diÁlogo sobre o desenho infantil
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Revista PALÍNDROMO 1 Entrevista
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DIÁLOGO SOBRE O DESENHO INFANTIL
Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho (Rejane)/UNESP
Profa. Dra. Maria Lúcia Batezat Duarte (Malu)/UDESC
O formato desta revista prevê e requer a publicação de uma entrevista
temática. Neste primeiro número optamos por publicar não uma entrevista nos
moldes tradicionais, mas um diálogo entre duas pesquisadoras. Malu (Profa.
Dra. Maria Lúcia Batezat Duarte) e Rejane (Profa. Dra. Rejane Galvão
Coutinho) são parceiras teóricas já há alguns anos1. O diálogo aqui transcrito
ocorreu em agosto de 2008, após a participação das duas professoras em uma
Banca Examinadora de Dissertação de Mestrado na Universidade do Estado
de Santa Catarina (PPGAV/CEART/UDESC).2
Malu: Rejane, a conquista de uma pequena sala para sediar o LabDIA
(Laboratório de Pesquisa em Desenho Infantil e Adolescente) e o início da
organização do espaço me fizeram perceber que tenho muito material coletado,
principalmente pelos alunos, de pequenos estudos de casos sobre o desenho
infantil. Você sabe, venho de uma longa experiência prática nessa área e
comecei a sistematizar esse estudo a partir de 1992 nos tempos de
doutoramento. Penso que estou construindo alguma coisa nesse sentido, um
espaço objetivo de investigação. Mas, preciso construir bases teóricas ainda
mais sólidas. Eu venho estudando neurologia, psicologia cognitiva, níveis de
base da cognição (a partir de Bernard Darras e Eleanor Rosch), mas sinto falta
de alguma coisa anterior. Sinto que falta a história teórica do desenho infantil,
1 Elas foram responsáveis, junto com a Profa. Dra. Maria Heloisa de Toledo Ferraz, em 2001, pelo primeiro Seminário “Desenho: cognição, cultura, educação”, realizado na ECA/USP com auxílio financeiro da FAPESP, que trouxe ao Brasil o Prof. Dr. Bernard Darras. Este primeiro trabalho conjunto ganhou continuidade e abrangência com a presença de pesquisadores brasileiros no Centre de Recherche Images, Cultures et Cognition, CRICC (Université Paris-1, Sorbonne), dirigido por este professor, e alianças entre o CRICC e outros cursos de artes e design em universidades brasileiras. 2 A transcrição do diálogo a partir de registro sonoro foi realizada pelo aluno-bolsista do PPGAV/UDESC Tito Luiz PEREIRA.
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área a qual você tem se dedicado3. Escrevi há pouco um texto4 no qual tentava
dizer para mim mesma porque insisto tanto na formulação teórica de Georges-
Henri Luquet5, porque Luquet ainda... E, também, porquê Luquet para tantas
outras pessoas neste percurso, mesmo para Olivier Houdé6 na França atual, do
século XXI. Em seu livro, que eu retomei há pouco, Bernard Darras propõe
uma “teoria da imageria inicial”7. Ele propõe uma teoria da imagem visual a
partir de um enfoque artístico e psicológico. Fiquei pensando nas fontes e
entrelaçamentos teóricos: nós temos, no processo de investigação, os objetos,
e várias teorias dentro da área de humanas e artes. Temos várias teorias
dentro da psicologia, como a psicologia cognitiva, sóciocultural etc. Importa
reconhecer que a partir deste ou daquele enfoque teórico, deste ou daquele
facho de luz teórico, analisamos um objeto de uma maneira ou de outra. A
psicologia olha para o desenho infantil, os próprios teóricos da arte olharam
para o desenho infantil, cada qual a partir dos recursos de análise fornecidos
pelo seu lugar teórico. Surge então a grande questão: existe uma teoria do
desenho infantil na qual o objeto esteja no centro, o objeto (desenho infantil)
sendo gerador da teoria? Penso em algo como Bernard Darras propõe em seu
livro sobre a “imageria inicial”... Enfim, é possível uma teoria do desenho infantil
construída a partir de concepções inerentes à própria constituição do desenho
e do desenhar? Quem nesse período histórico teria construído algo assim?
Esta é a razão pela qual o pensamento de Luquet é tão importante para mim.
Considerando o meu universo de leitura, em Luquet eu encontro algo muito
próximo a uma real teoria do Desenho Infantil. Por que ele, então? Porque ele
faz um estudo longitudinal, com a melhor observação possível para a época,
ele vai anotando o que observa nos desenhos, vai acompanhando o desenhar.
