dimensão religiosa aa proposta de baden-powell
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Bibliografia de Baden-PowellTRANSCRIPT
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A dimensão religiosa na proposta de Baden-Powell
Forestier conta como, num encontro com Baden-Powell, lhe fala da profundidade
religiosa das palavras que lhe escutara sobre a paternidade divina como fonte de amor
fraterno entre os escuteiros. Ao que o fundador do Escutismo lhe terá respondido:
«Creio que tem razão. Enquanto eu falava esta tarde, Deus estava muito perto. Creio
que foi Ele que inspirou as minhas palavras. Eu não disse aquilo em que pensava
quando cheguei. Senti-me inspirado precisamente naquele momento». E continua
explicando: «Lady Baden-Powell, que assistira a esta conversa, confiou-me que, por
ocasião da sua saída do exército, o general rezava continuamente para saber o que Deus
queria dele e de que modo poderia continuar a servir. Foi durante esta oração e esta
reflexão que ele teve a ideia de fundar o primeiro grupo de escuteiros»1.
A obra de Baden-Powell deixa transparecer este seu sentido religioso. Procurando
uma síntese, esta breve reflexão apresenta as bases religiosas do Escutismo,
aprofundando depois a implicação de seu pensamento de Deus Criador do mundo e dos
homens, e da resposta ao amor de Deus com um amor que se transforma em serviço aos
outros.
1. Bases de uma educação para a fé no Escutismo
Não há qualquer lado religioso do Movimento. Ele é todo baseado na religião, isto é, na
compreensão e no serviço de Deus.2
Para Baden-Powell a fé é essencial em qualquer escuteiro. Já no Escutismo para
rapazes apresenta de uma forma sintética as suas ideias centrais sobre a relação
existente entre uma marcada opção religiosa e a pertença ao Movimento:
O homem de pouco vale, se não acreditar em Deus e obedecer às suas leis. Por isso todo o
escuteiro deve ter uma religião.
A religião parece coisa bem simples:
Primeiro: Amar e servir a Deus. Segundo: Amar e servir o próximo.
Ao cumprirmos os deveres para com Deus, sejamos-lhe sempre gratos. Sempre que
apreciamos um prazer, ou um bom jogo, ou conseguirmos fazer algum bem, demos-lhe
graças, com uma ou duas palavras pelo menos, como fazemos às refeições. E é hábito
excelente pedirmos também pelos outros.3
Para uma vida bem conseguida, para se ser feliz, é preciso assentar a vida em
bases religiosas, o que não se resume a uma prática de ritos ou ao conhecimento de
teóricos, mas numa relação que se traduz em amor que é conhecimento de Deus e da sua
vontade, que implica toda a vida, em todos os momentos:
1 FORESTIER, Pela educação à liberdade substituindo a educação pelo temor, 19.
2 BADEN-POWELL, in:«Headquarters’ Gazette», Novembro 1920, in: SICA, O rasto do fundador, 153.
3 BADEN-POWELL, Escutismo para rapazes, 256-257.
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2
Se estás realmente empenhado em abrir caminho para o êxito – ou seja, a felicidade – não
só precisa de fugir a deixar-te iludir pelos impostores da irreligião, mas precisas de
assentar a tua vida em bases religiosas.
Não se trata apenas de ir à igreja, de conhecer a história bíblica ou saber teologia. […] A
religião muito resumidamente quer dizer:
- Primeiro: conhecer Deus e o que Ele é.
- Segundo: aproveitar o melhor possível a vida que Ele nos deu e fazer o que Ele quer de
nós. E isto consiste principalmente em fazer alguma coisa pelos outros.
Deve ser esta a tua crença, não apenas para meditar ao domingo, mas para servir de
norma em todas as horas e em todas as fases da tua vida quotidiana.4
Na obra apenas citada, A caminho do triunfo, Baden-Powell faz uma parábola da
vida como uma viagem de canoa ao longo de um rio. Neste rio, que é a vida, podem
aparecer escolhos que fazem naufragar o navegante, que o impede de atingir o fim da
viagem, ou seja, realidades que não o deixam ser plenamente feliz. Ao apresentar estes
«escolhos», desenvolve todo um capítulo sobre a «irreligião»5.
Perante a realidade com que se deparava de muitos jovens ateus, faz notar como
esta dimensão da fé é essencial para a felicidade. Para superar este perigo de uma vida
sem fé, Baden-Powell propõe a leitura de dois livros especiais: a Bíblia e o Livro da
Natureza. E é sobretudo à volta da leitura do Livro da Natureza, como lugar para o
encontro com o divino, que desenvolve a sua reflexão: a Natureza não apenas como
uma realidade exterior, mas também o próprio homem enquanto membro desta criação.
Aí se descobre a importância de humildemente se reconhecer a pequenez e, ao mesmo
tempo, a grandeza da pessoa humana como criatura diante do seu Criador.
