diÁlogo sobre o desenho infantil

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Revista PALÍNDROMO 1 Entrevista 135 DIÁLOGO SOBRE O DESENHO INFANTIL Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho (Rejane)/UNESP Profa. Dra. Maria Lúcia Batezat Duarte (Malu)/UDESC O formato desta revista prevê e requer a publicação de uma entrevista temática. Neste primeiro número optamos por publicar não uma entrevista nos moldes tradicionais, mas um diálogo entre duas pesquisadoras. Malu (Profa. Dra. Maria Lúcia Batezat Duarte) e Rejane (Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho) são parceiras teóricas já há alguns anos 1 . O diálogo aqui transcrito ocorreu em agosto de 2008, após a participação das duas professoras em uma Banca Examinadora de Dissertação de Mestrado na Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGAV/CEART/UDESC). 2 Malu: Rejane, a conquista de uma pequena sala para sediar o LabDIA (Laboratório de Pesquisa em Desenho Infantil e Adolescente) e o início da organização do espaço me fizeram perceber que tenho muito material coletado, principalmente pelos alunos, de pequenos estudos de casos sobre o desenho infantil. Você sabe, venho de uma longa experiência prática nessa área e comecei a sistematizar esse estudo a partir de 1992 nos tempos de doutoramento. Penso que estou construindo alguma coisa nesse sentido, um espaço objetivo de investigação. Mas, preciso construir bases teóricas ainda mais sólidas. Eu venho estudando neurologia, psicologia cognitiva, níveis de base da cognição (a partir de Bernard Darras e Eleanor Rosch), mas sinto falta de alguma coisa anterior. Sinto que falta a história teórica do desenho infantil, 1 Elas foram responsáveis, junto com a Profa. Dra. Maria Heloisa de Toledo Ferraz, em 2001, pelo primeiro Seminário “Desenho: cognição, cultura, educação”, realizado na ECA/USP com auxílio financeiro da FAPESP, que trouxe ao Brasil o Prof. Dr. Bernard Darras. Este primeiro trabalho conjunto ganhou continuidade e abrangência com a presença de pesquisadores brasileiros no Centre de Recherche Images, Cultures et Cognition, CRICC (Université Paris-1, Sorbonne), dirigido por este professor, e alianças entre o CRICC e outros cursos de artes e design em universidades brasileiras. 2 A transcrição do diálogo a partir de registro sonoro foi realizada pelo aluno-bolsista do PPGAV/UDESC Tito Luiz PEREIRA.

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Revista PALÍNDROMO 1 Entrevista

135

DIÁLOGO SOBRE O DESENHO INFANTIL

Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho (Rejane)/UNESP

Profa. Dra. Maria Lúcia Batezat Duarte (Malu)/UDESC

O formato desta revista prevê e requer a publicação de uma entrevista

temática. Neste primeiro número optamos por publicar não uma entrevista nos

moldes tradicionais, mas um diálogo entre duas pesquisadoras. Malu (Profa.

Dra. Maria Lúcia Batezat Duarte) e Rejane (Profa. Dra. Rejane Galvão

Coutinho) são parceiras teóricas já há alguns anos1. O diálogo aqui transcrito

ocorreu em agosto de 2008, após a participação das duas professoras em uma

Banca Examinadora de Dissertação de Mestrado na Universidade do Estado

de Santa Catarina (PPGAV/CEART/UDESC).2

Malu: Rejane, a conquista de uma pequena sala para sediar o LabDIA

(Laboratório de Pesquisa em Desenho Infantil e Adolescente) e o início da

organização do espaço me fizeram perceber que tenho muito material coletado,

principalmente pelos alunos, de pequenos estudos de casos sobre o desenho

infantil. Você sabe, venho de uma longa experiência prática nessa área e

comecei a sistematizar esse estudo a partir de 1992 nos tempos de

doutoramento. Penso que estou construindo alguma coisa nesse sentido, um

espaço objetivo de investigação. Mas, preciso construir bases teóricas ainda

mais sólidas. Eu venho estudando neurologia, psicologia cognitiva, níveis de

base da cognição (a partir de Bernard Darras e Eleanor Rosch), mas sinto falta

de alguma coisa anterior. Sinto que falta a história teórica do desenho infantil,

