiva e pormenorizada das fontes e de

cada autor do período em questão, examinando a especificidade de cada um deles com

vistas a assimilar todas as semelhanças e dessemelhanças de suas teorias a fim de fazer

a reconstituição mais completa possível,5 mas sim o de uma explicitação das principais

características desse período assimiladas pelo filósofo da vontade, foi necessário

delimitar um escopo de investigação mínimo – mas que pudesse evidenciar os aspectos

desejados.

Foram escolhidos quatro autores paradigmáticos do período moderno para

ilustrar nossa exposição. O primeiro deles foi Hugo Grotius (1583-1645),6 que é

3 Aqui Schopenhauer refere-se ao pai do afamado Ludwig Feuerbach (1804–1872), Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach (1775-1833), o qual figurou como grande jurista alemão, sendo o fundador da moderna doutrina do direito penal da Alemanha. Ficou muito conhecido por ter sido o tutor legal de Kaspar Hauser. Schopenhauer provavelmente se refere à obra Kritik des natürlichen Rechts als Propädeutik zu einer Wissenschaft der natürlichen Rechte, de 1796, e/ou à obra Lehrbuch des Gemeinen in Deutschland gültigen peinlichen Rechts, de 1812. 4 Por muitos séculos a disciplina de Filosofia do Direito foi designada por jus naturae ou jus naturale. Cf. BARRETO, V. Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006, Verbete Direito Natural, p.240. Doravante abreviado por Dicionário de Filosofia do Direito, seguido de indicação de verbete e página. 5 Para uma excelente introdução às várias especificidades das teorias contratuais, Cf. BOUCHER, D.; KELLY, P (Orgs.). The social contract from Hobbes to Rawls. London; New York, N.Y.: Routledge, 1994, e MORRIS, C.W. The social contract theorists: critical essays on Hobbes, Locke, and Rousseau. Organização de Christopher W Morris. Lanham, Md.: Rowman and Littlefield, 1999. 6 Hugo Grotius (também conhecido por Huig de Groot, Ugo Grozio, e Hugo Grocius, dependendo das variações linguísticas e da tradução adotada para o seu nome) é natural de Delft (Holanda). Nascido em uma época impregnada de valores humanistas, calvinistas e aristotélicos, foi educado no auge da influência do protestantismo e do aristotelismo (Cf. TUCK, R. Natural rights theories: their origin and development. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p.58.). Aos doze anos já era considerado um milagre intelectual, graduando-se em direito com quinze anos. Foi professor de retórica em Leiden, tradutor, poeta, historiador, e diplomata – trabalhando em diversos governos, como os governos da Holanda, e da Suécia. Suas principais obras são De iure belli ac pacis, De iure praedae, e De iure sumarim potestatum circa sacia.

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considerado por muitos o fundador da teoria moderna do direito internacional, e foi

quem instituiu uma nova forma de investigar as questões da justiça, em particular no

campo mencionado.7 Se Grotius foi o fundador da teoria moderna do direito

internacional, ou apenas um autor de transição do período clássico para o período

moderno, não é uma questão que compõe o nosso debate. O autor foi selecionado por

ter sido (i) o primeiro a formular em um grande sistema as questões relativas ao direito,

i.e., pode-se dizer que Grotius estabeleceu as categorias epistemológicas que foram

debatidas pelos autores do período em questão,8 e (ii) porque ele marca a transição da

forma pela qual se procedia para fundamentar a teoria do direito: ele abandona as

fundamentações cosmológicas – pautadas no ordenamento da natureza – e teológicas –

as quais recorrem à figura de um Deus para serem fundamentadas –, procedendo a partir

de uma fundamentação baseada na natureza do ser humano e que por esse motivo pode

ser denominada antropológica e laica.

O segundo autor escolhido, Thomas Hobbes,9 além de ser um dos expoentes

das tradições jusnaturalista moderna e contratualista, é citado nominalmente por

Para leitura cotejada com a obra De iure belli ac pacis adotou-se a seguinte edição brasileira: GROTIUS, H. Direito da guerra e da paz. Santa Catarina: Unijuí, 2004. 2 v. Doravante abreviado por DGP, seguido de indicação de livro, de capítulo, de seção, de parágrafo e da página na edição brasileira. 7 Esse é um ponto controverso. Guido Fassò e Haakonssen não concordam com essa asserção, enquanto Richard Tuck considera Grotius um dos autores mais originais de sua época. Cf. FASSÒ, G. Historia de la filosofia del derecho. Tradução de José F. Lorca Navarrete. Madri: Ediciones Pirámide S.A., 1979. v.2. p.74-77 e o prefácio de TUCK, R. Philosophy and government, 1572-1651. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. 8 “Apesar das modificações mais ou menos moduladas, em linhas gerais a escola do direito natural moderno permaneceu fiel às categorias epistemológicas definidas por Grotius”. GOYARD-FABRE, S. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.XXV. Doravante abreviado por Os Fundamentos da Ordem Jurídica, seguido de indicação de página. 9 Thomas Hobbes nasceu no ano de 1588, na aldeia de Westport, perto de Malmesbury, Inglaterra. Com a ajuda de um tio estudou em Oxford e, em 1608, tornou-se tutor na família Cavendish, com a qual manteve estreitas relações até o final de sua vida. Trabalhou para Francis Bacon, auxiliando-o na tradução latina de seus Ensaios. Faleceu em 1679, aos noventa e um anos, em Hardwick Hall. Dentre suas obras publicadas podem ser destacadas The Elements of Law (1640), De Cive (1642), De Corpore (1655), De Homine (1657), Leviathan or the Matter, Forme, Power of a Common−Wealth Ecclesiastical and Civil (1651), entre outras. Para a leitura da obra De Cive, adotou-se a edição latina HOBBES, T. De cive: the latin version entitled in the first edition elementorvm philosophiae sectio tertia de cive. A critical edition by Howard Warrender. In: The Clarendon edition of the philosophical works of Thomas Hobbes. Oxford: Oxford Univ., 1983. v.2. Para uma leitura cotejada com a obra latina adotou-se a tradução de Richard Tuck: On the citizen. Edited and translated by R. Tuck and M. Silverthorne: Cambridge University Press, 1998. Doravante abreviado como De Cive, seguido da indicação de página das edições em língua latina e inglesa. Quando houver a necessidade de citações, a tradução realizada será feita a partir da edição inglesa, em cotejamento com a edição latina.

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Schopenhauer no processo de formulação de sua doutrina do direito. As assimilações

teóricas realizadas pelo filósofo da vontade a partir dos textos hobbesianos são muito

claras, além de serem confessas. Esses são fatores de grande relevância, e os quais

credenciaram Hobbes a integrar a análise em questão.

O terceiro autor escolhido, Jean-Jacques Rousseau,10 escreve sobre a

piedade (pitié), conceito que encontra um importante correlato na filosofia

schopenhaueriana: o conceito de compaixão (Mitleid). Tal ocorrência, aliada ao fato de

sua teoria ser considerada pela maioria dos comentadores como antitética à teoria

hobbesiana, dá ensejo à questão de como e em qual medida o filósofo da vontade pôde

utilizar e assimilar fontes tão divergentes.

Para finalizar o nosso plantel, a busca por evidenciar os aspectos mais

relevantes assimilados por Schopenhauer, através dos autores selecionados, nos levou a

Para a leitura de Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, adotou-se a edição inglesa editada por C.B. Macpherson: HOBBES, T. Leviathan. Edited with an introduction by C.B. Macpherson. New York: Penguin, 1985. A tradução adotada de Leviathan para uma leitura cotejada com a obra em idioma inglês foi feita por João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva: Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civilSão Paulo: Abril Cultural, 1973. (col. Os Pensadores). Doravante abreviado como Leviatã, seguido da indicação de página das edições em língua inglesa, original entre colchetes, e língua portuguesa. 10 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), nascido na cidade-estado de Genebra, é conhecido como um dos mais importantes filósofos do século XVIII, tendo exercido grande influência intelectual no que ficou conhecido como uma das mais impactantes revoluções da história ocidental: a Revolução Francesa. Seu pensamento político foi fortemente influenciado pela leitura de autores como Tácito, Plutarco, Hugo Grotius e Samuel Von Pufendorf. Suas contribuições atingiram diversos ramos das ciências e das artes: escreveu verbetes para Encyclopédie de Denis Diderot e Jean Le Rond d’Alembert, e romances de grande sucesso, como a novela Julie, ou La Nouvelle Héloïse (Julie ou a Nova Heloísa, de 1761); no campo da composição criou um novo tipo de notação musical – embora essa tenha sido rejeitada pela Academia de Ciências; em 1749 venceu o concurso da Academia de Dijon com o Discours sur les sciences et les arts (Discurso Sobre a Ciência e as Artes), que ficou conhecido como primeiro discurso e lhe garantiu fama e projeção no meio intelectual europeu. Em 1754 escreveu o segundo discurso, Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes (Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens), e em 1762 publicou as obras Du Contrat Social (Do Contrato Social), e Émile, ou De l’éducation (Emílio, ou Da Educação). Adotou-se a edição das obras completas de Rousseau estabelecida por Raymond e Gagnebin: ROUSSEAU, J. Œuvres completes. Paris: Gallimard, 1964. v.III, reimpressão de 2003. Para a leitura cotejada com os textos em francês, adotaram-se as traduções brasileiras existentes na Coleção Os Pensadores: ROUSSEAU, J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural: 1973. (Coleção Os Pensadores). Doravante abreviado por Segundo Discurso, seguido de indicação de página na tradução brasileira e da página do original francês; e ROUSSEAU, J. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural: 1973. (Coleção Os Pensadores). Doravante abreviado por Do Contrato Social, seguido de indicação de página na tradução brasileira, e da página do original francês.

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Immanuel Kant.11 Schopenhauer formula sua doutrina do direito tomando a filosofia

kantiana como interlocutora, construindo sua teoria em diálogo direto com a kantiana

por meio de refutações a pontos específicos, como, por exemplo, a objeção à

fundamentação do direito de propriedade, a censura à fundamentação do direito de punir

e sua execução, e a oposição à fundamentação do Estado no imperativo categórico como

um dever moral.

Assim, a partir da leitura dos textos de Schopenhauer, de orientações do

próprio autor, e dos textos dos filósofos supramencionados, selecionaram-se as obras e

trechos dessas que foram considerados influentes e consentâneos com a análise

proposta. Dessa forma, a primeira parte dessa tese doutoral almeja perscrutar as

doutrinas do direito e da política de Arthur Schopenhauer, i.e., elucidar e compreender

sua fundamentação, sua formulação, o diálogo estabelecido com a tradição acima

delimitada – como Schopenhauer a lê –, as consequências engendradas por essas

doutrinas, e a inserção sistemática delas na filosofia schopenhaueriana.

Nosso terceiro capítulo serve como uma espécie de transição entre esses

primeiros objetivos enunciados acima e o que vem a constituir o objetivo da segunda

parte de nossa tese de doutoramento, a saber, formular a questão da possível atualidade

do autor d’O Mundo como Vontade e Representação no campo da moral, da ética, da

política e do direito, sobretudo no que se refere a uma questão específica que parece

constituir a imbricação desses quatro campos, a questão dos direitos humanos,

verificando a extensão e o impacto dessa atualidade.

11 Immanuel Kant (1724 - 1804) lecionou na Universidade de Königsberg, cidade na qual nasceu e da qual nunca saiu. É conhecido como um dos filósofos mais importantes e revolucionários da filosofia. Autor das três críticas – Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura), Kritik der praktischen Vernunft (Crítica da Razão Prática), e Kritik der Urtheilskraft (Crítica da Faculdade do Juízo) –, entre outras obras de grande envergadura, como Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentação da Metafísica dos Costumes), Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft (A Religião dentro dos Limites da Simples Razão), Die Metaphysik der Sitten (A Metafísica dos Costumes). Adotou-se a tradicional edição das obras completas em alemão de Kant organizadas pela Academia: KANT, I. Kants Werke: Akademie-Textausgabe Unveranderter photomechanischer Abdruck des Textes der von der Prenssischen Akademie der Wissenschaften 1902 begonnenen Ausgabe von Kantsgesammelten Schriften. Berlin: W. de Gruyter, 1968. Para leitura cotejada com o texto Die Metaphysik der Sitten da edição mencionada, escolhemos a tradução portuguesa Metafísica dos costumes. Tradução, apresentação e notas de José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005. Doravante abreviada por MdS, seguida de indicação página e numeração Becker. Para leitura cotejada com o texto Grundlegung zur Metaphysik der Sitten da edição mencionada, escolhemos a tradução portuguesa Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986. p. 59, IV 421. Doravante abreviado por Fundamentação da Metafísica dos Costumes, seguido de indicação de página e numeração Becker.

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Nele são apresentadas algumas possibilidades de interpretação da filosofia

schopenhaueriana e sua recepção ao longo da história da filosofia. Existem chaves

interpretativas que, para o nosso estudo, abrem possibilidades de desenvolvimento da

filosofia do autor que nos permitiria situá-lo em um debate contemporâneo sobre os

direitos humanos. A exposição é iniciada com uma pequena reconstrução do trabalho

empreendido pelo Centro Interdipartimentale di Ricerca su Arthur Schopenhauer e la

sua Scuola, presidido pelo professor Domenico Fazio e situado em Lecce, Itália, na

recuperação e sistematização da relação de Schopenhauer com seus seguidores e com

um certo tipo de recepção de sua filosofia; trata-se da forma pela qual a filosofia

schopenhaueriana foi interpretada e desenvolvida, da forma como ela serviu de

inspiração e influenciou outras autoras e autores, e, mais recentemente, como os estudos

sobre a filosofia de Schopenhauer passaram a ser organizados através da fundação das

Schopenhauer-Gesellschaften, sediadas em diversos países – como Brasil, Estados

Unidos, Índia, Itália, e Japão – e com a sua matriz em Frankfurt, na Alemanha.

Passa-se, então, à consideração da interpretação dada por Rudolf Malter a

filosofia schopenhaueriana e do conceito de pessimismo crítico. Malter é responsável

por um dos tipos de interpretação que mais logrou êxito sobre a filosofia

schopenhaueriana: a caracterização sistemática dela como uma soteriologia.12

Outra interpretação cara ao nosso estudo, que vem ganhando força nos

últimos anos no Brasil, é a proposta pelo professor Ludger Lütkehaus. Ela destoa da

comumente rigidez hermenêutica empregada na leitura do filósofo ao diferenciar dois

tipos de interpretação de Schopenhauer: aquela que já se consolidou como tradicional, a

qual é comumente identificada com o quietismo e a negação da vontade, chamada por

ele de “direita schopenhaueriana”, e aquela que privilegia a filosofia prática do filósofo

e inaugura novas searas a serem exploradas no que diz respeito à reflexão, interpretação,

e atualização do autor no campo da filosofia social, a qual o professor nomeia de

“esquerda schopenhaueriana”.

Em seguida, avaliamos a recepção da filosofia schopenhaueriana no Brasil

e, em especial, o debate produtivo entre o que poder-se-ia chamar de “esquerda

schopenhaueriana brasileira”, no qual a filosofia prática do autor e a sua eudemonologia

recebem especial atenção. Esse debate lança as bases e facilita uma certa inversão de 12 Cf. MALTER, R. Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens. Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman-Holzboog, 1991 e MALTER, R. Der Eine Gedanke: Hinführung zur Philosophie Arthur Schopenhauers. Darmstadt: Wiss. Buchges., 2010.

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perspectiva que possibilita uma melhor apreciação dos problemas que nos colocamos, e

a situar nossa tese, também ela, como pertencente à esquerda schopenhaueriana.

Esse percurso nos leva ao projeto de fundamentação ética de Ernst

Tugendhat, o qual avalia a questão dos direitos humanos como a questão ética mais

importante da atualidade. Tugendhat apresenta o problema e sua gravidade, mas acaba

por descartar a ética da compaixão de Schopenhauer, classificando-a como implausível

e como nem mesmo sendo uma moral. Apresentaremos as razões pelas quais a ética da

compaixão schopenhaueriana não se adequam aos propósitos de Tugendhat; tais razões

parecem ser acertadas, mas em referência à apreciação da questão de uma perspectiva

na qual a ética da compaixão schopenhaueriana não pode e não pretende se enquadrar.

Com Tugendhat introduzimos a questão dos direitos humanos e finalizamos o terceiro

capítulo e a transição da primeira parte da nossa tese para sua segunda parte, inaugurada

pelo quarto capítulo, o qual versa sobre a história e os dilemas referentes aos direitos

humanos.

A primeira questão a ser levantada acerca desse ponto é “o que são direitos

humanos fundamentais?”. Dessa primeira questão emergem outras tantas questões

igualmente complexas, tais como: “é possível fundamentá-los?”, “existe um

fundamento absoluto para eles?”, “essa fundamentação é racional, possui como pedra

angular um sentimento, ou é histórica?”, “é um tipo de direito homogêneo ou

heterogêneo – e quê isso significa?”, “como é possível legitimar tal tipo de direito?”,

“qual a significação ética dos direitos humanos?”, “qual a sua eficácia e efetividade

sócio-política?”, “qual a sua função?”, “como eles se desenvolveram historicamente?”.

Para tentar ao menos suprir essas questões mais imediatas referentes aos

direitos humanos e poder mobilizar elementos importantes para responder a essas

questões, tomaremos como nosso fio condutor a tese de origem e afirmação histórica

dos direitos humanos sustentada pelo jusfilósofo italiano Norberto Bobbio, um dos

teóricos da filosofia do direito mais importantes do século XX. As teses bobbianas nos

oferecem um terreno relativamente seguro e firme para o desenvolvimento de nossos

argumentos frente ao pantanoso terreno no qual os debates sobre os direitos humanos se

realizam.

A tese da afirmação histórica dos direitos humanos localiza a origem desses

na modernidade, juntamente com a concepção individualista de sociedade.

Reconstituiremos ao menos algumas das etapas do processo de afirmação dos direitos

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humanos, como o acolhimento das teorias jusnaturalistas e contratualistas, i.e., de

teorias filosóficas, em cartas de direitos, fator que iria marcar a transição do direito

pensado até então (teoria) para o direito realizado (prática). Para ilustrar essa transição e

averiguar os impactos e transformações das organizações políticas e sociais

analisaremos alguns documentos históricos, como (i) a Declaração de Direitos (Bill of

Rights) de 1689, consequência da Revolução Gloriosa; (ii) as declarações de direitos

envolvidas no processo histórico de independência dos EUA, tais como a Carta de

Direitos de Virgínia de 1776, a própria Declaração de Independência do país (1776), e a

Declaração dos Direitos e Garantias da Constituição Federal Norte-Americana (1791);

(iii) as declarações oriundas do processo revolucionário francês, dos anos de 1789,

1791, 1793 e 1795; e (iv) a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada

pela Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948.

A partir da análise desses documentos será possível avaliar a importância

das teorias filosóficas como base ideológica dos movimentos ilustrados revolucionários,

sustentar a origem dos direitos humanos como direitos históricos, avaliando a questão

dos fundamentos e de sua legitimação, os tipos de direitos humanos existentes, i.e., as

gerações de direitos humanos que surgiram no desenrolar do processo histórico.

Após pincelar os aspectos incontornáveis da questão, será possível,

finalmente, avaliar a atualidade do filósofo da vontade para o debate acerca dos direitos

humanos. Avaliaremos, então, levando em consideração a atual conjuntura mundial, a

atualidade do filósofo no que se refere a cada uma das denominadas gerações de

direitos, bem como em relação a questões mais amplas, como a sua atualidade para o

direito, para a moral e para a política, e a possibilidade de pensar e construir um “menos

pior dos mundos possíveis”.

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2 A Reconstrução das Doutrinas do Direito e do Estado

2.1. A Dimensão Ética do Sistema: Metafísica dos Costumes e Ética

2.1.1. Significado Ético do Sistema Filosófico Schopenhaueriano

O jovem Schopenhauer, no ano de 1813, mesmo antes de sua obra principal

ser concluída, já vislumbrava o sentido último do sistema filosófico que conceberia anos

mais tarde:

Em minhas mãos e antes no meu espírito nasce um trabalho, uma filosofia, na qual a ética e a metafísica devem ser UMA só, as quais até o momento foram separadas de modo falso pelos homens, como o corpo e a alma.1

Essa passagem nos permite notar o direcionamento e a importância da ética

no sistema filosófico schopenhaueriano já em sua concepção. É possível supor que a

importância da ética já estava dada no processo de gestação deste sistema e orientou

todo o seu desenvolvimento e confecção. Um sistema que, segundo o autor, possui uma

característica muito favorável e proveitosa para a exposição da decifração do enigma do

mundo, embora isso implique que seja necessário ler a sua obra principal duas vezes.

Trata-se de um sistema do pensamento único, o qual é definido da seguinte maneira:

[...] UM PENSAMENTO ÚNICO, por mais abrangente que seja, guarda a mais perfeita unidade. Se, todavia, em vista de sua comunicação, é decomposto em partes, então a coesão destas tem de ser, por sua vez, orgânica, isto é, uma tal em que cada parte tanto conserva o todo quanto é por ele conservada, nenhuma é a primeira ou a última, o todo ganha em clareza mediante cada parte, e a menor parte não pode ser plenamente compreendida sem que o todo já o tenha sido previamente. – Um livro tem de ter, entrementes, uma primeira e uma última linha; nesse sentido, permanece sempre bastante dessemelhante a um organismo, por mais que a este sempre se assemelhe em seu conteúdo. Consequentemente, forma e conteúdo estarão aqui em contradição.

Daí resulta facilmente que, sob tais circunstâncias, para penetrar na exposição destes pensamentos, há apenas um conselho: LER O LIVRO DUAS VEZES.2

1 HN I, Fragmento 92, p. 59, Berlin 1813, Fólio L. No manuscrito alemão: „Unter meinen Händen und vielmehr in meinem Geiste erwächst ein Werk, eine Philosophie, die Ethik und Metaphysik in E ine m seyn soll, da man sie bisher trennte so fälschlich als den Menschen in Seele und Körper.“ 2 MVR, Prefácio à Primeira Edição, p.19-20, I VIII. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „[…] ein einziger Gedanke muß, so umfassend er auch seyn mag, die vollkommenste Einheit bewahren. Läßt er dennoch, zum Behuf seiner Mittheilung, sich in Theile zerlegen; so muß doch wieder der Zusammenhang dieser Theile ein organischer, d.h. ein solcher seyn, wo jeder Theil ebenso sehr das Ganze erhält, als er vom Ganzen gehalten wird, keiner der erste und keiner der letzte ist, der ganze Gedanke durch jeden Theil an Deutlichkeit gewinnt und auch der kleinste Theil nicht völlig verstanden werden kann, ohne daß schon das Ganze vorher verstanden sei. — Ein Buch muß inzwischen eine erste

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E, neste sentido, pode-se recorrer a uma observação pertinente e

complementar à citação feita: “Schopenhauer é o filósofo da organicidade. Procura-a,

porque, com ela, onde quer que se esteja no seu sistema, estar-se-á em toda parte. O

todo conteria as partes e seria contido por elas”.3 Isso significa, em outras palavras, que

a todo momento, uma série de pressupostos e consequências permeiam a exposição da

filosofia do autor, permeiam a leitura de seus escritos.

Uma segunda característica a ser salientada sobre a exposição do sistema

filosófico schopenhaueriano refere-se ao fato do filósofo não tratar em sua completude e

de forma exaustiva em um único trecho ou passagem de seus escritos as temáticas

abordadas ao longo de sua obra. Exemplo disso é que o autor se furta a reproduzir parte

vital de sua argumentação sobre o princípio de razão suficiente em seu primeiro livro do

primeiro tomo de MVR, remetendo o leitor à leitura de sua tese de doutoramento, a QR.

A própria doutrina do direito serve, também, como exemplo para este tipo de

ocorrência, na medida em que ela é tratada pelo filósofo ao longo de toda sua obra, em

momentos díspares e esparsos. Esse tipo de procedimento é recorrente no estilo de

exposição do filósofo, como ele mesmo admite:

Pois é preciso ter em mente que meus escritos, poucos que sejam, não foram compostos ao mesmo tempo, mas sucessivamente, no decorrer de uma longa vida e com amplos intervalos; logo, não se deve esperar que tudo o que disse sobre um tema também apareça reunido num único lugar.4

Ao apontar essas duas características mais gerais, que se referem ao sistema

filosófico schopenhaueriano e ao modo pelo qual ele é exposto pelo filósofo, podemos

agora introduzir alguns dos conceitos fundamentais do próprio sistema. Um dos pilares

da filosofia schopenhaueriana é a distinção kantiana entre fenômeno (Erscheinung)5 e

und eine letzte Zeile haben und wird insofern einem Organismus allemal sehr unähnlich bleiben, so sehr diesem ähnlich auch immer sein Inhalt seyn mag: folglich werden Form und Stoff hier im Widerspruch stehen. Es ergiebt sich von selbst, daß, unter solchen Umständen, zum Eindringen in den dargelegten Gedanken, kein anderer Rath ist, als das Buch zwei Mal zu lesen.“ 3 BARBOZA, J. A Metafísica do belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: USP-Humanitas, 2001, p. 137. 4 MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p. 663, I 633-634. No original alemão: „Denn man muß erwägen, daß meine Schriften, so wenige ihrer auch sind, nicht alle zugleich, sondern successiv, im Laufe eines langen Lebens und mit weiten Zwischenräumen abgefaßt sind; demnach man nicht erwarten darf, daß Alles, was ich über einen Gegenstand gesagt habe, auch an Einem Orte zusammen stehe.“ 5 É consagrada a tradução de Erscheinung como ‘fenômeno’ no que diz respeito aos estudos schopenhauerianos. Todavia, ‘aparecimento’ e ‘aquilo que aparece’ seriam, também, boas alternativas.

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coisa-em-si (Ding an sich)6: em-si somos vontade,7 unos e imutáveis; a vontade deve

ser entendida como um impulso cego e irracional que tem no desejo a expressão de sua

estrutura de movimento pela busca de um objeto de satisfação. Mas a vontade traz em si

a marca ontológica da insatisfação eterna, ou seja, por ser ontologicamente carência, ela

está condenada a sempre repetir a necessidade de satisfação; todo ato de vontade

satisfeito é apenas uma transição para um novo ato de vontade. A vontade, enquanto tal,

nunca pode ser satisfeita; ela é, portanto, eternamente padecente.

Enquanto fenômeno, somos o mais alto grau de objetivação dessa vontade

na realidade empírica, situados espaço-temporalmente em uma cadeia causal pelo

principium individuationis, o princípio de individuação, que fragmenta a vontade – una

e indivisa enquanto coisa-em-si. Por esse aspecto, ele pode ser considerado como

princípio constituinte da realidade empírica enquanto fenômeno. O princípio de

individuação também permite que a vontade se manifeste de igual modo em número

infinito de seres e, certamente, de uma maneira plena e íntegra.

O fenômeno pode ser definido como tudo aquilo que é objeto para o sujeito

que conhece enquanto indivíduo, e seu conhecimento se dá inteiramente submetido ao

princípio de razão em suas quatro figuras.8 Tudo o que pertence ao fenômeno é causa

6 “A essência íntima do mundo, a coisa-em-si, é a vontade, a vontade para vida e esta, enquanto tal, conta com três propriedades metafísicas: a unidade, a infundamentabilidade, e a incognoscibilidade” HN, Metafísica dos Costumes, p.117, p.180. No original alemão: „Das innre Wesen der Welt, das Ding an sich ist der Wille, der Wille zum Leben: als solcher hat er drei 'metaphysische Eigenschaften: Einheit, Grundlosigkeit, Erkenntnißlosigkeit.“ 7 A primeira ocorrência, embora não sistemática, registrada para o termo vontade (Wille) pode ser encontrada no Fragmento 12 – Philosophische Aphorismen dos escritos de Juventude de Schopenhauer, anotação número 7, de 1808-1809 (Cf. HN I, Fragmento 12 [7], Frühheste Aufzeichnungen – Philosophische Aphorismen 1808-1809, p. 9). No Fragmento 34 – Ein Systemchen, Schopenhauer faz novamente uma alusão ao termo vontade (Cf. HN I, Fragmento 34, Berlim 1812, Folha A 1-6, p. 21). Contudo, apenas no Fragmento 67 de 1813 Schopenhauer identifica o termo vontade como sendo a essência do mundo e de tudo que aparece no mundo (Cf. HN I, Fragmento 67, Berlim 1813, Folha E 1-4, p.36). 8 O princípio de razão suficiente é definido por Schopenhauer como: nihil est sine ratione cur potius sit, quam non sit (em tradução livre: nada é sem que haja uma razão para que seja ou sem que haja uma razão que explique o que seja) Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grund, Erstes Kapitel, §5, III 113. Ele possui quatro figuras que explicam as relações entre as representações e unificam todo o conhecimento racional: (i) Princípio de Razão Suficiente do vir-a-ser (Satz vom zureichenden Grund des Werdens); (ii) Princípio de Razão Suficiente do Conhecer (Satz vom zureichenden Grund der Erkenntnis); (iii) Princípio de Razão Suficiente do Ser (Satz vom zureichenden Grund des Seins); (iv) Princípio de Razão Suficiente do Agir (Satz vom zureichenden Grund des Handelns). A palavra alemã Grund pode ser traduzida para o português por fundamento, causa, motivo, além de razão. A palavra razão deve ser entendida nessa acepção, não significando o ato de raciocinar, julgar, etc.. O princípio de razão suficiente pode ser considerado o fundamento de todas as ciências. Ele também expressa comumente vários

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(Grund) e consequência (Folge), e essa consequência é determinada com absoluta

necessidade (Notwendigkeit).9 Ora, se tudo o que existe enquanto fenômeno é pautado

na relação causal, então é possível inferir que o conteúdo inteiro da Natureza é

absolutamente necessário (durchaus nothwendig) – como será exposto com maior

retidão na seção que trata da questão da liberdade e da necessidade da vontade.

Por outra perspectiva, enquanto coisa-em-si, a vontade não está submetida

ao princípio de razão nem ao princípio de individuação. Logo, a vontade enquanto tal é

livre. Tudo o que existe como fenômeno, como objeto, é absolutamente necessário; no

entanto, em si mesmo, é vontade e está integralmente livre e fora das formas do tempo e

do espaço.

Pela via cognitiva não é possível ter acesso à coisa-em-si. Mas é possível ter

acesso a ela pelo nosso corpo (Leib), enquanto sujeito da vontade. A filosofia, enquanto

explicitação conceitual do mundo é a tradução do conhecimento intuitivo da essência

metafísica do mundo para o conhecimento abstrato. Trata-se de uma teoria da

representação, ao mesmo tempo em que se configura como uma teoria dos limites dessa

representação. O discurso científico, que não consegue ir além do plano empírico, da

aparência, se pauta nas relações estabelecidas entre fenômenos. As perguntas pelo

“como?” (wie?), pelo “onde?” (wo?) e pelo “quando?” (wann?) de um determinado

evento expressam a tentativa de explicitar relações de causalidade, situadas em espaço e

tempo, i.e., as perguntas científicas estão pautadas nos princípios de razão suficiente e

de individuação. A pergunta filosófica, o “quê?” (was?) das coisas, consegue ultrapassar

o plano da aparência e vislumbrar a essência, seja de um objeto particular, seja do

sujeito da vontade.

As investigações sobre as relações físicas, entre eventos da natureza, servem

de base para a ciência empírica do agir humano, a ética. Segundo Schopenhauer, deve-

se pensar a ética em relação com a metafísica da natureza, como atesta a estrita relação

existente entre os livros II e IV de MVR. Pelo fato das investigações morais concernirem

quase que imediatamente à coisa-em-si, elas são incomparavelmente mais

conhecimentos dados a priori: nada existe sem uma razão de ser. Sobre o princípio de razão suficiente e suas quatro figuras, conferir a obra de Schopenhauer Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde e CARTWRIGHT, D. Historical dictionary of Schopenhauer's philosophy. Oxford: Scarecrow Press, 2005, (Coleção Historical dictionaries of religions, philosophies, and movements, n. 55), p.138-143. Doravante abreviado por Historical Dictionary of Schopenhauer's Philosophy, seguido de indicação de página. 9 Cf. MVR, §55, p.371, I 338.

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importantes.10 E elas concernem quase imediatamente à coisa-em-si porque no

indivíduo se manifesta de forma mais nítida, graças ao princípio de individuação, a

vontade para vida (Wille zum Leben)11: pode-se observar a manifestação do microcosmo

no macrocosmo. Dessa forma, não é preciso investigar as relações estabelecidas entre

um grande contingente de indivíduos para obter dados relevantes para a ética, mas o

agir de um único indivíduo serve como objeto pleno para a observação.12

Contudo, não se trata da ciência de como os homens devem agir. Ao

contrário, a ética schopenhaueriana, afastando-se da moral teológica e das morais

prescritivas, possui aporte e ponto de ancoragem em sua metafísica da vontade, na

descrição e explicação do mundo e da existência em geral, i.e., ela tem por objetivo

explicar os modos de agir dos homens no que se refere ao aspecto moral de suas ações.

A ética possui, enquanto doutrina empírica do agir humano, a quarta figura do princípio

de razão suficiente como forma geral, a saber, a motivação.

Nas preleções de Berlim, os objetivos da ética são esclarecidos pelo então

professor Schopenhauer: cabe a ela mostrar que (i) não existe nenhuma doutrina do

dever, que (ii) não existe nenhum princípio ético universal, e que (iii) não existe um

dever incondicionado.13 Em suma, o ponto de partida da ética schopenhaueriana já

delineia um horizonte necessariamente antikantiano. Concomitantemente a esses três

objetivos, a ética trata, necessariamente, de dois problemas capitais: (i) a liberdade e a

sua relação com a necessidade, e (ii) o significado ético da conduta humana, i.e., o

fundamento da moral.14

Nesse ponto é possível diferenciar o que Schopenhauer entende por ética – o

conjunto de objetivos e problemas supracitados – e o que ele entende por metafísica dos

costumes – a qual seria um conceito mais abrangente que o de ética e incluiria em seu

conteúdo programático toda a filosofia moral, a afirmação e negação da vontade para

vida, e incluiria também a doutrina da redenção.

10 Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 676. 11 Apesar de não existir uma tradução única em português para o termo Wille zum Leben – ele encontra em português, ao menos, duas traduções, vontade de viver e vontade de vida –, optei por uma forma de tradução que não é convencional, vontade para vida. Essa última tradução teria, a meu ver algumas vantagens, tais como (i) estar gramaticalmente correta, (ii) ser literal e, portanto, mais próxima do idioma alemão, mantendo o sentido do dativo empregado por Schopenhauer, e de (iii) manter o sentido de ser um impulso, exatamente aquilo que a vontade é. 12 Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 678. 13 Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.4, p.58-59. 14 Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.21, p.76.

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Os conceitos de afirmação e de negação da vontade podem ser

compreendidos a partir da seguinte passagem:

A vontade afirmar a si mesma, significa: quando em sua objetidade (Objektität), ou seja, no mundo e na vida, a própria essência lhe é dada plena e distintamente como representação, semelhante conhecimento não obsta de modo algum seu querer, mas exatamente esta vida assim conhecida é também enquanto tal desejada; se até então sem conhecimento, como ímpeto cego, doravante com conhecimento, consciente e deliberadamente. – O oposto disso, a NEGAÇÃO DA VONTADE PARA VIDA, mostra-se quando aquele conhecimento leva o querer a findar, visto que, agora, os fenômenos particulares conhecidos não mais fazem efeito como MOTIVOS do querer, mas o conhecimento inteiro da essência do mundo, que espelha a vontade, e provém da apreensão das IDÉIAS, torna-se um QUIETIVO da vontade e, assim, a vontade suprime a si mesma livremente.15

A afirmação da vontade é querer, e cada ato de vontade é sua afirmação,

tendo no próprio corpo a expressão dos impulsos próprios da vontade metafísica. O

corpo, assim, configura-se como a linha tênue entre os âmbitos da vontade e da

representação, sendo cada manifestação do corpo em tempo, espaço e em uma cadeia

causal, uma exteriorização da essência metafísica do indivíduo. A afirmação da vontade

para vida se dá em dois âmbitos: (i) a afirmação sobre o próprio corpo – pela

autoconservação e a satisfação do impulso sexual –, e (ii) a afirmação da vontade para

além do próprio corpo, que invade e nega a esfera de afirmação alheia.

A partir dessa pequena introdução à metafísica dos costumes e ao sistema

ético, é possível perquirir o seu significado moral, analisando em maior profundidade os

problemas da ética elencados pelo filósofo da vontade, a fim de entender a relação entre

ética, direito, moralidade e política.

15 MVR, §54, p. 369-370, I 336. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Der Wille bejaht sich selbst, besagt: indem in seiner Objektität, d.i. der Welt und dem Leben, sein eigenes Wesen ihm als Vorstellung vollständig und deutlich gegeben wird, hemmt diese Erkenntniß sein Wollen keineswegs; sondern eben dieses so erkannte Leben wird auch als solches von ihm gewollt, wie bis dahin ohne Erkenntniß, als blinder Drang, so jetzt mit Erkenntniß, bewußt und besonnen. - Das Gegentheil hievon, die Ver ne inung des Wil lens zum Leben, zeigt sich, wenn auf jene Erkenntniß das Wollen endet, indem sodann nicht mehr die erkannten einzelnen Erscheinungen als Mot ive des Wollens wirken, sondern die ganze, durch Auffassung der Ideen erwachsene Erkenntniß des Wesens der Welt, die den Willen spiegelt, zum Quiet iv des Willens wird und so der Wille frei sich selbst aufhebt.“

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2.1.2. A Teoria da Ação ou Sobre a Liberdade da Vontade16

Ao formular o que considera como um dos problemas fundamentais da

ética, a saber, a teoria da ação ou a liberdade da vontade, Schopenhauer inicia sua

investigação justamente pelo questionamento “o que é liberdade?”. Segundo o filósofo,

o conceito de liberdade só pode ser pensado como a ausência de obstáculos e

impedimentos; ela deve, assim, ser considerada como um conceito negativo.17

A partir dessa primeira definição de liberdade pela via negativa, é possível

diferir entre três tipos possíveis de ausência de impedimentos: (i) a liberdade física

(physische Freiheit), que é caracterizada pela ausência de impedimentos materiais

(materiellen Hindernisse) de todo tipo,18 (ii) a liberdade intelectual (intellektuelle

Freiheit), que se refere ao voluntário e ao involuntário, e (iii) a liberdade moral

(moralische Freiheit), que constitui o liberum arbitrium – que significaria a

possibilidade de um mesmo indivíduo poder escolher a sua forma de agir, para uma

mesma situação, entre duas ações diametralmente opostas.

A liberdade física e a liberdade moral constituem uma certa relação, na

medida em que, segundo Schopenhauer, a primeira é anterior a segunda; e é sobre elas

que essa consideração se desdobrará. Contudo, segundo o filósofo, nas apreciações

anteriores acerca da temática da liberdade empreendidas por outros autores, a liberdade

sempre foi considerada apenas em referência ao poder (Können) executar uma ação ou

outra, não propriamente ao fato e possibilidade de o querer (Wollen) mesmo ser livre

(frei). Para Schopenhauer, livre deve ser entendido como o estar de acordo com o

querer. A questão, então, sob esta perspectiva, é recolocada de uma outra forma: “você

pode também querer o que quer?” (Kannst du auch wollen, was du willst?).

A mera resposta afirmativa a essa questão não decide nem resolve o

problema da liberdade do querer: faz-se indispensável recorrer à apreciação do contra-

16 Nos escritos publicados pelo autor, a temática da liberdade pode ser encontrada em MVR §23, §26, §55; MVR II, Kapitel 19 – Vom Primat des Willens im Selbstbewußtseyn; SFM, §10; em SLV; e SVN, Capítulo 5. Cabe alusão à carta de Schopenhauer a Julius Frauenstädt, Frankfurt a. M., de 6 de agosto 1852. 17 Cf. SLV, p. 39, III 473. 18 Uma importante ressalva feita pelo autor: “Também se chama livre um povo e se entende por isso que ele se rege de acordo com leis, mas leis que se deram a si mesmos; pois então obedecem, em todo caso, exclusivamente a sua própria vontade. Segundo isso, a liberdade política deve se entendida junto com a liberdade física.” SLV, p.40-41, III 4754. No original alemão: „Auch ein Volk nennt man frei, und versteht darunter, daß es allein nach Gesetzen regiert wird, diese Gesetze aber selbst gegeben hat: denn alsdann befolgt es überall nur seinen eigenen Willen. Die politische Freiheit ist demnach der physischen beizuzählen.“

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conceito de liberdade, a saber, o conceito de necessidade (Notwendigkeit). Mas quê

significa necessidade? Necessidade é uma consequência a partir de uma causa19

segundo o princípio de razão suficiente em uma de suas quatro figuras.20 E isso

significa que uma vez que uma causa está dada, seu efeito é necessário com o mesmo

rigor em todos os casos. A relação de causa e efeito, fundamento e consequência, rege

todo fenômeno – tudo aquilo que é objeto para o sujeito que conhece enquanto

indivíduo. Ora, se tudo o que pertence ao fenômeno é causa e consequência, e essa

consequência é determinada com absoluta necessidade,21 e se tudo o que existe

enquanto fenômeno é pautado na relação causal, nos princípios de razão suficiente e de

individuação, então é possível inferir que o conteúdo inteiro da Natureza é

absolutamente necessário. Um objeto poderia não existir na natureza, ou originária e

essencialmente ser algo inteiramente outro. Mas em tal caso toda a cadeia causal, na

qual ele está inserido como fenômeno, também seria outra,22 ou seja, tratar-se-ia de uma

outra configuração da realidade, de um outro contexto.

Dessa perspectiva – a perspectiva do fenômeno –, não seria possível admitir

uma vontade livre. Para ser livre, a vontade não poderia estar determinada por razões,

ou seja, uma vontade seria livre se não estivesse sob o domínio dos princípios de razão

suficiente e de individuação. Todavia, em outro registro que não o da representação, a

vontade é a própria coisa-em-si, e não está submetida aos princípios de razão e de

individuação. Deste ponto de vista, a vontade enquanto tal é livre. Tudo o que existe

como fenômeno, como objeto, é absolutamente necessário; no entanto é, em si mesmo,

vontade e está integralmente livre por toda a eternidade. Nesse ponto nos deparamos

com a consideração da impossibilidade do conceito de liberdade no plano da

representação, que é regido pelas leis de causa e consequência, e da possibilidade de

19 Talvez seja interessante ressaltar a distinção qualitativa estabelecida por Schopenhauer nas relações de causa e efeito. Segundo o autor, aquilo que é responsável por um efeito pode se dar de três formas: (i) como causa (Ursach), no corpo inorgânico; (ii) como estímulo (Reiz), nos vegetais; e (iii), como motivo (Motiv), nos animais não-humanos e humanos. Cf. MVR, §23. 20 Cf. SLV, p.43, III 477 e HN, Metafísica dos Costumes, p. 22, p. 77. 21 “O conteúdo inteiro da natureza, a completude de seus fenômenos, são, portanto, absolutamente necessários, e a necessidade de cada parte, de cada fenômeno, de cada evento, pode sempre ser demonstrada, já que tem de ser possível encontrar a causa (Grund) do qual ele depende como consequência.” MVR, §55, p.371, I 338. No original alemão: „Der ganze Inhalt der Natur, ihre gesammten Erscheinungen, sind also durchaus nothwendig, und die Nothwendigkeit jedes Theils, jeder Erscheinung, jeder Begebenheit, läßt sich jedesmal nachweisen, indem der Grund zu finden seyn muß, von dem sie als Folge abhängt.“ 22 Cf. MVR, §55, p. 372, I 339.

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liberdade no plano do em-si, da possibilidade de uma liberdade transcendental. Essa

dualidade de perspectivas pode ser levada a cabo porque a filosofia schopenhaueriana

aceita e tem como ponto de partida a divisão kantiana entre fenômeno e coisa-em-si,

considerados pelo filósofo de Frankfurt como representação e vontade, e porque sua

exposição sobre a liberdade da vontade toma como referência a terceira antinomia da

Dialética Transcendental da obra kantiana Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão

Pura), na qual, em uma das interpretações possíveis, com a qual Schopenhauer pode ser

identificado, é possível compatibilizar determinismo empírico e liberdade noumênica, o

que estabelece uma relação entre os dois âmbitos.23

O determinismo do fenômeno atinge até mesmo os seres humanos, os quais,

apesar de serem o mais alto grau de objetivação da vontade no mundo fenomênico,

ainda estão submetidos aos princípios de razão suficiente e de individuação. Isso

significa que o ser humano, como qualquer outra parte da natureza, também é

objetidade da vontade.24 Pode-se afirmar que, enquanto fenômeno, cada indivíduo é um

corpo próprio, uma força da Natureza, uma Ideia, um caráter inteligível (intelligibler

Charakter) manifestado no tempo, espaço e em uma cadeia causal como caráter

empírico (empirischer Charakter):

Ora, assim como cada coisa na natureza tem suas forças e qualidades que reagem de determinada maneira em face de determinada impressão, e constituem o seu caráter, o ser humano possui o seu CARÁTER, em virtude do qual os motivos produzem suas ações com necessidade. Nesse modo mesmo de agir manifesta-se seu caráter empírico; por seu turno, neste manifesta-se de novo seu caráter inteligível, a vontade em si, da qual aquele é o fenômeno determinado.25

Os conceitos de caráter empírico e de caráter inteligível, originários da

filosofia kantiana, são incorporados à filosofia schopenhaueriana. E caráter, aqui, deve

ser entendido como a constância, a regularidade, a regra que permanece imutável na

observação de um certo conjunto de fenômenos, neste caso o agir do indivíduo. Desta 23 Segundo Schopenhauer, a terceira antinomia é uma das maiores contribuições da filosofia kantiana. Cf. SFM, §10, p.93, III 644. “Considero esta doutrina de Kant da coexistência da liberdade com a necessidade como a maior das realizações da profundeza humana”. SFM, §10, p.95, III 646. No original alemão: „Diese Lehre Kants vom Zusammenbestehen der Freiheit mit der Nothwendigkeit halte ich für die größte aller Leistungen des menschlichen Tiefsinns“. 24 Cf. MVR, §55, p.372, I 339; Ver também: Cf. MVR, §18, p.157, I 119; Cf. MVR, §54, p.357, I 323; HN, Metafísica dos Costumes, p. 23, p.78. 25 MVR, §55, p.372, I 339. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Wie jedes Ding in der Natur seine Kräfte und Qualitäten hat, die auf bestimmte Einwirkung bestimmt reagiren und seinen Charakter ausmachen; so hat auch er seinen Charakter, aus dem die Motive seine Handlungen hervorrufen, mit Nothwendigkeit.“

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forma, tudo o que Schopenhauer escrevera sobre as leis que regem a Natureza também

são válidas para os seres humanos, os quais têm no princípio de razão suficiente do agir

(Satz vom zureichenden Grund des Handelns), ou, de forma abreviada, na lei da

motivação (Gesetz der Motivation), a condição de inteligibilidade de suas ações.

Os caráteres inteligível e empírico podem ser definidos como:

[...] caráter é manifestação da vontade e não a vontade como coisa-em-si mesma. [...] O caráter inteligível é a vontade como coisa-em-si enquanto aparece em uma determinada proporção em um indivíduo dado. O caráter empírico, contudo, é essa manifestação mesma enquanto se põe de manifesto nas formas do agir, conforme o tempo, na corporificação, conforme o espaço.26

Assim, o caráter inteligível é o que cada ser humano individualmente é em-

si, enquanto vontade, não submetido aos princípios de razão e individuação; as ações de

cada ser humano no mundo como representação são fenômenos, manifestações de seu

caráter inteligível – que é distinto em cada indivíduo –, denominado, enquanto

26 HN, Metafísica dos Costumes, p.25-26, p.80-81. No original alemão: „[…] und daß sein Karakter unveränderlich ist: welches daher kommt daß der Karakter schon Erscheinung des Willens ist; nicht der Wille als Ding an sich. […] Der int e ll ig ible Karakter ist der Wille als Ding an sich sofern er in einem bestimmten Individuo, in bestimmtem Grade erscheint. Der empirische Karakter aber ist diese Erscheinung selbst, so wie sie sich darstellt, der Zeit nach, in der Handlungsweise, dem Raum nach, schon in der Korpor isat ion.“ Optei por escolher a formulação das preleções de Berlim sobre o caráter inteligível e empírico, ainda que em polêmica e divergência aparentes com outros textos de Schopenhauer, porque ela faz alusão a um grande problema para os leitores, intérpretes da obra do filósofo, e até mesmo para o próprio Schopenhauer: a possibilidade de se entender que cada caráter tem o mesmo estatuto de uma Ideia. Em última instância, em-si, tudo é vontade; mas para que cada caráter possa ser individual, ele deve possuir um pequeno grau de individuação. Contudo, isso não precisa significar necessariamente que ele esteja submetido ao princípio de individuação – em tempo, espaço e em uma cadeia causal; esse raciocínio estaria em consonância com o fato de que cada indivíduo teria uma Ideia que corresponda a si mesmo. Esse é um problema assaz espinhoso, o qual não tenho por objetivo resolver e nem mesmo expor detalhadamente. Deixamos registrado apenas a alusão a essa possibilidade de interpretação, baseada em evidências textuais. No §116 de PP, Schopenhauer escreve: “a individualidade não repousa unicamente no principium individuationis e não é, portanto, inteiramente apenas fenômeno, mas enraíza-se na coisa-em-si, na vontade do indivíduo, pois seu próprio caráter é individual. Até onde vai a profundidade de suas raízes constitui uma das questões cuja resposta não empreendo.” PP, §116, p.71, V 249. No original alemão: „Hieraus folgt nun ferner, daß die Ind iv idua lit ät nicht allein auf dem principio individuationis beruht und daher nicht durch und durch bloße Ersche inung ist; sondern daß sie im Dinge an sich, im Willen des Einzelnen, wurzelt: denn sein Charakter selbst ist individuell. Wie tief nun aber hier ihre Wurzeln gehn, gehört zu den Fragen, deren Beantwortung ich nicht unternehme.“ Para uma apreciação cuidadosa do conceito de Ideia (Idee) na obra schopenhaueriana e das possíveis contradições encontradas em suas várias formulações, remeto ao artigo CIRACÌ, F. Il mondo come volontà, idee e rappresentazione: Per una possibile lettura in senso illuministico della dottrina delle idee. in: Revista Voluntas: estudos sobre Schopenhauer, v.1, n.1, p. 71-115, 1º sem. 2010. Disponível em: http://www.revistavoluntas.com.br/uploads/1/8/1/8/18183055/v1-n1-05-ciraci_fabio.pdf. Acesso em 22 jan. 2014.

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manifestação fenomênica, no tempo e no espaço, de caráter empírico.27 Assim, a

liberdade não está situada no âmbito do caráter empírico, mas sim no âmbito do caráter

inteligível. E o caráter empírico é tão somente a exibição fenomênica do que o

indivíduo é da perspectiva metafísica.

Em suma, o caráter inteligível, além de ser considerado como um ato

extratemporal, indivisível e imutável da vontade, é a própria vontade enquanto coisa-

em-si manifestando-se num determinado indivíduo e em um determinado grau como

fenômeno, cujo desenvolvimento e espraiamento em tempo, espaço, e em todas as

formas do princípio de razão é o caráter empírico como este se expõe conforme a

experiência, vale dizer, no modo de ação e no decurso de vida do indivíduo.28

Pode-se notar que a teoria do caráter, assim, reúne quatro características

básicas: (i) o caráter é individual, uma vez que é diferente para cada indivíduo, e isso

significa que o efeito de um mesmo motivo é completamente diferente em pessoas

diferentes; (ii) o caráter é empírico, enquanto manifestação fenomênica do caráter

inteligível. E isso significa que apenas pela experiência é possível nos conhecer e, por

conseguinte, também os outros; (iii) o caráter é constante, pois permanece o mesmo ao

longo de toda vida. E isso significa que uma pessoa, nas exatas e idênticas

circunstâncias, age sempre da mesma forma. Schopenhauer é implacável: quem roubou

uma vez é um ladrão por toda a vida;29 e (iv) ele é inato, pois o indivíduo nasce com

27 As definições de caráter empírico e inteligível também podem ser encontradas em várias passagens da obra schopenhaueriana, tais como: SFM,§10, p.94-96, III 645-647; MVR, §20, p.165, I 127-128; MVR, §28, p.221-225, I 185-190; MVR, §53, p.353, I 319-320; MVR, §55, p.375, I 341-342. 28 Cf. MVR, §55, p. 375, I 341. 29 Cf. SLV, p. 88, III 521. “O que alguém fez uma vez, faria de novo, inevitavelmente, sob iguais circunstâncias” SFM, §13, p.110, III 658. No original alemão: „was E iner ein Mal gethan hat, er unter ganz gleichen Umständen, unausbleiblich wieder thun werde.“ Outras duas citações podem corroborar esse ponto de vista: “esperar que uma pessoa, em ocasiões idênticas, aja uma vez assim e outra vez de forma totalmente diferente, seria como se se esperasse que a mesma árvore que este verão deu cerejas dê peras no próximo” SLV, p.96, III 528. No original alemão: „Folglich zu erwarten, daß ein Mensch, bei gleichem Anlaß, ein Mal so, ein ander Mal aber ganz anders handeln werde, wäre wie wenn man erwarten wollte, daß der selbe Baum, der diesen Sommer Kirschen trug, im nächsten Birnen tragen werde.“ “Na mesma verdade baseia-se que um indivíduo, mesmo a partir do mais claro conhecimento, sim, mesmo a partir da aversão de suas faltas e defeitos morais, sim, mesmo a partir da intenção sincera de melhorar, também obviamente não melhore, mas, ao contrário, a despeito das sérias intenções e promessas honestas, deixe-se afetar, em uma nova oportunidade, mais uma vez como anteriormente pelas mesmas veredas, para a sua própria surpresa.” SLV, p.89, III 521. No original alemão: „Auf der selben Wahrheit beruht es, daß ein Mensch, selbst bei der deutlichsten Erkenntniß, ja, Verabscheuung seiner moralischen Fehler und Gebrechen, ja, beim aufrichtigsten Vorsatz der Besserung, doch eigentlich sich nicht bessert, sondern trotz ernsten Vorsätzen und redlichem Versprechen, sich, bei erneuerter

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ele.30 E isso significa que (a) a pessoa, com o tempo, torna-se o que ela é, não podendo

escolher o que ela quer ser,31 e (b) que o caráter é o local no qual residem todos os

vícios e virtudes, no que se segue que a virtude e o vício também são inatos. Aqui já é

possível vislumbrar o deslocamento da responsabilidade do âmbito do agir para o

âmbito do ser, ou, como Schopenhauer escreve, do operari para o esse.

A autoconsciência (Selbstbewusstsein) faz os indivíduos acreditarem que é

possível fazer qualquer coisa que se queira fazer. E, dado que o indivíduo também pode

pensar ações totalmente opostas como queridas, segue-se que ele crê que também pode

agir de forma contrária, se quiser. Contudo, como exposto acima, deve-se afastar o erro

de que o agir de um indivíduo particular e determinado não está submetido à

necessidade alguma, i.e., deve-se afastar o erro de considerar a priori que o agir é livre.

Como escreve a tradutora espanhola de Os dois Problemas Fundamentais da Ética (Die

beiden Grundprobleme der Ethik), Pilar López de Santa María, na introdução a essa

tradução: “Podemos desejar coisas diferentes e inclusive opostas; mas só podemos, em

cada caso, querer uma”.32 Aqui se deve utilizar o exemplo tão claro que Schopenhauer

emprega em sua argumentação de SLV:

“São seis horas da tarde, a jornada de trabalho terminou. Agora posso dar uma volta; ou posso ir ao clube; posso também subir em uma torre e ver o pôr do sol; também posso ir ao teatro; e posso visitar esse ou aquele amigo; posso, também, sair da cidade e nunca mais voltar. Tudo isso depende somente de mim, tenho total liberdade para tanto; contudo, agora não faço nada disso, e vou voluntariamente para casa ao encontro da minha mulher”. E isso é igual ao que a água diria: “Posso formar altas ondas (sim! No mar tempestuoso); posso correr de forma impetuosa (sim! no leito do rio); posso precipitar-me espumosa e borbulhante (sim!, na cachoeira); posso subir livre até o ar em forma de jato (sim!, nos chafarizes); posso, enfim, ferver e desaparecer (sim!, a oitenta graus de calor); contudo, agora não faço nada disso, mas permaneço voluntariamente, quieta e clara como um espelho em um lago”. Assim como a água só pode fazer tudo isso quando se produzem causas determinantes para uma coisa ou outra, igualmente todo indivíduo não pode fazer o que imagina poder, a não ser, sob a mesma condição.33

Gelegenheit, doch wieder auf den selben Pfaden wie zuvor, zu seiner eigenen Ueberraschung, betreffen läßt.“ 30 Cf. MVR, §53, p.353, I 319-320. 31 “De acordo com a tradição os indivíduos precisariam apenas ponderar COMO gostariam de ser, e assim seriam: isto é liberdade da vontade”. MVR, §55, p.379, I 345. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Nach dieser dürfte er nur überlegen, wie er am liebsten seyn möchte, und er wäre es: das ist ihre Willensfreiheit.“ 32 SCHOPENHAUER, A. Los dos problemas fundamentales de la ética. Tradução, introdução e notas de Pilar López de Santa María. Madri: Siglo XXI de España Editores, 2007, p.XXII. 33 SLV, p.79, III 512. Apesar de Schopenhauer escrever que a agua pode subir e desaparecer (evaporar) a oitenta graus, o ponto de ebulição da água pura ao nível do mar é de 100 graus Celsius. No original alemão: „»Es ist 6 Uhr Abends, die Tagesarbeit ist beendigt. Ich kann jetzt einen Spatziergang machen;

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Se a liberdade da vontade fosse considerada no fenômeno, isso significaria

que cada ação humana seria independente do princípio de razão suficiente, das relações

de causa e consequência. Elas seriam inexplicáveis, tais como milagres. Pela reflexão a

posteriori percebe-se que o agir foi produzido de modo completamente necessário a

partir do confronto do caráter do indivíduo com a constelação de motivos apresentadas

ao intelecto desse mesmo indivíduo.34 Mas o que isso significa? A motivação pode ser

entendida como “a causalidade vista de dentro (die Motivation ist die Kausalität von

innen gesehen)”,35 e isso apenas denota que a motivação é um tipo especial da

causalidade: a causalidade que passa pelo conhecimento. Assim sendo, pode-se inferir

que todos os motivos são causas e carregam consigo consequências inevitáveis, uma vez

que toda causalidade traz consigo a necessidade.36

Todas as ações particulares de um indivíduo são apenas a exteriorização

sempre repetida do seu caráter inteligível, e a indução resultante da soma dessas ações

constitui precisamente o seu caráter empírico. A decisão se produz a partir da índole

interior confrontada com a afecção exterior, i.e., a decisão é produzida a partir do

caráter inteligível, da vontade individual, em seu confronto com motivos dados e, por

conseguinte, com perfeita necessidade. Se fossem dados de maneira completa o caráter

empírico de um indivíduo e os motivos que o afetam, seria possível calcular a conduta

futura desse como se calcula um eclipse do sol ou da lua, i.e., com absoluta precisão.

Contudo, o intelecto não possui acesso a todas as variáveis necessárias e existentes para

realizar um cálculo tão acurado. Por isso, os indivíduos não podem montar uma equação

com um resultado preciso.

oder ich kann in den Klub gehn; ich kann auch auf den Thurm steigen, die Sonne untergehn zu sehn; ich kann auch ins Theater gehn; ich kann auch diesen, oder aber jenen Freund besuchen; ja, ich kann auch zum Thor hinauslaufen, in die weite Welt, und nie wiederkommen. Das Alles steht allein bei mir, ich habe völlige Freiheit dazu; thue jedoch davon jetzt nichts, sondern gehe ebenso freiwillig nach Hause, zu meiner Frau. « Das ist gerade so, als wenn das Wasser spräche: »Ich kann hohe Wellen schlagen (ja! nämlich im Meer und Sturm), ich kann reißend hinabeilen (ja! nämlich im Bette des Stroms), ich kann schäumend und sprudelnd hinunterstürzen (ja! nämlich im Wasserfall), ich kann frei als Strahl in die Luft steigen (ja! nämlich im Springbrunnen), ich kann endlich gar verkochen und verschwinden (ja! bei 80° Wärme); thue jedoch von dem Allen jetzt nichts, sondern bleibe freiwillig, ruhig und klar im spiegelnden Teiche.« Wie das Wasser jenes Alles nur dann kann, wann die bestimmenden Ursachen zum Einen oder zum Andern eintreten; ebenso kann jeder Mensch was er zu können wähnt, nicht anders, als unter der selben Bedingung.“ 34 Cf. MVR, §55, p. 374, I 340-341. 35 QR, p.208, III 253. 36 Cf. SLV, p.72, III 505.

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Com efeito, o que determina as ações de um indivíduo é a equação montada

entre os motivos dados na circunstância e o caráter desse indivíduo. Ou, dito de outra

forma, entre a constelação dos motivos e a configuração individual da vontade do

caráter inteligível de cada um. Dada a estrutura do caráter e a constelação dos motivos,

a ação se segue da relação entre ambas com absoluta necessidade: Cada coisa no mundo age de acordo com aquilo que ela é, de acordo com sua natureza, na qual, por isso, todas as suas manifestações já estão contidas como “potentia” [segundo a possibilidade], mas acontecem como “actu” [na realidade], quando causas exteriores as produzem.37

O motivo afeta a vontade de um indivíduo, a qual desencadeia uma ação,

que se refere ao bem-estar ou ao mal-estar de um ser. Quando o fim último da ação é o

bem-estar ou o mal-estar do próprio agente, a ação é considerada egoísta. Por outro

lado, um motivo pode ser neutralizado a partir do confronto com um contramotivo

(Gegenmotiv) mais forte.

Ora, se as ações dos homens são executadas com absoluta necessidade,

então essas são determinadas e a possibilidade de existência do livre-arbítrio é

descartada. A confusão em se reputar o livre-arbítrio como verdadeiro, segundo

Schopenhauer, tem origem no fato de o conhecimento ser associado como fator

essencial e primordial ao guiar as ações do indivíduo humano, relegando a vontade ao

segundo plano no que tange à tomada de decisões. Mas não é o conhecimento que guia

as ações dos indivíduos, como pode ser observado na seguinte passagem:

A vontade é o primário e originário; o conhecimento é meramente adicionado como instrumento pertencente ao fenômeno da vontade. Conseguintemente, cada ser humano é o que é mediante sua vontade. Seu caráter é originário, pois querer é a base de seu ser. Pelo conhecimento adicionado ele aprende no decorrer da experiência o QUÊ ele é, ou seja, chega a conhecer seu caráter.38

Após refutar a existência do livre-arbítrio, demonstrando que os seres

humanos estão sujeitos às relações de causa e consequência, uma vez que

fenomenicamente estão sob a tutela dos princípios de razão e individuação, é possível

37 SFM, §10, p.96, III 646. No original alemão: „jedes Ding in der Welt wirkt nach dem wie es ist, nach seiner Beschaffenheit, in welcher daher alle seine Aeußerungen schon potent ia enthalten sind, actu aber eintreten, wann äußere Ursachen sie hervorrufen;“ 38 MVR, §55, p. 379, I 345. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Der Wille ist das Erste und Ursprüngliche, die Erkenntniß bloß hinzugekommen, zur Erscheinung des Willens, als ein Werkzeug derselben, gehörig. Jeder Mensch ist demnach Das, was er ist, durch seinen Willen, und sein Charakter ist ursprünglich; da Wollen die Basis seines Wesens ist. Durch die hinzugekommene Erkenntniß erfährt er, im Laufe der Erfahrung, was er ist, d.h. er lernt seinen Charakter kennen.“

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considerar de forma mais detida a conduta humana. Essa pode, segundo o filósofo,

variar notavelmente sem que com isso se deva concluir que o caráter mesmo do

indivíduo tenha mudado. No mundo fenomênico, a única forma de se afetar a vontade é

através dos motivos. Os motivos jamais podem mudar a vontade em si mesma. Tudo o

que os motivos podem mudar é a direção do esforço da vontade, em outros termos, fazê-

la procurar o que inalteradamente procura por um caminho diferente do até então

seguido. Jamais os motivos poderiam fazer com que a vontade realmente queira de

maneira diferente do que quis até então. A ação da vontade se expõe de forma bastante

diferente em tempos diferentes, mas, por outro lado, seu querer permanece exatamente o

mesmo.

Em virtude da grande influência do conhecimento sobre o agir, apesar da

vontade ser inalterável, ocorre de o caráter desenvolver-se e suas diversas feições

entrarem em cena gradativamente. Assim, o traço do bom ou do mau caráter entra em

cena gradualmente, com cada vez mais poder no decorrer do tempo. Acerca desse

ponto, Schopenhauer escreve:

No começo somos todos inocentes, e isto apenas significa que nem nós, nem os outros, conhecemos o mau de nossa própria natureza: este aparece apenas nos motivos; e é só no decorrer do tempo que os motivos entram em cena no conhecimento. Ao fim, nos conhecemos de maneira completamente diferente do que a priori nos considerávamos, e então amiúde nos espantamos conosco mesmos.39

Essa correção do conhecimento é o arrependimento (Reue), que só é

possível por causa da razão. Esse nunca se origina de a vontade ter sido alterada, o que é

impossível, mas de o conhecimento ter mudado. Não existe arrependimento por algo

desejado, mas sim por algo que foi feito, visto que, ao ser conduzido por falsas noções,

o indivíduo agiu de maneira diferente daquela adequada à sua vontade. “O

arrependimento sempre é o conhecimento corrigido da proporção do ato com a intenção

real”.40

Deve-se considerar, ainda, outra diferença oriunda do fato dos seres

humanos serem dotados de razão: a razão faz a lei de motivação atuar de forma

39 MVR, §55, p. 383, I 349. No original alemão: „Daher auch sind wir Alle Anfangs unschuldig, welches bloß heißt, daß weder wir, noch Andere das Böse unserer eigenen Natur kennen: erst an den Motiven tritt es hervor, und erst mit der Zeit treten die Motive in die Erkenntniß. Zuletzt lernen wir uns selbst kennen, als ganz Andere, als wofür wir uns a priori hielten, und oft erschrecken wir dann über uns selbst.“ 40 MVR, §55, p. 384, I 350. No original alemão: „Immer also ist die Reue berichtigte Erkenntniß des Verhältnisses der That zur eigentlichen Absicht.“

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diferente nos animais humanos em relação aos animais não humanos. Enquanto os

animais não humanos são determinados pelo motivo mais recente, e por um motivo de

cada vez, o ser humano, por seu turno, é dotado de representações intuitivas e de

representações abstratas. Essas representações abstratas são denominadas por

Schopenhauer conceitos (Begriffe). Isso significa que para os animais humanos existe a

possibilidade de um conflito duradouro entre vários motivos até que o mais forte

determine com necessidade a ação da vontade. Essa capacidade do ser humano é

denominada decisão eletiva (Wahlentscheidung). Contudo, essa capacidade de poder

representar abstratamente motivos possui suas desvantagens. Grande parte das dores

que os indivíduos possuem não estão situadas no presente como representações

intuitivas ou sentimento imediato, mas na razão, como conceitos abstratos, pensamentos

atordoantes. O sofrimento está, em última instância, na faculdade de razão. Os animais,

desprovidos de razão, e, por conseguinte, de decisão eletiva, estão livres desse tipo de

sofrimento, pois eles vivem apenas no tempo presente, num estado, segundo

Schopenhauer, destituído de preocupação e digno de inveja. Em SLV, Schopenhauer

explica o mecanismo dessa deliberação: A capacidade de deliberação que dela surge não produz, de fato, nada mais que o constante e penoso CONFLITO DOS MOTIVOS, ao que serve a indecisão e cujo campo de batalha é constituído pelo ânimo e a consciência humana. De fato, ele permite aos motivos pôr à prova repetidamente sua força contra outros motivos na vontade, com o que esta cai na mesma situação na qual se encontra um corpo sobre o qual atuam diversas forças em direções opostas: até que, no final, o motivo decididamente mais forte vence os demais e determina a vontade; este desenlace se chama resolução e se produz com total NECESSIDADE, como resultado da batalha.41

A decisão eletiva também abre margens para o entendimento do significado

do sentimento de renúncia:

[...] toda privação individual e momentânea nos é fácil, enquanto toda renuncia nos é bastante difícil, pois a primeira concerne só ao presente passageiro, enquanto a outra concerne ao futuro e, por conseguinte, contém em si inumeráveis renúncias das quais é a equivalente. Portanto, a causa de

41 SLV, p.73, III 506. No original alemão: „Die durch sie entstehende Deliberationsfähigkeit giebt in der That nichts Anderes, als den sehr oft peinlichen Konf l ikt der Mot ive, dem die Unentschlossenheit vorsitzt, und dessen Kampfplatz nun das ganze Gemüth und Bewußtseyn des Menschen ist. Er läßt nämlich die Motive wiederholt ihre Kraft gegen einander an seinem Willen versuchen, wodurch dieser in die selbe Lage geräth, in der ein Körper ist, auf welchen verschiedene Kräfte in entgegengesetzten Richtungen wirken, — bis zuletzt das entschieden stärkste Motiv die andern aus dem Felde schlägt und den Willen bestimmt; welcher Ausgang Entschluß heißt und als Resultat des Kampfes mit völliger Nothwend igke it eintritt.“

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nosso sofrimento, bem como de nossa alegria, reside na maioria dos casos não no presente real, mas só em pensamentos abstratos.42

A faculdade de razão, ao possibilitar a abstração, o raciocínio, e o

alargamento da dimensão temporal, permite, também, que o indivíduo, a partir da

reflexão e da experiência, encontre meios mais adequados para alcançar os seus fins.

Isso não se dá pela alteração do caráter desse indivíduo, mas pelo refinamento de sua

constelação de motivos, que significa a correção e o clareamento do conhecimento – o

qual é o meio dos motivos. A educação, entendida pelo filósofo da vontade como um

prêmio, atua nos indivíduos pela correção do conhecimento, através do ensino e do

exemplo. Assim, a função pedagógica do educar tem como objetivo influenciar o

indivíduo a agir dentro dos limites da lei e a optar pelos melhores meios para alcançar

os seus fins – promovendo a melhoria civil e legal –, sem, com isso, prescrever ou

moralizar: O intento de suprimir os defeitos do caráter de uma pessoa mediante discursos e moralizações, e assim remodelar seu caráter mesmo, sua própria moralidade, é exatamente igual à pretensão de converter o chumbo em ouro mediante influência externa, o de conseguir com esmerados cuidados que um arbusto dê damascos.43

Pelo fato do indivíduo ser capaz de decidir, é exclusivamente nele que a

decisão, não o mero desejo, serve para si mesmo e para os outros como uma indicação

válida de seu caráter. O desejo seria a simples consequência necessária da impressão

presente de excitação exterior ou de disposição interior passageira, e é, por conseguinte,

tão imediatamente necessário e sem ponderação quanto à ação dos animais.

A partir do exposto, é possível inferir que não é o acontecimento que está

absolutamente predeterminado, mas o acontecimento como resultado de causas prévias. 42 MVR, §55, p. 386-387, I 352-353. No original alemão: „Daher ist uns jede einzelne Entbehrung für den Augenblick ziemlich leicht, aber jede Entsagung entsetzlich schwer: denn jene trifft nur die vorübereilende Gegenwart, diese aber die Zukunft und schließt daher unzählige Entbehrungen in sich, deren Aequivalent sie ist. Die Ursache unseres Schmerzes, wie unserer Freude, liegt daher meistens nicht in der realen Gegenwart; sondern bloß in abstrakten Gedanken.“ Esse trecho de MVR aparece de forma quase que literal em HN, Metafísica dos Costumes, p. 40, p. 97. No original alemão com as diferenças de formulações grafadas em negrito: „Daher ist uns jede einzelne Entbehrung für den Augenblick ziemlich leicht, aber jede Entsagung entsetzlich schwer: denn jene trifft nur die vorübereilende Gegenwart; diese aber die Zukunft, und schließt daher unzählige Entbehrungen in sich, deren Äquivalent sie ist. Unser Schmerz, wie unsere Freude liegen meistens nicht in der realen Gegenwart; sondern bloß in abstrakten Gedanken.“ 43 SLV, p.90, III 523. No original alemão: „und das Unternehmen, die Charakterfehler eines Menschen durch Reden und Moralisiren aufheben und so seinen Charakter selbst, seine eigentliche Moralität, umschaffen zu wollen, ist ganz gleich dem Vorhaben, Blei durch äußere Einwirkung in Gold zu verwandeln, oder eine Eiche durch sorgfältige Pflege dahin zu bringen, daß sie Aprikosen trüge.“

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Os atos dos indivíduos sempre se dão de acordo com o caráter inteligível que eles

possuem, não sendo possível uma intelecção a priori desse caráter. Apenas a posteriori,

através da experiência, é possível aprender a conhecer a si mesmo e aos outros, uma vez

que, dessa forma, os atos dos indivíduos são um espelho deles mesmos.

O conhecimento das próprias qualidades, sejam elas boas ou más, i.e., o

melhor conhecimento possível da própria individualidade, do próprio caráter empírico,

proporciona ao indivíduo o que é denominado por Schopenhauer de caráter adquirido

(erworbener Charakter). O conhecimento mais acabado da própria individualidade

permite saber o que é querido, o que se pode ter, o que é possível exigir de si mesmo e

quais são seus próprios limites. Trata-se de um conhecimento abstrato, e por fim claro

das peculiaridades inalteráveis do próprio caráter empírico, assim como da proporção e

orientação das próprias forças, tanto corporais quanto espirituais; em síntese, trata-se do

conhecimento do conjunto de qualidades e fraquezas da própria individualidade. O

caráter adquirido é obtido na vida pelo seu uso no mundo (Weltgebrauch),44 e é a ele ao

qual é feita referência quando se elogia uma pessoa por ter caráter, ou a censura por não

o ter. A deficiência em seu conhecimento é responsável por nem sempre nos

compreendermos, embora sempre sejamos as mesmas pessoas.

Resta, agora, levar a bom termo uma questão central para uma teoria da

ação: como responsabilizar um indivíduo por suas ações, i.e., é possível responsabilizar

moralmente o indivíduo pelas ações por ele praticadas, se no plano representacional a

lei vigente é a da causalidade?

Como a argumentação empreendida frisou por diversas vezes, a ação se

segue com absoluta necessidade do confronto entre os motivos e o caráter do indivíduo.

Isso significa que “O que se faz segue-se do que se é”, operari sequitur esse. As ações

praticadas são acompanhadas por uma consciência (Bewusstsein) da própria potência e

da originalidade, graças à qual os indivíduos sentem-se como autores reais de suas ações

e, por isso mesmo, responsáveis (verantwortlich) moralmente.45

O agir, o operari, é resultado exato do que o ser é, o esse, e por isso, quando

se diz que o indivíduo poderia agir de outra forma, segundo a argumentação de

Schopenhauer, diz-se com isso que o indivíduo poderia ser outro. A responsabilidade

moral refere-se, de um ponto de vista superficial, à ação cometida, mas, em uma 44 Cf. MVR, §55, p.391, I 357. No original alemão: „der erworbene Charakter, den man erst im Leben, durch den Weltgebrauch.“ 45 Cf. SFM, §10, p.94, III 645.

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consideração aprofundada, na causa / fundamento da ação, o ser do indivíduo: naquilo

que ele é estão assentadas a culpa e o mérito.

É no ser, no esse, no caráter que se encontra o aguilhão da consciência

moral, onde o sujeito se sente culpado e responsável, decerto por causa do operari. A

responsabilidade, assim, é o sentimento de tomada de consciência de que o nosso ser,

esse, é livre, e que as ações praticadas por ele são exteriorizações necessárias do que ele

é. Esse sentimento é baseado na inquebrantável certeza de que nós mesmos somos os

autores de nossos atos (Thäter unserer Thaten).46 A argumentação de Schopenhauer

pode ser resumida na seguinte passagem de SLV: Ali aonde se situa a culpa, tem que situar-se também a responsabilidade; e, posto que esse é o único dado que nos justifica para inferir a liberdade moral, então a liberdade tem que ser dita no mesmo lugar, ou seja, no caráter do ser humano; tanto mais, quanto que nos temos convencido suficientemente de que aquela não se pode encontrar imediatamente nas ações individuais que, sob o suposto do caráter, se produzem com estrita necessidade. Mas o caráter é, como se demonstrou, inato e imutável.47

Desta forma, pôde-se observar como Schopenhauer, tendo como pano de

fundo teórico a terceira antinomia kantiana, utiliza e relaciona os conceitos de caráter,

de motivo, e de princípio de individuação para conciliar a liberdade da vontade (em-si)

com os princípios de razão e de individuação (representação) e, ainda, garantir a

responsabilidade moral pelas ações praticadas.

2.2. A Doutrina do Direito (Rechtslehre) de Arthur Schopenhauer

2.2.1. A Doutrina do Direito (Rechtslehre) ou Justiça Temporal (zeitliche

Gerechtigkeit)

É possível notar, ao longo da obra schopenhaueriana a utilização do

conceito de Justiça (Gerechtigkeit) em três registros: (i) a Justiça entendida como

46 Cf. SLV, p.133, III 563. 47 SLV, p.134, III 564. No original alemão: „Da, wo die Schuld liegt, muß auch die Verantwortlichkeit liegen: und da diese das alleinige Datum ist, welches auf moralische Freiheit zu schließen berechtigt; so muß auch die Freiheit ebendaselbst liegen, also im Charakter des Menschen; um so mehr, als wir uns hinlänglich überzeugt haben, daß sie unmittelbar in den einzelnen Handlungen nicht anzutreffen ist, als welche, unter Voraussetzung des Charakters, streng necessitirt eintreten. Der Charakter aber ist, wie im dritten Abschnitt gezeigt worden, angeboren und unveränderlich.“

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Virtude (freiwillige Gerechtigkeit),48 (ii) como Justiça Temporal (zeitliche

Gerechtigkeit), e (iii) como Justiça Eterna (ewige Gerechtigkeit). A primeira ocorrência

para o uso da Justiça pode ser entendida como um certo grau no desvelar o Véu de

Maia, um certo olhar através do princípio de individuação que faz com que o indivíduo

abdique em parte de seu egoísmo, fazendo menor distinção entre si mesmo e os outros.

O segundo tipo de justiça afirma-se como tal quando a ação realizada para evitar uma

ação injusta refere-se ao futuro (Zukunft); ela tem no Estado seu dispositivo, seu meio

para efetivar-se, podendo, assim, retaliar e punir. Por fim, a justiça eterna rege o

mundo.

A explanação da justiça temporal é totalmente dependente do conceito que

pode ser entendido como a sua origem, o Egoísmo (Egoismus). Com o intuito de expor

e analisar os conceitos basilares que possibilitaram que as doutrinas do direito e do

Estado schopenhauerianas fossem erigidas, faz-se necessário analisar e trabalhar com o

núcleo de sustentação de toda a ética schopenhaueriana, i.e., com o conceito de

Egoísmo, com a origem dos conceitos de justiça e injustiça, com a qualidade moral das

ações praticadas, e com a forma pela qual todos os conceitos envolvidos em sua teoria

são articulados.

2.2.2. Egoísmo (Egoismus) como Origem da Guerra de Todos Contra

Todos

Schopenhauer justifica a hostilidade entre os indivíduos a partir de duas

perspectivas: (i) a perspectiva epistemológica, ao mostrar que o sujeito do conhecimento

é o sustentáculo do mundo, o que pode ser chamado de egoísmo teórico; e (ii) a

perspectiva ética, ao mostrar que cada um quer tudo para si, o que pode ser chamado de

egoísmo prático.

48 Essa distinção é bem notada por Annette Godart-van der Kroon no seu artigo Schopenhauer's Theory of Justice and its Implication to Natural Law. In: Jahrbuch der Schopenhauer-Gesellschaft 2003. Band 84. Frankfurt am Main: Verlag Köningshausen & Neuman Würzburg, 2003, p. 121-145. Contudo, os tradutores de língua portuguesa não chegaram a um consenso sobre a melhor tradução para o termo freiwillige Gerechtigkeit. Alguns traduzem por justiça espontânea, outros por justiça livre, outros, ainda, por justiça voluntária. Utilizaremos o termo de justiça voluntária, mas tendo em mente que esse tipo de justiça se refere à justiça enquanto virtude cardinal.

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48

O egoísmo em sua perspectiva ética, i.e., o egoísmo prático, é tratado por

Schopenhauer principalmente e de forma mais detida no §61 d’O Mundo como Vontade

e Representação e no capítulo 14 de Sobre o Fundamento da Moral. Em MVR,

Schopenhauer inicia sua exposição sobre o conceito recordando um aspecto de sua

filosofia que fora explicado no segundo livro de sua obra mais importante, ao mesmo

tempo em que enuncia o egoísmo como o ponto chave para que se possa entender a luta

contínua entre os indivíduos, ou seja, entender a guerra de todos contra todos:

Recordemos do livro segundo que na natureza inteira, em todos os graus de objetivação da vontade, existe necessariamente uma luta contínua entre os indivíduos de todas as espécies, e, justamente aí, exprime-se um conflito interno da vontade para vida consigo mesma. Nos graus mais elevados de sua objetivação, como qualquer outra coisa, esse fenômeno se expõe em distinção mais acentuada e, por conseguinte, pode ser mais bem decifrado. Tendo em vista esse fim, queremos primeiro perquirir em sua fonte o EGOÍSMO, como ponto de partida de toda luta.49

Apenas no tempo e no espaço há pluralidade, uma vez que o princípio de

individuação torna plural – fragmentado e dividido – o que em-si é uno e indiviso: a

vontade aparece em toda parte na multiplicidade de indivíduos, não como coisa-em-si,

mas como fenômeno. O princípio de individuação permite que a vontade se manifeste

de igual modo em número infinito de fenômenos de uma maneira plena e íntegra. O

grau mais elevado de objetivação alcançado pela vontade é o ser humano, e é no ser

humano que o egoísmo pode manifestar-se da forma mais nítida. O indivíduo é o sujeito

cognoscente, e, enquanto tal, é o portador da totalidade do mundo objetivo, ou seja, o

indivíduo acaba por se considerar o centro do mundo, como possuidor e mantenedor de

toda realidade; toda a natureza e todos os indivíduos externos a ele não existem senão

em virtude de sua representação. Tudo o que não sou, não pode me interessar. Dessa

forma, nada pode ser mais importante para o indivíduo do que ele mesmo.

O comportamento egoísta tem sua origem na afirmação da vontade para

vida manifesta no plano fenomênico. Entre os seres dotados de entendimento, os

animais não humanos e humanos, o egoísmo é tido como a motivação fundamental,

porque ele pode ser entendido como um ímpeto para a existência – uma existência 49 MVR, §61, p.425-426, I 391. Tradução ligeiramente alterada. No original: „Wir erinnern uns aus dem zweiten Buch, daß in der ganzen Natur, auf allen Stufen der Objektivation des Willens, nothwendig ein beständiger Kampf zwischen den Individuen aller Gattungen war, und eben dadurch sich ein innerer Widerstreit des Willens zum Leben gegen sich selbst ausdrückte. Auf der höchsten Stufe der Objektivation wird, wie alles Andere, auch jenes Phänomen sich in erhöhter Deutlichkeit darstellen und sich daher weiter entziffern lassen. Zu diesem Zweck wollen wir zunächst dem Ego ismus, als dem Ausgangspunkt alles Kampfes, in seiner Quelle nachspüren.“

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desejada incondicionalmente – e para o bem-estar, o que o identifica com a afirmação

da vontade para vida. O ser humano ao se colocar e interpretar o mundo da perspectiva

de ser o seu centro acaba por relacionar tudo o que nele acontece consigo mesmo,

considerando-se merecedor da maior soma possível de benefícios e vantagens. Ele

busca desfrutar de tudo e tudo possuir, tendo como mote “tudo para mim e nada para o

outro”,50 e como máxima51 neminem iuva, imo omnes, si forte conducit, laede [não

ajudes a ninguém, mas prejudica a todos, se isto te for útil].52

O egoísmo faz com que os indivíduos anteponham sua própria existência e

bem-estar a tudo o mais, apesar de frente a todos os outros seres serem apenas um.