3 COUTINHO, Rejane Galvão. “Sylvio Rabello: o educador e suas pesquisas sobre o desenho infantil” e “Mário de Andrade e os desenhos infantis”. In: BARBOSA, Ana Mae. Ensino de arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008. 4 DUARTE, Maria Lucia Batezat. “Sobre o desenho infantil e o nível cognitivo de base” Anais do 17º Encontro Nacional da ANPAP, 2008. http://www.anpap.org.br/2008/artigos/117.pdf 5 LUQUET, Georges-Henri. Les dessins d’un enfant. Paris: Félix Alcan, 1913. e LUQUET, G-H. O desenho infantil. (1927) Porto: Ed. Minho. Trad: Azevedo. M.T.G de. Primeira Ed. Portuguesa, 1969. 6 HOUDÉ, Olivier. La psychologie de l’enfant. Paris: PUF, 2004 ; e BIDEAUD, J., HOUDÉ, O., PEDINIELLI, J-L. L´homme en développement. Paris: PUF, 2004. 7 DARRAS, Bernard. Au commencement était l’image. Du dessin de l’enfant à la communication de l’adulte. Paris: ESF Éditeur, 1996.
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Ele vai, sem receios, propondo desenhos para Simonne, sua filha. Ele observa
detalhes que nós buscamos até hoje: a temática, os elementos fundamentais
do desenhar da criança (intenção, interpretação, tipo e modelo interno). Hoje
eu posso ler a concepção de “modelo interno” formulada por Luquet à luz dos
estudos atuais no campo da neurologia, assim como eu posso ler a concepção
neuronal de Freud à luz da nova neurologia. Eu penso que Luquet aborda o
desenvolvimento gráfico e apresenta etapas gráficas, meio a contragosto,
devido à época em que publica o segundo livro “O desenho infantil” e é
justamente ali que ele recebe a maior crítica. Ele fica conhecido pelas suas
“fases do realismo infantil”, eu cheguei à conclusão que a parte mais
importante de sua teoria é justamente aquela que não foi considerada como
deveria. Na minha compreensão sua contribuição sobre os “elementos do
desenho infantil” é fundamental. A ideia de que desenhar envolve uma
“intenção”, caso contrário não é desenho, constrói, em si, um conceito de
desenho. Parece-me fundamental, ainda, a noção de que a “interpretação” que
a criança dá ao desenho pode mudar durante o processo de desenhar, porque
ela está construindo um sentido e uma concepção visual, fazendo analogias
formais. Essa ideia de desenho como configuração de um objeto, uma
configuração buscada, envolve a noção de que o desenhar é um ato de
compreensão dos objetos do mundo pela forma, um ato viabilizado pelo jogo
de analogias que a criança vai fazendo...
Rejane: Concordo com você, sua análise está correta. Luquet conseguiu
estruturar uma teoria, conseguiu estruturar o campo em função do objeto, o
desenho infantil. Quando operamos no campo teórico é comum tentar isolar o
objeto, mas o objeto nunca se apresenta isolado. O desenho infantil não pode
ser entendido desvinculado da criança que o produz e do contexto onde é
produzido e Luquet considera isso. Considera as diferenças do desenho
produzido em casa e do desenho produzido na escola tecendo considerações
sobre a especificidade de cada contexto. Ele tem o cuidado de observar e
acompanhar o desenhar no contexto familiar. Concordo que ele ainda é uma
referência forte no campo teórico. Mas sei que há controvérsias em relação a
esta opinião. Outro dia, conversando com Ana Mae Barbosa, não lembro a
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propósito exatamente do quê, ela fez o seguinte comentário que ressoou em
mim: “Veja você, o pessoal ainda está ligado em Luquet!” Ela estava fazendo
uma crítica e na ocasião eu não estava preparada e senti certa dificuldade em
argumentar que Luquet ainda era importante para mim. Mas, concordo com
essa questão que você levanta sobre o realismo, o fato de ele ter tomado como
referência o realismo para denominar as etapas do desenvolvimento do
desenho infantil naquele momento histórico: “realismo fortuito”, “realismo
falhado”, “realismo intelectual” e “realismo visual”. Hoje esta terminologia ainda
choca, e foi, sobretudo, a partir de uma perspectiva modernista que se
desencadeou toda uma reação a esta terminologia, esta reação obscureceu
todo seu esforço em esclarecer os “elementos do desenho infantil”. Percebo
também no processo de construção de sua teoria que Luquet considerou os
vários estudos anteriores sobre o desenho a que teve acesso, além de ter tido
todo esse cuidado que você apontou no acompanhamento, no detalhamento,
na observação longitudinal que demanda tempo na coleta de dados. Em seu
livro de 1927, em muitos momentos, ele reproduz desenhos de outros
pesquisadores como exemplos para corroborar seus achados. Ele usa
desenhos pesquisados por Rouma, Barnes, Levinstein, Sully, Kerschensteiner,
entre outros autores. Ele considerava as pesquisas transversais e as pesquisas
sob pontos de vista culturais. Kerschensteiner, por exemplo, colecionou e
estudou desenhos infantis de uma variedade enorme de países e começou a
observar as similaridades entre as produções das crianças de diferentes
culturas.
Malu: Luquet estava buscando construir uma teoria do desenho infantil.