O Escutismo é, pois, um espaço onde a formação das jovens gerações deve partir
desta concepção de uma relação com um Deus Amor, que se descobre presente no
quotidiano da vida, para que também essa formação seja na base do amor, e não do
temor. A própria concepção da educação e o método escolhido por Baden-Powell para o
Escutismo têm como base as suas convicções religiosas. Num pequeno texto de A
educação pelo amor substituindo a educação pelo temor, pode perceber-se como é do
Deus Amor que brota uma relação educativa onde prevalece o amor capaz de
transformar o mundo naquilo que deve ser enquanto «Reino do Amor»:
Os cristãos, quando rezam, pronunciam uma oração chamada “Pai Nosso”. Esta oração
fala de um Deus de quem todos somos filhos. De um Pai – não de um tirano, e diz que
esperamos que Ele tome posse um dia de tudo o que lhe pertence aqui na terra.
Deus é Amor. É pois, o Reino do Amor o que pedimos. E no entanto, suportamos o jugo
do Temor.
Não podemos nós, não satisfeitos de rezar passivamente pelo Reino do Amor, fazer
alguma coisa que apresse a sua vinda? Creio que sim. […]
Para destruir definitivamente o Mal é necessário substitui-lo por uma outra influência:
pelo Bem. Para abolir o domínio do Temor, é preciso substitui-lo por uma influência não
menos poderosa.
Se nos casos acima citados, substituíssemos o Temor pelo Amor veríamos logo diminuir
a pobreza, o crime, as doenças nos respectivos países e, pela instauração da confiança
mútua, sem maldade e com boa vontade, a Paz surgiria entre as nações.6
4 BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 196-197.
5 BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 193-224.
6 BADEN-POWELL, A educação pelo amor substituindo a educação pelo temor, 10-11.
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3
Também no campo de uma educação para a fé, Baden-Powell insiste na
necessidade de os escuteiros aprenderem pela acção, no espaço da Natureza, e no
ambiente de uma relação positiva com os mais velhos. Com a convicção de que «a
religião “pega-se” não “se ensina”», que é «factor genuíno do carácter do rapaz,
desdobramento da alma e não verniz que se descola», que «é assunto de personalidade,
de convicção íntima, não de instrução»7, insiste na necessidade do exemplo pessoal do
dirigente, que acompanha inclusivamente os rapazes mais velhos que se encontram
numa fase de estruturação das suas vidas, do estudo da Natureza como lugar onde
podem reconhecer directamente a mão de Deus, e na prática de boas acções, como
espaço privilegiado para compreender que a relação com Deus se torna uma realidade
prática na vivência do amor para com os outros8.
Por tudo isso, em relação à religião, a atitude do Escutismo é a seguinte:
a) Espera-se que todo o Escuta pertencerá a uma confissão religiosa e tome parte nos
actos do seu culto;
b) Quando um Grupo se compõe de elementos de uma só crença religiosa, espera-se que
o Chefe-Escuta assegure as práticas e instruções religiosas que ele, de acordo com o
capelão ou outra autoridade religiosa, considere as melhores;
c) Quando um Grupo consta de Escutas de várias religiões, devem estes ser instigados a
assistir aos actos de culto da sua própria confissão, e, em acampamentos, qualquer forma
de oração diária e de culto semanal deverá ser o mais simples possível e a assistência a
eles voluntária.9
Apesar das diferenças que podem existir, o Escutismo deve contribuir para o
alargamento dos horizontes dos jovens, procurando que cada um cresça no «respeito de
Deus, do próximo, de nós próprios como servos de Deus, [que] está na base de todas as
formas de religião»10
. Em qualquer caso, e na especificidade própria de cada Grupo, o
Escutismo não poderá nunca, no pensamento de Baden-Powell, descurar a dimensão
religiosa na formação integral dos jovens.
2. Deus Criador
Duas ideias parecem fundamentais no pensamento teológico de Baden-Powell,
ideias que marcam todo o desenvolvimento do Escutismo. Em primeiro lugar que Deus
é Amor, e é num acto de Amor que é Criador: na Natureza temos o lugar privilegiado
para nos encontrarmos com a obra divina que nos leva ao Criador.
Deus Criador é reconhecido pela maior parte das diferentes confissões religiosas que, não
obstante, divergem quanto ao verdadeiro carácter das relações do Criador com a alma
humana. 11
Há […] uma coisa de que estou plenamente convencido, e vem a ser que Deus não é uma
entidade intolerante, como alguns querem supor, mas um infinito Espírito de Amor que
não repara nas pequenas diferenças de forma e crença e confissões e que abençoa todo o
7 BADEN-POWELL, Auxiliar do chefe-escuta, 59.
8 BADEN-POWELL, Auxiliar do chefe-escuta, 60-62.
9 BADEN-POWELL, Auxiliar do chefe-escuta, 58.
10 BADEN-POWELL, Auxiliar do chefe-escuta, 58.
11 BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 196.
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homem que procura a sério, conforme os seus conhecimentos, servi-Lo o melhor
possível.12
Por isso se torna tão importante a leitura do «Livro da Natureza», onde se pode
observar e estudar as maravilhas e belezas criadas por Deus, donde parte uma atitude de
dispor a vida para servir da melhor maneira a Deus que nos concede a vida por
empréstimo13
. Grande parte do capítulo sobre a «irreligião» do A caminho do triunfo é
centrado nesta perspectiva da possibilidade que o conhecimento da Natureza oferece
como passo para a compreensão de Deus, a que se deve aliar uma atitude de humildade
e reverência perante o Criador. O contacto com a Natureza, com a realização de
actividades que metam em contacto com as suas belezas é um dos elementos mais
relevantes nesta dinâmica de contacto com a criação para chegar ao conhecimento e
louvor do Criador.