Schopenhauer assevera que “alguns homens seriam capazes de assassinar um outro só

para engraxar suas botas com a gordura dele.”53 Isso significa que, por sermos todos

fenômenos de uma vontade única que entra em conflito consigo mesma na pluralidade

do mundo como representação, acabamos por instaurar relações prima facie amorais e,

consequentemente, antimorais entre os indivíduos.54 E não é a instrução nem a reflexão,

i.e., não é de forma racional que se alcança a moralidade, pois, como a ética

schopenhaueriana enuncia, o querer não pode ser ensinado (velle non discitur). O

contraste maior gerado por essa forma de interpretar e agir no mundo é o zelo para

consigo mesmo e a indiferença na consideração do outro.

50 SFM, §14, p.121, III 667. No original alemão: „»Alles für mich, und nichts für die Andern«.“ 51 Para Schopenhauer uma máxima apenas descreve, a posteriori, a regra de ligação pela qual uma causa é relacionada ao seu efeito. No caso da ação, a máxima é a formulação do princípio que dá regularidade à conduta do agente. Ela é a explicitação do padrão de ações nas mais variáveis circunstâncias. Pode-se dizer, assim, que para Schopenhauer a máxima é, em última instância, a expressão da constância, da regularidade, a regra que permanece imutável na observação de um certo conjunto de fenômenos que são referidos ao agir humano, e assim ao caráter dessas ações. Para Kant, contudo, máxima seria um princípio subjetivo da vontade que contém a regra prática determinada pela razão de acordo com o sujeito, i.e., ela é o princípio de acordo com o qual o sujeito age; em outras palavras, é a tradução da regra autoelaborada a priori para a condução da maneira habitual de agir; a ação moral passa pelo teste das máximas, em confronto com o imperativo categórico, sendo que, desse modo, a máxima prescreve a forma pela qual o indivíduo deve agir. 52 Cf. SFM, §7, p.72, III 628. Essa máxima é repetida, com uma pequena variação – “neminem iuva, imo omnes, si forte conducit (ou seja, ainda sob certas condições [also immer noch bedingt]), laede!” [não ajudes ninguém, mas prejudica a todos, se acaso fores levado a isso] em SFM, §14, p. 126, III 670. 53 SFM, §14, p.124, III 668. No original alemão: „[…] mancher Mensch wäre im Stande, einen andern todtzuschlagen, bloß um mit dessen Fette sich die Stiefel zu schmieren.“ 54 “É do ponto de vista da representação que existem, pois, indivíduos separados, e, aí, o egoísmo se faz presente como o motivo antimoral por excelência”. CACCIOLA, M. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: EDUSP, 1994, p.158. Doravante abreviado por Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo, seguido de indicação de página.

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50

Contudo, Schopenhauer não considera o egoísmo uma conduta estritamente

má; antes, deve-se entendê-lo como uma conduta moral indiferente,55 uma espécie de

destino inescapável, um ponto de vista usual, não sendo nem bom, nem mau, mas um

atributo predominante e recorrente dos indivíduos. O egoísmo nada mais é do que o

desejo de ser e continuar sendo. Exatamente aquilo que é a afirmação da vontade. O ser

egoísta busca continuar existindo e, se possível, em melhor situação; ele é aquele que

considera a afirmação de si fundamental, querendo conservar o seu próprio eu nas

melhores condições possíveis. Se for preciso, pode até prejudicar o outro, mas

prejudicar o outro não é para o egoísta um fim em si mesmo; trata-se apenas de um

meio para obter o seu fim.

Mediante a exposição feita, é possível inferir que enquanto cada indivíduo

busca avidamente assegurar sua existência nas melhores condições possíveis,

perseguindo seus fins pelos meios que julga adequado, certamente os meios de

realização do seu querer entrarão em conflito com o querer e os meios de realização do

querer de outro indivíduo. Tem-se, assim, uma sobreposição das esferas de afirmação da

vontade dos indivíduos, i.e., a concorrência, e a colisão de interesses. O conflito interno

da vontade emerge no mundo empírico como conflito entre todos os mais diversos graus

de objetivação da vontade, mas é o ser egoísta o responsável pelo conflito interno da

vontade conseguir atingir temível manifestação no mundo como representação,

engendrando uma luta generalizada entre os indivíduos, a guerra de todos contra todos.

Agora, deveremos nos deter na análise das consequências dessa guerra

originada do e pelo egoísmo, i.e., das consequências da autoafirmação da vontade de

cada indivíduo extrapolar a sua própria esfera de atuação e afirmação, entrando em

conflito com a de outros indivíduos. Existiriam meios para neutralizar ou amenizar

essas consequências indesejadas? As doutrinas do direito e do Estado podem ser

entendidas como uma resposta afirmativa para tal questão, restando-nos analisar em

qual medida e como.

55 Segundo Schopenhauer, o egoísmo produz ações moralmente indiferentes. (Cf. SFM, §16, p.138, III 680). Egoísmo e valor moral excluem-se um ao outro.

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51

2.2.3. A Relação do Egoísmo com a Injustiça e o Injusto

O conceito de injustiça (Unrecht), a ser agora examinado, deriva

diretamente do conceito apresentado anteriormente, o egoísmo. As conexões que

Schopenhauer traça entre egoísmo e injustiça indicam que o egoísmo não é somente

uma motivação indiferente ou neutra, mas está necessariamente conectado com a

origem da guerra de todos contra todos. Schopenhauer escreve:

Já examinamos a primeira e a mais simples afirmação da vontade para vida, a simples afirmação do próprio corpo, vale dizer, a exposição da vontade via atos no tempo, na medida em que o corpo, em sua forma e finalidade, expõe essa mesma vontade espacialmente, e não mais. Semelhante afirmação se mostra como conservação do corpo por meio do emprego de suas forças.56

E, no sentido de o egoísmo consistir na afirmação do próprio corpo,

Schopenhauer completa:

– Ora, na medida em que a vontade expõe aquela AUTOAFIRMAÇÃO do próprio corpo em inumeráveis indivíduos, um ao lado do outro, essa autoafirmação, em virtude do egoísmo inerente a todos, vai muito facilmente além de si mesma até a NEGAÇÃO da mesma vontade que aparece em outro indivíduo.57

Nesse ponto da argumentação schopenhaueriana é possível notar a

influência de Thomas Hobbes (1588-1679), o que torna interessante a análise da forma

pela qual é estabelecido o diálogo do filósofo da vontade com a obra daquele que ficou

conhecido – talvez injustamente – como o filósofo do absolutismo. Para tanto, é

necessário um pequeno excurso em nossa exposição para trazer à luz alguns elementos

da argumentação hobbesiana.

É bem conhecido o filosofema hobbesiano acerca da tentativa de justificar e

legitimar um ordenamento político a partir da caracterização da natureza humana em um

estado de vida no qual não existem sociedade civil, poder coercitivo, leis que regulem a

interação entre os indivíduos, nem um poder que vincule os indivíduos entre si, que

estabeleça obrigações e deveres. 56 MVR, §62, p.428, I 393-394. No original: „Es ist bereits auseinandergesetzt, daß die erste und einfache Bejahung des Willens zum Leben nur Bejahung des eigenen Leibes ist, d.h. Darstellung des Willens durch Akte in der Zeit, in so weit schon der Leib, in seiner Form und Zweckmäßigkeit, denselben Willen räumlich darstellt, und nicht weiter. Diese Bejahung zeigt sich als Erhaltung des Leibes, mittelst Anwendung der eigenen Kräfte desselben.“ 57 MVR, §62, p.429, I 394. No original: „— Indem nun aber der Wille jene Se lbstbe jahung des eigenen Leibes in unzähligen Individuen neben einander darstellt, geht er, vermöge des Allen eigenthümlichen Egoismus, sehr leicht in einem Individuo über diese Bejahung hinaus, bis zur Verne inung desselben, im andern Individuo erscheinenden Willens.“

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Ainda segundo Hobbes, os indivíduos são iguais por natureza58 e por

natureza almejam a autoconservação, nas melhores condições possíveis. Este

movimento de evitar o dano e buscar a própria satisfação não é, segundo o filósofo

inglês, absurdo, nem repreensivo, nem contrário à reta razão (recta ratio) e, por não

contrariá-la, essas ações praticadas são reconhecidas como um certo tipo de direito –

que é definido como “a liberdade que cada homem tem em usar suas faculdades naturais

conforme sua reta razão.”59 O empenho em proteger a própria vida e integridade física,

pelos meios e pelas ações necessárias, é o que ele define como direito natural.60

O ser humano descrito por Hobbes evita o que lhe desagrada e busca o que

lhe apraz. Se dois indivíduos almejam um mesmo fim, eles se tornam concorrentes. Essa

concorrência se dá num estado de vida sem regras, leis comuns, em que todos os meios

para manutenção da própria vida são permitidos, e no qual não há um árbitro para evitar

as indesejadas consequências funestas desse contexto. Trata-se de um ambiente de

extrema competição, no qual os indivíduos estão autorizados pelo direito natural a matar

uns aos outros para assegurarem os meios e os fins que possam garantir a

autoconservação.

A natureza do ser humano em um contexto no qual ela possa se manifestar

de modo pleno, i.e., um contexto desprovido de elementos limitadores, segundo

Hobbes, resulta na inferência de um estado em que os indivíduos competem entre si

para obterem seus fins, desconfiam uns dos outros porque não possuem garantias que

lhes assegurem a vida, e almejam à glória. Esse estado de vida foi denominado estado

de natureza, um estado caracterizado pela ausência de fatores restritivos, e no qual é

possível inferir que é permitido fazer o que se quer a quem julgar adequado, e se pode

ter, usar e usufruir o que for possível obter. Nele, portanto, não há diferença entre o meu

e o teu, i.e., não há propriedade privada – a posse de um bem não é peremptória: ela

58 Por natureza os homens são iguais, e embora existam diferenças entre eles em alguns aspectos, essas diferenças não são tão grandes a ponto de permitir que alguém possa exigir algum tipo de status ou benefício (Cf. Leviatã, p.183, p.[60], p. 78). Nem a força física serve como critério para se exigir algum tipo de vantagem, uma vez que o mais fraco fisicamente pode superar o mais forte através da inteligência ou através da aliança com outros homens. E aqueles que podem se afetar de igual modo são iguais. Cf. FRATESCHI, Y. Estado e Direito em Thomas Hobbes. In: MACEDO, R. (org.) Curso de filosofia política: do nascimento da filosofia a Kant. São Paulo: Atlas, 2008, p.300. Doravante abreviado como Estado e Direito em Thomas Hobbes, seguido de indicação de página. 59 De Cive, p.94, p.27. “Right is the liberty each man has of using his natural faculties in accordance with right reason”. No original latino: “Neque enim Iuris nomine aliud significatur, quam libertas quam quisque habet facultatibus naturalibus secundum rectam rationem utendi.” 60 De Cive, p.94, p.27. Importante atentar para o fato de ser uma defesa da integridade física.

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dura apenas enquanto existe a posse física desse bem –, e nem se pode definir o que é

justo ou injusto, uma vez que onde não há lei não há justiça.61 É um estado de vida no

qual todos os indivíduos possuem direito a tudo, e esse direito vai até onde vai o seu

poder.62

Esses fatores tornam o estado de natureza um estado de vida insuportável,

um estado caracterizado pela guerra de todos contra todos, em que o homem é o lobo do

próprio homem. Como assinala Renato Janine Ribeiro, “Por natureza cada indivíduo

quer expandir-se; mas, fazendo-o, entra em guerra com os outros.”63

Toda essa competição, essa falta de regras e de leis geram um estado de

desconfiança: não existem razões para acreditar na palavra do próximo, nem para

acreditar que não existe a concorrência por um mesmo fim. Não há razões suficientes

para crer que se está seguro, e não há garantias satisfatórias de vida: existe sempre o

medo da morte violenta à espreita; a desconfiança e as incertezas imperam, e a

autoconservação está em estado constante de ameaça. As incertezas são tantas que, se

um indivíduo se sentir ameaçado e julgar que a melhor forma de se preservar é atacando

primeiro, então esse ataque é legitimado – i.e., não pode ser censurado – pelo que

Hobbes chama de direito natural, porque, como visto, o indivíduo tem o direito de

proteger sua integridade física e vida pelos meios que julgar necessário.

Se a natureza do ser humano o faz competir, desconfiar dos outros, e

almejar à glória, não se pode afirmar que ele é um animal gregário, mas que sua

natureza tende à dissociação e à guerra. Contudo, não se deve cair no erro de julgar a

sua natureza como sendo simplesmente má. O ser humano no estado de natureza não é

61 Cf. Leviatã, p.188, p. [63], p. 81. 62 Segundo Richard Tuck, “A descrição completa do estado de natureza era claramente o coração da obra hobbesiana; na verdade, ele foi o primeiro a cunhar esse termo, apesar da teoria de Grotius já ter envolvido essa noção.” No original: “A full description of the state of nature was clearly at the heart of Hobbes’s work; indeed, he was the first person to coin the term, though it is clear that Grotius’s theory in fact involved such a notion” TUCK, R. The rights of war and peace – political thought and the international order from Grotius to Kant. New York: Oxford University Press, 1999. p.135. Doravante abreviado como The rights of War and Peace seguido de indicação de página. “[...] para Hobbes o estado de natureza é o estado em que os homens vivem sem um poder político capaz de obrigá-los a se respeitarem mutuamente e a obedecerem regras comuns. O estado de natureza é, em suma, caracterizado pela ausência do Estado e de leis que possam regular as ações humanas e determinar o que é o justo ou injusto”. (Estado e Direito em Thomas Hobbes, p.300). 63 RIBEIRO, R. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. p.245. Pode-se dizer que essa asserção cabe também a Schopenhauer.

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puramente mau. Ele apenas tenta suprir suas necessidades de autoconservação e de

felicidade num estado em que a falta de direitos impera.64

É no que se refere ao agir humano em sua camada mais epidérmica, i.e., no

fenômeno, na aparência, na consideração apenas da relação entre causas e

consequências, o ponto em que se pode notar a aproximação da filosofia

schopenhaueriana com a hobbesiana. Schopenhauer concorda com a exposição

hobbesiana acerca da caracterização do estado de natureza como uma guerra de todos

contra todos, e a entende como uma consequência de os seres humanos serem, em sua

maioria, egoístas, o que significa, em termos da filosofia schopenhaueriana, a colisão

das esferas de afirmação de vontade dos indivíduos. É exatamente a formulação da

dinâmica de colisão de interesses e finalidades descrita por Hobbes que é elogiada por

Schopenhauer, principalmente quando referida ao primeiro capítulo da obra De Cive:

[...] tão logo uma multidão se rebela contra toda lei e ordem: aí se mostra de imediato, da maneira mais nítida, o bellum omnium contra omnes [a guerra de todos contra todos], descrito primorosamente por Hobbes no primeiro capítulo do De Cive.65

Os dois filósofos compartilham da asserção de que os indivíduos entram em

conflito não só por causa da escassez de um determinado objeto de desejo, mas porque

possuem necessidades e interesses para os quais a satisfação necessita de meios, e

porque, devido ao compartilhamento do ambiente em que vivem, podem ambicionar

diferentes objetos por um mesmo meio ou por meios conflitantes. O perigo do conflito

subjaz, assim, na condição humana. Em Hobbes a natureza do ser humano em um

determinado contexto determina a situação de miséria e conflito. Em Schopenhauer, o

próprio ser humano determina sua situação de miséria, conflito e carência, porque assim

é a sua essência.

Contudo, o afastamento de Schopenhauer em relação a Hobbes se encontra

no fato dos filósofos possuírem metodologias e pressupostos teóricos diferentes:

enquanto o filósofo inglês tem como um dos pilares de seu sistema o paradigma

64 Pode-se dizer que a falta de direitos impera porque ter direito a tudo, nesse contexto, é como ter direito a nada. O jovem Schopenhauer, em uma passagem de seus manuscritos, já reconhecera essa asserção: “[...] de acordo com Hobbes, originalmente todos possuem direito a tudo, mas um direito exclusivamente a nada.” HN I, Fragmento 527, Dresden 1816, Fólio h.h.h.h., p. 389. No original alemão: „[...]wie, nach Hobbes, ursprünglich ein Jeder ein Recht auf ein Jedes Ding hat, aber auf keines ein ausschließliches[...].“ 65 MVR, §61, p. 427, I 393. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „[…] sobald irgend ein Haufen Menschen von allem Gesetz und Ordnung entbunden ist: da zeigt sich sogleich aufs Deutlichste das bellum omnium contra omnes, welches Hobbes, im ersten Kapitel De Cive, trefflich geschildert hat.“

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mecanicista e a análise empírica das ações do ser humano, i.e., a interpretação do

movimento e da interação de corpos materiais no espaço, inspirado por Galileu,

Schopenhauer pode, por considerar também o âmbito da experiência interna e por

elaborar uma metafísica imanente da vontade como arcabouço teórico, considerar a

conduta humana e o direito para além da consideração fundamentalmente empírica.

Dessa forma, a argumentação hobbesiana só pode considerar a justiça, a injustiça, e a

moral como convenções humanas adotadas no findar do estado de natureza e no ato de

fundação do Estado – o que de acordo com a ótica schopenhaueriana é uma incorreção,

como será explicitado adiante no texto através da exposição e análise dos argumentos

apresentados por Schopenhauer. Todavia, em um determinado ponto de sua exposição,

para contestar a visão hobbesiana, o filósofo da vontade se esquece da argumentação ad

rem e parte para argumentação ad hominem:

Quem, todavia, deseja pôr de lado a consideração puramente moral da conduta humana, ou negá-la e a considerar somente segundo sua eficácia exterior e consequência, pode certamente, com Hobbes, declarar justiça e injustiça determinações convencionais, arbitrariamente adotadas e, por conseguinte, inexistentes fora da lei positiva; e com isso jamais podemos apontar-lhe na experiência externa o que não pertence a ela. É esse Hobbes o mesmo que, em seu livro De principiis Geometrarum, caracteriza estranhamente seu modo de pensamento, no todo empírico, negando por completo a matemática propriamente pura, ao afirmar obstinadamente que o ponto possui extensão e a linha possui largura, e, como nunca podemos exibir-lhe um ponto sem extensão e uma linha sem largura, tampouco podemos fazer-lhe compreender a aprioridade do direito, visto que ele se fecha a qualquer conhecimento não empírico.66

Para Schopenhauer, o egoísmo, como exposto, leva à invasão dos limites da

afirmação da vontade alheia. Essa invasão pode ocorrer por (i) ferimento / dano / lesão

(Verletzung), (ii) por destruição do corpo de outra pessoa ou (iii) quando ocorre a

imposição de uma vontade particular a uma vontade alheia – que é negada e passa,

66 MVR, p.438, I403-404. No original alemão: „Wer nun aber die rein moralische Betrachtung des menschlichen Handelns bei Seite setzen, oder verleugnen, und das Handeln bloß nach dessen äußerer Wirksamkeit und deren Erfolg betrachten will, der kann allerdings, mit Hobbes, Recht und Unrecht für konventionelle, willkürlich angenommene und daher außer dem positiven Gesetz gar nicht vorhandene Bestimmungen erklären, und wir können ihm nie durch äußere Erfahrung das beibringen, was nicht zur äußern Erfahrung gehört; wie wir demselben Hobbes, der jene seine vollendet empirische Denkungsart höchst merkwürdig dadurch charakterisirt, daß er in seinem Buche »De principiis Geometrarum« die ganze eigentlich reine Mathematik ableugnet und hartnäckig behauptet, der Punkt habe Ausdehnung und die Linie Breite, doch nie einen Punkt ohne Ausdehnung und eine Linie ohne Breite vorzeigen, also ihm so wenig die Apriorität der Mathematik, als die Apriorität des Rechts beibringen können, weil er sich nun einmal jeder nicht empirischen Erkenntniß verschließt.“

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então, a servir à vontade impositiva,67 e pode afetar a pessoa (Person), a liberdade

(Freiheit), a propriedade (Eigentum), a honra (Ehre) e o corpo (Leib).68 Essa afirmação

da vontade para além do próprio corpo, mediante a negação da vontade de outrem, é

definida por Schopenhauer como injustiça (Unrecht).

Quem sofre injustiça – quem tem a vontade negada por uma vontade

estranha – sente esta invasão na esfera de afirmação do próprio corpo – a primeira e

mais básica afirmação da vontade para vida. Mas é importante ressaltar que, para

Schopenhauer, o praticante da injustiça também está sendo injusto consigo mesmo, uma

vez que a vontade dele e a vontade de quem sofre a injustiça são, em essência

metafísica, a mesma vontade: opressor e oprimido são uma só e mesma coisa; é a

vontade dilacerando a si mesma (selbst zerfleischen). O opressor, o praticante da

injustiça, apreende isso através de um sentimento de difícil compreensão e explicação, a

saber, o remorso (Gewissensbiß) – o abatimento da consciência que percebe ter

cometido uma falta, um erro – ou injustiça praticada (ausgeübten Unrechts).

O sentimento de remorso é uma espécie de confissão involuntária do

praticante da injustiça do seu ato; um sentimento turvo de que aquilo que está sendo

considerado como diferença, devido ao princípio de individuação, é, no fundo,

identidade; trata-se do conhecimento nebuloso do fato de que a vontade dilacera a si

mesma.

Após definir o que é injustiça, Schopenhauer caracteriza cinco graus em que

ela se manifesta, estabelecendo como critério para tal classificação o grau de

objetivação da vontade. Para Schopenhauer, a vontade manifesta-se em graus no mundo

fenomênico, no mundo como representação.69 O grau mais baixo de manifestação da

67 Cf. MVR, §62, p.429, I 394. 68 Aqui temos uma pequena discrepância entre formulações: somente no escrito SFM, do ano de 1840, Schopenhauer inclui a invasão dos limites da afirmação da vontade que correspondem à liberdade como uma das possibilidades de ocorrência da injustiça (Cf. SFM, §17, p.150-151, III 689-690). Na formulação dos PP, datada do ano de 1851, a liberdade não é mencionada como uma categoria passível de ser afetada de forma a ser configurada uma injustiça (Cf. PP, §121, p. 86, V 264). Em última instância, o ataque à pessoa, à liberdade, à propriedade e à honra parecem se configurar como ataques à esfera de afirmação da vontade do indivíduo, assim como o corpo, que é mencionado no contexto da destruição, dano, lesão ou ferimento, mas não como ponto passível de ser afetado. Como parece estranho desconsiderar, a partir dessa perspectiva de interpretação do conceito, um elemento tão importante como a liberdade, decidiu-se por manter a formulação feita em SFM por considerá-la a mais completa, adicionando o corpo como lugar passível de ser afetado por injustiça. 69 “Seu emergir [da vontade] na visibilidade, sua objetivação, possui tantas infindas gradações, como a existente entre a mais fraca luz crepuscular e a mais brilhante luz solar, entre o mais forte tom e o mais baixo eco.” MVR, §25, p.189, I 152. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „sein

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vontade engloba as forças mais gerais da natureza (die allgemeinsten Kräfte der Natur),

as quais são consideradas pelo autor como fenômenos imediatos – e ele usa como

exemplo os casos da gravidade e da eletricidade; em seguida ele aponta nessa gradação

o reino inorgânico (unorganisches Reich), o reino vegetal (Pflanzenreich), os animais

não humanos (Thiere), e, por fim, o ser humano (Mensch). Ele escreve: “Os reinos da

natureza formam uma pirâmide, cujo ápice é o ser humano.”70

Schopenhauer identifica como grau mais flagrante de injustiça o

canibalismo, pois nele ocorre, de forma concreta, a contradição da vontade em seu mais

elevado grau de objetivação, no ser humano. Nesse evento observa-se a manifestação

mais nítida e plena da vontade consumir a si mesma em um outro corpo, no qual

também ela se manifesta de forma mais nítida e plena. Em seguida, o filósofo aponta o

homicídio como segundo grau mais alto de injustiça.71 A leitura do texto deixa

subentendido que para fins de classificação do grau de injustiça apenas o assassinato de

outro animal humano é considerado, não incluindo aí o assassinato de um animal não

humano. Diferindo apenas em grau do homicídio, mas em essência igual a ele, o autor

aponta a mutilação intencional ou a mera lesão do corpo de outro indivíduo. Como

quarto grau na escala de formas de injustiça tem-se o subjugar um indivíduo, fazendo

com que a vontade dele seja compelida a trabalhar para uma vontade estranha a dele.72

O quinto grau de injustiça se manifesta no ataque à propriedade alheia.

O filósofo define propriedade (Eigentum), de forma genérica, como aquilo

que foi trabalhado por intermédio das próprias forças.73 De acordo com essa definição,

o trabalho do corpo alheio e a propriedade confundem-se e identificam-se, fazendo com

que o ato de atacar um corpo sem vida, i.e., o ato de atacar uma propriedade identificada

Hervortreten in die Sichtbarkeit, seine Objektivation, hat so unendliche Abstufungen, wie zwischen der schwächsten Dämmerung und dem hellsten Sonnenlicht, dem stärksten Ton und dem leisesten Nachklange sind.” 70 MVR, §28, p.219, I 182-183. No original alemão: „sie [alle Gestaltungen der Thiere, das Pflanzenreich, die Unorganischen] bilden eine Pyramide, deren Spitze der Mensch ist.“ Se formos interpretar a filosofia schopenhaueriana de forma estrita, a partir do que ele escreve sobre as diferenças entre os gêneros feminino e masculino, essa gradação teria a especificidade de ter o gênero masculino como grau mais intenso da manifestação da vontade no plano fenomênico. O indivíduo genial constituiria o seu ápice. 71 Schopenhauer escreve que o horror no homicídio cometido ou o tremor em vir a cometê-lo são os responsáveis pelo apego à vida, condição inerente a todo ser vivo enquanto fenômeno da vontade para vida (Cf. MVR, §62, p.430, I 395). 72 Essa lógica de funcionamento caracteriza a escravidão (Sklaverei) e será analisada adiante no texto. 73 Cf. MVR, §62, p.430, I 396.

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com um corpo alheio, também seja injustiça.74 Dessa maneira, quem usurpa uma

propriedade serve-se das forças do corpo, da vontade ali objetivada, a fim de fazê-las

servir à vontade objetivada no corpo usurpador. Em suas notas de aula sobre a ética

(1820), Schopenhauer define a propriedade da seguinte forma:

aquilo que não pode ser tomado do indivíduo sem incorrer em injustiça; o que pode ser defendido pelo indivíduo até suas últimas consequências sem cair em injustiça; o que se consegue mediante suas próprias forças e cuja subtração priva a vontade que se objetiva nesse corpo das forças empenhadas por seu corpo.75

Nessas mesmas preleções, o filósofo da vontade expõe a temática de forma

mais flexível.76 Ele reconhece os mesmos cinco graus de injustiça, mas admite duas

pequenas modificações: (i) que a ação possa ser de natureza mista e corresponder a mais

de um dos graus ao mesmo tempo,77 e (ii) uma rubrica (Rubrik) especial de injustiça,

que é derivada do não cumprimento das obrigações relativas às relações sexuais

(Sexualverhältniß) – que consistiria um sexto tipo de injustiça.78

Esse sexto tipo de injustiça é um tipo muito específico e, como mencionado,

é tratado de forma detida nas preleções de Berlim sobre a ética, embora seja

mencionada de forma en passant no capítulo XXVII – Über die Weiber (Sobre as

Mulheres) de seu escrito PP. Trata-se, basicamente, do não cumprimento de um acordo

que deve ser estabelecido entre homens e mulheres, aos moldes de um contrato. O

homem deverá prometer a mulher com a qual mantiver relações sexuais que não a

abandonará e que tomará as providências necessárias quanto ao seu cuidado e sustento.

Dessa obrigação assumida pelo homem, Schopenhauer deduz a necessidade de

fidelidade por parte da mulher – fidelidade entendida como o não ter relações sexuais

com outro homem –, de forma a não colocar em jogo a paternidade da prole a ser

concebida; da fidelidade da mulher, Schopenhauer deriva a necessária fidelidade do 74 Em suma, atacar uma propriedade identificada com o corpo de outro indivíduo equivale a atacar esse indivíduo. 75 HN, Metafísica dos Costumes, p.93, p.153. No original alemão: „Eigentliches Eigenthum, d. h. solches, welches, ohne Unrecht, dem Menschen nicht genommen, hingegen ohne Unrecht aufs Aeußerste von ihm vertheidigt werden kann, das kann, unsrer Ableitung des Unrechts zufolge, nur dasjenige seyn, was durch seine Kräfte bearbeitet ist, durch Entziehung dessen man daher die darauf verwendeten Kräfte seines Leibes, dem in diesem Leibe sich objektivirenden Willen entzieht, um solche Kräfte dem in einem andern Leibe objektivirten Willen dienen zu lassen.“ 76 Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p. 90-92, p. 150-152. 77 Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.90, p.150. 78 Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.90, p.150.

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homem, o que para ele significa o compromisso de restringir sua capacidade de

satisfazer o impulso sexual feminino a uma só mulher. Mas a fidelidade do homem a

uma única mulher dura enquanto durarem as condições dela em satisfazer sexualmente

o impulso sexual do homem; aquele que toma uma segunda mulher mais jovem quando

a primeira mulher não consegue mais satisfazê-lo, se possuir condições materiais para

manter as duas mulheres e cuidar de todos os filhos, segundo o autor, do ponto de vista

moral não cometeria nenhuma injustiça, apesar de muitos sistemas jurídicos proibirem a

poligamia.

Contudo, esse tipo de injustiça parece ser irrelevante na constituição da

doutrina do direito do autor, e, talvez, por essa razão, não apareça nas formulações

posteriores do conceito de injustiça dos escritos publicados, tais como SFM (1840),

MVR II (1844), e PP (1851); o filósofo apenas se refere novamente a esse tipo de

injustiça no capítulo de PP que versa sobre as mulheres, em um registro outro que o da

formulação da doutrina do direito.

Toda a constituição da tipologia da injustiça parece ser baseada e se dar no

registro da isonomia entre os graus de objetivação da vontade considerados. O

raciocínio é feito levando em consideração preponderantemente as ações que ocorrem

entre seres humanos, i.e., no mais alto grau de manifestação da vontade; é entre os

animais humanos que o canibalismo, o homicídio, a lesão, o constrangimento de agir

guiado pela vontade de outro, o ataque à propriedade, e os tipos de relações sexuais

estabelecidos são pensados como possibilidade de concreção de ações injustas. No

entanto, algumas relações interespécies, como, por exemplo, a tortura, o uso, e o

consumo de animais por seres humanos, aparecem na reflexão do autor.

A tortura e os maus tratos são considerados atos de crueldade, e, por isso,

são classificados como moralmente condenáveis e injustos. Já o consumo de carne

animal e o uso de suas forças, no entanto, não são considerados condutas moralmente

injustas porque, segundo Schopenhauer, possuem justificativas: O autor justifica o fato

da vontade consumir a si mesma e o uso das forças de um corpo alheio por outro corpo,

quando em diferentes graus de objetivação, com o argumento que a privação da carne

ou do uso da força do animal não humano poderiam trazer mais sofrimento ao ser

humano que a abstinência do consumo de carne ou do auxílio animal nos trabalhos

cotidianos, especialmente os trabalhos mais pesados. Em outras palavras, matar um

animal para consumo não configura uma injustiça, como, da mesma forma, utilizar das

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forças do corpo animal para proveito humano, desde que justificado pelo contexto e de

que não seja feito de forma cruel, também não o é. Existem, ao menos, duas passagens

na obra publicada do autor que tentam justificar esses tipos de posicionamentos. Em

MVR, Schopenhauer escreve:

O direito do ser humano à vida e à força dos animais baseia-se no fato de que, com o aumento da clareza de consciência, cresce em igual medida o sofrimento; e a dor, que o animal sofre através da morte e do trabalho, não é tão grande quanto aquela que o ser humano sofreria com a privação de carne ou de força do animal. O ser humano, pois, na afirmação de sua existência, pode ir até a negação da existência do animal, e a vontade para vida no todo suporta aí menos sofrimento que no caso inverso. Isso ao mesmo tempo determina o grau de uso que se pode fazer das forças animais, sem cometer injustiça, o que, entretanto, é frequentemente desrespeitado, particularmente em relação aos animais de carga e aos cães de caça; contra o que, portanto, a sociedade protetora dos animais em especial orienta sua atividade. Aquele direito do ser humano, na minha opinião, não se estende à vivissecção, sobretudo em animais superiores. Já o inseto, por outro lado, não sofre através da sua morte quanto o ser humano sofre com a sua picada. – Isto os hindus não o perceberam.79

E, em SFM pode-se ler:

Que, de resto, a compaixão para com os animais não tenha de levar tão longe a ponto de, como os brâmanes, abstermo-nos da nutrição animal baseia-se no fato de que, na natureza, a aptidão para sofrer caminha passo a passo com a inteligência. Por isso o ser humano, pela privação da nutrição animal, principalmente no norte, sofreria mais do que sofre o animal por meio de uma morte rápida e sempre imprevista, que, todavia, dever-se-ia aliviar ainda mais mediante o clorofórmio. Em contrapartida, sem nutrição animal, o gênero humano no norte nem ao menos pode fazer o animal trabalhar para ele, e só o excesso de um esforço imposto torna-se crueldade80.

79 MVR, §66, nota do autor, p.474, I 441. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Das Recht des Menschen auf das Leben und die Kräfte der Thiere beruht darauf, daß, weil mit der Steigerung der Klarheit des Bewußtseyns das Leiden sich gleichmäßig steigert, der Schmerz, welchen das Thier durch den Tod, oder die Arbeit leidet, noch nicht so groß ist, wie der, welchen der Mensch durch die bloße Entbehrung des Fleisches, oder der Kräfte des Thieres leiden würde, der Mensch daher in der Bejahung seines Daseyns bis zur Verneinung des Daseyns des Thieres gehen kann, und der Wille zum Leben im Ganzen dadurch weniger Leiden trägt, als wenn man es umgekehrt hielte. Dies bestimmt zugleich den Grad des Gebrauchs, den der Mensch ohne Unrecht von den Kräften der Thiere machen darf, welchen man aber oft überschreitet, besonders bei Lastthieren und Jagdhunden; wogegen daher die Thätigkeit der Thier-Schutz-Gesellschaften besonders gerichtet ist. Auch erstreckt jenes Recht, meiner Ansicht nach, sich nicht auf Vivisektionen, zumal der oberen Thiere. Hingegen leidet das Insekt durch seinen Tod noch nicht so viel, wie der Mensch durch dessen Stich. - Die Hindu sehen dies nicht ein.“ 80 SFM, §19, p.183, III 715. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Daß übrigens das Mitleid mit Thieren nicht so weit führen muß, daß wir, wie die Brahmanen, uns der thierischen Nahrung zu enthalten hätten, beruht darauf, daß in der Natur die Fähigkeit zum Leiden gleichen Schritt hält mit der Intelligenz; weshalb der Mensch durch Entbehrung der thierischen Nahrung, zumal im Norden, mehr leiden würde, als das Thier durch einen schnellen und stets unvorhergesehenen Tod, welchen man jedoch mittelst Chloroform noch mehr erleichtern sollte. Ohne thierische Nahrung hingegen würde das Menschengeschlecht im Norden nicht ein Mal bestehen können. Nach dem selben Maaßstabe läßt der

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A Ética da Compaixão (Mitleidsethik) e a Doutrina do Direito (Rechtslehre)

schopenhauerianas podem até abarcar e considerar o sofrimento animal em suas

reflexões, mas ele será sempre considerado um tipo de sofrimento inferior – porque os

animais não humanos são objetivações da vontade em grau inferior aos animais

humanos – e será sempre considerado no confronto e em relação ao sofrimento humano.

É prima facie a partir dos interesses, das vantagens ou desvantagens, de um animal

humano que a ação direcionada a um animal não humano é classificada como não

injusta ou injusta. Éticas contemporâneas considerariam o posicionamento de

Schopenhauer especista. Tal juízo poderia ser visto como anacrônico, mas é certo que,

ao menos, deve-se admitir que o modo pelo qual a ética e a doutrina do direito

schopenhauerianas tratam a questão denotam um caráter antropocêntrico, o qual,

juntamente com a tradição, coloca o ser humano como o centro da reflexão e em lugar

privilegiado em relação aos demais seres da natureza.

Nessa seção do texto, apresentou-se a relação entre o egoísmo e a injustiça,

bem como os graus ou rubricas pelos quais é possível classificar uma ação como injusta.

Deve-se, agora, considerar as formas pelas quais a injustiça pode ser praticada.

2.2.4. A Prática da Injustiça

A prática ou o exercício (Ausübung) da injustiça em geral ocorre pela

violência (Gewalt) ou pela astúcia (List) – o que, em termos morais, são em essência a

mesma coisa.81 Como exposto anteriormente, os casos de injustiça, excetuando-se

homicídio e lesão corporal, são redutíveis ao fato de obrigar outro indivíduo a servir, em

vez de a própria vontade, a uma vontade particular. Para tanto, pode-se optar pela via da

violência, onde o outro é obrigado a seguir uma vontade estranha à própria mediante

causalidade física; ou, pode-se optar pela via da astúcia, onde o outro é obrigado a

seguir uma vontade estranha à própria mediante motivação, i.e., por meio da

causalidade que passa pelo conhecimento.

Mensch das Thier auch für sich arbeiten, und nur das Uebermaaß der aufgelegten Anstrengung wird zur Grausamkeit.“ 81 Cf. MVR, §62, p.432, I 398.

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Nesse segundo caso, apresentam-se motivos aparentes (Scheinmotive) à

vontade de quem sofre a ação injusta, em função dos quais a vontade dele segue uma

vontade estranha, embora ele acredite que os motivos aos quais segue são provenientes

de sua própria vontade. Esta falsificação do conhecimento alheio caracteriza a mentira

(Lüge). A mentira, portanto, cria pseudomotivos (motivos aparentes) e, assim, falseia o

conhecimento do indivíduo. Desta forma, Schopenhauer infere que toda mentira supõe

tanta injustiça como qualquer ato de violência.

Qualquer imposição de uma mentira é uma injustiça, entretanto, a recusa de

uma declaração – o não dizer a verdade – não é passível de ser classificado como tal.

Isso significa que quem se recusa a dar uma informação não pratica injustiça, mas quem

fornece uma informação errada – e tem consciência da falsidade de tal informação – a

exerce. A mentira ataca o mecanismo do querer: a relação entre vontade e

conhecimento; dessa forma, mentir significa proferir deliberadamente uma falsa

declaração, tendo por fim negar a vontade alheia para que a vontade própria seja

imposta, exatamente como faz a violência. Neste sentido, Schopenhauer escreve:

[...] visto que [a mentira] em si tem por fim estender o domínio da minha vontade sobre os outros indivíduos, portanto intenta afirmar a vontade pessoal através da negação da vontade alheia, exatamente como o faz a violência.82

Do exposto, segue-se a equiparação moral da ação de mentir com atos de

violência,83 o que é mais um elemento corroborante de que a mentira se configura como

injustiça. A mentira perfeita, segundo Schopenhauer, é a quebra de contrato (gebrocher

Vertrag),84 que é o não cumprimento de um compromisso assumido, firmado e dado

como certo, no qual foi empenhada a palavra, deu-se garantias, e firmou-se a boa fé em

cumprir o acordado. Aqui é estabelecida a relação entre a promessa (Versprechen) e o

contrato (Vertrag): ambos são um pacto – pessoal ou jurídico – e, quando não

cumpridos tornam-se, segundo Schopenhauer, as mais solenes mentiras.

A estrutura pela qual a mentira atua é bem explicada pelo professor

Oswaldo Giacoia Junior:

82 MVR, §62, p.433, I 399. No original: „weil sie schon als solche zum Zweck hat, die Herrschaft meines Willens auf fremde Individuen auszudehnen, also meinen Willen durch Verneinung des ihrigen zu bejahen, so gut wie die Gewalt“. 83 Em suas notas de aula Schopenhauer escreve: “A mentira supõe tanta injustiça como qualquer ato de violência”. HN, Metafísica dos Costumes, p.96, p.177. No original alemão: „Aus dem Gesagten folgt, daß jede Lüge eben so Unrecht ist, wie jede Gewaltthätigkeit.“ 84 Cf. MVR, §62, p.433, I 399.

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Na medida em que falsas declarações constituem motivações, que o intelecto exibe como meio de influenciar a vontade ou arbítrio, mentir implica em invadir a esfera de afirmação da vontade de viver, tal como esta se apresenta na pessoa singular (no corpo) de outro indivíduo, sem seu livre consentimento, sujeitando-a, por esse desvio, à vontade ou arbítrio de um outro indivíduo. Portanto, os efeitos são os mesmos visados por quem constrange outrem mediante o emprego da violência física, a agir contrariamente à sua própria vontade.85

Ao retomar o fio condutor da argumentação, tem-se a ponderação acerca de

qual das formas pelas quais se exerce a injustiça é pior: o autor argumenta que a

injustiça por violência não é tão deplorável (schimpflich) para o praticante quanto a

injustiça por astúcia (List), pois a injustiça por violência evidencia a força física,

imposta aos seres humanos em todas as circunstâncias, enquanto a injustiça por astúcia

rebaixa o agente tanto em termos físicos quanto em termos morais.

Schopenhauer escreve que a aversão produzida pela malícia (Arglist), pela

deslealdade (Treulosigkeit) e pela traição (Verrat) nos indivíduos funda-se no fato de

que essas rompem os fatores que ainda agregam exteriormente em unidade a vontade, a

saber, a confiança e a honestidade. Estes fatores gregários impõem barreiras às más

consequências do egoísmo provenientes da fragmentação da vontade na pluralidade de

indivíduos do mundo como representação – fragmentação engendrada pelos princípios

de individuação e de razão suficiente. A deslealdade e a traição atuam no sentido

contrário: dão às consequências do egoísmo espaço ilimitado de ação.

Em seu escrito não premiado, SFM, Schopenhauer especula acerca do

tamanho (Größe) da injustiça. Segundo o filósofo, ela é proporcional ao tamanho da

reprovação que a ela se impõe, e é reconhecida na vida cotidiana, i.e., de forma

empírica. O autor chega a conceber uma fórmula matemática para o cálculo do tamanho

da injustiça: “o tamanho da injustiça de minha ação é igual ao tamanho do mal que ela

inflige a outrem, dividida pelo tamanho da vantagem que consegui com ela.”86

Existe, ainda, um tipo especial de injustiça, que não é um grau de injustiça

como os mencionados acima, mas uma combinação de ações injustas: trata-se da

85 GIACOIA, O. A mentira e as luzes: aspectos da querela a respeito de um presumível direito de mentir. In: PUENTE, F. R. (Org.). Os filósofos e a mentira. Belo Horizonte: Editora UFMG; Departamento de Filosofia – FAFICH/UFMG, 2002, p.18-19. Doravante abreviado como A Mentira e as Luzes, seguido de indicação de página. 86 Contudo, não existe nessa passagem nenhuma indicação de como quantificar as variáveis dessa fórmula matemática. SFM, § 17, p.150, III 689. No original alemão: „die Größe der Ungerechtigkeit meiner Handlung ist gleich der Größe des Uebels, welches ich einem Andern dadurch zufüge, dividirt durch die Größe des Vortheils, den ich selbst dadurch erlange.“

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injustiça dupla (doppelte Ungerechtigkeit). Ela consiste no fato de um indivíduo assumir

um compromisso para com outro indivíduo no que se refere à proteção. O não

cumprimento do compromisso, por si só, já se configuraria como uma injustiça,87 mas,

além disso, o esperado protetor agride e fere o suposto protegido exatamente no âmbito

em que deveria protegê-lo. A ruptura com o compromisso assumido para a proteção e a

agressão justamente nesse ponto podem ser pensadas e entendidas como uma traição

(Verrat), ação que é o horror do mundo. Schopenhauer dá alguns exemplos, como:

Este é, por exemplo, o caso em que o vigia encarregado ou o acompanhante torna-se assassino, o protetor confiável torna-se ladrão, o tutor tira do pupilo a sua propriedade, o advogado prevarica, aquele a quem se pede um conselho dá intencionalmente um conselho pernicioso [...].88

Ainda sobre a injustiça dupla, seria interessante analisar um caso particular

o qual Schopenhauer não considera, mas que poderia ser classificado sob essa rubrica: a

injustiça provocada sobre alguém que já está em uma situação de injustiça gerada pela

imposição de uma vontade particular a uma vontade alheia, a qual é negada e obrigada a

servir à vontade impositiva, i.e., uma segunda injustiça praticada sobre quem está em

situação de pobreza (Armuth), proletariado (Proletariats), escravidão (Sklaverei), ou

servidão (Leibeigen) por aquele responsável por exercer essa primeira injustiça.

2.2.5. O Subjugar a Vontade de Outro Indivíduo: Pobreza, Proletariado,

Escravidão e Servidão

No primeiro tomo de MVR é bem claro o tom de condenação de

Schopenhauer, principalmente, à escravidão. A partir da análise direta da questão, o

subjugar um indivíduo é classificado como uma injustiça, sendo tal ação recriminada. Já

no capítulo 46 do segundo tomo de sua obra principal, a questão aparece em um

contexto um pouco diverso, de forma indireta. Durante sua argumentação, na qual o

filósofo expõe uma série de flagelos do mundo como consequência e decorrência

daquilo que o próprio mundo é essencialmente, vontade, é possível ler: 87 Schopenhauer define dever (Verpflichtung) como toda ação que se omitida causa injustiça. 88 SFM, §17, p.151, III 690. No original alemão: „Dies ist z.B. der Fall, wo der bestellte Wächter, oder Geleitsmann, zum Mörder, der betraute Hüter zum Dieb wird, der Vormund die Mündel um ihr Eigenthum bringt, der Advokat prävaricirt, der Richter sich bestechen läßt, der um Rath Gebetene dem Frager absichtlich einen verderblichen Rath ertheilt;“

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Como o ser humano se comporta com o ser humano, mostra, por exemplo, a escravidão dos negros, a qual possui como finalidade o açúcar e o café. Mas não é preciso ir muito longe: aos cinco anos começar a trabalhar em uma tecelagem, ou em outra fábrica qualquer, e permanecer sentado, no início, por dez horas, depois por doze e enfim por quatorze, continuando a fazer o mesmo trabalho mecânico, é pagar um preço caro pelo prazer de respirar. É essa a sorte de milhões [de pessoas], e muitos outros milhões possuem uma sorte análoga.89

Nessa passagem, a perversidade das relações humanas é apresentada de uma

forma um tanto conformada, resignada. O subjugar outro indivíduo não é analisado

diretamente, mas aparece como uma consequência daquilo que o mundo é. E o mundo

é, como veremos adiante no texto ao analisarmos o conceito de justiça eterna,90 aquilo

que ele não deveria ser, mas, ao mesmo tempo, o mundo só pode ser aquilo que ele é:

vontade.

Em SFM, encontra-se a formulação do conceito de injustiça que acaba por

englobar a escravidão. O termo escravidão aparece grafado apenas no §18 – A virtude

da caridade (Die Tugend der Menschenliebe), em um contexto no qual Schopenhauer

argumenta que, a partir da compaixão, a escravidão deveria ser combatida e negada:

Aparece em tamanho grande quando, depois de uma longa reflexão e debates sérios, a generosa nação inglesa despende vinte milhões de libras esterlinas para comprar a liberdade dos escravos negros nas suas colônias, sob o aplauso jubiloso do mundo inteiro. Quem quiser recusar a esta bela ação em grande estilo a motivação da compaixão para atribuí-la ao cristianismo, reflita que em todo o Novo Testamento não é dita nenhuma palavra contra a escravidão, por ser uma coisa tão generalizada antigamente que, ainda em 1860, na América do Norte, nos debates sobre a escravidão, alguém referiu-se ao fato de que Abraão e Jacó também mantinham escravos.91

89 MVR II, Kapitel 46 – Von der Nichtigkeit und dem Leiden des Lebens, II 661. No original alemão: „Wie der Mensch mit dem Menschen verfährt, zeigt z.B. die Negersklaverei, deren Endzweck Zucker und Kaffee ist. Aber man braucht nicht so weit zu gehen: im Alter von fünf Jahren eintreten in die Garnspinnerei, oder sonstige Fabrik, und von Dem an erst 10, dann 12, endlich 14 Stunden täglich darin sitzen und die selbe mechanische Arbeit verrichten, heißt das Vergnügen, Athem zu holen, theuer erkaufen. Dies aber ist das Schicksal von Millionen, und viele andere Millionen haben ein analoges.“ 90 Cf. 2.2.20 Um tipo de Justiça Infalível: a Justiça Eterna, p.119. 91 Schopenhauer parece desconsiderar o contexto histórico e os fatores econômicos que levaram a Inglaterra a abolir a escravidão e fazer pressão para que outros países também o fizessem. SFM, §18 A virtude da caridade, p.163-164 , III 700. No original alemão: „Er tritt im Großen ein, wenn, nach langer Ueberlegung und schwerer Debatte, die hochherzige Brittische Nation 20 Millionen Pfund Sterling hingiebt, um den Negersklaven in ihren Kolonien die Freiheit zu erkaufen; unter dem Beifallsjubel einer ganzen Welt. Wer diese schöne Handlung im großen Stil, dem Mitleid als Triebfeder absprechen wollte, um sie dem Christenthum zuzuschreiben, bedenke, daß im ganzen Neuen Testament kein Wort gegen die Sklaverei gesagt ist; so allgemein auch damals die Sache war; und daß vielmehr, noch 1860, in Nord-Amerika, bei Debatten über die Sklaverei, Einer sich darauf berufen hat, daß Abraham und Jakob auch Sklaven gehalten haben.“

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Quando passamos à leitura dos PP, podemos notar dois contextos distintos

nos quais o subjugar outro indivíduo é tratado. No capítulo V, Algumas palavras sobre

o panteísmo (Einige Worte über den Pantheismus), a situação é muito próxima à

relatada no segundo tomo de MVR:

Pois deveria se tratar de um Deus muito mal esclarecido, que não soube encontrar melhor divertimento que se transformar num mundo como este, tão faminto, e para aqui suportar, na figura de inumeráveis milhões de seres vivos, porém aterrorizados e maltratados, que em sua totalidade conseguem existir momentaneamente apenas se devorando uns aos outros, a lástima, a necessidade e a morte, sem medida e sem finalidade, na figura, por exemplo, de seis milhões de escravos negros que recebem diariamente em média sessenta milhões de chicotadas sobre o corpo nu, e na figura de três milhões de tecelões europeus que vegetam debilmente com fome e desgosto, em catres mofados ou salões de fábrica desolados etc. Que passatempo para um deus!.92

Neste ponto, novamente Schopenhauer expõe as mazelas do mundo como

resultado da forma pela qual a vontade se manifesta, como resultado daquilo que a

vontade é. Não só a escravidão é retratada como uma situação de miséria e sofrimento,

mas também o trabalho fabril. Ambos servem de exemplo para o autor corroborar um

ponto de vista em um outro contexto argumentativo.

A situação muda um pouco de figura quando chegamos ao capítulo IX,

Sobre a doutrina do direito e a política (Zur Rechtslehre und Politik). Ao contrário do

tom de condenação assumido em MVR e SFM, no §125 de PP – cujo foco da

argumentação é a justificação para uma visão positiva do ócio a partir de suas

consequências e do que é gerado através dele, onde questões como o luxo, a escravidão,

e a liberdade acabam por ser agregadas a esse debate – o autor empreende uma análise

mais minuciosa e refinada das formas pelas quais uma vontade pode servir outra

vontade, e chega, apesar de classificá-la como injustiça, a apontar algumas vantagens

que a escravidão poderia ter.

Ter as próprias forças produtivas usurpadas por outro indivíduo configura

um tipo de injustiça e pode receber, segundo Schopenhauer, alguns nomes, como

92 PP, §69, p.146-147, V 107. No original alemão: „Es müßte ja offenbar ein übel berathener Gott seyn, der sich keinen bessern Spaaß zu machen verstände, als sich in eine Welt, wie die vorliegende, zu verwandeln, in so eine hungrige Welt, um daselbst in Gestalt zahlloser Millionen lebender, aber geängstigter und gequälter Wesen, die sämmtlich nur dadurch eine Weile bestehn, daß eines das andere auffrißt, Jammer, Noth und Tod, ohne Maaß und Ziel zu erdulden, z.B. in Gestalt von 6 Millionen Negersklaven, täglich, im Durchschnitt, 60 Millionen Peitschenhiebe auf bloßem Leibe zu empfangen, und in Gestalt von 3 Millionen Europäischer Weber unter Hunger und Kummer in dumpfigen Kammern oder trostlosen Fabriksälen schwach zu vegetiren u.dgl.m. Das wäre mir eine Kurzweil für einen Gott!“

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pobreza (Armuth), proletariado (Proletariats), escravidão (Sklaverei), e servidão

(Leibeigen). Nos dois primeiros casos (pobreza e proletariado) a injustiça está assentada

na astúcia; nos dois últimos (escravidão e servidão), na violência. Trata-se de uma

situação de sobrecarga de trabalho e de escassa satisfação das necessidades próprias.

Mas, para Schopenhauer, essa sobrecarga e situação podem ser justificadas de duas

formas diferentes: (i) servir à vontade de outro indivíduo pode ter suas vantagens, pois o

senhor tem de cuidar do servo quando este adoece, envelhece ou se torna incapaz, ao

mesmo tempo em que o escravo pode melhorar sua posição, pois, segundo

Schopenhauer, através do bom serviço prestado, ele terá seu esforço reconhecido e será

mais bem tratado pelo seu senhor. Ele poderia, ainda segundo Schopenhauer, até

comprar a sua própria liberdade; (ii) o segundo âmbito versa sobre a necessidade natural

dos indivíduos terem e precisarem de líderes. Esse é o ponto em que a consciência

liberal de Schopenhauer aparece de forma clara: ele demonstra conhecimento das

mazelas associadas à pobreza, ao trabalho, ao escravismo, e à servidão, mas as justifica

como consequência natural da necessidade de líderes e da forma pela qual o mundo vem

a ser; tal organização pode, se otimizada e baseada nos esforços individuais, até ser

vantajosa para aqueles que padecem tal situação.

Resta ainda a referência às notas de aulas sobre a ética (Philosophische

Vorlesungen - Metaphysik der Sitten) e ao fragmento 286 de 1814 de seus manuscritos

de juventude (Frühe Manuskripte,1814). Nas notas de aula o conceito de escravidão é

tal e qual o apresentado no primeiro tomo de MVR, i.e., a classificação sem escusas da

ação de subjugar um outro como sendo injusta. No caso de seus manuscritos, o jovem

pensador já concebe a injustiça como a invasão da esfera de afirmação da vontade, i.e.,

como a afirmação da vontade que vai até outro corpo e o nega.93 No fragmento 286

(1814), Schopenhauer admite a injustiça como uma invasão realizada por meio do

canibalismo, do homicídio ou pela utilização das forças alheias pertencentes a uma

vontade objetivada em um corpo por outro corpo. Desse último caso é derivada a

injustiça que configura o que neste ponto ele chama de servidão (Leibeigenschaft),

como é possível observar abaixo:

Muitos corpos lado a lado são afirmados (via de regra) cada um através de uma vontade: e essa afirmação pertence a cada um, sem injustiça e sem que

93 Cf. HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha Q.Q – R.R., p. 174-176, p.189-192 (o qual parece constituir o primeiro rascunho), e HN I, Fragmento 693, Dresden 1817 – Folha 17, p.482-483, p.534 (fragmento com o texto mais próximo da redação final do texto de MVR).

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um outro possa se queixar sobre isso; porque também a sua própria vontade é de tal afirmação. Mas se alguém vai tão longe na afirmação de seu corpo que essa afirmação se torna negação do corpo de outro e através disso a vontade se torna visível, então denominamos isso injustiça. Isso ocorre não apenas quando um devora o outro (canibalismo), ou então porque alguém fica em seu caminho, e então é morto; mas também quando um obriga o outro a utilizar suas forças para preservação ou comodidade de si mesmo: porque minhas forças pertencem ao meu corpo enquanto sua qualidade, assim como o produto dessas forças. Esse é o caso mais flagrante de servidão: mas também já é o caso da organização, provocada pela desigualdade de propriedade, ordenação na qual um alimenta o outro, um trabalha para o outro, como o camponês para o burguês, quando esse não o compensa de uma outra maneira, e essa compensação certamente pode ocorrer de uma forma muito complexa e distante.94

Como é possível perceber nesse trecho, Schopenhauer ainda não refinou o

conceito a ponto de encontrar, na lógica do subjugar outro indivíduo, suas

possibilidades: pobreza, proletariado, escravidão e servidão. Ele observa, de forma

genérica, a questão a partir da servidão em geral (Leibeigenschaft). Contudo, é preciso

fazer duas observações sobre a passagem supracitada. A primeira delas refere-se ao

significado da palavra Leibeigenschaft, a qual expressa uma dependência pessoal do

camponês ao senhor (Abhängigkeit des Bauern vom Grundherrn), um tipo de status

social – jurídico e econômico – dos camponeses na Rússia e dos camponeses durante o

período feudal na Europa. Seu sentido etimológico é “pertencente com a vida” (mit dem

Leben zugehörig).95 Nesse sentido, Schopenhauer pode ter percebido a inadequação e a

ambiguidade do vocabulário empregado em seus manuscritos, alterando-o em seus

textos éditos. O termo Leibeigenschaft é utilizado posteriormente para referir-se apenas

à organização social da servidão,96 seja o período durante o feudalismo, seja o regime

russo, evitando, assim, a equiparação e confusão com, por exemplo, o termo escravidão

94 HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha R.R., p. 174. No original alemão: „Die vielen Leiber nebeneinander werden (in der Regel) jeder durch einen Willen bejaht: und diese Bejahung steht Jedem zu, ohne Unrecht und ohne daß ein Andrer darüber klagen könne; weil auch sein eigner Wille eine solche Bejahung ist. Geht nun aber irgend Einer in der Bejahung seines Leibes so weit, daß sie zur Verneinung der andern Leiber und der durch solche in die Sichtbarkeit getretnen Willen wird; so nennen wir dies Unrecht. Dies geschieht nicht nur wenn Einer den Andern frißt (Kannibalismus), oder auch nur, weil er ihm im Wege steht, tödtet; sondern auch sobald einer den Andern zwingt seine Kräfte zur Erhaltung oder Annehmlichkeit Jenes zu verwenden: denn meine Kräfte gehören zu meinem Leibe als seine Qualität eben so das Produkt dieser Kräfte.) Dies ist am krassesten bei der Leibeigenschaft: aber es ist auch schon der Fall bei der durch die Ungleichheit des Eigenthums herbeigeführten Einrichtung daß Einer den Andern ernährt und für ihn arbeitet, wie der Bauer für den Bürger wenn nicht dieser es auf eine andre Weise kompensirt, welche Kompensation aber freilich auf eine sehr verwickelte und entfernte Weise geschehn mag.“ 95 Cf. WAHRIG, G. Deutsches Worterbuch: mit einen "Lexikon der Deutschen Sprachlehre". 6. Aufl. Gutersloh: Bertelsmann, 1997, p. 805. 96 Cf. MVR, §62, p.443, I 409 e PP, §125, p.89, V 267.

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(Sklaverei). Ambas são injustiças que ocorrem pelo uso das forças de uma pessoa sem o

seu consentimento, embora comportem diferenças na forma pela qual se realizam.

A segunda observação sobre a passagem citada refere-se ao fato de que já

nessa formulação de juventude é possível verificar a existência de escusas para justificar

as relações de escravidão e servidão – as quais Schopenhauer enuncia e desenvolve de

forma mais atida apenas no §125 de PP (1851) –, como espera-se ter sido possível

mostrar.

Em nenhum dos registros textuais analisados os seres humanos em situação

de servidão são tratados como uma propriedade (Eigentum), e em nenhum desses

registros encontramos a honra (Ehre) dos afetados apresentada como fator considerado

nas relações estabelecidas. São omissões sobre dois aspectos importantes.

Em qual contexto, então, esse tipo de injustiça poderia ser considerado uma

injustiça dupla? É possível pensar, por exemplo, nos casos de ofertas de trabalho que

acabam revelando-se falsas promessas, resultando na ruptura do que fora acordado entre

as partes (a ruptura do contrato), e em situações de precariedade da vida, ou até mesmo

em situações de trabalho análogos ao trabalho escravo. Guiados por falsas promessas,

indivíduos são convencidos a aceitar situações que os levam a uma circunstância muito

diferente da esperada, na qual aqueles que teoricamente seriam responsáveis pelo zelo

da integridade de tais indivíduos revelam-se os seus algozes: esse é o caso de milhares

de indivíduos vitimados pelo tráfico de pessoas, sendo que podemos lembrar dos casos

mais específicos de imigrantes que aceitam propostas de trabalho e acabam em

situações análogas ao trabalho escravo, e dos casos de milhares de mulheres, vítimas da

escravidão sexual. A primeira etapa, o aliciamento, geralmente se dá por meio da

astúcia; a segunda etapa, a manutenção do indivíduo em tal situação, em geral, pela

violência.

Para ficar no próprio exemplo dado por Schopenhauer: o senhor deve cuidar

do seu escravo (nos casos de doença, velhice, etc.), mas ele pode, também, torturar,

matar, ou não oferecer os cuidados mínimos para subsistência digna: nesse caso, o

“protetor” é quem agride, maltrata e fere quem ele deveria cuidar.

Até o momento, abordou-se nesse texto a origem, a definição, os graus e

alguns desdobramentos da injustiça. Para Schopenhauer, o conceito de injustiça possui

precedência ontológica frente ao conceito de justiça. Isso significa que a injustiça é um

conceito não só originário e positivo – e isso se dá pelo fato de que ela é sentida

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imediatamente, manifestando-se por si mesma, sendo natural e fundamentada na

experiência –,97 mas também porque ela é a condição de inteligibilidade do conceito de

justiça (Recht), i.e., ela é a origem do conceito de justiça, como veremos a seguir.

2.2.6. Dedução e Explanação da Justiça e do Justo

O oposto do conceito de injustiça, i.e., o conceito caracterizado por ser

derivado e negativo, é justamente o conceito de justiça (Recht). Ela pode ser definida a

partir da mera negação do conceito de injustiça, visto que, segundo Schopenhauer, esse

conceito não seria cunhado sem a existência daquele. Assim, a injustiça é a condição de

existência da justiça, e esta é toda ação praticada que não seja a negação da vontade

alheia por uma vontade estranha àquela, i.e., que não cause dano ao corpo de outrem,

que não afete a esfera de afirmação da vontade do indivíduo em sua pessoa, em sua

liberdade, em sua propriedade, e em sua honra. A definição do conceito é feita

inteiramente pela via negativa:

A negatividade da justiça confirma-se, contra as aparências, mesmo na mais trivial definição: “dar a cada um o que é seu”. Já que é seu, não é preciso que se lhe dê, e significa portanto: “não tirar de ninguém aquilo que é seu.”98

Dessa forma, será classificada (subsumiert) como justa toda ação que não

ultrapasse o limite exposto, ou seja, toda ação que não seja negação da vontade alheia

em favor da mais forte afirmação da vontade. Em SFM, Schopenhauer faz alusão à

definição de justo e injusto estabelecida por aquele que ele considera o pai da doutrina

filosófica do direito, o jusfilósofo holandês Hugo Grotius.99 Segundo Grotius, “É injusto

o que repugna à natureza da sociedade dos seres dotados de razão”,100 i.e., injusto é

aquilo que atenta contra os limites do direito do outro, estabelecidos pelos ditames da

reta razão, e

97 Cf. SFM, §16, 138-139, III 680-681, grifo nosso; Cf. MVR, §62, p.434, I 399. 98 SFM, §17, p.147, III 687. No original alemão: „Die Negativität der Gerechtigkeit bewährt sich, dem Anschein entgegen, selbst in der trivialen Definition: »Jedem das Seinige geben.« Ist es das Seinige, braucht man es ihm nicht zu geben: bedeutet also: »Keinem das Seinige nehmen.«“ 99 Cf. SFM, §17, p.147, III 687. 100 DGP, Livro I, Capítulo I, Seção III, § 1, p.73. No original em latim: “Est autem iniustum quod naturæ societatis ratione utentium repugnat.”

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a palavra direito nada significa mais aqui do que aquilo que é justo. Isto, num sentido mais negativo que afirmativo, de modo que o direito transparece como aquilo que não é injusto.101

Delimitados os conceitos e os limites da injustiça e da justiça, Schopenhauer

pode, agora, iniciar a sua argumentação acerca do conceito de direito. Esta transição tem

como ponto de partida o seguinte argumento:

O conceito de JUSTIÇA, como negação da injustiça, encontra sua principal aplicação, e sem dúvida sua primeira origem, nos casos em que uma tentada injustiça por violência é impedida. Ora, como uma tal defesa não pode ser uma injustiça, consequentemente é justa, embora o ato de violência ali praticado, considerando em si e isoladamente, seja injustiça, no entanto aqui justificado por seu motivo, isto é, converte-se em direito.102

É possível afirmar, de forma até intuitiva, que a ação de se defender de uma

injustiça – negar a imposição de uma vontade exterior à vontade própria do indivíduo –,

ao ser justificada por um motivo, torna-se um direito – que podemos chamar de direito à

legítima defesa, ou seja, de direito à autoconservação –, direito que consiste no fato do

indivíduo que sofre a injustiça ser legitimado a negar a negação de vontade imposta a

ele com a força necessária para suprimi-la.103 Guardadas as devidas proporções, se a

força necessária aplicada para suprimir uma injustiça sofrida causar a morte do

praticante da injustiça, então essa morte é considerada justa e por direito.104

Do direito à autoconservação, à legítima defesa, infere-se o direito

denominado por direito de coerção (Zwangsrecht). Schopenhauer baseia esse direito no

seguinte raciocínio: se uma vontade estranha ao indivíduo tenta negar a vontade dele,

ele pode usar suas forças para se conservar e sem injustiça (ohne Unrecht), exercer uma

coerção (Zwang) sobre aquela vontade estranha. Esta coerção visa à desistência da

negação de vontade a ser imposta, sem que isso negue a vontade impositiva, que se

mantém em seu limite. Quando o indivíduo tem um direito de coerção, um direito pleno

em empregar a violência contra outro indivíduo sem que com isso pratique a injustiça,

ele pode, ao invés de empregar a violência, empregar a astúcia, estabelecendo um real 101 DGP, Livro I, Capítulo I, Seção III, § 1, p.72-73. Tradução da edição brasileira para: “Nam ius hic nihil aliud quam quod iustum est significat: idque negante magis sensu quam aiente, ut ius sit quod iniustum non est.” 102 MVR, §62, p. 435, I 400. No original: „Der Begriff des Recht s, als der Negation des Unrechts, hat aber seine hauptsächliche Anwendung, und ohne Zweifel auch seine erste Entstehung, gefunden in den Fällen, wo versuchtes Unrecht durch Gewalt abgewehrt wird, welche Abwehrung nicht selbst wieder Unrecht seyn kann, folglich Recht ist; obgleich die dabei ausgeübte Gewaltthätigkeit, bloß an sich und abgerissen betrachtet, Unrecht wäre, und hier nur durch ihr Motiv gerechtfertigt, d.h. zum Recht wird.“ 103 Isto é, ele tem o direito de afirmar a própria vontade sobre a vontade estranha. 104 Cf. MVR, §62, p. 435, I 401.

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direito de mentir exatamente na mesma extensão em que ele possui o direito de coerção

(ein wirkliches Recht zur Lüge, gerade so weit, wie ich es zum Zwange habe).105

2.2.7. A Consciência Moral (Gewissen)

Um importante conceito empregado por Schopenhauer para o entendimento

do objeto de nosso estudo é o de consciência moral (Gewissen). A consciência moral é

uma espécie de atributo dos seres dotados de razão responsável por emitir juízos sobre o

valor moral de certos atos individuais determinados. Por mais que o indivíduo esteja

envolto no princípio de individuação, segundo Schopenhauer, no mais íntimo de sua

consciência, o indivíduo tem o pressentimento de que o mundo empírico é mero

fenômeno, mera aparência.106 Quem pratica a injustiça sente que quem sofre a injustiça

é igual a ele em essência, sente que o outro e ele são ambos um esforço de

autoconservação, e que ele, o praticante da injustiça, nesse caso, é mais forte.

Esse sentimento (Gefühl)107 do injusto é a consciência moral (Gewissen), a

qual também é conhecida por foro íntimo e por tribunal interno, e é justamente a tomada

de consciência por parte do indivíduo do sentido ético da ação praticada por ele mesmo:

105 Cf. MVR, §62, p. 436, I 401. 106 “Por mais que o Véu de Maia envolva espessamente os sentidos da pessoa má, noutros termos, por mais firmemente que ela se enrede no principio individuationis, de acordo com o qual se considera absolutamente diferente dos demais seres e deles separada por um amplo abismo, conhecimento ao qual adere com todo o seu vigor, visto que somente ele se conforma ao seu egoísmo e lhe dá sustento, de maneira que o conhecimento é quase sempre corrompido pela vontade – lateja, entretanto, no mais íntimo de sua consciência o pressentimento de que essa ordem de coisas é simples fenômeno.” MVR, §65, p.465, I 431. No original alemão: „So dicht nämlich auch den Sinn des Bösen der Schleier der Maja umhüllt, d.h. so fest er auch im principio individuationis befangen ist, demgemäß er seine Person von jeder andern als absolut verschieden und durch eine weite Kluft getrennt ansieht, welche Erkenntniß, weil sie seinem Egoismus allein gemäß und die Stütze desselben ist, er mit aller Gewalt festhält, wie denn fast immer die Erkenntniß vom Willen bestochen ist; so regt sich dennoch, im Innersten seines Bewußtseyns, die geheime Ahndung, daß eine solche Ordnung der Dinge doch nur Erscheinung ist, […].“ 107 Schopenhauer define sentimento da seguinte forma: “[...] o oposto propriamente dito do SABER é o SENTIMENTO, oposição que merece aqui a sua explanação. O conceito que designa a palavra SENTIMENTO possui em realidade um conteúdo meramente NEGATIVO, noutros termos, designa algo presente na consciência que NÃO É CONCEITO, NÃO É CONHECIMENTO ABSTRATO DA RAZÃO.” E isso significa que o sentimento não se encontra no âmbito do racional. MVR I, §11, p.100, I 61. No original alemão: „In dieser Hinsicht ist nun der eigentliche Gegensatz des Wissens das Gefühl, dessen Erörterung wir deshalb hier einschalten müssen. Der Begriff, den das Wort Gefühl bezeichnet, hat durchaus nur einen negat iven Inhalt, nämlich diesen, daß etwas, das im Bewußtseyn gegenwärtig ist, n icht Begr iff, n icht abst rakt e Erkenntniß der Vernunft se i. “

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“o saber do indivíduo sobre aquilo que fez”;108 a consciência moral pode ser entendida

como um tipo de reconhecimento (Erkenntnis), porém um reconhecimento não teórico,

um reconhecimento sentido, uma espécie de sentimento, podendo ser considerada como

a expressão emocional sensível do conhecimento que temos do significado moral de

nossas ações. Schopenhauer escreve em uma anotação sua de juventude: “O indivíduo

reconhece na sucessão da vida, como em um espelho, a sua vontade: o pavor suscitado

por esse reconhecimento é a consciência moral.”109 Nesse sentido, o juízo de valor

expresso pela consciência moral, que aprova ou desaprova,110 funciona, também, como

uma espécie de reconhecimento da consciência moral do indivíduo de que os atos ali

praticados são de sua autoria, i.e., serve como reconhecimento do indivíduo de que ele é

responsável pelos atos que pratica.

São nas e pelas ações que afetam a consciência moral que cada um passa a

se conhecer, i.e., passa a ter acesso àquilo que é, ao seu caráter; mas isso não significa –

nem pode significar – que ela é a responsável por esse caráter:

Só nas ações é que cada um aprende a conhecer a si mesmo e aos demais, empiricamente, e apenas elas pesam na consciência moral, pois não são tão problemáticas como os pensamentos, mas, pelo contrário, são certas e, permanecendo imutáveis, não são apenas pensadas, mas sabidas.111

O enfoque dado pela consciência moral à ação refere-se ao seu significado

interno. Para aquele que cometeu a ação injusta ela significa uma censura moral que

108 SFM, §8, p.87, III 640. No original alemão: „Es ist das Wissen des Menschen um Das, was er gethan hat.“ Sobre a consciência moral ser a tomada de consciência do sentido ético da ação, pode-se ler em MVR §64, p.456, I 422: “Mas, a partir de nossa exposição não mítica porém filosófica da justiça eterna, queremos agora passar à consideração que lhe é aparentada do significado ético da ação e consciência moral, que não passa do mero conhecimento sentido desse significado.” No original alemão: „Aber von unserer nicht mythischen, sondern philosophischen Darstellung der ewigen Gerechtigkeit wollen wir jetzt zu den dieser verwandten Betrachtungen der ethischen Bedeutsamkeit des Handelns und des Gewissens, welches die bloß gefühlte Erkenntniß jener ist, fortschreiten.“ 109 HN I, Fragmento 191, Weimar 1814, Folha Z, p.106. No original alemão: „Der Mensch erkennt in der Succession des Lebens, wie in einem Spiegel seinen Willen: der Schreck über diese Erkenntniß ist das Gewissen.“ 110 “[…] por mais diferentes que sejam os dogmas religiosos dos povos, o bom feito é acompanhado, entre eles, de contentamento indizível, e o mal de um horror sem fim: os primeiros não admitem zombaria alguma; os últimos, padre algum pode nos absolver. MVR, §12, p.108, I 69. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „[…] wie verschieden auch die religiosen Dogmen der Völker sind, so ist doch bei allen die gute That von unaussprechlicher Zufriedenheit, die böse von unendlichem Grausen begleitet: erstere erschüttert kein Spott: von letzterem befreit keine Absolution des Beichtvaters.“ 111 SFM, §9, p.87, III 640. No original alemão: „An den Thaten allein lernt ein Jeder sich selbst, so wie die Andern, empirisch kennen, und nur sie belasten das Gewissen. Denn sie allein sind nicht problematisch, wie die Gedanken, sondern, im Gegensatz hievon, gewiß, stehen unveränderlich da, werden nicht bloß gedacht, sondern gewuß t .“

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indica a veemência da concreção do egoísmo em um corpo que invadiu os limites de

afirmação da vontade de outro corpo.

Do exposto pode-se inferir que pelo fato da consciência moral reportar-se ao

significado de atos, reportar-se ao agir, ela nunca os determina, pois, a determinação de

um ato seria anterior à ação; apenas a eles devem ser atribuídos o sentimento de

injustiça e a censura moral: apenas o ato pode ter atribuição de valor moral. E a respeito

do que aconteceu, a consciência moral torna-se testemunha e juiz. Segundo

Schopenhauer, “aqui me parece repousar até mesmo a etimologia da palavra

consciência moral (Gewissen), pois só o já acontecido é que é certo (gewiß).”112

Em SFM, Schopenhauer conjectura acerca da composição matemática da

consciência moral: temor aos outros indivíduos, aos deuses, preconceito, vaidade e

costume na proporção de um quinto cada um.113 Dependendo da forma de afecção da

ação na consciência moral, do tempo de duração do tormento, a má ação pode originar o

remorso (Gewissensbiß), ou a angústia de consciência (Gewissensangst).

Os sentimentos despertados e exprimidos pela consciência moral (pesar,

remorso, angústia de consciência) podem ser interpretados e entendidos como reflexo a

uma estrutura existente, como o ponto de ancoragem da distinção e reconhecimento das

ações injustas e justas. A consciência moral funciona, assim, como um parâmetro de

constatação e reconhecimento das ações praticadas como injustas ou justas, como

veremos a seguir.

2.2.8. Direito Natural é um Direito Moral

Após investigar o egoísmo, constatou-se que ele tem como essência a

autoafirmação, e que essa pode extrapolar os seus próprios limites, invadindo a esfera

de afirmação da vontade para vida em um corpo alheio a esse. Esta invasão da vontade

do outro sem um motivo que a justifique foi denominada injustiça e, após a

pormenorização deste conceito, pela sua negação, Schopenhauer definiu o conceito de

justiça.

112 SFM, §9, p.87, III 639. No original alemão: „Hierauf scheint mir sogar die Etymologie des Wortes Gewissen zu beruhen, indem nur das bereits Geschehene gewiß ist.“ 113 Cf. SFM, §13, p.116, III 662.

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O estabelecimento dos limites existentes entre afirmar a própria vontade e o

negar a vontade de um outro indivíduo fornece, em referência a uma simples e pura

determinação moral, todo o domínio das possíveis ações injustas ou justas:

Na escala dos distintos graus de força com que se manifesta a vontade para vida no indivíduo humano, os conceitos de justiça e injustiça constituem um ponto fixo (como o ponto de congelamento dos termômetros), a saber, o ponto onde a afirmação da própria vontade se torna negação da vontade alheia, isto é, o ponto no qual a vontade revela o grau de sua intensidade e, igualmente, o grau de confusão do conhecimento imerso no principium individuationis, através do agir injusto.114

Estes dois termos – injustiça e justiça – podem ser considerados

determinações morais, uma vez que se referem à conduta humana enquanto tal, ao valor

dessa conduta, à íntima significação dessa conduta em si (die innere Bedeutung dieses

Handelns an sich).115 O significado íntimo de cada ação da conduta humana em si

demonstra-se claramente à consciência moral pelo fato de (i) a prática da injustiça ser

acompanhada de uma dor interior (ein inner Schmerz) e (ii) do praticante da injustiça,

enquanto fenômeno, ser diferente de quem a sofre, mas em-si – em essência metafísica

–, idêntico ao sofredor. Para quem sofre a injustiça, essa significação se expressa no fato

(iii) deste sofredor estar dolorosamente consciente da negação de sua vontade e que, (iv)

sem praticar injustiça, ele pode se defender de todas as maneiras daquela negação

imposta, caso lhe seja possível. Segundo Schopenhauer, “qualquer selvagem saberia

reconhecer o justo e o injusto”,116 por meio da sensação de aprovação ou desaprovação

despertada no observador, ou por meio da sensação de remorso ou de injustiça praticada

pelos envolvidos na ação. Pode-se atentar para o que Schopenhauer escreve:

Essa significação puramente moral é a única que a justiça e a injustiça têm para os seres humanos enquanto seres humanos, não como cidadãos do

114 HN, Metafísica dos Costumes, p.101, p.162. No original alemão: „Nämlich auf der Skala der höchst verschiedenen Grade der Stärke mit welchen der Wille zum Leben in menschlichen Individuen sich offenbart, sind die Begriffe Recht und Unrecht in fester Punkt (wie der Eispunkt auf dem Thermometer), nämlich der Punkt, wo die Bejahung des eigenen Willens zur Verneinung des fremden wird: d. h. auf diesem Punkt giebt der Wille den Grad seiner Heftigkeit, und zugleich den Grad der Befangenheit der Erkenntniß im principio individuationis an, durch Unrecht-Thun.“ 115 Cf. MVR, §62, p.436, I 402. 116 Por selvagem entenda-se qualquer indivíduo que não tenha crescido sob a tutela de um Estado e que desconheça, por isso, as leis positivas. HN, Metafísica dos Costumes, p.102, p.163. No original alemão: „Alle Wilde nämlich kennen Recht und Unrecht.“

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Estado, e que, portanto, subsistiria inclusive no estado de natureza, sem lei positiva.117

Por serem determinações morais, os direitos derivados dos conceitos de

injusto e de justo podem ser denominados naturais, no sentido de que não estão

definidos por convenções humanas nem são instituídos pelo Estado, mas existem de

maneira inata – valem por si e em si –, e são universais e imutáveis – pois valem para

todos os indivíduos, em qualquer localidade, e em qualquer época. Assim, o direito

natural (Naturrecht) é identificado e estabelecido por Schopenhauer como direito moral

(moralisches Recht). As esferas dos dois conceitos, direito natural e direito moral, são

completamente iguais (Die Sphären zweier Begriffe sind sich ganz gleich), poder-se-ia

afirmar ao recordar a classificação de conceitos segundo a lógica, exposta por

Schopenhauer no §9 de sua principal obra.118 Dessa forma, a argumentação

schopenhaueriana constrói no seio da moral o seu conceito de direito, subsumindo-o ao

conceito de moral, e subvertendo a tradição que remonta a Christian Thomasius e,

principalmente, a Kant.119

Apesar dos conceitos de justiça e injustiça serem de fato válidos para o

estado de natureza, e o direito moral deles derivado também o ser, a validade do direito

moral não se dá em todos os casos para cada indivíduo, permanecendo latente – um

direito que não se efetiva –, e, assim, não é eficaz no sentido de impedir que a violência

impere. Justo e injusto valem ali apenas como conceitos morais para o

autoconhecimento, para a consciência moral (Gewissen) de cada um:

117 MVR, §62, p.437, I 403. Tradução ligeiramente alterada. No original: „Diese rein moralische Bedeutung ist die einzige, welche Recht und Unrecht für den Menschen als Menschen, nicht als Staatsbürger haben, die folglich auch im Naturzustande, ohne alles positive Gesetz […].“ Nota-se neste excerto a primeira inversão na ordem dos termos: injustiça e justiça, empregados até então sempre nesta ordem, para justiça e injustiça. 118 Cf. MVR, §9, p.90, I 51. 119 Christian Thomasius (1655-1728) foi um dos primeiros pensadores a retirar o direito da esfera da moral e da ética. (Cf. FASSÒ, G. Historia de la filosofia del derecho. Tradução de José F. Lorca Navarrete. Madri: Ediciones Pirámide S.A., 1979. v.II, p.170. Doravante abreviado por HFD, seguido por indicação de página). Kant também opera com essa distinção, o que é motivo de duras críticas provenientes de Schopenhauer ao filósofo de Königsberg (Cf. a seção deste trabalho intitulada 2.3.2 As Objeções Feitas por Arthur Schopenhauer à Doutrina Kantiana do Direito, p.128). Deve-se atentar para o fato de que toda argumentação schopenhaueriana, no que tange à fundamentação da doutrina do direito, é um esforço em subsumir o conceito de direito, novamente, à esfera da ética e da moral.

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No estado de natureza, depende de todos em cada caso apenas NÃO PRATICAR injustiça, de modo algum em cada caso não SOFRER injustiça, o que depende de seu poder exterior contingente.120

Assim, pode-se afirmar que a doutrina moral do direito se refere à parte

ativa da dinâmica de esferas de afirmação da vontade no mundo considerado pela faceta

da representação, o agir (Tun), não à parte passiva, a forma pela qual as vontades são

afetadas, o sofrer (Leiden). Esse só é considerado pela moral de maneira indireta, a

saber, tendo em vista provar que as medidas tomadas com a finalidade de evitar o

sofrimento de uma injustiça de modo algum sejam consideradas e confundidas com a

prática da injustiça.

A argumentação de Schopenhauer atribui ao agir egoísta a responsabilidade

pela invasão da esfera da vontade do outro, o que configura a injustiça e dá ensejo para

a derivação e delimitação de todo o conteúdo do direito natural como um tipo de direito

moral. O professor Sandro Barbera faz, em seu livro Une philosophie du Conflit –

Études sur Schopenhauer, uma interessante análise desse aspecto da filosofia

schopenhaueriana:

Ao mesmo tempo, ele [Schopenhauer] explicava a origem do direito natural como um corolário da teoria do corpo-vontade, fazendo referência ao modelo de conflito que Hobbes expôs no primeiro livro de De Cive. A criação do direito natural será retomada mais tarde em termos que, essencialmente, não mudarão, mas com um acréscimo significativo no §62 d’O Mundo como vontade e Representação. Tanto nos Erstlingmanuskripte (primeiros manuscritos) quanto em O Mundo como vontade e Representação, a identidade entre corpo e vontade permite delinear um panorama das diferentes intensidades da afirmação da vontade, que são visíveis como ações do corpo e de suas forças no que diz respeito a outros corpos e suas esferas de influência.121

120 MVR, §62, p.437, I 403. No original: „Im Naturzustande hängt es nämlich von Jedem bloß ab, in jedem Fall nicht Unrecht zu t hun, keineswegs aber in jedem Fall nicht Unrecht zu le iden, welches von seiner zufälligen äußern Gewalt abhängt.“ 121 BARBERA, S. Une philosophie du conflit – études sur Schopenhauer. Tradução de Marie France Merger (com exceção do segundo anexo, traduzido por Olivier Ponton). Paris: Presses Universitaires de France, 2004. Collection Perspectives Germaniques, p. 104. No texto em francês : « En même temps, il expliquait l'origine du droit naturel comme corollaire de la théorie du corps-volonté, et il le faisait en se reportant au modèle de conflit que Hobbes avait exposé dans le premier livre du De Cive. La création du droit naturel sera reprise par la suite en des termes qui, en substance, ne changeront pas, mais avec un a ajout important, dans le § 62 du Monde. Aussi bien dans les Erstlingmanuskripte que dans Le Monde, l'identité du corps et de la volonté permet de dessiner un diagramme des différentes intensités d'affirmation de la volonté, qui se redent visibles comme actions du corps et de ses forces à l'égard des autres corps et de leurs sphères d'influence. »

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Após estabelecer o vínculo identitário entre o direito natural e o direito

moral, é possível considerar algumas das extensões desse vínculo, como o direito moral

à mentira e o direito moral à propriedade.