As questões para mim são: Qual é a natureza do desenho infantil? Realmente
toda criança desenha? Por que desenha? O que ela está fazendo ao
desenhar? Uma aluna minha, Gisele Ventura, acompanhou o processo de um
menino desenhando. Ela foi pedindo, devido a toda uma condição da relação,
que ele dissesse para ela como é que ele desenhava. Ele ia verbalizando: “Se
você for desenhar um elefante, você faz uma cabeçona, aí você faz um corpão,
aí você faz um narigão e uma orelhona, a pata você faz assim como se fosse
um quadrado, mas aí você coloca as unhas como se fosse uma toquinha de
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rato...”. Ele vai descrevendo todo o processo de pensamento que acompanha o
seu desenhar. E, quando ele passa do elefante para a onça, por exemplo, ele
fala assim: “...a onça é como o elefante, você tem que fazer a cabeça, você
tem que fazer o corpo, só que o rabo é mais assim... a pata é mais assim...”.
Neste caso, eu vejo muito claramente, um processo cognitivo de
sistematização classificatória, que é a origem da teoria da Eleanor Rosch e do
pensamento de Darras sobre o desenho cognitivo-comunicacional. Para esse
menino do meu exemplo, um animal de quatro patas se desenha com uma
cabeça, um corpo, as patas e um rabo. Na onça, o rabo é mais comprido, o
corpo menor e mais delgado do que o corpo do elefante... Nos registros de
Gisele, o menino Gabriel vai desenhando vários bichos e vai mostrando qual é
o elemento formal que configura aquela propriedade específica de um grupo de
animais, ainda que todos tenham quatro patas, que sejam quadrúpedes. Fica
ali altamente salientada a ideia de “compreensão lógica”, tão cara a Luquet. Na
origem, no livro de 19138, Luquet não usa o termo “realismo intelectual”, ele
escreve “realismo lógico” em antagonismo a “realismo visual”. Ele apoia o
termo “realismo lógico” no conceito de “compreensão” oriundo da matemática.
Rejane: Eu gosto da pergunta com a qual você começou essa segunda
fala. O porquê desse desenho. Talvez quem tenha buscado esclarecer essa
questão, ou pelo menos clareou minha compreensão a respeito do campo, foi
Darras que procura identificar as diferentes vocações dos signos gráficos em
nossa cultura e assim esclarece muito sobre o contexto do desenho da criança.
Em seu livro já citado, ele situa historicamente as linhas de pesquisa, os vários
teóricos sobre o desenho infantil e constrói a partir de Rosch e da semiótica
cognitiva uma compreensão das imagens iniciais buscando encontrar as
diferentes vocações para esses signos. É importante compreender como esses
signos funcionam dentro do sistema social e cultural como sistemas de
comunicação. Por esta via ele responde à pergunta. Talvez o que precisemos
fazer seja testar a estrutura que ele propôs, no sentido de verificar se
realmente a teleologia dos sistemas de comunicação, as diferentes intenções
comunicacionais funcionam com a criança e seu desenho. O que me parece é
8 LUQUET, Georges-Henri. Les dessins d’un enfant. Paris: Félix Alcan, 1913.
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que não vamos encontrar na criança uma única intenção tão específica em
relação a seu desenho, entendeu?
Malu: Dê um exemplo.
Rejane: Para nós, adultos, a intenção é mais clara quando fazemos uso
de um sistema gráfico comunicacional. Desenhamos mapas, gráficos, figuras
etc. em situações comunicacionais específicas (não estou aqui discutindo o
desenho artístico). Em relação à criança, como ela está em processo de
aprendizagem das linguagens em geral e da linguagem gráfica
especificamente, ela também está aprendendo junto com os signos, seus usos
e significados. Este processo de aprendizagem se dá na interação da criança
com a cultura na qual está inserida. Parte deste processo acontece
informalmente e parte dele se formaliza na escola. O que acontece é que
muitas vezes as expectativas e demandas do meio não são claras em relação
ao ato gráfico das crianças. Na escola, onde podemos observar este processo
de forma mais controlada, a relação dos professores em geral com o desenho
da criança é ambígua. Por exemplo, espera-se que a criança desenhe formas
reconhecíveis, organizadas espacialmente etc. e ao mesmo tempo espera-se
que elas sejam criativas e expressivas em seus desenhos. Então, a criança
que está tentando dominar um sistema de representação e de comunicação,
tentando se apropriar dos “iconotipos” de sua cultura, de um repertório de
signos com suas funções específicas, ao mesmo tempo busca corresponder a
demandas de expressividade, invenção e criação. É complexo para a criança
realizar suas apropriações e corresponder a tudo isto. Fazer um desenho
reconhecível, “bonito”, “bem feito” e, além disso, criativo e expressivo,
categorias altamente subjetivas. Para mim, pela natureza, o desenho da
criança se insere num sistema de comunicação, numa perspectiva cultural.
Malu: Para mim, o desenho infantil requer ser visto especialmente como
elemento de cognição, de construção de conhecimento.