Mas também o estudo, quer do próprio corpo humano e do seu funcionamento14
,
quer da Natureza microscópica15
, quer da telescópica16
, e sobretudo das capacidades
únicas do ser humano que com a sua inteligência poderá compreender que «somos todos
filhos do mesmo Pai», e com a consciência, «a voz de Deus dentro de ti»17
, sabe
discernir a própria vontade de Deus para a sua vida.
Todo este grande «Livro da Natureza» oferece, deste modo, a possibilidade de
conhecer o Amor de Deus Criador.
3. Amar a Deus nos outros
A segunda grande linha de reflexão teológica de Baden-Powell, numa linha
pragmática, é a de que o cumprimento dos deveres para com Deus passa sobretudo por
uma atitude que prolonga este amor divino, numa vida que se manifesta num serviço
concreto ao próximo.
Como O [a Deus] poderás servir da melhor forma com a inteligência e faculdades que Ele
te deu? Se tens dúvidas interroga a Consciência, isto é, a voz de Deus dentro de ti. Dir-te-
á logo o que requer de ti. E isso é geralmente dar da tua boa vontade e dá-la
generosamente. […]
12
BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 218. 13
Cf. BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 197. 14
«Considera qualquer parte do teu corpo e a sua perfeição, suas sensações e o que faz por tua ordem.
Começas então a fazer ideia a maravilhosa máquina viva que te foi confiada para dela te servires bem e a
sentir respeito pelo teu próprio corpo». BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 213. 15
«As maravilhas e mistérios da natureza não têm limites. Vós os homens das gerações seguintes
tendes enormes possibilidades à vossa frente. O seu estudo tem, pois, valor material – mas quanto mais o
estudardes, mais humildes vos tornareis perante a obra do Criador». BADEN-POWELL, A caminho do
triunfo, 215. 16
«Dos pequeníssimos micróbios e átomos que se vêem ao microscópio a esses mundos avistados
com o telescópio começa a compreender-se o que quer dizer Infinito, e quando se percebe que todas as
coisas, grandes e pequenas, colaboram com regularidade num grande plano estabelecido, as estrelas que
giram no espaço infinito, a formação das montanhas na terra, a vida e a reprodução e a morte e ciclos
regulares entre as plantas e germes, insectos e animais, percebe-se que atrás de tudo está um grande
inteligência Mestra e Criadora». BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 215-216. 17
BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 218.
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5
É aí que o homem atinge o seu nível próprio, isto é, quando exerce, em benefício dos
outros, o Amor Divino que tem dentro de si.18
Por isso, o serviço do próximo, na boa acção que cada escuteiro é convidado a
praticar diariamente, é no fundo enquadrada por esta dimensão religiosa, é uma
«introdução na vida diária da prática da religião por meio de “boas acções”, que se
resumem em pequenos actos, bem como em serviços prestados à sociedade»19
.
Pela dimensão do serviço ao próximo, o escuteiro torna-se um «jogador da equipa
de Deus»20
, encontra aí o caminho da felicidade, torna já real o céu na terra, pode
compreender como a sua consciência o aprova no seu estilo de vida, sente-se já
envolvido pela vida eterna.
A questão da fé é apresentada assim numa dupla dimensão que envolve uma
atitude para com Deus, de reconhecimento do seu Amor, e uma atitude muito prática. O
cumprimento dos deveres para com Ele implica necessariamente uma dimensão de
relação com outros, o próximo que é o lugar concreto para amar o Deus Pai que a todos
criou:
O cumprimento dos Deveres para com Deus implica, não só a confiança na Sua bondade,
mas também a execução da Sua vontade pela prática do amor para com os nossos
semelhantes.21
Não admira que, com estas bases, o Escutismo pudesse ser acolhido facilmente,
no seio da Igreja Católica, como Movimento capaz de contribuir para a formação
integral dos seus membros enquanto cidadãos e cristãos.
José Henrique Domingues Pedrosa
18
BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 218. 19
BADEN-POWELL, Auxiliar do chefe-escuta, 34; Cf BADEN-POWELL, Escutismo para rapazes,
257; Cf. BADEN-POWELL, A educação pelo amor substituindo a educação pelo temos, 9-10; BADEN-
POWELL, Auxiliar do chefe-escuta, 94-98. 20
BADEN-POWELL, A caminho do triunfo, 219. 21
BADEN-POWELL, Auxiliar do chefe-escuta, 95.