2.2.9. Direito Moral à Mentira122

Como visto, a falsificação do conhecimento alheio com a finalidade de fazer

com que um indivíduo aja segundo uma vontade estranha acreditando que segue a

própria vontade configura o exercício da injustiça por meio da astúcia, a falsificação dos

motivos no conhecimento, utilizando-se da mentira, e que nos casos em que se possui o

direito de coerção é possível exercê-lo pela violência ou pela astúcia, inferindo-se, pela

via negativa, o direito de mentir.123

Esse seria, também, um direito natural e, portanto, moral, e “não admiti-lo

implica em denegar a única possibilidade de realização efetiva de um princípio de

Direito Natural, entendido como direito de resistência à injustiça originária.”124 O

direito à mentira se resume apenas ao aspecto de resistência, de autodefesa, de

autoconservação, não podendo ir além desse limite.

Segundo Schopenhauer, tal direito contempla não só ocasiões de perigo,

mas também ocasiões indecorosas que podem se referir a questões pessoais e cuja

resposta ou omissão poderiam ocasionar algum tipo de risco ou suspeita. Em suma,

pode-se recorrer ao direito à mentira quando a situação remontar a um contexto em que

a autoconservação pode ser violada no que se refere à pessoa, à liberdade, à propriedade

à honra, e ao corpo. Em algumas ocasiões, avalia Schopenhauer, mentir é propriamente

um dever, como, no exemplo um tanto questionável do autor, no caso do médico que

oculta do paciente terminal as más notícias para que esse possa usufruir de seus últimos

momentos. Diferentemente de Kant, que condena toda e qualquer mentira, a

investigação de Schopenhauer constata, ao considerar ações em que a mentira é

justificável, que nesses casos mentir não causa nenhuma dor de consciência ao seu

122 Para uma apreciação do tema para além dessa pequena introdução, conferir o texto do professor Oswaldo Giacoia Junior no qual ele articula a exposição da problemática do direito à mentira com o contexto histórico-filosófico do iluminismo e sua recepção: Cf. GIACOIA, O. A Mentira e as Luzes. 123 “Nos casos em que tenho um direito à força, tenho também à mentira.”. SFM, §17, p.154, §17, III 692. No original alemão: „Ich habe also in den Fällen, wo ich ein Recht zur Gewalt habe, es auch zur Lüge.“ 124 GIACOIA, O. A Mentira e as Luzes, p.28.

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praticante, e que esse fato explica e afasta a contradição entre a moral que é pregada e

ensinada, e a moral praticada por aquelas pessoas que são consideradas íntegras.

Qualquer mentira que não seja astúcia antecipatória, i.e., o emprego da

astúcia contra a violência, ou da astúcia contra a astúcia visando à autoconservação, é

simplesmente o exercício da injustiça, sendo moralmente censurável.

2.2.10. Direito Moral à Propriedade

Para Schopenhauer a propriedade é um dos pontos capitais da vida

humana,125 sendo todo o autêntico direito de propriedade um direito moral que está

originariamente baseado única e exclusivamente no trabalho elaborador (Bearbeitung) –

que faz com que o corpo que produz o trabalho se identifique e se confunda com o

objeto no qual esse trabalho é plasmado, que se torna dessa forma propriedade. Nesse

ponto, o filósofo da vontade se declara em total acordo com os escritos bramânicos das

Leis de Manu, IX, 44: “Os sábios, que conhecem os tempos pretéritos, declaram que um

campo cultivado é propriedade de quem cortou a madeira, o limpou e lavrou, do mesmo

modo que um antílope pertence ao primeiro caçador que o acertou mortalmente.”126

Dessa forma, o esforço plasmado em um objeto na forma de melhorias, proteção,

conservação, ainda que mínimo, assegura o direito de posse do indivíduo àquele. Assim,

a mera fruição do objeto, sem nenhum cuidado referente à proteção, à conservação, etc.,

não garante nenhum direito – da mesma forma que a mera declaração da vontade de

posse do objeto não garante nem supõe direitos sobre ele. Schopenhauer ilustra seu

ponto de vista com o exemplo de uma família que em uma determinada extensão de

terra pratica a caça por cerca de um século, sem, contudo, ter feito ou ter tomado

qualquer providência referente à melhoria ou à conservação do local. Essa família não

poderia impedir um estrangeiro de caçar na mesma extensão de terra sem cometer

algum tipo de injustiça. Com esses argumentos, o filósofo da vontade ataca dois dos

125 Cf. SFM, §13, p.110, III 658. 126 MVR, §62, p.430, I 396. Na citação feita por Schopenhauer, em alemão: „»Weise, welche die Vorzeit kennen, erklären, daß ein bebautes Feld Dessen Eigenthum ist, welcher das Holz ausrottete, es reinigte und pflügte; wie eine Antilope dem ersten Jäger gehört, welcher sie tödtlich verwundete.« — Gesetze des Menu, IX, 44.“

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principais conceitos fundantes do direito de propriedade que vigoram na filosofia do

direito de seu tempo: (i) a declaração de posse, e (ii) o direito de primeira ocupação.127

Em MVR II, para ilustrar o seu ponto de vista, Schopenhauer evoca a

declaração do ex-presidente estadunidense Quincy Adams, encontrada nos Quarterly

Review de 1840, nº 130, e em francês na Bibliothèque Universelle de Genève, 1840,

julho, nº55, que segundo o filósofo corroboraria no plano prático o seu modo de

interpretar e explicar o direito de propriedade:

Alguns moralistas puseram em dúvida o direito dos europeus de se estabelecerem em terras dos povos indígenas americanos. Mas eles consideraram a questão com maturidade? Na maior parte do país, o direito de propriedade dos índios repousa em uma base duvidosa. Sem dúvida, o direito natural os asseguraria suas terras cultivadas, suas residências, a terra suficiente para o seu sustento e tudo o que o trabalho pessoal de cada um tivera procurado. Mas que direito tem o caçador ao amplo bosque ao qual casualmente recorre para perseguir a sua presa?128

Além de descartar a declaração de posse e o direito de primeira ocupação

como elementos fundantes do direito de propriedade, Schopenhauer alega que a

fundamentação do direito natural de propriedade não requer que se tenha,

concomitantemente, a detenção (Detention) e a formação (Formation) de propriedade –

fundamentos de direito –, mas apenas a última.129 A única ressalva feita pelo autor é que

a nomenclatura formação não é adequada, uma vez que é possível trabalhar algo

aplicando a própria força sem lhe dar uma forma. O direito de propriedade moralmente

fundamentado, de acordo com o exposto, dá ao possuidor um poder sobre a coisa como

aquele que possui sobre o próprio corpo, permitindo-lhe transmitir sua propriedade por

troca ou por doação.

Quando é considerado o caso da doação, deve-se considerar, também, a

herança. Essa seria a responsável pela ligação entre o direito de propriedade e o direito

127 A argumentação de Schopenhauer está majoritariamente visando Kant e sua Metaphysik der Sitten (Metafísica dos Costumes). A seção 2.3.2 As Objeções Feitas por Arthur Schopenhauer à Doutrina Kantiana do Direito é totalmente dedicada às críticas feitas por Schopenhauer à filosofia kantiana do direito e contempla o caso do direito à propriedade. 128 MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 682. No original alemão: „»Einige Moralisten haben das Recht der Europäer, in den Landstrichen der Amerikanischen Urvölker sich niederzulassen, in Zweifel gezogen. Aber haben sie die Frage reiflich erwogen? In Bezug auf den größten Theil des Landes, beruht das Eigenthumsrecht der Indianer selbst auf einer zweifelhaften Grundlage. Allerdings würde das Naturrecht ihnen ihre angebauten Felder, ihre Wohngebäude, hinreichendes Land für ihren Unterhalt und Alles, was persönliche Arbeit einem Jeden noch außerdem verschafft hätte, zusichern. Aber welches Recht hat der Jäger auf den weiten Wald, den er, seine Beute verfolgend, zufällig durchlaufen hat? «.“ 129 Cf. MVR, §62, p.431, I 397, Nota do Autor.

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de nascimento (Rechte Geburt). A ligação entre esses dois tipos de direito é tão estreita

que, apesar do direito de nascimento não ser tão bem fundado quanto o de propriedade,

a exclusão daquele colocaria este em perigo.130 Para os indivíduos que vivem em

sociedade é muito difícil conseguir visualizar a relação existente entre o direito de

propriedade assegurado pelo dispositivo coercitivo e mantenedor das relações da vida

social, o direito positivo assegurado pelo Estado, e o direito moral à propriedade

baseado no trabalho elaborador. Apesar da fonte originária desse direito basear-se em

um direito natural, são muitos estágios intermediários: é possível pensar na propriedade

herdada, na propriedade adquirida pelo casamento, adquirida pela troca, pela venda,

pelo ganho, etc. Esse distanciamento entre o fundamento e o asseguramento da posse

faz, segundo Schopenhauer, com que se tenha a impressão e se acredite que o fator de

garantia da propriedade é o direito positivo:

É preciso uma cultura significativa para reconhecer em tal propriedade o direito ético e, por conseguinte, respeitá-la por puros impulsos morais. De acordo com isso, muitos consideram em silêncio a propriedade dos demais como possuída apenas em virtude do direito positivo.131

O que talvez seja interessante notar nesse ponto é como Schopenhauer

estabelece, já no estado de natureza, um direito de propriedade moral que é individual,

em contraste com outros autores, como, por exemplo, Hugo Grotius, Thomas Hobbes, e

Jean-Jacques Rousseau, para os quais no estado de natureza existe um direito de

propriedade coletivo, ou seja, um direito de todos a todas as coisas, e que passa a ser

individual justamente com a instituição do Estado.

Para Grotius, em um momento lógico anterior à introdução da propriedade,

os indivíduos possuíam um direito de uso coletivo universal das coisas. Já nesse

momento, a reta razão ditava regras que faziam com que eles percebessem que algo não

poderia ser retirado de outro sem que com isso fosse ocasionada uma injustiça.132 Dessa

forma, esse direito de uso coletivo universal exercia a função de um direito de

propriedade.133 Neste ponto, Grotius ilustra sua argumentação com uma passagem de

Cícero: “Ainda que o teatro seja comum, pode-se, contudo dizer, com razão, que cada

130 Cf. PP, §130, p.259, V 283-384. 131 SFM, §13, p.111, III 659. No original alemão: „Es bedarf schon bedeutender Bildung, um bei allem solchen Besitz das ethische Recht zu erkennen und es demnach aus rein moralischem Antriebe zu achten. - Demzufolge betrachten Viele, im Stillen, das Eigenthum der Andern als allein nach positivem Rechte besessen.“ 132 Nesse ponto é absolutamente nítida a proximidade de Schopenhauer com o jusfilósofo holandês. 133 Cf. DGP, Livro II, Capítulo I, Seção II, § 1, p.310.

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local é daquele que o ocupa.”134 E quando esse direito de uso coletivo universal passou

a vigorar sob o estatuto de uma posse privada? Grotius responde: “Foi, no entanto, o

resultado de uma convenção, seja expressa através de partilha, seja tácita através, por

exemplo, de ocupação.”135

Hobbes, como mencionado acima, argumenta que no estado de natureza

todos teriam direito a tudo, e que esse direito a tudo seria como ter direito a nada. O

pacto que dá origem ao Estado implica a restrição consentida da liberdade em empregar

os meios julgados necessários para a manutenção da própria vida, e a abdicação em ter

direito a todas as coisas – que resulta na possibilidade de ter direito exclusivo sobre

determinados objetos. Um súdito do Estado que detém a posse de um determinado

objeto, como, por exemplo, uma extensão de terra, possui o direito de excluir todos os

outros súditos do uso dessas terras.136 Nascia dessa forma, segundo Hobbes, o conceito

de propriedade privada e o seu asseguramento.

Para Rousseau, o estado de natureza é um estado de vida no qual os homens

podem ter direito a tudo quanto aventuram e podem alcançar,137 e no qual não existem

distinções morais entre os indivíduos, o que permite aferir a existência de uma

igualdade natural entre os indivíduos no que se refere à moral.138 Para o filósofo

genebrino, a exposição pela qual se origina a propriedade privada faz parte do processo

de distanciamento do ser humano de sua natureza original. Nesse processo, primeiro foi

originada a noção de posse; depois, da terra partilhada, surgiu a demarcação e limitação

de terras, e as primeiras regras de justiça, porque “para dar a cada um o que é seu, é

preciso que cada um possua alguma coisa.”139 O trabalho de formação empreendido

pelo primeiro ocupante do lote de terra demarcado trouxe a posse, agora contínua, que

se transformou, aos poucos, em propriedade, e, assim, surgiu o que se entende por

direito de propriedade – mas um direito ainda precário porque não perene.

134 DGP, Livro II, Capítulo II, Seção II, § 1, p.310. Tradução da edição brasileira para: “Theatrum cum commune sit, recte tamen dici potest eius esse eum locum quem quisque occuparit.” 135 DGP, Livro II, Capítulo II, Seção II, § 5, p.314. Tradução da edição brasileira para: “sed pacto quodam aut expresso, ut per diuisionem, aut tacito, ut per occupationem.” 136 Cf. Leviatã, p.297, p. [128], p.155. 137 Esse ponto pode ser entendido como uma das várias reminiscências da filosofia de Hobbes em Rousseau. Sobre esses aspectos Cf. TUCK, R. The Rights of War and Peace, p.197-207. 138 No que se refere à moral porque as desigualdades físicas (diferença de idades, de saúde, qualidades do espírito e da alma, vigor, capacidades físicas, agilidade, etc.) são desigualdades inevitáveis e, em geral, benignas. 139 Segundo Discurso, p.272, p.173. No original: « […] car pour rendre à chacun le sien, il faut que chacun puisse avoir quelque chose ».

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Para assegurar o direito peremptório à propriedade fora necessário ao

homem civilizado sacrificar sua liberdade natural, mediante a alienação de sua vida.

Dessa forma, segundo Rousseau, estabelece-se o corpo político “como um verdadeiro

contrato entre o povo e os chefes que ele escolhe, contrato pelo qual as duas partes se

obrigam à observância das leis nele estipuladas e que formam os liames de sua

união.”140 Com o pacto social estabelece-se e firma-se o direito de propriedade,

garantido a manutenção do que é de cada um, da liberdade civil / convencional – que

ocupa o lugar da liberdade natural –, da igualdade moral – que substitui a igualdade

natural –, e da justiça,141

Nesse ponto, é possível indagar se Schopenhauer também identifica um

dispositivo moderador das relações humanas para assegurar esses direitos naturais /

morais, e o modo pelo qual esse dispositivo opera ao visar realizar suas finalidades:

analisemos, pois, a origem e a finalidade do Estado (Staat).

2.2.11. A Origem e Finalidade do Estado (Staat): O Papel da Recta Ratio

(Reta Razão)

Essa parte da nossa exposição ganhará muito em força e conteúdo se nos for

permitida uma rápida digressão para mostrar a importância do conceito de reta razão

(recta ratio) e o modo pelo qual ele é operado por autores que exerceram influência

confessa em Schopenhauer, como Hugo Grotius e Thomas Hobbes.

Especialmente nos prolegômenos de sua obra mais conhecida, De iure belli

ac pacis (O Direito de Guerra e de Paz), Grotius se empenha em fundamentar

jusfilosoficamente o Direito Internacional – a regulação jurídica entre os Estados

nacionais – para, assim, poder definir o que seria uma guerra justa. É justamente essa

parte da obra, essa fundamentação filosófica, que mais interessou e foi debatida pelos

140 Segundo Discurso, p.280, p.184. No original: « [...] comme un vrai contrat entre le peuple et les chefs qu'il se choisit, contrat par lequel les deux parties s'obligent à l'observation des lois qui y sont stipulées et qui forment les liens de leur union». 141 “O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui.”Do Contrato Social, Livro I, Capítulo VIII, p.42, p.364. No original: «ce que l'homme perd par le contrat social, c'est sa liberté naturelle et un droit illimité à tout ce qui le tente et qu'il peut atteindre; ce qu’il gagne, c'est la liberté civile et la propriété de tout ce qu’il possède».

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filósofos posteriores, principalmente no que tange ao direito natural.142 É possível notar

na argumentação grotiana a confluência de argumentos teológicos e racionais, o que,

por um lado, o assegura de não ser acusado de heresia e de ir contra os escritos bíblicos,

e, por outro, de se pautar em uma possível universalidade, o que garantiria que ele não

pudesse ser objetado por argumentos embasados por regionalismos ou dogmas

religiosos. Dessa forma, Grotius buscou o fundamento das normas de conduta humana

no que acreditava ser essencialmente humano no homem: a razão. Contudo, ele por

muitas vezes se pautou em exemplos retirados das escrituras, em especial do Velho

Testamento.

Pode-se notar, na exposição de Grotius, o emprego de dois métodos

argumentativos: o método (i) a priori, no qual a argumentação abstrata é exposta a

partir de um axioma, a saber, a reta razão (recta ratio), e o método (ii) a posteriori, a

partir da comprovação empírica do que fora argumentado aprioristicamente por meio da

citação de fatos, da análise da legislação de outros povos, da citação de poetas, de

historiadores, ou de qualquer outro elemento que pudesse ser utilizado para comprovar

o seu ponto de vista.143 O ponto de partida da exposição de Grotius é a afirmação da

existência de princípios universalmente válidos de justiça, em polêmica com o

relativismo utilitarista de alguns autores dessa época.144 Grotius elege Carneades, um

conhecido orador grego da antiguidade, como representante de seus objetores, para,

desse modo, refutar as possíveis críticas a sua própria exposição. Esse procedimento

metodológico é necessário, uma vez que o jusfilósofo precisa refutar aqueles que

afirmam não haver uma distinção objetiva entre justiça e injustiça, i.e., Grotius precisa

refutar os oponentes de uma fundamentação moral do direito natural.

142 É importante frisar que a análise aqui empreendida não será focada exclusivamente nessa seção da obra de Grotius. 143 “Costuma-se provar de duas maneiras que algo é de direito natural: a priori e a posteriori. Desses dois modos, o primeiro é mais abstrato e o segundo, mais popular. Prova-se a priori demonstrando a conveniência ou inconveniência necessária de uma coisa com a natureza racional e social. Prova-se a posteriori concluindo, se não com uma certeza infalível, ao menos com bastante probabilidade, que uma coisa é de direito natural porque é tida como tal em todas as nações ou entre as que são mais civilizadas”. DPG, Livro I, Capítulo I, Seção XII, § 1, p.85. Tradução da edição brasileira para: “Esse autem aliquid iuris naturalis probari folet tum ab eo quod prius est, tum ab eo quod posterius. A priori, si oftendatur rei alicuias convenientia aut disconvenientia necessaria cum natura rationali ac sociali: a posteriori vero, si non certissima fide, cerre probabiliter admodum, iuris naturalis esse colligitur id quod apud omnes gentes, aut moratiores omnes tale esse creditur.” 144 HFD, p.71. Schopenhauer também tem que enfrentar uma objeção semelhante, que ele denomina de visão cética. Cf. SFM, §13, p.108-120, III 656-665.

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Segundo Grotius, o ser humano possui uma natureza que o torna superior a

outras formas de vida por ser dotado de razão e de linguagem. Apesar de o ser humano

ser fisicamente fraco em comparação com os outros animais, por não possuir garras nem

dentes afiados,145 ele possui duas características que o tornam o mais forte de todos os

seres: a razão – que permite a abstração, a apreciação, e a especulação de eventos no

tempo (passado e futuro) – e a vida social.146

Grotius toma como base os tão conhecidos argumentos de Aristóteles e de

Cícero sobre o appetitus societatis do ser humano, i.e., o fato de considerarem o ser

humano ser gregário por natureza e dele constituir naturalmente a vida em sociedade

com vistas à autopreservação. Essa natureza racional e social do ser humano é, para

Grotius, a fonte do direito propriamente dito, e se encontra no direito natural por esse

ser derivado das características essenciais e específicas da natureza humana. O

jusfilósofo escreve que é própria do ser humano a necessidade de sociedade pacífica e

organizada de acordo com os dados de sua inteligência.147 Grotius, dessa forma, não

deixa dúvidas de que a reta razão é responsável tanto pela sociabilidade natural do ser

humano quanto pelo direito natural:

O direito natural nos é ditado pela reta razão que nos leva a conhecer que uma ação, dependendo se é ou não conforme à natureza racional, é afetada por deformidade moral ou por necessidade moral e que, em decorrência, Deus, o autor da natureza, a proíbe ou a ordena.148

Essa passagem ainda deixa clara a não secção entre os conceitos de direito e

de moral, uma vez que o direito natural pode – pelo fato de ser fundamentado na reta

razão – definir objetivamente, a partir de critérios morais, o que, por assim dizer, Deus

proíbe (injusto) e o que Deus ordena (justo). Essa inferência possibilita a afirmação de

que a fundamentação grotiana do direito natural é como a ciência da moral fundada na

145 Grotius atribui a Deus o fato dos homens serem fracos, como forma de serem impelidos a cultivar a vida social (Cf. DGP, Prolegômenos, §16, p.43), o que exemplifica de maneira clara a confluência entre argumentos racionais e teológicos. 146 Cf. DGP, Prolegômenos, §8, p.39, nota 19. 147 Cf. DGP, Prolegômenos, §6, p.37. 148 DGP, Livro I, Capítulo I, Seção X, § 1, p.79. Tradução da edição brasileira para: “Ius naturale est dictatum rectæ rationis indicans, actui alicui, ex eius convenientia aut disconvenientia cum ipsa natura rationali inesse moralem turpitudinem aut necessitatem moralem, ac confequenter ab auctore naturæ Deo talem actum aut vetari aut præcipi.”

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natureza humana.149 Isso significa que a partir do que Grotius julga ser a natureza

humana fundamenta-se uma teoria do direito natural, que é, também, moral: tem-se,

dessa forma, acesso a um corpo de conhecimentos sistematizados dos limites do injusto

e do justo através da reta razão. Como visto, Grotius efetiva sua definição dos conceitos

de injusto e justo através da via negativa.

Até que ponto existe a confluência entre a argumentação racional e

teológica, i.e., em última instância qual o autêntico fundamento do direito natural: Deus

ou a reta razão? A exposição grotiana leva o leitor a entender que Deus é a fonte do

direito natural, pois Ele criou o ser humano fraco, desprotegido, e lhe concedeu a reta

razão como forma de impeli-lo à vida em sociedade. Mas, esse modo de entender tal

questão está sujeito à contestação da existência de Deus e a interpretações divergentes

acerca da natureza Dele. Ao perceber essa deficiência, Grotius argumenta, no que ficou

conhecido como argumento do ímpio, que não é necessária a existência de Deus para a

fundamentação do direito natural, e que tudo que ele expusera até então permanece

válido mesmo sem a existência de Deus.150 Contudo, para escapar de uma possível

acusação de heresia, Grotius recua em sua argumentação e atribui o fato dos seres

humanos serem dotados de reta razão a Deus,151 tornando-O a causa do conceito onde

reside a fundamentação do direito natural (reta razão), e a causa indireta, porém não

necessária, do direito natural. Desta forma, mesmo se a existência de Deus for

contestada, a reta razão subsiste perfeitamente como fundamento do direito natural e

como critério de imputabilidade,152 garantido a universalidade da argumentação, ou

seja, a arquitetônica da exposição grotiana não ruiria frente a tal objeção e estaria imune

aos diferentes dogmas existentes. Deve-se ressaltar, ainda, que a confluência entre

argumentos racionais e teológicos não é rompida: trata-se, apenas, de uma estratégia

149 Essa é uma afirmação de Buckle acerca de Grotius e Samuel Pufendorf. Cf. BUCKLE, S. Natural law and the theory of property: Grotius to Hume. Oxford, Oxford University Press; New York, Clarendon Press, 1991. p.vii. 150 Cf. DGP, Prolegômenos, §11, p.40. Para uma apreciação mais detida do argumento do ímpio Cf. CROWE, M. B. The Impious Hypothesis: A Paradox in Hugo Grotius?. In: HAAKONSEN, K. Grotius, Pufendorf and modern natural law. Vermont: Ashgate, 1999. p.3-34. 151 Cf. DGP, Prolegômenos, §12, p.41. 152 Pode-se entender a reta razão como um critério de imputabilidade porque ela é acessível a todos os seres humanos.

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metodológica e argumentativa para resguardar-se de possíveis críticas e proteger o

ponto axiomático de toda sua exposição.153

Para que a necessidade de autopreservação seja realizada plenamente,

assegurando a paz, é preciso garantir, uma vez organizados em comunidades, o respeito

pelo direito dos outros, inclusive pelo direito de propriedade, evitando as tensões e

disputas que engendram guerras. Apesar de a reta razão ditar as normas que deveriam

servir de princípios norteadores para a criação de condições que garantam a paz social,

o agir moralmente bom não é realizado espontaneamente. Pelo contrário, além do fato

dos indivíduos não terem se conservado em um estado de vida simples e inocente,154 se

eles fossem justos, i.e., agissem segundo as regras ditadas pela reta razão, eles não

teriam a necessidade da força.155

A sociabilidade do ser humano o leva, em vistas a obter vantagens, a formar

associações ou à sujeição a uma autoridade, fazendo com que cada um se mantenha

naquilo que lhe pertence. Assim, os pactos de união e de sujeição assumem a forma

explícita do acordo de vontades individuais para a tutela dos interesses dos indivíduos,

dando origem a um Estado concebido como uma livre e voluntária criação dos

indivíduos para a proteção e garantia de seus direitos naturais.

Pode-se dizer que o direito natural precisou de um dispositivo para coerção

mútua e vigilância da conformidade com o juízo sadio, e, assim, Grotius executou a

transição do direito natural (baseado na universalidade do conceito de reta razão comum

a todos os seres humanos) para o direito civil (que é uma obrigação que nos impomos

mediante a força a partir de uma utilidade como causa ocasional). Note-se que a

associação ou a sujeição a uma autoridade foi iniciada tendo em vista alguma vantagem,

o que torna o direito civil / positivo variável conforme a nação. A diferença entre o

direito natural e o direito civil afinal, segundo Grotius, é que a natureza do ser humano

153 Fica ainda mais claro que o autêntico fundamento do direito natural é a reta razão a partir da seguinte passagem: “O direito natural é tão imutável que não pode ser mudado nem pelo próprio Deus. Por mais imenso que seja o poder de Deus, podemos dizer que há coisas que ele não abrange porque aquelas de que fazemos alusão não podem ser senão enunciadas, mas não possuem nenhum sentido que exprima uma realidade e são contraditórias entre si.” DGP, Livro I, Capítulo I, Seção X, § 5, p.81. Tradução da edição brasileira para: “Est autem ius naturale adeo immutabile ut ne a Deo quidem mutari queat. Quamquam enim immensa est Dei potentia, dici tamen quædam possunt ad quæ se illa non extendit, quia quæ ita dicuntur, dicuntur tantum, sensum autem qui rem exprimat nullum habent; sed sibi ipsis repugnant.” 154 DGP, Livro II, Capítulo II, Seção II, § 2, p.312. 155 DGP, Prolegômenos, §24, p.47.

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(a reta razão) é a mãe do direito natural, enquanto que a mãe do direito civil é a

obrigação que nos impomos pelo próprio consentimento.

Pode-se dizer, assim, que Grotius é um autor que marca a transição do

objetivo coletivo, mediado por Deus, para o subjetivo individual, mediado pela razão

objetivada no contrato. Porém, deve-se atentar para o fato de que Grotius não exclui

Deus de sua fundamentação teórica, mas a torna independente Dele. Sua formulação,

como visto, coexiste perfeitamente com a existência de Deus. Se, por um lado, ele

sustenta que o direito natural e a sociabilidade são frutos da reta razão do ser humano,

por outro, pode sustentar sem cair em contradição que Deus é a fonte indireta do direito

natural, pois deu ao ser humano a faculdade de razão e o criou fraco e dependente uns

dos outros para forçar a sua sociabilização. Desta forma Grotius realiza uma

fundamentação racional de sua teoria sem dar margens para acusações de heresia.

No caso de Hobbes, a reta razão sugere, através de um cálculo de utilidade

in foro interno do indivíduo, as leis adequadas para se alcançar a paz: As paixões que fazem os homens tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que por outro lado se chama leis de natureza.156

As paixões – o esforço para a autoconservação e ser feliz – aliadas à reta

razão – que sugere as leis157 adequadas para obter a paz – são as responsáveis pelo

movimento de superação do estado precário de vida durante o período de vida pré-

estatal. A reta razão sugere as leis da natureza158 que, embora não obriguem o indivíduo

em seu foro externo, fornecem uma espécie de catálogo de ações que devem ser

praticadas para manutenção da vida. A primeira lei de natureza orienta o indivíduo a

156 Leviatã, p.188, p.[63], p. 79. No original: “The Passions that encline men to Peace, are Feare of Death; Desire of such things as are necessary to commodious living; and a Hope by their Industry to obtain them. And Reason suggesteth convenient Articles of Peace, upon which men may be drawn to agreement. These Articles, are they, which otherwise are called the Lawes of Nature.” 157 Hobbes assinala a diferença entre direito e lei: “Diferença entre direito e lei: o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas” (Leviatã, p.189, p. [64], p.82). No original: “RIGHT, consisteth in liberty to do, or to forbeare; Whereas LAW, determineth, and bindeth to one of them.” 158 “Uma lei da natureza (Lex naturalis) é um preceito ou regra geral estabelecido pela razão” (Leviatã, p.189, p. [64], p.82). No original: “A LAW OF NATURE, (Lex Naturalis,) is a Precept, or generall Rule, found out by Reason.” Hobbes expõe cerca de treze leis de natureza. Para a finalidade do nosso estudo, precisamos explicitar apenas as três primeiras.

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buscar a paz, e caso ele não a consiga, autoriza-o a utilizar-se da guerra;159 a segunda

diz respeito à autodefesa, ao fato de não ser possível abdicar de se defender;160 a terceira

lei de natureza manifesta a necessidade de cumprir os pactos celebrados.

No caso de Schopenhauer é bem sabido que em seu sistema filosófico a

razão (Vernunft) recebe um status secundário, possuindo como única função a formação

de conceitos.161 A razão permite ultrapassar o nível sensitivo e intelectual da impressão

presente, possibilitando o registro e a combinação de impressões sob certas regras. Isso

significa que os seres dotados de razão, os seres humanos, têm a capacidade de

estabelecer relações entre as intuições – entre as representações concretas – e de

transformar esse conhecimento intuitivo em conceitos – que são representações

abstratas –, fazendo com que esse conhecimento possa ser aplicado na prática.

O ser humano, por ser dotado da faculdade de razão, é privilegiado por

possuir (i) a linguagem – que é o meio e o veículo da razão –, (ii) a ação deliberada, e

(iii) o saber (Wissen) e a ciência (Wissenschaft).162 Ser dotado de razão significa que o

conhecimento humano extrapola o estreito limite da percepção atual. A representação

conceitual torna possível a classificação do conhecimento, a relação entre as noções

comuns, e a conservação dessas noções na memória. O conhecimento do ser humano

ultrapassa o âmbito do presente e se abre para as dimensões do passado e do futuro. Isso

significa a recordação das impressões passadas, assim como a projeção de expectativas,

anseios, e cuidados no futuro. Alargam-se as dimensões de possibilidade do sofrer:

sofre-se no passado, no presente, e também no futuro. A razão, assim, é a responsável

pela intensificação do sofrimento que já nos é inerente.

159 Cf. Leviatã, p.190, p.[64], p. 82. “Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudar e vantagens da guerra.” No original: “That every man, ought to endeavour Peace, as farre as he has hope of obtaining it; and when he cannot obtain it, that he may seek, and use, all helps, and advantages of Warre.” 160 Cf. Leviatã, p.190, p.[64], p.82. 161 Cf. MVR, §8, p.85, I 46. Pode-se dizer que Schopenhauer caracteriza a razão como uma das faculdades cognitivas, ao lado do entendimento / intelecto (Verstand) e da sensibilidade (Sinnlichkeit). O Intelecto é uma função do aparelho cognitivo que tem a forma do princípio de causalidade e consiste na faculdade de intuição, possibilitando a percepção de objetos que afetam nossa sensibilidade; a sensibilidade é a faculdade receptiva, passiva, que recebe as impressões dos órgãos sensoriais e imprime a essas impressões uma primeira distribuição em termos de tempo e espaço. O espaço como forma da intuição, e o tempo como forma da modificação. A lei de causalidade, assim, funciona como reguladora da ocorrência das modificações (no tempo e no espaço). Sobre a definição do termo Verstand (intelecto / entendimento) Cf. Historical Dictionary of Schopenhauer's Philosophy, p.175-176. Sobre a definição do termo Sinnlichkeit (sensibilidade) Cf. Historical Dictionary of Schopenhauer's Philosophy, p.157-158. 162 Cf. MVR, § 10, p.98, I 59.

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A vida no estado de natureza é tosca, breve, deficitária, precisamente o

contrário do que o egoísmo é: conservar a essência e ser mais e melhor. A razão pode

apreender a totalidade através dos conceitos, deixando o particular, e possibilitando o

discernimento de qual o meio mais eficaz para fugir do estado inicial de guerra de todos

contra todos. Ela reconhece a fonte das desvantagens da injustiça e começa a buscar um

meio de diminuí-la ou, onde possível, suprimi-la através de um sacrifício comum,

compensado, todavia, pela vantagem comum daí resultante. Na medida em que a

faculdade de razão, visando sempre um bem maior e a própria conservação na melhor

situação possível, deixa de considerar os fatos a partir do ponto de vista unilateral do

indivíduo ao qual pertence, ela nota que os prazeres obtidos com a prática da injustiça

em um indivíduo são sempre superados pela dor, relativamente maior, do sofrer

injustiça.

Segundo Schopenhauer, o ato de praticar injustiça causa prazer no praticante

e a razão reconhece que tanto para diminuir o sofrimento em toda parte, quanto para

reparti-lo da maneira mais equânime possível, o melhor e o único meio é poupar a todos

da dor relacionada ao sofrimento da injustiça, fazendo-os renunciar ao prazer obtido

com a sua prática. Esse parece ser um movimento paradoxal da argumentação

schopenhaueriana, uma vez que a faculdade de razão age egoisticamente ao abandonar o

ponto de vista da individuação, que é em essência também egoísta, para, assim, obter

um bem maior.

Contudo, é pelo abandono de uma ação egoísta no plano da individuação

que se obtém vantagens maiores neste mesmo plano e no plano de uma totalidade

social. Trata-se de um aparente abandono de um egoísmo individual em prol de um

egoísmo coletivo; contudo, as vantagens referentes ao plano da individuação exercem

uma influência mais acentuada do que esses mesmos motivos considerados no plano de

uma totalidade social: isso significa que o egoísmo inerente a cada indivíduo e a avidez

com que se manifesta leva-nos a crer que a melhoria coletiva é simples meio para a

melhoria individual, ou seja, o egoísmo coletivo é apenas a afirmação mais contundente

de cada egoísmo individual. Assim, o motivo mais forte da constelação de motivos dos

indivíduos – não sofrer a dor, relativamente maior, da injustiça – se afirmou

soberanamente sobre o outro motivo – o prazer obtido em praticar ações injustas.

A instrumentalização do egoísmo coletivo pelo egoísmo individual com

vistas a evitar seus próprios males, i.e., a superação egoísta do egoísmo – através de um

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egoísmo, por assim dizer, esclarecido –, recorreu a um pequeno cálculo de utilidade: a

recta ratio em um nível tosco é cálculo de benefício, e leva o ser humano a pôr fim ao

estado de natureza enquanto estado de guerra de todos contra todos por meio do

contrato social (Staatsvertrag) ou da lei (Gesetz). Somente com auxílio da linguagem a

razão consegue estabelecer o conjunto dos dispositivos institucionais e normativos de

combate aos atos injustos, o Estado,163 efetivando uma das suas mais importantes

realizações. O contrato que origina o Estado deve fornecer ao cidadão a segurança de

sua vida, de sua liberdade, de sua propriedade, de sua honra, de seu corpo; ele, o

cidadão, deu como penhor sua vida e propriedade em favor da segurança de cada um.

Assim, a razão faz o indivíduo abandonar seu prazer de praticar a injustiça para, então,

poder ser protegido: o monopólio da força e da violência, agora, pertence à instituição

política instaurada. A razão discerne qual o meio mais eficaz para superar o estado

inicial de guerra de todos contra todos. O Estado, desse modo, surge por um cálculo de

utilidade, determinado pela razão, para a proteção e tutela dos interesses dos indivíduos,

i.e., ele não nasce da preocupação positiva com a justiça, mas da preocupação em evitar

o sofrer injustiça. Desta forma, o contrato é celebrado como uma estratégia do egoísmo

esclarecido em garantir a melhor preservação das objetidades da vontade no mundo

fenomênico, no mundo como representação.

2.2.12. Contrato Social como forma de Legitimação do Estado

Schopenhauer fundamenta e legitima filosoficamente um dispositivo

moderador das relações pessoais e jurídicas, e uma ordem política fundamental.

Contudo, não parece ser o caso de uma fundamentação e de uma argumentação a partir

da descrição histórico-cronológica da fundação de um Estado em particular; antes, o

contrato subsidiário de sua teoria não parece ser um acontecimento histórico, mas deve-

se ser entendido como um recurso hipotético,164 i.e., um artifício utilizado para analisar,

163 Cf. MVR, § 8, p.83-84, I 44. Essa capacidade de reflexão é a raiz de todas as obras teóricas e práticas e “também da colaboração de muitas pessoas para um mesmo fim: e por isso, da ordem, da lei, dos Estados, etc.” (Cf. QR, §27, p.154, III 209). 164 “Para demonstrar a vantagem – e uma vantagem irrenunciável – de certos deveres coercitivos, pode-se argumentar de outra forma e, em um experimento mental, supor a renuncia total a tais deveres. Na tradição filosófica esta suposição (puramente teórico-legitimante e não histórica) se chama: estado de natureza ou, mais precisamente: estado primário de natureza.” HÖFFE, O. Estudios sobre teoria del

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avaliar, e explicar a origem da sociedade, e justificar a autoridade política, ou seja, trata-

se de uma estratégica metodológica para validar o poder do Estado sobre os seus

governados – como parece ser o caso da maioria dos autores contratualistas modernos.

A argumentação schopenhaueriana possui como pedra angular a natureza do

ser humano, o egoísmo. De modo bastante geral pode-se dizer que durante a antiguidade

a forma predominante de argumentação pela qual os direitos eram justificados eram

assentadas em um ordenamento da natureza – em uma cosmologia –, e que durante o

período medieval os direitos eram justificados a partir da vontade de Deus, em uma

fundamentação que pode ser denominada teológica; Schopenhauer, no entanto, é

caudatário dos autores do período moderno que romperam com essas tradições e se

valeram da natureza do ser humano como ponto de partida, fazendo-o figurar como

centro e axioma das argumentações empreendidas. Daí muitos comentadores definirem

a metodologia dos autores modernos como um procedimento antropológico.165

Schopenhauer faz uso do artifício hipotético-legitimador do Estado, de um

estágio lógico pré-estatal – o estado primário de natureza. A situação pré-estatal tem em

si mesmo um defeito inaceitável: é um contexto no qual os direitos dos seres humanos

não podem se efetivar, i.e., é uma circunstância na qual os direitos permanecem latentes,

não assegurados, um cenário que configura a anarquia em seu sentido pejorativo, no

qual cada um persegue seus fins pelos meios que lhe parecem adequados, e entram em

conflito quando os meios ou os fins são os mesmos; nessa conjuntura a vida se torna

insuportável; também não se pode esperar a conduta moralmente justa do indivíduo

próximo, uma vez que se todos agissem conforme à moral, de forma a respeitar o direito

do próximo, não seria necessária a existência de um dispositivo coercitivo para

estabelecer, manter e regular a ordem, fornecendo um mínimo de segurança às

interações entre os seres humanos.

A igualdade entre os indivíduos possibilita a realização do pacto que cria um

poder coercitivo: a ordem política pode ser justificada apenas através do consenso

possível dos afetados. A ordem política instaurada para superação desse modo precário

de vida deve significar necessariamente uma limitação individual – uma limitação da

esfera de afirmação da vontade com o intuito de evitar as ações injustas. Deste modo,

derecho y la justiça. Version castellana de Jorge M. Sena. Barcelona; Caracas: ALFA, 1988, p.71. Doravante abreviado por Estudios sobre Teoria del derecho y la justiça, seguido de indicação de página. 165 Cf. Estudios sobre Teoria del derecho y la justiça, p.9; Os Fundamentos da ordem jurídica, p.XX-XXX; Cf. Dicionário de filosofia do direito, Direito Natural, p.241.

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tem-se um paradoxo a ser respondido, a saber, “como se pode legitimar frente a pessoas

que querem maximizar sua esfera de afirmação da vontade uma ordem política que, por

essência, significa uma limitação fundamental justamente dessa esfera de afirmação?”,

ou “por que as pessoas consentiriam uma limitação deste porte?”. A resposta teria como

pano de fundo o fato de que tal situação de precariedade só seria superada se cada um,

sob as mesmas condições, aceitasse uma limitação de seu egoísmo, de sua esfera de

afirmação da vontade. A limitação espontânea e recíproca dos egoísmos é celebrada

pelo que ficou conhecido por contrato social.

O contrato representa um acordo com valor jurídico. Desta forma, o contrato

significa (i) uma teoria consensual de legitimação política com vistas a assegurar a paz

entre os indivíduos; (ii) um acordo que realiza a transferência recíproca de direitos e de

deveres; (iii) o comprometimento jurídico, a partir da instituição do contrato, de cada

indivíduo com o cumprimento do acordado: ações que infringem o contrato são

perseguidas pelo direito penal (Strafrecht).166

A ordem política fundamental é pensada pela razão, mas surge do contrato

originário celebrado entre pessoas livres,167 não entre governante e governados. Trata-se

de uma convenção entre iguais que celebram pactos para estabelecer as regras para um

governo, marcando a transição da situação pré-estatal para a sociedade civil.

O Estado é legitimado como poder coercitivo e como sede das leis, do

direito positivo – que deverá ter no direito natural um parâmetro valorativo mínimo –,

como poder moderador que organiza a vida em sociedade, proporcionando vantagens

aos seus governados, ao assegurar o direito de propriedade, ao garantir a proteção

interior, a proteção exterior, e a proteção contra o seu protetor, em troca do

cumprimento de deveres para a manutenção da instituição.

166 Cf. HÖFFE, O. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado; tradução de Ernildo Stein. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, p.401. 167 Cf. Estudios sobre Teoria del derecho y la justiça, p.9; Cf. BOUCHER, D.; KELLY, P. The Social Contract and its Critics: an Overview. In: BOUCHER, D.; KELLY, p. (Orgs.). The social contract from Hobbes To Rawls. London; New York: Routledge, 1994, p.37.

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2.2.13. Os limites e a Extensão da Moralidade no que Concerne à Fundação

do Estado e às suas Funções.

Apresentados e estabelecidos os pontos acima, pode-se agora avaliar os

limites e a extensão da moralidade na filosofia política schopenhaueriana, i.e., é possível

caracterizar o papel da moral no que concerne à fundação do Estado e às funções e

deveres atribuídos a ele. Diferente de Hobbes, para quem os “pactos sem a espada são

apenas palavras” (covenants without the sword are but words),168 para Schopenhauer,

como visto, os pactos e contratos constituem um tipo de vínculo estabelecido com

validade e obrigação legal e moral. Dito de outra forma, para Schopenhauer o contrato é

um pacto moral que gera relações de responsabilidade – deveres, obrigações, direitos, e

benefícios – entre aqueles que celebram o acordo. Essa caracterização já possui uma

consequência extremamente importante na filosofia schopenhaueriana: o Estado surge

da celebração do contrato social (Staatvertrag), logo, a origem desse dispositivo

regulador das relações sociais e humanas é um pacto moral: o Estado surge, em última

instância, de um acordo moral estabelecido entre as partes envolvidas.

O Estado surge de um contrato social que pode – e deve – ser entendido

como um contrato moral, mas ele, o Estado, não deve ser entendido como uma

instituição orientada à melhoria moral de seus cidadãos. É fato que a legislação possa

engendrar certo efeito colateral de caráter pedagógico no que se refere à educação e

melhoria moral dos cidadãos do Estado,169 mas esse não é o escopo nem a finalidade

dessa instituição; trata-se, portanto, apenas de um efeito contingente. Um efeito

colateral contingente da ação do Estado em restringir o egoísmo inerente a cada

indivíduo em torno da otimização de seu próprio querer.170

168 Cf. Leviatã, Cap. XVII. 169 Cf. PP, Kapitel XXVIII – Ueber Erziehung (Capítuço XXVIII – Sobre a Educação). 170 Cf. MALTER, R. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens. Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman-Holzboog, 1991, p.361. Doravante abreviado por Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens, seguido de indicação de página. Sobre esse ponto, Malter ainda completa: “Assim, não se admira que Schopenhauer negue toda a capacidade do Estado e sua competência em melhorar os indivíduos. O Estado não é uma instituição corretiva, mas sim a instituição na qual o egoísmo deve perder sua agressividade externa para poder se conservar (ainda que apenas de maneira destrutivamente latente).” Nossa tradução para: „Daher verwundert es nicht, daß Schopenhauer dem Staat jegliche Fähigkeit und Befugnis, den Menschen zu bessern, bestreitet. Der Staat ist keine Besserungsinstitution, wohl aber die Einrichtung, in der der Egoismus seine äußere Aggressivität verlieren soll, um selber (nun immer noch latent destruktiv) sich erhalten zu können.“

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Nesse ponto cabe ressaltar a existência de uma importante diferença entre o

Estado não ser orientado à promoção da melhoria moral e ele possuir sua origem em um

acordo moral vinculante. No primeiro caso tem-se o elenco das possíveis obrigações do

Estado para com seus cidadãos, do qual, segundo Schopenhauer, a melhoria moral está

excluída; no segundo caso, tem-se a base na qual a origem da instituição é alicerçada,

i.e., uma consequência do recurso hipotético-legitimador das relações sociais.

Cumprir e usufruir das obrigações e benefícios engendrados pelo contrato

que originou o Estado constituem uma obrigação moral e, também, jurídica. Da mesma

forma que o contrato estabelecido obriga moral e juridicamente o Estado a proteger seus

cidadãos, não cumprir com os direitos de proteção e não punir um crime configuram

uma quebra de contrato. Ambos são violações do acordo vinculante que transfere e cria

direitos e deveres entre os indivíduos que celebraram o pacto que originou o Estado.

A base vinculante da transferência recíproca de direitos e deveres é moral,

mas sua força acaba por repousar na criação do âmbito jurídico, o qual permite e prevê a

sanção – o que significa a atuação na constalação de motivos dos indivíduos enquanto

cidadãos do Estado.171 Os âmbitos da moralidade e da legalidade estabelecem uma

relação na medida em que o primeiro tem de servir como parâmetro valorativo para o

segundo: assim, o direito moral (direito natural) serve como parâmetro valorativo –

embora em seu reverso172 – para todo direito positivo justo; e seguindo a mesma lógica,

Schopenhauer acaba por nomear de injustiça positiva todo direito positivo que não tenha

o direito moral como base axiológica.

Dentro desse contexto teórico, quando o Estado atenta contra alguma de

suas três finalidades básicas ele fere moralmente o pacto responsável por sua origem e

rompe com a sua obrigação de proteger os cidadãos, resultando nas duas ações

sumariamente condenadas por Schopenhauer como as piores possíveis: (i) a quebra de

contrato, ou seja, a realização e efetivação da mentira mais perfeita, e (ii) a injustiça

dupla, i.e., o protetor ferindo aqueles que deveriam ser protegidos – o Estado, cuja

função é proteger os seus cidadãos, acaba por lesá-los em suas pessoas, liberdades,

propriedades, corpos, e/ou em suas honras.173 Estes, por sua vez e como exposto acima,

171 Aqui vale lembrar mais uma vez que se as relações morais entre os indivíduos fossem espontaneamente estabelecidas, o Estado seria uma instituição supérflua e desprovida de sentido. 172 MVR, §62, p.441, I 407. 173 Seria o caso, por exemplo, do Estado que ao invés de proteger a integridade física de seu cidadão admite a tortura mesmo que não exista um ato identificado como prática de injustiça, i.e., punição sem crime, a presunção de culpa sem provas.

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possuem um direito moral e também jurídico de resistência às injustiças perpetradas

pelo Estado: o direito moral à autoconservação e o direito de proteção garantidos pelo

enunciado como terceira obrigação e função do Estado – a garantia ao protegido de

proteção contra aquele que deveria protegê-lo.

Dessa forma, ao ressaltar os aspectos selecionados da filosofia prática

schopenhaueriana, mais especificamente no que se refere ao direito e ao Estado, pôde-se

notar e expor o papel crucial da moral na ética do filósofo – em suas limitações e

extensões –, uma vez que a moralidade serve como base e subsidiária, estando presente

– mesmo que apenas na condição de pano de fundo – na completude da formulação das

doutrinas do direito e do Estado aventadas pelo filósofo da vontade.

2.2.14. Direito Internacional, Estado de Direito, e Direito de Resistência

A “origem e meta do Estado são explicadas magistralmente por Hobbes”.

Este comentário está presente tanto em MVR, quanto nas notas de aula sobre ética.174 O

Estado concebido por Schopenhauer surge para conveniência dos indivíduos, sendo

apenas um aparelho de repressão,175 não possuindo, segundo o autor, nenhuma

significação moral. Sua principal função é a de contrapor o egoísmo coletivo ao

egoísmo particular, e para isso ele deve cumprir, ao menos, três finalidades básicas, que

são expostas, de maneira breve, no capítulo 47 do segundo tomo d’O Mundo como

vontade e Representação.

Schopenhauer defende a tese de que o direito é um conceito moral e que sua

existência independe do Estado, o qual seria o dispositivo legal para o asseguramento e

a efetivação dos direitos naturais. Dessa forma, ele censura aqueles que afirmam que o

direito só existe mediante a existência do Estado, i.e., aqueles que negam a existência do

174 Cf. MVR, p. 442, I 408, No original alemão: „Auch Hobbes hat diesen Ursprung und Zweck des Staats ganz richtig und vortrefflich auseinandergesetzt“; HN, Metafísica dos Costumes, p.106, p.168. No original alemão: „Diesen Ursprung und Zweck des Staats hat schon Hobbes ganz richtig und vortrefflich auseinandergesetzt.“ 175 “Schopenhauer se opôs expressamente a todas as teorias desenvolvidas pelos sucessores de Kant, que esperavam do Estado um melhoramento e uma moralização (Versittlichung) do ser humano (Hegel) ou que viam no Estado uma espécie de organismo humano superior (Novalis, Schleiermacher e outros).” SAFRANSKI, R. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia: uma biografia. Tradução de Willian Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011, p.421. Doravante abreviado como Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, seguido de indicação de página.

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direito exterior a essa instituição, por confundirem o direito com os meios de fazê-lo

efetivar-se. Apenas por meio do dispositivo legal instaurado se torna assegurada a

proteção do direito – que só pode ser obtido pela força: justiça e coação, direito e

violência são, assim, duas faces da mesma moeda. A existência do direito independe da

existência do Estado, mas os meios para que eles sejam efetivados dependem.

O Estado tem, segundo Schopenhauer, três deveres que se relacionam

estritamente com a proteção (Schutz), a saber, a (i) proteção a atos exteriores (Schutz

nach außen), a (ii) proteção interior (Schutz nach innen) e a (iii) proteção contra o

protetor (Schutz gegen den Beschützer).176 Portanto, ainda segundo o autor, quem

pretende atribuir ao Estado outro fim que a proteção o desvia de sua verdadeira

finalidade. Qualquer outra função que o Estado venha a exercer violará os próprios

direitos dos cidadãos. O Estado deve, desse modo, restringir-se aos limites de seu papel

negativo, restringir-se somente ao indispensável – os deveres de proteção – para que se

possa conter as desvantagens do egoísmo.

A proteção a atos exteriores apresenta como princípio fundamental a defesa,

nunca através de uma forma de proceder agressiva, tendo como principal âmbito de

atuação a prevenção e o resguardo de ataques provenientes de outros povos. Essa

dinâmica revela e reconhece o direito internacional (Völkerrecht) – que para

Schopenhauer “não passa do direito natural levado à esfera de sua atividade prática, a

relação entre os povos.”177 O direito positivo não é válido nessa esfera de atuação

porque ele não possui os dispositivos necessários para se afirmar, a saber, a existência

de um juiz e de um poder executivo. Poder-se-ia dizer que o direito internacional

consiste, dessa forma, em um certo grau de moralidade nas relações entre as nações, e

que o juiz dos eventos, nessa esfera, é a opinião pública.178

Contudo, no §124 de PP, ancorado em perspectiva diversa da de MVR II,

Schopenhauer escreve que entre os cidadãos do Estado o direito do mais forte

(Faustrecht) foi abolido, porém, na dinâmica de relações políticas entre as nações ele

continua valendo. De acordo com o filósofo da vontade, os povos que promovem a 176 Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 681. 177 MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 681. No original alemão: „Dieses ist im Grunde nichts Anderes, als das Naturrecht, auf dem ihm allein gebliebenen Gebiet seiner praktischen Wirksamkeit, nämlich zwischen Volk und Volk, als wo es allein walten muß, weil sein stärkerer Sohn, das positive Recht, da es eines Richters und Vollstreckers bedarf, nicht sich geltend machen kann.“ 178 Atualmente existem órgãos de cooperação internacional, como a ONU – Organização das Nações Unidas –, a qual possui como órgão jurídico o Tribunal Internacional de Justiça, também conhecido por Corte Internacional de Justiça, Tribunal de Haia ou Corte de Haia.

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guerra possuem como objetivos as conquistas e o roubo, e erram ao justificarem essa

conduta utilizando-se de falsos discursos apoiados na moral, quando, na verdade,

deveriam recorrer às ideias concebidas por Maquiavel. E isso porque no âmbito da

política internacional ocorre justamente o contrário: o princípio seguido é antimoral,

quod tibi fieri non vis, id alteri tu feceris (faça ao outro o que tu não gostarias que

fizessem a ti). Tem-se, assim, nas relações internacionais a lógica do ataque

antecipatório: subjugar o outro para não ser subjugado. A conclusão que se segue desse

raciocínio é a de que “cada Estado observa o outro como uma horda de ladrões que

atacará assim que a oportunidade se apresentar”,179 denotando uma perspectiva menos

favorável à dinâmica analisada do que a exposta no escrito anterior.

O segundo tipo de proteção que o Estado deve proporcionar aos seus

cidadãos é a proteção interior, que deve assegurar e zelar pela preservação dos membros

do Estado entre si, garantindo o direito privado (Privatrecht), mediante o cumprimento

da legislação, em um estado de direito (rechtlicher Zustand). Nesse contexto as forças

de todos os indivíduos protegem cada indivíduo, o que cria a aparência de que todos os

cidadãos são honestos e não desejam agredir-se mutuamente. Esse tipo de proteção

parece ser a proteção mais imediatamente buscada pelos pactos fundantes do Estado. E

ela parece ser a tentativa de realização da metáfora do açaimo posto no animal

carnívoro: assim como o animal sanguinolento é tornado inofensivo, os indivíduos são

forçados a deixarem de ser uma ameaça uns para os outros, pelo menos em aparência.

Safranski, em seu livro Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, explica

muito bem o significado da efetivação dessa metáfora: É sobre este cenário que Schopenhauer desenvolveu sua própria teoria do Estado, reconhecivelmente apoiada sobre a de Hobbes, como ele próprio o havia indicado: o Estado coloca uma “mordaça” (Maulkorb) nos “animais ferozes” (Raubtiere) a fim de fazer com que estes, embora longe de se tornarem melhores moralmente, se tornem “inofensivos como um ruminante” (unschädlich wie ein grasfressende Tier).180

O asseguramento dessas duas finalidades, dessas duas proteções, cria a

necessidade de uma terceira proteção: a proteção contra o protetor, que é basicamente

um direito de resistência, um direito à defesa contra aquele ou aqueles aos quais a

sociedade delegou o exercício da proteção e a tutela do Estado, um direito contra o

179 PP, §124, p.89, V 267. No original alemão: „Im Grunde sieht jeder Staat den andern als eine Räuberhorde an, die über ihn herfallen wird, sobald die Gelegenheit kommt.“ 180 Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, p.420-421.

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abuso do poder. Essa proteção assegura o direito público (öffentliches Recht), que é

mais efetivo quando dividido em três poderes protetores independentes uns dos outros, a

saber, quando dividido em poder legislativo, em poder judiciário, e em poder

executivo.181 Dessa forma, Schopenhauer lança as bases do que seria um governo justo

– aquele que possui no direito natural seu espelho, aquele que respeita a individualidade

e os limites de afirmação da vontade de cada cidadão, aquele que cumpre os seus

deveres relacionados à proteção. Em última instância Schopenhauer parece apontar as

formas liberais de governo como solução mais eficiente para a organização político-

administrativa dos Estados. Cabe agora investigar as formas de governo com as quais

ele se depara e o que seria para ele a arte de bem governar.

2.2.15. As Formas de Governo e a Arte de Governar

Como visto, o Estado tem sua origem na necessidade de coibir a injustiça

engendrada pelo egoísmo inerente ao gênero humano e deve cumprir alguns deveres

relacionados a formas de proteção. O Estado é o dispositivo, possui a forma; o

governante é aquele que se utiliza da forma do Estado para cumprir determinados

objetivos que englobam a vida em sociedade e questões relativas a garantias individuais.

O que seria, então, para Schopenhauer a arte de governar (die Staatskunst)?

A arte de governar teria como grande desafio “associar a força e o direito de

modo que o direito reja por meio da força.”182 A força garantiria o respeito e o

cumprimento do direito e da justiça, que, sozinhos, não seriam eficazes para fazerem-se

valer – e aqui é importante recordar que se a moralidade fosse suficiente para organizar

a vida em sociedade, não seriam necessários a legalidade e todo o aparato estatal. A

força, todavia, segundo Schopenhauer, encontra-se nas massas, onde é associada à

ignorância, à estupidez e à injustiça. A tarefa da arte de governar seria, assim,

subordinar a força física à inteligência, tornando-a útil. O bom governante deve aliar a

inteligência à justiça e a boas intenções. O governo, na forma de um Estado, tem a

181 Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 681. 182 PP, §127, p.96, V 273.

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obrigação de cumprir os deveres de proteção, garantindo a ordem e segurança.183 Esse

seria o uso otimizado do aparato estatal – ou, como Schopenhauer chama, o Estado

perfeito – dentro das condições de possibilidade humanas.184

A fundamentação ético-moral da autoridade política, i.e., a legitimação das

relações de mando e obediência corporificadas no dispositivo do Estado passam a

existir, conforme exposto, mediante um acordo comum, a partir do cálculo de utilidade

realizado pela reta razão e que é efetivado pelo contrato social. Contudo, existem

formas pelas quais o Estado pode ser organizado para cumprir esses deveres e outras

funções determinadas que podem variar de acordo com cada nação – e, aqui, é

importante ressaltar, comportam-se variações empíricas, mas não o relativismo.

Para gerir e cumprir da melhor forma possível os objetivos pelos quais foi

constituído, o Estado deve reunir algumas características que se referem a sua (i)

finalidade, (ii) a sua forma e configuração, e (iii) a sua base de correspondência com a

lei positiva.

A finalidade do Estado, como mencionado acima, relaciona-se com a

regulação da vida social, com o cumprimento de deveres relacionados à proteção. E essa

finalidade é realizada por meio da força, da violência, da repressão do injusto. Todavia,

não se trata aqui do estabelecimento do totalitarismo ou do absolutismo. Pelo contrário,

o asseguramento dos direitos deve ser dado na medida em que as liberdades individuais

são asseguradas. Qualquer outro tipo de legislação do Estado que não se refira aos tipos

de proteção descritos acima configuram a violação dos direitos do cidadão. Reduzido ao

papel da repressão e longe da tensão totalitária, o Estado, segundo o autor, deveria ser

mínimo, evidenciando certo caráter liberal de sua teoria, na medida em que seus

cidadãos teriam assegurados direitos que restringem o poder do Estado sobre eles, i.e.,

estariam protegidos contra a ingerência do poder estatal no que se refere às liberdades

individuais – o que engloba os campos da economia, da política, da religião, o campo

intelectual, etc.

Para Schopenhauer, o Estado seria mais ou menos perfeito conforme a

relação de assimilação com o que ele chama de anarquia (Anarchie) – uma “horda de

183 Ou, como Lefranc escreve “no fundo de toda ordem social se encontra apenas o equilíbrio do ódio, do medo e da cólera”. LEFRANC, J. Compreender Schopenhauer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Editora Vozes, 2005, p.161. 184 PP, §127, p.97, V 274.

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selvagens independentes uns dos outros”185 – e com o que ele chama de despotismo

(Despotie) – uma “horda de escravos arbitrariamente dominados pelo mais forte.”186 Em

MVR, Schopenhauer passa à consideração de uma forma de governo que seja a justa

medida entre a república e a monarquia, encontrando como resultado a monarquia

constitucional, a qual, segundo o autor, tende ao império das facções. Para criar um

Estado que cumpra da melhor forma sua finalidade, diz-se isso de um Estado perfeito,

primeiro é necessário criar seres cuja natureza permita que sempre sacrifiquem o

próprio bem-estar em favor do bem-estar público. Ou seja, estes seres devem ser

capazes de abdicar da própria autoafirmação da vontade para vida – devem abdicar de

seu egoísmo – em prol do bem-estar coletivo. Tratar-se-ia do indivíduo ético, justo,

caritativo; aquele que preza a afirmação do outro e dá a cada um o que é seu, não

lesando ninguém. Nesse contexto e dessa forma, o Estado funcionaria como elemento

gregário da vontade na pluralidade de indivíduos, i.e., o Estado seria um agregador das

vontades individuais no plano representacional. Schopenhauer chega a devanear sobre

essa questão em PP:

Se se quer planos utópicos, então digo: a única solução do problema seria o despotismo dos sábios e nobres, de uma genuína aristocracia e nobreza, atingida no caminho da geração, por meio da união entre os mais generosos homens e as mais inteligentes e brilhantes mulheres. Essa proposta é minha Utopia e minha República de Platão.187

Assim, ele retoma pontos de sua filosofia que são bem conhecidos, e faz

uma proposição um tanto assustadora, uma espécie de eugenia social: a partir de

indivíduos previamente selecionados – os mais generosos homens, e as mais inteligentes

e brilhantes mulheres –, seres humanos seriam gerados através da combinação do

caráter herdado do pai e da inteligência herdada da mãe. Os seres gerados seriam os

líderes e governantes do melhor tipo de sociedade que Schopenhauer pode imaginar,

uma sociedade governada por seres éticos, capazes de sacrificarem o próprio bem-estar

em prol do bem-estar alheio.

185 MVR, §62, p.439, I 405. No original: „eines Haufens von einander unabhängiger Wilden.“ 186 MVR, §62, p.439, I 405. No original: „eines Haufens Sklaven war, die der Stärkere nach Willkür beherrscht.“ 187 PP, §127, p.104, V 280. No original alemão: „Will man utopische Pläne, so sage ich: Die einzige Lösung des Problems wäre die Despotie der Weisen und Edlen einer ächten Aristokratie, eines ächten Adels, erzielt auf dem Wege der Generation, durch Vermählung der edelmüthigsten Männer mit den klügsten und geistreichsten Weibern. Dieser Vorschlag ist mein Utopien und meine Republik des Plato.“

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Fugindo ao devaneio – e do que seria uma contradição com o seu próprio

sistema filosófico –, é preciso lembrar que a função do Estado é puramente negativa,

vigilante, e repressora;188 ele não pode – nem conseguiria – mudar o caráter dos

indivíduos, sendo capaz apenas de fornecer motivos que possam tentar influenciar os

indivíduos a agirem de uma determinada forma e não de outra.189 A partir dessa

limitação, Schopenhauer propõe uma solução paliativa:

[...] entretanto, algo pode ser alcançado na existência de UMA família cujo bem-estar é completamente inseparável do bem-estar do país, de maneira que, pelo menos nas grandes questões, nunca uma pode ser favorecida sem que o outro o seja. Aí residindo a força e a vantagem da monarquia hereditária.190

A monarquia, segundo o filósofo, constitui a forma mais natural de

organização do ser humano. Tendo o monarca como líder, guia, e dirigente, os súditos

teriam uma figura com a qual se identificar e seguir. Essa figura é necessária porque,

segundo Schopenhauer, a natureza humana é tal que deseja um líder com quem possa

identificar-se como indivíduo. Tem-se, assim, um elemento agregador e unificador das

vontades individuais no plano fenomênico. E essa figura agregadora é passada de

geração em geração, por meio da prole e da sucessão ao trono, garantindo a ordem e

evitando turbulências na transição de um governo para o outro. O poder transferido de

forma hereditária, de pai para filho, seria mantenedor da ordem, da paz, da unidade do

Estado, e da figura de identificação nacional. Além disso, o monarca teria o seu

interesse ligado de forma íntima, estrita, inseparável e idêntica ao interesse da nação.

Isso significa que o que é bom para o soberano é bom para a nação e vice-versa: É como se ele fosse a personificação, ou o monograma de todo o povo, que nele chegou à individualidade; neste sentido ele pode até mesmo dizer com razão: l’état c’est moi [O Estado sou eu]. Exatamente por isso, vemos nos

188 Em ASV é possível ler: “A coação é a companheira inseparável de toda sociedade”. No original alemão: „Zwang ist der unzertrennliche Gefährte jeder Gesellschaft.“ ASV, p.131, IV 463. 189 Pode-se observar, a esse respeito, que se os indivíduos possuem um caráter adquirido que se “dá no seu relacionar-se com o mundo”, e que, se as relações no mundo estão, em sua maior parte, pautadas sobre uma ótica econômico-jurídica regulada pelos Estados existentes, então, em última instância, as relações dos indivíduos com o mundo são reguladas pelo Estado. Esse, assim, teria participação na formação do caráter adquirido dos indivíduos, atuando no refinamento da constelação de motivos destes, tornando-os, assim, menos toscos, i.e., mais preparados para conseguir alcançar seus objetivos evitando incorrer em ilegalidades ou em conflitos desnecessários com as leis. 190 MVR, §62, p.440, I 406. No original: „Bis dahin aber läßt sich schon etwas dadurch erreichen, daß es e ine Familie giebt, deren Wohl von dem des Landes ganz unzertrennlich ist; so daß sie, wenigstens in Hauptsachen, nie das Eine ohne das Andere befördern kann. Hierauf beruht die Kraft und der Vorzug der erblichen Monarchie.“

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dramas históricos de Shakespeare os reis da Inglaterra e da França tratarem-se mutuamente como França e Inglaterra, e também chamam de Áustria o duque desse país (King John, ato III, cena 1).191

Por ser uma monarquia constitucional, ela teria a legitimidade de leis que

restringiriam o poder do governante, assegurando a proteção contra o protetor; a

tripartição do governo garantiria a otimização do funcionamento da máquina estatal e

estaria de acordo com os três deveres de proteção que o Estado deve assumir. Dessa

forma, poder-se-ia afirmar que, resumidamente, a melhor configuração para o Estado,

segundo o filósofo da vontade, seria uma monarquia constitucional hereditária e

tripartida em poder executivo, legislativo e judiciário.

Esse parece ser um dos poucos pontos da ética schopenhaueriana em que se

pode especular acerca de uma mudança do viés argumentativo: a partir do momento em

que o filósofo analisa as diversas possibilidades de governo, e toma partido por uma

delas, ele parece prescrever ao invés de descrever. Mas essa prescrição pode ser

explicada: a partir da descrição da natureza humana, da finalidade do Estado e do

direito, da definição do que seria a arte de governar, e das possíveis formas de

configuração da máquina estatal, é possível identificar e apontar qual forma de

organização seria a mais adequada e eficiente para suprir as necessidades engendradas

pela natureza humana sem, contudo, fugir do campo da sugestão e adentrar o âmbito do

dever ser de uma configuração do dispositivo político instaurado para organizar e

administrar as relações sociais.

Em PP, parece lícito apontar o que pode configurar uma confusão ou

contradição: ao mesmo tempo em que o filósofo da vontade considera a criação do

Estado um meio artificial (künstlich) para suprir as necessidades dos seres humanos,192

ele também considera as repúblicas inaturais e artificiais (widernatürlich, künstlich),

fruto da reflexão,193 e a monarquia um regime natural (natürlich) ao ser humano.194 A

contradição poderia ser explicada e parcialmente dissoluta a partir das seguintes

considerações: (i) em MVR, o Estado surge de um cálculo de utilidade da reta-razão,

191 PP, §127, p.103, V 279. No original alemão: „Er ist gleichsam die Personifikation, oder das Monogramm, des ganzen Volkes, welches in ihm zur Individualität gelangt: in diesem Sinne kann er sogar mit Recht sagen: l’état c’est moi. Gerade daher sehn wir in Shakespeares historischen Dramen die Könige von England und Frankreich sich gegenseitig France und England, auch den Herzog von Oesterreich Austria (K. John, III, 1.) anreden.“ 192 Cf. PP, §127, p.99, V 276. 193 Cf. PP, §127, p.103, V 280. 194 Cf. PP, §127, p.102, V 278.

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seja ele uma república ou uma monarquia, e isso significa que ambos surgem da

reflexão – essa forma de interpretar o que o autor escreveu mantém a contradição

constituída; (ii) contudo, em PP a perspectiva adotada para explicação da origem do

Estado é um tanto diferente. Schopenhauer argumenta que em toda parte e em todas as

épocas diversos povos foram regidos de forma monárquica.195 Ele chega a recorrer,

seguindo Voltaire, a uma hipótese empírica para a origem dos primeiros monarcas: “os

primeiros príncipes foram originalmente generais vitoriosos e durante muito tempo eles

regeram nessa condição.”196 Ou seja, se o ‘natural’ da monarquia for entendido como

algo que decorre habitualmente da ordem regular das coisas, a forma pela qual os seres

humanos parecem se organizar em maior número de ocorrências, verificado repetidas

vezes no fluxo da história, então a submissão a um líder e à forma hierárquica poderiam

ser entendidas como ‘naturais’. Esse processo, verificado historicamente, seria resultado

de um instinto natural para a monarquia, a existência de um instinto monárquico no ser

humano (ein monarchischer Instinkt im Menschen) – o que solucionaria um aspecto da

contradição. Schopenhauer, nessa chave de interpretação, enxerga a monarquia – a qual

parece tomar como sinônimo de hierarquia – em muitos âmbitos:

A forma de regime monárquica é natural ao ser humano; quase como ela é para as abelhas e para as formigas, para grous em voo, os elefantes nômades, os lobos em hordas para a caça e outros animais ainda que colocam um deles no topo de seus empreendimentos. Toda ação humana que envolve perigo, cada campanha militar, todo barco deve obedecer um comandante; em toda parte, uma só vontade deve ser a dirigente. Mesmo o organismo animal é construído monarquicamente: o cérebro apenas é o guia e regente, o αηγεμονικον [aegemonikon]. Ainda que o coração, os pulmões, o estômago contribuam bem mais para a manutenção do todo, esses bons burgueses não guiam nem conduzem, pois essa é unicamente a incumbência do cérebro e deve proceder de um só ponto. Mesmo o sistema dos planetas é monárquico.197

195 PP, §127, p.102, V 279. 196 PP, §126, p.95, V 272. No original alemão: „Allerdings sind ursprünglich alle Fürsten siegreiche Heerführer gewesen, und lange Zeit haben sie eigentlich in dieser Eigenschaft geherrscht.” 197 PP, §127, p.102, V 278-279. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Ueberhaupt aber ist die monarchische Regierungsform die dem Menschen natürliche; fast so, wie sie es den Bienen und Ameisen den reisenden Kranichen, den wandernden Elephanten, den zu Raubzügen vereinigten Wölfen und andern Thieren mehr ist, welche alle Einen an die Spitze ihrer Unternehmung stellen. Auch muß jede menschliche, mit Gefahr verknüpfte Unternehmung, jeder Heereszug, jedes Schiff, Einem Oberbefehlshaber gehorchen: überall muß Ein Wille der leitende seyn. Sogar der thierische Organismus ist monarchisch construirt: das Gehirn allein ist der Lenker und Regierer, das ähgemonikon. Wenn gleich Herz, Lunge und Magen zum Bestande des Ganzen viel mehr beitragen; so können diese Spießbürger darum doch nicht lenken und leiten: Dies ist Sache des Gehirns allein und muß von Einem Punkte ausgehn. Selbst das Planetensystem ist monarchisch.“

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Dessa forma, segundo o velho Schopenhauer dos PP, as monarquias seriam

o resultado de um instinto natural, não podendo ser apenas fruto da reflexão e, por

conseguinte, não seriam uma criação artificial. As repúblicas, entretanto, seriam

artificialmente fundadas pela reflexão sobre um direito abstrato, e, por isso, estariam

sempre sujeitas à ameaça das desordens populares. Já a monarquia, ao ser considerada

uma forma de organização natural e mais comum aos seres humanos que a república,

possuiria algumas outras vantagens. Uma delas se refere ao fato dos talentos serem

protegidos, i.e., os indivíduos dotados de um maior preparo e inteligência conseguiriam

alçar cargos elevados e influenciar a política de forma direta. Pelo fato do monarca estar

bem estabelecido no poder, ele só teria a ganhar ao somar espíritos geniais à sua

administração, agregando valor à máquina estatal, tornando-a mais eficiente. Dessa

perspectiva, a meritocracia seria incentivada na monarquia, aproveitando a contribuição

das melhores mentes, em detrimento da política de favores e do que o autor denomina

privilégios de nascimento (das Vorrecht der Geburt) observadas em outras formas de

organização do Estado.

O velho Schopenhauer, contudo, parece cair em contradição com pilares

importantes do seu sistema filosófico ao escrever em MVR II que

O grande valor e a ideia fundamental da monarquia me parece estar no fato de que, porque os homens permaneçam homens, o monarca deve ser colocado em posição tão elevada, e ter tanto poder, riqueza, segurança, e a inviolabilidade absoluta, que para si não há nada que ainda possa desejar, esperar ou temer. Desta forma, o egoísmo que habita nele, como em todos, é aniquilado por neutralização, e, como se ele não fosse um ser humano, ele agora está habilitado a praticar a justiça, e ter em vista não mais o seu próprio bem-estar, mas apenas o do público. Esta é a origem do caráter aparentemente sobre-humano em todos os lugares que acompanha a dignidade da realeza, e a distingue tão inteiramente da simples presidência.198

Como seria possível satisfazer a vontade? Não se trata de um tipo especial

de conhecimento, nem de uma clareza de consciência (Besonnenheit der Vernunft).

Ainda mais, como seria possível a supressão do egoísmo e praticar a justiça sem a

tomada de consciência da unidade metafísica da vontade, sem que tal supressão ocorra

198 MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 681-682. No original alemão: „Der große Werth, ja die Grundidee des Königthums scheint mir darin zu liegen, daß, weil Menschen Menschen bleiben, Einer so hoch gestellt, ihm so viel Macht, Reichthum, Sicherheit und absolute Unverletzlichkeit gegeben werden muß, daß ihm für sich nichts zu wünschen, zu hoffen und zu fürchten bleibt; wodurch der ihm, wie Jedem, einwohnende Egoismus, gleichsam durch Neutralisation, vernichtet wird, und er nun, gleich als wäre er kein Mensch, befähigt ist, Gerechtigkeit zu üben und nicht mehr sein, sondern allein das öffentliche Wohl im Auge zu haben. Dies ist der Ursprung des gleichsam übermenschlichen Wesens, welches überall die Königswürde begleitet und sie so himmelweit von der bloßen Präsidentur unterscheidet.“

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por algum tipo de olhar através do véu de Maia, através do princípio de individuação,

ou por algum tipo de diminuição do grau de diferença que existe entre os indivíduos no

mundo empírico, da diminuição das fronteiras entre um e o outro? O indivíduo em

questão não seria completamente acometido pelo tédio? Trata-se de uma contradição

com o sistema filosófico, ou de uma exceção, dado o caráter específico da questão?

Schopenhauer não parece ter explorado essa questão e escrito sobre ela em nenhum

outro lugar.

Nesse âmbito da filosofia schopenhaueriana é possível perceber alguns

aspectos relevantes dos seus escritos: não apenas o conservadorismo mais acentuado do

velho Schopenhauer, o Schopenhauer do segundo tomo de MVR e dos PP, mas a

diferença marcante entre os seus primeiros e últimos escritos sobre política,

principalmente no que se refere ao método de exposição. Como ressaltamos logo na

introdução desse nosso texto, o autor escreve no prefácio da primeira edição de sua obra

Os Dois Problemas Fundamentais da Ética (Die beiden Grundprobleme der Ethik) que

em MVR a exposição de sua filosofia é feita de forma sintética a priori, e nos seus

demais escritos, de forma analítica ou sintética a posteriori.199

No primeiro tomo de MVR, temos uma exposição geral da fundamentação e

origem do Estado, baseada no cálculo de utilidade da reta razão que, através do contrato

social, reprimiu a guerra de todos contra todos. O peso constitucional da monarquia e as

restrições do seu poder aparecem de forma mais acentuada. O escrito não premiado,

Sobre o Fundamento da Moral, parece seguir a mesma linha argumentativa do primeiro

tomo de MVR, não apresentando grandes alterações ou complementos significantes para

essa questão em específico.

No segundo tomo de sua obra principal, temos uma importante

complementação teórica sobre o Estado: a apresentação das suas finalidades, todas

referentes à proteção; e uma desconcertante afirmação sobre a possibilidade do monarca

neutralizar o seu egoísmo e, assim, poder governar de forma ética.

Já nos PP, talvez pela abordagem mais objetiva e pragmática, temos as

maiores demonstrações de conservadorismo e, até mesmo, algumas tensões com os

escritos anteriores. Aqui, temos uma mudança de perspectiva e de semântica do termo

“natural”, o que ocasiona uma diferenciação entre a origem das repúblicas e das

199 Cf. SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauers sämtliche Werke. Hrsg. von Paul Deussen. Munique: R. Piper, 1911-1942, III 433.

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monarquias. A monarquia é apresentada quase como um sistema absoluto, e o filósofo

chega a justificar o poder do monarca como inato.

Para além das tensões existentes no interior do sistema filosófico do autor,

que poderiam, talvez, ser interpretadas como rupturas no seu pensamento único, existem

questões de limitação e alcance de hipóteses do filósofo ao explicar alguns fenômenos

pontuais. Um desses aspectos se refere ao tempo histórico ao qual a teoria

schopenhaueriana pode se referir. Mesmo para sua época, ela já parece defasada e,

comparada ao espírito de seu tempo e acontecimentos históricos, um retrocesso. Apesar

de alguns pontos de sua argumentação serem interessantes, como o confronto do

nepotismo, dos privilégios de nascimento, a solução apresentada para contornar o

problema é a meritocracia, a qual é apresentada sem maiores considerações e reflexões.

Nosso texto pôde, até aqui, reconstituir e expor a origem, finalidade e a

forma de configuração que são consideradas por Schopenhauer mais adequadas aos

desafios e problemas engendrados pela natureza humana. Agora, devemos entender qual

a base legítima da legislação, i.e., como o direito natural, segundo Schopenhauer, serve

de parâmetro valorativo para o direito positivo.

2.2.16. A Transferência da Doutrina Moral do Direito, por Inversão, para a

Legislação

Após estabelecer a doutrina do direito como sendo uma doutrina moral,

explicitar a origem, os tipos, e qual seria o modelo mais perfeito de Estado,

Schopenhauer argumenta que, ao contrário da moral, que tem como objeto de

investigação a conduta humana, i.e., o agir, e se restringe ao fazer (tun) justiça ou

injustiça, a ciência política – ou teoria da legislação – tem por objeto de análise o sofrer

(leiden) injustiça. Com o intuito de facilitar o entendimento dessa asserção, poder-se-ia

ilustrar a questão ao assinalar que a moral se propõe a responder à questão: “como o

indivíduo deve agir para ser justo?”, enquanto que a ciência política (teoria da

legislação), por ter como escopo de investigação o sofrimento da injustiça, perguntar-se-

ia “como evitar o sofrimento de injustiça?, como desestimular a prática de injustiça?”,

não possuindo como objeto de investigação o agir justo.

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Moral e teoria da legislação convergem na medida em que a prática da

injustiça e o sofrer injustiça relacionam-se mutuamente, constituindo uma correlação. Se

fosse possível pensar uma prática de injustiça separada do sofrimento de injustiça pela

outra parte, o Estado não poderia proibi-la. A proibição é feita a partir do momento em

que há sofrimento de injustiça por uma das partes.

Para a moral, a disposição à injustiça é o único elemento a ser considerado.

Dessa forma, a vontade, obstinada a cometer injustiça, ao ser impedida por um poder

externo, não se dissocia da injustiça de fato cometida: moralmente o querer a injustiça e

o ser injusto são uma e mesma coisa.

O Estado tem apenas o ato (Tat) como escopo de investigação, na medida

em que há, como exposto acima, uma relação de reciprocidade entre este e o sofrimento

do outro. A disposição íntima, a intenção, é investigada apenas na medida em que, a

partir dela, conhece-se a significação do ato, na medida em que através dos motivos se

conhece os efeitos. Logo, pode-se afirmar que, segundo Schopenhauer, o Estado não

proíbe ninguém de querer ou de desejar matar o próximo, desde que esta instituição

política tenha certeza que o medo da punição inibirá qualquer ação que concretize esse

ato.

O Estado não almeja – nem teria o poder de – eliminar a disposição do

indivíduo de cometer injustiça, mas atua no sentido de coibir a ação, por meio da

contraposição de uma sanção a cada motivo possível para cometer injustiça, levando ao

abandono do primeiro;200 este motivo contraposto é denominado por Schopenhauer de

punição implacável (unausbleibliche Strafe, ou punição inevitável). Assim, a pena

jurídica tem o objetivo de mostrar ao indivíduo não que ele poderia ser outro, mas que,

por determinados meios, ele não vai chegar aos seus fins. A pena jurídica só tem sentido

como uma prevenção e, para sê-lo, deve ser rigorosa, efetiva e infalível, porque ela não

muda o caráter do indivíduo, ela atua por meio da intimidação. Um conjunto de

contramotivos (Gegenmotiven) à prática da injustiça é o que Schopenhauer denomina

código penal (Kriminalkodex). Esse possui como propósito conseguir fazer, na medida

do possível, com que os indivíduos estejam mais motivados a obedecer à lei do que a

violá-la. Schopenhauer escreve: “[...] o código penal é um registro o mais completo

200 Sob o ponto de vista da liberdade da vontade, pode-se dizer que o Estado é ciente de sua impossibilidade em alterar o íntimo da vontade, a vontade em-si, e, neste caso, o caráter inteligível dos indivíduos; o Estado pode atuar no âmbito externo, apresentando motivos que possam influenciar a vontade dos indivíduos da forma pretendida (o que, deve-se assinalar, não garante o êxito do planejado).

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possível de contramotivos opostos a todas as ações criminais presumíveis – tudo isso in

abstracto, para fazer aplicação in concreto quando o caso ocorrer.”201 Com o objetivo de evitar as ações criminosas – o ato de injustiça e o seu

correlato, o sofrer injustiça – a ciência política, ou legislação, empresta da moral a

doutrina do direito, que determina os limites entre justiça e injustiça, para poder utilizar-

se do reverso (Kehrseite) destes limites estabelecidos. A doutrina pura do direito tem

como base o dado a partir da moral, do caráter, do âmbito interno da experiência,

enquanto que a teoria do Estado considera o que é dado a partir da motivação. Ou seja,

estabelecidos o injusto e o justo como padrão objetivo de medida (quais sejam: o injusto

se configura pela invasão da esfera de afirmação da vontade no corpo alheio e o justo é

a negação do conceito de injustiça), invertem-se a perspectiva e a ordem dos valores: a

legislação vigorará de acordo com o limite do justo estabelecido, que não pode ser

violado no âmbito da experiência externa.