Rejane: Tudo bem, mas você não pode desvincular este processo de
construção de conhecimento do meio social e cultural. O conhecimento se
constrói na relação do sujeito com o mundo, por necessidade de estabelecer
relações com o mundo, de se apropriar, de se comunicar com os outros. Assim
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o desenho como linguagem é um conhecimento relacionado, situado
culturalmente, a partir de uma interação construtiva como resposta às
demandas. Há pouco espaço para invenção e criação, pois a criança já nasce
dentro de um sistema dado. Por exemplo, o sistema de perspectiva, todas as
nossas imagens se estruturam a partir deste pressuposto que conforma
também nosso olhar ocidental, o sistema de leitura e de apresentação do
mundo. São informações que configuram o contexto que nos é dado, então o
aprendizado do desenho pela criança é um processo de conquista, de
apropriação de conhecimento, de interação com o mundo. Devemos cuidar
para não perder de vista essa dimensão cultural.
Malu: Você falando em linguagem e eu me lembrei do trabalho de
pesquisa que eu realizei a pouco com pesquisadores da Universidade de
Cádiz, na Espanha, no qual estas questões também surgiram9. Estava
trabalhando com pesquisadores que não são da área de arte e o meu diálogo
mais profícuo ocorreu com Antonio Ruiz, que é da área de linguística e
coordenou o projeto. Se para mim uma questão é como a criança aprende a
desenhar, para ele a questão é a aprendizagem da língua materna, e nós
pudemos discutir bastante as diferenças e semelhanças entre as duas
linguagens. Se ao desenhar os primeiros esquemas gráficos podemos dizer
que criança vai nomeando objetos, isto é, distinguindo categorias de objetos
como “flor”, “árvore” etc., Ruiz informa que ao falar a criança usa holofrases
(frases inteiras condensadas). Quer dizer que ao começar a falar a criança não
está organizando um conjunto específico de substantivos, mas utilizando
protofrases, que já sugerem ação e associam de modo condensado o nome e o
verbo. A criança diz “dá”, que pode significar “me dá esse brinquedo”, ou “me
dá essa comida”, “me dá essa bebida”, mas ela diz “dá”. Eu quase poderia
dizer que se o desenhar propriamente dito começa com os objetos (os
nomes/substantivos), a fala começa com a ação, com os verbos. Agora, a
linguagem é integralmente uma construção cultural no sentido de que é
necessário duas pessoas para a palavra existir, encontrar eco. A linguagem
9 Ver para isso: RUIZ CASTELLANOS, Antonio. Categorías cognitivas y educación de las personas ciegas. in: RUIZ CASTELLANOS, A. et al. Prototipos, lenguaje y representación en las personas ciegas. Cádiz: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 2008.
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depende de um código altamente arbitrário, ainda que precise de um corpo, de
determinado desenvolvimento de cordas vocais e motricidade para existir...
Agora, o desenho infantil, penso eu, é especialmente a construção de um
sujeito em ato de relação com a sua visualidade... Um ato que, em princípio,
poderia ser solitário, e muitas vezes é realmente solitário. Não estou pensando
agora no desenho escolar, mas no desenho doméstico, realizado
espontaneamente pela criança em sua casa enquanto os outros membros da
família estão ocupados com outras tarefas. Talvez porque eu trabalhe o
desenho com crianças cegas, penso muito o ato de desenhar como um recurso
de compreensão da própria visualidade.
Rejane: Lembrei da pesquisa da Camilla10, exatamente sobre a
diferenciação entre o desenho que é solicitado à criança e o desenho que é
feito por iniciativa da própria criança. Quando você falou do desenho de casa,
lembrei o caso da mãe que desenha e que pede para o filho desenhar, nesta
situação o desenho de casa é feito também a partir de uma solicitação. Talvez
a diferenciação que você se refere esteja na intenção que a criança tem de se
apropriar de uma imagem, de se apropriar do mundo de imagens, e o outro
movimento, o do desenho solicitado, comum na escola e no caso dessa mãe, é
um exercício de aprendizagem de um código instituído pela cultura.
Malu: A percepção que eu tenho, após esse já longo processo de coleta
de desenhos infantis e estudos de casos realizados com os meus alunos, é que
ocorre mais ou menos assim: a criança está ali, com a mãe, sem ter o que
fazer; a mãe dá papel e lápis, a criança começa a rabiscar e ninguém presta
atenção, aquilo não é desenho, a criança está apenas ocupada, entretida,
gostando e brincando; no momento que essa criança começa a fazer alguma
coisa que “parece desenho”, isto é, um esquema gráfico mais ou menos
reconhecível, começa a interferência; então a mãe já acha que tem que dizer
para ela como é que se desenha a figura humana, por exemplo, que o modo
como ela está desenhando já não está muito bom etc. A minha impressão é
10 LA PASTINA, Camilla C. As imagens do cotidiano em diálogo com o desenho infantil: um estudo com crianças de 8 e 10 anos em uma escola urbana e uma escola rural. Dissertação de Mestrado, CEART/UDESC, 2008.
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que quando a criança consegue escapar de todo esse contexto e desenhar
para si, ela estabelece um processo de desenhar para conhecer, de desenhar
para compreender a coisa desenhada. Entretanto, ela recebe tanta
interferência o tempo inteiro, que eu gostaria de poder realizar uma experiência
na qual essas interferências fossem limitadas e controladas. No caso da
observação da Gisele, com o menino Gabriel, ele estava claramente
vivenciando a aventura, de dizer: “olha o rabo do coelho é mais assim!” ou “o
rabo do elefante é bem fino!”. É engraçado, (eu até mostrei para Bernard
Darras no nosso evento) quando ele faz um coelho, essa representação
dialoga com os coelhos antropomórficos das ilustrações. Em determinado
momento Gabriel diz assim: “...para fazer a boca do coelho, você faz um traço,
depois você faz um quadrado e coloca um traço no meio”. O resultado gráfico é
a boca do coelho com dois grandes dentes conforme é usual nas ilustrações,
mas Gabriel não diz que aquilo são dois dentes, ele diz que a boca do coelho é
assim. Eu acho que ele não entendeu que eram dentes. Neste desenho
específico, ele deve ter aprendido com a professora como desenhar a boca e
repetiu.
Rejane: Você está revelando sua intenção sobre o seu trabalho com
cegos e talvez você tenha à frente dessa intenção uma vontade de encontrar
um sujeito que não tenha contato com a visualidade, ou com os modelos que
povoam a nossa cultura visual.
Malu: Eu não queria entrar nessa questão da invisualidade, porque aí
teríamos de enfrentar inúmeras outras questões. Quando me propus a
desenhar com cegos estava pensando: cego não vê, portanto não desenha,
não sabe desenhar, então eu vou ensinar somente um meio de comunicação
gráfica. Mas eu percebi, durante a experiência, que esse meio de comunicação
que eu estava ensinando estava interferindo positivamente na compreensão
das coisas, isto é, nos processos cognitivos. Manuella11, começou a fazer
relações do tipo: “Se eu desenho uma cabeça com um círculo, esse círculo
11 Manuella é uma menina cega desde o nascimento e participante de investigação sobre o ensino de desenho desde 2002. Ver para isso: http://batezat-blind.pro.br
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também pode ser uma laranja, também pode ser um CD... Ocorre, então, uma
generalização formal.
Rejane: Tem aqui um ponto a se pensar sobre a questão da
representação gráfica, a relação entre o visual e o que está implícito no gesto
gráfico. Talvez com um cego, quando está construindo uma representação
gráfica, ele não tenha ideia que ali tem uma configuração com uma dimensão
de analogia visual. Então, a questão é o quanto essa configuração gráfica, em
nossa cultura, está relacionada com a visualidade.
Malu: Mas o ponto para mim, é esse. Mesmo que eu esteja copiando o
desenho do outro, importa o que está se processando na minha mente, com
que imagens mentais eu estou trabalhando para entender esse desenho, para
conceber esse desenho, para que esse desenho realmente signifique para mim
“casa”, por exemplo. O desenho de “casa” é apenas uma representação
gráfica? Quer dizer, desenhando eu estou aprendendo “casa” como eu aprendo
a palavra? O esquema gráfico é tão convencional quanto a palavra, ou é
dependente de uma visualidade? Porque a palavra é um signo que foi
arbitrariamente construído, é um acordo social.
Rejane: Acredito que o esquema gráfico parte inicialmente da
similaridade com o objeto, da analogia visual, para depois se generalizar numa
convenção gráfica com o uso. É a história da criança que mora em um prédio
de apartamentos, mas aprende a desenhar sua casa como um quadrado com
um triângulo acima. Existe a convenção gráfica “casa” que em sua origem tem
semelhança com o mundo fenomênico. Pode não ser semelhante a minha casa
em particular, mas tem o potencial cultural de representar todas as casas.
Malu: Agora, e se a percepção de casa for assim: casa é um lugar no
qual eu fico dentro e protegido, que eu entro e saio e que tem telhado, porta e
janela? Aí é um conceito, uma elaboração cognitiva.
Rejane: É do âmbito conceitual sim, e Mario de Andrade já na década
de 30 levantava esta hipótese quando discutia a transparência nos desenhos
das casas de algumas crianças. Ele se referia ao desenho da casa em que a
criança revela o interior a partir da visão da fachada com a mesinha, a cadeira,
o personagem dentro dessa casa. Ele entendia que a criança estava
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expressando o sentido de casa como abrigo, como lugar onde se mora, como
lugar em que essa cena acontece e assim representa este conceito.
Malu: Que é o que Luquet fala também. É incrível, porque na primeira
leitura que eu fiz de Luquet, há muitos anos atrás, eu não compreendi isso.
Rejane: Voltando a questão: se a criança cega pode chegar a desenhar
ou não, se tomamos essa ideia de conceito, podemos supor que ela pode
chegar a desenhar.
Malu: Pois é. Mas antes eu preciso que essa criança entenda um
conceito de desenho, de representação plana dos objetos...