A consequência direta dessa inversão de valores é que os limites são

bloqueados a partir do lado passivo, ou seja, não é definido e prescrito o que se deve

fazer para ser justo, pregando um agir fundado em uma moral, mas sim define-se o que

é injusto, que deve ser suprimido através da punição. Essa inversão é mais bem

visualizada no fato da legislação mostrar ao indivíduo os direitos que ele não pode

violar; os conceitos de injustiça e justiça, originalmente morais, tornam-se jurídicos pela

mudança do ponto de partida: do lado ativo (a prática da injustiça) para o lado passivo

(o sofrer injustiça).

Toda a exposição aqui empreendida teve como intenção demonstrar que o

Estado não está simplesmente orientado contra o egoísmo, mas a ele deve sua origem e

existe exclusivamente em função dele, tendo sido instituído sob a correta pressuposição

de que a pura moralidade, i.e., a conduta justa a partir de fundamentos morais, não é

algo que se deva esperar dos indivíduos.202 Se a conduta justa a partir de fundamentos

morais fosse praticada espontaneamente, o Estado seria uma instituição desnecessária e

supérflua. Essa última asserção parece constituir um ponto pacífico entre grande parte

dos pensadores que visam justificar a existência do Estado como: é o caso, por exemplo,

das teorias de Grotius, Hobbes, Rousseau, e Kant.

201 MVR, §62, p.441, I 407. No original: „demgemäß ist der Kriminalkodex ein möglichst vollständiges Register von Gegenmotiven zu sämmtlichen, als möglich präsumirten, verbrecherischen Handlungen, — Beides in abstracto, um vorkommenden Falles die Anwendung in concreto zu machen.“ 202 Cf. MVR, §62, p.442, I 408.

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A partir deste ponto de vista, argumenta-se que o Estado, orientado a

proporcionar condições de segurança para que os indivíduos convivam – que os limites

impostos pela legislação não sejam transgredidos –, não foi instituído contra o egoísmo,

mas contra as consequências desvantajosas dele. O egoísmo, assim, mostra uma de suas

faces: faz com que os indivíduos queiram continuar a existir na melhor situação

possível, e, para tanto, utiliza-se da faculdade de razão para instituir o Estado.

Assume-se, a partir do argumentado, que a finalidade do Estado é a garantia

da ordem social e, assim, das condições mínimas de convívio entre os indivíduos.

Dessa forma, duas consequências são dedutíveis no caso de o Estado alcançar

plenamente seu objetivo: (i) ninguém praticará injustiça; logo, (ii) ninguém sofrerá

injustiça.

É preciso ressaltar que para Schopenhauer o Estado, apesar de estar

orientado ao bem-estar – e bem-estar entendido apenas como a garantia de segurança

para o convívio em comum – dos indivíduos, não pode ir além de seu aspecto negativo,

a saber, do aspecto de imposição do direito: ele não pode proibir uma prática de

injustiça à qual não corresponda um sofrer injustiça do outro lado. Visto que isto é

impossível, o Estado proíbe qualquer prática de injustiça. O papel positivo, de fazer com

que cada indivíduo experimente a benevolência e obras de caridade, também não pode

ser imposto, porque dessa forma, segundo o autor, cada cidadão irá querer assumir um

papel passivo dentro do Estado – apenas usufruir de ações assistencialistas do Estado –,

não o ativo – praticá-las; como, segundo o autor, não existem razões para diferenciar e

atribuir a qual cidadão cabe cada função, o Estado só pode garantir um certo

ordenamento social que estabeleça a paz, deixando que cada indivíduo possa legislar

sobre os rumos de sua própria vida.

Do exposto, Schopenhauer conclui que a pura doutrina do direito, ou direito

natural, que melhor se denominaria direito moral,203 é a base, embora sempre ao reverso

(Kehrseite), de toda justa legislação positiva. Isso significa que os direitos positivados,

aqueles assegurados aos cidadãos pelo Estado, devem manter uma estrita relação com o

direito natural, assim como os deveres de proteção que o Estado assume. Dessa forma, a

legislação estaria assentada na mais precisa definição do justo e do injusto, embora

utilize, para termos práticos, o inverso dessa delimitação. Do contrário não se tem um

203 A argumentação de Schopenhauer, como visto, estabeleceu a equivalência e sinonímia destes três termos.

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Estado legal e justo, mas uma injustiça imposta aos seus cidadãos que é admitida

publicamente. Assim, é concluída a transferência da doutrina moral do direito para a

legislação, como é possível observar textualmente:

A legislação, como dissemos, toma de empréstimo à moral a pura doutrina do direito, ou doutrina da natureza e dos limites do que é justo e injusto a fim de a aplicar ao inverso para fins próprios, alheios à moral, e assim instituir uma legislação positiva e os meios para mantê-la, ou seja, o Estado. A legislação positiva, portanto, é a pura doutrina do direito aplicada ao inverso.204

Nossa reconstrução da argumentação schopenhaueriana abordou quatro dos

cinco tópicos capitais considerados pelo autor no que se refere à doutrina do direito, a

saber, (i) a origem dos conceitos de injusto e justo, bem como sua aplicação e lugar na

moral; (ii) o direito de propriedade; (iii) a dedução da validade moral dos contratos; (iv)

a explanação da origem e do fim do Estado e da relação deste fim com a moral, assim

como da transferência apropriada da doutrina moral do direito, por inversão, para a

legislação. Resta, agora, analisar o processo de fundamentação e o modus operandi do

direito penal (Strafrecht), o quinto tópico a ser contemplado em uma exposição de uma

doutrina do direito.

2.2.17. Direito Penal (Strafrecht)

O direito penal existe exclusivamente dentro do Estado, pois todo direito de

punir é estabelecido exclusivamente pela lei positiva – corporificada nessa instituição. O

direito penal acoima o ato injusto, não a pessoa que pratica esse ato. Essa é punida

apenas por concomitância, sendo apenas a matéria (Stoff) na qual o ato é castigado com

o objetivo de que a lei conserve a sua força dissuasiva através do exemplo.205

O escopo do direito penal deve ser o ato, uma vez que seria um erro tentar

mudar o caráter dos transgressores, por meio da punição, visando educá-los e melhorá-

los moralmente. Segundo Schopenhauer, a educação deve ser entendida como um

benefício; já o castigo, como um malefício. A tentativa de unir duas finalidades distintas

204 MVR, §62, p.443, I 409. No original: „Die Gesetzgebung entlehnt, wie gesagt, die reine Rechtslehre, oder die Lehre vom Wesen und den Gränzen des Rechts und des Unrechts, von der Moral, um dieselbe nun zu ihren, der Moral fremden Zwecken, von der Kehrseite anzuwenden und danach positive Gesetzgebung und die Mittel zur Aufrechthaltung derselben, d.h. den Staat, zu errichten. Die positive Gesetzgebung ist also die von der Kehrseite angewandte rein moralische Rechtslehre.“ 205 Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 685.

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– educar e punir – por um mesmo meio, a punição jurídica, seria ineficaz e, portanto,

um erro.206 A punição é apenas um castigo que mesmo antes do delito já fora

determinado – um contramotivo registrado no código penal – para quem o cometer, e

cuja ameaça deve sobrepor-se a todo possível motivo que conduz à prática da injustiça.

Em SLV Schopenhauer escreve: Pois as leis partem do correto pressuposto de que a vontade não era moralmente livre, em cujo caso não se podia dirigi-la, mas que estava coagida pelos motivos: de acordo com isso, ao ameaçar com uma pena querem opor aos eventuais motivos para cometer um crime, contramotivos mais fortes; e um código penal não é nada mais que um índice de contramotivos às ações criminais.207

A lei positiva, corporificada no Estado, é reconhecida por todos os cidadãos

que sancionaram um contrato comum, com vistas a acabar com os males do egoísmo

selvagem. Ora, se o Estado foi instituído pelos cidadãos por meio de um contrato pode-

se afirmar que estes membros estão, por um lado, sujeitos a infligir punição; por outro, a

sofrê-la. E, por se tratar de um contrato comum, a punição pode ser imposta, por meio

do Estado – que detêm o monopólio da violência – com total direito. Logo, outra

consequência direta deste contratualismo é que o objetivo imediato da punição em um

caso particular é o cumprir a lei como um contrato (Erfüllung des Gesetzes als eines

Vertrages).208

Enquanto tal é o objetivo da punição, a lei (Gesetz) tem por objetivo

assegurar os direitos alheios, protegendo cada cidadão do sofrimento da injustiça

causada pelos males do egoísmo, o que equivale à prevenção dos crimes. A lei é o

instrumento do Estado instituído para que a ordem social seja mantida e,

consequentemente, os indivíduos possam fruir o bem-estar. Deste modo, o contrato

celebrado garante tais benefícios aos seus cidadãos, mas por outro lado obriga-os a

renunciar à prática da injustiça, e a assumir o fardo da manutenção da instituição

instaurada.

206 Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 685. 207 SLV, p.140, III 569. No original alemão: „Denn die Gesetze gehen aus von der richtigen Voraussetzung, daß der Wille nicht moralisch frei sei, in welchem Fall man ihn nicht lenken könnte; sondern daß er der Nöthigung durch Motive unterworfen sei: demgemäß wollen sie allen etwanigen Motiven zu Verbrechen stärkere Gegenmotive, in den angedrohten Strafen, entgegenstellen, und ein Kriminalcodex ist nichts Anderes, als ein Verzeichniß von Gegenmotiven zu verbrecherischen Handlungen.“ 208 Cf. MVR, §62, p.444, I 410.

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A lei, entendida como um contramotivo a uma injustiça a ser praticada, tem

na punição seu cumprimento, ou seja, a punição é a objetivação da lei enquanto poder

de impedir a prática de uma injustiça. É importante atentar que a lei e a punição são

orientadas em essência ao futuro (Zukunft), não ao passado (Vergangenheit). Esta

orientação ao futuro é critério que permite diferir a punição (Strafe) da vingança

(Rache).

A vingança é motivada simplesmente pelo que já aconteceu, ou seja, pelo

passado. Toda resposta a uma injustiça sofrida sem objetivo algum relacionado ao

futuro é vingança, e não pode ter outro objetivo senão, pela visão do sofrimento causado

a um outro, consolar a si mesmo do próprio sofrimento.209 Mas, no interior do sistema

filosófico schopenhaueriano, isso é eticamente injustificável: a injustiça sofrida de

modo algum autoriza a prática de outra injustiça – a não ser que ela esteja situada na

esfera do direito de coerção, na legítima defesa.

Qual seria, assim, o estatuto teórico da lei? Como visto, ela prevê um

contramotivo para cada ato injusto que possa ser praticado. Contudo, esse contramotivo

não é direcionado à melhoria moral do indivíduo, transformando aquilo que o indivíduo

é, mas, antes, busca atuar na constelação de motivos e alterar os meios pelos quais cada

um busca alcançar seus fins: são fornecidas razões para que sejam eleitos os meios pelos

quais não há a prática de injustiça. As razões apresentadas são as possíveis sanções

sofridas no caso de se insistir pela via ilícita. Schopenhauer enxerga no sistema

penitenciário americano a adequação da lei com a sua finalidade e com regras de

organização que contribuem para o seu melhor funcionamento e eficácia: É sobre isso que se funda o sistema penitenciário americano: não tem a intenção de melhorar o coração do criminoso, mas penas de endireitar-lhe a cabeça, para que ele chegue à compreensão de que trabalho e honestidade são um caminho mais seguro e mesmo mais fácil para o próprio bem do que a patifaria.210

Pode-se alterar a ação do indivíduo, mas não o seu querer, e isso significa:

não é possível mudar o fim que a vontade desse indivíduo busca, mas apenas o caminho

trilhado para atingi-lo. Tendo como base esse dado alcançado pela investigação

empreendida, Schopenhauer define o papel da lei. 209 Cf. MVR, §62, p.445, I 411. 210 SFM, §20, p.198, III 725. No original alemão: „Hierauf gründet sich das Amerikanische Pönitentiarsystem: es beabsichtigt nicht, das Herz des Verbrechers zu bessern, sondern bloß, ihm den Kopf zurechtzusetzen, damit er zu der Einsicht gelange, daß Arbeit und Ehrlichkeit ein sicherer, ja leichterer Weg zum eigenen Wohle sind, als Spitzbüberei.“

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Contudo, existe uma certa função pedagógica da sanção jurídica, uma vez

que as leis acabam por gerar, ainda que minimamente, um determinado grau de

instrução, que em níveis maiores corresponderiam à educação: a atuação na constelação

de motivos dos indivíduos pode contribuir para o aprendizado e, assim, ajudar o

indivíduo a escolher os meios mais adequados para obter o fim almejado. Através dos

motivos é possível forçar e obter a legalidade, mas nunca a moralidade. Em SFM,

Schopenhauer considera que neste aspecto há uma cultura moral e uma ética da

melhoria, mas que seu limite, alcance e horizonte são limitados e facilmente

determinados. Em última instância “A cabeça é aclarada, mas o coração permanece

incorrigível.”211

A punição e o castigo atuam na constelação de motivos do indivíduo como

exemplos a serem considerados, como amostras das consequências engendradas pela

realização de uma determinada ação. Schopenhauer estabelece uma relação entre

punição e impunidade: da mesma forma como a punição inibe a repetição de um ato, a

impunidade incentiva a ocorrência de ações criminosas de mesmo teor.212

Por ser o foco da pena punir o ato, fazendo-o servir de exemplo, na ética

schopenhaueriana a pena de morte é tratada como uma forma de punição legítima e

justificável.213 Contudo, como já mencionado, deve sempre haver uma proporção entre

o ato a ser punido e a punição que será aplicada.214 No cômputo para definição da pena

também devem ser considerados os motivos que impulsionaram a ação proibida.

Todavia, segundo o autor, a ignorância, as aflições externas, as dificuldades financeiras,

etc., não podem servir como escusa para justificar a causa de um crime, uma vez que,

seguindo o bem conhecido argumento liberal, inúmeras pessoas vivem em condições

deste tipo e não comentem crime algum.215 211 SFM, §20, p.199, III 725. No original alemão: „Der Kopf wird aufgehellt; das Herz bleibt ungebessert.“ 212 “Como o câncer e a gangrena podem afetar por contagium as zonas mais próximas às zonas afetadas, um delinquente impune será imitado por novos delinquentes seguindo seu exemplo.” HN, Metafísica dos Costumes, p.112, p.175. No original alemão: „wie Krebs und Kalter Brand durch contagium [Ansteckung (durch Berührung)] jeden nächsten Theil sich ahnlich machen; so wirkt ein Verbrechen wenn es ungestraft hingeht unfehlbar neue Verbrechen durch sein Beispiel.“ 213 Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 686. 214 “Que a pena deve manter uma exata proporção com o crime, tal e como ensina Beccaria, não se deve ao fato de ser uma expiação do crime, mas uma adequação ao valor daquilo a que responde” MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 686. No original alemão: „Daß, wie Beccaria gelehrt hat, die Strafe ein richtiges Verhältniß zum Verbrechen haben soll, beruht nicht darauf, daß sie eine Buße für dasselbe wäre; sondern darauf, daß das Pfand dem Werthe Dessen, wofür es haftet, angemessen seyn muß.“ 215 MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 685.

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2.2.18. Um Aparente Paradoxo: A Questão da Imputabilidade

A exposição anterior acerca da teoria da ação e da liberdade da vontade

auxiliará na resolução de uma objeção comumente feita à doutrina do direito de

Schopenhauer: se as relações jurídicas são pautadas e fundamentadas na imputabilidade,

i.e., na possibilidade de responsabilizar o indivíduo por suas ações – e essa

responsabilidade é assentada na concepção de livre-arbítrio, refutada pelo filósofo –,

como responsabilizar o indivíduo por seus atos e, assim, puni-lo por uma conduta

considerada injusta?

Como fora argumentado, as ações do indivíduo são exteriorizações de seu

caráter inteligível e esse, sendo imutável, concerne ao âmbito da vontade em-si. O

direito, como concebido por Schopenhauer, é regulado pelo Estado e este tem ciência de

que não pode mudar o que o ser é, mas de que pode apenas influenciar a ação do

indivíduo por meio da contraposição de motivos. A lei, assim, afeta apenas o

comportamento expresso no fenômeno pelo caráter empírico, não a essência do ser: o

direito penal atua apenas no plano fenomênico; no plano da coisa-em-si a atuação é da

justiça eterna (ewige Gerechtigkeit).216 Assim, o que interessa à aplicação do direito é a

exteriorização do caráter inteligível através do caráter empírico no mundo fenomênico,

ou seja, o agir, o operari, o comportamento do indivíduo. As disposições íntimas dele,

neste contexto, são irrelevantes, uma vez que o escopo de tipificação das ocorrências

jurídicas é a ação que cause um sofrimento.

A responsabilidade deve ser entendida a partir de uma dupla consideração:

por um lado, da perspectiva da legalidade, o Estado atribui a responsabilidade da ação

ao indivíduo, uma vez que ele considera como fator principal para análise o ato, a ação

praticada e o seu agente; por outro, no plano da moralidade, o indivíduo se sente

responsável moralmente por suas ações, uma vez que elas são manifestações dele

mesmo: “as ações do homem são consequências do que ele é, e sua responsabilidade por

elas decorre então do que ele é.”217

216 A justiça eterna é apresentada e analisada na seção 2.2.20 Um tipo de Justiça Infalível: a Justiça Eterna. 217 CARDOSO, R. A idéia de justiça em Schopenhauer. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008, p. 148.

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Dessa forma, o indivíduo, por poder ser responsabilizado moralmente e por

possuir o sentimento dessa responsabilidade, admite ser imputado pelas ações por ele

praticadas, i.e., pode-se atribuir a ele a autoria ou responsabilidade por certo ato lícito

ou ilícito praticado e, assim, premiá-lo ou puni-lo. Dessa forma, nessa correlação entre

ser imputado e admitir ser imputado por uma ação praticada, por reconhecer-se

moralmente como autor de tal ação, ficam asseguradas a possibilidade de

responsabilizar um indivíduo por seus atos e as estruturas básicas para o direito poder

atuar e se efetivar. O contrato celebra, também, a admissão dessa relação: celebra o

reconhecimento de que posso ser imputado e punido pelas minhas ações porque as

reconheço como minhas.

2.2.19. Considerações Sobre a Justiça Temporal (zeitliche Gerechtigkeit) e

seus Limites

Como visto, Schopenhauer justifica a hostilidade entre os indivíduos a partir

de duas perspectivas: (i) a perspectiva ética, ao mostrar que cada um quer tudo para si, e

(ii) a perspectiva epistemológica, ao mostrar que o sujeito do conhecimento é o

sustentáculo do mundo. O ser humano, por ser um organismo mais complexo, possui

necessidades mais complexas: a partir da complexidade do corpo humano e da

complexidade de consciência humana (a razão), o ser humano pôde refletir acerca da

sua situação de penúria no estado de natureza, e pode procurar soluções para superá-la.

Pelo cálculo da razão o Estado foi concebido; e pelo contrato social, instituído. Mas não

se trata de uma vinculação a uma concepção utilitarista, a qual visa o bem como

finalidade, pois o bem não é a finalidade do Estado;218 evitar o injusto, instaurando a

ordem social é o modo pelo qual se tornou possível contornar os males do egoísmo

animal destrutivo. Mas essa solução não é um ultrapassamento mesmo do egoísmo, é

apenas a limitação egoísta do egoísmo.

A justiça temporal tem sua sede no Estado, e, como visto, a doutrina do

Estado, enquanto conjunto dos dispositivos institucionais e normativos de combate aos

atos injustos, refere-se à pura doutrina do direito, que tem no justo e no injusto por

natureza seu padrão objetivo de medida; e o justo e o injusto referem-se aos limites da 218 Cf.2.3.1 Seria Moral o Fundamento das Doutrinas Schopenhauerianas do Direito e do Estado?, p.124.

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afirmação da vontade para vida. Essa forma de conceber o Estado faz com que essa

instituição não possua nenhum status moral ou função ética, diferindo e sendo até

mesmo contrário à forma pela qual foi concebido pelo idealismo alemão.

Recordemos o motivo fundador do Estado e o objetivo dessa instituição na letra

do filósofo:

No Estado, portanto, reconhecemos o meio pelo qual o egoísmo, servindo-se da faculdade de razão, procura evitar as suas próprias consequências funestas que se voltam contra si, e, assim, cada um promove o bem-estar geral, porque dessa forma assegura o seu bem-estar particular.219

Schopenhauer especula sobre como seria um Estado que cumprisse de forma

plena seus objetivos, i.e., como seria se o Estado se realizasse de forma plena. A

resposta hipotetizada enuncia que um domínio cada vez maior sobre a natureza seria

possível e com isso seria possível a extinção de todo o mal, instaurando-se, assim, algo

parecido a um reino utópico.220 Mas, fugindo à utopia, o autor considera que, além do

Estado sempre se encontrar distante de tal fim, mesmo se este fosse alcançado, ainda

nos restariam outros inumeráveis males, e a vida manteria sua essência de sofrimento. E

se os males fossem erradicados, subitamente o tédio ocuparia o lugar deles – não é

possível escapar ao pêndulo da vontade.221 O autor ressalta: as disputas e discórdias

entre os indivíduos nunca são totalmente suprimidas pelo Estado, porque a

autocontradição e a discórdia são a essência íntima de todos nós e o mundo é um

espelho dessa essência. Mas, supondo que o Estado alcançasse plenamente o seu fim,

supondo que todos os males fossem superados, supondo que os indivíduos vivessem em

completa harmonia, qual seria o prognóstico de Schopenhauer? O denominado filósofo

do pessimismo, nesse ponto, faz jus a sua alcunha: “[...] o resultado seria a efetiva

219 MVR, §62 p.447, I 413. No original: „Wir haben also im Staat das Mittel kennen gelernt, wodurch der mit Vernunft ausgerüstete Egoismus seinen eigenen, sich gegen ihn selbst wendenden schlimmen Folgen auszuweichen sucht, und nun Jeder das Wohl Aller befördert, weil er sein eigenes mit darin begriffen sieht.“ 220 Vale lembrar que para Schopenhauer a monarquia constitucional hereditária tripartida se aproxima da forma de governo mais perfeita. 221 Aqui faço referência à célebre passagem do autor que enuncia que a vida, vontade, é como um pêndulo que oscila entre dor e tédio. “Sua vida, portanto, oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio, os quais em realidade são seus componentes básicos”. MVR, §57, p.402, I 368. No original alemão: „Sein Leben schwingt also, gleich einem Pendel, hin und her, zwischen dem Schmerz und der Langenweile, welche beide in der That dessen letzte Bestandtheile sind.“

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superpopulação de todo o planeta, cujo mal só uma imaginação audaciosa poderia agora

tornar presente.”222

A justiça temporal se origina e se produz no elemento mesmo do egoísmo; e

pelo fato de ser empírica, i.e., fenomênica, ela não pode ser mais que ilusão, ela não

pode deixar de ser falha, ela não pode transpor suas limitações. As precauções contra o

egoísmo não podem ser completamente eficazes porque elas são apenas aparência, elas

não melhoram moralmente o ser humano, nem extirpam seus desejos de buscar o que

querem e de eventualmente cometerem injustiças. Tão logo a ameaça do castigo ou a

promessa da recompensa sejam afastadas do indivíduo, os atos injustos retornam à

ordem do dia. Viver é tornar-se aquilo que se é, e o caráter suscetível às motivações

egoístas é a mais frequente configuração da concreção da vontade num corpo. Dessa

forma, a justiça temporal não pode ser plenamente realizável. Ela se realiza na medida

em que também é um não alcance de seu fim último e pleno.

O Estado, enquanto organização do egoísmo coletivo esclarecido, e o

direito, enquanto meio pelo qual se torna possível impor limites às manifestações do

egoísmo individual, não podem ser considerados o ultrapassamento do egoísmo mesmo.

Antes, são medidas de asseguramento da existência social, são a afirmação da diferença

entre um indivíduo e o outro, um enredamento persistente no princípio de individuação;

isso significa que viver no Estado é viver no seio do egoísmo coletivo esclarecido

organizado por regras jurídicas.

Conceitos como direito e moral, nucleares nesse ponto da argumentação do

filósofo da vontade, só são passíveis de serem entendidos em sua totalidade quando

colocados em relação um com o outro: a justiça temporal, i.e., a retaliação (Vergeltung),

o Estado, seria o elemento relacional entre a moral – o conceito sempre positivo, que é

referido ao ato, à parte ativa – e o direito – o conceito negativo, que é referido ao sofrer,

à parte passiva. A justiça temporal seria o elo entre esses dois conceitos na medida em

que relaciona o interior – a dimensão da experiência interna do indivíduo, o ser, o esse,

o caráter, o sentimento de prática da injustiça – com o exterior – o agir, o operari, a

motivação, o sentimento de sofrer injustiça. O conceito de consciência moral

(Gewissen) mostra, aqui, sua centralidade ao possibilitar a delimitação e a articulação da

222 MVR, §62, p.447-448, I 414. No original: „[…] das Resultat seyn, dessen entsetzliche Uebel sich jetzt nur eine kühne Einbildungskraft zu vergegenwärtigen vermag.“

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doutrina pura do direito com a ciência política, permitindo a determinação da base

teórica do Estado e do sistema penal, bem como o seu escopo, e a sua forma de atuação.

É possível, mediante o exposto, apresentar e defender a tese de que o Estado

pode ser entendido como o elo entre os âmbitos da vontade e da representação, como

aquilo que intermedeia as relações entre os indivíduos no mundo empírico, assimilando

e utilizando o reverso da pura doutrina do direito para fins práticos de organização

social. Dessa forma, a doutrina do direito ocupa o status nucelar da ética

schopenhaueriana, como a forma pela qual é possível conter as desvantajosas

consequências da natureza egoísta humana e possibilitar a vida em sociedade. O Estado

– quando justo, i.e., quando toma o direito natural como parâmetro valorativo para o

direito positivo – seria a linha intermediadora entre o justo moral e sua tentativa de

efetivação ou asseguração no plano empírico, através das leis.

Junto à filiação às teorias do direito natural racional pode-se notar o fato de

Schopenhauer, sem mencionar, recorrer ao conceito de justiça como equidade, i.e., ao

fato dele recorrer a um conceito de justiça que independe da lei positiva, um conceito

baseado e fundamentado em um sentimento do que se considera o justo – a negação da

injustiça.

A justiça temporal de alguma forma é falha porque limitada: por depender

das instituições humanas, por ser suscetível ao acaso e ao engano. Nesse aspecto ela

pode ser considerada oposta à justiça eterna. Talvez, a passagem da justiça temporal

para a justiça eterna possa ser entendida como a passagem do registro do direito para o

registro da moralidade.

2.2.20. Um tipo de Justiça Infalível: a Justiça Eterna (ewige Gerechtigkeit)

Como mencionado anteriormente, o conceito de justiça é utilizado por

Schopenhauer em três registros: justiça voluntária (a justiça como uma virtude), justiça

temporal, e justiça eterna. Até esse ponto, tratamos quase que exclusivamente da justiça

temporal; agora nos ocuparemos da investigação acerca da justiça eterna.

A justiça eterna independe das instituições humanas e não está submetida ao

acaso e ao engano, não sendo, dessa forma, incerta nem oscilante, mas infalível, firme e

certa. Ela não requer a mediação do tempo, do espaço, e da causalidade para compensar

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um ato maldoso, através de consequências ruins. Ela, assim, independe da experiência.

Ademais, apesar de ela reger o mundo, isso não significa que ela balanceie uma

injustiça cometida (ausgeübtes Unrecht) em um determinado lugar com um sofrimento

em outro local: nela, a punição tem de ser tão ligada à injúria que ambas se tornam unas.

Mas o que isso significa?

Isso significa que a justiça eterna reside, segundo Schopenhauer, na essência

do mundo,223 na coisa-em-si, revelando, dessa forma, o seu caráter metafísico; ou seja,

ela não considera o mundo enquanto fenômeno, enquanto aparência, i.e., ela não

considera o sofrimento particular ou a mesquinhez de cada indivíduo,224 não podendo

ser encontrada na experiência. Para ser apreendida, então, é preciso adotar o ponto de

vista transcendental. Esse ponto de vista permite entender que a finitude, o sofrimento, e

os tormentos deste mundo são expressões daquilo que a vontade quer, e,

consequentemente, configuram-se de maneira consoante com a forma da vontade

querer: tal qual é a vontade, é o mundo.225 Nesta chave de leitura, pode-se entender o

conceito de justiça eterna como uma tautologia: ele enuncia que o mundo é o que é. E o

que é o mundo? Um espelho do que é vontade. E o que é vontade? Um impulso cego e

irracional que traz em si a marca ontológica da sua insatisfação eterna, discórdia. Todo

ato de vontade satisfeito é apenas uma transição para um novo ato de querer da vontade.

Portanto, ela nunca pode ser satisfeita; ela é eternamente padecente. O mundo não é

mais que o espelho dessa volição, dessa autodeterminação da vontade.226 Essa

constatação, em sua última consequência, leva Schopenhauer a concluir que “[...] tudo o

que acontece ou pode acontecer a cada um, a justiça sempre lhe é feita, pois sua é a

vontade.”227 Essa afirmação é mais bem formulada quando o filósofo escreve que:

Se os seres humanos, tomados como um todo, não fossem tão indignos, então seu destino, também tomado como um todo, não seria tão triste. Nesse sentido podemos dizer: o mundo mesmo é o tribunal do mundo. Pudesse

223 Cf. MVR, §63, p.449, I 415. 224 “Schopenhauer, nesse ponto, não está tecendo comentários acerca do sofrimento individual de cada ser humano e da mesquinhez de cada um”. Tradução para: “Schopenhauer is not at this point commenting on individual human suffering and individual human vileness”. HAMLYM, D.W. Eternal Justice. In: Jahrbuch der Schopenhauer-Gesellschaft 1988. Band 69. Frankfurt am Main: Verlag Waldemar Kramer, 1988, p.281. 225 Cf. MVR, §63, p.449, I 415. 226 Cf. MVR, §63, p.449, I 415. 227 MVR, §63, p.449, I 415. No original: „und in allem was ihm widerfährt, ja nur widerfahren kann, geschieht ihm immer Recht. Denn sein ist der Wille.“

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alguém colocar toda a penúria do mundo em UM prato da balança, e toda a culpa no outro, o fiel permaneceria no meio.228

O mundo é o tribunal do mundo significa que do ponto de vista metafísico o

mundo é perfeitamente retribuidor e retaliativo (vergeltend),229 que a punição já está em

nós mesmos: nascer é um delito, pois nascemos chorando e, conforme uma lei eterna, a

morte vem em seguida como punição.230 Essas asserções são expressas por alguns

comentadores de Schopenhauer de maneira pontual, como Alexis Philonenko, que

enuncia: “a fatalidade é a verdadeira justiça que se traduz em tragédia”,231 ou quando

Marie-José Pernin escreve que “somos o que temos merecido ser.”232 Ambos se referem

a um tipo de justiça que vem-a-ser, com justeza, a partir da expressão da vontade

objetivada no agir, e que, assim, expõe a essência de dor e sofrimento do mundo.

Contudo, o indivíduo comum não consegue ter acesso para além do mundo

fenomênico, para além do princípio de individuação: ele não intui a coisa-em-si, a

essência das coisas, mas apenas experiencia os fenômenos fragmentados e situados

espaço-temporalmente em uma cadeia causal dessa vontade que é una noumenicamente.

Devido a essa inacessibilidade, dessa deficiência em perceber a mesma essência

metafísica nos diversos fragmentos de vontade objetivados no mundo como

representação, o indivíduo não consegue apreender e entender o significado da justiça

eterna, nem perceber a retaliação / retribuição no mundo, o delito que é viver.

Mas, qual seria a possível causa responsável por essa incapacidade dos

indivíduos em perceberem a univocidade metafísica de suas essências? Schopenhauer

utiliza-se de uma bela metáfora para explicar essa inferência. Ele compara o indivíduo 228 MVR, §63, p.450, I 415-416. Tradução ligeiramente alterada. No original: „wären sie nicht, im Ganzen genommen, nichtswürdig; so würde ihr Schicksal, im Ganzen genommen, nicht so traurig seyn. In diesem Sinne können wir sagen: die Welt selbst ist das Weltgericht. Könnte man allen Jammer der Welt in e ine Waagschale legen, und alle Schuld der Welt in die andere; so würde gewiß die Zunge einstehen.“ Pode-se dizer que, em nossa chave de leitura, penúria e culpa são apenas rótulos diferentes para uma mesma, por assim dizer, essência colocada em dois pratos de uma mesma balança. 229 Cf. Historical Dictionary of Schopenhauer's Philosophy, p.46. Deve-se frisar que essa retaliação / retribuição (vergeltend) deve ser entendida do ponto de vista metafísico, uma vez que é necessário adotar o ponto de vista transcendental para poder entender o significado da Justiça Eterna. Trata-se do em-si, da essência íntima do mundo, do fato da humanidade, considerada em sua totalidade, ser o que ela não deveria ser, ser o que ela tem merecido ser, ser o que ela é. Além do fato de que, do ponto de vista fenomênico, a retaliação / retribuição implica a temporalidade, e como visto, a Justiça Eterna independe do princípio de individuação. (Cf. MVR, §63, p.448, I 415). 230 Cf. MVR, §63, p.453, I 419. 231 PHILONENKO, A. Schopenhauer – una filosofía de la tragedia. Tradução de Gemma Muñoz-Alonso López. Barcelona: Anthropos Editorial del Hombre, 1989, p.205. 232 PERNIN, M. Schopenhauer – decifrando o enigma do mundo. Tradução de Lucy Magalhães. RJ: Jorge Zahar, 1995. p.34.

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comum a um barqueiro que se apoia e confia firmemente em sua pequena e frágil

embarcação, em meio a um oceano sem fim. O barqueiro seria o indivíduo, o oceano os

sofrimentos e dores do mundo, e a pequena e frágil embarcação, na qual o indivíduo se

apoia e confia firmemente, o princípio de individuação.

Schopenhauer argumenta que as formas cognitivas do fenômeno separam o

indivíduo do mundo restante. Essa separação reside exclusivamente no fenômeno, não

na coisa-em-si, pois é no fenômeno que existe a pluralidade. E, como visto,

precisamente neste ponto, na coisa-em-si, na essência dos seres, é que repousa a justiça

eterna.233 Esta se furta ao olhar turvado pelo conhecimento que segue o princípio de

razão e o princípio de individuação. Como Icilio Vechiotti assinala: “a justiça eterna

consiste na tomada de consciência da unidade das coisas como vontade.”234

Se a essência do mundo é sofrimento, então cada indivíduo carrega em si,

enquanto fragmentação dessa essência, todos os sofrimentos do mundo como seus; cada

um traz dentro de si um inferno. Mas, para conceber e apreender o significado da justiça

eterna, o indivíduo precisa elevar-se por sobre o conhecimento que segue o fio condutor

do princípio de razão: ele precisa abandonar o ponto de vista da individuação e adotar o

ponto de vista transcendental. Ao conseguir realizar tal tarefa, o sujeito perceberá que,

em essência metafísica, ele e os demais fenômenos que lhe aparecem são expressão de

uma mesma vontade: ele apreenderá que oprimido e opressor são a mesma vontade, e,

portanto, unos; que a vontade, a todo instante, dilacera a si mesma. Essa apreensão, o

conhecimento do significado da justiça eterna, faz com que o indivíduo perceba a

impossibilidade de separação entre o malum culpae e o malo poenae.235

São poucos os que conseguem realizar a tarefa de abandonar o ponto de

vista da individuação e, consequentemente, o princípio de individuação para apreender

o significado da justiça eterna. Não é na experiência que o indivíduo encontrará a justiça

eterna. Mas a transmissão de tal conhecimento pode ser feita por diferentes formas: (i)

de modo esotérico, aos iniciados, explica-se tal apreensão, via Upanixade, e dentro das

possibilidades e limitações dos conceitos, através da fórmula tat twam asi (isto és tu);

(ii) de modo exotérico, aos não iniciados, o povo, esse conhecimento foi traduzido para

forma do mito, o que não permite a apreensão direta de tal conhecimento.

233 Isto é, na vontade, o que está de acordo com a asserção dos demais comentadores citados. 234 VECCHIOTTI, I. Schopenhauer. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1990. (Biblioteca Básica de Filosofia), p.44. 235 “Mal da culpa” e “Mal da pena”, respectivamente.

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Schopenhauer, assim, observa que as religiões podem ser entendidas como uma

roupagem mítica para exposição do conhecimento que não pode ser apreendido pela

tosca inteligência comum.236

O mito utilizado para explicar a justiça eterna é o mito da transmigração das

almas. Esse mito ensina que todos os sofrimentos infligidos em vida pelo indivíduo a

outros seres têm de ser expiados em uma vida posterior neste mundo e precisamente

pelos mesmos sofrimentos. Em contrapartida, o mito enuncia recompensas pelas boas

ações praticadas, como o renascimento em figuras excelentes e mais nobres.237 Para

Schopenhauer, nunca houve, nem haverá um mito tão intimamente ligado à verdade

filosófica.238

Schopenhauer, em suas notas de aula, ainda especula sobre uma possível

objeção: “Se em linhas gerais o azar e o erro assenhoram-se sobre a vida humana e

sobre o curso do mundo, como pode haver lugar para a justiça?”.239 A primeira

observação a ser feita é a de que não se encontrará a justiça eterna na experiência, i.e.,

no mundo fenomênico. Muito pelo contrário, fenomenicamente os sofrimentos estão

repartidos de forma extremamente desigual, assim como os prazeres.240 Não existe

proporção nem correspondência entre o valor do indivíduo e seu fatídico destino.241 A

essência da humanidade é a essência do nosso mundo: vontade, i.e., discórdia,

contradição, carência, sofrimento.

Por fim, após uma pequena explanação de como Schopenhauer expõe o

conceito de justiça eterna, pode-se indicar (i) as formas pelas quais ela se revela e é

definida, e (ii) o papel sistemático que ela cumpre na filosofia schopenhaueriana.

Como exposto, o significado da justiça eterna pode ser apreendido ou

explicado: do ponto de vista de nossa essência metafísica somos uma mesma vontade, e,

portanto, compartilhamos a mesma essência de sofrimento. Por consequência, o mundo

é um espelho do que somos: somos o que merecemos ser. O sofrimento é a punição pela

nossa existência, e a justiça eterna é exatamente essa consequência, essa retaliação /

retribuição, ao que somos.

236 Cf. MVR, § 63, p.454, I 420. 237 Cf. MVR, § 63, p.454-455, I 420-421. 238 Cf. MVR, § 63, p.455, I 421. 239 HN, Metafísica dos Costumes, Cap.7, p.119, p.302. No original alemão: „Ueberhaupt beherrschen das Menschenleben und den Weltlauf Zufall und Irrthum: wie sollte da die Gerechtigkeit Raum finden?“. 240 Cf. HN, Metafísica dos Costumes, Cap. 7, p.119, p.302. 241 Cf. HN, Metafísica dos Costumes, Cap. 7, p.120, p.302.

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Quanto ao papel sistemático da justiça eterna, Schopenhauer aponta duas

funções relevantes: (i) a compreensão da relevância ética das ações, e,

consequentemente, (ii) a compreensão da natureza da virtude e do vício.

A partir do exposto, espera-se que os devidos contornos tenham sido dados

à exposição ao serem explicitados: (i) o que é e qual o significado da justiça eterna, (ii)

o ponto de vista que deve ser adotado para o seu correto entendimento, a saber, o ponto

de vista transcendental – postura metodológica que evita uma série de equívocos

engendrados pela apreciação fenomênica do conceito –, (iii) a apreensão do significado

e as duas formas de transmissão da justiça eterna, e (iv) a resposta a uma objeção

artificial formulada por Schopenhauer, oriunda da adoção do ponto de vista fenomênico.

Assim, espera-se que tenha ficado claro que a apreensão do significado da

justiça eterna consiste em perceber que, do ponto de vista transcendental, i.e., do ponto

de vista metafísico, somos a mesma essência. E, como consequência direta da apreensão

desse significado, que a justiça eterna não é uma equidade ou justiça no sentido de ser

um ato retribuidor / retaliativo no tempo, espaço e em uma cadeia causal. Ela é

retribuidora / retaliativa na medida em que é a expressão de uma tautologia e de um

paradoxo que enunciam que o mundo só pode ser o que ele não deveria ser; que o

mundo só pode ser o que ele tem merecido ser, que o mundo só pode ser o que ele é:

vontade, i.e., contradição, dor, carência, miséria, sofrimento, discórdia, falta,

sofrimento.

2.3. Situando as Doutrinas do Direito e do Estado: o Utilitarismo,

Kant e o Jovem Schopenhauer

2.3.1. Seria Moral o Fundamento das Doutrinas Schopenhauerianas do

Direito e do Estado?

A partir do exposto, é possível perquirir criticamente o fundamento das

doutrinas schopenhauerianas do direito e do Estado, investigando qual o estatuto

ontológico de tal fundamentação. O processo de fundamentação dessas duas doutrinas

parece estar situado na identificação e definição de uma certa moralidade – a qual

constitui a base para todo justo direito positivo, para o direito civil – e na descrição da

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passagem do âmbito dessa moralidade para o âmbito da legalidade. Contudo, pode-se

observar que a reta-razão consiste em um cálculo de utilidade com vistas à adequação

dos meios ao melhor fim almejado possível, e que por um cálculo de utilidade constitui-

se o Estado.

Dessa forma, surge a seguinte questão: as doutrinas do direito e do Estado

possuem um fundamento moral ou utilitário (e utilitário entendido, aqui, como a

identificação do bom para com o útil)? Em primeiro lugar, para que seja possível avaliar

a questão com maior clareza e de modo mais acertado, deve-se separá-la em três

âmbitos: o que se refere ao (i) direito natural ou doutrina pura do direito, o que se refere

à (ii) instituição do Estado, e o que se refere ao (iii) direito positivo.

Como visto, a pura doutrina do direito, ou direito natural, é uma doutrina

moral. A exposição e o desenvolvimento da argumentação nesse ponto são claros e não

deixam qualquer sombra de dúvida sobre a natureza de tal tipo de direito. O problema

maior repousa sobre o estatuto constitutivo e originário do Estado, que posteriormente

institui e regulamenta o direito positivo. O direito positivo é uma ferramenta do Estado

que possui como tarefa auxiliar na determinação da estrutura básica da convivência.

Segundo Schopenhauer, o direito positivo deve ter o direito natural como parâmetro

valorativo para poder ser considerado justo. Assim, como visto, o Estado, a forma

moderna de direito à coerção pública, surge por um cálculo de utilidade que chega à

conclusão de que a existência da coação é mais vantajosa que sua não existência, i.e.,

que o estado de natureza apenas pode ser superado pelo reconhecimento de um

ordenamento jurídico que consiga se impor, por meio do direito positivo – i.e., por meio

do monopólio e utilização da violência –, sobre todos os indivíduos particulares,

assegurando que os pactos sejam cumpridos, ou seja, garantindo que os contratos

estabelecidos não sejam quebrados.

Schopenhauer, como já exposto, filia-se à corrente teórica contratualista no

que se refere à origem do Estado. Mas, a partir do exposto acerca da reta-razão, poder-

se-ia considerar esse contratualismo utilitário? Aqui a questão assume outras

dificuldades, como: (i) é possível associar contratualismo e utilitarismo, ou eles

possuem diferenciações conceituais incompatíveis?; (ii) de que forma é possível

entender utilitarismo sem cair em uma generalização manualesca?; (iii) não seria algo

artificial e estéril o empreendimento de aproximar a filosofia schopenhaueriana e o

utilitarismo?

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A questão só é lícita de ser feita por conta da passagem pontual em que

Schopenhauer escreve que o Estado surge por um cálculo de utilidade da razão.242 A

partir desta passagem pode-se inclusive cogitar que, se o Estado surge por um cálculo

de utilidade, Schopenhauer seria então um autor utilitarista. O termo utilitarismo pode

remeter, em sentido amplo – entendido como a identificação do bom para com o útil –, a

Epicuro (341-271 a.C.), e, em sentido estrito, aos filósofos ingleses – notadamente

Jeremy Bentham (1748-1832) e Stuart Mill (1806-1873).

Seria possível fazer tal aproximação em seu sentido amplo, entendendo o

utilitarismo a partir da identificação do bom para com o útil? A primeira associação

geralmente feita nesse caso refere-se à felicidade como finalidade da ação. Contudo, a

argumentação de Schopenhauer não permite que se identifique a origem do Estado e o

cálculo de utilidade efetuado pela razão com a busca pela felicidade.243 Como sabido,

para Schopenhauer, a felicidade é um fenômeno meramente negativo, a ausência da dor.

O Estado não tem como finalidade promover a maior felicidade possível aos seus

cidadãos, mesmo porque, como exposto, ele possui apenas três finalidades relativas à

proteção que estão de acordo com a finalidade da ação da maior parte dos indivíduos, a

saber, a autoconservação.

Para Schopenhauer, o conceito de bom (Gut) é essencialmente relativo e

indica a “adequação de um objeto com algum esforço determinado da vontade”

(Angemessenheit eines Objekts zu irgendeiner bestimmten Bestrebung des Willens).244

Assim, de acordo com o autor, bom é tudo aquilo que é favorável à vontade em alguma

de suas exteriorizações e satisfaz seus fins, por mais diferentes que essas coisas possam

ser noutros aspectos.245 Em suma, bom é tudo aquilo que é exatamente como o

indivíduo quer que seja.

O útil (nützlich), segundo Schopenhauer, seria uma subespécie do conceito

de bom, uma satisfação apenas mediata da vontade em relação ao futuro.246 Bom, sendo

dessa forma um conceito relativo, por ser a expressão positiva de uma referência a uma

vontade cobiçosa, parece relacionar-se, nesse caso (no caso da origem do Estado), com

242 Cf. MVR, §62, p.439, I 404-405. 243 Esse fato apenas corrobora o afastamento da ética schopenhaueriana do eudaimonismo clássico. 244 Cf. MVR, §65, p.459, I 426. 245 Cf. MVR, §65, p.459, I 426. 246 Cf. MVR, §65, p.460, I 426.

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o egoísmo coletivo, constituindo-se na correlação entre utilidade particular (egoísmo

individual) e utilidade pública (egoísmo coletivo esclarecido).247

Contudo, o contratualismo e o utilitarismo diferem-se pelo fato de o

primeiro estar baseado fundamentalmente no bem-estar (autoconservação) do indivíduo

e o segundo no bem geral da comunidade. Como exposto, o contrato social

schopenhaueriano é celebrado apenas como forma do indivíduo melhorar sua própria

situação, não com vistas à instauração do bem geral comum. Trata-se de um esforço

autointeressado de conservação, que nada mais é que o egoísmo esclarecido visando um

determinado bem – não sofrer injustiça. O bem geral comum, se ocorrer, é um mero

acidente na busca pela satisfação pessoal. Dessa forma, não é possível afirmar que na

formulação schopenhaueriana exista algum tipo de utilitarismo no que se refere à

instituição do Estado por meio do contrato, mesmo que seja em um sentido muito fraco

e amplo.

A última perspectiva a ser considerada, a saber, a perspectiva acerca do

direito positivo, depende diretamente do tipo de legislação que será instituída pelo

Estado: um direito positivo pautado pela consonância com o direito natural-moral, em

teoria, deverá ser justo e evitará/punirá ações injustas no âmbito da legalidade. Por outro

lado, uma legislação que ignore os parâmetros valorativos morais do direito natural será

considerada uma injustiça positiva (positives Unrecht),248 mas ainda assim terá como

escopo garantir um ordenamento jurídico que exerça a coação pública e resguarde uma

certa estrutura política-jurídica-governamental instituída.

Dessa forma, pode-se, a partir do exposto, considerar moral o fundamento e

a fundamentação da doutrina pura do direito; também se pode considerar que a

metodologia de fundamentação e justificação da estrutura jurídica e política que

organiza a vida em sociedade por meio do monopólio da violência e da coerção, o

contratualismo, é uma metodologia pautada no princípio de autoconservação, i.e., no

egoísmo, e que, assim, uma concepção ampla do conceito de utilitarismo não poderia

ser empregada nesse contexto. Por fim, em referência ao último âmbito perquirido, o

direito positivo pode ser considerado justo se possuir como parâmetro valorativo o

ponto de vista moral provido pelo direito natural. 247 Deve-se frisar, contudo, que não se trata de um bom absoluto (absolutes Gut), uma vez que Schopenhauer considera tal termo uma contradição. Isso porque tanto um bem supremo quanto um bom absoluto pressupõem satisfações finais da vontade, o que é impossível, dado que a vontade é um incessante querer nunca satisfeito. 248 Cf. MVR, §62, p.443, I 409.

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2.3.2. As Objeções Feitas por Arthur Schopenhauer à Doutrina Kantiana

do Direito

Apesar de se considerar um herdeiro da filosofia kantiana e denominar-se,

com orgulho, kantiano, Schopenhauer nega a filosofia prática desse filósofo com

veemência, em especial a doutrina do direito, formulada na obra Die Metaphysik der

Sitten (A Metafísica dos Costumes). Para ele, essa obra é fruto da senilidade de Kant,249

e, por julgá-la um conjunto de erros, fraca e sem sentido, recusa-se a polemizar com ela

de modo aprofundado. O filósofo da vontade atém-se aos pontos que julga fundamentais

no escrito kantiano, formulando sua doutrina do direito em diálogo com esses.

As objeções são feitas em dois momentos dos escritos schopenhauerianos:

(i) na formulação de sua própria doutrina do direito (Rechtslehre), no §62 de MVR; e (ii)

em uma pequena seção dedicada, no apêndice de MVR intitulado Kritik der Kantischen

Philosophie (Crítica da Filosofia Kantiana),250 à análise da Rechtslehre teorizada por

Kant. É no apêndice de sua principal obra que Schopenhauer faz suas críticas mais

duras, chegando ao ponto de afirmar que o texto da doutrina kantiana do direito é tão

ruim e cheio de erros que mais parece uma paródia satírica do estilo kantiano.251

A partir da leitura dos textos schopenhauerianos mencionados, pode-se

destacar a dedicação do filósofo da vontade em refutar Kant em pelo menos cinco

aspectos, a saber, (i) a separação rigorosa entre direito e ética, (ii) a determinação

(Bestimmung) do conceito de direito, (iii) o direito de propriedade (o que funda e

legitima esse direito, e se ele existiria exteriormente ao Estado), (iv) o Estado orientado

a um fim moralizante, e, por fim, (v) a perspectiva acerca da punição.

Os dois primeiros aspectos são tratados de forma breve e pontual por

Schopenhauer, apesar de considerá-los como os dois principais e mais básicos erros de

249 É conhecida esta opinião de Schopenhauer: “Quanto a Kant, só a sua debilidade senil pode explicar a sua doutrina do direito, este entrançamento estranho de erros, uns seguindo aos outros [...]”. MVR, §62, p.431, I 396. No original: „Nur aus Kants Altersschwäche ist mir seine ganze Rechtslehre, als eine sonderbare Verflechtung einander herbeiziehender Irrthümer […].“ 250 Cf. MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.655-657, I 626-628. 251 Cf. MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.655, I 626.

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Kant em sua teoria do direito.252 Segundo o filósofo da vontade, a tentativa de separação

rigorosa entre a doutrina do direito e a ética é falha, porque torna o conceito de direito

oscilante, sem um ponto fixo. Isso significa que, segundo Schopenhauer, Kant não atrela

a doutrina do direito a uma legislação positiva, nem a uma coerção arbitrária, deixando

o conceito de direito subsistir por si mesmo, de maneira pura e a priori. Esse fato, de

acordo com Schopenhauer, produz duas consequências: ou toda arbitrariedade que pode

ser imposta é direito, ou adentra-se o domínio da ética. Ele acredita poder evitar tal erro,

admitindo que o conceito de direito pertence à ética:

[...] quando Kant diz: “Dever jurídico (Rechtspflicht) é aquele que PODE (Kann) ser objeto de coerção”, este PODE (Kann) deve ser entendido ou fisicamente, e assim, todo direito é positivo e arbitrário, e, portanto, toda arbitrariedade que se pode impor é direito; ou este PODE (Kann) deve ser entendido eticamente e estamos aqui de novo no domínio da ética. Em Kant, conseguintemente, o conceito de direito oscila entre o céu e a terra, sem chão algum no qual possa pisar. No meu caso, ele pertence à ética.253

Deve-se atentar para o fato da objeção schopenhaueriana ser realizada a

partir dos pressupostos de seu próprio sistema filosófico: ela não é uma objeção

imanente à filosofia kantiana. A ética e o direito fazem parte da filosofia prática, e

assentam-se, em Kant, na ideia de liberdade e no imperativo categórico,254 ou seja, em

última instância, na razão prática:

252 Em última instância estas objeções se referem à definição do conceito de direito de Kant, que é formulado na Doutrina do Direito deste autor nos seguintes termos: “O Direito é, pois, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal da liberdade” („Das Recht ist also der Inbegriff der Bedingungen, unter denen die Willkür des einen mit der Willkür des andern nach einem allgemeinen Gesetze der Freiheit zusammen vereinigt werden kann“, MdS, Introdução à doutrina do Direito, §B, p.43, VI 230), e no Princípio universal do Direito, que enuncia: “Uma ação é conforme ao Direito quando permite ou quando a sua máxima permite fazer coexistir a liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade de todos segundo uma lei universal” („»Eine jede Handlung ist recht, die oder nach deren Maxime die Freiheit der Willkür eines jeden mit jedermanns Freiheit nach einem allgemeinen Gesetze zusammen bestehen kann«“, MdS, Introdução à doutrina do Direito, §C, p.43, VI 231). 253 MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p. 656, I 626. No original: „Folglich wenn er [Kant] sagt: »Rechtspflicht ist die, welche erzwungen werden kann«; so ist dieses Kann entweder physisch zu verstehen: dann ist alles Recht positiv und willkürlich, und wieder auch alle Willkür, die sich durchsetzen läßt, ist Recht: oder das Kann ist ethisch zu verstehen, und wir sind wieder auf dem Gebiet der Ethik. Bei Kant schwebt folglich der Begriff des Rechts zwischen Himmel und Erde, und hat keinen Boden, auf dem er fußen kann: bei mir gehört er in die Ethik.“ 254 “Age segundo uma máxima que possa valer simultaneamente como lei universal!” („Handle nach einer Maxime, welche zugleich als ein allgemeines Gesetz gelten kann!“, MdS, p.35, VII 225). Contudo, as formulações mais conhecidas do imperativo categórico encontram-se na: (i) Crítica da Razão Prática (“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” – „Handle so, daß die Maxime deines Willens jederzeit zugleich als Princip einer allgemeinen Gesetzgebung gelten könne“, KANT, I. Crítica da razão prática. Edição Bilíngue.

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De fato, ambas [ética e direito] pertencem à filosofia prática, ao mundo do dever e da liberdade, e a raiz de ambas é a segunda fórmula do imperativo categórico (ou seja, o princípio da dignidade humana).255

Tem-se, aqui, um choque incontornável de pressupostos entre um filósofo

descrente da supremacia da razão, e que, por isso, fundamenta e expõe o seu sistema

filosófico a partir de uma metafísica imanente do irracional,256 que afirma tratar a ética

de modo descritivo,257 que alega a incoerência das éticas prescritivas (Schopenhauer), e

Tradução, introdução e notas de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.103, B54; e (ii) Fundamentação da Metafísica dos Costumes (“Age apenas segundo uma tal máxima que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal” –„Handle nur nach derjenigen Maxime, durch die du zugleich wollen kannst, dass sie ein allgemeines Gesetz werde.“, GMS, p.59, IV 421. Sobre as figuras do imperativo categórico Cf. PATON, H. J. The categorical imperative. A Study in Kant’s Moral Philosophy. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1971. 255 CATTANEO, M. Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre. In: Jahrbuch der Schopenhauer-Gesellschaft 1988. Band 69. Frankfurt am Main: Verlag Waldemar Kramer, 1988, p.400. No original: „[…] in der Tat gehören beide zur praktischen Philosophie, zur Welt des Sollens und der Freiheit, ist die Wurzel beider die zweite Formel des kategorischen Imperativs (d.h. das Prinzip der menschlichen Würde).“. Doravante abreviado por Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre, seguido de indicação de página. 256 Pode-se considerar Schopenhauer metafísico porque seu sistema filosófico possui determinações necessárias e princípios universais, oferecendo desta maneira o fundamento teórico para a realidade sensível. Mas não se trata de uma metafísica dita dogmática, como a combatida por Kant. Schopenhauer está sob a atmosfera do legado kantiano (ele mesmo, como mencionado, considera-se o verdadeiro herdeiro da filosofia kantiana), das condições prévias de possibilidade da experiência presentes a priori na consciência (espaço, tempo e causalidade). Ele utiliza-se, assim, de uma metodologia que alguns comentadores denominam metafísica imanente. Essa se configura pela argumentação a partir da oposição a uma explicação transcendente, oferecendo um relato fundamental da realidade, mas utilizando-se dos dados acessíveis ao conhecimento como o único guia possível. Como o próprio Schopenhauer escreve: “[...] a solução do enigma do mundo tem de provir da compreensão do mundo mesmo; que, portanto, a tarefa da metafísica não é sobrevoar a experiência na qual o mundo existe, mas compreendê-lo a partir de seu fundamento, na medida em que a experiência, externa e interna, é certamente a fonte principal de todo conhecimento;” („[...]die Lösung des Räthsels der Welt aus dem Verständniß der Welt selbst hervorgehen muß; daß also die Aufgabe der Metaphysik nicht ist, die Erfahrung, in der die Welt dasteht, zu überfliegen, sondern sie von Grund aus zu verstehen, indem Erfahrung, äußere und innere, allerdings die Hauptquelle aller Erkenntniß ist; “, MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.538, I 507). Sobre o conceito de metafísica imanente Cf. CACCIOLA, M. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo, p.134-138; Cf. BARBOZA, J. Schopenhauer – A decifração do enigma do mundo. São Paulo: Moderna, 1997, (coleção Logos), p.46-56; e BARBOZA, J. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, (Coleção Filosofia Passo-a-passo.), p.23-24, e Cf. BRIANESE, G. Dire di no al mondo: la metafisica immanente di Schopenhauer. In: SCHOPENHAUER, A. Supplementi a ‘Il mondo come volontà e rappresentazione’. A cura di Giorgio Brianese. Torino: Einaudi, 2013. 257 “O ponto de vista dado e o modo de abordagem indicado já sugerem que neste livro de ética [o quarto livro de MVR] não se devem esperar prescrições nem doutrinas do dever, muito menos o estabelecimento de um princípio moral absoluto parecido a uma receita universal para a produção de todas as virtudes. [...] Nossa tarefa filosófica, portanto, só pode ir até a interpretação e a explanação do agir humano e suas diversas e até mesmo opostas máximas, das quais ele é a expressão viva, de acordo com a sua essência mais íntima e conteúdo.” No original alemão: „Der gegebene Gesichtspunkt und die angekündigte

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um filósofo que enxerga na razão o único sustentáculo possível para a fundamentação e

explanação de suas teses, e que propõe uma moral prescritiva que pode ser caracterizada

como procedimental (Kant).258

Schopenhauer, ao admitir apenas dois pontos de vista para a análise do agir

(Handeln) dos indivíduos (o ponto de vista do significado ético, e o ponto de vista de

sua referência física), extrai duas consequências do que nos parece ser o ponto fulcral

dessa primeira objeção:259 (i) todo direito é positivo e arbitrário, e, portanto, toda

arbitrariedade que se pode impor é direito, e (ii) o direito acaba repousando na ética, isto

é, a separação entre direito e ética não é concretizada.260

A própria divisão da Metafísica dos Costumes – em Doutrina do Direito

(Rechtslehre) e Doutrina da Virtude (Tugendlehre) – reflete a separação kantiana entre

direito e ética. A primeira parte da obra tem por objetivo fundamentar racionalmente o

direito, que regula a relação entre os indivíduos considerando, apenas, o móbil externo;

e isso significa que Kant não considera as motivações internas, mas unicamente a ação

realizada. A conformidade das ações realizadas, sem a consideração dos móbiles

internos com a lei configura a legalidade (Legalität). Por outro lado, quando o móbile

interno está em consonância com a liberdade de todos segundo uma lei universal, tem-se

Behandlungsweise geben es schon an die Hand, daß man in diesem ethischen Buche keine Vorschriften, keine Pflichtenlehre zu erwarten hat; noch weniger soll ein allgemeines Moral-Princip, gleichsam ein Universal-Recept zur Hervorbringung aller Tugenden angegeben werden. […] Unser philosophisches Bestreben kann bloß dahin gehen, das Handeln des Menschen, die so verschiedenen, ja entgegengesetzten Maximen, deren lebendiger Ausdruck es ist, zu deuten und zu erklären, ihrem innersten Wesen und Gehalt […]“, MVR, §53, p. 354-355, I 320-321. 258 “A máxima será moral quando for universalizável. O imperativo é o procedimento para testar essas regras subjetivas, isto é, para testar sua capacidade de universalização. Daí vem a caracterização da moral kantiana como procedimental. Nesse sentido, pode-se dizer que a moral é formal e não material. Pois Kant não estabelece uma lista de mandamentos (que seria material), mas propõe um procedimento (formal) para testar qualquer princípio moral.” TERRA, R. Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, (Coleção Filosofia Passo-a-passo), p.12-13. Doravante abreviado como Kant & o Direito, seguido de indicação de página. Contudo, é importante frisar que, mesmo a lei moral não dependendo do objeto, do conteúdo, e da matéria a qual se refere, ela depende exclusivamente da sua forma de lei, uma máxima do dever ser. O imperativo categórico serve como uma espécie de regra para testar e avaliar a universalidade das máximas da ação com vistas ao cumprimento do dever. A ação moral, desse modo, adentra o âmbito do normativo, cuja forma, segundo a interpretação de Schopenhauer, é a prescrição. 259 A separação entre direito e ética não é efetivada, uma vez que o conceito de direito, tal como formulado por Kant, oscila por subsistir, segundo Schopenhauer, de maneira pura e a priori. 260 Neste ponto, o comentador Mario Cattaneo se pergunta: “Por que dever-se-ia conceber o direito apenas em duas possibilidades opostas (ou puramente ética ou inteiramente arbitrária)?”. No original: „Warum sollte es nur zwei gegensätzliche Möglichkeiten, entweder ein rein ethisches oder ein vollständ willkürliches Recht geben?“, Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre, p.400.

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a moralidade (Moralität) ou eticidade (Sittlichkeit), que é o escopo de investigação da

segunda parte da obra.261

Contudo, apesar do direito ter como escopo o móbil externo das ações, isso

não significa que a formulação kantiana do direito é baseada na observação empírica

dos fatos. A fundamentação kantiana é racional: “o direito natural é aquele que não é

estatutário, é o direito cognoscível a priori pela razão de todos os homens.”262

Quanto à determinação do conceito de direito, segundo Schopenhauer, ela é

completamente negativa, logo, insuficiente, por não produzir conceito positivo algum.

Sua refutação, nestes aspectos, restringe-se, apenas, a esses argumentos pontuais.263

“Direito é aquilo compatível com a coexistência das liberdades dos indivíduos um ao lado do outro segundo uma lei universal”. – Liberdade (aqui empírica, isto é, física, não a liberdade moral da vontade) significa o não-ser-impedido (Nichtgehindertseyn), e é, portanto, mera negação; por sua vez, coexistência tem exatamente a mesma significação. Com isso permanecemos em simples negações e não obtemos conceito positivo algum.264

É difícil entender o motivo dessa objeção de Schopenhauer. A afirmação do

filósofo de que a determinação do conceito kantiano de direito é meramente negativa

parece configurar o esquecimento de que a própria definição de direito/justiça (Recht)

fornecida por ele também o seja.265 Schopenhauer parece notar a contradição em que se

encontra e, ao admitir o conceito de direito como negativo, complementa sua

argumentação ao afirmar que a explanação de tal conceito não pode ser totalmente

negativa.266

261 “[...] O primeiro e verdadeiro critério de distinção entre moral e direito é o motivo (móbil) por que a legislação é obedecida. Temos, assim, o motivo absoluto do dever pelo dever no caso da legislação moral – que não pode ser senão interna – e um motivo empírico no caso da legislação jurídica (que é, portanto, externa).”. LEITE, F. O conceito de direito em Kant: (na metafísica dos costumes). São Paulo: Icone, 1996, p.51. 262 TERRA, R. Kant & o Direito, p.27. 263 Cf. MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.655-657, I 626-627. 264 MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.656, I 627. No original: „»Recht ist das, was sich mit dem Zusammenbestehen der Freiheiten der Individuen neben einander nach einem allgemeinen Gesetze verträgt.« — Freiheit (hier die empirische, d.i. physische, nicht die moralische des Willens) bedeutet das Nichtgehindertseyn, ist also eine bloße Negation: ganz dieselbe Bedeutung hat das Zusammenbestehen wieder: wir bleiben also bei lauter Negationen und erhalten keinen positiven Begriff.“ 265 Como vimos, o conceito de justiça/direito (Recht) é a mera negação da injustiça (Unrecht). Cf. a seção 2.2.6 Dedução e Explanação da Justiça e do Justo, p.70. 266 “Embora o conceito de direito seja propriamente um conceito negativo, em oposição ao de injustiça, que é o ponto de partida positivo, a explanação de tais conceitos não pode ser totalmente negativa.” MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.656, I 627. Nota do Autor. No original: „Wenn gleich der Begriff Recht

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A resposta a essa objeção pode ser dada a partir de uma indagação muito

simples: “Qual a diferença entre o conceito de direito ser definido como ‘negação da

injustiça’ e ‘não-ser-impedido’?.”267 Ambos são determinações a partir da via negativa,

e Schopenhauer não explicita qual seria a via positiva para dissolver a contradição em

que ele se encontra; ele simplesmente passa à consideração do próximo ponto, sem

maiores aprofundamentos.

Pode-se inferir que estes dois aspectos sejam analisados pelo filósofo da

vontade de modo tão superficial devido ao fato de, segundo ele, conterem tamanho erro

que não merecem uma apreciação mais profunda. Contudo, essa simplicidade e

economia na formulação das objeções ao que o próprio objetor considera “erros

fundamentais e primários” coloca o leitor na difícil situação de ter de prenunciar os

pressupostos assumidos, comprometendo o entendimento do texto e prejudicando a

clareza expositiva, a qual sempre foi motivo de orgulho para Schopenhauer. Isso não

ocorre com os outros três aspectos enumerados: esses são analisados e refutados em

vários momentos da exposição do sistema filosófico do autor.

A terceira objeção a ser analisada refere-se ao conceito de propriedade

(Eigentum), e é feita em dois aspectos: (i) o aspecto originário, i.e., como é fundado o

direito de propriedade; e (ii) o aspecto da condição necessária para sua efetivação, qual

seja, da possibilidade de existência do direito de propriedade exteriormente ao Estado.

Segundo Schopenhauer, Kant fundamenta o direito de propriedade pelo

critério de primeira ocupação. A objeção do filósofo da vontade centra-se nesse ponto,

quando ele defende que nenhum direito legítimo de ocupação (keine rechtliche

Besitzergreifung) existe, mas apenas a legítima apropriação (Aneignung) ou a aquisição

(Besitzerwerbung) de uma coisa pelo emprego originário das próprias forças sobre ela.

A objeção de Schopenhauer ainda questiona o fato da declaração do querer de um

indivíduo excluir outros do fruir de um objeto, atribuindo ao sujeito declarante o direito

de propriedade sobre aquela coisa: “Mas como deveria a mera declaração (Erklärung)

eigentlich ein negativer ist, im Gegensatz des Unrechts, welches der positive Ausgangspunkt ist; so darf deshalb doch die Erklärung dieser Begriffe nicht durch und durch negativ seyn.“ Sobre essa passagem do texto schopenhaueriano o comentador Mario Cattaneo escreve: “É como se Schopenhauer, depois de ter tomado consciência desta contradição, imediatamente tentasse evitar um mal-entendido. Mas ele não é bem-sucedido inteiramente.” No original: „Es sieht so aus, als ob Schopenhauer, nachdem er dieses Widerspruchs gewahr wurde, sofort ein Missverständnis zu vermeiden versuchte. aber ist ihm nicht ganz gelungen.“ Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre, p.404. 267 Schopenhauers Kritik der Kantischen Rechtslehre, p.404. No original: „Welchen Unterschied gibt es denn nun zwischen der ‚Negation des Unrechts‘ und dem ‚Nichtgehindertseyn‘?“

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da minha vontade excluir aos outros do uso de uma coisa e até mesmo atribuir um

DIREITO a ela?.”268

Para Schopenhauer, o chamado direito de primeira ocupação é, em termos

morais – ou seja, para ele em termos do direito natural –, por inteiro destituído de

fundamento. Tanto a primeira ocupação (erste Besitzergreifung), quanto a mera

declaração (Erklärung) do sujeito, não podem ser fundamentos do direito de

propriedade, não podem justificar a aquisição originária, como Schopenhauer afirma ser

feita a fundamentação de Kant; Schopenhauer não assenta o direito de propriedade na

detenção (Detention), mas na formação (Formation), embora a palavra ‘formação’ não

seja para ele a mais adequada, uma vez que “o despender esforços sobre uma coisa nem

sempre implica que se lhe dê uma forma.”269 Apenas pelo trabalho elaborador pode-se

justificar o autêntico direito de propriedade, que é estabelecido por Schopenhauer como

um direito moral:

O mero usufruto de uma coisa sem nenhum trabalho elaborador ou nenhuma defesa contra sua destruição dá tão pouco direito a ela quanto a declaração da própria vontade em possuí-la exclusivamente. Por conseguinte, se uma única família tivesse caçado por um século numa extensão de terra sem contudo ter aí feito uma benfeitoria, não pode de modo algum, sem injustiça moral, impedir que um estrangeiro ali cace, se este quiser. Portanto, o chamado direito de primeira ocupação é, em termos morais, inteiro destituído de fundamento270.

A argumentação kantiana para a explanação da aquisição originária por

alguém de um objeto exterior, i.e., a fundamentação do conceito de direito de

propriedade, possui um longo encadeamento. Kant precisa, para explanar e fundamentar

seu conceito de aquisição originária e o direito de propriedade, analisar a possibilidade e

o modo pelo qual algo pode ser adquirido. Para os nossos objetivos é necessário

entender apenas as conclusões do argumento kantiano.

268 MVR, §62, p.431, I 396. No original: „Denn wie sollte doch die bloße Erklärung meines Willens, Andere vom Gebrauch einer Sache auszuschließen, sofort auch selbst ein Recht hiezu geben?“ 269 MVR, §62, p.431, I 397, Nota do autor. No original: „Nur ist der Name Formation nicht recht passend, da die Verwendung irgend einer Mühe auf eine Sache nicht immer eine Formgebung zu seyn braucht.“ 270 MVR, §62, p.431-432, I 397. No original: „— Hingegen bloßer Genuß einer Sache, ohne alle Bearbeitung oder Sicherstellung derselben gegen Zerstörung, giebt ebenso wenig ein Recht darauf, wie die Erklärung seines Willens zum Alleinbesitz. Daher, wenn eine Familie auch ein Jahrhundert auf einem Revier allein gejagt hat, ohne jedoch irgend etwas zu dessen Verbesserung gethan zu haben; so kann sie einem fremden Ankömmling, der jetzt eben dort jagen will, es ohne moralisches Unrecht gar nicht wehren. Das sogenannte Präokkupations-Recht also, demzufolge man für den bloßen gehabten Genuß einer Sache, noch obendrein Belohnung, nämlich ausschließliches Recht auf den fernern Genuß fordert, ist moralisch ganz grundlos.“

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Kant afirma que existem três momentos da aquisição originária, a saber, (i)

a apreensão de um objeto que não pertence a ninguém, (ii) a declaração da posse deste

objeto e do ato do meu arbítrio de afastar qualquer outro dele, e (iii) a apropriação como

ato de uma vontade universal e exteriormente legisladora (na ideia), com que se obriga

os outros à concordância com o meu arbítrio.271

Dessa forma, o direito de propriedade é fundado no conceito de detenção,

rejeitado por Schopenhauer. Para Kant “adquiro uma coisa quando faço (efficio) que

algo se torne meu”,272 e isso se dá pela primeira ocupação, pela declaração, e pela

consonância com o arbítrio dos outros. Kant ainda recusa o que para Schopenhauer é a

única possibilidade de fundamentação do direito de propriedade, o trabalho elaborador:

[...] é necessária a laboração do terreno (edificação, cultivo, drenagem, etc.) para a aquisição desse mesmo terreno? Não! Pois que uma vez que estas formas (de especificação) são somente acidentes, não constituem de todo em todo o objeto de posse imediata e só podem pertencer à posse de um sujeito na medida em que a substância tenha sido reconhecida previamente como sua.273

Por fim, Kant desdenha daquele que plasmou um objeto exterior, que não

lhe pertence, com seu trabalho, ao afirmar que todo o esforço realizado foi em vão face

ao primeiro possuidor.274

Na filosofia kantiana a posse não é das coisas, mas do uso delas: possuir

uma coisa significa estar legitimado para utilizá-la. Desta forma, como visto, a

ocupação é o fundamento da posse legítima, seguida por outros dois momentos da

aquisição: a declaração do sujeito que toma posse do objeto, e a apropriação como ato

da vontade (empregada aqui no sentido kantiano) universalmente legisladora.275 Para

Kant, a posse de algo exterior a si só é possível em um estado jurídico, sob um poder

271 Cf. MdS, p.89, VII 258-259. 272 MdS, p.88, VII 258. No original: „Ich erwerbe etwas, wenn ich mache (efficio), daß etwas mein werde.“ 273 MdS, p.99-100, VII 265. No original: „[…] ist die Bearbeitung des Bodens (Bebauung, Beackerung, Entwässerung u.dergl.) zur Erwerbung desselben nothwendig? Nein! denn da diese Formen (der Specificirung) nur Accidenzen sind, so machen sie kein Object eines unmittelbaren Besitzes aus und können zu dem des Subjects nur gehören, so fern die Substanz vorher als das Seine desselben anerkannt ist.“ 274 “[...] aquele que empenhou a sua diligência num terreno que não era já de antemão seu perdeu o seu esforço e labor face ao primeiro possuidor”. MdS, p.106, VII 269. No original: „[…] und daß der, welcher an einen Boden, der nicht schon vorher der seine war, Fleiß verwendet, seine Mühe und Arbeit gegen den Ersteren verloren hat[…].“ 275 Cf. o estudo preliminar de Adela Cortina em KANT, I. La metafisica de las costumbres. Madrid: Tecnos, 1994, p. XLVII.

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legislativo público, i.e., em um estado civil.276 O estado de natureza é um estado de

insegurança, no qual não existem garantias, nem poder coercitivo que assegure a posse

exterior. Essa existe, mas é provisória, por existir apenas enquanto existe a posse

física.277 Somente no estado civil a posse exterior se torna peremptória. Schopenhauer

recusa a tese kantiana de que não existe direito de propriedade sem a existência do

Estado.278 Pode-se resumir nossa argumentação na seguinte passagem do texto

kantiano:

Assim, só uma vontade que obriga cada um face ao outro, uma vontade coletivo-universal (comum) e poderosa, portanto, pode oferecer a cada um aquela segurança. Mas o estado submetido a uma legislação externa universal (quer dizer, pública), acompanhada de poder, é o estado civil. Deste modo, só no estado civil pode dar-se um meu e um teu exteriores.279

Schopenhauer argumenta que se tal condição fosse verdadeira, significaria

que todo direito é positivo, e, assim, o direito natural estaria, também, fundado neste

tipo de direito, quando o inverso deveria ser o caso, o direito positivo fundado no direito

natural. 280

Apresentada a objeção schopenhaueriana ao que se refere à propriedade

privada, pode-se, então, passar à quarta censura feita pelo filósofo da vontade a Kant.

Essa se refere à finalidade e fundação do Estado. O Estado, para Schopenhauer, tem sua

origem no egoísmo coletivo esclarecido e possui apenas três finalidades que se referem

a algum tipo de proteção. Dessa forma, a dedução da fundação do Estado a partir do

Imperativo Categórico (que torna o Estado detentor de um dever moral) engendra o erro

de que o Estado é uma instituição para o fomento da moralidade e se originou do

esforço em promovê-la.

276 Cf. MdS, p.69, VII 255. 277 Cf. MdS, p.87 VII 257. 278 É importante frisar a maneira como Schopenhauer entende a formulação kantiana. Kant afirma que apenas em um estado civil é possível a posse peremptória da propriedade. Schopenhauer entende essa asserção kantiana como ‘fora do Estado não existe propriedade, i.e., no estado de natureza não existe nenhum direito à propriedade’. 279 MdS, p.85, VII 256. No original: „Also ist nur ein jeden anderen verbindender, mithin collectiv allgemeiner (gemeinsamer) und machthabender Wille derjenige, welcher jedermann jene Sicherheit leisten kann. — Der Zustand aber unter einer allgemeinen äußeren (d.i. öffentlichen) mit Macht begleiteten Gesetzgebung ist der bürgerliche. Also kann es nur im bürgerlichen Zustande ein äußeres Mein und Dein geben.“ 280 “Isso significa propriamente: todo direito é positivo, e assim o direito natural está fundado no direito positivo, quando o inverso deveria ser o caso.” MVR, Crítica da Filosofia Kantiana, p.656, I 627. No original: „[…] welches eigentlich heißt, daß alles Recht positiv sei, und wodurch das Naturrecht auf das positive gestützt wird, statt daß der Fall umgekehrt seyn sollte;“

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O Estado não pode ser moralizante porque a disposição íntima das pessoas,

o caráter inteligível (intelligibel Charakter), não pode ser mudada por um fator externo

– neste caso o Estado – porque ela é vontade: livre, eterna, cega, um impulso irracional.

Schopenhauer considera ainda pior o teorema de que “o Estado é a condição da

liberdade em sentido moral e, com isso, da moralidade.”281

A visão de Schopenhauer de que o Estado, tal como pensado por Kant, é

fundado no imperativo categórico é uma visão recorrente entre os leitores e

comentadores da filosofia kantiana: “que a legitimação kantiana do Estado tenha uma

orientação jurídico-racional e moral parece praticamente algo óbvio a muitos interpretes

de sua filosofia política, de modo que eles dificilmente refletem sobre interpretações

alternativas.”282

O Estado, pela ótica de Kant, por ser fundado no imperativo categórico e na

ideia de liberdade, garante os direitos das liberdades individuais, protegendo as pessoas

umas das outras através de instituições jurídicas eficazes.283 Ainda mais, o Estado

estaria ligado a uma função moral essencial, que diz respeito ao progresso humano na

história; tese rejeitada por Schopenhauer em sua raiz.284

Por último, tem-se a objeção à formulação do conceito kantiano de punição.

Segundo Schopenhauer, Kant concebe a punição como retaliação pelo desejo de

retaliação, o que se configura como uma visão totalmente perversa.285 Os kantianos,

segundo Schopenhauer, diriam que a punição trata os indivíduos como um simples

meio, o que é um absurdo, já que, para eles mesmos, os indivíduos devem ser tratados

281 MVR, §62, p.441, I 408. No original: „Noch verkehrter ist das Theorem, der Staat sei die Bedingung der Freiheit im moralischen Sinne und dadurch der Moralität.“ 282 HORN, C. Qual é o Fundamento da Filosofia Política de Kant? In: Studia Kantiana – Revista da Sociedade Kant Brasileira, nº 8, maio de 2009, tradução de Luíz Marcos Sander, p.49. Doravante abreviada por Qual é o Fundamento da Filosofia Política de Kant?, seguido de indicação de página. 283 Qual é o Fundamento da Filosofia Política de Kant?, p.41. Horn denomina esta forma de interpretação da filosofia política kantiana por interpretação focada na implementação. 284 Para Schopenhauer a História (Geschichte) não consegue apreender a coisa-em-si, apenas o fenômeno, não sendo suficiente para o entendimento e explicação do mundo. A História é apenas aparência. “A história do gênero humano, a profusão dos eventos, a mudança das eras, as formas multifacetadas da vida humana em diferentes países e séculos: tudo isso é tão somente a forma casual do fenômeno da Idéia”. MVR, §35, p.251, I 215. No original: „die Geschichte des Menschengeschlechts, das Gedränge der Begebenheiten, der Wechsel der Zeiten, die vielgestalteten Formen des menschlichen Lebens in verschiedenen Ländern und Jahrhunderten, dieses Alles ist nur die zufällige Form der Erscheinung der Idee.“ Sobre o conceito de História Cf. MVR, §35, MVR II, Kapitel 38 – Ueber Geschichte, II p.499, e Historical Dictionary of Schopenhauer's Philosophy. 285 Cf. MVR, §62, p.445, I 411.

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como fim. O filósofo da vontade afirma que tal proposição não passa de verborragia,286

de uma proposição sem sentido. Ele afirma que o criminoso pode e deve ser utilizado

como meio para realização do fim último do Estado, a saber, a segurança pública. Para

ilustrar seu ponto de vista, ele utiliza o exemplo de um preso condenado à morte: tal

atitude servirá como contramotivo a uma possível ação criminosa, i.e., ela desmotivará a

realização de um ato injusto pelo medo da punição, neste caso, com a morte.287 O

indivíduo punido serve, assim, como meio para manutenção da ordem.288

Na Metafísica dos Costumes, este enunciado kantiano aparece como a

primeira fórmula da Divisão geral dos deveres jurídicos (Allgemeine Eintheilung der

Rechtspflichten) e, posteriormente, na obrigação derivada do direito da humanidade na

nossa própria pessoa (Verbindlichkeit aus dem Rechte der Menschheit in unserer

eigenen Person):

1. Sê um indivíduo honesto (honeste vive). A honestidade jurídica (honestas iuridica) consiste no seguinte: em afirmar o seu valor como indivíduo na relação com os outros – dever que se exprime pela proposição: “Não te convertas para os demais num simples meio, mas sê para eles, ao mesmo tempo, um fim”.289

Esse enunciado kantiano aparece em outras obras desse filósofo, de forma

que Schopenhauer pode estar se referindo, por exemplo, à formulação do Imperativo

Prático feita na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes,290 e em outras

passagens da mesma obra, como:

286 Cf. MVR, §62, p.446, I 412. 287 Cf. MVR, §62, p.446, I 412. Consultar também Cf. MVR II, Kapitel 47 – Zur Ethik, II 686-687. 288 Para corroborar seu ponto de vista, Schopenhauer cita a antiga fórmula inglesa de acusação (indictment): “If this be proved, you, the Said N.N., ought to be punished with pains of Law, to deter other from the like crimes, in all time coming”. (“Se isto é provado, então você, o chamado N.N., tem de sofrer a punição legal, para impedir outros crimes semelhantes em todo o tempo futuro”. Tradução da edição brasileira de MVR). Cf. MVR, §62, p.445-446, I 412. 289 MdS, p.53, VII 236. Grifo nosso, tradução ligeiramente alterada. No original: „Sei ein rechtlicher Mensch (honeste vive). Die rechtliche Ehrbarkeit (honestas iuridica) besteht darin: im Verhältniß zu Anderen seinen Werth als den eines Menschen zu behaupten, welche Pflicht durch den Satz ausgedrückt wird: »Mache dich anderen nicht zum bloßen Mittel, sondern sei für sie zugleich Zweck.«“ 290 Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (Handle so, daß du die Menschheit sowohl in deiner Person, als in der Person eines jeden andern jederzeit zugleich als Zweck, niemals bloß als Mittel brauchst). GMS, p.69, IV 429.

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Mas o ser humano não é uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo.291

Schopenhauer, desse modo, constrói sua teoria dos princípios do direito

como “uma espécie de peça de contraditório em relação à doutrina do Direito da

Metafísica dos Costumes kantiana”,292 assentando suas bases na refutação desses cinco

pontos apresentados e construindo-a a partir de pressupostos avessos aos kantianos.

2.3.3. As formulações das doutrinas do Estado e do Direito elaboradas pelo

jovem Schopenhauer: extensão, limites e mudanças em relação à

publicação de sua obra principal.

Diversamente dos escritos éditos do autor, que se caracterizam pela

exposição mais acabada de seu sistema filosófico, podemos encontrar em seus

manuscritos póstumos as anotações fragmentadas de um jovem inquieto e amargurado.

Essas anotações já continham em gérmen toda a essência do sistema filosófico da

vontade. Nesses escritos, principalmente em seus diários de anotações que datam dos

anos de 1804 a 1818, podemos verificar, como escreve Roberto Aramayo, a “lenta

gestação da obra schopenhaueriana”.293 Além do processo de composição do filósofo,

os manuscritos que chegaram até nós postumamente contém passagens preciosas, que

muitas vezes complementam as lacunas argumentativas e expositivas deixadas pelo

filósofo, tornando-se uma fonte extremamente rica para o melhor entendimento de sua

filosofia. A análise histórico-filológica do espólio de juventude do autor representa uma

complementação necessária à compreensão adequada da obra publicada, uma vez que

permite contemplar dois aspectos de sua produção intelectual, que são enunciados por

Safranski da seguinte forma:

291 GMS, p.70, IV 429. Tradução ligeiramente alterada. No original: „Der Mensch aber ist keine Sache, mithin nicht etwas, das bloß als Mittel gebraucht werden kann, sondern muß bei allen seinen Handlungen jederzeit als Zweck an sich selbst betrachtet werden.“ 292 GIACOIA, O. A Mentira e as Luzes, p.22. 293 ARAMAYO, R. Los Bocetos del Sistema Filosófico Schopenhaueriano. In: SCHOPENHAUER, A. Escritos inéditos de juventud 1808-1818 sentencias y aforismos II. Seleção, introdução e tradução de Roberto R. Aramayo. Valencia: Pre-Textos, 1999, p.10.

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A obra final pretendia resolver problemas; em troca, o manuscrito permite entrever o sentido existencial contido nesses mesmos problemas. Foram os cadernos de anotações que apresentaram as questões, enraizadas no corpo e na vida humana, a que a obra se destinou a responder.294

Recorrer ao Nachlass representa um ganho na medida em que (i) é possível

entrar em contato com exemplos diversos dos que foram empregados na obra publicada

– muitas vezes mais explícitos, simples, e intuitivos; (ii) é possível entrar em contato

com diferentes formulações que intentam explicar um mesmo evento, o que expõe a

forma como o autor abordou o problema e lança uma luz diferente sobre o objeto

analisado.

O trabalho de análise dos manuscritos de juventude nos revela que tanto a

doutrina do direito, quanto a doutrina do Estado – e as temáticas a elas relacionadas e

implicadas – foram objeto de reflexão do jovem pensador dos anos de 1810 até 1818.

Ao menos onze fragmentos que expressam esse momento de reflexão do filósofo devem

ser considerados,295 em especial o fragmento 286, datado de 1814.

A argumentação para a doutrina do direito de Schopenhauer – termo

emprestado de Kant que designa tanto o direito natural quanto o direito positivo296 –

pode ser dividida em, pelo menos seis momentos da argumentação: (i) a manifestação

do conflito interno da vontade no âmbito fenomênico, responsável pela guerra de todos

contra todos, ou seja, a caracterização do egoísmo (Egoismus); (ii) como esse conflito,

resultado da afirmação da própria vontade para vida, é a origem da injustiça (Unrecht);

(iii) a caracterização, pela via negativa, da justiça; (iv) a definição, a partir dos conceitos

anteriores, do direito natural, que para Schopenhauer é um direito moral; (v) a origem e a

finalidade do Estado (Staat); (vi) e como o direito moral é utilizado como parâmetro

294 Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, p.361. 295 São eles: Fragmento 25 – Folhas Iniciais 1-2 1812, Fragmento 27 – Folhas Iniciais 2-5 1812, Fragmento 64 – Berlin 1812 – Folha D, Fragmento 255 – Dresden 1814 – Folha LL 5-8, Fragmento 286 – Dresden 1814 – Folha QQ 7-8 e RR 1-3, Fragmento 535 – Dresden 1816 – Folha iiii 2-3., Fragmento 536 Dresden 1816 – Folha iiii 3, Fragmento 537 – Dresden 1816 – Folha iiii 3-7, Fragmento 567 – Dresden 1816 – Folha pppp – qqqq 1-2., Fragmento 693 – Dresden 1817 – Folha 17, Fragmento 714 – Dresden 1818 – Folha 19. Para sua leitura e análise foi utilizada a edição alemã: Der handschriftliche Nachlaß. Ed. Arthur Hübscher Munique: Deutsche Taschenbuch Verlag, 1985, 5 vols. As traduções são de minha autoria a partir do texto alemão. 296 “O termo doutrina do direito (usado por Kant) é excessivamente genérico, ele designa o gênero que compreende as duas espécies de doutrinas do direito, o natural e o positivo.” HN I, Fragmento 567, Dresden 1816 – Folha ppp. – qqqq, p. 383. No original alemão: „[...] das Wort Recht s lehre (das Kant gebraucht) ist zu allgemein, es bezeichnet das genus, das die 2 Species natürliche und positive Rechtslehre begreift.“

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valorativo pela política para a instituição do direito positivo, fundamentando o direito

penal (Strafrecht).

O primeiro aspecto que seria interessante notar é o processo de

desenvolvimento e aperfeiçoamento do conceito de egoísmo. A identificação entre o

corpo e a vontade já era operada pelo jovem filósofo nas suas anotações a partir de 1814:

“A vontade é o conhecimento a priori do corpo; e o corpo é o conhecimento a posteriori

da vontade.”297 No fragmento 286, datado de 1814, o qual parece ser um dos primeiros

rascunhos do que viria a constituir a redação final do §62 de MVR, o jovem Schopenhauer

desenvolve a tese de que somos seres físicos (physisches Wesen): somos um corpo (Leib),

que é objetidade (Objektität) da vontade, afirmando-se no espaço e no tempo, e que quer

se preservar e continuar a existir da melhor forma possível. Schopenhauer denomina esse

processo de interesse físico (physisches Interesse): a vontade de autoafirmar-se no mundo

fenomênico, de ser e de continuar sendo, nas melhores condições possíveis. Isso pode

desdobrar-se como, por um lado, invasão da esfera de afirmação da vontade alheia, e, por

outro, como o enfrentamento de toda negação de vontade proveniente do exterior, i.e., o

enfrentamento da negação do próprio corpo e da afirmação das outras vontades sobre a

própria. Isso significa, segundo Schopenhauer, ser moralmente interessado em não sofrer

injustiça. E injustiça, aqui, já é entendida como invasão da vontade para vida objetivada

num corpo alheio. Contudo, a noção de interesse físico deixa de ser utilizada pelo

filósofo, e nos fragmentos posteriores apenas o termo egoísmo é empregado.

Nos textos éditos de Schopenhauer, o egoísmo é tido como a motivação

fundamental entre os seres dotados de entendimento – os animais humanos e não

humanos – porque ele pode ser entendido como um ímpeto para existência – uma

existência desejada incondicionalmente – e para o bem-estar, o que o identifica com a

afirmação da vontade para vida e leva os indivíduos a afirmarem a própria vontade até a

invasão da esfera de afirmação de um outro indivíduo. Em termos gerais, apesar da

variação da palavra com a qual se designa o conceito, o seu conteúdo já estava bem

delimitado nas anotações analisadas.

A injustiça, como mencionado acima, já é concebida pelo jovem pensador

como a invasão da esfera de afirmação da vontade, i.e., como a afirmação da vontade

297 HN I, Fragmento 255, Dresden 1814 – Folha LL, p. 153. No original alemão: „Der Wille ist die Erkenntniß a priori des Leibes. Und der Leib ist die Erkenntniß a posteriori des Willens.“

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que vai até outro corpo e o nega.298 No fragmento 286 (1814), Schopenhauer admite a

injustiça como uma invasão realizada por meio do canibalismo, do homicídio ou pela

utilização das forças alheias pertencentes a uma vontade objetivada em um corpo por

outro corpo para seus próprios fins e interesses. Desse último caso deriva-se a injustiça

que configura a escravidão – embora Schopenhauer já vislumbre escusas para justificá-

la, as quais enuncia de forma mais demorada apenas no §125 de PP (1851), como

pudemos observar acima – e a injustiça que se refere ao dano à propriedade.

No fragmento 714, datado de 1818, aparecem pela primeira vez as formas

pelas quais Schopenhauer considera o exercício da injustiça: pela astúcia (List) e pela

violência (Gewalt), com praticamente o mesmo teor apresentado na redação final de

MVR. A única diferença que parece ser substancial é a de que, nos manuscritos,

Schopenhauer considera toda mentira como injustiça,299 posição que se altera, como se

sabe, em seus textos éditos.300

Além do canibalismo, do homicídio e da sobreposição de vontades (que no

fragmento mencionado configura a injustiça por escravidão e a injustiça relativa ao dano

à propriedade), a mera lesão do corpo de um outro indivíduo é considerada como uma

forma de praticar injustiça e o ataque à propriedade se torna o quinto grau de injustiça,

ganhando consideração à parte na formulação do autor.301

Contudo, o que é mais marcante nos manuscritos de juventude é o fato de

Schopenhauer destacar por diversas vezes que os indivíduos temem a possibilidade de

sofrer injustiça, não propriamente a sua prática – que até é prazerosa.302 Por conta desse

primeiro motivo ela é denunciada e condenada. Definir a injustiça e estudar as formas

de evitá-la também são temáticas abordadas pelo jovem Schopenhauer, e fazem parte do

desenvolvimento argumentativo das doutrinas do direito e do Estado em suas anotações.

O conceito de justiça é definido em todos os escritos de Schopenhauer como

um conceito moral originado da negação da injustiça: a manifestação individual da

vontade não deve ultrapassar o seu próprio fenômeno, i.e., a esfera de afirmação do

298 Cf. HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha QQ – RR, p.174-176 (o qual parece constituir o primeiro rascunho das ideias centrais do §62 de MVR), e HN I, Fragmento 693, Dresden 1817 – Folha 17, p.482-483 (trata-se de um fragmento com o texto mais próximo da redação final). 299 Cf. HN I, Fragmento 714, Dresden 1818 – Folha 19, p.490. 300 Cf. a seção 2.2.9 Direito Moral à Mentira, p.78. 301 Aqui é importante mencionar que os apontamentos mais essenciais relativos ao direito de propriedade, como sua identificação com a vontade do indivíduo através do trabalho elaborador, sua exterioridade ao Estado, podem ser encontrados nos fragmentos 286 (1814), 563 (1816), 672 (1817), e 693 (1817). 302 Cf. Fragmentos 64 (1812), 286 (1814), 535 (1816), 537 (1816), 693 (1817), e 714 (1818).

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outro não deve ser invadida.303 Por ser definida a partir da negação da injustiça, pode-se

afirmar que essa é a condição de existência da justiça, a qual é toda ação praticada sem

causar dano ao corpo de um outro indivíduo, que não afete a esfera de afirmação da

vontade do indivíduo em sua pessoa, em sua liberdade, em sua propriedade, e em sua

honra.

A vontade que intenta negar a outra vontade pode ser tratada, segundo

Schopenhauer, como uma força natural, operando cegamente, e que deve ser evitada de

toda forma.304 Quando se evita a sobreposição da própria vontade pela de um outro,

permanece-se sem cometer injustiça, afirmando o próprio corpo, a própria vontade, sem

negar a vontade do outro. E se for necessário compelir a vontade alheia, que intenta

infligir algum tipo de injustiça, é lícito forçá-la a desistir de tal ação. Em outras

palavras, possui-se um direito de coerção: Se eu agora afastar de mim uma tal penetrante negação da minha vontade (em seu fenômeno, [i.e.], meu corpo), então eu apenas nego essa negação, e isso ainda é apenas a afirmação do meu próprio corpo (i.e., vontade), não uma negação de uma vontade alheia, mas sim apenas a sua negação da minha [vontade]: consequentemente isso não é injustiça: tal afastamento é assim um direito, o qual poderia aparecer como se quisesse, por exemplo, a morte de um corpo alheio, quando não existiu outra [maneira] de deter uma ameaça a minha vontade.305

Enquanto ser físico sou um corpo, e esse corpo é uma objetidade da vontade

que se afirma no tempo e no espaço; isso significa dizer que busco a manutenção do

meu próprio corpo, a continuidade da minha existência, nas melhores condições

possíveis. Oposto a esse meu objetivo está toda vontade que se coloque em

enfrentamento com a minha própria vontade, toda negação do meu corpo que seja

oriunda do exterior, que seja oriunda do ultrapassamento das fronteiras de afirmação de

vontades estabelecidas. Enquanto ser físico, tenho natural interesse em não sofrer

injustiça e, exatamente por essa razão, devo negar a negação do meu corpo, em um

processo no qual permaneço me afirmando, sem necessariamente negar o corpo do

303 Essa definição pode ser encontrada, por exemplo, nos fragmentos 535 (1816) e 693 (1817). 304 Cf. HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha RR, p.175. Nesse ponto fica novamente claro o acento que Schopenhauer dá ao horror em sofrer injustiça. 305 HN I, HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha RR, p.175. No original alemão: “Wenn ich nun eine solche auf mich eindringende Verneinung meines Willens (in seiner Erscheinung, meinem Leibe) abwehre; so verneine ich nur jene Verneinung, und dies ist immer nur noch die Bejahung meines eignen Leibes (d.i. Willens), nicht aber Verneinung eines fremden Willens, sondern nur seiner Verneinung des meinen: folglich ist dies nicht Unrecht : ein solches Abwehren ist also Recht, es möge erscheinen wie es wolle, z.B. als Tödtung eines fremden Leibes, wenn dieser nicht anders von der Beeinträchtigung des meinem abzuhalten war.“

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outro. O meu interesse físico, i.e., o meu egoísmo, estará de acordo com meu direito, e

nisso, segundo o jovem Schopenhauer, consiste propriamente esse direito. O direito, e

melhor dizendo, o direito natural, é definido nesse contexto da seguinte forma: O direito é, assim, a compatibilidade do interesse físico com a moralidade, na medida em que o direito vai apenas até a afirmação da própria vontade. Isso é propriamente o direito, e esse conceito pertence à Ética, o qual poderia conservar o nome de direito natural, e que conserva a distinção com o [direito] positivo. Então deduzimos até aqui o direito natural.306

Apenas no fragmento 567 (1816) o jovem Schopenhauer identifica o termo

direito natural com o termo direito moral, apesar de anteriormente ter concebido

injustiça e justiça como conceitos morais. Essa identificação consiste no fato de que, por

serem determinações morais, os direitos derivados dos conceitos de injusto e de justo

podem ser denominados naturais, no sentido de que não estão definidos por convenções

humanas nem são instituídos pelo Estado, mas existem de maneira inata – valem por si e

em si –, e são universais e imutáveis – pois valem para todos os indivíduos, em qualquer

localidade, e em qualquer época. Como são conceitos morais e a base do direito natural,

Schopenhauer pôde concluir que o direito natural é um direito moral – tal como aparece

na formulação de MVR:

Essa significação puramente moral é a única que a justiça e a injustiça têm para os seres humanos enquanto seres humanos, não como cidadãos do Estado, e que, portanto, subsistiria inclusive no estado de natureza, sem lei positiva. Significação que constitui a fundação e o conteúdo de tudo aquilo que, por esse motivo, se denominou Direito Natural, que se poderia melhor denominar direito moral, pois sua validade não se estende ao sofrer, à efetividade externa, mas só ao ato e ao autoconhecimento oriundo desse ato da vontade individual, autoconhecimento que se chama consciência moral.307

A moral teria como objetivo que eu não fizesse injustiça (neminem laede),

mas, como visto, o anelo maior é não sofrê-la (ab nemine damnum accipere). O meio

306 HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha RR, p.176. No original alemão: „Das Recht is t a lso die Kompatibilität des phys ischen Int eresses, so fer n es nur bis zur Be jahung des e ignen Le ibes geht , mit dem mora lischen. Dies ist das eigentlich Recht , dessen Begriff zur Et[h]ik gehört, und das den Namen des Naturrecht s, den es zur Unterscheidung vom positivem erhalten hat, behalten mag. Wir haben also bis hieher das Naturrecht deducir t . “ 307 MVR, §62, p.437, I 403. Tradução ligeiramente alterada. No original: „Diese rein moralische Bedeutung ist die einzige, welche Recht und Unrecht für den Menschen als Menschen, nicht als Staatsbürger haben, die folglich auch im Naturzustande, ohne alles positive Gesetz, bliebe und welche die Grundlage und den Gehalt alles dessen ausmacht, was man deshalb Naturrecht genannt hat, besser aber moralisches Recht hieße, da seine Gültigkeit nicht auf das Leiden, auf die äußere Wirklichkeit, sondern nur auf das Thun und die aus diesem dem Menschen erwachsende Selbsterkenntniß seines individuellen Willens, welche Gewissen heißt, […].“ Nota-se neste excerto a primeira inversão na ordem dos termos: injustiça e justiça, empregados até então sempre nesta ordem, para justiça e injustiça.

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racional para obtenção desse fim é o Estado. O Estado surge do meu interesse em não

sofrer injustiça, não de que ela não seja praticada. Na medida em que os indivíduos são

corpos, seres físicos, e há um interesse físico de cada um em não sofrer injustiça, cria-se

o acordo para que ninguém faça injustiça, já que, assim, ninguém sofreria injustiça. O

Estado é concebido, dessa forma, como um instrumento de prevenção, mais

precisamente como um instrumento de prevenção ao sofrimento de injustiça. Dessa

forma, no fragmento 286 (1814), Schopenhauer define o Estado como “a comunidade

de pessoas que não desejam sofrer qualquer injustiça.”308 No fragmento 537 (1816),

corroborando o fragmento anterior, o pacto social que dá origem ao Estado é concebido

como renúncia ao fazer injustiça. Desta forma, na argumentação levada a cabo nos

manuscritos de juventude, em comparação com os textos éditos, a separação entre

Estado e moral parece se constituir de modo mais explícito, embora fique aparente que

os indivíduos realmente renunciem à prática da injustiça ao invés de instituir um

dispositivo coercitivo que, através de contramotivos, desestimule ações injustas.

O Estado surge por um acordo, por um pacto, e utiliza-se do inverso309 da

doutrina pura do direito para garantir que seus protegidos não sofram injustiça. Segundo

o fragmento 536 (1816), o objetivo principal de uma exposição da doutrina do direito é

mostrar que o direito positivo é o emprego e uso do direito natural em seu reverso. Em

uma nota de um fragmento posterior, a saber, 567, datado do mesmo ano, Schopenhauer

elenca quais ele considera serem os pontos principais de que todas as doutrinas do

direito se ocuparam: Os pontos principais do direito natural são: 1) a definição do conceito de justiça / direito, e a demonstração de sua origem e sua relação com a moral e o direito natural; 2) A constituição e finalidade do Estado; 3) A dedução do direito de propriedade – o conteúdo restante de uma doutrina do direito natural é apenas a aplicação dos seus princípios, a determinação do que é possível nas relações da vida, que assim são reunidos sob certos conceitos

308 HN I, Fragmento 286, Dresden 1814 – Folha RR, p.176. No original alemão: „Er ist also eine Vereinigung von Menschen die Kein Unrecht leiden wollen.“ 309 Nos manuscritos de juventude Schopenhauer utiliza tanto a palavra alemã umgekehrte, quanto a palavra Kehrseite para se referir à dinâmica que consiste no fato da política utilizar-se do reverso / inverso / avesso do direito natural para estabelecer o direito positivo. E o que significa empregar o direito natural em seu reverso? Significa que a doutrina pura do direito tem como base o dado a partir da moral, do caráter, do âmbito interno da experiência, enquanto que a teoria do Estado considera o que é dado a partir da motivação. Ou seja, estabelecidos o injusto e o justo como padrão objetivo de medida (quais sejam: o injusto se configura pela invasão da esfera de afirmação da vontade no corpo alheio e que o justo é a negação do conceito de injustiça), invertem-se a perspectiva e a ordem dos valores: a legislação vigorará de acordo com o limite do justo estabelecido, que não pode ser transcendido no âmbito da experiência externa.

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gerais no direito, isto é, como os seres humanos agem em todos os lugares para que nenhum sofra injustiça. Todas as doutrinas do direito concordam nesses pontos particulares, assim, elas também discursam de forma diferente sobre aqueles três pontos principais, e assim em seus princípios.310

O Estado é concebido, assim, como o egoísmo contra as consequências

desvantajosas do egoísmo (ou, em termos mais simplórios consoantes com as primeiras

formulações do jovem filósofo, do interesse físico pela preservação e prevenção),

operando a inversão do conceito de justiça moral para o de justiça legal: o ponto de

partida é alterado do lado ativo (agir), para o lado passivo (sofrer a ação injusta). No

fragmento 535 (1816), já é possível notar o significado latente de dois tipos de egoísmos

nessa questão, a saber, egoísmo coletivo, ou – por assim dizer – superior / esclarecido, e

o egoísmo individual:

Aqueles que acham que o Estado é uma instituição moral; eles pensam que o Estado é orientado contra o egoísmo mesmo: mas, pelo contrário, ele é orientado contra as consequências do egoísmo, a saber, contra as consequências do egoísmo alheio, contra as quais o próprio se volta: assim, o Estado se originou inteiramente do egoísmo e ele está aí para servi-lo com a razão, conforme exposto de maneira excelente por Hobbes.311

Assim, tem-se constituído, já nos manuscritos de juventude, aspectos da

filosofia schopenhaueriana que permeiam toda a doutrina do direito e do Estado

conforme sua redação mais acabada. A separação entre moral e Estado é apenas um dos

aspectos engendrados pela dicotomia vontade e representação: a moral é eterna, perene,

constitui a unidade, tem como escopo de investigação a disposição em cometer

injustiça; o Estado, por sua vez, é temporal, aparência, regido pelos princípios de

individuação e de razão e, assim, pelo conflito da multiplicidade, possuindo como

escopo de investigação o ato, o feito.312 Apenas o ato pode ser punido pelo Estado. Da

310 HN I, Fragmento 567, Dresden 1816 – Folha qqqq, p.382, nota de rodapé. No original alemão: „Die Hauptpunkte des Naturrechts sind 1) die Definition des Begriffs Recht, und Nachweisung seines Ursprungs und seines Verhältnisses zur Moral und zum Naturrecht. 2) Die Entstehung und der Zweck des Staats. 3) Die Ableitung des Eigenthumsrechts. – Der übrige Inhalt einer Lehre des Naturrechts ist bloß die Anwendung jener Principien, die Bestimmung, was in den möglichen Verhältnissen des Lebens, die deshalb unter gewisse allgemeine Begriffe vereinigt sind Recht, ist, d.h wie Menschen überall zu handeln haben damit keiner Unrecht leide. Alle Rechtslehren stimmen in diesem mehr Besonderen überein, so verschieden sie auch von jenen 3 Hauptpunkten reden, also in den Principien.“ 311 HN I, Fragmento 535, Dresden 1816 – Folha iiii, p.358. No original alemão: „Die, welche meinen, er [Staat] sei eine moralische Anstalt; denken er sei gegen den Egoismus selbst gerichtet: er ist aber vielmehr gegen die Folgen des Egoismus gerichtet, nämlich gegen die Folgen des fremden Egoismus, gegen die der eig[e]ne sich auflehnt: er ist also ganz aus dem Egoismus entstanden und ist da um demselben zu dienen mit Vernunft, wie Hobbes vortrefflich auseinandersetzt.“ 312 Cf. HN I, Fragmento 25, Folhas Iniciais 2-5 1812 -, p.16-17.

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mesma forma como o historiador é um profeta às avessas, o legislador (der Lehrer der

Rechte) seria, assim, um moralista às avessas – e que conste aqui: para o jovem de 22

anos, o político seria um ético às avessas. Todavia, esse exemplo foi suprimido da

conclusão do §62 de MVR,313 talvez pelas ambiguidades que sua interpretação poderia

gerar.

Por fim, resta a consideração de que a essência do direito penal, tal como

formulada na obra do filósofo da vontade, não encontrou grandes alterações dos

fragmentos de juventude para a versão mais acabada de seus escritos. De fato, é mantida

a definição de que a punição (Strafe) é orientada em essência ao futuro (Zukunft), não

ao passado (Vergangenheit), fator que a difere da vingança (Rache).314

A partir do exposto, foi possúvel mostrar que o núcleo teórico conceitual e

as principais linhas argumentativas que se referem às doutrinas do Estado e do direito,

já se encontravam de forma latente ou em desenvolvimento nos fragmentos de

juventude de Arthur Schopenhauer, apesar do aspecto fragmentário, da não

sistematização precisa, e, portanto, da não complexidade da redação final da obra

publicada. Assim, com base no confronto e na leitura histórico-crítica dos manuscritos e

da obra publicada, foi possível trazer à luz e verificar o processo de refinamento

conceitual e de redação das doutrinas do direito e do Estado desde seu gérmen até sua

forma mais acabada.

2.4. Compaixão: Da Justiça Voluntária ao Rompimento com a Ética

2.4.1. A Compaixão (Mitleid) como Origem das Virtudes Cardeais

Schopenhauer identifica três motivações morais para o agir humano:315 (i) a

maldade (Bosheit), a qual possui como finalidade o mal alheio; (ii) o egoísmo

313 Cf. HN I, Fragmento 25, Folhas Iniciais 2-5 1812 -, p.16-17. 314 Sobre a punição, a vingança e o direito penal, Cf. os Fragmentos 413 (1815), 568 (1816), 574 (1816), e 620 (1816). 315 Em uma polêmica e muito discutida nota de rodapé do capítulo 48 de MVR II, Sobre a Doutrina da Negação da Vontade para Vida (Zur Lehre von der Verneinung des Willens zum Leben), Schopenhauer admite uma quarta motivação: “Desde que se aceite a ascese, no entanto, a apresentação das últimas motivações da ação humana, descritas no meu ensaio concorrente ao prêmio acerca do fundamento da moral, a saber, 1) o próprio bem-estar, 2) a dor alheia e 3) o bem-estar alheio, deveria ser completada por uma quarta [motivação do agir humano]: o próprio mal, o qual eu menciono aqui casualmente e apenas

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(Egoismus), que tem como finalidade o próprio bem e a autoconservação, e, como visto,

é intrinsecamente ligado à justiça temporal; e (iii) a compaixão (Mitleid), a qual tem

como finalidade o bem-estar alheio e na qual o sofrimento do outro se torna o motivo do

agente. É nesta última onde o autor identifica o amor puro – “Todo amor (ágape,

caritas) é compaixão”,316 “Todo amor puro é compaixão”317 – e uma via de salvação

para os sofrimentos do mundo. Para o filósofo, toda ação humana tem de ser

reconduzida necessariamente a uma dessas motivações, embora elas possam agir

conjuntamente.

Segundo Schopenhauer, a maldade tem no mal alheio sua finalidade,

podendo chegar até a mais extrema crueldade. Ela pode ser explicada pela seguinte

máxima: imo omnes, quantum potes, laede (prejudica a todos quanto possas).318 No que

se poderia imaginar como o outro extremo do agir humano, tem-se a compaixão. A

palavra compaixão é uma das possíveis traduções para a palavra alemã Mitleid, cuja

tradução literal para o português seria “padecer / sofrer com”. Ela consiste em graus de

olhar através (Durchschauen) do princípio de individuação que permitem conhecer e

reconhecer a identidade da essência metafísica do mundo como unidade, i.e., reconhecer

que a diferença entre o eu e o outro é mera aparência. Mas não se trata de apenas

reconhecer a identidade da essência metafísica entre si mesmo e os outros. É preciso o

conhecimento intuitivo, cuja expressão é afetiva: o sentimento319 de compaixão.

Enquanto que na compaixão tem-se o sentimento de que o eu e aquele outro ser

compartilhamos a mesma essência, de que o muro entre o eu e o outro não existe, o

egoísmo atua na direção contrária: o enredamento do indivíduo ao princípio de

pelo interesse de uma coerência sistemática. Pois ali, naquele ensaio, essa quarta motivação teve que ser ignorada, pois a questão do prêmio fora posta no sentido da ética filosófica em vigor na Europa protestante”. MVR II, Kapitel 48 – Zur Lehre von der Verneinung des Willens zum Leben, II 695. No original alemão: „Sofern man hingegen die Askese gelten läßt, wäre die in meiner Preisschrift über das Fundament der Moral gegebene Aufstellung der letzten Triebfedern des menschlichen Handelns, nämlich l) eigenes Wohl, 2) fremdes Wehe und 3) fremdes Wohl, noch durch eine vierte zu ergänzen: eigenes Wehe: welches ich hier bloß im Interesse der systematischen Konsequenz beiläufig bemerke. Dort nämlich mußte, da die Preisfrage im Sinn der im protestantischen Europa geltenden philosophischen Ethik gestellt war, diese vierte Triebfeder stillschweigend übergangen werden.“ Assim, parece-nos que o filósofo analisa e expõe três motivações do agir humano, admite a existência de uma quarta sobre a qual ele não entra em maiores detalhes, e, ainda, concebe o que seria o contrário de um motivo – que engendra uma ação –, o quietivo – o qual resulta na inação do indivíduo. 316 MVR, §66, p.476, I 443. No original alemão: „Alle Liebe (αγαπη, caritas) ist Mitleid.“ 317 MVR, §67, p.478, I 444. No original alemão: „Alle reine Liebe ist Mitleid.“ 318 Cf. SFM, §7, p.72, III 628. 319 Ver nota 107, p.72.

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individuação intensifica a concepção de pluralidade e assimetria, criando e reforçando a

ilusão da diferença entre o que sou eu e o que é o outro. Sobre esse ponto a professora

Maria Lucia Cacciola escreve:

É do ponto de vista da representação que existem, pois, indivíduos separados, e, aí, o egoísmo se faz presente como o motivo antimoral por excelência. Em contrapartida, do ponto de vista da Vontade, é a mesma essência que se manifesta, tornando possível o surgimento da compaixão, que é o fundamento das demais virtudes, a justiça e a caridade, e de toda ação que tenha um valor moral.320

A ausência de toda motivação egoísta é o critério de uma ação dotada de

valor moral.321 A autêntica bondade de disposição é desinteressada, i.e., desprovida de

motivações egoístas, e não se origina do conhecimento abstrato, mas do sentimento. As

ações motivadas pela compaixão, i.e., as ações morais, podem ser exteriorizadas a partir

de dois graus distintos: (i) em um grau menor, ainda negativo, a compaixão, opondo-se

a motivos egoístas ou maldosos, impede o agente de causar sofrimento aos outros.

Negativo, nesse contexto, deve ser entendido no sentido de que a ação do indivíduo

apenas evita o dano a um outro, sem, com isso, fazer-lhe o bem, o qual seria o aspecto

gradual positivo. Desse grau inferior surge a máxima neminem laede (não prejudicar

ninguém), que é o princípio da virtude da justiça voluntária (freiwillige Gerechtigkeit),

da justiça entendida como virtude; (ii) em grau maior, positivo, a compaixão não apenas

impede o indivíduo de causar dano a um outro, como leva o agente a ajudar o próximo.

A máxima aqui extraída por Schopenhauer é omnes, quantum potes, iuva (ajuda a todos

quanto puderes), a qual se refere à virtude da caridade (Menschenliebe, literalmente

amor à humanidade). Por conseguinte, a compaixão é mais evidente nas ações

caritativas que nas ações justas, o que relega a virtude da justiça a um patamar inferior

ao da caridade, e a faz perder, no sistema filosófico schopenhaueriano, o status de

virtude por excelência, status que gozava em outros sistemas filosóficos.

A compaixão aparece, assim, como a condição de possibilidade da justiça

voluntária e da caridade, e pode ser entendida como uma superação das motivações

egoístas, erigindo-se como o fundamento das ações dotadas de valor moral. Ela é

a participação, totalmente imediata, independente de qualquer outra consideração, no sofrimento de um outro e, portanto, no impedimento ou

320 CACCIOLA, M. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo, p.158. 321 Cf. SFM, § 15, p.131, III 674.

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supressão deste sofrimento, como sendo aquilo em que consiste todo o contentamento e todo o bem-estar e felicidade.322

A compaixão, como fonte das ações altruístas, como base da moralidade,

não precisaria ser explicitada de forma conceitual, através de representações abstratas.

Antes, ela pode ser apreendida em casos concretos, sem a mediação do intelecto, isto é,

de forma intuitiva. Ao reivindicar a comprovação da compaixão como fundamento da

moral, Schopenhauer acaba por recorrer a Rousseau em um argumento de autoridade: [...] minha fundamentação tem por ela a autoridade do maior moralista de toda a época moderna; este é, sem dúvida, Jean-Jacques Rousseau, o profundo conhecedor do coração humano que bebeu sua sabedoria não dos livros, mas da vida, e destinou à sua doutrina não à cátedra, mas à humanidade.323

Todavia, até que ponto esse recurso pode ser considerado válido? Para

Rousseau, existem dois princípios que servem de apoio à razão do indivíduo selvagem e

dos quais derivam todas as regras do direito natural: o princípio da conservação

(conservation) e o princípio da piedade (pitié).324 O primeiro se refere aos meios

apropriados para se alcançar o bem-estar, a preservação, e a prevenção contra danos e

perdas. O segundo funcionaria como uma espécie de instinto natural que tornaria o ser

humano capaz de padecer com o seu semelhante, i.e., a piedade tornaria o ser humano

capaz de apreender o sofrimento de outrem através do desprendimento do eu e da sua

identificação com o não-eu. Dessa forma, os princípios de conservação e de piedade

seriam princípios reguladores das relações humanas no estado de natureza, ocupando o

lugar das leis, dos costumes e da virtude, e, em apoio à razão, evitariam que os

indivíduos se tornassem monstros uns para os outros. A partir desse raciocínio,

Rousseau sustenta que o estado de natureza não poderia ser um estado de guerra de

todos contra todos325 – tese, como exposto, rejeitada por Schopenhauer e em completa

322 SFM, §16, p.136, III 678. No original alemão: „der ganz unmittelbaren, von allen anderweitigen Rücksichten unabhängigen Theilnahme zunächst am Leiden eines Andern und dadurch an der Verhinderung oder Aufhebung dieses Leidens, als worin zuletzt alle Befriedigung und alles Wohlseyn und Glück besteht.“ 323 SFM, §19, p.184, III 716. No original alemão: „Dagegen aber hat meine Begründung die Autorität des größten Moralisten der ganzen neuern Zeit für sich: denn dies ist, ohne Zweifel, J.J. Rousseau, der tiefe Kenner des menschlichen Herzens, der seine Weisheit nicht aus Büchern, sondern aus dem Leben schöpfte, und seine Lehre nicht für das Katheder, sondern für die Menschheit bestimmte.“ 324 Cf. Segundo Discurso, p.236-237. 325 Cf. Segundo Discurso, p.258.

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contradição com a forma pela qual o filósofo da vontade funda e justifica a existência

do Estado.

Ambos os conceitos, o rousseauniano (pitié) e o schopenhaueriano

(Mitleid),326 remetem ao fato do ser humano possuir a capacidade de “padecer com”, de

sentir o sofrimento alheio como seu. O que distingue a formulação deste conceito entre

os dois filósofos é a forma pela qual a apreensão do sofrimento alheio se dá. Se em

Schopenhauer a compaixão é fruto da apreensão de uma mesma essência metafísica dos

indivíduos, e essa apreensão ocorre por um sentimento imediato, por um olhar através

do princípio de individuação, em Rousseau a piedade pode ser entendida como um

instinto natural – e pelo papel que desempenha no estado de natureza pode ser

entendida, também, como um instinto de preservação humana – que se dá pela

apreensão do sofrimento do outro através do desprendimento do eu e da identificação

com o não-eu – que não se dá a partir do reconhecimento da partilha de uma mesma

essência metafísica no plano representacional.

2.4.2. As Virtudes Cardeais: A Justiça Voluntária (freiwillige Gerechtigkeit)

e a Caridade (Menschenliebe)

Na continuação do processo de elucidação do conceito de compaixão – o

conceito que serve como condição de possibilidade, existência, e efetivação das ações

morais e da virtude –, é necessário discorrer acerca do terceiro sentido de justiça

empregado pelo filósofo da vontade em sua obra, a saber, a justiça voluntária entendida

como uma das virtudes cardeais.

As ações justas consistem na equiparação entre si próprio e os demais, em

dar a cada um o que é seu. Isso significa manter-se nos limites da própria esfera de

afirmação da vontade, sem transgredi-la, sem irromper a esfera de afirmação da vontade

do outro. E isso se dá pelo fato de que o princípio de individuação, a barreira de

impedimento da apreensão da comum essência metafísica, não é mais uma barreira

instransponível. Quem age de forma justa não precisa ser coagido a agir de tal forma: o

326 Sobre uma ética da compaixão envolvendo os conceitos de Mitleid e de Pitié Cf. HAMBURGER, K. Zum Problem der Mitleidsethik. Rousseau und Schopenhauer. In: Philosophisches Jahrbuch, Freiburg, München: Karl Alber Verlag, v.92, n.1, p.68-78, 1985.

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indivíduo respeita as fronteiras éticas que medeiam o justo e o injusto e as faz valer,

mesmo quando não existe nenhum Estado ou outro poder regulador para sancioná-lo ou

puni-lo, não levando sua afirmação da vontade para além dos limites do próprio corpo

até a negação da vontade alheia.327 O indivíduo justo encontra no outro a si mesmo e

desiste de praticar injustiça. Contudo, o justo ainda age no plano da individuação.

É preciso, contudo, afastar a possibilidade de confusão e erro no que se

refere ao fato da compaixão ser tomada como condição de existência e origem da justiça

voluntária: seria uma imprecisão e um equívoco atribuir a toda ação justa, e, por

conseguinte, a todas as ações legais, valor moral. Se a ação praticada não for

desinteressada, i.e., se a ação praticada possuir uma motivação egoísta, a ela não é

possível atribuir valor moral: Há, antes, entre a justiça que os indivíduos exercem e a lealdade do coração, na maioria das vezes, uma relação análoga a que há entre a expressão de cordialidade e o genuíno amor ao próximo que supera o egoísmo, não apenas aparentemente como aquela, mas efetivamente.328

Schopenhauer, assim, identifica o grau mais baixo pelo qual as ações

compassivas são exteriorizadas como a justiça voluntária. Em um nível de intensidade

maior, observa-se um segundo grau das ações motivadas pela compaixão: a virtude

cardeal da caridade (Menschenliebe), sobre a qual faremos alusão agora. O caminho

para se chegar à caridade envolve o olhar através do princípio de individuação em um

grau mais elevado que o da justiça. Aquele que age de forma caritativa ajuda o próximo

na medida das próprias forças, sobrepondo o sofrimento alheio ao próprio bem-estar,

tornando, nesse sentido, o sofrimento do próximo a sua própria motivação. Não para

regozijar-se no sofrimento do outro, mas para evitá-lo ou diminui-lo. Dependendo do

grau pelo qual essa motivação afeta o indivíduo, pode-se afirmar que o egoísmo é de

certo modo suprimido: dessa forma, observa-se que a caridade pode chegar a suprimir

completamente o egoísmo individual ao desconsiderar totalmente a própria afirmação

da vontade e o próprio bem-estar, enquanto que a justiça realiza tal tarefa apenas em

parte.

327 Cf. HN, Metafísica dos Costumes, p.144, p.211; e Cf. MVR, §66, p.471, I 437. 328 SFM, §13, p.109-110, III 657. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Vielmehr ist zwischen der Gerechtigkeit, welche die Menschen ausüben, und der ächten Redlichkeit des Herzens, meistens ein analoges Verhältniß, wie zwischen den Aeußerungen der Höflichkeit und der ächten Liebe des Nächsten, welche nicht, wie jene, zum Schein, sondern wirklich den Egoismus überwindet.“

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Da compaixão derivam-se a justiça voluntária e a caridade, das quais, por

sua vez, são derivadas todas as demais virtudes; e, por isso, elas podem ser consideradas

virtudes cardeais. Por conta da observação e constatação da intensidade com a qual a

compaixão se manifesta na ação dos indivíduos, sendo a causa de todas as virtudes

cardeais, é possível diferir entre graus da vida ética. Mas isso não significa que se trata

de uma gradação a ser percorrida pelo indivíduo, ou uma teleologia da vida ética em

busca do bem supremo329 – o que seria algo completamente contraditório com o sistema

filosófico schopenhaueriano, como foi exposto acima. Trata-se de graus, menores e

maiores, das ações consideradas morais. Contudo, a vida ética possui uma importante

limitação: ela não conduz à cessação do sofrimento, ela não conduz à redenção

(Erlösung); segundo Schopenhauer, apenas a ascese (Askesis), a negação da vontade

para vida, poderia conduzir à salvação, ao fim permanente do sofrimento. Ela seria uma

espécie de sumo bem emérito:

Todavia, caso queiramos conferir uma posição honorífica ou, por assim dizer, emérita a uma antiga expressão que não gostaríamos de deixar por completo em desuso [bem supremo, summum bonum], podemos metafórica e figurativamente, chamar a total auto-supressão e negação da vontade, sua verdadeira ausência, unicamente o que acalma e cessa o ímpeto da vontade para todo o sempre e que exclusivamente proporciona o contentamento que jamais pode ser de novo perturbado, a verdadeira redenção do mundo e que logo mais adiante trataremos na conclusão de todo o nosso pensamento – podemos chamar essa total auto-supressão e negação da vontade de bem absoluto, summun bonum, e vê-la como o único e radical meio de cura da doença contra a qual todos os outros meios são anódinos, meros paliativos. Nesse sentido, o termo grego τελος [télos] e a expressão latina finis bonorum funcionam melhor.330

329 O bem supremo seria “[...] a satisfação da vontade além da qual nenhum novo querer apareceria, noutros termos um último motivo cujo alcançamento proporcionaria um contentamento indestrutível da vontade. Mas, segundo nossa atual consideração neste quarto livro, tal ordem de coisas é impensável.” MVR, §65 p.462, I 427-428. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „[…] höchstes Gut, summum bonum, bedeutet das Selbe, nämlich eigentlich eine finale Befriedigung des Willens, nach welcher kein neues Wollen einträte, ein letztes Motiv, dessen Erreichung ein unzerstörbares Genügen des Willens gäbe. Nach unserer bisherigen Betrachtung in diesem vierten Buch ist dergleichen nicht denkbar.“ 330 MVR, §65, p.462, I 428. No original alemão: „Sondern stets nur ein einstweiliges. Wenn es indessen beliebt, um einem alten Ausdruck, den man aus Gewohnheit nicht ganz abschaffen möchte, gleichsam als emeritus, ein Ehrenamt zu geben; so mag man, tropischer Weise und bildlich, die gänzliche Selbstaufhebung und Verneinung des Willens, die wahre Willenslosigkeit, als welche allein den Willensdrang für immer stillt und beschwichtigt, allein jene Zufriedenheit giebt, die nicht wieder gestört werden kann, allein welterlösend ist, und von der wir jetzt bald, am Schluß unserer ganzen Betrachtung, handeln werden, — das absolute Gut, das summum bonum nennen, und sie ansehen, als das einzige radikale Heilmittel der Krankheit, gegen welche alle anderen Güter, nur Palliativmittel, nur Anodyna sind. In diesem Sinne entspricht das Griechische τελος, wie auch finis bonorum, der Sache sogar noch besser.“

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2.4.3. Ascese (Askesis): A Negação da Vontade para Vida

A ascese, muitas vezes utilizada por Schopenhauer como sinônimo de

negação da vontade para vida (Verneinung des Willens zum Leben), é definida pelo

autor da seguinte forma:

Sob o termo, por mim já muitas vezes empregado, de ASCESE, entendo no seu sentido estrito essa quebra PROPOSITAL da vontade pela recusa do agradável e a procura do desagradável, mediante o modo de vida penitente voluntariamente escolhido e a autocastidade, tendo em vista a mortificação contínua da vontade.331

A ascese é, assim, a condição de possibilidade, a via de salvação, constatada

pelo autor para o fim dos tormentos do mundo.332 Segundo o filósofo, a ascese pode ter

como origem duas possibilidades: (i) uma carga de sofrimento pessoal brutal, ou a (ii)

compaixão no olhar mais completo e total através do princípio de individuação, no qual

a diferença entre o eu e o não-eu deixa completamente de existir.

No primeiro caso, do mais intenso sofrimento pessoal,333 da mais profunda

dor transformadora, a qual, segundo o autor, muitas vezes acomete pessoas mais

suscetíveis a motivações maldosas ou que levam vidas consideradas desregradas, a

vontade é quebrada e o caráter do indivíduo é suprimido, o que ocasiona uma

transformação profunda e completa nesse indivíduo: “mesmo aqueles que eram pessoas

más, vemo-los às vezes purificados até este grau mediante a mais profunda dor: tornam-

se outros, completamente convertidos.”334

331 MVR, §68, p.496, I 463. No original alemão: „Unter dem schon öfter von mir gebrauchten Ausdruck Askesis verstehe ich, im engern Sinne, diese vorsätzliche Brechung des Willens, durch Versagung des Angenehmen und Aufsuchen des Unangenehmen, die selbstgewählte büßende Lebensart und Selbstkasteiung, zur anhaltenden Mortifikation des Willens.“ A ascese seria, assim, a quarta motivação aludida na nota de rodapé do capítulo 48 de MVR II supracitada. 332 Esse tipo de interpretação da ascese é o que permite afirmar, como Rudolf Malter, que a filosofia schopenhaueriana é, na verdade, uma soteriologia. Cf. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens. 333 Schopenhauer cita como exemplo mais perfeito – embora literário – dessa via de conversão a obra Fausto de Goethe, mais precisamente na história do sofrimento de Gretchen. Cf. MVR, §68, p.497-498, I 464-465. 334 MVR, §68, p.497, I 464. No original alemão: „Selbst Die, welche sehr böse waren, sehen wir bisweilen durch die tiefsten Schmerzen bis zu diesem Grade geläutert: sie sind Andere geworden und völlig umgewandelt.“

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Quanto à negação da vontade para vida que brota da compaixão, ela consiste

no sentimento obtido no olhar através do princípio de individuação e no reconhecimento

da mesma vontade para vida em toda a natureza e, a partir desse conhecimento intuitivo,

do conhecimento das contradições e do sofrimento que é viver, resulta a repulsa pela

própria essência e, assim, um quietivo (Quietiv) universal do querer é produzido no

indivíduo: os motivos individuais se tornam, dessa forma, sem efeito.335

Contudo, ainda parece legítimo perguntar ‘no que consiste a ascese?’. Como

exposto, no que tange à motivação, ao plano do agir, os indivíduos buscam a

autoconservação e a reprodução, sendo guiados pelo conhecimento abstrato para o

desenvolvimento e manutenção de seu caráter, de seu ser (esse). A ascese consiste

exatamente na autossupressão contínua do próprio caráter, na negação, não do

fenômeno, mas da essência do indivíduo. Com isso, ele acaba por negar a

autoconservação, e a reprodução, i.e., ele acaba por negar o seu caráter, seu ser, o seu

esse, e, por conseguinte, ele acaba por negar o seu agir, o seu operari. Aquele que nega

a própria vontade, aquele que suprime o próprio caráter, o asceta, não age, e acaba por

se colocar no plano da inação. Essa ocorrência evidencia uma contradição considerada

por Schopenhauer como o único ato de liberdade fenomênico: a contradição do

fenômeno consigo mesmo, na qual ocorre a ruptura da cadeia causal em que o então

indivíduo estava inserido.

A não diferença entre o eu e o outro é levada a um grau tão claro que esse

conhecimento produz uma repugnância da vontade por si mesma, transformando os

motivos que antes levavam ao agir em quietivos (Quietiv). O asceta, assim, seria aquele

que realiza de maneira mais plena possível a justiça eterna, na medida em que apreende

o sofrimento do mundo e o seu significado moral, fazendo com que seja possível a

supressão de todo sofrimento. A ascese consiste na abolição do princípio de

individuação e de todas as figuras do princípio de razão suficiente, o que significa a

fusão com o mundo e o fim mesmo desse, uma vez que sem sujeito não há objeto –

elementos que, ao estabelecer uma correlação de dependência, possibilitam a existência

do plano representacional: “Acompanhando a completa supressão do conhecimento,

também o resto do mundo desapareceria no nada, pois sem sujeito não há objeto.”336

Todavia, quê é ascese não se pode explicar, dado que ela não pode ser reportada ao 335 Cf, MVR, §70, p.509, I 477. 336 MVR, §68, p.483, I 449. No original alemão: „Mit gänzlicher Aufhebung der Erkenntniß schwände dann auch von selbst die übrige Welt in Nichts; da ohne Subjekt kein Objekt.“

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princípio de razão, exatamente aquilo que é o explicar: reportar um fenômeno ao

princípio de razão em uma de suas quatro figuras. Assim, dada a impossibilidade de

explicar quê é ascese, sendo possível apenas a sua descrição, Schopenhauer alega que

tal evento constitui um grande mistério.

Ao assumir que a ética tem como escopo de investigação o agir dos

indivíduos, pode-se inferir que a ascese, ao ser caracterizada pela inação e pela quebra

voluntária e constante do querer, pode ser considerada como uma ruptura com a ética,

ou o seu ultrapassamento.337 Em verdade, existe um grande debate hermenêutico acerca

da filosofia schopenhaueriana, e, consequentemente, de sua ética.

O próximo capítulo dessa tese visa um pequeno mapeamento das

contribuições que nos podem ser úteis na exposição de nossa temática, tal como os

estudos e o resgate do conceito de escola de Schopenhauer realizado pelo Centro

interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università

del Salento, encabeçados pelo presidente da seção italiana da Schopenhauer

Gesellschaft, o professor Dr. Domenico Fazio, os estudos e a contribuição incontornável

do professor Rudolf Malter, o foco na questão social proposto pelo professor Ludger

Lütkehaus, as contribuições do debate brasileiro sobre a filosofia schopenhaueriana,

bem como a construção da problemática acerca dos direitos humanos por Ernst

Tugendhat e a sua análise das contribuições da teoria schopenhaueriana para esse

debate.

337 A tese da ruptura entre a ética e ascese é tratada de forma detida e minuciosa por Jörg Salaquarda na segunda parte de uma coletânea póstuma de escritos seus, a qual remeto o leitor que tiver curiosidade sobre o assunto: SALAQUARDA, J. Die Deutung der Welt. Jörg Salaquardas Schriften zu Arthur Schopenhauer. Konstantin Broese, Matthias Kossler, Barbara Salaquarda (Ed.). Würzburg: Königshausen & Neumann, 2007.

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3 Schopenhauer: Leitores e Leituras

Quando se trata da filosofia schopenhaueriana – e talvez do estudo de

filosofia em geral – é muito comum encontrar, por um lado, análises cuja abordagem é

feita de forma simplória e, por outro lado, análises muito competentes e densas. As

primeiras pecam, em geral, por não se aprofundarem e focarem apenas no que é mais

recorrente da filosofia do autor, não fugindo do lugar comum já enunciado diversas

vezes, e, não raro, acabam por ser injustas em sua exposição ao apenas repetirem os

jargões consagrados emitidos à obra pelos comentadores. O segundo tipo de análise,

quando fixado e imobilizado por uma rigidez metodológica de interpretação, acaba por

se tornar um rico exercício de exegese, que delimita o papel da teoria do autor na

história da filosofia, mas que não rompe os limites impostos à teoria pela sua própria

época, i.e., a análise não cria nem abre possibilidades de problematização diferentes do

cânone estabelecido. Ambas, quando procedem de tais formas, acabam deixando de

lado aspectos ricos, importantes, e potentes das teorias que analisam. No que tange à

ética schopenhaueriana, temáticas como as doutrinas do direito e da política são

consideradas assuntos ainda menores,1 muitas vezes pelos próprios estudiosos que se

debruçam sobre a obra do autor. Podemos recorrer, para fazer uma contraposição a esse

fato que parece ser dominante na literatura sobre Schopenhauer, às palavras de abertura

da conferência do professor Ludger Lütkehaus por ocasião da inauguração do Centro

interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università

del Salento em 2006 na cidade de Lecce, Itália: “[…] Schopenhauer não pode ser

descrito, politicamente e socialmente, de maneira unívoca, como muitas vezes uma

historiografia caluniosa nos tenta fazer acreditar”.2 As palavras do professor Lütkehaus

1 Podemos citar como exemplo o livro de Zoccoli que analisa “as duas obras menores de Arthur Schopenhauer”. Segundo o autor os aspectos menores da teoria schopenhaueriana seriam: (i) sobre a liberdade da vontade humana (Über die Freiheit des menschlichen Willens) e (ii) sobre o fundamento da moral (Über das Fundament der Moral). Dentro desses aspectos menores, enquadra-se a doutrina do direito, a qual recebe alguma atenção na análise. Cf. ZOCCOLI, E. Di due opere minori di Arturo Schopenhauer. Modena: Libreria Editrice G.T. Vicenzi e Nipote, 1898. 2 LÜTKEHAUS, L. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo? In: FAZIO, D.; KOßLER, M.; LÜTKEHAUS, L. (Orgs.). Arthur Schopenhauer e la sua scuola: Per l'inaugurazione del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento. A cura di Fabio Ciracì, Domenico M. Fazio, Francesca Pedrocchi. Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus, Vol. 1. Lecce: Pensa Multimedia, 2007, p.16. O artigo doravante será abreviado por Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, seguido de indicação de página. No texto italiano lê-se: “A vederci meglio,

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são importantes porque apontam para um horizonte amplo de possibilidades

hermenêuticas em disputa, fato verificado pelas leituras e interpretações contrastantes

de diversos intelectuais e historiadores da filosofia. Esse capítulo será dedicado ao

mapeamento de algumas interpretações caras ao nosso estudo, as quais demonstram a

riqueza da filosofia schopenhaueriana, e que podem vir a corroborar e auxiliar na

estruturação e defesa de nossa tese.

3.1. A Escola de Schopenhauer – A contribuição dos Estudos Italianos

Uma das grandes contribuições do Centro interdipartimentale di ricerca su

Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento foi o resgate e a

consolidação do rompimento com uma certa tradição até então estabelecida – a qual

isolava Schopenhauer da atmosfera e panorama culturais de seu tempo –,

sistematizando, difundindo e publicizando o legado filosófico do autor e suas

influências em outros filósofos, o que foi possível mediante a análise histórico-crítico-

filológica da disputa em torno do conceito que conhecemos por Escola de

Schopenhauer (Schopenhauer-Schule).3

tuttavia, lo stesso Schopenhauer non si descrive, politicamente e socialmente, in maniera univoca, come invece vuol da sempre farci credere una maldicenza storiografica.” 3 Um primeiro texto no qual o professor Domenico Fazio apresenta uma introdução e sistematização do desenvolvimento histórico e das disputas em torno do termo escola de Schopenhauer – em seus sentidos lato e estrito – foi publicado por ocasião da fundação do Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento no primeiro livro da coleção Schopenhaueriana, publicação do centro italiano que promove estudos relativos ao autor. Cf. FAZIO, D., La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto. In: FAZIO, D.; KOßLER, M.; LÜTKEHAUS, L. (Orgs.). Arthur Schopenhauer e la sua scuola: Per l'inaugurazione del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento. A cura di Fabio Ciracì, Domenico M. Fazio, Francesca Pedrocchi. Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus, Vol. 1. Lecce: Pensa Multimedia, 2007, p.35-76. Doravante abreviado por La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto, seguido de indicação de página. Posteriormente, no ano de 2009, o segundo livro da coleção Schopenhaueriana é lançado, trazendo além de uma contextualização mais pormenorizada e aprofundada do conceito de Escola de Schopenhauer, uma antologia de textos dos – por assim dizer – membros dessa escola, traduzidos do alemão para o italiano. Dentre esses discípulos – denominados evangelistas, metafísicos, heréticos e pais fundadores – podem-se encontrar traduções de textos de Friederich Dorguth, Julius Frauenstädt, Ernst Otto Lindner, August Gabriel Kilzer, David Asher, Carl Georg Bähr, Wilhelm Gwinner, Julius Bahnsen, Eduard von Hartmann, Philipp Mainländer, Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Georg Simmel, Max Horkheimer, Paul Deussen, Hans Zint, Arthur Hübscher, e Rudolf Malter. O livro oferece, assim, um cuidadoso, importante, e denso material de estudo, reunido em torno da relação desses autores com a filosofia de Schopenhauer. Cf. FAZIO, D.; KOßLER, M.; LÜTKEHAUS, L. (Orgs.). La Scuola di Schopenhauer: Testi e contesti.

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O próprio Schopenhauer considerava ter uma escola de seguidores,

separando e classificando-os: os discípulos (Jünger) e apóstolos (Apostel) não

escreviam sobre ele, enquanto os evangelistas (Evangelisten) eram aqueles que

escreviam sobre a sua filosofia – “quem por ele [Schopenhauer] pega a pluma para

escrever era [considerado] um evangelista” (Wer für ihn die Feder ergriff, war ein

Evangelist), conforme relato de Robert von Hornstein.4 Os apóstolos e evangelistas

possuíam relação direta e pessoal com Schopenhauer, e eram aqueles considerados por

ele, de fato, como a sua escola.5

Essa denominação foi difundida, como recorda Domenico Fazio,6 por Kuno

Fischer no nono tomo de sua obra História da Filosofia Moderna (Geschichte der

neuern Philosophie),7 e é reconhecida pelo professor salentino como a escola de

Schopenhauer em sentido estrito, em contraposição ao que fora anteriormente definido

por Eduard von Hartmann8 em seu artigo Die Schopenhauer’sche Schule (A Escola de

Schopenhauer)9 e largamente aceito na historiografia filosófica como o sentido lato do

conceito. Pode-se ler no texto de Hartmann:

A cura del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola. In: Schopenhaueriana - Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus, Vol. 2. Lecce: Pensa Multimedia, 2009. Doravante abreviado por La Scuola di Schopenhauer, sendo indicado o autor e artigo a que se refere, e a página da citação. Em 2014 uma versão condensada e reduzida desse texto foi redigida pelo professor Fazio em português e publicado pelo grupo APOENA: FAZIO, D. A Escola de Schopenhauer. In: CARVALHO, R.; COSTA, G.; MOTA, T. (Orgs.) Nietzsche – Schopenhauer: metafísica e significação moral do mundo. Fortaleza: EdUECE, 2014, v.II, p.11-36. Doravante abreviado por A Escola de Schopenhauer, seguido de indicação de página. 4 SCHOPENHAUER, A. Arthur Schopenhauer Gespräche: Neue, stark erweiterte Ausgabe Herausgegeben von Arthur Hübscher. Stuttgart Bad Cannstatt: Friedrich Frommann Verlag, 1971, p.219. 5 Cf. La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto, p.35. 6 La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.16; e A Escola de Schopenhauer, p.11. 7 Cf. FISCHER, K. Schopenhauers Leben, Werke und Lehre [1893]. In: Geschichte der neuen Philosophie, 9 Bde., Heidelberg: Gedächtnis-Ausgabe 1934, Bd. IX, p.103-113. Disponível em: https://archive.org/stream/schopenhauersle01fiscgoog#page/n6/mode/2up. Acesso em 07 fev. 2017. 8 Sobre Hartmann consultar o cuidadoso estudo de Martia Vitale: VITALE, V. Dalla Volontà di Vivere All'inconscio: Eduard von Hartmann e la trasformazione della filosofia di Schopenhauer. In: Schopenhaueriana – Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus, Vol. 8. Lecce: Pensa Multimedia, 2014. 9 VON HARTMANN, E. Die Schopenhauer'sche Schule. In: Philosophische Fragen der Gegenwart. Berlin: 1885, p.38-57; La scuola di Schopenhauer, VON HARTMANN, E., La Scuola di Schopenhauer, p.379-393.

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Pode-se com direito falar de uma escola schopenhaueriana no sentido mais largo do termo, se se compreende todas as tentativas, a partir dele, de uma transformação de sua filosofia.10

Dois anos antes da intervenção de Hartmann no debate sobre a definição do

conceito de escola de Schopenhauer, em 1881, uma aluna sua, Olga Plümacher,

escrevera uma monografia em polêmica com o neokantiano Hans Vaihinger, a primeira

monografia sobre a temática que “não só indicava as linhas metodológicas para a

identificação da escola de Schopenhauer latu sensu, mas esboçava um primeiro e

provisório elenco dos seus principais expoentes.”11 É de autoria também de uma

mulher, Esther Mon-Hua-Laing, a primeira tese de doutoramento, em 1932, sobre a

Escola de Schopenhauer, intitulada Die Ethik der Schule Schopenhauers.12

Em linhas gerais,13 tem-se, assim, a apresentação da grande divisão operada

no conceito de escola de Schopenhauer: (i) o seu sentido estrito, englobando aqueles

que mantinham relação pessoal e eram considerados a sua escola pelo próprio filósofo, e

(ii) o seu sentido lato, objeto de disputa teórica, da qual tomamos a definição dada

provisoriamente por Fazio como guia: “São schopenhauerianos em sentido lato todos os

pensadores que se dizem schopenhauerianos ou que foram considerados

schopenhauerianos”.14

Em seu círculo de amizades e seguidores que não escreviam sobre a sua

filosofia, dois juristas se destacavam: Johan August Becker (1803-1881),15 considerado

10 La scuola di Schopenhauer. VON HARTMANN, E., La Scuola di Schopenhauer, p.380. Nossa tradução foi feita a partir da tradução italiana: “Ma si può a buon diritto parlare di una scuola di Schopenhauer nel senso piú largo del termine, se vi si comprendono tutti i tentativi, partiti da lui, di una trasformazione della sua filosofia.” 11 La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto, p.56. A passagem citada em italiano: “Olga Plümacher, in questo modo, in quella che è la prima monografia sul tema della nostra indagine, non solo indicava le linee metodologiche per l’identificazione della scuola di Schopenhauer latu sensu, ma stilava anche un primo, provvisorio censimento dei suoi principali esponenti.” 12 La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto, p.69; Cf. MON-HUA LIANG, E. Die Ethik der Schule Schopenhauers. Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwürde genehmigt von der Philosophischen Fakultät der Friedrich-Wilhelms-Universität zu Berlin. Charlottenburg, 1932. 13 Como já indicado, uma apreciação detida, pormenorizada, e que reconstitui historicamente o desenvolvimento e as disputas em torno do conceito de escola de Schopenhauer podem ser consultadas em La Scuola di Schopenhauer e La “scuola” di Schopenhauer. Per la storia di un concetto. 14 A Escola de Schopenhauer, p.12; e La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.72. Nesse segundo texto lê-se em italiano: “[…] chi scrive ha proposto di considerare facenti parte della scuola di Schopenhauer in senso lato tutti i pensatori che si sono detti schopenhaueriani o che sono stati detti tali.” 15 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.21-22; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.18.

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pelo filósofo como o seu apóstolo mais sábio e Adam Ludwig von Doss (1820–1873),16

o apóstolo João, chamado assim por ser o mais jovem, e considerado por Schopenhauer

o seu apóstolo mais profundo. Schopenhauer tentou-os convencer, sem sucesso, a

escrever sobre a sua filosofia. De um outro apóstolo, David Asher (1818-1890),17 o

apostolozinho, Schopenhauer esperava as traduções de suas obras para a língua inglesa.

Asher era chamado de apóstolo por Schopenhauer mesmo tendo escrito uma série de

artigos sobre o filósofo, os quais não o agradaram. Por essa razão, Schopenhauer não

concedeu a ele o título de evangelista.18 Não bastava escrever sobre Schopenhauer: para

ser um evangelista parecia ser necessário escrever algo que lhe agradasse.

Ainda no sentido estrito de sua escola, podemos elencar sete evangelistas.

Chamado por Schopenhauer de proto-evangelista, Friedrich Dorguth (1776-1854)19 foi

o primeiro discípulo a escrever sobre o filósofo e foi o responsável pela célebre

definição do autor como o Kaspar Hauser da filosofia.20 O chamado arquievangelista,

Julius Frauenstädt (1813-1879),21 ativo divulgador da filosofia schopenhaueriana, foi o

primeiro editor dos manuscritos póstumos (handschriftlicher Nachlass) de

Schopenhauer. Por conta disso, envolveu-se em uma polêmica22 acerca de um

manuscrito inédito do filósofo, o Eis eauton, com um outro evangelista, Wilhelm

Gwinner (1825-1917),23 advogado e testamentário de Schopenhauer, o qual Frauenstädt

acusou de plágio e da destruição de tal manuscrito. Fazio, por conta de tal litígio, sugere

que Gwinner seja chamado de evangelista apócrifo.

16 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.31-32; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.18. 17 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.46-50; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.16. 18 Cf. A escola de Schopenhauer, p.16. 19 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.17-21; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.12-13. 20 Cf. A escola de Schopenhauer, p.13 e DORGUTH, F. Grundkritik der Dialektik und des Identitätssystems, mit einem Anhange von Korollarien, Erläuterungen und Kritiken, insbesondere mit Rückblick auf Bern. Magdeburg: Cottas Briefe über Alexander von Humboldt’s Kosmos, 1849, p.3. (Disponível em https://books.google.com.br/books?id=sLsAAAAAcAAJ&hl=pt-BR&pg=PA5#v=onepage&q&f=false. Acesso em 04 jan. 2015). 21 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.22-31; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.13-14. 22 Sobre essa polêmica Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.37-41 e p. 43-46; Cf. também o ensaio de Franco Volpi na introdução ao livro SCHOPENHAUER, A. A arte de conhecer a si mesmo. Org. de Franco Volpi; trad. Jair Barboza e Silvana Cabucci Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 23 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.43-46; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.17-18.

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Ernst Otto Lindner (1820-1867),24 ao ter a sua venia legendi – a permissão

para lecionar na Universidade – suspensa por conta de suas escassas convicções cristãs-

religiosas, acabou por tornar-se jornalista. Foi tão ativo na difusão da filosofia

schopenhaueriana que acabou por receber o apelido de doctor indefatigabilis (doutor

incansável). Lindner destaca-se por pacientemente ter seguido as pistas, localizado e

transcrito de próprio punho o artigo em inglês Iconoclasm in German Philosophy de

John Oxenford,25 o qual fez a esposa traduzir, publicando-o com diversos acréscimos

sob o título de Deutsche Philosophie im Auslande (A filosofia alemã no exterior),26

Tratava-se do primeiro escrito sobre Schopenhauer fora da Alemanha. O responsável

pela descoberta desse artigo foi o advogado Martin Emden (morto em 1858). Sobre ele

são escassas as informações, sendo ele denominado por Fazio o sétimo apóstolo.27

Depois da publicação desse artigo, a popularidade e, consequentemente, o número de

discípulos de Schopenhauer aumentaram.

O aprendiz evangelista, August Gabriel Kilzer (1798-1864),28 ganhou esse

apelido de Schopenhauer por ter escrito apenas duas breves resenhas sobre a obra de seu

mestre, não se tornando, assim, um evangelista pleno. Por outro lado, Carl Georg Bähr

(1833-1893)29 escreveu a primeira monografia crítica e científica sobre Schopenhauer,

recebendo grandes elogios do filósofo, e, mesmo assim, não recebeu o título de

evangelista por parte de Schopenhauer.

Ocorre ainda mencionar o desejo de Schopenhauer em ter outros dois

seguidores: Christian Weigelt (1816-1885),30 um humilde pregador católico que havia

escrito uma história da filosofia na qual interpretava a doutrina da negação da vontade

24 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.32-41; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.14-15. 25 Cf. OXENFORD, J. Iconoclasm in german philosophy. In: Westminster and foreign quarterly review, v. III, n. 2, jan. 1853, p.388-407. Existe uma transcrição do texto em formato digital disponível em um site francês dedicado a Schopenhauer e sua filosofia: http://www.schopenhauer.fr/oeuvres/iconoclasm.html (Acesso em 05 jan. 2015). 26 LINDNER, E. Deutsche Philosophie im Auslande. In: Königlich Privilegirte Berlinische Zeitung von Staats - und Gelehrten Sachen, 1853. Este artigo foi traduzido para o italiano a partir da análise cotejada entre o original em inglês e a tradução alemão. Dessa forma, na tradução italiana, as adições de Lindner, tais como as alterações nos textos, foram grafadas. Cf. La Scuola di Schopenhauer, LINDNER, E., La Filosofia tedesca all’estero, p.263-289. 27 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.42. 28 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.42; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.16. 29 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.50-65; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.17. 30 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.65.

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em uma chave cristã, e no qual Schopenhauer vislumbrava a possibilidade de ganhar um

novo evangelista. Já G.W. Körber (1817-1885),31 em 1857, ministrou um dos primeiros

cursos universitários sobre a filosofia de Schopenhauer.

Assim, no que se refere à escola de Schopenhauer em senso estrito,

podemos elencar esses dez seguidores e o desejo do filósofo em agregar mais outros

dois. Tal era, exposta de modo sucinto e resumido, a escola de Schopenhauer em

sentido estrito. Mas sobre o sentido lato, o que poderia ser dito? Tomemos duas outras

definições, além da definição provisória supracitada, como pontos de apoio para nossa

exposição. A primeira delas é de Olga Plümacher:

Nós interpretamos o conceito de escola em um sentido mais lato e consideramos schopenhauerianos não só os que na doutrina dele encontraram paz e trégua para o espírito, mas também ainda com mais razão os que se afastam dele: e os schopenhauerianos são mais interessantes à medida que menos certa é a consideração deles como schopenhaueriano.32

A segunda, de autoria de Fazio:

Da existência, junto à escola de Schopenhauer em sentido estrito, de uma escola de Schopenhauer tomada em sentido lato, ou seja, de um grupo de pensadores que, mesmo não tendo sido discípulos diretos do sábio de Frankfurt, eram de vários modos inspirados pelo seu pensamento e o desenvolveram seguindo direções autônomas e muitas vezes originais, discutiu-se longamente ao final do século XIX.33

Essas definições abrem as possibilidades para sistematização do legado

schopenhaueriano na história da filosofia de uma forma mais ampla. O centro italiano

propõe uma interessante hipótese de interpretação e organização dos autores

identificados como membros da escola de Schopenhauer em sentido lato.

Aqueles que tomam a metafísica da vontade, desenvolvendo-a e alterando-a,

seriam denominados metafísicos,34 figurando entre eles a real-dialética de Julius

31 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.65. 32 PLÜMACHER, O. Zwei Individualisten der Schopenhauer'schen Schule. Wien 1881, p. 2 apud A Escola de Schopenhauer, p.19. 33 La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.66. No texto em italiano lê-se: “Dell’esistenza, accanto alla scuola di Schopenhauer in senso stretto, di una scuola di Schopenhauer intesa in senso lato, ossia di un gruppo di pensatori che, pur non essendo stati discepoli diretti del Saggio di Francoforte, si erano a vario titolo ispirati al suo pensiero e lo avevano sviluppato seguendo direzioni autonome e talvolta originali, si è discusso lungamente alla fine dell’Ottocento.” 34 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.72-132; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.22-27.

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Bahnsen (1830-1881), a filosofia do inconsciente de Eduard von Hartmann (1842-1906)

– citado anteriormente –, e a filosofia da redenção de Philipp Mainländer (1841-1876).35

Considerado por Fazio como os padres da igreja,36 tomando a definição de

Hans Zint – responsável, também, pela concepção de toda a sociedade Schopenhauer

como uma instituição religiosa37 –, ou como os pais fundadores, enquadram-se aqui três

daqueles que presidiram a Schopenhauer-Gesellschaft (Sociedade Schopenhauer): o

fundador da Sociedade Schopenhauer, Paul Deussen (1845-1919) foi o seu primeiro

presidente (1911–1919); após Deussen, Leo Wurzmann presidiu a sociedade por quatro

anos (1920-1924), contribuindo apenas com um curto artigo sobre Schopenhauer no

Schopenhauer-Jahrbuch de 1922,38 não sendo enquadrado nessa definição por Fazio.

Hans Zint (1882-1945) foi o sucessor de Wurzmann no comando da Schopenhauer-

Gesellschaft (1924–1936). Judeu, pacifista e socialista, teve importante papel na

manutenção da autonomia e na resistência à instrumentalização da instituição39 durante

a ascensão do regime nacional-socialista. Foi obrigado a renunciar à presidência da

sociedade.

Após Zint, Arthur Hübscher (1897-1985) assumiu a presidência da

sociedade Schopenhauer pelo período de 1937 a 1983, sendo também ele considerado

por Fazio um dos padres da igreja. Hübscher foi um pesquisador incansável,

responsável pela edição de diversas obras de Schopenhauer, embora ele também tenha

sido responsável pelo período no qual a instituição ficou fechada a pesquisadores e

professores universitários – no que ele julgava um ato de coerência com a filosofia de

Schopenhauer.40

35 Sobre a filosofia de Mainländer Cf. CIRACÌ, F. Verso l’assoluto nulla: La filosofia della redenzione di Philipp Mainländer. Lecce: Pensa Multimedia, 2006. 36 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.188-211; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.33-36. 37 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.188. 38 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.197 e Cf. WURZMAN, L. Schopenhauer als Lebensretter. In: Jahrbuch der Schopenhauer-Gesellschaft für das Jahr 1922, Band 11. Heidelberg: Carl Winters Universitätsbuchhandlung, p.108-113, 1922. 39 Para uma análise pormenorizada das tentativas de instrumentalização e nazificação do pensamento de Schopenhauer Cf. CIRACÌ, F. In lotta per Schopenhauer: La “Schopanhauer-Gesselschaft” fra ricerca filosofica e manipolazione ideologica 1911-1948. In: Schopenhaueriana - Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus. Lecce: Pensa Multimedia, 2010. v.6. 40 É bem conhecida a opinião de Schopenhauer sobre a filosofia universitária. Cf. PP, Ueber die Universitäts-Philosophie.; Cf. SCHOPENHAUER, A. Sobre a filosofia universitária. Tradução, introdução e notas Maria Lucia Mello Oliveira Cacciola e Márcio Suzuki. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Apenas para registro, não mais constando na denominação de padres da

igreja, em 1984 Wolfgang Schirmacher preside a sociedade Schopenhauer, antes de

Rudolf Malter (1937-1994) assumir o cargo. Malter presidiu a sociedade entre 1985 e

1992 e é lembrado pelo esforço na superação da organização da sociedade como uma

confraria religiosa, transformando-a em uma instituição moderna, em uma comunidade

aberta e dedicada à pesquisa científica.41 De 1992 a 1999 a instituição foi conduzida por

Heinz Gerd Ingenkamp e, no ano 2000, Matthias Koßler assumiu a sua presidência,

sendo grande responsável pelo diálogo da matriz alemã com as seções da

Schopenhauer-Gesellschaft espalhadas pelo mundo, como a seção brasileira, indiana,

italiana, japonesa, e norte-americana.

Apesar do reconhecimento da misoginia do autor, surpreendentemente é

possível falar de uma escola de Schopenhauer em seu sentido lato formada por um

grupo de seguidoras suas, i.e., é possível falar das mulheres da escola de

Schopenhauer.42 Já citamos o pioneirismo de Olga Plümacher e de Esther Mon-Hua-

Laing. É possível citar, ainda, Malwida von Meysenburg, Lou Salomé, Agnes Taubert e

a tradutora italiana de Schopenhauer Eva Kühn.43

Após uma sucinta reconstrução da história do conceito de escola de

Schopenhauer e de seu contexto na história da filosofia e sua relação com o filósofo,

chegamos ao ponto de classificação mais interessante para o nosso estudo: os

denominados schopenhauerianos em sentido herético. Ao contrário da definição do

sentido estrito da escola de Schopenhauer, que dificilmente será alterada – e as

definições de metafísicos e pais da igreja parecem seguir o mesmo destino –, a lista dos

denominados heréticos parece estar destinada a aumentar cada vez mais.44 A definição

dada por Fazio enuncia: Em conformidade com os critérios metodológicos adotados, os quais consistem no proceder mais por diferença do que por analogia e na

41 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.208. 42 Cf. FAZIO, D. Richard Wagner e as mulheres da escola de Schopenhauer. In: Labirintos da alma: Festschrift aos 60 anos de Oswaldo Giacoia Jr. Organização André Luis Muniz Garcia e Lucas Angioni. Campinas: Editora Phi, 2014, p.191-209. 43 Sobre Eva Kühn Cf. PASSABÍ, M. Eva Kühn e “L’ottimismo trascendentale di Schopenhauer”. In: CIRACÌ, F.; FAZIO, D. (Orgs.). Schopenhauer in Italia: Atti del I convengno nazionale della sezione italiana della Schopenhauer-Gesellschaft San Pietro Vernotico – Lecce 20 e 21 giugno 2013. A cura di Fabio Ciracì e Domenico M. Fazio. In: Schopenhaueriana – collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus. Lecce: Pensa Multimedia, 2013, p.131-140. V.7. 44 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.212.

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consideração como expoentes da escola de Schopenhauer todos aqueles que se dizem schopenhauerianos ou que são chamados assim, é possível individuar um segundo grupo de pensadores que pertencem à escola de Schopenhauer em sentido lato. Eles não aderiram à metafísica da vontade – e por isso não podem ser inseridos entre os “metafísicos” – nem tentaram completar o pensamento de Schopenhauer de modo sistemático, mas desenvolveram sobretudo temas presentes na doutrina ética do sábio de Frankfurt. Isso é, o que caracteriza este desenvolvimento não é a fidelidade à doutrina originária do mestre, mas, ao contrário, a postura crítica e a pesquisa autônoma e original. Por isso, esses pensadores, que não são simples seguidores, podem ser considerados pertencentes à escola de Schopenhauer, mas apenas na condição de serem considerados heréticos.45

Os assim denominados heréticos – aqueles que não se mantiveram

ortodoxos ou completamente fiéis à doutrina schopenhaueriana – desenvolveram de

forma autônoma, até então e em especial, a doutrina ética de Schopenhauer. Entre os

autores identificados pelos estudos do Centro Leccese como schopenhauerianos

heréticos, temos Friedrich Nietzsche (1844-1900),46 o qual tem em Schopenhauer o

mestre inspirador e educador em sua filosofia de juventude, mestre inclusive a ser

confrontado em sua filosofia madura; Paul Rée (1849-1901),47 o psicólogo empírico que

elabora uma teoria pessimista sem a metafísica da vontade;48 Georg Simmel (1858-

1918),49 um schopenhaueriano sem o pessimismo;50 e Max Horkheimer (1895-1973),51

45 La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.132. No texto italiano lê-se: “Conformemente ai criteri metodologici adottati, consistenti nel procedere piú per differenze che per analogie e nel considerare come esponenti della scuola di Schopenhauer tutti coloro i quali si sono detti schopenhaueriani o che sono stati detti tali, è possibile individuare un secondo gruppo di pensatori, che appartengono alla scuola di Schopenhauer in senso lato. Essi non hanno aderito alla metafisica della volontà – e perciò non possono essere compresi tra i “metafisici” – né hanno tentato di completare il pensiero di Schopenhauer in modo sistematico, ma hanno sviluppato soprattutto motivi presenti nella dottrina etica del Saggio di Francoforte. Ciò che caratterizza questi sviluppi non è la fedeltà alla dottrina originaria del maestro ma, al contrario, l’atteggiamento critico e la ricerca di autonomia ed originalità. Perciò, questi pensatori, che non sono dei semplici epigoni, possono essere detti appartenenti alla scuola di Schopenhauer, solo a patto che li si consideri degli eretici.” 46 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.132-148 e p.443-475; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.27-28. 47 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.148-164 e p.476-504; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.28-30. 48 Cf. RÉE, P. Osservazioni psicologiche. A cura di Domenico M. Fazio. In: Schopenhaueriana - Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Matthias Koßler e Ludger Lütkehaus. Lecce: Pensa Multimedia, 2010. v.4. 49 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.164-176 e p.505-525; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.30-31. 50 Cf. RUGGIERI, D. Il conflitto della società moderna: La ricezione del pensiero di Arthur Schopenhauer nell'opera di Georg Simmel (1887-1918). In: Schopenhaueriana - Collana del Centro interdipartimentale di ricerca su Arthur Schopenhauer e la sua scuola dell'Università del Salento diretta da Domenico M. Fazio, Mathias Koßler e Ludger Lütkehaus. Lecce: Pensa Multimedia, 2010. v.3.

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responsável por uma interpretação à esquerda no espectro político do pensamento de

Arthur Schopenhauer. É dele a célebre frase entre os estudiosos de Schopenhauer: “Os

dois filósofos que influenciaram de maneira decisiva o nascimento da Teoria Crítica

foram Schopenhauer e Marx”.52 Essa mesma frase é quase completamente ignorada

pelos estudiosos da Teoria Crítica.

É possível notar, assim, pela potência dos nomes elencados e pela

importância deles na história da filosofia, como interpretações e desenvolvimentos

heréticos da filosofia schopenhaueriana podem ser frutíferos e produtivos, apontando

para novos horizontes e desdobramentos no enfrentamento dos mais variados problemas

postos.

Mantendo essa importância e potencialidade em mente, passamos à análise

de dois estudos hermenêuticos sobre a filosofia de Schopenhauer: o primeiro estudo, de

Rudolf Malter, tornou-se referência da interpretação da filosofia schopenhaueriana, ao,

a partir de uma leitura do conceito de pessimismo como um conceito crítico, entendê-la

como uma soteriologia, ao entendê-la como uma filosofia da salvação na qual o

pessimismo desempenha um papel, além de crítico, quietista; o segundo estudo teve as

bases lançadas pelo professor Ludger Lütkehaus. Ele indaga a existência de uma

esquerda schopenhaueriana – em oposição a uma, por assim dizer, direita

schopenhaueriana – e o que ela seria, a partir da investigação do conceito de

pessimismo e da recusa em interpretar tal conceito como um conceito quietista, que

acabaria por desaguar na inação. Ao contrário, Lütkehaus vê no pessimismo a

possibilidade de repensar a filosofia prática de Schopenhauer.

3.2. Rudolf Malter e o pessimismo crítico schopenhaueriano

Presidente da Schopenhauer-Gesellschaft entre 1985 e 1992, Rudolf Malter

é conhecido principalmente pelo sério trabalho empreendido na pesquisa sobre

51 Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.176-188 e p.526-548; Cf. A Escola de Schopenhauer, p.31-33. 52 HORKHEIMER, M. Kritische Theorie gestern und heute. In: Gesammelte Schriften. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1985, v.8, p. 336. No original em alemão: „Die Beiden Philosophen, welche die Anfänge der Kritischen Theorie entscheidend beeinflußt haben, waren Schopenhauer und Marx.“

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Immanuel Kant e Arthur Schopenhauer, tendo publicado sobre o último livros e artigos

que se consolidaram como clássicos da interpretação do autor.53

No nono capítulo de seu livro Der eine Gedanke: Hinführung zur

Philosophie Arthur Schopenhauers (O pensamento único: introdução à filosofia de

Arthur Schopenhauer) intitulado Abschließende Charakteristik: Pessimismus – ein

kritischer Begriff (Característica conclusiva: Pessimismo – um conceito crítico) Malter

analisa o conceito de pessimismo para além do seu sentido mais trivial – a disposição

em sempre esperar o pior –, expondo a sua função sistemática e sua importância para a

constituição da filosofia do autor.

O termo pessimismo (Pessimismus) aparece oito vezes na obra de

Schopenhauer,54 mas apenas em quatro ocorrências o termo se refere ao pessimismo do

próprio autor, sendo duas delas em seus manuscritos e as outras duas em sua

correspondência, ou seja, em nenhuma das ocorrências o termo aparece em seus escritos

publicados: em 1828, no fragmento póstumo 66 dos Adversaria;55 em 1833, no

fragmento póstumo 49 dos Pandectae II;56 na carta de 15 de julho de 1855 a Julius

Frauenstädt;57 e na carta de 16 de julho de 1860 a Davis Asher, na qual ele fala sobre

seu isolamento e menciona argumentos ad hominem em benefício de seu pessimismo.58

Segundo Malter, a filosofia de Schopenhauer só pode ser denominada

pessimista se pessimismo for entendido como um conceito crítico a partir de um duplo

ponto de vista formal:

53 Cf. MALTER, R. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens. Stuttgart-Bad Cannstatt: Fromman-Holzboog, 1991; Cf. MALTER, R., Der eine Gedanke: Hinführung zur Philosophie Arthur Schopenhauers. Darmstadt: Wiss. Buchges., 2010. Doravante abreviado por Der eine Gedanke, seguido de indicação de página. 54 Cf. DEBONA, V. A outra face do pessimismo: entre radicalidade ascética e sabedoria de vida. 2013, Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, p.20. Doravante abreviado por A outra face do pessimismo, seguido de indicação de página. Outro texto importante para consulta sobre o pessimismo alemão e que reúne autores como Schopenhauer e seus discípulos é INVERNIZZI, G. Il pessimismo tedesco dell’Ottocento: Schopenhauer, Hartmann, Bahnsen e Mainländer e i loro avversari. Firenze: La Nuova Italia, 1994. 55 Cf. HN III, Adversaria, p.464. 56 Cf. HN IV (1), Pandectae II, p.160. 57 Cf. SCHOPENHAUER, A. Der Briefwechsel. In: Arthur Schopenhauers sämtliche Werke 14., 15. und 16. Band Ergänzungen um neu Aufgefundenes aus den Jahrbüchern der Schopenhauergesellschaft u. Arthur Schopenhauer Gesammelte Briefe. Hrsg. von Paul Deussen. München: R. Piper, 1911-1942, 558, XV 393. Abreviado por Briefwechsel, seguido de indicação do número da correspondência, tomo e página. 58 Cf. Briefwechsel, 809, XV 821.