Rejane: E esse conceito de desenho deve carregar um porquê, uma
finalidade e funcionalidade própria para que faça sentido. Nesse processo de
aprendizagem, e aqui estou me remetendo a sua relação com a Manuella, ela
corresponderá a sua demanda e você neste processo precisa reconstruir o seu
conceito de desenho, buscar o porquê desse sistema, que é o que estamos
fazendo aqui, revendo o nosso conceito de desenho!
Malu: Esses dias retomei aquele texto sobre a Carolina e o seu desenho
de “rio” que eu apresentei na ANPAP em 2001. O texto “Pedras e Água”12.
Recordei que o primeiro desenho que ela fez foi justamente a “casa”. Apesar
de ser cega desde o nascimento, ela desenhou a casa de modo muito similar
ao desenho realizado pelos outros adolescentes que haviam usufruído da visão
até os cinco, oito anos de idade. A diferença é que Carol fez uma casa
utilizando apenas um quadrado e um triângulo, e nada mais. Ela desenhou
uma casa sem porta ou janela. Eu perguntei para ela como que aprendeu a
desenhar a casa e ela disse: “Aprendi nas aulas de geometria, eu aprendi o
quadrado e o triângulo, e aprendi que a parede da casa é um quadrado e o
telhado é um triângulo”. O que ela aprendeu nas aulas de geometria? Ela
aprendeu uma convenção de desenho. O que ela faz depois? O desenho de
um “rio” muito próprio. Você se lembra desse desenho? Aquele desenho não é
resultado de uma visualidade, é resultado de uma percepção corporal,
somatossensorial. Mas, do mesmo modo que os desenhos resultantes da
12 DUARTE, Maria Lúcia Batezat. “Pedras e água: um estudo sobre desenho e cognição”. Anais do XI Encontro da ANPAP, 2001, 14p. e in: http://www.batezat-blind.pro.br. Os desenhos de Carol (Carolina) citados no texto estão anexados no final deste diálogo.
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visualidade, ele está codificado como linha, como desenho, como planificação,
ainda que se origine em outra percepção que não é visual. A percepção
corporal só pôde ser traduzida em linhas porque ela aprendeu a desenhar com
linhas. Se eu tentasse traduzir o seu pensamento, talvez ele se processasse
assim: “Eu percebi a água contra o meu corpo, o que tem entre o meu corpo e
a água? Uma linha.” Isso é desenho! O que tem embaixo dessa linha-água?
As pedras, traduzidas em bolinhas. Para mim, ela só conseguiu fazer isso
porque anteriormente, na aula de geometria, ela entendeu o que era passar do
tridimensional para o bidimensional usando linhas de contorno como recurso.
Rejane: Esse é um processo de construção de pensamento. Sobre esta
questão, Rudolf Arnheim é outro autor que está sendo retomado.
Malu: Toda essa questão conceitual do desenho é enfrentada por
Arnheim e Gombrich também... Mas ainda assim, eu penso que durante todo o
século XX ficaram incomunicáveis dois estudos paralelos: de um lado o estudo
da percepção visual, a teoria da forma, a gestalt, os processos cognitivos
atrelados à visualidade, e de outro lado, a arte como criatividade, como
expressão. Tanto Arnheim como Gombrich abordam o desenhar como
cognição e como visualidade.
Rejane: O caminho que estamos trilhando para adentrar a questão do
desenho é um caminho complexo. Aparecem todos esses conflitos porque
estamos revisitando questões que estão impregnadas por nossas experiências
com o desenho. Quando eu tenho a experiência visual como referência, eu não
preciso, obviamente, ter uma experiência sensória, por exemplo, para
apreender que esta mesa é reta, porque eu a vejo reta, eu aprendi que essa é
uma linha reta. Este meu exemplo pressupõe uma aprendizagem anterior do
que é uma linha reta. Se eu não tiver esta referência visual, a experiência
sensória dessa linha reta é fundamental para a compreensão do conceito. É
uma relação de aprendizado de representação de uma ideia, de um conceito
que se configura em uma linguagem de representação, o desenho de uma
linha reta.
Malu: Meu pensamento ainda está lá atrás, relacionando palavra e
desenho. Se a palavra é um código arbitrário, é um acordo social de
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significação e apenas esse a priori permite a comunicação eficiente. Qual o
recurso envolvido no imbricamento entre imagem visual, desenho de um objeto
e a palavra que o nomeia? Uma concepção do objeto, uma imagem mental do
objeto na qual o componente visual é altamente significativo. Damásio vai dizer
que imagem mental não é sinônimo de imagem visual, a imagem mental de um
objeto é uma multiplicidade de imagens que constituem a sua concepção. Não
é só visual. Quer dizer, a minha imagem mental de sofá é mais do que um
assento estofado, encosto e apoio para os braços. É também a imagem de
uma percepção corporal de conforto, uma sensação de aconchego.
Rejane: Tudo está articulado no conceito, não é apenas o visual.
Malu: Esse foco na visualidade é parte da nossa história. A imagem
visual de um objeto é uma verdade biológica ou uma aprendizagem efetivada
na cultura? Ambos. Nós vemos como vemos porque possuímos um sistema
sensório visual biologicamente semelhante. Isto é, é porque nossos corpos são
semelhantes, e nossos órgãos funcionam de modo semelhante, que nós vemos
de maneira semelhante os objetos externos a nós. Mas esse sistema é
aperfeiçoado após o nosso nascimento, esse aperfeiçoamento e
desenvolvimento dependem das nossas experiências na cultura. Eu queria ler
um fragmento de um texto que estou escrevendo: “Na antiguidade, Aristóteles
denominou ‘senso comum’ a capacidade humana de sentir o sentir, isso é, a
capacidade de ter consciência das sensações referentes a vários órgãos ou
sistemas do corpo, e ainda, a capacidade de perceber determinações a partir
dessas sensações múltiplas, como, por exemplo, as concepções de movimento
e repouso, de unidade e multiplicidade, de figura e fundo.” Veja, na pré-escola
os professores trabalham esses antagonismos básicos do tipo ‘alto e baixo’,
‘largo e estreito’, como se isso fosse um princípio em si, sem questionar os
seus fundamentos. Continuo: “Hoje diríamos ‘sensoriedade comum’ para
designar essa capacidade humana de ser afetado, de modo semelhante pelo
seu próprio corpo, pelos objetos, pelas suas ações.” Esquecemos isso, não é?
Nós, na verdade, somos seres biológicos comuns. Nós esquecemos que existe
um corpo, um corpo que se difere, mas há milhões de semelhanças. “Essa
‘sensoriedade comum’ estaria na base de um sentido de realidade no qual
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experimentamos a nossa existência. Se não houvesse certo a priori universal
para visualidade e um sentido de ‘realidade’, a comunicação entre povos do
planeta seria impossível. Traduzimos textos de uma língua para outra, por
exemplo, porque confiamos em uma equivalência de visualidade e de
conceitos, em uma equivalência entre objetos idênticos e palavras diferentes,
que soam e são grafadas de modo diferentes em cada língua.” Quer dizer, o
que me faz entender o sentido de chair/cadeira, é uma visualidade que é
similar tanto para o inglês quanto para mim. Vou ler um pouco mais o meu
texto “pretexto”: “Eu escrevo, como tantos outros teóricos do desenho infantil,
sobre um tipo de desenho que em seu sentido primeiro, e primeira função, é
uma exteriorização por meio de linhas e planos de um registro mental
fortemente marcado pela modalidade sensorial visual. Ali, nesse sistema visual,
algo fortemente biológico permite uma similaridade de impressão, uma alta
correspondência de configuração mental entre seres humanos, que é traduzida
e interpretada no desenho com significados altamente semelhantes nas
diversas culturas do nosso Planeta. Esse desenho é ‘típico’ no sentido em que
apresenta um resumo, uma síntese de características formais de um objeto e
na medida em que corresponde, analogamente, a registros mnemônicos de
todos os seres humanos nas culturas que são de origem comum”. Temos um
corpo biológico que nos irmana. Além disso, nós latinos americanos e
europeus, temos culturas comuns, talvez tenhamos diferenças culturais mais
fortes em relação à Ásia, ao Oriente.
Rejane: As diferenças culturais são importantes. O exemplo da cadeira
é bom, ela tem um significado comum na maioria das culturas. Mas no oriente
o sentido do sentar pode ser outro. Talvez para o oriental um tatame tenha
mais relação com o sentido de sentar. E então, como representar esta relação,
no plano gráfico?
Malu: É uma boa pergunta, existe a palavra cadeira? Como é que eles
dizem isso? Porque para nós há esse senso comum. Não importa, cadeira é
uma coisa com encosto, assento, e quatro pernas, ainda que às vezes surjam
uns desenhistas muito criativos que fazem cadeiras com três pernas, mas é
isso. Esses são os componentes, e configurar mentalmente essa forma
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convencional permite que eu compreenda significados em francês, em inglês,
em alemão, em russo.
Rejane: Acompanhando seu raciocínio, percebo diferenças sutis nesse
espaço comum no qual a imagem da cadeira transita. Pois em algumas
culturas ela pode se diferenciar em algumas coisas, mas há uma base comum.
[...]
Rejane: Penso também na perspectiva modernista que busca incluir
esta produção de imagens iniciais no âmbito das produções artísticas. A
pergunta é: pode-se considerar arte? Ou, até que ponto esta produção tem
características artísticas? Há certo consenso incrustado em nossa cultura
sobre esta produção de imagens que lhes atribui valor artístico. Pondero aqui
que, talvez esse impulso de origem seja um impulso comum, e que este
impulso vai gerar por um lado os sistemas comunicacionais gráficos e por outro
as produções do campo da arte.
Malu: Todo ser humano alfabetizado escreve, mas você não fica
dizendo que estão todos fazendo poesia. Ou que as pessoas são escritoras...
Agora no campo das artes visuais, não, mal a criança pegou o lápis, já está
fazendo arte. Então que natureza é essa da arte? O que é arte? Arte é você ser
capaz de se comunicar por meio de uma produção qualquer, seja ela gráfica ou
verbal? Ou é alguma coisa, além disso?