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1. O conceito de “Pessimismo” destaca-se como um tipo do entendimento do mundo empírico dado, em respeito a um outro tipo de entendimento (que – como ainda se deve realizar – é designado de um lado como eudemonismo, e, de outro, como otimismo). Pessimismo é um modo no qual a razão reflexiva se dirige à experiência da dor. 2. O conceito de “pessimismo” indica o tipo correto do conceito racional dessa experiência, os outros dois termos referem-se ao falso tipo da conceituação racional da existência da dor. Pessimismo é, portanto, um conceito valorativo: ele fala da compreensão correta ou falsa da experiência concreta dada ao ser humano.59

O pessimismo pode, assim, a partir desse duplo ponto de vista formal, ser

entendido como a exata identificação do valor da existência humana.60 Malter precisa a

forma pela qual ele entende o significado de pessimismo na filosofia de Schopenhauer:

segundo ele, em geral, o julgar de maneira pessimista o mundo e, em particular, a

existência humana significa julgar ambos como possuidores de uma tendência ao não

ser.61 Esse juízo é alcançado pela razão reflexiva apenas através da

facticidade/concretude (Faktizität) da dor, mas tal facticidade/concretude só é possível

se sob o domínio do princípio de razão suficiente.62 Tomado como juízo sobre a dor da

existência, constitui-se, por isso, como um juízo sobre o ser e sua finitude no tempo,

finitude esta que consiste na constante ameaça do ser vir-a-ser um não-ser.63 Ser

ameaçado pelo não-ser é o indicador (Index) do fato de que, embora seja, o ser não

deveria ser. E que esse não-dever-ser indica também que em cada ser submetido ao

princípio de razão encontra-se o caráter da culpa (Charakter der Schuld). Assim,

segundo Malter, tomado de forma abstrata em geral, o pessimismo é a visão do caráter

de culpa e da nulidade a serem superados pelos seres submetidos ao princípio de razão64

– superação essa que envolve necessariamente o ultrapassamento de tal princípio.

Malter localiza na obra de Schopenhauer dois pontos fundamentais nos

quais é indicado claramente a função crítica do conceito de pessimismo

59 Der eine Gedanke, p.103. No original alemão: „l. Der Begriff „Pessimismus" hebt sich als eine Art des Verstehens der empirisch gegebenen Welt von einer anderen Art des Verstehens ab (die- wie noch ausgeführt werden wird- zum einen als Eudämonismus, zum anderen als Optimismus zu kennzeichnen ist). Pessimismus ist eine Weise, in welcher sich die reflektierende Vernunft der Leidenserfahrung zuwendet. 2. Der Begriff „Pessimismus“ nennt die richtige Art des vernünftigen Begreifens dieser Erfahrung, die beiden anderen Termini beziehen sich auf die falsche Art des vernünftigen Begreifens der Leidensexistenz. Pessimismus ist demnach ein wertender Begriff: er redet von richtigem und falschem Begreifen der konkret dem Menschen gegebenen Erfahrung.“ 60 Cf. Der eine Gedanke, p.103. 61 Cf. Der eine Gedanke, p.103. 62 Cf. Der eine Gedanke, p.103. 63 Cf. Der eine Gedanke, p.104. 64 Cf. Der eine Gedanke, p.104.

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[...] o primeiro [ponto] na avaliação da aspiração individual para o desempenho na existência afirmativa da vontade dominada pelo princípio de razão; o segundo na avaliação do mundo dado em geral, enquanto esse é elevado a produto de um criador sábio e bom. No primeiro caso, o pessimismo é uma crítica do eudemonismo, no segundo, crítica do otimismo (que deriva de um pensamento teodicéico).65

Tomando a afirmação expressa em MVR II, de que a busca pela felicidade é

o único erro inato do ser humano,66 Malter estabelece uma relação identitária entre a

vontade auto afirmar-se e a busca pela felicidade.

A busca pela felicidade resulta na experiência continua de fragilidade de

cada momento, seja no curto intervalo de prazer que se torna rapidamente tédio, seja na

esperança do querer ser satisfeito e sua frustração, seja na desilusão do querer não

satisfeito. Nesse contexto, o pessimismo, tomado como postura de vida, ganha o papel

de um corretivo da existência (Der Pessimismus als Lebenshaltung gewinnt so die Rolle

des Korrektivs).67 Assim, nas palavras de Malter:

O pessimismo é uma postura teórica e prática, que surge da reflexão racional e da concreta experiência da dor, a qual reconcilia o ser determinado pelo princípio de razão, e uma vez que a forma explícita de uma tal reflexão abstrata fundada na experiência é a filosofia, o pessimismo é a postura genuinamente filosófica, no confronto da existência temporal.68

Rudolf Malter, prosseguindo na derivação das consequências de sua

definição de que o pessimismo é um conceito crítico, acaba por chegar ao ponto em que

não é possível chegar a uma satisfação (Erfüllung) da afirmação da vontade no espaço-

tempo, i.e., não é possível uma solução para o sofrimento no mundo enquanto se está

submetido ao princípio de razão, enquanto se está no plano representacional. O

pessimismo da felicidade (Glücks-Pessimismus) implica no reconhecimento da dor da

existência como a forma de existência efetiva e da fragilidade da existência em meio a

65 Der eine Gedanke, p.105. No original alemão: „[…] zum einen in der Beurteilung des individuellen Strebens nach Erfüllung in der durch den Satz vom Grund beherrschten willensbejahenden Existenz, zum anderen in der Beurteilung der gegebenen Welt im ganzen, insofern diese zum Produkt eines weisen und gütigen Schöpfers erhoben wird. Im ersten Fall ist Pessimismus Eudämonismuskritik, im zweiten Fall Kritik des Optimismus (der aus dem Theodizeedenken hervorgeht).“ 66 Cf. MVR II, Kapitel 49 – Die Heilsordnung, II 729. 67 Der eine Gedanke, p.105. 68 Der eine Gedanke, p.105-106. No original alemão: „Da Pessimismus eine aus vernünftiger Überlegung entstehende, auf der konkreten Leidenserfahrung aufruhende theoretische und praktische Haltung zum Satz-vom-Grund bestimmten Dasein ist, und da die explizite Form einer solchen erfahrungsfundierten abstrakten Reflexion die Philosophie ist, ist Pessimismus di e genuin philosophische Haltung gegenüber der zeitlichen Existenz.“

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essência de dor, em contraposição à expectativa de ausência de dor e à satisfação dos

sentidos.69

Ao expor todos os martírios deste mundo para alguém – e Malter ilustra essa

passagem com exemplos que podem ser encontrados nos diários de viagem de

Schopenhauer, nos quais o filósofo descrevera a própria experiência de observação da

miséria do mundo por ocasião de sua viagem pela Europa quando ainda jovem70 – o

comentador crê no desmonte da tese leibniziana do melhor dos mundos possíveis: diante

da experiência mais elementar da nulidade da existência individual, seria

incompreensível sustentar qualquer otimismo.

A argumentação de Malter acaba por abrir caminho para duas importantes

consequências: (i) a forte contraposição entre o teísmo e o pessimismo – que se tornam,

assim, para ele, termos antitéticos que não podem coexistir,71 dado que, segundo o

comentador, para o pessimismo uma justificativa do mal do mundo estaria fora de

questão, justamente o que o teísmo faz – justificar o mal no mundo; e (ii) pavimenta-se

dessa forma uma das marcas de sua interpretação sobre a filosofia schopenhaueriana: o

seu traço soteriolológico, da redenção (Erlösung) ser alcançada apenas por aqueles

poucos eleitos que atingem a negação da vontade, i.e., da salvação ser obtida para além

das amarras do princípio de razão.

A partir da avaliação pessimista da dor da existência dada, não se segue a

sua falta de sentido e não se recai no niilismo, mas ao contrário: é precisamente com

esta avaliação que o pessimismo se mostra um meio de instrumentalizar o fato dado da

dor e permite o indivíduo ser capaz chegar à negação da vontade. O pessimismo, assim,

é interpretado por Malter como uma das chaves para o quietismo e para a redenção, o

que torna lícito, desse modo, a caracterização da filosofia schopenhaueriana como uma

filosofia soteriológica.

69 Cf. Der eine Gedanke, p.108-109. 70 Cf. SCHOPENHAUER, A. Die Reisetagebücher von Arthur Schopenhauer. Hrsg. von Ludger Lütkehaus. Zürich: Haffmans, 1988. 71 Cf. Der eine Gedanke, p.112-114.

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3.3. Ludger Lütkehaus: Esquerda e Direita na Interpretação da

Filosofia Schopenhaueriana

A quase totalidade dos manuais de filosofia acabam por descrever a filosofia

schopenhaueriana da mesma forma: uma filosofia pessimista, que vê esse como o pior

dos mundos possíveis – em paráfrase satírica ao melhor dos mundos possíveis

enunciado por Leibniz72 –, na qual não ser é melhor que ser, e que a única saída para a

supressão dos sofrimentos e dores do mundo seria a ascese, a negação da vontade para

vida.

Interpretações mais sofisticadas também enunciam a preponderância e o

peso de um pessimismo metafísico que deságua em um quietismo e dão ensejo à

definição da filosofia de Schopenhauer como uma Gelassenheit (serenidade) frente à

essência de sofrimento do mundo, uma Erlösung (redenção), i.e., uma soteriologia,73 ou

em um niilismo, baseados, principalmente, no exame da ética da compaixão e do

ascetismo.74

O professor Ludger Lütkehaus, justamente tomando o quietismo como

critério de classificação, propõe uma distinção entre esse tipo de interpretação citada

acima, a qual pode-se denominar “direita schopenhaueriana”, e uma interpretação em

contraposição a essa, designada “esquerda schopenhaueriana”. Através da indagação

“Seria o pessimismo um quietivo? (Ist der Pessimismus ein Quietismus?),75 o professor

72 “Mas mesmo às evidentemente sofísticas demonstrações leibnizianas de que este é o melhor dos mundos possíveis, pode-se opor séria e honestamente a demonstração de que esse seja o PIOR dos mundos possíveis.” MVR II, Kapitel 46 – Von der Nichtigkeit und dem Leiden des Lebens, II 667. No original alemão: „Sogar aber läßt sich den handgreiflich sophistischen Beweisen Leibnitzens, daß diese Welt die beste unter den möglichen sei, ernstlich und ehrlich der Beweis entgegenstellen, daß sie die schlechtest e unter den möglichen sei.“ 73 Como visto na seção anterior, Rudolf Malter é um importante exemplo de intérprete da filosofia de Schopenhauer como soteriologia. Cf. Arthur Schopenhauer Tranzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens e Der eine Gedanke. 74 Vilmar Debona denominou essa esfera de análise, a esfera da ética da compaixão e do ascetismo, de Grande Ética. Contraposta à Grande Ética, a Pequena Ética englobaria a esfera da sabedoria de vida, i.e., da vida prudente no mundo. Sobre esse aspecto, conferir a próxima seção 3.4 Schopenhauer no Brasil: a esquerda schopenhaueriana ganha força. 75 Cf. LÜTKEHAUS, L. Einleitung II: Pessimismus und Praxis. Umrisse einer kritischen Philosophie des Elends. In: EBELING, H.; LÜTKEHAUS, L (Orgs.). In: Schopenhauer und Marx: Philosophie des Elends - Elend der Philosophie?. Herausgegeben und eingeleitet von Hans Ebeling und Ludger Lütkehaus. Königstein/Ts.: Hain, 1980, p.23-39. Na qual a primeira seção – Ist der Pessimismus ein Quietismus? – coloca a questão do pessimismo ser um quiestismo, e na segunda seção – Ansätze zu einer Praxisphilosophie des Als-Ob – na qual ele introduz a possibilidade de formulação de uma moral do “Como-se” (Als-Ob). Cf. também Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un

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inicia sua reflexão. O primeiro passo que ele toma é estipular o significado mais básico

dos termos a serem analisados, pessimismo e quietismo, nesse contexto. Sobre o

pessimismo ele escreve: E o “pessimismo”? Trata-se de um termo que, como a sua contraposição “otimista”, serve para definir como filosoficamente relevantes os estados de ânimo, os aspectos das sensações da vida, assim como uma constituição psicopatológica de tons depressivos. Aqui, porém, eu gostaria de afrontar o tema a partir de um ponto de vista ontológico, entendendo por “pessimismo” a teoria schopenhaueriana do pior dos mundos possíveis e da identificação da vida com a dor.76

E sobre o quietismo: O quietismo designa aquela teoria herética dos séculos XVII e XVIII, que esperava obter um nível máximo de união mística a partir da completa renúncia do eu, com a total submissão à vontade de Deus, e com a renúncia a qualquer esforço ou atividade – dito nos termos dos adversários: através da total passividade, indiferença e autodestruição – e que, portanto, sob o véu da religiosidade, escondia um culto niilista ao nada.77

Para Lütkehaus, o pessimismo, considerado ontologicamente, não pode ser

entendido como um quietismo, porque ele não pode significar a manutenção do status

quo político e social; ao contrário, ele acaba por engendrar uma filosofia da práxis do

como-se (Als-Ob).78

A investigação do professor baseia-se na constatação de uma compaixão

ativa, a qual ele interpreta como uma possibilidade de desenvolvimento das

potencialidades da esfera prática da filosofia do autor, e no que resulta na tentativa de

minimizar o máximo possível os sofrimentos no mundo. Ele identifica três

quietismo?; e Cf. LÜTKEHAUS, L. Schopenhauer Metaphysischer Pessimismus und „soziale Frage“. Bonn: Bouvier, 1980. 76 Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.15. No texto em italiano: “E il ‘pessimismo’? Si tratta di un termine che, al pari della sua controparte ‘otimistica’, serve a definire come filosoficamente rilevanti gli stati d’animo, gli aspetti delle sensazioni della vita, cosí come una costituizione psicopatologica dai toni depressivi. Qui di seguito, però, vorrei affrontare il tema da un ponto di vista ontologico, intendendo per ‘pessimismo’ la teoria schopenhaueriana del peggiore di tutti i mondi possibili e dell’identificazione della vita con il dolore.” 77 Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.15. No texto em italiano: “Il quietismo designa quella teoria eretica dei secoli XVII e XVIII, che sperava di pervenire ad un livello massimo di unione mistica con la completa rinuncia dell’io, la totale sottomissione alla volontà di Dio, la rinuncia a qualsiasi sforzo e attività – detto nei termini degli avversari: attraverso la totale passività, indifferenza e autodistruzione – e che quindi, sotto il velo della religiosità, nascondeva un culto nichilista del nulla.” 78 Cf. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.16. Deixaremos para entrar em detalhes sobre o que viria a constituir uma filosofia da práxis do como-se na próxima seção deste trabalho.

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características mínimas do que ele chama de “esquerda schopenhaueriana”: (i) o

impulso crítico, (ii) a vontade de mudança, e (iii) a doutrina do menos pior ou do

relativamente melhor.79

Assim, o marco distintivo entre uma direita e uma esquerda

schopenhauerianas seria o fato de, na primeira, os sofrimentos no mundo levarem à

resignação, e, na segunda, à ação na tentativa de tornar esse um menos pior dos mundos

possíveis. Como o comentador escreve: “Schopenhauer se vê de frente à miséria da

vida. Essa miséria transforma-se na sua musa, o impulso do seu despertar.”80 Diante do

sofrimento do mundo, ao invés de resignação, encontram-se as forças que detêm o

potencial transformador.

É muito provável que essa não tenha sido a intenção do professor José

Thomaz Brum quando ele escreveu o posfácio à edição brasileira de MVR II traduzida

por Eduardo Ribeiro da Fonseca, mas ele expõe de forma muito precisa o que seria uma

interpretação precisa da filosofia schopenhaueriana à direita:

Os suplementos ao quarto livro de O mundo como vontade e representação reapresentam ou prolongam os aspectos “graves” e “sérios” da filosofia de Arthur Schopenhauer: a sua ética da negação da Vontade e a sua concepção da existência como um mal. [...] As grandes linhas da filosofia schopenhaueriana lá estão: a sua concepção da onipresença de uma Vontade como força impulsiva, a sua decidida opção pela contemplação como antídoto para a ação, a sua descrição premonitória de um mundo sem Deus “entregue à sua guerra perpétua”, a sua ênfase na renúncia e na negação aponta para um interlocutor incontornável em um mundo mergulhado no ativismo compulsivo e na cega obediência aos ditames do desejo.81

O professor Jair Barboza, retomando o texto de Lütkehaus, escreve o artigo

Sabedoria de vida e práxis em Schopenhauer ou sobre uma possível “esquerda”

schopenhaueriana, no qual pode-se ler: Entendo aqui por direita aquela interpretação da obra de Schopenhauer que vê em sua filosofia uma mera desqualificação teórica da existência e nega a eficiência dessa práxis em vista de uma vida menos ruim em meio a este mundus pessimus. Meu objetivo aqui é evidenciar [...] a possibilidade dessa esquerda que se contrapõe à interpretação da sua filosofia como simples Gelassenheit, simples serenidade em face da nulidade da existência, isto é, uma filosofia

79 Cf. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.16. 80 Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.17. No texto em italiano lê-se: “Schopenhauer si vede di fronte alla miseria della vita. Questa miseria diventa la sua musa, l’impulso del suo risveglio.” 81 BRUM, J. Posfácio. In: O Mundo como vontade de representação, tomo II. Tradução de Eduardo Ribeiro da Fonseca. Curitiba: Editora UFPR, 2014, p. 393-394.

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encharcada de “perfume fúnebre” (Nietzsche), ou comparável a um “belo, moderno e luxuoso hotel à beira do abismo”, como o quer Lukács.82

A filosofia schopenhaueriana pode dar ensejo a ambas as interpretações. Se

recordamos a questão da escravidão como exemplo,83 encontramos e evidenciamos nela

certas divergências, certas nuances e perspectivas acerca dessa questão em diferentes

textos e em diferentes momentos de escrita de Schopenhauer, e verificamos em que

medida esses excertos de sua obra poderiam justificar interpretações feitas de sua

filosofia por outros autores. Aqui, podemos tomar como modelo de polarização entre as

interpretações de direita e de esquerda György Lukács e Max Horkheimer,

respectivamente.

Dentro desse cenário de uma simples contextualização, ou seja, de modo

simples e em linhas gerais, Lukács, no capítulo intitulado Schopenhauer de seu livro

Die Zerstörung der Vernunft (A Destruição da Razão),84 argumenta que o filósofo da

vontade faz uma apologia indireta ao capitalismo – o que segundo ele seria ainda mais

perigoso –, o que o faz caracterizar Schopenhauer como um dos principais expoentes da

filosofia burguesa, da filosofia que defende a ordem social vigente, da filosofia que

prega a falta de sentido da atuação política. Podemos resumir ainda mais o ponto de

vista defendido por Lukács ao afirmar que a interpretação apresentada por ele entende o

pessimismo de Schopenhauer como um quietismo, o qual obstrui a ação e mudanças

políticas e sociais. Esse é o cerne da questão para o filósofo húngaro e o fator que

engendra as duras críticas por ele efetuadas. No que se refere exclusivamente ao

conceito de escravidão, algumas das passagens de Schopenhauer poderiam corroborar o

ponto de vista de Lukács, como as passagens já citadas acima de MVR II e o capítulo IX

de PP.

Por outro lado, teríamos – também de forma extremamente simplificada –

Horkheimer e o peso que ele dá à ética da compaixão, baseado em como ele interpreta o

82 BARBOZA, J. Sabedoria de vida e práxis em Schopenhauer ou sobre uma possível “esquerda” schopenhaueriana. In: Filosofia alemã de Kant a Hegel. Organização de Marcelo Carvalho e Vinicius Figueiredo. São Paulo: ANPOF, 2013, p.264. 83 Cf. a seção 2.2.5 O Subjugar a Vontade de Outro Indivíduo: Pobreza, Proletariado, Escravidão e Servidão, p.64 do nosso estudo. 84 O capítulo foi editado no livro Schopenhauer und Marx. Cf. LUKÁCS, G. Schopenhauer. In: EBELING, H.; LÜTKEHAUS, L. Schopenhauer und Marx: Philosophie des Elends - Elend der Philosophie?. Herausgegeben und eingeleitet von Hans Ebeling und Ludger Lütkehaus. Königstein/Ts.: Hain, 1980. p.60-83.

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pessimismo de Schopenhauer em seus textos85 – em especial Schopenhauer und die

Gesellschaft86 (Schopenhauer e a Sociedade), de 1955, e Die Aktualität

Schopenhauers87(A Atualidade de Schopenhauer), de 1961 –, como fatores de

resistência ao imobilismo social. Para Horkheimer, a compaixão universal é a forma

pela qual é possível combater e diminuir os sofrimentos no mundo que nos circunda e

fomentar a solidariedade entre os seres humanos, solidariedade essa que é tão cara à

tradição marxista.88

Horkheimer enxerga em Schopenhauer uma consolação, porque a

compaixão e a solidariedade entre os seres viventes seriam os dois verdadeiros e únicos

elos entre eles e, por isso, uma possibilidade de melhoria da condição no mundo. Trata-

se de uma solidariedade que pode unir os seres humanos por meio da miséria comum,

do sofrimento compartilhado em um mundo hostil, ou seja, trata-se da possibilidade de

fazer frente às consequências ruins da vontade cega e irracional.89 Pode-se inferir que

Horkheimer enxerga em Schopenhauer o filósofo que ensina a olhar a realidade para 85 Horkheimer escreveu cinco textos sobre a filosofia de Schopenhauer: (i) Schopenhauer e a sociedade: HORKHEIMER, M. Schopenhauer und die Gesellschaft. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1955, Band 36. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.49-57, 1955; (ii) A atualidade de Schopenhauer: HORKHEIMER, M. Die Aktualität Schopenhauers. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1961, Band 42. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.12-25, 1961; (iii) Religião e filosofia: HORKHEIMER, M. Religion und Philosphie. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1967, Band 48. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.3-9, 1967; (iv) Pessimismo hoje: HORKHEIMER, M. Pessimismus heute. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1971, Band 52. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.1-7, 1971; (v) O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião: HORKHEIMER, M. Bemerkungen zu Schopenhauers Denken im Verhältnis zu Wissenschaft und Religion. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1971, Band 53. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.71-79, 1972. Esse último texto foi traduzido e comentado pelo professor Flamarion Caldeira Ramos: O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião. In: Cadernos de Filosofia Alemã São Paulo, v.XII, p.99-128, jul. – dez. 2008. Para uma análise crítica sobre a hipótese da influência de Schopenhauer nos anos de formação de Horkheimer Cf. La Scuola di Schopenhauer, FAZIO, D., La scuola di Schopenhauer: I contesti, p.176-188. 86 Cf. HORKHEIMER, M. Schopenhauer und die Gesellschaft. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1955, Band 36. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.49-57, 1955. 87 Cf. HORKHEIMER, M. Die Aktualität Schopenhauers. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1961, Band 42. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, p.12-25, 1961. 88 Lütkehaus escreve: “Aquilo que nos Chandogya-Upanishad é apresentado na fórmula ‘Tat twan asi’, ‘isto és tu’, o qual aparece no marxismo como um termo fascinante chamado ‘solidariedade’, em Schopenhauer é identificado na compaixão”. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.24. Em italiano lê-se: “Ciò che nella Chandogya-Upanishad è reso nella formula ‘Tat twan asi’, e cioè ‘questo sei tu’, cioè che, nel marxismo, con un termine affascinante si chiama ‘solidarietà’, in Schopenhauer si identifica nella compassione.” 89 Cf. VINCERI, P. Studi su Schopenhauer. Centro Stampa Baiese: Bolonha, 1990, p.48.

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além dos esquemas ideológicos, abrindo a possibilidade para que a solidariedade entre

os seres viventes seja a via de transformação do mundo e do estar no mundo.90

No penúltimo parágrafo de seu texto Die Aktualität Schopenhauers é

possível ler uma passagem que condensa alguns dos motivos pelos quais é possível

acreditar no fato de o teórico crítico apreciar tanto Schopenhauer:

Agora posso dizer claramente por que Schopenhauer é um professor atual. A doutrina da vontade cega e eterna retira do mundo o falso fundamento de ouro, o qual a antiga metafísica apresentava. Ao mesmo tempo que, em oposição ao positivismo, ela exprime o negativo e o preserva no pensamento, é exposto o motivo da solidariedade dos seres humanos e seres em geral, o abandono. Nenhuma miséria será compensada em outro mundo. O ímpeto a remediar esse mundo nasce da incapacidade de considerá-lo com pleno saber dessas pragas e tolerá-las se existir a possibilidade de freá-las. Para tal solidariedade, originada da falta de esperança, o conhecimento do princípio de individuação é secundário. Quanto mais sublime e quanto menos endurecido é um caráter, mais indiferente é para ele a proximidade ou distância ao próprio eu, e muito menos ele diferencia o distante e o próximo ao trabalhar ambos, trabalho que ele não pode deixar mesmo quando se torna igual a Sísifo. O temporal presta auxílio contra a cruel eternidade, e isso quer dizer moralidade em sentido schopenhaueriano. Mesmo o mito da transmigração das almas, no qual depois da morte a alma sem tempo e sem espaço encontra o corpo, que deverá refletir o estado do seu processo de purificação, não possui influência sobre a moral, caso contrário ele permaneceria um cálculo. A cruel estrutura da eternidade foi capaz de gerar a comunidade dos abandonados, assim como a injustiça e o terror na sociedade tiveram como consequência a comunidade dos resistentes. Os estudantes fugitivos do Oriente, os quais nos primeiros meses depois de sua chegada estavam felizes, porque predomina a liberdade, acabaram por ficar tristes, porque não possuem amizades, possuem tal experiência. Com o horror, com o qual eles reúnem-se para resistir desaparece também a felicidade. O conhecimento da realidade foi capaz de renová-los. A perseguição e a fome são as regras da história da sociedade ainda hoje. Se a juventude reconhece a resistência entre o estado das forças humanas e o estado da terra, e não se deixa turvar o olhar nem pelo fanatismo nacionalista, nem pelas teorias sobre uma justiça transcendente, é esperado que a identificação e a solidariedade em suas vidas sejam decisivas. O caminho que leva a isso passa pelo conhecimento tanto da ciência e da política, como das grandes obras da literatura.91

90 Cf. VINCERI, P. Studi su Schopenhauer. Centro Stampa Baiese: Bolonha, 1990, p.49. 91 HORKHEIMER, M. Die Aktualität Schopenhauers. In: Jahburch der Schopenhauergesellschaft für das Jahr 1961, Band 42. Frankfurt am Main: Waldemar Kramer, 1961, p.24. No original alemão: „Jetzt kann ich deutlicher sagen, warum Schopenhauer der zeitgemäße Lehrer ist. Die Doktrin vom blinden Willen als dem Ewigen entzieht der Welt den trügerischen Goldgrund, den die alte Metaphysik ihr bot. Indem sie ganz im Gegensatz zum Positivismus das Negative ausspricht und im Gedanken bewahrt, wird das Motiv zur Solidarität der Menschen und der Wesen überhaupt erst freigelegt, die Verlassenheit. Keine Not wird je in einem Jenseits kompensiert. Der Drang, ihr im Diesseits abzuhelfen, entspringt der Unfähigkeit, sie mit vollem Wissen dieses Fluchs mit anzusehen und zu dulden, wenn die Möglichkeit besteht, ihr Einhalt zu tun. Für solche, der Aussichtslosigkeit sich verdankende Solidarität ist das Wissen des principii individuationis sekundär. Je sublimer, je weniger verfestigt ein Charakter ist, desto gleichgültiger ist ihm die Nähe oder Ferne zum eigenen Ich, desto weniger unterscheidet er Fernstes und Nächstes in der Arbeit an beidem, die er nicht lassen kann, auch wenn sie der des Sisyphus gleichkommt. Wider das unbarmherzige Ewige dem Zeitlichen beizustehen, heißt Moral im Schopenhauerschen Sinn.

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Novamente, as passagens que evidenciam a repulsa para com escravidão

baseadas na compaixão ou na constatação de que ela é uma injustiça a ser evitada –

encontradas principalmente em O Mundo como Vontade e Representação (MVR) e em

Sobre o Fundamento da Moral (SFM) – acabariam por sustentar a leitura à esquerda

feita por Horkheimer em seus escritos tardios.

Certo é que a forma como Schopenhauer trata a escravidão não é uniforme,

e acaba, dependendo do contexto, por produzir elementos corroborantes para os dois

tipos de leitura, tanto à direita, quanto à esquerda. Dessa forma, mais uma vez o

enunciado supracitado do professor Lütkehaus mostra-se extremamente preciso e feliz

quando afirma: “Schopenhauer não pode ser descrito, politicamente e socialmente, de

maneira unívoca.”92

Ao se posicionar contra uma interpretação do pessimismo meramente

quietista, formula-se a possibilidade de interpretação da filosofia de Schopenhauer por

um viés alternativo, cujo foco não se limita a um pessimismo quietista, a uma ética da

salvação limitada aos poucos agraciados, mas que engloba, também, o seu âmbito

prático e o combate e diminuição do sofrimento inerente à vida: surgem, assim,

proposições hermenêuticas que desenvolvem as possibilidades de uma ética da melhoria

(bessernde Ethik)93 ou uma práxis do menos pior dos mundos possíveis.

Aproveitando de forma herética a designação cunhada pelo centro italiano,

poderíamos dizer que a interpretação de Lütkehaus é ela mesma uma interpretação

herética – e o próprio comentador reconhece tal fato quando brinca ao escrever que

Schopenhauer se reviraria em seu túmulo se soubesse de uma esquerda

Selbst der Mythos der Seelenwanderung, daß nach dem Tod die Seele ohne Zeit und ohne Raum den Körper finde, der dem Stand ihres Läuterungsprozesses entsprechen soll, hat keinen Einfluß auf Moral, sonst bliebe sie Berechnung. Die unbarmherzige Struktur der Ewigkeit vermöchte die Gemeinschaft der Verlassenen zu erzeugen, wie das Unrecht und der Terror in der Gesellschaft die Gemeinschaft der Widerstrebenden zur Folge haben. Jene aus dem Osten geflohenen Studenten, die in den ersten Monaten nach ihrer Ankunft glücklich sind, weil Freiheit herrscht, aber schließlich traurig werden, weil es keine Freundschaft gibt, besitzen die Erfahrung davon. Mit dem Schrecken, dem zu widerstehen sie sich zusammenfanden, schwindet auch das Glück. Kenntnis der Wirklichkeit vermöchte es zu erneuern. Verfolgung und Hunger durchherrschen die Geschichte der Gesellschaft auch heute. Wenn die Jugend den Widerspruch zwischen dem Stand der menschlichen Kräfte und dem der Erde erkennt, und weder durch fanatisierende Nationalismen noch durch Theorien transzendenter Gerechtigkeit den Blick sich trüben läßt, steht zu erwarten, daß Identifikation und Solidarität in ihrem Leben entscheidend werden. Der Weg dahin führt durch die Kenntnis sowohl der Wissenschaft und Politik, wie der Werke der großen Literatur.“ 92 Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.16. 93 Cf. SFM, §20, p.199, III 725.

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schopenhaueriana, embora ele devesse ficar contente pela fundação de um centro de

estudos sobre a sua filosofia na Itália94 – e que esse tipo de exegese abre caminho para

um novo filão no que diz respeito à interpretação e desdobramentos da filosofia

schopenhaueriana: estudos à esquerda ganham força, e devemos ressaltar que no Brasil

ele vem logrando êxito. A próxima seção dessa tese apresentará hipóteses

hermenêuticas da esquerda schopenhaueriana que compõe o debate da pesquisa

brasileira sobre Schopenhauer.

3.4. Schopenhauer no Brasil: a esquerda schopenhaueriana ganha

força

Em 1982, o primeiro trabalho acadêmico sobre a filosofia de Arthur

Schopenhauer no Brasil, uma dissertação de mestrado intitulado A crítica da razão no

pensamento de Schopenhauer sob orientação do professor Rubens Rodrigues Torres

Filho, foi defendido pela professora Maria Lucia Cacciola no departamento de filosofia

da Universidade de São Paulo (USP).95 Seu livro Schopenhauer e a Questão do

Dogmatismo,96 publicado em 1994, logo se tornou leitura obrigatória em língua

portuguesa para quem se interessasse pela filosofia do autor no Brasil. A tradução, em

2005, do primeiro tomo da principal obra do filósofo para língua portuguesa de forma

integral a partir da língua alemã, realizada por Jair Barboza, facilitou o acesso daqueles

que desejavam se aventurar ou estudar de forma sistemática a filosofia

schopenhaueriana. O interesse crescente na obra do autor – tanto pelo público

especializado, quanto pelo grande público – incentivou a tradução de outros textos de

sua autoria.97

94 Cf. Esiste una sinistra schopenhaueriana? Ovvero: il pessimismo è un quietismo?, p.16. 95 Cf. CACCIOLA, M.; DEBONA, V.; SALVIANO, J. A história e a atual situação dos estudos schopenhauerianos no Brasil. In: Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, v.4, n.1, p.146-150, 2013. 96 Cf. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo. 97 Até o momento nem toda a obra publicada por Schopenhauer possui tradução para o idioma português, e muitos dos textos traduzidos para o nosso idioma não foram traduzidos de forma integral – sendo lançados parcialmente, caso, por exemplo, dos PP e de E, ou recebendo novos títulos, caso de diversos livros publicados a partir da organização de coletâneas textuais ou de passagens dos manuscritos póstumos schopenhauerianos – e/ou não foram traduzidos diretamente a partir do idioma alemão. Contudo, os avanços na última década no que se refere a traduções de qualidade – realizadas, em maior

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Em 2004 foi criado o Grupo de Trabalho Schopenhauer (GT-

Schopenhauer) na Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) e em

2005 fundada oficialmente a Seção brasileira da Schopenhauer-Gesellschaft por

ocasião do III Colóquio Internacional Schopenhauer, realizado em São Paulo.98 Na

agenda de eventos realizados no Brasil sobre o filósofo, firmavam-se, assim, o bienal

Colóquio Internacional Schopenhauer99 – o qual conta com a participação das seções

alemã, italiana, e japonesa da Sociedade Schopenhauer –, o também bienal encontro

nacional da ANPOF, e, regionalmente, os encontros anuais Nietzsche-Schopenhauer do

grupo APOENA100 em Fortaleza, e o evento anual itinerante nas regiões sul-sudeste

Para Saber mais Schopenhauer.

Em 2010, um grupo de então pós-graduandos concebeu e efetivou a criação

da Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer.101 Esses espaços privilegiados

fomentaram as discussões e a aproximação dos estudiosos e interessados na filosofia

schopenhaueriana, não apenas entre professores, mas também entre estudantes de

graduação, mestrado e doutorado, nos âmbitos nacional e internacional. Construía-se e

consolidava-se no Brasil uma rede de pesquisadores, de debates, e de troca de

informações dedicados à filosofia do autor. Professores e pesquisadores da filosofia

schopenhaueriana passaram a ocupar papéis de destaque em vários centros

universitários espalhados pelo país, como, por exemplo, na Universidade Estadual de

Campinas (UNICAMP),102 na Universidade Estadual do Ceará (UECE), na

Universidade Federal do ABC (UFABC), na Universidade Federal da Bahia (UFBA),

parte, por estudiosos acadêmicos da obra do filósofo a partir do idioma alemão – são impressionantes e os prognósticos futuros, animadores. 98 Cf. CACCIOLA, M.; DEBONA, V.; SALVIANO, J. A história e a atual situação dos estudos schopenhauerianos no Brasil. In: Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, v.4, n.1, p.146-150, 2013. 99 A primeira edição do Colóquio foi realizada no ano de 2001, em Curitiba. O evento foi realizado posteriormente nas cidades de Salvador (2003), São Paulo (2005), Rio de Janeiro (2009), Florianópolis (2011), Fortaleza (2013), Salvador (2015). Em 2017 o evento retorna a Curitiba para a sua oitava edição. 100 As atividades do grupo APOENA podem ser consultadas em http://apoenafilosofia.org/ (Acesso em 10 mar. 2017). 101 O periódico pode ser acessado através do endereço eletrônico www.revistavoluntas.com.br. (Acesso em 10 mar. 2017). 102 Em 2009 foi fundado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) o grupo de pesquisa CriM – Crítica e Modernidade, liderado pelos professores Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP) e Bruno Machado (Universidade Federal de Sergipe - UFS). O grupo de pesquisa agrega, entre outros interesses, o estudo da filosofia schopenhaueriana, a qual possui uma linha de pesquisa específica: “Schopenhauer: metafísica, estética, ética e política.” Cf. dgp.cnpq.br/dgp/espelholinha/1186251938377689284330 (Acesso em 10 mar. 2017).

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na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),103 na Universidade Federal

de Santa Catarina (UFSC), na Universidade de São Paulo (USP), entre outros centros

universitários públicos e privados do país.

Nesse contexto, publicizaram-se interpretações já existentes – como a de

Lütkehaus – e emergiram debates sobre aspectos mais específicos – e, muitas vezes

negligenciados – da filosofia schopenhaueriana, como a sua filosofia prática e aspectos

pertencentes e/ou relacionados a ela, como, por exemplo, a sabedoria de vida ou

eudemonologia – presentes em textos como os Aforismos para Sabedoria de Vida

(ASV), contido nos Parerga e Paralipomena (PP), e no texto organizado e publicado

por Franco Volpi a partir dos manuscritos póstumos do filósofo da vontade sob o título

de Die Kunst, Glücklich zu sein (A arte de ser feliz).104

Um dos debates que vieram à tona nos últimos anos é justamente aquele

acerca do papel e da contradição ou não de uma eudemonologia, de uma sabedoria de

vida, de uma filosofia da práxis voltada para a tentativa de tornar a vida menos infeliz

possível, no interior sistemático da obra schopenhaueriana. As interpretações que

reconhecem, desenvolvem, problematizam, e acentuam a importância dos aspectos da

filosofia prática do autor, como estas interpretações de cunho eudemonológico, podem

ser entendidas como alinhadas ao que vimos ser uma interpretação schopenhaueriana de

esquerda. Nesse debate, a obra ASV e a coletânea póstuma organizada por Volpi são

centrais.

Em ASV, logo nas primeiras linhas do texto, Schopenhauer explica o sentido

pelo qual entende os conceitos de eudemonologia, de sabedoria de vida, bem como a

estranheza inicial provocada por um capítulo de sua obra empenhar-se na abordagem do

tema. Como é possível notar na citação abaixo, os termos assumem significado um tanto

diverso do utilizado correntemente: Tomo aqui o conceito de sabedoria de vida num sentido totalmente imanente, a saber, o da arte de conduzir a vida da maneira mais agradável e feliz possível, cuja instrução também poderia ser chamada de eudemonologia: ela seria, por conseguinte, a indicação para uma existência feliz.105

103 Foi fundado recentemente o Núcleo de Estudos Schopenhauer e Nietzsche da UFRRJ. 104 SCHOPENHAUER, A. A arte de ser feliz. Org. de Franco Volpi; tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 105 ASV, p.7, IV 347. No original alemão: „Ich nehme den Begriff der Lebensweisheit hier gänzlich im immanenten Sinne, nämlich in dem der Kunst, das Leben möglichst angenehm und glücklich durchzuführen, die Anleitung zu welcher auch Eudämonologie genannt werden könnte: sie wäre demnach die Anweisung zu einem glücklichen Daseyn.“

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É bom lembrar que existência feliz (glückliches Daseyn) para o filósofo é

um mero eufemismo, algo que não existe, uma contradição,106 sendo o máximo

alcançável frente às dores e aos sofrimentos do mundo uma vida heroica (heroischer

Lebenslauf).107 É nesse sentido que ele emprega o termo “vida feliz” (glückliches

Leben).108 O mais próximo do que poderia ser chamado de vida feliz, que consistiria em

conduzir a vida da forma menos infeliz possível, ocorre “quando desejo e satisfação se

alternam em intervalos não muito curtos nem muito longos, o sofrimento ocasionado

por eles é diminuído ao mais baixo grau, fazendo o decurso de vida o mais feliz

possível.”109

Além disso, Schopenhauer admite uma certa contradição no estudo de uma

eudemonologia, de uma sabedoria de vida, na busca da vida menos infeliz possível, caso

não se atente algumas ressalvas: Desse conceito de existência segue que nos apegaríamos a ela por ela mesma, e não meramente por medo da morte; e disto, por sua vez, que gostaríamos de vê-la durar infinitamente. Agora, se a vida humana corresponde ao conceito de tal existência, ou se sequer pode corresponder-lhe, é uma questão conhecidamente negada por minha filosofia, enquanto que a eudemonologia pressupõe sua afirmação. Isso porque ela repousa sobre o equívoco inato cuja refutação abre o quadragésimo nono capítulo do segundo volume de minha obra principal. Para, apesar disso, poder ainda elaborar uma eudemonologia, tive, pois, de me desviar completamente do ponto de vista metafísico-ético mais elevado ao qual a minha filosofia propriamente dita conduz. Por consequência, toda a discussão que aqui será feita repousa em certa medida

106 “Antes, verifica-se uma completa contradição em querer viver sem sofrer, contradição que também se anuncia com freqüência na expressão corrente “vida feliz”. MVR, §16, p.147, I 108. No original alemão: „Es liegt vielmehr ein vollkommener Widerspruch darin, leben zu wollen ohne zu leiden, welchen daher auch das oft gebrauchte Wort »säliges Leben« in sich trägt.“ 107 “Uma vida feliz é impossível: o máximo que uma pessoa pode atingir é um curso de vida heroico”. PP, §172a, p.185, V 349. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Ein g lück l iches Leben ist unmöglich: das höchste, was der Mensch erlangen kann, ist ein hero ischer Lebens lau f. “ 108 Apesar da utilização do termo vida feliz, é importante notar que Schopenhauer não toma estritamente o conceito tal qual sua significação estóica. Sobre a forma pela qual Schopenhauer assimila e interpreta a filosofia estóica Cf. DEBONA, V. Schopenhauer e as formas da razão – O teórico, o prático e o ético-místico. São Paulo: Annablume, 2010; Cf. CHEVITARESE, L. Schopenhauer e o estoicismo. In: Ethic@ – Revista Internacional de Filosofia da Moral, vol. 11, n.2. Florianópolis: UFSC, 2012, p. 161-172, doravante abreviado como Schopenhauer e o estoicismo, seguido de indicação de página; Cf. VIESENTEINER, J. “Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer. In: Revista Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, v. 3, n.1 e 2, p.3-19, 1º e 2º semestres de 2012. Doravante abreviado por “Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer, seguido de indicação de página. 109 MVR, §57, p.404, I 370. No original em alemão: „Daß Wunsch und Befriedigung sich ohne zu kurze und ohne zu lange Zwischenräume folgen, verkleinert das Leiden, welches Beide geben, zum geringsten Maaße und macht den glücklichsten Lebenslauf aus.“

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sobre uma acomodação, a saber, na medida em que permanece no ponto de vista empírico comum, atendo-se a seu equívoco.110

A passagem supracitada mobiliza elementos decisivos para a justificativa da

escrita de um texto que tenha como finalidade a sabedoria de vida, e elementos para a

justificativa de uma leitura da filosofia schopenhaueriana à esquerda. Em primeiro

lugar, ela afirma que uma sabedoria de vida funda-se em uma torção do conceito de

existência, como se a existência fosse desejada; em segundo lugar, uma eudemonologia

estaria situada no âmbito da afirmação da vontade, o que o autor admite não ser o

expediente mais adequado, dado que isso se configura quase como uma contradição em

relação ao que enuncia sua própria filosofia; por fim, ele reconhece uma mudança do

âmbito, da perspectiva na qual se assenta a discussão: não mais na chave de uma ética-

metafísica, mas de uma ética-empírica. Essa alteração de perspectiva é chamada por ele

de desvio,111 de acomodação (Akkommodation), visando o afastamento da contradição

que seria tratar a questão envolvida em um âmbito ético-metafísico.

Tal contradição consistiria no fato de, após averiguar e explicitar em outras

obras os problemas decorrentes da afirmação da vontade e da sua impossibilidade e

limitação de se constituir como a solução para os sofrimentos do mundo, e de constatar,

por outro lado, que a negação da vontade seria a via de supressão dos sofrimentos,

Schopenhauer insistir na primeira como possibilidade de resolução dos problemas mais

centrais de sua filosofia. A contradição é evitada de modo muito sutil, através de um

desvio, de uma acomodação, de uma mudança de perspectiva na consideração da

questão.

Essa mudança de perspectiva, para ser entendida de forma a dissolver a

contradição possível, envolve a adesão a algumas formas de interpretação da filosofia

110 ASV, p.7, IV 347. Tradução ligeiramente alterada. No original alemão: „Aus diesem Begriffe desselben folgt, daß wir daran hiengen, seiner selbst wegen, nicht aber bloß aus Furcht vor dem Tode; und hieraus wieder, daß wir es von endloser Dauer sehn möchten. Ob nun das menschliche Leben dem Begriff eines solchen Daseyns entspreche, oder auch nur entsprechen könne, ist eine Frage, welche bekanntlich meine Philosophie verneint; während die Eudämonologie die Bejahung derselben voraussetzt. Diese nämlich beruht eben auf dem angeborenen Irrthum, dessen Rüge das 49. Kapitel im 2. Bande meines Hauptwerks eröffnet. Um eine solche dennoch ausarbeiten zu können, habe ich daher gänzlich abgehn müssen von dem höheren, metaphysisch-ethischen Standpunkte, zu welchem meine eigentliche Philosophie hinleitet. Folglich beruht die ganze hier zu gebende Auseinandersetzung gewissermaaßen auf einer Ackommodation, sofern sie nämlich auf dem gewöhnlichen empirischen Standpunkte bleibt und dessen Irrthum festhält.“ 111 O verbo utilizado em alemão, abgehen, pode ser traduzido, também, por desprender-se, afastar-se, deixar. Fica marcado, assim, o sentido de afastamento da forma até então utilizada no desenvolvimento da argumentação de outras obras e a mudança de perspectiva.

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do autor. O professor Leandro Chevitarese, em sua tese de doutoramento, foi um dos

pioneiros na abordagem da questão no Brasil,112 reflexão que levou para outros de seus

textos. Tomando como ponto de partida uma passagem do livro de Safranski –

“supondo que a vida valha a pena ser vivida, como então deveríamos conduzi-la de tal

modo a obter a melhor medida de felicidade alcançável?”113 –, a qual ele considera a

pergunta norteadora dos ASV e a base de uma ética do “como se” (Als-ob), o professor

estabelece quatro sentidos para que seja possível entender a mudança de perspectiva

operada nessa obra, tornando-a possível de ser escrita: 1) Façamos como se a vida valesse a pena ser vivida e nos empenhemos na “arte de conduzir a vida do modo mais agradável e feliz possível” – neste primeiro sentido, o “como se” aplica-se à própria vida e à possibilidade da felicidade; 2) Passemos a agir como se a nossa própria conduta fosse um efeito absoluto de nosso pensamento, ou seja, como se pudéssemos agir de modo diferente do que somos – neste segundo sentido, o “como se” aplica-se à nossa conduta; 3) Continuemos a viver como se os males desnecessários jamais nos aconteçam e os inevitáveis venham sempre a tardar – neste terceiro sentido, o “como se” refere-se ao curso dos acontecimentos da vida; 4) Enfrentemos a vida de maneira positiva como se não estivéssemos entregues à inexorabilidade de tudo que acontece, como se não houvesse um destino – neste quarto sentido, o “como se” faz referência à problemática da necessidade. Portanto, a “ética do como se” aplica-se à vida, à conduta, aos acontecimentos desagradáveis e ao destino.114

O “como se” seria a tradução do que Schopenhauer chama de acomodação,

desvio, ou afastamento, i.e., o “como se” seria a explicação e a significação da mudança

de perspectiva, do plano ético-metafísico para o plano ético-empírico, que possibilita o

desenvolvimento de uma eudemonologia dentro do sistema filosófico

schopenhaueriano.

Chevitarese, então, assimila a tese do professor Thomas Brum de que a

proposta eudemonológica consistiria em uma “espécie de sabedoria teatral”.115 Essa

consistiria em uma metáfora que explica o modus operandi da eudemonologia: [...] a própria vida poderia ser compreendida como um grandioso espetáculo teatral, o teatro da vontade: personagens diferentes, em variados cenários,

112 Cf. CHEVITARESE, L. A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos resta” para a prática de vida? Rio de Janeiro: Departamento de Filosofia, PUC-Rio, 2005. Doravante abreviado como A ética em Schopenhauer seguido de indicação de página. 113 SAFRANSKI, R. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia: uma biografia. Tradução de Willian Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011, p.621. 114Schopenhauer e o estoicismo, p.170. 115 BRUM, J. O Pessimismo e suas Vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.51.

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interpretando o mesmo drama, a tragédia da vontade. Conquistar a “sabedoria teatral” significa ser um bom ator do papel que lhe cabe.116

Assim, ele toma a ética do como se e a sabedoria teatral como bases

hermenêuticas para compreender e explicar como a sabedoria de vida, como a

eudemonologia schopenhaueriana, são possíveis. O “como se” como justificativa da

mudança de perspectiva; a sabedoria teatral como finalidade mais bem executada da

eudemonologia.

A grande parte dos pesquisadores e comentadores que se debruçam sobre a

questão acabam por reconhecer a mudança de perspectiva como questão chave para

compreensão e justificativa da presença de um capítulo da obra do “filósofo do

pessimismo” que verse sobre eudemonologia, afinal, como escreve Volpi, “[...] ninguém

iria querer aprender felicidade com um professor de pessimismo.”117 Nota-se, contudo,

o emprego de diferentes nomenclaturas para esse mesmo movimento textual.118

O professor Jorge Luiz Viesenteiner localiza a mudança de perspectiva, essa

acomodação, na passagem de um ponto de vista superior, ético-metafísico para o que

ele denomina de grande pessimismo:119 [...] Schopenhauer também executa a trajetória que vai de um “ponto de vista superior, ético-metafísico”, típico do pessimismo de O mundo, para aquilo que denominamos de ‘grande pessimismo’, i.é., uma “acomodação” na vida que faz o autor se distanciar de um pessimismo absoluto, para vislumbrar as possibilidades de ‘viver menos infeliz’. O ‘grande pessimismo’ é a prerrogativa daquele que agora pode executar em si as possibilidades de uma vida ‘menos infeliz’, somente porque vivenciou até a medula o próprio pessimismo, ou se quisermos, um ‘otimismo prático’ que é o privilégio daquele que foi suficientemente pessimista, experimentando cada um dos seus padecimentos na própria carne.120

E completa, explicando o que deve ser entendido por ‘grande pessimismo’: [...] ‘grande pessimismo’ não consiste mais nas hipóteses de negação do querer viver, mas do distanciamento do mundo e dos outros, voltando-se para si mesmo a fim de esboçar as possibilidades de uma vida ‘menos infeliz’.121

116 Schopenhauer e o estoicismo, p.170. 117 VOLPI, F. Apresentação. In: SCHOPENHAUER, A.A arte de ser feliz. Org. de Franco Volpi; trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. VIII. 118 Os termos empregados para designar essa duplicidade de perspectivas podem variar entre, de um lado, ético-metafísico, metafísica dos costumes, Ética da compaixão, Pessimismo metafísico, Grande Ética, em contraposição a termos como ético-empírico, ético-eudemonológico, grande pessimismo, otimismo prático, Pequena Ética. 119 Cf. “Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer, p.9. 120 “Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer, p.9. 121 “Prudentia” e o uso prático da razão em Schopenhauer, p.9.

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O professor e tradutor Jair Barboza define o pensamento de Schopenhauer

como pendular, um pensamento que oscila entre pessimismo metafísico e otimismo

prático,122 no qual o íntimo de cada um é caracterizado pelo sofrimento, mas no qual

também é possível atingir uma certa espécie de felicidade limitada, ainda mais se o

sujeito for guiado por uma sabedoria de vida.123 Talvez a imagem não seja a mais

acertada para explicar o movimento textual realizado pelo filósofo, dado que não é

operada uma oscilação de um âmbito ao outro: tem-se marcadamente duas perspectivas

de análise que se suplementam, que coexistem, mas que não são totalmente

codependentes, e nas quais, durante a exposição, o filósofo não alterna de registro.

Quando o discurso está situado no âmbito ético-metafísico a argumentação desenvolve-

se nele; quando adentramos a eudemonologia, adentramos um outro registro, um outro

âmbito, uma outra perspectiva da argumentação que se assenta sobre uma acomodação,

como visto, de forma a evitar a contradição que o próprio autor nota e da qual nos

adverte no início dos ASV.

A tese de doutoramento de Vilmar Debona, A outra face do pessimismo:

entre radicalidade ascética e sabedoria de vida,124 tem, dentre outros, o mérito de

esmiuçar essa questão. Debona diferencia dois âmbitos, duas perspectivas da filosofia

schopenhaueriana, as quais ele denomina Grande Ética e Pequena Ética.

A Grande Ética seria o âmbito da ética da compaixão, do ascetismo, da

metafísica dos costumes, dos assuntos comumente tratados pelo cânone

schopenhaueriano e pelas interpretações ditas de direita de sua filosofia; a Pequena

Ética seria referida à sabedoria de vida e à vida prudente no mundo, não englobando a

questão das virtudes, da moralidade, sendo restrita à legalidade das ações. Na letra do

comentador, podemos ler: Este pessimismo pragmático pode ser tomado em paralelo com algumas formulações específicas do âmbito da sabedoria de vida, mas também com alguns contextos e formulações da fundamentação da moral. Estes últimos aparecem, por exemplo, como “ética da melhoria” (bessernde Ethik) e como moral do “como se” (Als-Ob). O conjunto destas formulações, principalmente por não participar da moral propriamente dita (pois pertence ao âmbito eudemonológico ou empírico), pode ser chamado de pequena ética, critério a partir do qual seria possível diferenciá-la em relação a autêntica moralidade metafísica e ao ascetismo místico, que aqui denomino de grande ética [...]. A

122 Cf. BARBOZA, J. Schopenhauer.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, (Coleção Filosofia Passo-a-passo), p.53. 123 BARBOZA, J. Em favor de uma boa qualidade de vida. In: SCHOPENHAUER, A. Aforismos para a Sabedoria de Vida. Prefácio e notas de Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.XIII. 124 Cf. A outra face do pessimismo.

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hipótese desta divisão entre grande e pequena ética não é pensada a partir da conhecida classificação das obras aristotélicas ou de outras conceituações da história da Filosofia, mas pode ser captada a partir daquele mesmo parâmetro (ofertado pelo próprio Schopenhauer) que serve para o caso do pessimismo pragmático, ou seja, na esteira do próprio “desvio” da metafisica na medida em que o ponto de vista ético-metafisico é considerado como um “ponto de vista superior”. Isto é, pelo fato de a filosofia schopenhaueriana considerar [...] a esfera ético-metafisica como a perspectiva “mais elevada”, então ela poderia ser chamada também, em algum sentido, de “grande perspectiva”. Nesse caso, a perspectiva oriunda do desvio deste patamar superior, horizonte no qual repousa uma acomodação ou adaptação ao princípio de autoconservação (assim como ao principium individuationis), no qual se “permanece preso ao ponto de vista comum, empírico”, representaria um grau “menos elevado”, ou inferior, da ética. Destaco, então, que embora Schopenhauer não tenha usado as expressões grosse Ethik e kleine Ethik para apresentar sua doutrina moral, o farei aqui a partir do pressuposto interpretativo acima indicado.125

Assim, ainda segundo Debona, a fundamentação ética do agir, e a sua

significação íntima seriam objetos de escrutínio da Grande Ética; o agir mediato,

direcionado, e refletido diriam respeito à esfera da Pequena Ética.126 Em algumas partes

de seu texto, Debona toma como sinônimos a Pequena Ética e uma Ética Sugestiva:

Schopenhauer, nesse sentido, não teria apenas demonstrado as contradições intrínsecas a uma ética prescritiva, tal como elaborada por Kant, e, em lugar dela, insistido na pertinência de uma ética descritiva. Em paralelo a esta última – e, inicialmente, com o mesmo método descritivo – o pensador teria indicado também uma espécie de “ética sugestiva”. A ética da compaixão detém-se em descrever os casos em que, misteriosamente, uma motivação apresenta-se suficientemente forte para originar uma ação altruísta. Já a mencionada dimensão sugestiva da ética, isto e, à pequena ética, caberia a função de indicar ao indivíduo – apoiando-se no estrato cognitivo do intelecto – que, por exemplo, um caráter naturalmente egoísta não necessariamente produzirá sempre ações misantrópicas; que um caráter cujas ações tendem a ser motivadas pela maldade, não necessariamente se tornará um serial killer; ou mesmo que um caráter mais receptivo a motivações compassivas nem sempre produzirá ações filantrópicas. Seja qual for a índole íntima, as máximas de sabedoria de vida e as próprias experiências colhidas do “histórico do caráter” permitiriam a exposição de cada uma dessas personalidades inatas as circunstancias variegadas – e até mesmo opostas – em relação aquelas as quais elas tendem naturalmente.127

Nota-se que os comentadores mobilizam, cada um a seu modo, elementos e

conceitos para dar conta de explicar e justificar uma sabedoria de vida no interior da

obra schopenhaueriana, como ela se configura, a sua finalidade, bem como a forma pela

qual ela pode se realizar sem realmente constituir uma contradição com a filosofia do

autor. Todos concordam que existe uma diferenciação de perspectivas nas quais a

eudemonologia, a sabedoria de vida, é desenvolvida – seja ela uma acomodação, um 125 A outra face do pessimismo, p.197-198. 126 A outra face do pessimismo, p.199. 127 A outra face do pessimismo, p.202.

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desvio, um afastamento, ou uma cisão – e que a eudemonologia serve como uma

espécie de guia para diminuição dos sofrimentos na vida prática empírica.

Nesse viés hermenêutico, nota-se a função central exercida pelo caráter

adquirido e pelo intelecto. É o caráter adquirido que possibilita o melhor conhecimento

de si no mundo, fornecendo motivos e contramotivos que, através do intelecto, podem

sugestionar a vontade em agir da forma mais adequada ao caráter do indivíduo e,

consequentemente, auxiliá-lo no experienciar a vida do modo menos infeliz possível,

evitando ao máximo os tormentos que são desnecessários, diminuindo aqueles que são

inevitáveis, e buscando a sua atmosfera mais adequada (angemesse Atmosphäre),

fazendo, em uma situação ideal, “o que nos é possível nos limites do que nos é

inevitável”.128 O caráter adquirido permite a ampliação da constelação de motivos do

indivíduo – os próprios ASV, a educação, e o código penal podem ser entendidos assim:

o primeiro e o segundo como um elenco de motivos que possuem a finalidade de ajudar

o indivíduo a viver de forma prudente; o último, uma lista de contra motivos, como

tentativa de evitar ações consideradas ilegais.

Apresentado em linhas gerais, com vistas a contextualizar o leitor no debate

que se desenrolou durante o período mais recente no Brasil sobre essa questão, é

possível nos situar e explicitar a posição que pretendemos adotar, justificando-a. De

forma “herética” exploraremos as possibilidades de desenvolvimentos da filosofia

schopenhaueriana ampliadas a partir de uma interpretação que assume a perspectiva

ético-empírica à esquerda da filosofia do autor.

3.5. Permitir-nos-emos ser heréticos em nossa interpretação

A teoria schopenhaueriana fornece elementos interessantes que, se

atualizados de um modo não anacrônico, poderiam ser utilizados para refletir sobre

questões referentes aos direitos humanos. Atualmente, até que ponto é possível dissociar

a proteção física da proteção econômica? Até que ponto a proteção contra o protetor

pode ser entendida apenas como uma proteção às arbitrariedades físicas e de liberdade

de expressão perpetradas pelo Estado? Ela não poderia ser entendida, também, como

garantia de que a tutela do Estado atue de forma a não impedir as condições de

possibilidade para que os indivíduos possam desenvolver-se em todas as suas 128 A ética em Schopenhauer, p.120.

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capacidades? Podem novas funções serem atribuídas ao Estado? Seria lícito, dado o

novo contexto, o Estado assumir o papel positivo em determinadas questões para suprir

determinadas demandas? Quais seriam essas questões e demandas?

No âmbito empírico, Schopenhauer desenvolve, como visto nos primeiros

capítulos dessa tese, as suas teorias do direito e da política de um modo que elas

poderiam ser classificadas de liberais. Seria possível, contudo, uma outra forma de

desenvolvimento das teorias do autor a partir de pressupostos de sua própria filosofia?

Seria possível utilizar, por assim dizer, Schopenhauer contra Schopenhauer nesse caso

em específico?

Tal qual foram possíveis um desvio e uma acomodação para justificar e

desenvolver uma eudemonologia no interior do sistema filosófico schopenhaueriano,

talvez seja possível, a partir de uma interpretação à esquerda de sua obra, em uma

perspectiva ético-empírica, ampliar e ressignificar alguns dos conceitos pertencentes às

doutrinas do direito e da política para enfrentar problemas contemporâneos dessas áreas

no que se refere aos direitos humanos.

Para tanto, admitiremos o papel positivo que o conhecimento, a experiência,

a educação, o aprendizado, o meio no qual o indivíduo está inserido, e a cultura possam

ter ao influenciar o intelecto, e esse impacto no indivíduo e no indivíduo inserido,

convivendo e organizando-se em sociedade. Nesse ponto teríamos uma primeira torção

da filosofia schopenhaueriana, a qual pode ser melhor explicitada se tomarmos o

enunciado já citado “A cabeça é esclarecida, mas o coração permanece incorrigível”

(Der Kopf wird aufgehellt; das Herz bleibt ungebessert)129 e, sem prejudicar o seu teor,

inverter a ordem da formulação: “O coração permanece incorrigível, mas a cabeça ainda

pode ser esclarecida” (Das Herz bleibt ungebessert, aber der Kopf wird noch

aufgehellt).130

Faz-se necessário, para cumprir os objetivos apresentados acima, apresentar

e formular os problemas contemporâneos em relação aos quais a filosofia

schopenhaueriana, no que tange o direito e à política, pode denotar importante 129 SFM, §20, p.199, III 725. 130 Sobre essa inversão, Debona escreve: “Ao invés de se considerar somente o pressuposto segundo o qual “a cabeça é aclarada, mas o coração permanece incorrigível”, poder-se-ia inverter a ordem da formulação, sem que o teor da mesma fosse comprometido: ‘o coração permanece incorrigível, porém a cabeça ainda pode ser aclarada’. Ou seja, é possível pressupor aquela que é uma das teses centrais deste pensamento – a de que o caráter e o coração são imutáveis –, mas, ao mesmo tempo, frisar, como decorrência dela, a possibilidade de uma outra, isto é, a de que a incidência do aprendizado e do conhecimento sobre o intelecto não seria nula[...].” A outra face do pessimismo, p.211.

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relevância. Esse é o objetivo do próximo capítulo, mas, antes de iniciá-lo, cumpre

encerrar o nosso terceiro capítulo com uma questão que serve de transição entre este

capítulo – o qual procurou apresentar leitores e leituras da obra schopenhaueriana e

situar a nossa posição hermenêutica em relação à leitura e interpretação da obra do autor

– e o próximo capítulo – no qual introduziremos o tema dos direitos humanos em sua

origem e desenvolvimento: a apresentação, análise, e leitura que Ernst Tugendhat faz da

teoria schopenhaueriana no que diz respeito aos direitos humanos e ao fundamento da

moral.

3.6. O Engano de Ernst Tugendhat

Ernst Tugendhat (1930-) explica os direitos humanos a partir da hipótese de

fundamentação na moral. E, para tanto, ele empreende um rigoroso exame acerca das

condições de possibilidade e plausibilidade dessa fundamentação, esforçando-se em

ampliar os horizontes de uma reflexão ética contemporânea.

No seu livro Vorlesungen über Ethik (Lições Sobre Ética)131 de 1993,

motivado por questões contemporâneas que no seu entendimento possuem caráter

moral, Tugendhat constrói suas teses em diálogo com os principais sistemas ético-

morais da história da filosofia, levando em consideração os problemas engendrados pela

empreitada de se fundamentar universalmente a moral.

Ele organiza suas quinze lições fictícias sobre ética de modo a abordar

questões pertinentes da história da filosofia e sistematizar sua exposição. Nas primeiras

cinco lições ele expõe uma concepção de ética, em que fica explícito ao leitor a intenção

de tornar plausível o conceito kantiano de moral. Nas lições seguintes – da sexta até a

décima – Tugendhat critica várias abordagens éticas existentes na história da filosofia e

expõe os motivos pelos quais, segundo ele, elas não podem ser sustentadas no interior

de seu projeto ético. Nas lições de número seis, sete, e oito, ele aponta razões formais

para as suas críticas; nas lições nove e dez, razões de conteúdo. Nas lições posteriores,

131 TUGENDHAT, E. Vorlesungen über Ethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1993. Tomamos a tradução brasileira para uma leitura cotejada: Lições sobre ética. Tradução do grupo de doutorandos do Curso de Pós-Graduação da UFRGS, revisão e organização da tradução de Ernildo Stein e Ronai Rocha. Petrópolis: Vozes, 1996. Doravante abreviado por Lições Sobre Ética, seguido de indicação de página na edição alemã e brasileira.

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ele toma como ponto de partida a análise de temas importantes relativos à ética para,

então, realizar uma leitura e argumentação originais dos problemas colocados.

Um dos embates realizados sobre o conteúdo das diversas éticas aventadas

durante a história do ocidente se dá com o sistema schopenhaueriano, cuja ética da

compaixão é matéria de escrutínio do nono capítulo de seu livro; esse capítulo aborda

não só o texto schopenhaueriano, tomando-o como principal expoente dessa vertente,

mas também questões éticas relativas aos animais, crianças, e nascituros – ou, em

tradução literal, vida não nascida (o capítulo é intitulado Die Mitleidsethik, Tiere,

Kinder, ungeborenes Leben).

A partir da análise de SFM – e não de MVR –, Tugendhat defende a posição

de que o conceito schopenhaueriano de moral não é plausível e nem mesmo moral,

sendo diametralmente oposto à ética kantiana pelo fato de ter como base para a

argumentação um sentimento, um afeto (Affekt).132 Apesar disso, segundo o autor,

Schopenhauer faz uma importante contribuição para o debate e reflexão

contemporâneos: a moral schopenhaueriana englobaria, também, os animais.

Por que o conceito schopenhaueriano não seria plausível e nem mesmo

moral? O autor enxerga nas duas máximas do agir moral schopenhaueriano, neminem

laede (não prejudicar ninguém) e omnes, quantum potes, iuva, (ajuda a todos quanto

puderes), uma estreita relação com a regra que, para ele, constitui o núcleo comum de

todos os conceitos morais, a saber, a regra de ouro133 – não faça aos outros o que não

queira que façam a você.

É precisamente na regra de ouro que Tugendhat encontra elementos para

refletir sobre a moral.134 A moral baseada no respeito universal e igualitário seria uma

pretensão plausível para a efetivação do ser humano capaz de cooperação, o qual está

132 Cf. Lições sobre Ética, p.177, p.191. 133 Cf. Lições sobre Ética, p.67, p.71. 134 Na quinta lição de seu livro, Tugendhat localiza na segunda figura do imperativo categórico kantiano– “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” –, que ele interpreta como “não instrumentalizes ninguém”, o conteúdo da moral, afirmando que “esta concepção pode ser denominada como a moral do respeito universal” (Cf. Lições sobre Ética,p.80, p.87). A segunda figura do imperativo é elabora em KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986, p.69, IV429. No original: „Handle so, daß du die Menschheit sowohl in deiner Person, als in der Person eines jeden andern jederzeit zugleich als Zweck, niemals bloß als Mittel brauchst“. Sobre as figuras do imperativo categórico, como indicado anteriormente, Cf. PATON, H. J. The categorical imperative. A study in Kant’s moral philosophy. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1971.

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intimamente relacionado à concepção de Tugendhat sobre o que seria um ser humano

bom, justamente aquele que é parceiro de cooperação. O comportamento moral consiste,

para ele, em reconhecer o outro como sujeito de direitos iguais.135 Ele reivindica, assim,

a moral do respeito universal e igualitário como ponto de partida seguro para a reflexão

sobre temas morais.

É possível entender a aproximação realizada pelo autor entre a teoria

schopenhaueriana e a regra de ouro a partir da explicação analítica que ele fornece ao

escrutinar o segundo conceito. Segundo Tugendhat, é possível dividir as regras que

resultam da regra de ouro em três grupos: (i) as regras de não prejudicar os outros (die

Regeln, anderen nicht zu schaden), que são regras de obrigações negativas, i.e., regras

de não fazer certas coisas; (ii) as regras de ajudar aos outros (die Regeln, anderen zu

helfen), i.e., as regras de obrigações positivas; e (iii) as regras especificamente

cooperativas (die spezifisch kooperativen Regeln), como sobretudo as de não mentir e

de não faltar com suas promessas – as quais são comumente incluídas nas regras

negativas.136

Entretanto, no confronto entre a norma do respeito (kantiana) e a do não

prejudicar o outro (schopenhaueriana), Tugendhat acaba por concluir que a primeira

possui um alcance maior que a segunda, servindo melhor aos seus propósitos. Nesse

ponto é necessário refletir: sob quais condições, sob quais pressupostos, e com quais

objetivos, é lícita essa conclusão?

Para Tugendhat, o princípio kantiano fornece, diferentemente do princípio

schopenhaueriano, critérios para decisão sobre a moralidade ou não de uma ação. Aqui

apontamos o que parece ser uma interpretação não acertada acerca da filosofia

schopenhaueriana: de fato, o princípio schopenhaueriano da compaixão fixado na

máxima neminem laede, não prejudicar ninguém, não oferece um critério de

ponderação. O critério de ponderação para Schopenhauer, como apresentado acima,137 é

a consciência moral, de forma a posteriori, a partir das sensações causadas no sujeito

pela ação por ele praticada. A máxima neminem laede não é uma prescrição do como se

deve agir, mas para a filosofia schopenhaueriana ela funciona como uma descrição, uma

espécie de rótulo, uma classificação, de uma ação moral já ocorrida, da qual a

135 Cf. Lições sobre Ética, p.336, p.362. 136 Cf. Lições sobre Ética, p.73, p.78-79. 137 Cf. a seção 2.2.7 A Consciência Moral (Gewissen), p.72.

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veracidade – i.e., se a ação realizada foi realmente efetuada com base no sentimento de

compaixão – na maior parte das vezes é insondável.

Um segundo ponto da interpretação de Tugendhat a ser colocado em xeque,

com base na argumentação até então empreendida no nosso trabalho, refere-se à

seguinte passagem: As duas dificuldades [alcance limitado e a falta de um critério de ponderação] também mostram que o princípio de Schopenhauer (como então naturalmente também sua concepção de motivação) é completamente sem serventia para uma ética política. Na ética política, trata-se quase sempre de ter que ponderar entre os interesses de muitos (vários); trata-se além disso de direitos, os quais novamente são pressupostos, ao se afirmar que alguém sofre quando estes não lhe são garantidos; assim, por exemplo, no direito à participação política.138

Tal afirmação desconsidera o potencial e a abrangência da filosofia de

Schopenhauer: para além das indicações textuais sobre o assunto, são notáveis a

recepção e o desenvolvimento da filosofia do autor no que se refere à filosofia prática,

principalmente pela chamada esquerda schopenhaueriana, conforme exposto acima.139 É

preciso salientar, também, que todas as questões éticas relacionadas à política na obra

schopenhaueriana ocorrem e são referidas no registro do egoísmo, não no registro da

compaixão, o que foge do escopo da fundamentação de Tugendhat. Este procura e

persegue uma fundamentação moral para a práxis política; Schopenhauer oferece o

âmbito da amoralidade, do egoísmo, e do cálculo de utilidade individual para descrever,

analisar, e explicar as questões referentes à política.

Em seguida, a argumentação de Tugendhat adota certa dose de sarcasmo e

ironia, exprimindo de forma negativa a seguinte afirmação acerca da filosofia de

Schopenhauer: “Se julgamos como moral uma ação boa ou a abstenção de uma má

somente quanto ela ocorre por compaixão, então parece resultar daí que somente podem

ser morais, quanto ao conteúdo, aqueles tipos de ações que ocorrem por este motivo.”140

138 Lições sobre Ética, p.181, p.194. No original alemão: „Beide Schwierigkeiten zeigen auch, daß Schopenhauers Prinzip (wie dann natürlich auch seine Auffassung von der Motivation) für eine politische Ethik vollständig unbrauchbar ist. In der politischen Ethik geht es fast immer darum, zwischen den Interessen mehrerer abwägen zu müssen, und außerdem um Rechte, die zum Teil wiederum vorausgesetzt werden müssen, wenn behauptet wird, daß jemand, dem sie nicht gewährt werden, daran leidet, so z.B. beim Recht auf politische Partizipation.“ 139 Cf. 3.3 Ludger Lütkehaus: Esquerda e Direita na Interpretação da Filosofia Schopenhaueriana e 3.4 Schopenhauer no Brasil: a esquerda schopenhaueriana ganha força. 140 Lições sobre Ética, p.181, p.195. No original alemão: „Wenn wir eine gute Tat der die Enthaltung von einer schlechten nur dann als moralisch beurteilen, wenn sie aus Mitleid geschieht, dann scheint zu

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Todavia, o sarcasmo e a ironia são utilizados em referência a uma afirmação que do

ponto de vista da filosofia schopenhaueriana é precisa e correta. Tugendhat prossegue: Existem certamente seres humanos que, diante de qualquer sofrimento, reagem espontaneamente com compaixão, mas a maioria faz isto apenas parcialmente, e em alguns existe, mais forte do que a compaixão, o seu sentimento contrário da alegria maligna, e o prazer na crueldade.141

Também essa afirmação é precisa e correta. A compaixão não é a motivação

principal para as ações realizadas e ela responde em diferentes graus – com maior ou

menor intensidade – de acordo com a disposição particular do caráter inteligível de cada

indivíduo. Em Schopenhauer, portanto, não é possível extrair uma regra constante e

universal de como e em que grau a compaixão influencia as ações dos indivíduos, sendo

apenas possível afirmar que uma ação que decorre de uma motivação compassiva é

moral, mas sem a possibilidade de sondar e afirmar categoricamente que a compaixão

foi a responsável mesma, a causa e motivação, pela ação praticada.

Ademais, no que se refere às dificuldades e impedimentos encontrados por

Tugendhat no que tange à plausibilidade de fundamentação da moral a partir da filosofia

schopenhaueriana e seu conteúdo, o autor das Lições Sobre Ética busca um fundamento

para a moral que obrigue, o que parece ser o ponto nevrálgico do não enquadramento de

Schopenhauer no programa ético vislumbrado por Tugendhat: Pode afinal um tal sentimento, naturalmente pré-dado e existente em graus diversos, ser o fundamento para uma obrigação? Somos nós obrigados por compaixão?142

É um tanto trivial para o leitor que acompanha de forma consequente a

argumentação schopenhaueriana que o sentimento de compaixão não pode ser o

fundamento de uma obrigação no sentido empregado por Tugendhat.

O autor mais uma vez afirma sarcasticamente que “não podemos extrair

magicamente nada de universal e de normativo da compaixão”;143 e Schopenhauer

folgen, daß auch nur diejenigen Handlungstypen inhaltlich gut sein können die aus dieser Motivation folgen.“ 141 Lições sobre Ética, p.182, p.196. Tradução alterada. No original alemão: „Es gibt wohl Menschen, die jedem Leid gegenüber spontan mit Mitleid reagieren, aber die meisten tun das nur partiell, und bei manchen ist der umgekehrte Affekt der Schadenfreude und der Freude an Grausamkeit stärker vorhanden als das Mitleid.“ 142 Lições sobre Ética, p.183, p.196. No original alemão: „Kann denn aber ein solches natürlich vorgegebenes und in verschiedenen Graden vorhandenes Gefühl überhaupt Grundlage für ein Verpflichtetsein sein? Sin wir verpflichtet zum Mitleid?“

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estaria de acordo com tal afirmação, porque sua filosofia não trata a motivação da

compaixão como fator universal determinante – ela não é a motivação recorrente e

predominante do agir humano nos mesmos termos empregados por Tugendhat, senão

poder-se-ia afirmar a partir da própria filosofia schopenhaueriana que esse não é o pior

dos mundos possíveis –, e ela vai justamente de encontro à normatividade. Uma moral

do respeito universal, nesses termos, exigiria que cada um de nós nos comportássemos

universalmente de modo ético-compassivo, ou que cada um de nós escolhêssemos nos

comportar assim, o que, como vimos, não são possibilidades admissíveis a partir das

premissas enunciadas pela filosofia schopenhaueriana.

Schopenhauer, dessa forma, não cumpre diversos requisitos exigidos na

proposta de fundamentação da moral empreendida por Ernst Tugendhat, estando em

desacordo com uma série de fatores centrais para o filósofo analítico, uma vez que o

conceito de compaixão schopenhaueriano (i) não é a base do respeito universal e

igualitário, (ii) possui um alcance limitado, (iii) não serve como critério puro de

ponderação para a classificação de uma ação como moralmente boa ou má – o critério,

para Schopenhauer, é a consciência moral (Gewissen) –, (iv) não nos obriga

(verpflichtet) em relação uns aos outros, i.e., ele não pode ser entendido de modo

normativo e não torna os seres humanos parceiros de cooperação,144 (v) ele não serve à

143 Cf. Lições sobre Ética, p.186, p.200. No original alemão: „[…] aber man kann aus ihm selbst [Mitleid] nichts Universelles und Normatives herauszaubern.“ 144 Não, ao menos, no sentido em que Tugendhat entende cooperação. Importante lembrar que a sociabilidade é explicada por Schopenhauer através do Tédio (Langeweile), o qual faz seres que não se amam – os humanos – procurarem uns aos outros (Cf. MVR, §57, p.403, I 369). É também conhecida, sobre esse assunto, a fábula (Fabel) dos porcos espinhos: “Em um dia frio de inverno, um grupo de porcos-espinhos apinha-se de modo bem próximo para que através do calor recíproco possam se proteger de morrer de frio. Contudo, rapidamente eles sentem os espinhos uns dos outros, motivo pelo qual, então, eles novamente se afastam uns dos outros. Quando a necessidade de aquecimento os traz novamente para perto uns dos outros, repete-se uma segunda vez aquele mal, de modo que eles iam daqui para lá passando por ambos os sofrimentos, até que eles encontrassem uma distância mediana na qual eles pudessem melhor se suportar. – Da mesma forma surge a necessidade da sociedade, nascida do vazio e da monotonia do próprio interior, os seres humanos são impelidos uns aos outros; mas as suas muitas características repugnantes e erros insuportáveis os fazem se rejeitar. A distância mediana, que eles finalmente encontram, e pela qual pode-se manter um convívio, é a cortesia e os bons costumes. A Aquele que não mantém essa distância se diz na Inglaterra: keep your distance! (mantenha distância!) – Em virtude disso, a necessidade de aquecimento recíproca é satisfeita inadequadamente, mas a picada do espinho não é sentida. Quem, contudo, possui em seu interior muito calor próprio, permanece com prazer fora da sociedade para evitar assim fazer e receber reclamações.” Cf. PP, §396, V 717. No original alemão: „Eine Gesellschaft Stachelschweine drängte sich, an einem kalten Wintertage, recht nahe zusammen, um durch die gegenseitige Wärme, sich vor dem Erfrieren zu schützen. Jedoch bald empfanden sie die gegenseitigen Stacheln; welches sie dann wieder von einander entfernte. Wann nun das Bedürfniß der Erwärmung sie wieder näher zusammen brachte, wiederholte sich jenes zweite Uebel; so

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filosofia ético-política, tal como entendida por Tugendhat, (vi) ele é um sentimento

“pré-dado” existente em diversos graus, e (vi) ele não é a principal e recorrente

motivação que causa o agir humano.

Tugendhat, a partir dessas constatações, acaba por abandonar o fundamento

moral apresentado por Schopenhauer. A tentativa de entender a correspondência entre

obrigações morais e direitos morais o conduz ao que ele considera ser o conceito central

da moral política, a saber, os direitos humanos.145 Segundo o autor, ser portador de

direitos legais significa que existe uma instância jurídica na qual esses direitos possam

ser exigidos, e, para ele, não é possível entender o significado de direito moral sem a

existência dessa instância de exigibilidade. Dessa forma, compreender a moral

relacionada a direitos significa para ele necessariamente pensá-la como realizável em

uma ordem jurídica.

Apesar do ponto de partida para reflexão dos direitos humanos ser a moral,

para Tugendhat, esses direitos não podem ser entendidos como inatos ou naturais, mas

como oriundos das relações morais estabelecidas entre os seres humanos, i.e., eles

devem ser entendidos como direitos moralmente concedidos.146 E, segundo a

argumentação do autor, “na medida em que nos colocamos sob a moral do respeito

universal, somos nós mesmos que concedemos a todos os seres humanos os direitos que

dela resultam”,147 como uma espécie de acordo, de contrato celebrado, o qual é

orientado na sua confecção pela moral, e, justamente por isso, é ele também moral.

Mas em qual instância poder-se-iam tornar efetivos esses direitos morais, e

de onde eles podem receber a sua força? Surge então, segundo Tugendhat, a

necessidade moral da instituição do Estado como órgão garantidor da observância

daß sie zwischen beiden Leiden hin und hergeworfen wurden, bis sie eine mäßige Entfernung von einander herausgefunden hatten, in der sie es am besten aushalten konnten. —So treibt das Bedürfniß der Gesellschaft, aus der Leere und Monotonie des eigenen Innern entsprungen, die Menschen zu einander; aber ihre vielen widerwärtigen Eigenschaften und unerträglichen Fehler stoßen sie wieder von einander ab. Die mittlere Entfernung, die sie endlich herausfinden, und bei welcher ein Beisammenseyn bestehn kann, ist die Höflichkeit und feine Sitte. Dem, der sich nicht in dieser Entfernung hält, ruft man in England zu: keep your distance! — Vermöge derselben wird zwar das Bedürfniß gegenseitiger Erwärmung nur unvollkommen befriedigt, dafür aber der Stich der Stacheln nicht empfunden. — Wer jedoch viel eigene, innere Wärme hat bleibt lieber aus der Gesellschaft weg, um keine Beschwerde zu geben, noch zu empfangen.“ 145 Cf. Lições sobre Ética, p.337, p.363. 146 Cf. Lições sobre Ética, p.345, p.372. 147 Cf. Lições sobre Ética, p.345-346, 372. No original alemão: „[…] dass wir selbst es sind, insofern wir uns unter die Moral der universellen Achtung stellen, die allen Menschen die sich aus dieser ergebenden Rechte verleihen.“

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desses direitos, o qual deve positivar um conjunto de prerrogativas e garantias que

contemplem a proteção à integridade física e a direitos sociais e econômicos básicos que

possibilitem viver de forma humanamente digna – o que acabaria por extrapolar os

limites estabelecidos pela tradição liberal. Assim, para Tugendhat, os direitos humanos

devem ser entendidos como uma concepção de justiça mínima qualitativa, na qual

direitos a meios mínimos de subsistência – bens matérias e a oportunidade de adquiri-

los, tais como o trabalho, cuidado, treinamento, educação, etc. – e as prestações de

serviço pelas quais possam ser efetivados são assegurados e observados pelo Estado.

A ética da compaixão de Schopenhauer foi descartada por Tugendhat, pelas

razões apresentadas acima, da reflexão do que ele, Tugendhat, considera ser o ponto

mais importante da ética. Talvez Tugendhat tenha considerado apenas os aspectos da

filosofia schopenhaueriana que realmente não servem a uma consideração ético-política.

Seria possível pensar a questão referente aos direitos humanos a partir de uma chave de

leitura schopenhaueriana, mesmo que o filósofo não tenha escrito diretamente sobre a

questão, e mesmo que ele não tenha procedido nos escritos dedicados às temáticas da

política e do direito através de um conceito de moral que obrigue e que seja normativo?

Para responder a tais questões, é necessário realizar uma breve e sucinta

exposição acerca da espinhosa questão dos direitos humanos, tema do nosso próximo

capítulo.

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4 Direitos Humanos: entre o Problema de sua

Fundamentação e sua Efetividade

Debater direitos humanos é uma tarefa complexa. O debate ocorre em um

terreno assaz pantanoso e amplo, pois não existe uniformidade no que diz respeito a sua

origem, definição, forma, estrutura, conteúdo, e finalidade, e, em geral, são exatamente

esses termos que estão em disputa. A despeito disso, é um debate que permanece na

ordem do dia no que se refere aos campos da ética, da política, da justiça, da moral, do

direito internacional, e das relações político-diplomáticas estabelecidas entre os Estados

componentes da comunidade internacional, para citar apenas alguns exemplos. O

terreno é pantanoso e amplo, precisamente porque é um terreno plural que comporta e

coaduna diversas perspectivas de análise.

Dada a impossibilidade de abarcar todos os principais pontos de um debate

tão extenso – e que por vezes é conduzido de forma irresponsável e superficial –,

limitar-nos-emos a reconstituir em linhas bem generalistas uma hipótese de

interpretação da história do conceito, a saber, a tese da afirmação histórica dos direitos

humanos, a qual encontra em Bobbio o seu principal expoente, acenando algumas

divergências suscitadas por aqueles que se ocupam da questão, seja no âmbito

estritamente prático, seja no âmbito teórico. Tal recorte permitirá que nos situemos

nesse debate de forma a construir e apresentar uma interpretação – dentro das diversas

possíveis e existentes – acerca do conceito de direitos humanos e das questões correlatas

a ele, sempre com a finalidade de refletir sobre as atualidades da filosofia

schopenhaueriana no que se refere à questão dos direitos humanos.

Muitos intelectuais, juristas, e autores identificam e definem os direitos

humanos como sendo sinônimos do termo direitos naturais;1 outros, entretanto, rejeitam

essa associação,2 traçando os vínculos existentes entre eles, mas ressaltando e

1 Vide, por exemplo, as definições dadas por Ferrari e Hunt. Cf. FERRARI, V.; BOFFI, M. (Coaut. de). Giustizia e diritti umani: osservazioni sociologico-giuridiche. Milano: F. Angeli, 1997, p.144; e Cf. HUNT, L. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.19. Doravante abreviado por A invenção dos direitos humanos: uma história, seguido de indicação de página. 2 Podemos citar aqui todos aqueles autores que trabalham a questão de uma perspectiva do juspositivismo ou da afirmação histórica dos direitos humanos. Dentre os autores e comentadores utilizados nessa pesquisa, poderíamos citar, por exemplo, Fábio Konder Comparato, Michael Freeden, Norberto Bobbio. Cf. COMPARATO, F. A afirmação histórica dos direitos humanos. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015. Doravante abreviado por Afirmação histórica dos direitos humanos, seguido do número de página;

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sublinhando as suas diferenças. Levando em consideração essa contenda, parece-nos

que um dos pontos chave para a abordagem inicial dos direitos humanos é a análise do

conceito de direito natural. Passemos, então, à exposição em linhas gerais do conceito, o

qual é também referido nos compêndios de história da filosofia e de direito por

jusnaturalismo.

4.1. O Direito Natural ou Jusnaturalismo

Em nosso segundo capítulo, temáticas como o jusnaturalismo e o

contratualismo foram abordadas, embora o foco dado aos conceitos tivesse sido limitado

ao contexto que a ocasião demandava. Esta seção constitui-se, dessa forma, como um

complemento ao que foi escrito ali, mas que naquele momento não encontrava lugar na

exposição, sob o risco de os objetivos traçados para o capítulo serem extrapolados e

desviados, prejudicando a clareza e o desenvolvimento de nossa argumentação.

O direito natural em sua acepção mais geral e reducionista é comumente

identificado como uma espécie de direito que independe das leis e do Estado, como algo

que existe de modo universal, atemporal, consistindo em um direito dado – seja pelo

ordenamento natural do mundo, seja pelos deuses ou deus, seja pela razão3 –, o qual é

evidente por si e em si,4 sendo necessário apenas que ele seja revelado, descoberto, ou

deduzido pelos seres humanos. A sistematização da explicação do direito natural, i.e., o

Cf. FREEDEN, M. Rights. Minneapolis: Univ. of Minnesota, 1991; Cf. BOBBIO, N. L'età dei diritti. Torino: Giulio Einaudi, 1995. Doravante abreviado por L'età dei diritti, seguido de indicação de página. 3 “Sua origem [doutrina jusnaturalista], portanto a autoridade superior sobre a qual se fundamenta, pode ser Deus, a natureza, a razão humana ou a história”. FACCHI, A. Breve história dos direitos humanos. Tradução Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p.29. Doravante abreviado por Breve história dos direitos humanos, seguido de indicação de página. 4 Sobre a questão da autoevidência, Hunt levanta boas questões, entre elas um possível paradoxo: “Essa afirmação de autoevidência, crucial para os direitos humanos mesmo nos dias de hoje, dá origem a um paradoxo: se a igualdade dos direitos é tão autoevidente, por que essa afirmação tinha de ser feita e por que só era feita em tempos e lugares específicos? Como podem os direitos humanos ser universais se não são universalmente reconhecidos?”. Cf, A invenção dos direitos humanos: uma história, p. 18. Para desenvolvimentos ulteriores, ver a introdução desse mesmo livro Cf, A invenção dos direitos humanos: uma história, p.13-33.

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jusnaturalismo, figura como uma das mais antigas tentativas de compreensão teórica do

fenômeno jurídico.5

O professor Celso Lafer oferece uma excelente e sucinta caracterização do

aspecto mais basilar e generalista do conceito de direito natural em seu livro A

reconstrução dos direitos humanos: O Direito Natural se contrapõe ao Direito Positivo, localizado no tempo e no espaço, e funciona, neste paradigma, como um ponto de Arquimedes para a análise metajurídica: tem como pressuposto a ideia de imutabilidade de certos princípios que transcendem a Geografia. A estes princípios, que são dados e não postos por convenção, os homens têm acesso através da razão comum a todos, e são estes princípios que permitem qualificar as condutas humanas como boas ou más – uma qualificação que promove uma contínua vinculação entre norma e valor e, por isso, entre Direito e Moral.6

Na tragédia grega Antígona, escrita por Sófocles, já era possível notar,

como assinala o professor Oswaldo Giacoia em seu texto Sobre direitos humanos na era

da biopolítica – seguindo a observação de Lafer,7 e como fizera antes Aristóteles –, a

evocação de um tipo de direito que estaria em consonância não com as leis escritas da

Pólis, mas com as leis da natureza, com as leis dos deuses; o direito estaria justificado a

partir de, por assim dizer, cosmoteologias: Desde a Antigüidade clássica, filósofos e juristas têm se dedicado a uma reflexão profunda sobre o inesgotável tesouro espiritual de Antígona. Em sua Retórica (1373 b e seguintes) já observava Aristóteles: “Pois realmente há, como todos de certo modo intuem, uma justiça e uma injustiça naturais, compulsórias para todas as criaturas humanas, mesmo para as que não têm associação ou compromisso com as outras. É isso que a Antígona de Sófocles claramente quer exprimir quando diz que o funeral de Polinices era um ato justo apesar da proibição; ela pretende dizer que era justo por natureza.”.

Em complementação, pode-se recorrer ao texto magno da mesma Retórica de Aristóteles 1375 a 31: “Devemos enfatizar que os princípios de equidade são permanentes e imutáveis, e que a lei universal tampouco muda, pois se trata da lei natural, ao passo que as leis escritas muitas vezes mudam. Esse é o significado dos versos da Antígona de Sófocles, onde Antígona defende que, ao enterrar seu irmão, violou as leis de Creonte, mas não violou as leis não-escritas.”.8

5 BARRETO, V (Org.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006, verbete Direito Natural, p.240. Doravante abreviado como Dicionário de filosofia do direito, seguido de indicação de verbete e página. 6 LAFER, C. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1988, p.16. Doravante abrevido por A reconstrução dos direitos humanos, seguido de indicação de página. 7 Cf. A reconstrução dos direitos humanos, p.35. 8 GIACOIA, O. Sobre direitos humanos na era da bio-política. In: KRITERION, Belo Horizonte, nº 118, Dez./2008, p.267.

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Como vimos, Grotius é um dos responsáveis pela mudança de paradigma no

modo de fundamentação dos direitos naturais,9 ao deduzi-lo daquilo que era tido por ele

como a natureza humana, daquilo identificado como uma das marcas distintivas do ser

humano em relação aos demais seres viventes: a sua racionalidade. Tal mudança marca

a passagem do que poderia ser chamado de jusnaturalismo clássico para o que é

comumente chamado de jusnaturalismo moderno,10 e ela é apenas uma das várias

mudanças que o debate filosófico e o desenrolar histórico vieram a nos revelar. Esse

processo acabou por distanciar cada vez mais o direito das fundamentações

cosmológicas e teológicas, como indica Goyard-Fabre: “As reviravoltas filosóficas da

modernidade contribuíram para apurar o conceito de direito arrancando-o de seu

invólucro cosmoteológico”.11

As teorias modernas do direito natural, i.e., o jusnaturalismo racional, bem

como as teorias contratualistas enunciadas nos séculos XVII e XVIII foram

fundamentais para o advento da Modernidade tal como a interpretamos

contemporaneamente.12 Sobre as teorias contratuais, pode-se ler no livro de Facchi,

Breve História dos Direitos Humanos, a seguinte interpretação: O contrato é a manifestação por excelência da autonomia individual, enquanto pressupõe um indivíduo livre, capaz de julgar o bem e o mal por si mesmo e capaz de vincular-se, de assumir um compromisso e mantê-lo. É a expressão de uma racionalidade instrumental, que calcula custos e benefícios, da livre vontade do homem que se autolimita através do exercício da razão.13

As teorias contratualistas desempenharam importante papel na ruptura com

o paradigma tradicional da vida política, uma vez que elas foram o recurso encontrado

para subverter a forma pela qual a política era até então abordada: a teoria aristotélica 9 Além do nosso segundo capítulo, Cf. GOYARD-FABRE, S. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.58. Doravante abreviado como Os fundamentos da ordem jurídica, seguido de indicação de página. Cf. também A invenção dos direitos humanos: uma história, p.117. Nesta obra, Hunt escreve: “Já em 1625, um jurista calvinista holandês, Hugo Grotius, propôs uma noção de direitos que se aplicava a toda a humanidade, não apenas a um país ou a uma tradição legal. Ele definia “direitos naturais” como algo autocontrolado e concebível separadamente da vontade de Deus. Sugeria também que as pessoas podiam usar os seus direitos – sem a ajuda da religião – para estabelecer os fundamentos contratuais da vida social.” 10 “O jusnaturalismo moderno, cujo lugar de excelência, dizem, seria a escola do direito da natureza e das gentes, teria se edificado sobre as ruínas do jusnaturalismo clássico.” Os Fundamentos da ordem jurídica, p. 50. 11Os Fundamentos da ordem jurídica, p. XX. 12 “Na busca dos fundamentos do direito, a referência à natureza das coisas é, com efeito, substituída pouco a pouco pela referência à natureza do homem. Essa mutação conduzirá ao advento da ‘modernidade’. Os Fundamentos da ordem jurídica, p. 40. 13 Breve história dos direitos humanos, p.43.

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do homem como animal político havia se consolidado como a teoria que embasava

direta ou indiretamente a explicação de que a vida em sociedade seria algo natural,

sendo uma das consequências da natureza humana. Entender a sociedade como uma

consequência da natureza humana envolve uma série de outras consequências diretas e

tangenciais no que se refere à forma pela qual as relações jurídico-políticas são

constituídas, i.e., como, em última instância, as relações de poder são construídas e

justificadas.

A primeira consequência fundamental da tese do homem como animal

político se dá pela forma como a sociedade é explicada: como um organismo, na qual as

partes são dependentes e existem em função do todo,14 i.e., existe uma preponderância

da esfera coletiva em relação à esfera individual, e não existe uma dissociação entre

Estado e sociedade civil; uma outra consequência fundamental refere-se ao fato de que

nascer no seio familiar – um grupo organizado de forma hierárquica – significa

necessariamente não nascer livre, dado que as condições de nascimento já comportam

uma série de limitações e fatores, tais como o indivíduo nascer submetido à autoridade

paterna, e não nascer igual, porque já está estabelecida um relação assimétrica de

superioridade e inferioridade entre pai e filho.

A passagem do paradigma aristotélico – a tese do animal político – para o

paradigma da sociedade como um artifício é justamente operada pelas teorias

contratualistas. O recurso ao estado de natureza permite que os indivíduos sejam

pensados como nascidos livres e iguais e que a sociedade e o Estado são constructos

humanos, e isso significa deslocar e alterar a forma pela qual as estruturas de poder são

fundadas: como Bobbio aponta, em uma concepção orgânica da sociedade as partes

estão em função do todo, enquanto que em uma concepção individualista o todo é

resultado da livre vontade das partes15 – e o próprio termo que passaria a ser empregado

nas cartas de direito, associação, é já reflexo dessa mudança de paradigma, dado que a

associação é um ato de vontade derivado de uma convenção e, portanto, uma

enunciação frontal às teorias organicistas. 14 Essa é uma tese enunciada muito claramente por Aristóteles: “É evidente que a cidade é, por natureza, anterior ao indivíduo, porque se um indivíduo separado não é auto-suficiente, permanecerá em relação à cidade como as partes em relação ao todo. Quem for incapaz de se associar ou que não sente essa necessidade por causa de sua auto-suficiência, não faz parte de qualquer cidade, e será um bicho ou um deus”. ARISTÓTELES. Política. Tradução e notas António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Lisboa: Vega, 1998. Livro I, 1253a 25-29. 15 Cf. BOBBIO, N. L'età dei diritti. Torino: Giulio Einaudi, 1995, p.128. Doravante abreviado como L'età dei diritti seguido de indicação de página.

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Durante esse período – o moderno –, era muito recorrente ao tratar de

temáticas de filosofia política, como ficou explícito no próprio caso de Schopenhauer, o

emprego conjugado do expediente jusnaturalista e do recurso ao contratualismo. O

jusfilósofo Norberto Bobbio também observa esse aspecto característico da época: Uma das representações mais constantes do direito natural é aquela em que ele é apresentado como o direito que regula as relações entre indivíduos singulares e isolados uns dos outros no estado de natureza, isto é, em um estado em que ainda não existe um direito púbico [...]. A passagem do estado de natureza para o estado civil ocorre com a instituição dos órgãos do poder público, encarregados de fazer respeitar as obrigações assumidas pelos indivíduos, recorrendo, em última instância, à força, na sociedade pré-estatal.16

Essas complementações de caráter mais abrangente ao jusnaturalismo

moderno e ao contratualismo acabam por permitir o desenvolvimento da argumentação

em outras direções, lançando nova luz sobre o conceito de direitos humanos e em seus

desdobramentos.

Bobbio identifica na teoria do direito natural uma espécie de absolutismo

ético, na medida em que ela é pautada em regras universais, as quais são obtidas a partir

da dedução da natureza humana;17 não só como absolutismo ético, mas ele também a

interpreta como principal ideologia do período em questão. Tal concepção, a da

existência de direitos naturais individuais, inatos, e universais, logrou grande êxito e foi

muito difundida na cultura popular europeia,18 chegando ao ponto de jusnaturalismo e

filosofia do direito serem confundidos e tratados como termos intercambiáveis. Bobbio

não o classifica, entretanto, simplesmente como uma teoria jurídico-científica; antes,

para ele, o êxito e a difusão do jusnaturalismo constitui-se e funcionou tal qual uma

ideologia: O jusnaturalismo não é uma teoria (científica), mas uma ideologia, ou, em outras palavras, não é uma teoria racional de um campo particular da experiência humana, mas é racionalização póstuma de uma necessidade fundamental, que é, geralmente, a de conservar o status quo.19

16 BOBBIO, N. Da estrutura à função. Barueri: Manole, 2007, p. 155. Doravante abrevido por Da estrutura à função, seguido de indicação de página. 17 “Na história do pensamento jurídico, o absolutismo ético é representado pela teoria do direito natural, que pretende deduzir regras de conduta universalmente válidas do estudo objetivo, ‘científico’, da natureza humana.” Da estrutura à função, p.193. 18 Breve história dos direitos humanos, p.45. 19 Da estrutura à função, p.194.

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Essa permeabilidade e fluxo das concepções fruto das reflexões jurídico-

políticas da escola do direito natural foram decisivas para os rumos da história:

enquanto celebrava-se os triunfos da razão, emergia e cristalizava-se ainda mais a noção

de que as sociedades e os Estados são construções humanas sustentadas e justificadas

pela escolha individual. A ideologia preponderante passa, então, a reverberar, seja como

guia de movimentos insurgentes, seja em documentos históricos, como cartas de direitos

proclamadas por tais movimentos, as quais seriam posteriormente integradas às

constituições dos países que atravessaram períodos de profunda mudança na ordem

social, como, por exemplo, os EUA e a França.

Antes de apresentar propostas de análise e interpretação para as cartas de

direito, verificando o impacto delas para o processo histórico do advento dos direitos

humanos, é interessante observar os problemas envolvidos na fundamentação dos

direitos naturais.

4.2. O Problema da Fundamentação dos Direitos Naturais

No artigo Sul fondamento dei diritti dell’uomo (Sobre os fundamentos dos

direitos do homem), publicado no livro L’età dei diritti, Norberto Bobbio apresenta a

questão dos fundamentos dos direitos humanos – aos quais ele se refere textualmente,

na maior parte das vezes, como direitos do homem – com grande esmero.

O texto é conduzido por três questões fundamentais: a primeira delas

questiona (i) qual seria o sentido do problema que nos pusemos acerca do fundamento

absoluto dos direitos humanos; a segunda investiga (ii) se um fundamento absoluto para

os direitos humanos seria possível; e a terceira avalia (iii) se, dado que fosse possível

um fundamento absoluto, se ele seria também desejável.20

A primeira dificuldade que Bobbio aponta no que se refere à fundamentação

dos direitos é a distinção que deve ser feita entre (i) a busca por fundamentos de um

direito que se tem – ou seja, daqueles direitos que se referem a um ordenamento jurídico

positivo existente do qual o indivíduo faz parte e possui, dessa forma, direitos e deveres,

e no qual deve ele, indivíduo, buscar uma norma válida que possa justificar, reconhecer

20 Cf. L'età dei diritti, p.5.

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e especificar o seu direito –, e (ii) a busca de fundamentos para os direitos que se

desejaria possuir, o que envolve e implica uma outra gama de questões21.

O esforço em fundamentar um direito que se desejaria ter envolve reunir e

apresentar boas razões que o justifiquem, na tentativa de convencer o maior número de

pessoas, e de obter o mais amplo reconhecimento possível. E tanto melhor e mais

eficiente se aqueles que estão convencidos da importância desses direitos forem os

detentores do poder de criar normas.

Segundo Bobbio, de um ponto de vista filosófico, partimos do pressuposto

de que os direitos humanos são desejáveis e que eles precisariam de um fundamento, de

que eles precisariam da exposição e da apresentação de motivos que os justificassem e

que os tornassem aceitos ou desejáveis pela maioria. Decorre-se, então, duas

consequências: a primeira delas é uma constatação feita pelo jusfilósofo de que assim os

direitos humanos passaram a ser relacionados de algum modo aos chamados direitos

naturais; a segunda, de que a busca por essa fundamentação criava um certo problema, a

saber, o problema da busca por uma fundamentação absoluta. Um fundamento absoluto,

i.e., um fundamento que não pode ser refutado, é por definição inquestionável e perene,

e, portanto, deve ser aceito por todos. Ele se constitui como um problema na medida em

que é criada a ilusão, segundo Bobbio, de que ele seja possível.

No que se refere à possibilidade de fundamentação absoluta, Bobbio

identifica, ao menos, quatro dificuldades:22 (i) a expressão direitos humanos é uma

expressão vaga; (ii) os direitos humanos constituem uma classe variável; (iii) a classe

dos direitos humanos é uma classe heterogênea; e (iv) o quão eficiente e recompensador

essa empreitada pode ser. Vejamos cada uma destas mais de perto.

Definições vagas possuem a aparência de delimitar e distinguir a

significação do conceito, mas se mostram imprecisas ou vazias de conteúdo, ou são

apenas, ao final, o enunciado de tautologias: “direitos humanos são aqueles direitos que

dizem respeito ao ser humano enquanto ser humano”, ou “direitos humanos são aqueles

direitos que pertencem, ou deveriam pertencer, a todos os seres humanos, ou dos quais

nenhum ser humano deveria ser despojado”, ou ainda, “direitos humanos são aqueles

direitos dos quais o reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da

pessoa humana ou mesmo para o desenvolvimento da civilização, etc., etc.”.23 Tais 21 Cf. L'età dei diritti, p.5. 22 Cf. L'età dei diritti, p.7-8. 23 Cf. L'età dei diritti, p.8.

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definições são meras tautologias, ou enunciam o que se gostaria que os direitos

humanos fossem. O conteúdo, elemento mais importante, continua passível de

interpretações variáveis conforme ideologia e visão de mundo, e é na aplicação, i.e., na

tutela ou na positivação dos direitos, que as contradições derivadas dessa vagueza do

conceito são mais bem visualizadas, porque é exatamente nesse ponto, nesse momento,

que elas não podem ser mais ignoradas ou contornadas.

Bobbio ainda atenta para a lógica de tal tipo de fundamentação: o

fundamento seria a condição para a justificação e a realização de valores últimos,

valores os quais não são justificados em si mesmos, mas são assumidos. Assumir os

valores últimos significa debater qual o conteúdo desses valores, o que envolve

concessões, renúncias, escolhas políticas, e o confronto de orientações ideológicas. Os

valores assumidos são, nesse sentido, valores construídos de acordo com o contexto

histórico, político, social, econômico, em um jogo de correlações de força. Segundo

Bobbio, a impossibilidade de definir precisamente o que são direitos humanos

impossibilita a própria busca por um fundamento, seja ele absoluto ou não.24

Que os direitos humanos constituam uma classe variável significa, em

consonância com uma das três principais teses de Bobbio,25 que os direitos se

modificam ao longo do processo histórico. Isso significa que os direitos são suscetíveis

à influência das necessidades e interesses existentes em cada período histórico, de que

eles dependem da classe ou classes sociais que detêm o poder – daqueles que podem

criar as normas –, dos meios e das condições disponíveis para que eles possam se

realizar, do progresso técnico e científico a que estamos sujeitos. Em suma, os direitos

são sempre uma construção histórica, e, portanto, passíveis de mudança, porque

justamente dependem da história e dos contextos social, político, econômico,

ideológico, etc.

Logo, do ponto de vista bobbiano, se demandas e necessidades emergem

historicamente e elas podem alterar o que é tido como direito, o direito é

necessariamente variável. E é possível comprovar tal possibilidade de interpretação ao

atentar aos exemplos fornecidos ao longo da história: o direito à propriedade fora

inicialmente declarado um direito humano sacro e inviolável, mas posteriormente 24 Cf. L'età dei diritti, p.9. 25 Bobbio afirma nunca ter se afastado em seus escritos de ao menos três teses: (i) os direitos naturais são em verdade direitos históricos; (ii) o conceito de direitos humanos nasce no início da era moderna, juntamente com a concepção individualista da sociedade; (iii) os direitos humanos tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico. Cf. L'età dei diritti, p.VIII.

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acabou por se transformar e por adquirir novos contornos e nuances de acordo com as

necessidades engendradas por novas demandas e pelas mudanças sociais, econômicas, e

ideológicas ocorridas ao longo da história – necessidades e demandas que não poderiam

ser vislumbradas ou não pertenciam ao rol de reivindicações do grupo ou grupos

organizados ou detentores do poder no momento da declaração de tal direito.

Do mesmo modo, seguindo a mesma lógica, Bobbio admite que

futuramente, com o surgimento de novas demandas e novas necessidades, emergirão

novos direitos, os quais, atualmente, talvez não possam nem mesmo ser vislumbrados.

Bobbio fornece ao menos dois exemplos, no período quando escreve, de demandas que

começavam a dar indícios de que viriam a ser objeto da reflexão jurídico-filosófica em

um futuro próximo: (i) o direito ao genoma humano ou patrimônio genético, em

decorrência dos avanços científicos na área, e (ii) o direito à privacidade, devido ao

aumento do fluxo e controle de informações. Tanto as pesquisas, os desenvolvimentos,

e os horizontes sobre o genoma humano, quanto os recentes casos de violações dos

direitos de privacidade cometidos, tais como aqueles praticados globalmente pela

Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) e trazidos à tona por um ex-analista da

CIA, Edward Snowden, vieram a comprovar que o diagnóstico de Bobbio sobre a

sensibilidade dessas questões era acertado.

Todo o raciocínio reproduzido acima pode ser resumido a uma simples

observação: “Aquilo que parece fundamental em uma época histórica e em uma

determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas”.26 E

essa variabilidade do direito impossibilita uma fundamentação absoluta.

Nas teorias jusnaturalistas modernas27 é possível observar a tentativa de

colocar o direito acima de qualquer refutação a partir da derivação direta do que seria a

natureza humana, ou seja, essa seria a forma e a estratégia para obter um fundamento

absoluto. Em outras palavras, a natureza humana funcionaria como fundamento

absoluto, porque ela mesma era entendida como universal e forneceria as razões

evidentes e incontestáveis a todos os seres humanos da irrefutabilidade do fundamento.

26 L'età dei diritti, p.10. No original italiano: “Ciò che sembra fondamentale in un’epoca storica e in una determinata civiltà, non è fondamentale in altre epoche e in altre culture.” 27 Historicamente foi possível observar a limitação de um fundamento absoluto de base teológica, uma vez que, apesar de possível, ele seria razoável, efetivo, e eficiente apenas entre aqueles que comungassem da mesma crença, e isso significa que ele seria absoluto somente para um grupo de pessoas, i.e., ele não poderia ser afirmado como universal. A busca por um fundamento absoluto e universal levou os teóricos modernos a buscarem um fundamento absoluto e universal na natureza humana.

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Mas aqui é variável até mesmo o que é tomado como natureza humana:28 desloca-se o

ponto da polêmica, mas a polêmica mesma permanece irresoluta.

Contudo, o autor logo rejeita a possibilidade de, pela falta de um

fundamento absoluto, resultar daí um relativismo. Segundo ele, os direitos ainda devem

ser justificados, mas tal justificação comporta mais de um fundamento; dessa maneira,

não se abandona a fundamentação dos direitos: o fundamento absoluto não é possível,

mas fundamentos – no plural – ainda o são. Admite-se, assim, a pluralidade, e essa

pluralidade repousa exatamente sobre a existência de fundamentos diversos, e essa

diferença de fundamentos significa, segundo Bobbio, que os direitos humanos não

podem constituir uma classe homogênea.

Os direitos humanos não serem homogêneos, i.e., eles serem heterogêneos

por conta dos diferentes fundamentos que possam possuir, explica e justifica o fato de

alguns direitos serem válidos e estendidos a todos, enquanto outros concorrerem entre

si. Essa concorrência, segundo Bobbio, engendra uma relação antinômica entre eles, a

qual consiste no fato de que para que alguns tipos de direito possam ser efetivados, seja

implicada necessariamente a não garantia de outros tipos de direito. E isso significa que

não é possível garantir paralelamente de modo pleno dois tipos diversos de direitos

quando eles são incompatíveis entre si.

Bobbio utiliza como exemplo para tornar mais clara a antinomia a relação

antitética existente entre os direitos individuais tradicionais, i.e., os direitos de

liberdade, e os direitos políticos e sociais. Segundo ele, os direitos de liberdade são

dependentes da não intervenção do Estado na vida de seus cidadãos, em obrigações

puramente negativas, e surgiram da demanda histórica de liberdade de religião,29

imprensa, opinião, etc., da demanda de restringir o poder do Estado sobre os seus

súditos ou cidadãos. Em contrapartida, os direitos políticos e sociais – identificados por

Bobbio como o direito ao trabalho, à instrução, e à saúde –, requerem, necessariamente,

a intervenção estatal, obrigações positivas, como meio de fomentá-los e garanti-los. É

fácil notar a antinomia e a contradição geradas entre dois tipos de direito que expressam

concomitantemente “O Estado não deve intervir na vida de seus cidadãos para assegurar

28 “[...] a julgar a partir da história do jusnaturalismo, a natureza humana foi interpretada das formas mais diversas, e o apelo à natureza serviu para justificar sistemas de valores que seriam até mesmo opostos entre si”. L’età dei diritti, p.19. No original em italiano: “[...] a giudicare dalla storia del giusnaturalismo la natura umana è stata interpretata nei modi diversi, e l’appello alla natura è servito a giustificare sistemi di valori anche opposti tra loro.” 29 Cf. A invenção dos direitos humanos: uma história.

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determinados direitos” e “O Estado deve intervir na vida de seus cidadãos para

assegurar outros tipos de direitos determinados”. Dessa forma, a lógica de

funcionamento revela que quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos, i.e., seus

direitos políticos e sociais, tanto mais diminui os direitos de liberdade desses mesmos

indivíduos, e vice-versa.

O jusfilósofo notou a antinomia e tomou como exemplo para explicá-la a

colisão entre os direitos de liberdade e os direitos políticos e sociais. Contudo, se forem

considerados os direitos ambientais, também eles estão em contradição com os outros

dois tipos de direitos mencionados anteriormente: assegurar um meio ambiente saudável

para as próximas gerações significa limitar, ao menos, o direito de propriedade e os

direitos políticos e sociais da geração atual. Áreas ambientais protegidas limitam o

acesso e uso das mesmas – e a tensão, disputa e pressão criadas por essa dinâmica

coloca em confronto aqueles que desejam explorá-las e aqueles que desejam protegê-

las; em relação aos direitos sociais, o argumento recorrente utilizado pelas potências

econômicas para não participar dos acordos globais sobre proteção e preservação do

meio ambiente é de cunho econômico, mais especificamente ao que se refere aos postos

de trabalho que poderiam ser fechados e no colapso econômico que poderia ser gerado

ao serem adotadas medidas restritivas. O argumento já fora utilizado pelos EUA para a

não assinatura do Protocolo de Quioto (1997) e, mais recentemente, no primeiro ano de

governo de Donald Trump (2017), para que o país se retirasse do acordo global sobre o

clima em Paris.30 O então presidente dos EUA alegou na ocasião: O Acordo de Paris sobre o clima é simplesmente o mais recente exemplo de que Washington cedeu a uma resolução que penaliza os Estados Unidos para beneficiar outros países. Deixa os trabalhadores americanos, que eu amo, e o contribuintes [sic] absorverem o custo, em termos de perda de empregos, menores salários, fechamento de fábricas e enorme redução na produção econômica.31

Direitos com eficácia, finalidade, e meios tão diversos de serem assegurados

são, para Bobbio, a comprovação de que eles não podem possuir um mesmo

fundamento e que, portanto, o fundamento não pode ser de modo algum absoluto; o

30 O texto do Acordo de Paris está disponível na página online das Nações Unidas. Cf. ONU. Framework Convention on Climate Change. Disponível em http://unfccc.int/resource/docs/2015/cop21/eng/l09r01.pdf. Acesso 02 jun. 2017. 31 KINKARTZ, S. O que é verdade na fala de Trump sobre o Acordo de Paris?. Deutsche Welle, Bonn, 02 jun. 2017. Notícias / Mundo. Disponível em: http://p.dw.com/p/2e3xQ. Acesso: 02 jun. 2017.

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caso das antinomias é só a expressão clara e mais evidente dessa lógica que é

contraditória em sua efetivação.

Além de serem uma impossibilidade, dados os argumentos apresentados,

segundo Bobbio, o fundamento absoluto pode funcionar, também, como pretexto para a

defesa de posições conservadoras e reacionárias. Assim foi feita resistência aos direitos

denominados políticos e sociais: alegando-se um fundamento absoluto para os direitos

de liberdade, um fundamento que não legitimava as respostas dadas aos novos tipos de

demandas que emergiam historicamente (direitos políticos e sociais), afirmava-se ser

incompatível um novo tipo de direito com os direitos já existentes, e que os já existentes

seriam preponderantes e deveriam ser mantidos.

Para além dos problemas e dificuldades referentes à efetivação de uma

fundamentação absoluta dos direitos, existe também o problema de saber se ela seria

eficaz. Segundo Bobbio, além de ela não ser possível, caso o fosse, ela não seria nem

mesmo eficaz. A primeira ilusão estaria assentada na possibilidade de um fundamento

absoluto, a segunda, de que um fundamento absoluto bastaria: Aqui chega à discussão o segundo dogma do racionalismo ético que é, assim, a segunda ilusão do jusnaturalismo: que os valores últimos não são apenas demonstráveis como teoremas, mas que basta tê-los demonstrado, isso é, que eles se tornem em certo sentido irrefutáveis e irresistíveis, para que seja assegurada sua realização.32

Não basta demonstrar um fundamento, é preciso assegurar os direitos que

seriam deduzidos dele. E a experiência histórica, de acordo com Bobbio, desmente a

primeira ilusão jusnaturalista ao mostrar que não são possíveis fundamentos absolutos, e

a segunda ilusão é desfeita por conta de três constatações/argumentos;33 (i) de que os

direitos humanos não foram mais respeitados nas épocas em que existiu acordo e

consenso de um fundamento tido como absoluto; (ii) de que com a declaração das

Nações Unidas em 1948, a busca por fundamentos foi de certa forma superada; (iii) de

que, já que a declaração da ONU serve como um ponto base para orientar o debate

32 L'età dei diritti, p.14. No original italiano: “Qui viene in discussione il secondo dogma del razionalismo etico che è poi la seconda illusione del giusnaturalismo: che i valori ultimi non solo si possano dimostrare come teoremi, ma che basti averli dimostrati, cioè resi in un certo senso inconfutabili e irresistibili, per assicurarne l’attuazione.” 33 Cf. L'età dei diritti, p.15-16.

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sobre direitos humanos, não se trata mais de fundamentá-los, mas de assegurá-los, o

que desloca a questão do âmbito filosófico para o âmbito político.34

A impossibilidade de encontrar um fundamento absoluto para os direitos

humanos conduz aqueles que se aventuram nessa empreitada em buscar os vários

fundamentos possíveis. O problema em fundamentar os direitos humanos, i.e., o que

Bobbio chama de crise de fundamentos, é um problema filosófico e não pode ser

dissociado da forma pela qual os direitos humanos são construídos, ou seja, é um

problema filosófico que não pode ser dissociado dos fatores históricos, sociais,

políticos, econômicos, etc.

É historicamente, i.e., na análise de documentos históricos e da marcha da

história, que é possível notar a importância dessa questão para a constituição e a

afirmação dos direitos humanos como os conhecemos atualmente. Analisemos, pois, o

conteúdo e importância das cartas de direitos das quais se noticiou a influência do

jusnaturalismo.

4.3. As Cartas de Direitos como Reverberação das Teorias

Jusnaturalistas: a Passagem do Plano Teórico para o Plano

Prático

Bobbio classifica como primeira fase histórica da emersão dos direitos

humanos o processo no qual é possível verificar a influência das teorias filosóficas nas

Declarações de Direitos: estas nascem de teorias filosóficas, como reverberações dos

34 Aqui temos um ponto da análise bobbiana sobre direitos humanos que é disseminado de forma um tanto distorcida por grande parte de seus intérpretes: Bobbio não abandona o problema da fundamentação dos direitos humanos, e não alega que ela seja uma questão menor ou sem importância. Bobbio abandona apenas a fundamentação absoluta dos direitos humanos, apontando os limites das proposições apresentadas pelas teorias jusnaturalistas. Ele desloca o debate para a questão dos fundamentos, termo empregado agora no plural, e dos direitos humanos enquanto construção histórico-político-econômico-social. Os quatro primeiros capítulos do livro L’età dei diritti se configuram exatamente como uma busca por fundamentos dos direitos humanos a partir de quatro perspectivas de análise para a questão: do ponto de vista filosófico (primeiro capítulo – Sul fondamento dei diritti dell’uomo [Sobre o fundamento dos direitos do homem]), jurídico (segundo capítulo – Presente e avvenire dei diritti dell’uomo [Presente e vir a ser dos direitos do homem]), da filosofia da história (terceiro capítulo – L’età dei diritti [A Era dos direitos]), e da sociologia do direito (quarto capítulo – Diritti dell’uomo e società [Direitos do homem e sociedade]). Os fundamentos encontrados, obtidos através da construção de consensos acerca dos direitos humanos, residem na carta de Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948.

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ideais e dos valores jusnaturalistas modernos e contratualistas, os quais acabaram por

ganhar concretude e amplitude prática exatamente nessas declarações e por causa delas.

Admite-se que o ser humano enquanto tal é detentor de direitos inatos, oriundos da sua

própria natureza, e que ninguém poderia, nem mesmo ele ou o Estado, tolher, alienar ou

negar esses direitos.

Essas teorias expressavam não aquilo que o direito era, o seu ser, mas o que

era desejável que ele fosse, o seu dever ser, a partir de um conteúdo que tinha a

pretensão de ser universal e voltado a uma entidade racional alheia às categorias de

tempo e de espaço. Além disso, tais teorias tornaram-se a base de novas concepções do

Estado e do direito que se consolidavam, nas quais o Estado deixaria de possuir um

poder absoluto e ilimitado e de ser a finalidade da organização social, e na qual a

afirmação dos direitos não seria mais uma exigência, mas o ponto de partida.35

O processo de transição pelo qual efetivamente ocorrem essas mudanças se

deu por meio da acolhida que essas teorias recebem das Declarações de Direitos, o que

inaugura uma segunda fase histórica do processo de formação dos direitos humanos: a

passagem do âmbito teórico, i.e., do âmbito do enunciado de princípios e do

conhecimento especulativo acerca de um direito tido como natural, para o âmbito

prático, i.e., a positivação dos princípios até então teóricos36 nas cartas constituintes e a

realização do direito através da sua efetivação.

Segundo o professor Fábio Konder Comparato, historicamente é possível

notar algumas diferenças nesse processo: enquanto os ingleses consideravam que a

proteção jurídica necessitava de recursos que não se limitavam a simples declarações,

como, por exemplo, garantias judiciais, i.e., a mobilização do aparato técnico-jurídico, a

tradição francesa encarava uma declaração de direitos como algo dotado de grande

poder político-pedagógico.37 Tomemos alguns exemplos para ilustrar a questão:38 (i) a

Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689, consequência da Revolução Gloriosa;

(ii) as declarações de direitos envolvidas no processo histórico de independência dos

EUA, tais como a Carta de Direitos de Virgínia de 1776, a própria Declaração de

35 Cf. L'età dei diritti, p.23. 36 Sobre o processo histórico de afirmação dos direitos humanos Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos. 37 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.101. 38 Sobre as cartas de direitos Cf. MARQUES, V. Direitos humanos e revolução: temas do pensamento político setecentista. Lisboa: Colibri, 1991. Doravante abriado por Direitos humanos e revolução, seguido de indicação de página.

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Independência do país (1776), e a Declaração dos Direitos e Garantias da Constituição

Federal Norte-Americana (1791); (iii) as declarações oriundas do processo

revolucionário francês, dos anos de 1789, 1791, 1793 e 1795; e (iv) a Declaração

Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas

(ONU) de 1948.

4.3.1. A Declaração de Direitos (Bill of Rights) Inglesa de 1689

A Declaração de Direitos (Bill of Rights)39 inglesa foi um dos resultados da

Revolução Gloriosa ocorrida ao final do século XVII,40 produto da animosidade

fomentada, principalmente, por conflitos religiosos, e que foi impulsionada pela disputa

da sucessão do trono de Inglaterra, o qual poderia ter como sucessor um professante da

religião católica. O Parlamento, que não era convocado havia alguns anos, reuniu-se por

iniciativa própria e declarou vago o trono de Inglaterra41 após o então monarca, Jaime

II, ser obrigado a fugir para a França. A carta de direitos resultante do processo foi a

condição para que o Príncipe de Orange, esposo de Maria, a qual era protestante e filha

de Jaime II, pudesse assumir o trono de Inglaterra.42 Ela foi a primeira carta de direitos

a limitar os poderes de um Estado absoluto, mais precisamente, a limitar uma

monarquia absolutista. Dessa forma, foram criados os primeiros mecanismos de garantia

e proteção à existência e ao funcionamento do Parlamento – como a institucionalização

39 Sobre o termo “bill”, Hunt ressalta um ponto importante e que depois seria decisivo na opção dos movimentos posteriores: A história da palavra “declaração” fornece uma primeira indicação da mudança na soberania. A palavra inglesa “declaration” vem da francesa “declaration”, de mesma grafia. Em francês, a palavra se referia originalmente a um catálogo de terras a serem dadas em troca do juramento de vassalagem a um senhor feudal. Ao longo do século XVII, passou cada vez mais a se referir às afirmações públicas do rei. Em outras palavras, o ato de declarar estava ligado à soberania. [...] Em 1776 e 1789, as palavras “carta”, “petição” e “bill” pareciam inadequadas para a tarefa de garantir os direitos (o mesmo seria verdade em 1948). “Petição” e “bill” implicavam um pedido ou apelo a um poder superior (um bill era originalmente “uma petição ao soberano”), e “carta” significava frequentemente um antigo documento ou escritura. “Declaração” tinha um ar menos mofado e submisso. Além disso, ao contrário de “petição”, “bill” ou até “carta”, “declaração” podia significar a intenção de se apoderar da soberania”. Cf, A invenção dos direitos humanos: uma história, p.114. 40 Uma excelente análise histórica da Revolução Gloriosa pode ser encontra no livro de Christopher Hill, em especial nas suas terceira e quarta partes. Cf. HILL, C. The century of revolution: 1603-1714. London: Routledge, 1980. 41 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.105. 42 Segundo Marques, é possível interpretar a carta como um contrato, como um acordo entre o monarca e o povo: “[...] trata-se antes do termo do contrato entre o povo e o seu monarca, na linha da concepção do duplo contrato de Pufendorf.” Direitos humanos e revolução, p.89.

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da permanente separação de poderes43 – frente ao chefe de Estado, neste caso, frente ao

monarca.

Apesar da carta de direitos inglesa diferir das cartas de direitos posteriores,

como, por exemplo, das cartas de direitos dos EUA e das Declarações de Direitos do

Homem e do Cidadão francesas, escritas cerca de cem anos após o Bill of Rights inglês,

este foi pioneiro no sentido de proteger direitos admitidos como fundamentais, iniciando

o processo prático de limitação do poder do Estado.

O Bill of Rights, contudo, não pode ser considerado o garantidor da

liberdade religiosa; ao contrário, apesar de toda a querela religiosa que deu ensejo à

Revolução Gloriosa, da restrição do poder do Estado, e de prevenir institucionalmente a

concentração de poderes, a carta de direitos instituiu o protestantismo como religião

oficial a todos os súditos do rei.

Pode-se, por assim dizer, afirmar que a carta de direitos inglesa foi resultado

pioneiro no que diz respeito à resistência e limitação do poder absoluto do Estado;

resistência e limitação que ainda não garantiriam os direitos tradicionais de liberdade,

mas que, constituíam, assim, os primeiros passos para a consolidação de tais

reivindicações. Estas cresceriam, ganhariam força, e ainda poderiam ser verificadas no

processo de independência estadunidense e, exatos cem anos depois, no processo

revolucionário francês.

4.3.2. As Cartas de Direitos Estadunidenses

Ao menos três documentos históricos estadunidenses são relevantes para a

nossa análise, a saber, A Declaração de Direitos da Virgínia (1776), A Declaração de

Independência dos Estados Unidos da América (1776) e A Declaração dos Direitos e

Garantias da Constituição Federal Norte-Americana (1791).

A Declaração de Direitos da Virgínia (1776) foi redigida poucas semanas

antes da declaração de independência dos EUA. De autoria de George Mason, a carta de

Virgínia é a primeira e mais conhecida Declaração de Direitos das antigas treze colônias

inglesas na América do Norte44. Composta de dezesseis artigos, essa carta de direitos

retoma e enuncia – atribuindo o status de direitos fundamentais – princípios e ideais

43 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.105. 44 Direitos humanos e revolução, p.93.

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advogados pelas teorias jusnaturalistas e contratualistas, concedendo maior grau de

concretude ao que foi posteriormente classificado como direitos tradicionais, ou direitos

de liberdade, ou ainda, direitos de primeira geração / dimensão, a saber, o direito à vida,

e às liberdades de religião, de opinião, e de expressão.

Logo em seu primeiro artigo ela enuncia “Que todos os seres humanos são

por natureza igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos”,45 em

clara referência às teorias do direito natural, “dos quais, quando eles entram em estado

de sociedade não podem ser por qualquer pacto privados ou despojados de sua

posteridade”,46 na qual reconhece-se elementos das teorias contratuais, além de

enunciar, no mesmo artigo, que a vida e a liberdade são exatamente esses direitos

inatos, bem como os meios para fruí-las, a saber, os meios de aquisição e posse da

propriedade, a busca pela felicidade, e a segurança.

O segundo artigo desloca o lugar onde até então residia o centro de poder e

a figura que o detinha e o exercia: se antes o poder era concentrado no Estado e nas

figuras do monarca ou de chefes religiosos, enuncia-se agora que o poder pertence e

deriva do povo.47

Além desses dois artigos, é possível ler no décimo segundo artigo da

Declaração a enunciação do direito de liberdade de imprensa,48 i.e., de liberdade de

opinião, e no décimo sexto o direito de liberdade de livre exercício da religião, embora

seja previsto que todos pratiquem a indulgência cristã.49

A Carta de Virgínia reúne, assim, importantes elementos dos direitos

tradicionais de liberdade. Elementos esses que estariam presentes e seriam reivindicados

com maior radicalidade, i.e., com maior extensão e profundidade, nas cartas de direitos

posteriores, tais como a limitação dos poderes do Estado frente aos seus cidadãos – o

que significava, basicamente, impostos menores, o fim de prisões arbitrárias, e dispor de

processo legal justo –, o direito à vida, às liberdades de imprensa / opinião e de religião. 45 Cf. Direitos humanos e revolução, p.93. (“That all men are by nature equally free and independent and have certain inherent rights”). É possível ter acesso a uma versão digital em inglês da declaração, bem como do documento original digitalizado, no site eletrônico da George Manson’s Gunston Hall: MASON, G. The Virginia Declaration of Rights: Final Draft, 12 June 1776. Disponível em: http://www.gunstonhall.org/georgemason/human_rights/vdr_final.html. Acesso: 11 abril 2016. 46 Cf. Direitos humanos e revolução, p.93. (“[…] of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity;”). 47 Cf. Direitos humanos e revolução, p.93. (“That all power is vested in, and consequently derived from, the people;”). 48 Cf. Direitos humanos e revolução, p.94. 49 Cf. Direitos humanos e revolução, p.95.

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A Declaração de Independência estadunidense foi adotada pelo Segundo

Congresso Continental ocorrido na Filadélfia em 4 de julho de 1776. O professor

Comparato faz duas observações relevantes sobre esse documento: a primeira de que (i)

tratar-se-ia da primeira vez que se decide publicar as razões de um ato de

independência, por um respeito devido às opiniões da humanidade;50 e a segunda, de

que (ii) esse é o primeiro documento histórico “a afirmar os princípios democráticos, na

história política moderna”.51

Nela, declara-se que todos os homens nascem iguais e são dotados de

direitos inatos e inalienáveis: vida, liberdade, e busca pela felicidade.52 É possível notar,

ao menos, o alinhamento com dois aspectos constantes na Declaração de Virgínia, a

saber, que o governo é instituído para garantir os direitos naturais dos indivíduos, e que

a nova legitimidade política não está centrada nos monarcas ou nos chefes religiosos,

mas na soberania popular, i.e., o povo é o detentor e centro do poder, e essa soberania

popular está assentada justamente nos direitos inalienáveis citados acima. Ou seja, a

soberania popular repousa no direito à vida, na liberdade e na busca pela felicidade.

Nesse sentido, é importante notar como também a Declaração de

Independência dos EUA assume os princípios teóricos do jusnaturalismo, das ideias

políticas predominantes e norteadoras do período. Deve-se atentar, também, para o fato

de que na Declaração de Independência não foi incluída uma declaração de direitos

fundamentais do cidadão,53 uma vez que tal tipo de declaração já constava nas

Constituições estaduais as declarações de direitos, salvo na Constituição de Nova

York.54

Em 1789 foi apresentada uma proposta de emenda constitucional aditiva

para que se anexasse à Constituição em âmbito federal uma declaração de direitos com

outros doze artigos, os quais comporiam uma emenda constitucional cada um. Dois

desses artigos não foram aprovados por três quartos dos Estados, e em 15 de dezembro

50 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.118. 51 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.117-118. 52 “A importância histórica da Declaração de Independência está justamente aí: é o primeiro documento político que reconhece, a par da legitimidade da soberania popular, a existência de direitos inerentes a todo ser humano, independentemente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social.” Afirmação histórica dos direitos humanos, p.119. 53 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.132. Sobre as razões da Declaração de Independência não possuir uma declaração de direitos Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.132-137. 54 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.133.

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de 1791 foi proclamada a adição das dez emendas aprovadas pelas duas casas

legislativas à Constituição Federal dos EUA.

A primeira emenda constitucional enuncia a não interferência do Estado –

não promulgando leis que estabeleçam ou que proíbam o livre exercício de cultos

religiosos – em relação à liberdade de opinião/expressão e de imprensa, e à liberdade de

reunião e de petição;55 a sexta emenda enuncia a garantia de um julgamento justo, i.e., a

pessoa acusada teria direito a um julgamento público, um júri imparcial, o direito de ser

informado sobre a natureza e a causa da acusação, de ser acareada com as testemunhas

de acusação, do comparecimento de testemunhas de defesa, e de ser representada por

um advogado designado para a sua defesa.56

As nona e décima emendas enunciam os direitos inerentes ao povo que não

podem ser negados, uma espécie de garantia do asseguramento de direitos naturais

contra direitos legais quando esses se encontram em conflito,57 e da reafirmação dos

poderes reservados aos Estados e ao povo.58

O que é interessante notar nos documentos estadunidenses de acordo com o

nosso recorte de investigação e análise? Em primeiro lugar, é possível constatar o acerto

de Bobbio ao verificar a influência das teorias filosóficas que predominavam no período

na confecção das duas cartas e da declaração;59 em segundo lugar, a limitação do poder

Estatal e da mudança do centro desse poder, ao enunciar que todo poder emana do povo;

em terceiro lugar, que essas declarações de direitos consideram os direitos naturais e

atribuem a eles, através da positivação – de transformá-los em direitos postos, direitos

legais –, o status de direitos fundamentais, i.e., de direitos básicos reconhecidos pelo

Estado;60 como consequência direta desse terceiro aspecto, pode-se afirmar que foi

inaugurada, assim, a própria concepção de Constituição nos moldes como a

entendemos, i.e., como uma série de direitos acima da legislação ordinária;61 e, em

55 Cf. Direitos humanos e revolução, p.97. 56 Cf. Direitos humanos e revolução, p.99. 57 Cf. Direitos humanos e revolução, p.99. 58 Cf. Direitos humanos e revolução, p.100. 59 Comparato aponta como principais fontes filosóficas dos documentos apresentados aqui as teorias de John Locke, Jean-Jacques Rousseau, e Montesquieu. Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.124. Bobbio reconhece, ao menos, a grande influência de Locke. Cf. L'età dei diritti. 60 Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.124. 61 Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.124.

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quarto lugar, que as declarações de direitos estadunidenses são, essencialmente,

declarações de direitos individuais.62

Os direitos declarados nesses documentos enunciam direitos nos âmbitos da

liberdade e da igualdade – e aqui deve-se frisar, trata-se de uma igualdade meramente

formal.63 Em nenhum dos artigos da Declaração de Direitos ou da Declaração de

Independência abordou-se direitos que poderiam ser considerados como direitos

coletivos – os quais seriam classificados posteriormente, seguindo o lema do processo

revolucionário francês, como direitos de fraternidade. Apesar de as declarações

estadunidenses possuírem forte viés individualista, e, em momento algum fazerem

referência a direitos de fraternidade / coletivos tal como as cartas e declarações

francesas que exprimiam a fraternidade como um de seus principais lemas, é possível

afirmar que o processo francês foi mais individualista que o estadunidense. As cartas e

declarações de ambos os países exprimiam noções essencialmente individualistas, mas

enquanto as cartas estadunidenses referiam-se diretamente à finalidade da associação

política, relacionando os direitos individuais ao bem comum da sociedade, os

constituintes franceses afirmavam primária e exclusivamente os direitos dos

indivíduos.64 É nesse contexto que passamos, pois, à análise das Cartas de Direito

resultantes do processo revolucionário francês.

4.3.3. As Cartas de Direito Resultantes do Processo Revolucionário

Francês65

O processo revolucionário francês produziu ao menos quatro cartas de

direitos que merecem um olhar mais atento de nossa parte66: são elas (i) A Declaração

62 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.123. 63 Hunt aponta claramente esse fenômeno, tanto na Declaração de Independência estadunidense, quanto na Declaração francesa de 1789: “A igualdade, a universalidade e o caráter natural dos direitos ganharam uma expressão política direta pela primeira vez na Declaração da Independência americana de 1776 e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.” A invenção dos direitos humanos: uma história, p.19. 64 Cf. L'età dei diritti, p.98. 65 A bibliografia sobre o processo revolucionário francês é demasiadamente extensa. Restringimo-nos a indicar a leitura de dois textos: Cf. O terceiro capítulo de HOBSBAWM, E. A era das revoluções: 1789-1848. 32ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013; e Cf. TOCQUEVILLE, A. O antigo regime e a revolução. Brasília; São Paulo, SP: UnB: Hucitec, 1989.

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dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789, (ii) A Declaração de

Direitos da Constituição de 1791, (iii) A Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão da Constituição Francesa de 24 de Julho de 1793, e a (iv) Declaração dos

Direitos e dos Deveres do Homem e do Cidadão da Constituição Francesa de 22 de

agosto de 1795.

A Declaração de 1789, apesar de marcadamente adotar o ponto de vista

individual e não coletivo, i.e., partir da consideração do ser humano considerado

singularmente, é dirigida não apenas aos franceses, mas ao gênero humano como um

todo. Como bem recorda Bobbio ao citar Tocqueville, a Revolução Francesa foi uma

revolução política que operou como uma revolução religiosa,67 uma vez que ela tinha

como objetivo reformar todo o gênero humano e de fundar um novo mundo, o qual,

como observou Comparato, não seria simplesmente a sucessão de um mundo antigo,

mas a construção de novas relações que se opunham radicalmente a ele.68 Não era

apenas questão de suceder um regime que estava minguando e em decadência, de

ocupar os espaços deixados pelo Antigo Regime (Ancien Régime), mas de apresentar-se,

de colocar-se, e de realizar-se como a causa e o motivo da destruição e do solapamento

desse regime.69

Algumas das transformações engendradas pelo processo revolucionário

francês como forma de contraposição ao Antigo Regime foram pequenas, outras

lograram produzir impactos muito mais acentuados. Algumas foram breves, i.e., tiveram

curta duração – como a adoção de um novo calendário que aboliu o calendário cristão;

outras foram duradouras – como a adoção do sistema métrico decimal.

Considerada a partir da perspectiva histórica, a Revolução Francesa foi, de

fato, um marco incontornável da história ocidental, justamente por fomentar e

66 Para uma análise mais abrangente Cf. o quinto capítulo de Afirmação histórica dos direitos humanos, p.140-178. 67 “[...] a Revolução francesa foi uma revolução política que tinha operado como as revoluções religiosas [...] porque ‘parecia ter como objetivo a regeneração do gênero humano, mais do que a reforma da França.” TOCQUEVILLE, A. L’acien regime et la révolution. In: Œuvres complètes. Tomo II. Paris, 1952, p.89 apud L'età dei diritti, p. 112. O excerto, tal como reproduzido por Bobbio, é grafado da seguinte forma: “[...] la Rivoluzione francese era una rivoluzione politica che aveva operato come le rivoluzioni religiose, […] perché ‘sembrava tendere alla rigenerazione del genere umano, più ancora che alla riforma della Francia.” 68 Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.142. 69 “[...] a Revolução Francesa, desde logo, apresentou-se não como a sucessora de um regime que desaparecia por morte natural, mas como a destruidora voluntária do regime antigo por morte violenta.” Afirmação histórica dos direitos humanos, p.144.

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desencadear uma série de consequências políticas, jurídicas e sociais – as quais foram

ganhando força e amplitude a partir das teorias filosóficas disseminadas;70

consequências que foram sentidas e que reverberaram por séculos – se é possível negar

que os seus efeitos ainda são sentidos. O processo francês também inaugurou um novo

sentido para a palavra “revolução”:71 não mais como uma espécie de volta às origens,

tal como empregada pelos então falantes de língua inglesa para a palavra revolution,

utilizada no sentido político e não mais apenas astronômico pela primeira vez para se

referir à restauração monárquica de 166072 – e daí o sentido mais próximo ao seu

significado primevo, i.e., de executar um movimento circular ou elíptico de retorno a

uma posição original –, mas como o marco de uma renovação completa e profunda,

nesse caso, das instituições políticas, jurídicas, sociais, na qual é observada a

reconfiguração dessas instituições e de suas estruturas.

Em dois de seus artigos do livro L’età dei diritti,73 Bobbio apresenta

ponderações sobre estudos que suscitaram a polêmica e o debate sobre qual carta de

direitos – dentre as cartas dos EUA e de França – seria superior. Ainda segundo o autor,

não seria possível paragonar de modo preciso os eventos estadunidense e francês, dado

que o primeiro estava voltado à resolução de suas próprias dificuldades políticas, i.e., de

lidar com as questões implicadas de seu próprio regime político, e o segundo pretendia

pôr fim a um regime político inteiro, levando a liberdade a todos os povos. Entre as

disputas de juízos de fato, juízos de valor, entre a superioridade moral e a superioridade

política dos dois processos, Bobbio afirma que é possível discutir o conteúdo das cartas,

mas que deve-se considerar que existe um fator incontestável em toda essa disputa, a

saber, que as teorias filosóficas europeias influenciaram os revolucionários

estadunidenses,74 e que, por sua vez, a estratégia estadunidense em promulgar cartas de 70 Hunt aponta também o romance como importante veículo de disseminação de ideias e ideais: “O romance exerce o seu efeito pelo processo de envolvimento na narrativa, e não por discursos moralizadores explícitos.” Cf, A invenção dos direitos humanos: uma história, p.56. 71 Do latim, revolutio, e, em francês, révolution. 72 Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.140. 73 Tais ponderações podem ser encontradas nos artigos La Rivoluzione Francese e i diritti dell’uomo (A Revolução Francesa e os direitos do homem) e L’eredità della grande Rivoluzione (A herança da grande revolução). Cf. L'età dei diritti, p.89-142. 74 Como atenta Comparato ao citar Carl J. Richard “os líderes revolucionários procuraram substituir, a uma sociedade dominada por uma aristocracia de nascimento, uma sociedade dirigida por uma aristocracia de mérito. No século XVIII, mérito significava cultura – e cultura significava conhecimento dos clássicos.” (RICHARD, C. The founders and the classics: Greece, Rome, and the american englightenment. Harvard University Press, 1996, p.51 apud Afirmação histórica dos direitos humanos, p.118). Além de conhecer os clássicos, os Pais Fundadores dos EUA também conheciam bem os textos de

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direitos influenciou diretamente os franceses.75 Bobbio pode fazer tal afirmação porque

é bem sabido que La Fayette, militar francês considerado um herói do processo de

independência estadunidense, foi um dos responsáveis pela apresentação do primeiro

projeto da Declaração Francesa, sob a orientação e aconselhamento de Thomas

Jefferson – envolvido diretamente na redação do documento estadunidense, sendo ele

um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos –, então embaixador dos EUA em Paris.76

Dentro da tensão estabelecida entre (i) resolver e se resguardar de questões

relativas ao ordenamento político do Antigo Regime e (ii) de lançar as bases para um

novo mundo vindouro, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 é

redigida e promulgada. Tal tensão é bem descrita na seguinte passagem: Ela [Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789] representa, por assim dizer, o atestado de óbito do Ancien Régime, constituído pela monarquia absoluta e pelos privilégios feudais, e, neste sentido, volta-se claramente para o passado. Mas o caráter abstrato e geral das fórmulas empregadas, algumas delas lapidares, tornou a Declaração de 1789, daí em diante, uma espécie de carta geográfica fundamental para a navegação política dos mares do futuro, uma referência indispensável a todo projeto de constitucionalização dos povos.77

Essa não era a única tensão existente nessa carta de direitos. É possível

também notar a amplitude desejada por ela, já apontada acima, do caráter universal, ao

referir-se ao gênero humano78 – a carta se refere aos Homens (Homme), mas o termo

abarcaria os dois sexos biológicos –, e o seu caráter particular / nacional, ao referir-se

aos direitos políticos de cada um dos cidadãos do Estado francês. Trata-se de um

John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu, teóricos de extrema importância para ambos os processos históricos e para ambas as cartas de direitos, estadunidense e francesa (Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.162). E Hunt escreve: “Grotius, Pufendorf e Burlamaqui eram todos bem conhecidos dos revolucionários americanos, como Jefferson e Madison, que eram versados em direito.” (Cf., A invenção dos direitos humanos: uma história, p.119). 75 Enquanto Bobbio é mais cauteloso, apresentando apenas ponderações sobre estudos que avaliam as relações de influência entre os dois casos, entre aqueles que defendem e aqueles que negam a influência direta do processo estadunidense no processo francês, Comparato defende a primeira hipótese, em especial por conta do fato de que as Declarações, sobretudo a do Estado de Virgínia, haviam sido traduzidas para o francês e contavam com várias edições. Cf. L'età dei diritti, p.89-141; Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.160. 76 Cf. L'età dei diritti, p.122-123. 77 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.163. 78 “Primeiro documento de direitos humanos a falar na ideia do universal ético: a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão na França, de 1789.” MEDEIROS, A. Direito internacional dos direitos humanos na América Latina: uma reflexão filosófica da negação da alteridade. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juirs, 2007, p.15.

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documento cuja pretensão é, ao mesmo tempo, de caráter universal, de caráter nacional,

e que possui como base teórica a perspectiva dos direitos individuais.

Composta por dezessete artigos, logo no preâmbulo da Declaração de 1789

é possível verificar o peso que as teorias jusnaturalistas exercem também no processo

francês e a ambivalência de escopo citada acima: a corrupção governamental e os

problemas e as mazelas da vida em comunidade estão estritamente relacionados à

ignorância, ao esquecimento, e ao desprezo dos direitos naturais do ser humano. É tarefa

dessa Declaração explicitar quais seriam esses direitos e quais seriam os deveres e

obrigações que eles engendram entre governo e governados; direitos e deveres os quais

serviriam para os cidadãos franceses – para os quais ela possuiria valor legal – e,

também, a todo o gênero humano: Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes recorde sem cessar os seus direitos e os seus deveres.79

No preâmbulo nota-se, também, a enunciação da separação dos poderes80

segundo a difundida tese de Montesquieu. No primeiro artigo estão grafados os valores

de liberdade e da igualdade formal perante as leis. Dois dos ideais pertencentes à

famosa tríade “liberdade, igualdade e fraternidade” (Liberté, Égalité, Fraternité),

aparecem já aqui: a liberdade e a igualdade. E ambos são diretamente deduzidos de

teorias dos direitos naturais e das teorias contratualistas.

E é precisamente no segundo artigo que temos a menção às teorias

contratualistas: “O objectivo de qualquer associação política é a conservação dos

direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a

79 Direitos humanos e revolução, p.101. (« Les Représentants du Peuple Français, constitués en Assemblée Nationale, considérant que l'ignorance, l'oubli ou le mépris des droits de l'Homme sont les seules causes des malheurs publics et de la corruption des Gouvernements, ont résolu d'exposer, dans une Déclaration solennelle, les droits naturels, inaliénables et sacrés de l'Homme, afin que cette Déclaration, constamment présente à tous les Membres du corps social, leur rappelle sans cesse leurs droits et leurs devoirs ; »). 80 Cf. Direitos humanos e revolução, p.102. Apesar da declaração de separação dos poderes, essa não foi rigidamente observada. Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.148.

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propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.81 O termo associação possui

conotação que remete claramente ao âmbito da política, referindo-se a uma convenção

derivada de um ato de vontade, podendo ser, desse modo, entendido e relacionado, por

assim dizer, à forma empírica da ideia de contrato. A associação política tem como

finalidade a conservação dos direitos naturais, quais sejam, a liberdade, a propriedade, a

segurança e a resistência à opressão.

Nesse segundo artigo é possível observar, também, o tensionamento entre

lançar as bases do novo e vindouro, e resolver pendências com o regime anterior;

enquanto os direitos naturais de liberdade, propriedade, e segurança podem ser

entendidos como os direitos que serão os alicerces do novo, o direito de resistência

aparece como um recurso a ser utilizado em casos extremos, quando um dos outros três

direitos naturais é violado, e, acima de tudo, como uma justificativa póstuma ao

abatimento do Antigo Regime.82 A tutela do direito de resistência pelo Estado em

última instância consistiria no Estado ter de decidir agir ou se omitir em questões que

dizem respeito ao próprio exercício de seu poder, i.e., o Estado deveria agir contra si

próprio, constituindo uma relação que é por si mesma contraditória. Nesse sentido, a

enunciação do direito de resistência serve muito mais como uma justificativa aos fatos

já consumados da ruptura e queda do regime anterior, e de precaução e temor de um

novo levante aristocrático, do que efetivamente um direito de fato. Pode-se ler nas

palavras de Bobbio: De forma estritamente lógica, nenhum governo pode garantir o exercício do direito de resistência, que se manifesta precisamente quando o cidadão não reconhece mais a autoridade do governo, e o governo por sua vez não tem mais nenhuma obrigação para com ele. Com uma possível alusão a esse artigo, Kant dirá que, “para que o povo seja autorizado à resistência, deveria existir uma lei pública que a permitisse”; mas uma tal disposição seria contraditória porque no momento em que o soberano admite a resistência contra si próprio, ele renuncia a sua própria soberania e o súdito torna-se soberano em seu lugar. Não é possível que os constituintes não tivessem percebido a contradição. Mas, como explica Georges Lefebvre, a inserção do direito de resistência entre os direitos naturais devia-se à recordação imediata do 14 de julho e ao temor de um novo assalto aristocrático, e, portanto, não era outra coisa além de uma justificação póstuma da luta contra o Antigo Regime.83

81 Direitos humanos e revolução, p.102 (« Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l'Homme. Ces droitssont la liberté, la propriété, la sûreté, et la résistance à l'oppression. »). 82 Cf. L'età dei diritti, p.134-135. 83 L'età dei diritti, p.107-108. No original italiano: “A stretto rigore di logica, nessun governo può garantire l’esercizio del diritto di resistenza, che insorge proprio quando il cittadino non riconosce più l’autorità del governo, e il governo a sua volta non ha più alcun obbligo verso di lui. Con una possibile

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É no quarto artigo que finalmente encontramos uma definição para o termo

liberdade e no que ele consiste, embora tal definição seja ampla e não se refira a

nenhum tipo de liberdade em específico: A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique o próximo: assim o exercício dos direitos naturais de cada homem tem como únicos limites aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o usufruto desses mesmos direitos.84

Dos artigos quinto ao nono tem-se as especificações de igualdade formal

perante a lei; o décimo artigo refere-se à liberdade de culto religioso; o décimo primeiro

artigo refere-se à liberdade de opinião e imprensa; do décimo segundo ao décimo sexto

artigos enuncia-se a necessidade de uma autoridade institucional – o Estado – que possa

regular e assegurar os direitos dos indivíduos nas relações livremente concebidas entre

eles; o décimo sétimo artigo pode ser apontado como aquele que justifica a designação

do processo revolucionário francês como um processo burguês: trata-se do “direito

inviolável e sagrado” de propriedade.85

Na primeira parte da Declaração de Direitos da Constituição de 1791 –

Título Primeiro: Disposições fundamentais garantidas pela Constituição –, a qual teve

allusione a questo articolo, Kant dirà che “affinché il popolo sia autorizzato alla resistenza, dovrebbe esserci una legge pubblica che la permettesse”, ma una tale disposizione sarebbe contraddittoria perché nel momento in cui io sovrano ammette la resistenza conto di sé rinuncia alla propria sovranità e il suddito diventa sovrano al posto suo. Non è possibile che i costituenti non si rendessero conto della contraddizione. Ma, come spiega Georges Lefebvre, l’inserimento del diritto di resistenza fra i diritti naturali era dovuto al ricordo immediato del 14 luglio e al timore di un nuovo assalto aristocratico, e quindi non era altro che la giustificazione postuma della lotta contro l’Antico Regime.” Bobbio repete de forma atenuada tal tese no capítulo sucessivo de seu livro: “Rigorosamente, nenhum governo pode garantir o exercício de um direito que se manifesta precisamente no momento em que a autoridade do governo falha, e entre Estado e cidadão se instaura não mais uma relação de direito, mas sim uma relação de fato, na qual vigora o direito do mais forte. Os constituintes haviam tomado plena consciência da contradição. Mas, como explica Georges Lefebvre, a inserção do direito de resistência entre os direitos naturais devia-se ao temor de um novo assalto aristocrático e, portanto, não era mais do que a justificação póstuma da derrubada do Antigo Regime.” L'età dei diritti, p.134-135. No original italiano: “A stretto rigore, nessun governo può garantire l’esercizio di un diritto che insorge proprio nel momento in cui l’autorità del governo vien meno e tra stato e cittadino s’instaura un rapporto non più di diritto ma di fatto, in cui vige il diritto del più forte. I costituenti si erano resi perfettamente conto della contraddizione. Ma, come spiega Georges Lefebvre, l’inserimento del diritto di resistenza fra i diritti naturali era dovuto al timore di un nuovo assalto aristocratico, e quindi non era altro che la giustificazione postuma dell’abbattimento dell’antico regime.” 84 Direitos humanos e revolução, p.102. (« La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui : ainsi, l'exercice des droits naturels de chaque homme n'a de bornes que celles qui assurent aux autres Membres de la Société la jouissance de ces mêmes droits »). 85 Cf. Direitos humanos e revolução, p.104.

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como preâmbulo a própria Declaração de 1789, é possível constatar a obstinação em

findar com o Antigo Regime, explícita na repetição e insistência das garantias de

liberdade e de igualdade provenientes do direito natural e do contratualismo, e na

garantia de que as leis, por um lado, não poderiam obstruir o exercício do direito

natural, e, por outro, deveriam punir aqueles que atacam os direitos alheios e a

segurança pública.86 Nela também aparecem as primeiras indicações dos direitos

sociais, no tocante à instrução, à saúde, e ao trabalho: Será criado e organizado um estabelecimento geral de Assistência Pública, para educar as crianças abandonadas, ajudar os enfermos pobres e fornecer trabalho aos pobres válidos que não tenham podido encontrá-lo. Será criada e organizada uma instrução pública comum a todos os cidadãos, gratuita no que concerne às partes do ensino indispensáveis a todos os homens; seus estabelecimentos serão distribuídos gradualmente, numa proporção adequada à divisão do reino [...].87

Por conta de fatores externos e internos – como a Guerra de Primeira

Coalizão, o fim da monarquia, e a instituição do regime republicano, decidido por

unanimidade em 1792 pela Assembleia Constituinte, a qual era agora chamada de

Convenção,88 e que fora convocada pela Assembleia Legislativa –, a vigência da

Constituição de 1791 fora revogada. O impasse se dava agora entre o grupo que

defendia a primazia dos direitos individuais sobre os direitos sociais, chamados

girondinos, e o grupo liderado por Robespierre, os jacobinos, os quais objetavam o

caráter inviolável da propriedade privada e a preponderância dos direitos sociais sobre

os direitos individuais. Nesse contexto de disputa, chegou-se à redação final do texto da

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Constituição Francesa de 24 de

Junho de 1793, composta por um pequeno preâmbulo e trinta e cinco artigos.

No preâmbulo é enunciado a função de uma Constituição: ela deve servir,

em primeiro lugar, como as declarações precedentes afirmavam, para evitar o

esquecimento do que são os direitos naturais, o qual era considerado a grande causa das

mazelas sociais; em segundo lugar, como forma do cidadão poder valorar e comparar os

86 Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.173. 87 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.173. (« Il sera créé et organisé un établissement général de Secours publics, pour élever les enfants abandonnés, soulager les pauvres infirmes, et fournir du travail aux pauvres valides qui n'auraient pu s'en procurer. Il sera créé et organisé une Instruction publique commune à tous les citoyens, gratuite à l'égard des parties d'enseignement indispensables pour tous les hommes et dont les établissements seront distribués graduellement, dans un rapport combiné avec la division du royaume […] »). 88 Segundo Comparato, a mudança de nomenclatura deu-se por influência do processo estadunidense. Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.166.

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direitos naturais que ele possui enquanto ser humano com as medidas governamentais,

podendo, dessa forma, avaliar se as ações governamentais às quais está submetido são

justas.

Em geral, apesar da grande disputa entre girondinos e jacobinos, a

Constituição de 1793 não apresentou grandes mudanças em relação às cartas

precedentes. O primeiro artigo enuncia que o objetivo da sociedade é a felicidade

comum, e essa só pode ser atingida mediante a garantia dos direitos naturais;89 o

segundo artigo enuncia quais seriam esses direitos: a igualdade, a liberdade, a segurança

e a propriedade90 – tais como nas cartas precedentes;91 os artigos de número três,

quatro, e cinco enunciam a igualdade perante a lei e perante a carreira: as profissões

estão abertas ao talento, abolindo qualquer tipo de privilégio de hereditariedade;92 o

sexto artigo apresenta a famosa fórmula, contida já nas cartas precedentes – mas sem a

formulação que seria consagrada no imaginário popular –, da liberdade: “não faças ao

próximo o que não queres que te façam a ti”.93

O sétimo artigo reafirma a liberdade de opinião, imprensa, e de culto;94 o

décimo quinto artigo estipula a proporcionalidade da pena;95 o décimo oitavo artigo

posiciona-se contra a possibilidade de um ser humano vender-se ou ser vendido,96 i.e.,

existe um posicionamento explícito contra a escravidão; os vigésimo primeiro e o

vigésimo segundo artigos enunciam direitos sociais, tanto no que se refere ao assegurar

trabalho e assistência àqueles que não podem trabalhar, quanto ao que se refere à

instrução;97 o vigésimo quinto artigo enuncia que a soberania reside no povo.98

O vigésimo oitavo artigo é um tanto peculiar no que ele enuncia: “Um povo

tem permanentemente o direito de rever, de reformar e de modificar a sua Constituição.

Uma geração não pode submeter às suas leis as gerações futuras”.99 Se os direitos

89 Cf. Direitos humanos e revolução, p.105. 90 Interessante observar que o conceito de igualdade fora colocado à frente – pela primeira e única vez nas redações das cartas francesas – do conceito de liberdade. 91 Cf. Direitos humanos e revolução, p.105. 92 Cf. Direitos humanos e revolução, p.106. 93 Direitos humanos e revolução, p.106. (« Ne fais pas à un autre ce que tu ne veux pas qu'il te soit fait »). 94 Cf. Direitos humanos e revolução, p.106. 95 Cf. Direitos humanos e revolução, p.107. 96 Cf. Direitos humanos e revolução, p.107. 97 Cf. Direitos humanos e revolução, p.107. 98 Cf. Direitos humanos e revolução, p.108. 99 Cf. Direitos humanos e revolução, p.108. (« Un peuple a toujours le droit de revoir, de réformer et de changer sa Constitution. Une génération ne peut assujettir à ses lois les générations futures »).

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naturais são o fundamento e a base de uma Constituição, e se os direitos naturais são

admitidos como universais, imutáveis, válidos em si e por si, tal como formulado pelos

teóricos jusnaturalistas, como é possível consentir a afirmação de tal artigo, i.e., como é

possível assentir a possibilidade de que as leis possam ser variáveis entre as gerações?

Para responder a tal questão, pode-se aventar duas hipóteses: (i) tal artigo teria a função

de resguardar as futuras gerações e de justificar – tal como feito anteriormente – ações e

eventos ocorridos durante o processo revolucionário, e (ii) as Constituições devem ser

ajustadas e aperfeiçoadas para que possam se aproximar mais e mais do conteúdo

preciso dos direitos naturais; o problema permanece, contudo, na segunda parte do

artigo, a qual permite interpretar que a base das leis, i.e., o direito natural, pode não ser

permanente e constate.

Os trigésimos terceiro, quarto, e quinto artigos afirmam, mais uma vez, o

direito de resistência à opressão, seja ela praticada contra o corpo social, seja ela

praticada pelo governo.

Contudo, novamente os rumos da história afetam a Carta Constitucional: em

decorrência das guerras contra potências monárquicas, a Constituição de 1793 não

chegou nem mesmo a ser aplicada, dando lugar, em teoria, a um governo dito

republicano, o qual deveria durar enquanto durassem as guerras. Na prática, entretanto,

inaugurou-se o período que ficou conhecido por “Terror” (1793-1794), o qual foi

marcado pela perseguição e assassinato dos adversários políticos dos jacobinos. O clima

político levou à promulgação de uma nova Carta de Direitos em 22 de agosto de 1795, a

Declaração dos Direitos e dos Deveres do Homem e do Cidadão da Constituição

Francesa.

Contando com a inovação de ser dividida em duas seções, a Declaração é

fracionada entre Direitos – são vinte e dois artigos – e Deveres – outros nove artigos –,

totalizando trinta e um artigos, os quais, em relação às cartas precedentes, podem ser

entendidos como expressão da reação liberal à participação popular, na medida em que

é possível notar um certo recuo das demandas dessa Declaração no confronto com as

outras cartas francesas. Essa pode ser entendida como a declaração de direitos que

revela e explicita de forma mais aberta posicionamentos que justificam a interpretação

do processo revolucionário francês como uma revolução burguesa.

Dentre as alterações mais chamativas e destoantes, além da divisão do texto

em direitos e deveres, constata-se a supressão de qualquer referência aos direitos sociais

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(trabalho, instrução, e saúde), ao direito de resistência à opressão, à liberdade de

opinião, à liberdade de expressão e de culto, a mudança do conceito de soberania – a

qual não mais reside no povo, mas “essencialmente na universalidade dos cidadãos”100

–, a amplitude e potência que o direito de propriedade adquire, e o reforço dos

mecanismos de separação dos Poderes estatais.

Os Deveres aparecem como instrumento de limitação dos direitos daqueles

que não pertenciam à classe social que mais se beneficiou de todas essas mudanças e

conquistou a soberania política, conseguindo firmar-se na nova posição ocupada, a

burguesia.

É possível avaliar, então, as mudanças desencadeadas pelas teorias

filosóficas concebidas nesse período – encampadas principalmente pelo jusnaturalismo

moderno e pelas teorias contratuais – e que, como apontado, emergiram de forma mais

clara e ganharam concretude com as declarações e cartas de direito.

4.4. As Principais Mudanças Político-Sociais Engendradas pelos

Movimentos Revolucionários estadunidense e francês

Esse intenso processo de mudanças, iniciado lentamente no que

convencionou-se chamar de era moderna com as primeiras teorias que inauguraram o

jusnaturalismo moderno e o contratualismo e consolidado nas cartas de direitos

promulgadas pelos movimentos revolucionários, produziu e aprofundou rupturas que

transformariam as relações políticas e a organização social de modo profundo. O

pensamento político clássico, como apontado, assume e trata as relações políticas como

relações desequilibradas, desiguais, assimétricas:101 relações entre governante e

governados, dominador e dominados, príncipe e o povo, soberano e súditos, Estado e

cidadãos.102 São várias as metáforas que ao longo da história do pensamento político

assinalam essa assimetria: o governante representado como pastor e os governados

100 Direitos humanos e revolução, p.112. (« La souveraineté réside essentiellement dans l'universalité des citoyens »). 101 Para Bobbio, “o tipo ideal de relação assimétrica é a ordem do soberano que instaura uma relação comando-obediência.” BOBBIO, N. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.111. Doravante abreviado por O futuro da democracia, seguido de indicação de página. 102 Cf. L'età dei diritti, p.124.

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como o seu rebanho; o governante como timoneiro e os governados como chusma – e,

como parte da metáfora, recorrentemente tal assimetria é reforçada com o fato de que

quando a chusma crê ser capaz de controlar a embarcação, ela naufragar; o governante

representado como um pai severo, porém zeloso e bom, ao qual os governados, filhos,

devem a ele uma obediência quase cega.103 Esse modelo de Estado – que podemos

chamar de paternalista – considera os seus súditos como eternos menores,104 e

justamente por isso justifica sua própria existência e a amplitude de seu poder.

A concepção de Estado absoluto ou despótico é extremamente compatível

com a concepção de sociedade orgânica, a qual, como visto, fornece as condições de

possibilidade para a preponderância do âmbito coletivo frente ao âmbito individual, i.e.,

a concepção coletivista de sociedade frente a concepção individualista. Dado que a

sociedade é um organismo, no qual as partes só possuem sentido e significado em

relação ao todo, e que, justamente por isso, nela não se nasce igual nem livre, os deveres

dos súditos e governados perante o corpo político são centrais para o bom

funcionamento do corpo político, um corpo político no qual sociedade civil e Estado

não estão dissociados.

Com as teorias jusnaturalistas e contratualistas105 a forma pela qual a

sociedade está organizada e suas estruturas são colocadas lentamente em xeque: a visão

de sociedade como um organismo é gradualmente deixada de lado para dar lugar a tese

da sociedade como um construto humano, e isso significa, consequentemente, que

também o Estado seria uma dessas construções. E, a partir dessas novas premissas,

dessa nova perspectiva de explicar a sociedade e o poder político, é possível afirmar que

no paradigma de sociedade orgânica, i.e., no paradigma que justifica o funcionamento

dos Estados absolutistas e despóticos, quanto mais poder um indivíduo possui no

interior de uma organização de tal tipo, ou seja, quanto mais sofisticada ou importante é

sua função e posto que ocupa no corpo político, mais livre ele é, menos o Estado

interfere na sua vida, tanto menos ele deve prestar contas aos demais concidadãos em

situação hierárquica inferior. Na prática tal evento era traduzido empiricamente em

103 Cf. L'età dei diritti, p.125. 104 Cf. L'età dei diritti, p.125. 105 Se Bobbio localiza o tipo ideal de relação assimétrica na ordem do soberano que instaura uma relação de comando-obediência, ele enxerga no contrato a representação do tipo ideal de relação simétrica, “fundada no princípio do ut des.” O futuro da democracia, p.111. Do ut des, Dou para que tu dês, é a expressão que sintetiza a norma de contrato oneroso bilateral.

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códigos de leis diversos conforme o estamento / classe social do indivíduo, ou seja, na

ausência da igualdade formal entre os membros da sociedade.

Com as teses da artificialidade da sociedade e do direito natural tornou-se

possível solapar as concepções que sustentavam as relações de poder estabelecidas e

constituídas até então. E, ao desmontá-las, erigiam novas possibilidades e alterava-se a

estrutura e o funcionamento da sociedade. As teorias do direito natural auxiliaram nos

confrontos e no fazer frente ao poder do Estado, limitando o seu poder e alcance; as

teorias contratuais, por sua vez, serviram como base para confrontar as divisões, a

imobilidade e as prerrogativas sociais que representavam obstáculos à consolidação da

igualdade formal.

As consequências mais relevantes desse processo, aquelas mais

recorrentemente apontadas pelos estudiosos que se ocupam do tema e do período,

transformaram profundamente a organização social e política, criando as condições de

possibilidade para o nascimento das formas de governo que vieram a se desenvolver e

constituir os modelos de Estado e Democracia que conhecemos atualmente.

Com a atribuição de direitos inatos a cada um dos indivíduos componentes

da sociedade, i.e., ao assumir que cada indivíduo é portador de direitos naturais,

subverte-se e desloca-se a primazia da esfera coletiva para a esfera individual, porque é

operada, assim, a mudança dos sujeitos de direito: não mais o Estado outorga direitos

aos seus membros – não é mais o Estado que detém o poder de conceder liberdades aos

seus membros –, mas ele apenas deve reconhecer e garantir os direitos que cada um dos

indivíduos que compõe a sociedade é portador – e isso significa que as liberdades dos

indivíduos são justificadas pelo direito natural e que elas garantem o poder do Estado. O

Estado que antes desenvolvia um papel positivo, no sentido de outorgar e conceder

liberdades, assume o papel negativo, de apenas garantir as liberdades que são inerentes

a cada um dos indivíduos.