Rejane: É o argumento de Darras quando faz aquela consideração
sobre a criança que começa a falar e cria uma metáfora para dizer uma coisa.
O adulto pode até achar poética a expressão em determinada idade. Mas ele
vai ensinar a criança a se expressar corretamente, e ela vai querer aprender a
dominar o código da linguagem oral e vai abandonar aquela metáfora poética.
Malu: É isso, a criança falou e eu li como metáfora, a intenção da
criança não era essa, mesma coisa acontece no desenho, o que estamos lendo
como metáfora não é metáfora. O desenho do círculo com bolinhas de Carolina
é uma metáfora? Respondo: não, é uma tradução, uma transcrição literal de
uma experiência sensorial, transformada em linha pelo código do desenho. O
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próprio John Kennedy13, fala da metáfora no desenho do cego, mas a metáfora
que ele percebe é de outra natureza e eu concordo com ele. Para ele a
metáfora surge quando, por exemplo, uma pessoa cega desenha alguém
caminhando e faz a tradução do movimento. As linhas que indicam o
movimento são uma metáfora. Construir uma metáfora, nesse caso, implica
usar um recurso gráfico visual para representar uma coisa que não é forma
visual, é apenas movimento. Isso é metáfora.
Rejane: Está presente em toda esta nossa conversa, por isso me veio à
mente agora, aquela ideia do Brent Wilson14 tão verdadeira, quando ele chama
atenção que o nosso olhar para o desenho da criança tem relação direita com o
conceito de desenho que carregamos. O quanto este conceito predispõe a
pessoa a situar esta produção aqui ou ali, como arte ou linguagem, como
exercício de apropriação do mundo ou como expressão etc.
Malu: O Luquet sabe disso. O grande nó do Luquet em 1927 é a
concepção de realismo intelectual, realismo fortuito e realismo falhado. Ele diz
o seguinte: que o desenho infantil é realista porque a criança desenha a sua
experiência de vida. Perfeito, não é? Ele não está falando do realismo artístico,
ele está falando de outro realismo, está conceituando realismo como
“experiência de vida”. No sentido de: o que eu vejo, o que eu experiencio, o
que eu vivencio, eu desenho. Isso, a partir do ponto de vista da criança. Mas,
então ele diz “realismo fortuito”... Do ponto de vista de quem? “Realismo
falhado”... Do ponto de vista de quem? Do adulto, do ponto de vista do adulto
que vê e analisa o desenho infantil.
Rejane: É o adulto que está lendo o desenho e tentando fazer analogias
com as representações visuais conhecidas e legitimadas.
Malu: A criança desenha qualquer coisa e diz “vovó”. Eu posso dizer
que é realista? Posso.
Rejane: Pela intenção.
13 KENNEDY, J. M. Drawing & the blind. Pictures to touch. Yale University, New York: Vail-
Ballou Press,1993. 14 WILSON, B. e WILSON M. Uma visão iconoclasta das fontes de imagem nos desenhos de
crianças. In: BARBOSA, Ana Mae (org.) Arte-educação: leitura no subsolo. São Paulo: Cortez, 1997.
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Malu: Pela intenção. Ela está me mostrando que ela estava desenhando
a vovó, então é realista sim, é a vovó dela ali. É realista. Agora, é falhado?
Rejane: Do ponto de vista das convenções do contexto que já definiu
um modelo para a figura humana que não está ali contemplada.
Malu: Claro, é falhado para mim, adulto, não é falhado para ela, para a
criança o desenho está correto: É a vovó.
Rejane: Eu não usaria a palavra “correto” neste caso, mas o desenho
faz sentido para a criança diante de sua intenção e de seu processo de
apropriação dos esquemas gráficos. A criança vai provavelmente, com o
passar da experiência, perceber a “falha”, ou a inadequação ao modelo de
figura humana dado por sua cultura. Sabe de uma coisa? Eu cada vez mais
acredito que Luquet estava certo!
Malu: Sem dúvida Luquet tentou dar um cunho “científico” à
investigação sobre o desenho infantil. Meus alunos e eu continuamos, nos dias
atuais, a encontrar ressonâncias entre o desenho de crianças e as categorias
de observação e análise que ele criou. Uma teoria de desenho infantil deve
enfrentar, penso eu, os seus pressupostos. Mas eu penso que você também
está certa quando ressalta a necessidade de compreendermos os vários
desenhos possíveis na cultura. Importa saber diferenciar os sistemas. Você
pontuou um repertório de signos ou “iconotipos” culturais com função
comunicacional, e uma demanda de expressividade e criação atrelada à arte.
Eu insistiria ainda em um sistema cognitivo, de compreensão e generalização,
de constituição mental de uma categoria de objetos. Mas, você tem razão de
novo, fica bem difícil para a criança elaborar ao mesmo tempo todos esses
sistemas, como nós tantas vezes pretendemos.
Desenho de Carolina, 19 anos Cega congênita