Não se trata apenas de exercer o controle político do Estado, mas também de

resguardar-se dos mandos e desmandos dele e, principalmente, proteger-se de uma

possível restauração conservadora, como no caso de França resguardar-se do Antigo

Regime. A forma de resguardar-se dos abusos do poder estatal é justamente o

asseguramento da igualdade formal, o que ocorre mediante a subordinação de todos os

membros componentes da sociedade às mesmas leis, i.e., que todo indivíduo possua os

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mesmos direitos, os mesmos deveres, esteja sujeito às mesmas normas, sanções, e seja

salvaguardado por um julgamento justo.

Com a alteração da primazia de perspectiva social ao individualismo e com

o asseguramento da igualdade formal, alteram-se, também, a finalidade e a função do

Estado. Não é mais o Estado que deve organizar, atribuir funções, e dar sentido à vida

dos indivíduos, mas ele passa a ser ordenado e orientado pela vontade desses

indivíduos, mais precisamente pelo grupo social que assumiu a hegemonia política e

obteve os maiores ganhos com esses processos. Esses novos fatores acabaram gerando

uma ruptura e efetivando a separação entre Estado e sociedade civil, e isso significa que

os contextos social e político acabaram por produzir a emancipação da sociedade civil

do poder político. O Estado deixa de ser um fim e passa a ser um simples meio. Dessa

conjunção de fatores origina-se (i) o modelo de Estado Liberal,106 em sua primeira

versão recorrentemente chamado de Estado Guardião,107 o qual é limitado e deve

respeitar os – e ser pautado nos – direitos naturais que cada um dos indivíduos é

portador, e, mais especificamente, (ii) as democracias modernas,108 a forma primordial

de organização desse novo tipo de Estado, i.e., as formas de organização do corpo

político e social nas quais além da individualidade, fatores como a soberania popular e

valores como liberdade e igualdade são nevrálgicos.

Inverte-se com isso a ordem de primazia do Estado sobre o Direito. Não é o

Estado que outorga o Direito, mas o Direito que fundamenta o Estado, e isso significa

que não é mais o Estado que monopoliza a criação, conservação e desenvolvimento da

ordem jurídica, mas tal tarefa cabe agora à sociedade civil. Ao Estado resta o monopólio

do poder e da violência, não mais o do Direito,109 ao qual ele deve se submeter. Nessa

tensão é possível visualizar uma importante tese bobbiana:

106 “A ideia de monarquia absoluta, combatida por todos os pensadores do “século das luzes”, tornou-se inaceitável para a nova classe ascendente, a burguesia. Tinha esta, de fato, sólidos argumentos para retomar o movimento histórico em favor da limitação de poderes dos governantes, iniciado na Baixa Idade Média com a Magna Carta, e seguido na Inglaterra pela Petition of Rights de 1628, o Habeas Corpus Act e o Bill of Rights.” Afirmação histórica dos direitos humanos, p.153. 107 “A ideia de que o único dever do Estado seja o de impedir que os indivíduos provoquem danos uns aos outros, ideia que será levada às extremas consequências e à máxima rigidez pelo liberalismo extremo de Herbert Spencer, deriva de uma arbitrária redução de todo o direito público a direito penal (donde a imagem do Estado guarda-noturno ou gendarme).” O futuro da democracia, p.126. 108 “[...] idealmente, a forma de governo democrático nasce do acordo de cada um com todos os demais, isto é, do pactum societatis.” O futuro da democracia, p.111. 109 Cf. BIELEFELDT, H. Filosofia dos direitos humanos: fundamentos de um ethos de liberdade universal. São Leopoldo: Editora da UNISINOS, 2000, p.196-197.

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O Estado despótico é o tipo ideal de Estado de quem se coloca do ponto de vista do poder; no extremo oposto encontra-se o Estado democrático, que é o tipo ideal de Estado de quem se coloca do ponto de vista do direito.110

Bobbio localiza os extremos que podem configurar o dispositivo do Estado

segundo a orientação ao poder ou ao Direito e segundo sua finalidade e função, e

enuncia, em uma de suas teses que perpassam todos os seus escritos sobre os direitos

humanos, a relação entre direito e poder: “Só o poder pode criar o direito e só o direito

pode limitar o poder”.111 Nos Estados despóticos o poder era concentrado no próprio

Estado, o qual criava o Direito e, por isso mesmo, era absoluto, pois não limitava os

seus próprios poderes; com a mudança do centro de poder para a sociedade civil (povo)

e do Direito para cada indivíduo, a relação observada por Bobbio ganha novos

elementos que atuam sobre os resultados produzidos: além de poder e Direito, ao menos

sociedade e Estado passam a influenciar essa equação. É nesse contexto extremamente

complexo que se dão as relações de poder e as organizações da sociedade, do corpo

político, e do âmbito jurídico, figurando esse último como uma espécie de mediador

entre Estado e sociedade. Em meio a todas essas mudanças e tensões são produzidas

tantas outras alterações, e uma delas se mostra de grande importância por conta do papel

que cumpre na organização da sociedade: a função da punição e o código penal. A

passagem abaixo exemplifica e sintetiza as mudanças nesse domínio: O âmbito no qual o iluminismo jurídico mais incidiu foi o do direito e do procedimento penal. Inspirando-se em uma visão utilitarista e humanizada da pena, são propostas reformas fundamentais tais como a substituição da função retributiva com função de defesa social e de prevenção de crimes futuros; o princípio de proporcionalidade da pena ao crime; a abolição dos suplícios e, mais em geral, dos sofrimentos físicos impostos aos corpos dos inquisitados e dos condenados; a atenuação das penas; a instauração de regras de garantias do acusado durante o processo112.

O professor Celso Lafer mais uma vez condensa em poucas linhas o

processo descrito até aqui: Direitos inatos, estado de natureza e contrato social foram os conceitos que, embora utilizados com acepções variadas, permitiram a elaboração de uma doutrina do Direito e do Estado a partir da concepção individualista de sociedade e da história, que marca o aparecimento do mundo moderno. São estes conceitos os que caracterizam o jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII, que encontrou seu apogeu na Ilustração.113

110 O futuro da democracia, p.23. 111 O futuro da democracia, p.23. 112 Breve história dos direitos humanos, p. 49. 113 A reconstrução dos direitos humanos, p.38.

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A consolidação institucional dos direitos humanos se deu pela positivação

dos mesmos, resultado das condições históricas que comportaram uma série de fatores,

tais como as necessidades e interesses da sociedade, as classes que ascendiam e decaiam

do poder, dos meios disponíveis para a realização dos direitos. Tanto no caso

estadunidense, quanto no caso francês, Bobbio constatou a transição do direito pensado

para o que viria a se tornar o direito realizável, i.e., a transição da esfera teórica

(jusnaturalismo e contratualismo) para a esfera prática (direitos positivos e igualdade

formal).

Contudo, o autor nota, também, que apesar dos direitos considerados

humanos ganharem em concretude – agora eles possuíam instância de exigibilidade

onde poderiam ser requeridos –, eles perdem em universalidade, uma vez que os direitos

passam a ser protegidos no âmbito do Estado que os reconhece. Os direitos do Homem

passam a ser os direitos do cidadão no seio de um Estado particular.114 Os direitos

humanos, na análise histórica de Bobbio, nascem como direitos naturais universais; com

a difusão das doutrinas jusnaturalistas, desenvolvem-se como direitos positivos

particulares a partir das declarações de direitos no Estado de Direito,115 e,

posteriormente, depois da Segunda Guerra, no que Bobbio chama de uma terceira fase

do desenvolvimento da afirmação dos direitos humanos – internacionalização –, eles

adentram a esfera internacional iniciando o desenvolvimento gradativo de tornarem-se

direitos positivos universais,116 os quais não dependeriam das cartas constitucionais dos

Estados nacionais, mas seriam reconhecidos e tutelados globalmente.

O processo de positivação dos direitos considerados humanos acabou por

destituir o jusnaturalismo do seu lugar enquanto concepção teórica que justificava as

bases do ordenamento jurídico, deixando-a de lado. Apenas o âmbito legal passou a ser

considerado, o que culminou na ruptura da relação de dependência entre o direito

natural e o direito positivo. Facchi, na esteira de Bobbio, resume o ocorrido na seguinte

passagem: Os direitos do homem, portanto, surgem no âmbito do jusnaturalismo, mas se afirmam institucionalmente por meio do juspositivismo, negando, assim, de certo modo, sua origem, e marcando a ruptura da dependência entre o direito positivo e o direito natural. Abre-se uma segunda fase na história dos direitos,

114 Cf. L'età dei diritti, p.23. 115 Estado de Direito é aquele no qual funciona regularmente um sistema de garantias. Sobre Estado de Direito Cf. Dicionário de filosofia do direito, Estado de Direito, p.288-291. 116 Cf. L'età dei diritti, p.24 e p.44-45.

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uma fase na qual “a afirmação dos direitos do homem ganha em concretude, mas perde em universalidade. Os direitos são, daqui em diante, protegidos, ou seja, são autênticos direitos positivos, mas só valem no âmbito do Estado que os garante” (Bobbio, 1992, p.23). De direitos naturais se tornam direitos positivos, de direitos do homem se transformam em direitos do cidadão, de direitos universais serão direitos nacionais.117

O resultado dessa ruptura tornou-se lugar comum e clichê na crítica ao

positivismo jurídico. Após a Segunda Grande Guerra, a comunidade internacional foi

obrigada a discutir e rever as bases para um debate sobre tutela e implementação dos

direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU de 1948 é

fruto dessa tarefa e empenho, e Bobbio atribuiu a esse documento extrema importância

por enxergar nele um contrato entre os Estados-nações signatários para o

estabelecimento de um ponto de partida para que os debates e a implementação dos

direitos humanos pudessem ser realizados. E é sobre a origem e conteúdo desse

documento que nossa análise e exposição será focada na próxima seção.

4.5. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

Apesar de negar a possibilidade de um fundamento absoluto dos direitos

humanos, Bobbio admite que a exigência do respeito aos direitos humanos e às

liberdades fundamentais nasce da convicção de que eles possuem fundamento. Por esse

prisma, o problema do fundamento é de certa forma inescapável118 – uma vez que, para

além da convicção da existência de fundamentos, questões referentes às razões e

motivações de legitimação dos direitos humanos, que no fundo são questões referentes

aos próprios fundamentos, acabam por emergir. É uma questão inescapável porque não

é possível ignorá-la. Mesmo que o problema mais grave e imediato não seja

propriamente o de fundamentar os direitos humanos, mas sim o de implementá-los,

tutelá-los, e protegê-los, i.e., mesmo que o problema mais grave referente aos direitos

humanos não esteja situado na perspectiva filosófica, mas nas esferas política e jurídica,

é necessário ter um ponto de partida, uma base, um pedra angular que legitime e permita

a efetivação do processo de positivação dos direitos humanos em âmbito universal, o

que Bobbio denomina processos de universalização e internacionalização dos direitos

humanos. Esfera política e jurídica são, desse modo – ainda que a contragosto de

117 Breve história dos direitos humanos, p.82. 118 Cf. L'età dei diritti, p.18.

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juristas, cientistas políticos e sociais –, dependentes da perspectiva filosófica, mesmo

que essa última seja considerada relativamente de menor importância.

Bobbio localiza a resolução do problema dos fundamentos dos direitos

humanos exatamente na Declaração Universal dos Direitos da Organização das Nações

Unidas de 1948. Mas em qual sentido poder-se-ia dizer que a DUDH resolve o

problema colocado? Pode-se dizer que ela resolve o problema na medida em que

funciona como fundamento, um fundamento assumido, que, em primeiro lugar,

possibilita que seja iniciada a discussão e o debate das formas de garantir e tutelar os

direitos humanos. O assentimento da Declaração como fundamento para os direitos

humanos é justificado de forma consensual, e, nessa forma de legitimação de um

determinado fundamento, tanto mais forte e mais legítimo ele é quanto mais é aceito.119

Por responder às exigências de um determinado período esse fundamento não pode ser

considerado nem universal – no significado corrente do termo –, nem absoluto; antes,

ele é denominado histórico. Universal assume um novo significado nesse contexto e

passa a ser entendido não mais como algo dado objetivamente, uma totalidade objetiva,

mas como algo subjetivamente aceito; e uma vez que as mudanças históricas e sociais

podem fazer com que a aceitação de tal fundamento oscile, aumentando-a, diminuindo-

a, ou até mesmo anulando-a, o fundamento não pode ser dito absoluto. E o fato dele não

ser absoluto possui vantagens e desvantagens: a principal vantagem seria o fato dele

existir e de responder aos anseios do seu tempo histórico, podendo ser alterado para

suprir novas necessidades e demandas, evitando que os direitos humanos se cristalizem

e percam o seu sentido histórico e que deixem de responder às necessidades e anseios de

seu próprio tempo: Com isso quero dizer que a comunidade internacional se encontra hoje de frente não só ao problema de apresentar garantias válidas a esses direitos, mas também àquele [problema] de aperfeiçoar continuamente o conteúdo da Declaração [DUDH], articulando-o, especificando-o, atualizando-o, de modo

119 Nesse ponto, é possível destacar as críticas que condenam a DUDH por ela ser impregnada de valores ocidentais, e todo o debate em torno do relativismo cultural e do multiculturalismo. Sobre esse debate a bibliografia é muito vasta. Cf. BONANATE, L.; PAPINI, R. (ed.). Dialogo interculturale e diritti umani: la Dichiarazione Universale dei Diritti Umani: genesi, evoluzione e problemi odierni (1948-2008). Bologna, Italia: Mulino, 2008. Cf. FARELL, M. El alcance (limitado) del multiculturalismo. In: BERTOMEU, M.; GAETA, R. VIDIELLA, G. (comp). Universalismo y multiculturalismo. Buenos Aires: Eudeba, 2000; Cf. FREEDEN, M. Rights. Minneapolis: Univ. of Minnesota, 1991; Cf. SOUSA SANTOS, B. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 48, 1997, p.11-32; Cf. TESÓN, F. International Human Rights and Cultural Relativism; In: HAYDEN, P. The Philosophy of Human Rights. St. Paul, MN USA: Paragon House, p. 379-396, 2001.

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a não deixá-la cristalizar e enrijecer em fórmulas tanto mais solenes quanto vazias.120

Para construir tal ponto de partida em tal grau de aceitação, além da

conjuntura que permitiu que isso acontecesse,121 a pretensão de um fundamento objetivo

foi substituída pela legitimação de um ponto de partida consensual intersubjetivo, uma

vez que o fundamento objetivo não existia e, conforme o autor argumenta, seria

impossível ou extremamente incerto de ser alcançado.122

Para Bobbio, a DUDH desempenha não apenas tal papel, como é a maior

prova histórica de que é possível a construção de um fundamento coletivo que sirva

como ponto de partida para o debate sobre direitos humanos. Ele escreve:

[...] a Declaração universal dos direitos do homem pode ser aceita como a grande prova histórica, que jamais havia sido dada, do consensus omium gentium [assentimento universal de todos] sobre um determinado sistema de valores.123

A própria DUDH coloca-se nesse papel quando se proclama, logo após o

seu preâmbulo “como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as

nações”.124 O autor recorda a desconfiança dos antigos jusnaturalistas em aceitar um

120 L'età dei diritti, p.29. No texto original italiano: “Con questo voglio dire che la comunità internazionale si trova oggi di fronte al problema di apprestare valide garanzie a quei diritti, ma anche a quello di perfezionare continuamente il contenuto della Dichiarazione, articolandolo, specificandolo, aggiornandolo, in modo da non lasciarlo cristallizzare e irrigidire in formule tanto piú solenni quanto piú vuote.” 121 Os horrores e o impacto das atrocidades produzidos pela Segunda Guerra Mundial foram tão grandes que conseguiram reunir para a negociação desse documento histórico um mundo cindido entre os blocos capitalista e socialista. O processo de discussão e negociação foi difícil e moroso. Hunt descreve o processo do primeiro rascunho da carta até a sua versão definitiva ser aprovada da seguinte forma: “Esse texto tinha de ser revisado por toda a comissão, posto a circular por todos os Estados-membros, depois revisto pelo Conselho Social e Econômico e, se aprovado, enviado para a Assembleia Geral, na qual devia ser primeiro considerado pelo Terceiro Comitê sobre Assuntos Sociais, Humanitários e Culturais. O Terceiro Comitê tinha delegados de todos os Estados-membros, e quando o rascunho foi discutido a União Soviética propôs emendas para quase todos os artigos. Oitenta e três reuniões (apenas do Terceiro Comitê) e quase 170 emendas mais tarde, um rascunho foi sancionado para ser votado. Por fim, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Quarenta e oito países votaram a favor, oito países do bloco soviético abstiveram-se e nenhum votou contra.” A invenção dos direitos humanos: uma história, p.205. 122 Cf. L'età dei diritti, p.20-21. 123 L'età dei diritti, p.20. No texto original italiano: “[...] la Dichiarazione universale dei diritti dell’uomo può essere accolta come la piú grande prova storica, che mai sia stata data, del «consensus omnium gentium» circa un determinato sistema di valori.” 124 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Rio de Janeiro: UNIC / RIO / 005 – Dezembro, 2000, p.3. Disponível em: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf Acesso: 12 ago. 2013. Doravante abreviada por DUDH, seguido de indicação de artigo e página.

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fundamento baseado no consenso, porque para eles tal sorte de fundamento seria muito

difícil de ser encontrado.125 Agora esse fundamento consensual passava a existir,126

concretizado em um documento, aprovado, assinado, e reconhecido unanimemente por

48 Estados nacionais e abstenção de outros oito,127 um documento que passou a servir

de norte no processo de desenvolvimento dos direitos humanos na comunidade

internacional, uma comunidade não mais formada apenas por Estados, mas constituída

por indivíduos considerados livres e iguais:128 “pela primeira vez um sistema de

princípios fundamentais na conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de

seus governantes, pela maioria dos homens que vivem na Terra.”129

Segundo Bobbio, a partir do reconhecimento da DUDH, toda a humanidade

passa a partilhar certos valores, um sistema de valores universal não em princípio, mas

de fato “na medida em que o consenso sobre a sua validade e sua idoneidade para reger

os destinos da comunidade futura de todos os seres humanos foi explicitamente

125 Cf. L'età dei diritti, p.20. 126 “Os direitos, portanto, voltam a colocar-se como exigências universais do homem, mas, ao contrário da Declaração de 1789, não são mais fundamentados em um suposto direito de natureza, mas no acordo entre os Estados e no direito que daí deriva.” Breve história dos direitos humanos, p.131. 127 Bielorrússia, Checoslováquia, Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, União Soviética, África do Sul e Iugoslávia abstiveram-se na votação. 128 Cf. L'età dei diritti, p.20. E, com isso, tentava-se resolver o problema apontado por Hannah Arendt sobre o direito a ter direitos. Comparato explica a questão do seguinte modo: “[...] o Estado nazista aplicou, sistematicamente, a política e supressão da nacionalidade alemã a grupos minoritários, sobretudo a pessoas consideradas de origem judaica. Logo após a guerra, Hannah Arendt chamou a atenção para a novidade perversa desse abuso, mostrando como a privação de nacionalidade fazia das vítimas pessoas excluídas de toda proteção jurídica no mundo. Ao contrário do que se supunha no século XVIII, mostrou ela, os direitos humanos não são protegidos independentemente da nacionalidade ou cidadania. O asilado político deixa um quadro de proteção nacional para encontrar outro. Mas aquele que foi despojado de sua nacionalidade, sem ser opositor político, pode não encontrar nenhum Estado disposto a recebê-lo: ele simplesmente deixa de ser considerado uma pessoa humana. Numa fórmula célebre, Hannah Arendt conclui que a essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos.” Afirmação histórica dos direitos humanos, p.245. Cf. também A reconstrução dos direitos humanos, ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2000, e ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1999. Os artigos VI, XV, e XXVIII da DUDH podem ser considerados tentativas de, por um lado, invalidar a tentativa de supressão da nacionalidade de um indivíduo e da consequente perda de proteção jurídica e, por outro, da universalização dos direitos humanos no sentido que Bobbio emprega o termo a partir dessa carta, i.e., como direitos reconhecidos para além das fronteiras nacionais. Cf. DUDH, Artigos VI, XV, e XXVIII, p.5; 7-8; 13. 129 L'età dei diritti, p.21. No texto original italiano: “[…] per la prima volta nella storia un sistema di principî fondamentali della condotta umana è stato liberamente ed espressamente accettato, attraverso i loro rispettivi governi, dalla maggior parte degli uomini viventi sulla terra.”

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declarado.”130 E esse, para Bobbio, é o início de uma terceira fase do desenvolvimento

dos direitos humanos, uma fase na qual, quando realizada por completo, a afirmação dos

direitos seria, ao mesmo tempo, universal e positiva. Universal, nesse contexto, porque

os destinatários dos direitos seriam todos os seres humanos – e, talvez, aqui fosse

melhor empregar o termo global; positiva porque seria um processo que se

desenvolveria na transformação dos direitos dos cidadãos, i.e., dos direitos reconhecidos

em Estados nacionais, em direitos humanos que ultrapassassem as fronteiras nacionais e

que fossem efetivamente protegidos, inclusive contra o próprio Estado que os tenha

violado.131 Como já apontado, a interpretação histórica bobbiana dos direitos humanos

enuncia, em suma, que os direitos humanos nascem como direitos naturais universais,

desenvolvem-se como direitos positivos particulares, e tornar-se-ão direitos positivos

universais132 – processo que, segundo o autor, estaríamos atravessando.

A Declaração Universal seria exatamente o ponto de viragem entre o

segundo e o terceiro momento desse processo; ela seria o ponto de partida do processo

de universalização dos direitos humanos, o primeiro passo tímido de um ideal comum a

ser alcançado por todos em um longo processo cujo horizonte ainda é muito distante e o

seu fim sequer é possível enxergar: “A Declaração Universal é mais o início do

processo do que o seu apogeu.”133 O papel temporal da DUDH pode ser interpretado

como o ponto de convergência entre a síntese do passado expressa na “consciência

histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade

do século XX”134 e uma inspiração para o futuro, mas uma inspiração não estanque e

mutável, uma inspiração em progresso, porque suscetível às vicissitudes e necessidades

da vida em comunidade. E, como o próprio Bobbio admite, são coisas diversas mostrar

o caminho e efetivamente percorrê-lo.135 O desafio posto agora seria o de percorrê-lo.

A DUDH é composta por um preâmbulo que enuncia sete princípios que

embasam a proclamação que se segue e os trinta artigos que compõe a carta. O primeiro 130 Cf. L'età dei diritti, p.21. O trecho citado no original italiano: “in quanto il consenso sulla sua validità e sulla idoneità a reggere le sorti della comunità futura di tutti gli uomini è stato esplicitamente dichiarato.” 131 “A Declaração de 1948 marca, pois, o início de uma nova época, na qual os indivíduos, e não mais apenas os países, se tornam, progressivamente, sujeitos de direito internacional, que devem fazer valer seus direitos também contra os governos, fazendo referência a Cartas e a órgãos transnacionais.” Breve história dos direitos humanos, p.131. 132 Cf. L'età dei diritti, p.24. 133 A invenção dos direitos humanos: uma história, p.209. 134 L'età dei diritti, p.28-29. 135 Cf. L'età dei diritti, p.25.

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princípio enuncia que o reconhecimento da dignidade, da igualdade formal e dos

direitos inalienáveis de cada indivíduo humano são os alicerces da liberdade, da justiça

e da paz; o segundo princípio enuncia a proteção às liberdades de opinião e de crença; o

terceiro princípio enuncia que os direitos humanos devem ser protegidos para que se

evite rebeliões contra a tirania e opressão, i.e., para a manutenção da paz; o quarto

princípio enuncia o estímulo de relações amistosas entre as nações; o quinto princípio

reafirma os valores estruturantes e norteadores da declaração: a confiança absoluta

(“fé”) nos direitos humanos fundamentais, a dignidade do ser humano, a igualdade

formal, a promoção do progresso social, e a liberdade; o sexto princípio reafirma o

comprometimento em cumprir o acordado na declaração; por fim, o sétimo princípio

enuncia que uma compreensão comum dos direitos e liberdades remetidos na declaração

é de suma importância para o cumprimento dos compromissos assumidos.

O preâmbulo apresenta o núcleo doutrinário e ideológico da Declaração, e,

por assim dizer, o sistema de princípios que constituem a sua base ideológica. Apesar do

distanciamento temporal de mais de 150 anos das declarações estadunidenses e

francesas, é facilmente percebida a proximidade com os valores exaltados pelos

revolucionários do século das luzes: liberdade, igualdade (formal), e fraternidade.136

Esses valores são explicitamente proclamados no primeiro artigo da Declaração.137

Sobre a proximidade e afinidade entre as cartas, pode-se ler em Comparato: A formação histórica dessa tríade sagrada remonta à Revolução Francesa. Mas a sua consagração oficial em textos jurídicos só se fez tardiamente. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, tal como o Bill of Rights de Virgínia de 1776, só se referem à liberdade e à igualdade. A fraternidade veio a ser mencionada, pela primeira vez – e, ainda assim, não como princípio jurídico, mas como virtude cívica –, na Constituição francesa de 1791. Foi somente no texto constitucional da segunda república francesa, em 1848, que o tríptico veio a ser oficialmente declarado.138

Além da marcada influência dos valores modernos liberais enunciados nas

cartas anteriores, é possível perceber o confronto entre as posições ideológicas do então

mundo bipolar da Guerra Fria dividido entre os blocos capitalista e socialista: verificam-

se como princípios que alicerceiam a declaração não apenas os direitos tradicionais de

liberdade, mas é possível distinguir também a influência do estatismo dos países

136 Para uma análise pormenorizada do conceito de fraternidade e sua atualidade, entendida como princípio regulador da comunidade política que é possível ser construída Cf. MANIERI, M. Fraternità: Rilettura civile di un'idea che può cambiare il mondo. Veneza: Marsilio Editori, 2013. 137 Cf. DUDH, p.3. 138 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.240-241.

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socialistas no que se refere “ao progresso social e melhores condições de vida”,139

princípio que subsidiará os denominados direitos sociais, os quais aparecem em ao

menos seis artigos da Declaração.140

A Declaração enuncia ao menos quatro tipos de direitos: (i) os direitos

individuais, tais como o direito à igualdade formal, à vida, à liberdade, e à segurança;141

(ii) os direitos dos indivíduos em relação aos grupos sociais dos quais fazem parte,

como o direito à privacidade, à vida familiar, ao matrimônio, o direito de ir e vir, o

direito a ter uma nacionalidade, o direito de propriedade, o direito à liberdade

religiosa;142 (iii) os direitos políticos, tais como liberdade de expressão, de pensamento,

de reunião, o direito ao sufrágio;143 e (iv) os direitos econômicos e sociais, tais como

instrução, saúde, trabalho e cultura.144

Alguns desses direitos acabam por se sobrepor, como, por exemplo, o

direito enunciado no Artigo XV, ter direito a uma nacionalidade, que é um direito do

indivíduo em relação aos grupos sociais que pertence – no caso uma comunidade

situada dentro de limitações fronteiriças e reconhecida pela comunidade internacional –,

e, também, um direito evidentemente político.

Os artigos XXI e XXIX merecem menção especial pois eles enunciam a

concretização do processo de viragem da forma de organização política do Estado

despótico para o Estado de Direito: a única forma de governo legítima e compatível com

os direitos humanos, capaz de fomentá-los, é a democracia.145 A democracia é o sistema

político que por excelência pode organizar o direito com vistas a resolução pacífica de

conflitos e estabelecer a paz. É estabelecida, assim, a relação de interdependência da

tríade democracia, direito e paz.146

139 DUDH, p.2. 140 Mais precisamente nos artigos XXII, XXIII, XXIV, XXV, XXVI, XXVII da DUDH. 141 Esses eram exatamente os quatro direitos naturais enunciados nas cartas francesas. Cf. os artigos I, II, III, IV, V, X, XI, XVI, XVIII, XXII da DUDH. 142 Cf. os artigos VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XV, XVII, XVIII da DUDH. 143 Cf. os artigos IX, X, XI, XIV, XV, XVI, XIX, XX, XXI, XXVIII da DUDH. 144 Cf. os artigos XXII, XXIII, XXIV, XXV, XXVI, XXVII da DUDH. 145 “Outro traço saliente da Declaração Universal de 1948 é a afirmação da democracia como único regime político compatível com o pleno respeito aos direitos humanos (arts. XXI e XXIX, alínea 2). O regime democrático já não é, pois, uma opção política entre muitas outras, mas a única solução legítima para a organização do Estado.” Afirmação histórica dos direitos humanos, p.246. 146 “Em princípio, a enorme importância do tema dos direitos do homem depende do fato que ele está estritamente ligado com os dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das constituições democráticas, e ao mesmo tempo a paz é o pressuposto necessário para a efetiva proteção dos direitos humanos nos Estados

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Hunt acaba por sintetizar o conteúdo e o significado político da DUDH na

seguinte passagem:

A Declaração Universal não reafirmava simplesmente as noções de direitos individuais do século XVIII, tais como a igualdade perante a lei, a liberdade de expressão, a liberdade de religião, o direito de participar do governo, a proteção da propriedade privada e a rejeição da tortura e da punição cruel. Ela também proibia expressamente a escravidão e providenciava o sufrágio universal e igual por votação secreta. Além disso, requeria a liberdade de ir e vir, o direito a uma nacionalidade, o direito de casar e, com mais controvérsia, o direito à segurança social; o direito de trabalhar, com pagamento igual para trabalho igual, tendo por base um salário de subsistência; o direito ao descanso e ao lazer; e o direito à educação, que devia ser grátis nos níveis elementares. Numa época de endurecimento das linhas de conflito da Guerra Fria, a Declaração Universal expressava um conjunto de aspirações em vez de uma realidade prontamente alcançável. Delineava um conjunto de obrigações morais para a comunidade mundial, mas não tinha nenhum mecanismo de imposição. Se tivesse incluído um mecanismo para impor as obrigações morais, nunca teria sido aprovada. Entretanto, apesar de todas as suas deficiências, o documento teria efeitos não de todo diferentes daqueles causados pelos seus predecessores do século XVIII. Por mais de cinquenta anos ele tem estabelecido o padrão para a discussão e ação internacionais sobre os direitos humanos.147

A DUDH possui o mérito de resolver o problema do fundamento que

consolidaria o ponto de partida e consequentemente possibilitaria o início dos debates

seguros sobre os direitos humanos ao instituir um norte para eles. Contudo, ela possui

uma grande limitação apontada acima: a DUDH não possui um mecanismo de

imposição dos direitos declarados. Ela é apresentada como um ideal comum a ser

alcançado por todos, ela é simplesmente uma expressão de boas intenções: A Declaração precisamente foi aprovada como uma simples promessa recíproca e solene, a qual era vinculante no plano ético-político, mas que não comportava obrigações para os Estados.148

Ela é mais que um sistema doutrinário, mas menos que um sistema de

normas jurídicas. Por não existir o monopólio da força no âmbito internacional, i.e., por

não existir aparato coercitivo que obrigue efetivamente a observância dos direitos

singulares e no sistema internacional.” L'età dei diritti, p.258. No texto em italiano: “In linea di principio, l’enorme importanza del tema dei diritti dell’uomo dipende dal fatto che è strettamente connesso con i due problemi fondamentali de nostro tempo, la democrazia e la pace. Il riconoscimento e la protezione dei diritti dell’uomo stanno alla base delle costituzioni democratiche, e nello stesso tempo la pace è il presupposto necessario per l’effettiva protezione dei diritti dell’uomo nei singoli Stati e nel sistema internazionale.” 147 A invenção dos direitos humanos: uma história, p.206. 148 CASSESE, A. I diritti umani nel mondo contemporaneo. 6. ed. Roma (Itália): Laterza, 2000, p.43. No texto italiano: “La Dichiarazione appunto fu approvata come una semplice promessa reciproca e solenne, che impegnava sul piano etico-politico, ma non comportava obblighi per gli Stati.”

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enunciados, emergem dificuldades jurídico-políticas no que se refere à implementação

dos direitos humanos.

A implementação dos direitos enunciados na DUDH depende das relações

entre os Estados e organizações, e isso significa que ela depende das correlações de

forças envolvidas na comunidade internacional. Como não existe uma via coativa, resta

o que Bobbio denomina de via diretiva (vis directiva).149 A via diretiva seria uma forma

de encaminhar e conduzir a um determinado fim sem o uso da coação. Ela dependeria

de ao menos uma das duas condições seguintes: (i) uma autoridade que deveria se impor

por temor ou respeito, e (ii) destinatários extremamente razoáveis, i.e., dispostos a

considerar como válidos não apenas os argumentos da força, mas também os

argumentos da razão.150 A ausência dessas duas condições acarretaria no não

asseguramento dos direitos humanos, assim como no desprezo pelos direitos humanos

no plano interno de um Estado ou no escasso respeito à comunidade internacional.

Tanto a via coativa quanto a via diretiva são modos de exercer o controle

social, o qual, segundo Bobbio, pode ser alcançado de ao menos dois modos: (i) pela

determinação da ação do outro pela influência, i.e., o modo de controle que determina o

agir do outro atuando sobre a sua escolha, e (ii) pelo modo de controle que determina a

ação do outro pela impossibilidade do agir diferente, i.e., pelo poder. A proteção

jurídica serve-se da forma de controle social do poder; já as garantias internacionais se

dão, principalmente, pela influência. Os órgãos internacionais atuam no sentido de

influenciar a comunidade internacional através da dissuasão, do desencorajamento e do

condicionamento a respeitar os direitos humanos. Mas eles não possuem o poder de

coagir através da violência física, nem do impedimento legal, nem da ameaça de graves

sanções,151 estas últimas correspondendo exatamente às formas de proteção que foram

convencionalmente denominadas de proteção jurídica.

As organizações internacionais atuam, segundo Bobbio, em três

perspectivas: na promoção, no controle, e na garantia em sentido estrito no que tange à

implementação dos direitos humanos. A promoção atua no sentido de desenvolver ações

orientadas para (i) induzir a implementação de medidas para tutela dos direitos humanos

e (ii) induzir o aperfeiçoamento das medidas existentes;152 as ações de controle

149 Cf. L'età dei diritti, p.33. 150 Cf. L'età dei diritti, p.34. 151 Bobbio remete o seu leitor, nesse ponto, à teoria de Felix Oppenheim. Cf. L'età dei diritti, p.58. 152 Cf. L'età dei diritti, p.59.

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englobam o conjunto de medidas para verificar o grau de acolhimento das

recomendações feitas. São basicamente duas as formas de controle: os relatórios e os

comunicados. Os relatórios são confeccionados pelos Estados signatários e apresentam

a descrição das medidas adotadas para proteger e tutelar os direitos humanos; os

comunicados são denúncias encaminhadas à comunidade internacional por um Estado

que informa o não cumprimento das obrigações decorrentes de um pacto por um outro

Estado.

Bobbio diferencia as garantias das garantias em sentido estrito. A primeira

seria referente ao reforço ou aperfeiçoamento do sistema jurisdicional de um Estado em

particular, i.e., seria relativa às garantias nacionais já existentes; a garantia em sentido

estrito seria referente à criação e organização de uma autêntica tutela jurisdicional de

nível internacional,153 a qual seria, por assim dizer, o ponto de chegada do processo de

internacionalização e universalização dos direitos humanos.

Resta, agora, abordar um último tópico importante para a nossa tese a

respeito dos direitos humanos, a saber, as suas gerações / dimensões historicamente

originadas.

4.6. Os Direitos Humanos e suas Gerações

Nas seções anteriores foi possível apresentar os direitos humanos como

fruto de um processo histórico que aponta para um dever ser dos modos de convivência

coletiva, em um Estado de Direito que possibilita a tutela de tais direitos.154 E esse

dever ser varia de acordo com os contextos e as circunstâncias, das necessidades e

demandas, da luta pela defesa de novas liberdades contra velhos poderes.155 Por conta

disso, os direitos surgem de forma gradual, ao longo da história, como reflexos dos

contextos, circunstâncias, necessidades, demandas e das lutas de períodos históricos

determinados.

153 Cf. L'età dei diritti, p.59. 154 Cf. LAFER, C. A Internacionalização dos direitos humanos: o desafio do direito a ter direitos. In: AGUIAR, O. A. et allii (Org). Filosofia e direitos humanos. Fortaleza: Ed. UFC, 2006, p.14. Doravante abreviado por A Internacionalização dos direitos humanos: o desafio do direito a ter direitos, seguido de indicação de página. 155 Cf. L'età dei diritti, p.XIII.

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Os diferentes tipos de direito que emergiram ao longo do processo histórico

foram classificados como gerações de direitos. O termo foi cunhado pelo jurista tcheco-

francês Karel Vašák, então diretor da Divisão de Direitos do Homem e da Paz da

UNESCO, em sua aula inaugural intitulada Pour les Droits de l’Homme et la Troisième

Génération: Les Droits de Solidarité (Sobre os Direitos Humanos e a Terceira Geração:

os Direitos de Solidariedade) aos cursos do Instituto Internacional dos Direitos do

Homem, em Estrasburgo no dia 2 de julho de 1979.156

Segundo história reproduzida em diversos livros e artigos em língua

portuguesa,157 Vašák confessou ao jurista brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade

que à época daquela conferência ele não disponha de tempo suficiente para preparar

uma exposição minuciosa e prestou-se a fazer uma reflexão na qual associava à

bandeira de França e ao lema “Liberdade, Igualdade, e Fraternidade” o que ele chamou

por gerações do direito: a primeira geração como direitos de liberdade, a segunda

geração como direitos de igualdade, e a terceira geração como direitos de fraternidade.

Norberto Bobbio toma de empréstimo a nomenclatura cunhada por Vašák, e

a incorpora como ferramenta hermenêutica em sua obra A Era dos Direitos (L’Età dei

Diritti). O fato dessa obra ter marcado as discussões sobre filosofia do direito e ser um

clássico até hoje utilizado como guia ou contraposição para o debate acerca dos direitos

humanos e da história dos direitos recentes, fez com que a nomenclatura geração fosse

disseminada e amplamente empregada.

156 Cf. BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 19ª edição. São Paulo, SP: Malheiros, 2006, p. 563. 157 Cf. MARCHI, W. Uma reflexão sobre a classificação dos direitos fundamentais. In: Revista Ius et Iustitia Eletrônica, Volume 3, nº1, 2010, p.36-44. Disponível em: http://revistaunar.com.br/juridica/documentos/vol3_n1_2010/UMAREFLEXAOSOBREACLASSIFICACAODOSDIREITOSFUNDAMENTIAS.pdf. Acesso em: 23 set. 2016. Doravant abreviado como Uma reflexão sobre a classificação dos direitos fundamentais. O artigo faz a seguinte transcrição do discurso proferido por Cançado Andrade na Câmara dos Deputados de Brasília: “[...] Em primeiro lugar, essa tese das gerações de direitos não tem nenhum fundamento jurídico, nem na realidade. Essa teoria é fragmentadora, atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividida, o que não corresponde à realidade. Eu conversei com Karel Vasak e perguntei: ‘Por que você formulou essa tese em 1979?’. Ele respondeu: ‘Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da bandeira francesa’. Ele nasceu na velha Tchecoslováquia. Ele mesmo não levou essa tese muito a sério, mas, como tudo que é palavra “chavão”, pegou. Aí Norberto Bobbio começou a construir gerações de direitos etc.” TRINDADE, A. A Proteção internacional das mulheres. Discurso de 25 maio 2000. Câmara dos Deputados, Brasília, DF. V Conferência Nacional dos Direitos Humanos apud MARCHI, W. Uma reflexão sobre a classificação dos direitos fundamentais, p.9.

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Existe atualmente um grande debate acerca da nomenclatura mais acertada

para designar tais tipos de direito:158 gerações, dimensões, categorias, espécies, naipes,

ondas. Também se discute sobre a existência de outras gerações dos direitos humanos.

Alguns autores discorrem sobre a quarta geração de direitos humanos, mas sem alcançar

exatamente um consenso sobre o seu conteúdo. Por outro lado, no que parece ser uma

hiperinflação da terminologia, alguns autores chegam a reivindicar a existência de

direitos de quinta, sexta, sétima, oitava e até nona geração. Optamos aqui pela utilização

do termo geração, para manter a uniformidade com o termo empregado por Bobbio,

autor que auxilia e embasa nossa argumentação, e também por entender que é o termo

mais preciso e acertado para descrever o fenômeno da origem dos direitos humanos. O

termo geração preserva o sentido histórico, de origem, e de afirmação dos direitos

humanos em momentos históricos distintos, conforme os determinados contextos. Nessa

perspectiva hermenêutica, a afirmação dos direitos faz parte de um continuum histórico

no qual as diversas gerações coexistem e podem se sobrepor; a possibilidade de

sobreposição, i.e., a possibilidade delas entrarem em conflito entre elas mesmas é uma

condição inerente à lógica de afirmação dos direitos humanos relatada por Bobbio como

uma antinomia dos direitos.

Para Bobbio, uma análise atenta da história mostra que os direitos não são

dados por governantes aos governados, mas conquistados através da reivindicação e do

embate: [...] a liberdade religiosa foi o resultado das guerras de religião, as liberdades civis, resultado das lutas dos parlamentos contra os soberanos absolutos, a liberdade política e as liberdade sociais foram resultados do nascimento, crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que demandam ao poder público não apenas o reconhecimento da liberdade pessoal e da liberdade negativa, mas também a proteção do trabalho contra o desemprego, as primeiras demandas rudimentares contra o analfabetismo, e também a assistência por invalidez e idade, tudo aquilo que os proprietários abastados podiam prover por si mesmos.159

158Uma introdução sobre o debate referente à melhor terminologia a ser empregada pode ser encontrada em Uma reflexão sobre a classificação dos direitos fundamentais. 159 L'età dei diritti, p.XIII-XIV. No texto em italiano: “[...] la libertà religiosa è un effetto delle guerre di religione, le libertà civili, delle lotte dei parlamenti contro i sovrani assoluti, la libertà politica e quelle sociali, della nascita, crescita, e maturità del movimento dei lavoratoti salariati, dei contadini con poca terra o nullatenenti, dei poveri che chiedono ai pubblici poteri non solo il riconoscimento della libertà personale e delle libertà negative, ma anche la protezione del lavoro contro la disoccupazione, e i primi rudimenti d’istruzione contro l’analfabetismo, e via via l’assistenza per la invalidità e la vecchiaia, tutti bisogni cui i proprietari agiati potevano provvedere da sé.”

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Além disso, os direitos não nascem – ou são conquistados – todos de uma

única vez, mas apenas quando podem ou devem nascer.160 Certas demandas nascem

somente quando nascem certas necessidades; e as necessidades nascem das mudanças

das condições sociais, e quando desenvolvimentos tecnológicos permitem satisfazê-

las.161 Dessa forma, o contexto histórico-social deve reunir as condições de

possibilidade para que os direitos surjam como pontos norteadores ideais, ou já como

efetividades.

Alguns eventos históricos possuíram e criaram atmosferas fecundas para o

surgimento e a positivação de direitos. Pudemos analisar alguns deles em nossa tese,

dentre tantas possibilidades observadas ao longo de nossa história, como A Declaração

de Direitos (Bill of Rights) inglesa de 1689,162 os documentos do processo de

independência estadunidense,163 e as Declarações e cartas de direitos frutos do processo

revolucionário francês.164

Como fruto desses eventos históricos e nessa lógica de conceber a origem

dos direitos, eles foram classificados posteriormente por Bobbio da seguinte forma: (i)

direitos tradicionais, os quais lidam exclusivamente com as liberdades individuais e

políticas, mas apenas no sentido negativo, i.e., a liberdade entendida como ausência de

coação, como o não atuar do Estado, como a não ingerência do poder público regulador

das interações sociais na vida cotidiana dos indivíduos. Trata-se, aqui, basicamente do

asseguramento de direitos cuja titularidade corresponde unicamente ao indivíduo, aos

seus direitos civis, como, por exemplo, as liberdades religiosa, de expressão, e de

imprensa, o que o professor Celso Lafer chama de “legado da visão liberal de

mundo”.165

Os direitos tradicionais, ao limitarem o poder do Estado – e também o da

Igreja –, acabaram por assegurar liberdades, instituir uma nova legalidade, modificar

profundamente a forma de organização social e política. Mas acabaram, também, por

deixar os indivíduos mais vulneráveis e em situação de maior desamparo: [...] a perda da proteção familiar, estamental ou religiosa tornou o indivíduo mais vulnerável às vicissitudes da vida. A sociedade liberal ofereceu, em

160 L'età dei diritti, p.XV. 161L'età dei diritti, p.XVI. 162 Cf. a seção 4.3.1 A Declaração de Direitos (Bill of Rights) Inglesa de 1689, p.213. 163 Cf. a seção 4.3.2 As Cartas de Direitos Estadunidenses, p.214. 164 Cf. a seção 4.3.3, As Cartas de Direito Resultantes do Processo Revolucionário Francês, p.218. 165 A Internacionalização dos direitos humanos: o desafio do direito a ter direitos, p.15.

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troca, a segurança da legalidade e nada mais. Foi preciso aguardar o advento do Estado Social, no século XX, para que os grandes riscos sociais da existência humana fossem assumidos, doravante não mais pelos grupos tradicionais, mas pelo Estado.166

A tentativa de reverter ou pelo menos minimizar essa situação resultou em

diversas organizações e lutas de movimentos sociais,167 a partir das quais foram

conquistados os direitos classificados por Bobbio como (ii) direitos sociais, econômicos

e culturais (de igualdade), os quais são referentes àquilo que os indivíduos podem ou

devem ter acesso para alcançarem condições dignas de subsistência.168 Bobbio utiliza

como exemplos a instrução, o trabalho, e a saúde, embora outros autores tenham

acrescentado a esse tipo de direito outros aspectos, como moradia, previdência e cultura;

para que esses direitos possam ser fomentados e garantidos são necessárias a

intervenção e a atuação direta do Estado, porque esses são direitos que se efetivam

através desse. A concepção de Estado social tem justamente aí sua origem: na

ampliação dos poderes do Estado para garantir o fomento e a proteção efetiva dos

direitos sociais. Esse seria o “legado da visão socialista de mundo”169 no que se refere

aos direitos humanos.

Mais recentemente em relação às outras duas gerações de direitos, os (iii)

direitos difusos ou coletivos (de fraternidade),170 os quais, a partir do século XX,

surgiram como a terceira geração de direitos, os quais, embora ainda constituíssem uma

categoria muito heterogênea e vaga para serem definidos de forma precisa, abrangeriam

a preservação do meio ambiente, numa clara preocupação com a manutenção da vida na

Terra.171 Isso significa que os titulares de direitos de terceira geração não seriam mais

166 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.123. 167 Em especial a Revolução Industrial. Cf. O seundo capítulo de HOBSBAWM, E. A era das revoluções: 1789-1848. 32ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013; Cf. HOBSBAWM, E. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operaria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; Cf. HOBSBAWM, E. Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000; Cf. HOBSBAWM, E. Da revolução industrial inglesa ao imperialismo. Rio de Janeiro, RJ: Forense-Universitária, 2011. 168 A primeira Carta Constitucional a prever e acolher os denominados direitos de segunda geração foi a Constituição Mexicana de 1917. Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.189-200. Dois anos depois, os direitos sociais também compuseram a carta constitucional da Alemanha de 1919. Cf. Afirmação histórica dos direitos humanos, p.201-211. 169 A Internacionalização dos direitos humanos: o desafio do direito a ter direitos, p.15. 170 Também conhecidos por “direitos de solidariedade.” 171 Bobbio se refere aos direitos de terceira geração da seguinte forma: “o mais importante deles [direitos abrangidos pela terceira geração de direitos] é o reivindicado pelos movimentos ecológicos, o direito a viver em meio ambiente não poluído.” Tradução livre para “Il più importante è quello rivendicato dai movimenti ecologici: il diritto a vivere in un ambiente non inquinato.” L’età dei diritti, p.XIV-XV.

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indivíduos, mas uma certa coletividade social que se outorgaria o direito de preservação

e se obrigaria a cumpri-lo, uma vez que todo direito outorgado deve necessariamente

acarretar uma obrigação.

É bem verdade que muitos desses direitos não foram positivados e não

possuem ainda instrumentos assecuratórios próprios, mas isso não significa que não se

possa afirmar que tais direitos deixem de ser sentidos no meio social como exigências

impostergáveis,172 e, dessa forma, possam ser reivindicados.

Dadas as linhas gerais e básicas sobre os direitos humanos e suas gerações,

pode-se dizer mais uma vez que, enquanto os direitos de primeira geração colocam

limites ao Estado, os direitos de segunda geração estabelecem as diretrizes para o agir

do Estado no tocante ao asseguramento do mínimo de condições necessárias no que

concerniria uma vida digna; e que os direitos de terceira geração – os direitos de

fraternidade e solidariedade – podem ser entendidos, basicamente, como a aspiração

coletiva de preservação e de conservação do meio ambiente, e, assim, eles apontam para

um horizonte de como os Estados e as sociedades devem se empenhar na preservação

do meio ambiente para a manutenção da vida e de condições adequadas para as futuras

gerações.

Após essa curta e condensada exposição, e após mobilizar e recuperar

alguns conceitos mínimos sobre os direitos humanos, é possível avaliar a extensão, o

impacto e a atualidade da filosofia schopenhaueriana sobre o tema.

172 Afirmação histórica dos direitos humanos, p.152.

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5 Considerações Finais: Atualidades de Schopenhauer

Quando se escreve sobre a possível atualidade de um filósofo, acaba-se por

fazer um exercício de reflexão e reinterpretação de sua filosofia e de interpretação da

atual conjuntura local, regional, setorial, ou mundial, dependendo do aspecto a ser

analisado e trabalhado. Assumimos, como enunciado, uma postura de interpretação

“herética”, à esquerda, na perspectiva ético-empírica, da pequena ética, da inversão dos

âmbitos de primazia entre intelecto e caráter (o coração permanece incorrigível, mas a

cabeça ainda pode ser esclarecida), que dê ênfase aos aspectos práticos da filosofia

schopenhaueriana e que, como uma alternativa ao quietismo, seja focada na ética da

melhoria, na tentativa de tornar essa a vida menos infeliz possível, na tentativa de fazer

deste o menos pior dos mundos possíveis, i.e., em uma práxis cujo norte é a redução de

danos do que é existir.

É possível que um leitor ortodoxo da filosofia schopenhaueriana questione

os resultados alcançados e até mesmo se, após o novo enfoque adotado, ainda se trata da

filosofia schopenhaueriana, uma vez que toda tentativa de atualização de um autor

resulta necessariamente em adaptações e distorções – em maior ou menor grau – de suas

ideias. E aqui só é possível responder que se não se trata mais de Schopenhauer em

senso estrito, ao menos a questão é tratada em termos da filosofia schopenhaueriana. Os

resultados apresentados podem soar, assim, muito mais como provocações e como

apontamentos – ou como uma acomodação e desvio – de propostas de interpretação do

que como uma questão esmiuçada e já resolvida. E são exatamente esses os horizontes

que essa tese procurou alcançar: o da provocação e o do convite à reflexão das

possibilidades existentes, vislumbrando encontrar na filosofia schopenhaueriana pontos

de convergência para refletir acerca de questões atuais sobre direitos humanos.

Como se trata de pensar a atualidade de Schopenhauer, foi preciso construir

e pavimentar a via para que esse trajeto fosse tornado possível: (i) reconstruir as

doutrinas do direito e do Estado de Schopenhauer e os conceitos de sua filosofia

diretamente implicados nelas; (ii) mostrar que existem interpretações de sua filosofia

que fogem ao cânone estabelecido e que mesmo assim são bem fundamentadas e

extremamente ricas ao criar possibilidades de enfrentamento de problemas que nos

circundam; (iii) apresentar minimamente a temática e os conceitos implicados na qual

essa atualidade é pensada, ou seja, os direitos humanos.

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Os direitos humanos ganharam, como visto, relevância e maior concretude –

mesmo que essa concretude possa ser amplamente questionável e discutível – após a

Segunda Guerra Mundial, em um contexto no qual os traumas e a brutalidade de tal

evento marcavam a atmosfera social, e no qual a humanidade passava a ter que lidar

com o aumento incontrolado da população, com o aumento cada vez mais rápido e

desregrado da degradação do ambiente, com o aumento cada vez mais rápido,

incontrolável, e insensato do poder armamentista, fatores que colocavam em

constantemente estado de iminência de extinção a vida planetária.1

O historiador Eric Hobsbawn não por acaso denominou o período que

compreende os anos de 1914 a 1991 de A Era dos Extremos,2 e é justamente nele em

que os direitos humanos emergem como, por assim dizer, um esforço comum

supranacional de barrar os perigos que a própria humanidade estava se impondo. Foi

necessária uma situação limítrofe para que as grandes potências mundiais aceitassem

compor uma mesa de negociação para estabelecer uma finalidade comum e tentar evitar

uma catástrofe maior. E esse esforço, i.e., a tentativa de implementação e tutela dos

direitos humanos, depara-se com questões que, quando analisadas, residem não só na

relação entre ética e política,3 mas também entre moral e a própria ciência jurídica. Os

direitos humanos emergem como imbricação de dilemas éticos e morais que necessitam

de resoluções políticas e jurídicas.

Há de se considerar, também, ao avaliar a atualidade e relevância de um

autor para um debate contemporâneo as mudanças ocorridas no mundo entre o período

em que sua obra foi escrita e o momento atual em que a questão é confrontada. No caso

de Schopenhauer, por exemplo, isso significa que, como o modelo democrático de

organização política se consolidou como o único possível para a resolução dos

problemas da sociedade de forma pacífica e com vistas a garantir a paz, i.e., o único

modelo possível de organização política para a implementação e tutela dos direitos

humanos é o regime democrático, não podemos considerar a monarquia constitucional

tripartida como forma de governo válida para suprir as demandas relativas aos direitos

humanos no mundo contemporâneo; tampouco podemos, pelo acumulo e volume de

discussões e debates sobre a função da pena nos últimos séculos, considerar o direito

1 Cf. BOBBIO, N. L’età dei diritti. Torino: Giulio Einaudi, 1995, p.45. 2 Cf. HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2002. 3 Cf. AGUIAR, O. A. et allii (Org). Filosofia e direitos humanos. Fortaleza: Ed. UFC, 2006, p.9-10.

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penal schopenhaueriano integralmente como uma via válida e possível para a efetivação

dos direitos humanos e garantia da paz: a defesa da pena capital como uma possível

solução para os problemas de ordem social está visceralmente em contradição com o

significado e objetivos dos direitos humanos – mesmo que esse significado e esses

objetivos sejam extremamente abrangentes e estejam em constante disputa, a pena de

morte não é tolerada em uma sociedade voltada para as garantias de condições dignas de

vida e da solução pacífica dos conflitos.4

Por outro lado, devemos considerar questões que para Schopenhauer, nesse

campo, eram ainda impensáveis à época, como, por exemplo, a tentativa efetiva de

implementação de um Estado de bem-estar social, e os direitos que viriam a ser

classificados como direitos humanos de segunda e de terceira gerações.

Para fins didáticos, as relações traçadas entre a filosofia de Arthur

Schopenhauer e os direitos humanos serão apresentadas seguindo a divisão geracional

proposta por Vašák e endossada por Bobbio.

5.1. Direitos Humanos de primeira geração

Schopenhauer acabou por ser atrelado a posições politicamente

conservadoras, tanto pelos seus escritos tardios – principalmente os PP –, quanto pelos

seus eventos biográficos. É muito disseminada e conhecida a anedota de que durante a

revolução germânica de 1848 Schopenhauer emprestara a sua luneta para ajudar os

soldados austríacos durante uma investida do exército contra os revolucionários em

Frankfurt: Na sacada de seu apartamento, para onde a multidão se dirigia, empresta sua luneta a soldados, para que pudessem melhor mirar a “canalha”. Jamais apoiaria um evento que acarretasse perigo à sua fortuna multiplicada, a qual lhe garantia o ócio indispensável ao filosofar.5

4 Sobre a pena de morte conferir os capítulos Contro la pena di morte (Contra a pena de Morte) e Il dibattito attuale sulla pena di morte (O debate atual sobre a pena de morte). Cf. L’età dei diritti, p.181-234. 5 BARBOZA, J. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, (Coleção Filosofia Passo a passo), p.22. Sobre detalhes desse evento Cf. o vigésimo segundo capítulo de SAFRANSKI, R. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia: uma biografia. Tradução de Willian Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011, p.598-603. A carta de 2 de março de 1849 na qual ele descreve o ocorrido a Julius Frauenstädt pode ser consultada em Briefwechsel, 645, XIV, 636.

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A forma pela qual Schopenhauer escreve suas teorias do direito e do Estado,

como foi possível verificar em nossa exposição, expressa um tom que é comumente

associado aos ideais liberais e conservadores, e da manutenção da ordem vigente.

Poder-se-ia afirmar que Schopenhauer assume uma posição liberal por (i) defender,

justificar e fundamentar o direito de propriedade; por (ii) defender o direito de liberdade

de imprensa, desde que os autores não se escondessem atrás do anonimato (Anonymität)

6 – a imprensa funcionaria como uma válvula de escape da sociedade, evitando a

desordem social; por (iii) ser um ferrenho defensor do Estado guardião; por (iv)

defender a meritocracia nas carreiras; pelo fato de (iv) ele reconhecer as mazelas

oriundas das relações de escravidão, servidão, trabalho e pobreza, tentando justificá-las;

e pelo fato de (v) sua concepção egoísta do ser humano respaldar a concepção

individualista de sociedade, concepção que ganhou força a partir dos escritos dos

autores iluministas, os quais ele leu avidamente. Já a posição de conservador é atribuída

ao filósofo por este (a) defender a manutenção da ordem vigente contra qualquer tipo de

“perturbação” social que pudesse incomodar a sua tranquilidade financeira e emocional,

além do fato de (b) defender o regime monárquico – apesar de tripartido, uma

contribuição dos autores modernos – como a melhor forma de governo para a sociedade,

um fato curioso, contrário aos ideais republicanos iluministas e às lutas pela extinção

das monarquias absolutistas e do Antigo Regime, confrontos que se desenrolaram em

período relativamente próximo ao dele.

Schopenhauer escreve e fundamenta os direitos naturais, os quais para ele

são morais, e a importância desses para uma justa legislação positiva, i.e., como o

direito natural serve de parâmetro para que as leis sejam moralmente justas, e como esse

é o instrumento de orientação adequado do Estado para suprimir o máximo possível as

adversidades oriundas dos egoísmos individuais e para preservar a vida. O Estado

possui meramente uma função negativa, protetora, de evitar a guerra de todos contra

todos na esfera interna da organização política, de proteção às ameaças externas, e de

proteção aos seus membros dos abusos do próprio Estado. Excetuando-se o modelo que

Schopenhauer defende de Estado, a monarquia constitucional tripartida, podemos

aproximar tranquilamente a sua filosofia política e suas doutrinas do direito e do Estado

– com exceção de sua teoria acerca do direito penal – do que posteriormente foi

denominado por direitos humanos de primeira geração.

6 Sobre a questão do anonimato em Schopenhauer Cf. PP, Kapitel XXIII – Ueber Schriftstellerei und Stil.

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Aqui os schopenhauerianos ortodoxos – a direita schopenhaeuriana –

estariam contemplados com essa asserção; e os schopenhauerianos que assumem uma

interpretação à esquerda não teriam saída para contra argumentar o apresentado.

Contudo, temos uma margem de manobra maior para apreciar as questões que se

referem aos direitos humanos de segunda e de terceira gerações.

5.2. Direitos Humanos de segunda geração

No que diz respeito ao que acordou-se denominar direitos humanos de

segunda geração a questão é mais delicada. Direitos humanos de segunda geração são os

chamados direitos sociais e culturais (saúde, instrução, trabalho, habitação) e estão

estritamente atrelados a uma postura do Estado que seja ativa, i.e., uma postura de

fomento e intervenção para a alteração das relações sociais estabelecidas com vistas a

garantir e assegurar o mínimo de acesso a tais direitos. Para que eles sejam garantidos, o

Estado precisar intervir de modo ativo na ordem social.

Schopenhauer entende a postura ativa do Estado como ações de

benevolência (Wohlthaten) e obras de caridade (Liebeswerken), e que não seria possível

nem viável que essas fossem atribuições do Estado: Porém, o Estado não pode ir além desse ponto e não pode mostrar um fenômeno semelhante ao oriundo da benevolência e do amor recíproco universais. Pois vimos que o Estado, de acordo com sua natureza, não pode proibir uma prática da injustiça à qual não corresponde um sofrer injustiça do outro lado. Ora, simplesmente porque isto é impossível, proíbe então qualquer prática da injustiça. Inversamente, em conformidade com sua tendência dirigida ao bem-estar de todos, o Estado, de bom grado, até cuidaria para que cada um EXPERIMENTASSE benevolência e obras de caridade de todo gênero se estas não tiverem um correlato inevitável na REALIZAÇÃO de benevolência e de obras de caridade. Só que, assim, cada cidadão irá querer assumir o papel passivo, nenhum o ativo, não havendo motivo algum para atribuir o segundo papel a um em vez de a outro cidadão; por conseguinte, apenas o negativo, que constitui precisamente o DIREITO, pode ser IMPOSTO, não o positivo, o qual se entendeu sob a rubrica de deveres de caridade ou deveres imperfeitos.7

7 MVR I, §62, p.442-443, I 408-409. No original alemão: „– Weiter aber als bis zu diesem Punkt kann es der Staat nicht bringen: er kann also nicht eine Erscheinung zeigen, gleich der, welche aus allgemeinem wechselseitigen Wohlwollen und Liebe entspringen würde. Denn, wie wir eben fanden, daß er, seiner Natur zufolge, ein Unrechtthun, dem gar kein Unrechtleiden von einer andern Seite entspräche, nicht verbieten würde, und bloß weil dies unmöglich ist jedes Unrechtthun verwehrt; so würde er umgekehrt, seiner auf das Wohlseyn Aller gerichteten Tendenz gemäß, sehr gern dafür sorgen, daß Jeder Wohlwollen und Werke der Menschenliebe aller Art er führe ; hätten nicht auch diese ein unumgängliches Korrelat im Le ist en von Wohlthaten und Liebeswerken, wobei nun aber jeder Bürger des Staats die passive, keiner

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Em primeiro lugar, devemos suspender o entendimento de que a atuação e

intervenção do Estado devam ser percebidas apenas como obras de caridade,

benfeitorias, e qualquer outra acepção que reduza o agir ativo do Estado a atividades

assistenciais. Ao afastar esse tipo de entendimento o problema pode ser recolocado,

sendo possível retomar as questões formuladas anteriormente: podem novas funções

serem atribuídas ao Estado? Seria lícito, dado o novo contexto, o Estado assumir o papel

positivo em determinadas questões para suprir determinadas demandas? Quais seriam

essas questões e demandas? Atualmente, até que ponto é possível dissociar a proteção

física da proteção econômica?

Com o desenrolar histórico e a complexificação das relações sociais

emergiram novas demandas e novas necessidades. Como resposta, novos tipos de

direitos (os direitos de segunda geração), novas concepções, e novas atribuições de

Estado surgiram (o Estado de bem-estar social é um grande exemplo disso). O fator

econômico ganhou cada vez mais relevância e importância, tornando-se um aspecto

central da vida humana: sem recursos financeiros não é possível ter acesso às condições

mínimas de subsistência e dignidade. Tratar-se-ia, desse modo, de uma situação de

vulnerabilidade, de buscar um mínimo existencial para sobreviver, não de obras de

caridade e benevolência.

Mesmo assim, Schopenhauer não apresenta bons argumentos nem justifica

de forma convincente a razão do Estado não poder ocupar-se de obras de caridade e

benevolência. Limita-se a expressar que os cidadãos beneficiados se acomodariam na

situação (cada cidadão irá querer assumir o papel passivo, nenhum o ativo) e que não

existiria um critério de distinção para poder decidir quais cidadãos poderiam receber as

benfeitorias – ocupar o papel passivo – e quais deveriam desempenhar um papel ativo

na sociedade (não havendo motivo algum para atribuir o segundo papel a um em vez de

a outro cidadão).

Poder-se-ia argumentar – e aqui, como Bobbio mostrou, faz parte do

problema assumir uma determinada estratégia a partir de uma posição ideológica – que

não se tratam de benfeitorias e obras de caridade, mas que o agir do Estado em casos

que envolvam questões que podem sanar situações de vulnerabilidade, tais como acesso die aktive Rolle würde übernehmen wollen, und letztere wäre auch aus keinem Grund dem Einen vor dem Andern zuzumuthen. Demnach läßt sich nur das Negative, welches eben das Recht ist, nicht das Positive, welches man unter dem Namen der Liebespflichten, oder unvollkommenen Pflichten verstanden hat, erzwingen.“

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à saúde, à instrução, moradia e direito ao trabalho, i.e., as condições mínimas de uma

existência digna – e quais seriam essas condições mínimas de existência são apontadas

pelos direitos humanos – é desejável e poderia ser classificado como um tipo especial de

proteção: a proteção social (Sozialschutz).

A proteção social seria desejável porque, dada a relação cada vez mais

estrita e indissociável entre vulnerabilidade física e vulnerabilidade econômica, seria

uma forma de resguardo à integridade física – e também psicológica – dos indivíduos.

Acesso à instrução, trabalho e moradia, teriam como finalidade tanto preservar o

indivíduo quanto, de certo modo e em certo grau, motivá-lo a estar mais disposto em

seguir a vida dentro dos limites da legalidade.

Um possível critério a ser adotado para decidir quais cidadãos deveriam

receber tal tipo proteção é a necessidade, i.e., a condição de vulnerabilidade que o

indivíduo se encontra. Uma das possibilidades seria transpor a mesma lógica do

egoísmo esclarecido na justificação e legitimação da constituição do Estado para esse

caso, i.e., resguardar uma possível melhora individual com base em uma ação coletiva.

O asseguramento de um tipo de proteção social mínima garantiria ao indivíduo que as

consequências desvantajosas de um novo estado de vulnerabilidade – o econômico –

fossem reduzidas. Seria uma espécie de novo pacto: se, em um primeiro momento, o

pacto social garantiu a saída de uma situação pré-estatal de miséria, um segundo pacto,

agora econômico ou de proteção social, poderia garantir as condições mínimas para que

cada indivíduo possa com o auxílio e intervenção do Estado garantir as condições

mínimas para a sua dignidade.

Seria possível estabelecer, dessa forma, um quarto tipo de finalidade ao

Estado schopenhaueriano, a proteção social, que, ao contrário dos demais tipos de

proteção que são puramente negativos, seria uma proteção ativa, cujo resultado

esperado seria, ao menos, o da diminuição da violência entre os indivíduos.

5.3. Direitos Humanos de terceira geração

Os direitos de terceira geração – direitos de titularidade difusa, associados aos

direitos de fraternidade / solidariedade –, como visto, comportam a aspiração coletiva de

preservação e de conservação do meio ambiente.

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Para Schopenhauer, a essência do mundo é querer, um querer que revela um

interesse pela própria preservação e manutenção da vida, nas melhores condições

possíveis. São várias as estratégias da vontade em se autoconservar e em se afirmar. A

obra Über den Willen in der Natur (Sobre a Vontade na Natureza), por exemplo, pode

ser entendida como uma tentativa de Schopenhauer catalogar várias dessas estratégias

da vontade que aparecem na complexidade de relações da biosfera terrestre; tudo isso

com a finalidade de comprovar empiricamente a sua filosofia da vontade. Mas é no ser

humano, o grau de objetivação mais alto que a vontade atinge, onde ela encontra a

possibilidade de manifestar-se e afirmar-se de modo pleno.

No ser humano é possível notar, seja no mais basilar egoísmo, ao procurar

apenas a autossatisfação e a autoconservação, seja no egoísmo esclarecido, o qual,

através da reta razão (recta ratio), concebe o Estado como forma de regular as relações

sociais e assegurar, assim, uma gama mínima de direitos e proteções, a vontade

procurando meios para conservar-se, para continuar sendo, nas melhores condições

possíveis. Dessa forma, o egoísmo aparece em sua perspectiva prática como sinônimo

da afirmação da vontade para vida e como uma consequência da busca pela

autopreservação e autossatisfação, sendo, assim, uma condição natural do ser humano.

Uma outra estratégia da vontade em se autoconservar poderia ser a

compaixão. A compaixão é uma das motivações fundamentais para o agir humano,8 na

qual o bem-estar alheio e a diminuição do sofrimento do outro se tornam o motivo do

agente. Seria um tipo diferente da conservação egoísta, porque ela teria, ao mesmo

tempo, um aspecto prático e uma raiz evidentemente metafísica: no cuidado e na

conservação desinteressados do outro abre-se a possibilidade de pensar, não mais por

bases egoístas, o cuidado e a conservação coletiva; e no cuidar e conservar de forma

desinteressada o outro, acaba-se por conservar e cuidar de si mesmo, porque, no sistema

filosófico schopenhaueriano, compartilhamos a mesma essência metafísica.

Para criar um Estado que cumpra da melhor forma sua finalidade, a proteção

da existência de cada indivíduo, primeiro seria necessário criar seres cuja natureza

permita a eles sempre sacrificarem o próprio bem-estar em favor do bem-estar público.

Ou seja, estes seres devem ser capazes de abdicar da própria autoafirmação da vontade

para vida – devem abdicar de seu egoísmo – em prol do bem-estar coletivo. Trata-se do

8 Cf. SFM, §16, p.137, III 680-681.

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indivíduo ético, justo, caritativo; aquele que preza a afirmação do outro e dá a cada um

o que é seu, não lesando ninguém.

Mas Schopenhauer classifica essa possibilidade como uma espécie de utopia.

Para além de utopia, parece-nos uma contradição com sua doutrina do caráter, na

medida em que seria o resultado de um programa racional, de uma deliberação da razão

que, de algum modo, atuaria como instância superior de orientação dos rumos da

vontade metafísica. Entretanto, a condição usual, o impulso motivacional recorrente e

predominante é o egoísmo. Como seria possível pensar a preservação global de nosso

meio ambiente e da vida planetária quando isso significa frear impulsos egoístas de

consumo e de satisfação ao mesmo tempo em que o esgotamento dos recursos naturais e

a ameaça da nossa existência ainda parecem uma distante possibilidade?

Apesar do constante alerta de organizações internacionais de proteção ao

meio ambiente, como a World Wide Fund for Nature (WWF)9 e a Global Footprint

Network (GFN),10 de que os recursos naturais de nosso planeta estão sendo utilizados de

forma predatória e insustentável,11 e de que essa forma de exploração produz alterações

na dinâmica de funcionamento e equilíbrio de toda a biomassa de nosso planeta, pouco

tem sido feito de forma que se altere efetivamente a configuração estabelecida dos

modos de exploração do meio ambiente.12

9 A WWF produz e publica a cada dois anos um relatório sobre a situação da biodiversidade, dos ecossistemas, e as demandas sobre recursos naturais. O último relatório, de 2014, pode ser acessado em: http://assets.worldwildlife.org/publications/723/files/original/WWF-LPR2014-low_res.pdf?1413912230&_ga=1.171834528.1276102506.1476325280. Acesso em 23 set. 2016. 10 É possível acessar os relatórios da entidade que alertam para o uso desmedido de recursos naturais no seguinte endereço: http://www.footprintnetwork.org/en/index.php/GFN/page/annual_report/. Acesso em 23 set. 2016. 11 Segundo estudo recente do Instituto de Ecología da Universidad Nacional Autónoma de México e do departamento de Biologia da Universidade de Stanford publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), vivemos um período de aniquilação biológica, a sexta extinção em massa do planeta, que é mais grave que as anteriores. Cf. CEBALLOS, G.; EHRLICH, P.; DIRZO, R. Biological annihilation via the ongoing sixth mass extinction signaled by vertebrate population losses and declines. In: PNAS, v. 114 n. 30, July 10, 2017. Disponível em http://dx.doi.org/10.1073/pnas.1704949114. Acesso em 14 jul. 2017. 12 Como exemplo de resistência a medidas que visam proteger o meio ambiente, é possível lembrar da recusa dos Estados Unidos em ratificar o Protocolo de Quioto sob a alegação de que isso prejudicaria a economia do país; outros países ratificaram o Protocolo, mas não conseguiram cumprir as metas estipuladas.

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A questão financeira e mercadológica no mais das vezes possui

preponderância sobre a preservação ou o uso sustentável de recursos naturais.13 Tem-se,

assim, uma atmosfera desfavorável à efetivação dos direitos humanos de terceira

geração. A partir da filosofia schopenhaueriana, alguns cenários podem ser

vislumbrados no que concerne à questão desses direitos. Poder-se-ia pensar a questão,

ao menos, a partir de duas perspectivas: (i) a partir da perspectiva do papel e da

finalidade do Estado; e (ii) a partir da perspectiva dos motivos que fazem com que os

indivíduos ajam.

Schopenhauer é muito claro ao definir o que significa garantir a proteção

interna e externa dos cidadãos de um Estado. Significa impedir que as relações de

injustiça reinem no âmbito interno de um Estado, e, no âmbito externo, a proteção de

seus integrantes de ataques advindos de outros Estados. Trata-se de uma proteção que se

configura de forma negativa, vigilante, e repressora, que garante a integridade física e a

propriedade dos indivíduos. É, nesse sentido, um esforço coletivo em conservar a vida

de cada um dos cidadãos no seio da sociedade.

Como apontamos, a questão dos direitos humanos de terceira geração é uma

questão que ganhou forma e contornos mais delineados apenas recentemente. Trata-se

de uma nova demanda, nascida de uma nova necessidade, fruto de mudanças das

condições e relações sociais ao longo dos últimos séculos. Nesse ponto, se nos fosse

lícito questionar em que medida a garantia de conservação do meio ambiente em que o

indivíduo está inserido não pode estar dissociada da garantia de conservação do próprio

indivíduo, seria possível atualizar e, por assim dizer, alargar o conceito

schopenhaueriano de proteção, caracterizando a proteção interna, também, como a

garantia de um meio ambiente saudável para que o indivíduo possa viver. Se admitimos

esse alargamento conceitual, teríamos uma ligação estrita entre o direito à vida e o

direito a um meio ambiente preservado. E o Estado teria de aplicar seus esforços em

garantir ambos. Parte desses esforços residiria no fato de que o Estado teria de consentir

que crimes ambientais configuram um tipo de injustiça – o que em termos

schopenhauerianos seria o reconhecimento de uma sétima rubrica de injustiça, a saber,

13 Sobre esse tema conferir o minucioso estudo do professor Luiz Marques Filho. Cf. MARQUES FILHO, L. Capitalismo e colapso ambiental. 2. ed. revista e ampliada. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016.

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os crimes ambientais –, adicionando ao código penal,14 o índice de contramotivos às

ações criminais, um contramotivo mais forte aos eventuais motivos de não preservar o

meio ambiente.

Ainda sob a perspectiva da finalidade do Estado, podemos elaborar o seguinte

raciocínio: o ser humano é dotado de razão (Vernunft), uma faculdade secundária, mas

que exerce função de pronunciada importância. A faculdade de razão, ao possibilitar a

abstração, o raciocínio, e o alargamento da dimensão temporal, permite, também, que o

indivíduo, a partir da reflexão e da experiência, encontre meios mais adequados para

alcançar os seus fins. Isso não se dá pela alteração do caráter desse indivíduo, mas pelo

refinamento de sua constelação de motivos, que significa a correção e o clareamento do

conhecimento – o qual é o meio dos motivos. A educação, entendida pelo filósofo da

vontade como um prêmio, atua nos indivíduos pela correção do conhecimento, através

do ensino e do exemplo. Assim, a função pedagógica do educar tem como objetivo

influenciar o indivíduo a agir dentro dos limites da lei e a optar pelos melhores meios

para alcançar os seus fins – promovendo a melhoria civil e legal –, sem, com isso,

prescrever ou moralizar.

Contudo, apesar de Schopenhauer negar repetidas vezes que o Estado possua

alguma função moralizante, deve-se lembrar que os indivíduos possuem um caráter

adquirido que se “dá em seu uso no mundo (Weltgebrauch)”,15 e também que essas

relações no mundo estão, em sua maior parte, pautadas sobre uma ótica econômico-

jurídica regulada pelos Estados existentes. Dessa forma, em última instância, as relações

dos indivíduos com o mundo são reguladas pelo Estado. Este, assim, agiria na formação

do caráter adquirido dos indivíduos, atuando no refinamento da constelação de motivos

desses, tornando-os, assim, menos toscos.

O refinamento da constelação de motivos dos indivíduos poderia ter como

norte mostrar a eles que possuir um meio ambiente preservado pode ser muito mais

vantajoso para a manutenção da própria vida que os ganhos econômicos em explorá-lo

de forma não sustentável. Esses motivos tendem a ganhar força e a se tornarem mais

persuasivos tanto mais a situação ambiental caminhe para o limite do catastrófico.

14 Alguns Estados nacionais já adotaram em suas cartas constitucionais leis nesse sentido, como é o caso da emenda consticional de 1994 na Costa Rica, a qual estabeleceu o direito a um meio ambiente saudável e ecologicamente equiblibrado, embora os titulares desses direitos, nesse caso, sejam ainda indivíduos. 15 Cf. MVR, §55, p.391, I 357.

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Aqui iniciamos a adentrar a perspectiva das motivações que fazem com que

os indivíduos ajam. O movimento descrito acima seria uma espécie de novo

esclarecimento do egoísmo: uma nova situação limite – que no momento é hipotética,

podendo vir a se tornar real – faz com que os indivíduos percebam que é preferível

preservar o meio ambiente e arcar com o ônus e consequências envolvidas nesse ato de

preservação a arcar com as consequências dos perigos por concorrer por recursos

naturais em uma situação de precariedade, e, até mesmo, da própria ameaça de extinção.

É como se o indivíduo notasse que da mesma forma que renunciar à prática de injustiça

é vantajoso porque assim ele também não sofre injustiça, abdicar da exploração

insustentável do meio ambiente – embora esta lhe traga inúmeras vantagens – pode

garantir a sua sobrevivência.

No âmbito do egoísmo, todo o cálculo de utilidade é baseado nas vantagens e

desvantagens que o próprio indivíduo pode obter. É possível pensar em uma perspectiva

um pouco diversa se a compaixão fosse a motivação para a ação do indivíduo. Nesse

caso, se a compaixão fosse a motivação principal do agir humano, se fosse possível

constituir uma sociedade de indivíduos éticos, a preservação do meio ambiente poderia

estar ligada, também, à proteção dos animais não-humanos e das futuras gerações, não

apenas aos animais humanos.

A filosofia de Schopenhauer, apesar de não tratar de forma direta da questão

dos direitos humanos de terceira geração – e ela nem poderia –, fornece elementos e

ferramentas importantes para se pensar a questão. A partir de uma perspectiva teórica, é

possível criar hipóteses sobre como as motivações agiriam na constituição de uma

cultura do aparente respeito, do incentivo e da implementação dos direitos humanos que

partisse dos indivíduos – seja essa cultura auto interessada ou desinteressada, i.e.,

guiada pelo egoísmo, ou pela compaixão, e, neste último caso, ela seria moralmente

boa.

A partir de uma perspectiva prática, baseada nas finalidades e funções do

Estado, é possível admitir ações pautadas na promoção da preservação do meio

ambiente baseadas em ações institucionais fomentadas e implementadas pelo aparato do

Estado, visando a proteção de seus membros. Esse atua no combate às injustiças, que

ganha agora um novo registro, a saber, os “crimes ambientais”, e na constelação de

motivos dos seus cidadãos, mas, contudo, ele não alteraria – nem poderia – o que cada

indivíduo é e quer, mostrando apenas um melhor meio para que cada um alcance seus

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261

fins. O Estado atuaria indiretamente, dessa forma, no fomento ao egoísmo esclarecido,

promovendo, assim, uma espécie de pedagogia do egoísmo.

A questão que nos resta, mas que, infelizmente, não é possível responder,

seria: “Nosso egoísmo perceberá em tempo hábil de evitar uma situação de catástrofe

ambiental que o melhor a fazer é preservar meio ambiente?”

5.4. A Pedagogia do Egoísmo como Caminho para Redução de

Danos: a Possibilidade do ‘Menos Pior dos Mundos Possíveis’

Muitos leitores de Schopenhauer depositam na compaixão a possibilidade

de redenção e salvação do mundo na negação da vontade, i.e., com a supressão do

mundo. Não descartamos essa possibilidade, muito menos o valor da compaixão e das

ações morais praticadas a partir dela. O problema é a sua limitação: ela é rara e não são

todos que recebem a dádiva de serem agraciados – apenas os santos e ascetas. Por outro

lado, ainda resta um grande problema: existe uma manifestação empírica de mundo, que

é a expressão daquilo que esse mundo não deveria ser, e que é considerado por

Schopenhauer o pior dos mundos possíveis. Seria possível tornar o pior dos mundos

possíveis, ao menos, o menos pior dos mundos possíveis? Seria possível, por assim

dizer, já que não podemos depositar nossas fichas na salvação dos sofrimentos do

mundo através da compaixão e da negação da vontade, reduzir os danos da existência?

Reduzir os danos da existência deve ser entendido aqui como o controle dos efeitos de

um problema sem que com isso se elimine as suas causas, dado que não é possível

extirpar a essência do mundo ou mudar o que os indivíduos são. Se não podemos nos

fiar na compaixão nem escolher negar a nossa vontade para vida, o que fazer?

O próprio Schopenhauer fornece uma alternativa, ou melhor, uma

acomodação ou desvio para tal situação. Levar a sério esse desvio, essa acomodação, é

adotar a perspectiva da pequena ética e a inversão proposta na frase “O coração

permanece incorrigível, mas a cabeça ainda pode ser esclarecida” (Das Herz bleibt

ungebessert, aber der Kopf wird noch aufgehellt). Trata-se de focar, por um lado, em

ações concretas – como as finalidades do Estado –, e, por outro, nas técnicas que

possam refinar a constelação de motivos dos indivíduos – e os Aforismos para a

Sabedoria de Vida são um grande exemplo disso; ter-se-ia, assim, um conjunto de

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262

métodos que assegurassem o direcionamento da vontade dos indivíduos como forma de

tentar diminuir os sofrimentos inerentes à vida.

Se não é possível alterar aquilo que a vontade é, a sua essência, é possível

ao menos adotar medidas que visem direcioná-la. Alguns expedientes para essa

finalidade são possíveis de serem aplicados, tais como a ameaça de sanções e o

impedimento legal – ou seja, o ordenamento jurídico –, ou a promessa de recompensas

por um comportamento esperado; pode-se recorrer ao uso da influência, i.e., da

dissuasão, do desencorajamento e do condicionamento. Em todos esses casos, o

indivíduo é intimidado ou encorajado a agir de determinada forma.

Quanto mais for possível refinar a constelação de motivos, i.e., quanto mais

for possível aumentar o repertório de um indivíduo, tanto melhor. O resultado da

equação montada sempre dependerá do confronto do caráter individual e o motivo mais

forte dentre os apresentados, i.e., o produto da equação montada, que é a ação do

indivíduo, sempre dependerá da relação daquilo que cada indivíduo é com o motivo ao

qual ele mais responde.

Se o Estado não tem um fim moralizante porque é cônscio de suas

limitações em alterar aquilo que os indivíduos são, ele pode assumir a função de

empreender os seus esforços no sentido de esclarecer o máximo possível os indivíduos:

uma espécie de pedagogia do egoísmo. O egoísmo se alimentaria através do Estado de

si mesmo: o egoísmo individual, através do Estado, empreenderia esforços para

fomentar um egoísmo esclarecido coletivo para que ele mesmo, egoísmo individual,

melhore cada vez mais a sua própria situação.

Como vimos, a lógica que deu origem ao Estado poderia ser transposta para

o caso dos direitos humanos de segunda e terceira gerações. E, se adotada pelo Estado

como uma de suas funções, como uma de suas práticas, seria possível a tentativa de

direcionamento das vontades individuais para um tipo de organização social que, dentro

das condições de possibilidade, garantisse, ao menos, um mínimo existencial, a saber, a

integridade física, trabalho, instrução, saúde, e a preservação do meio ambiente para que

seja possível existir. A supressão das relações egoístas e do egoísmo, não seria uma

solução para tornar o mundo um lugar bom. Tratar-se-ia de confrontar o mundo a partir

da tentativa de torná-lo o menos pior possível, e os direitos humanos seriam – tal como

anteriormente foi a proposta de fundação do Estado – o esforço válido do momento

atual em ao menos tentar alcançar tal objetivo.

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