1 Elas foram responsáveis, junto com a Profa. Dra. Maria Heloisa de Toledo Ferraz, em 2001, pelo primeiro Seminário “Desenho: cognição, cultura, educação”, realizado na ECA/USP com auxílio financeiro da FAPESP, que trouxe ao Brasil o Prof. Dr. Bernard Darras. Este primeiro trabalho conjunto ganhou continuidade e abrangência com a presença de pesquisadores brasileiros no Centre de Recherche Images, Cultures et Cognition, CRICC (Université Paris-1, Sorbonne), dirigido por este professor, e alianças entre o CRICC e outros cursos de artes e design em universidades brasileiras. 2 A transcrição do diálogo a partir de registro sonoro foi realizada pelo aluno-bolsista do PPGAV/UDESC Tito Luiz PEREIRA.

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área a qual você tem se dedicado3. Escrevi há pouco um texto4 no qual tentava

dizer para mim mesma porque insisto tanto na formulação teórica de Georges-

Henri Luquet5, porque Luquet ainda... E, também, porquê Luquet para tantas

outras pessoas neste percurso, mesmo para Olivier Houdé6 na França atual, do

século XXI. Em seu livro, que eu retomei há pouco, Bernard Darras propõe

uma “teoria da imageria inicial”7. Ele propõe uma teoria da imagem visual a

partir de um enfoque artístico e psicológico. Fiquei pensando nas fontes e

entrelaçamentos teóricos: nós temos, no processo de investigação, os objetos,

e várias teorias dentro da área de humanas e artes. Temos várias teorias

dentro da psicologia, como a psicologia cognitiva, sóciocultural etc. Importa

reconhecer que a partir deste ou daquele enfoque teórico, deste ou daquele

facho de luz teórico, analisamos um objeto de uma maneira ou de outra. A

psicologia olha para o desenho infantil, os próprios teóricos da arte olharam

para o desenho infantil, cada qual a partir dos recursos de análise fornecidos

pelo seu lugar teórico. Surge então a grande questão: existe uma teoria do

desenho infantil na qual o objeto esteja no centro, o objeto (desenho infantil)

sendo gerador da teoria? Penso em algo como Bernard Darras propõe em seu

livro sobre a “imageria inicial”... Enfim, é possível uma teoria do desenho infantil

construída a partir de concepções inerentes à própria constituição do desenho

e do desenhar? Quem nesse período histórico teria construído algo assim?

Esta é a razão pela qual o pensamento de Luquet é tão importante para mim.

Considerando o meu universo de leitura, em Luquet eu encontro algo muito

próximo a uma real teoria do Desenho Infantil. Por que ele, então? Porque ele

faz um estudo longitudinal, com a melhor observação possível para a época,

ele vai anotando o que observa nos desenhos, vai acompanhando o desenhar.

3 COUTINHO, Rejane Galvão. “Sylvio Rabello: o educador e suas pesquisas sobre o desenho infantil” e “Mário de Andrade e os desenhos infantis”. In: BARBOSA, Ana Mae. Ensino de arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva, 2008. 4 DUARTE, Maria Lucia Batezat. “Sobre o desenho infantil e o nível cognitivo de base” Anais do 17º Encontro Nacional da ANPAP, 2008. http://www.anpap.org.br/2008/artigos/117.pdf 5 LUQUET, Georges-Henri. Les dessins d’un enfant. Paris: Félix Alcan, 1913. e LUQUET, G-H. O desenho infantil. (1927) Porto: Ed. Minho. Trad: Azevedo. M.T.G de. Primeira Ed. Portuguesa, 1969. 6 HOUDÉ, Olivier. La psychologie de l’enfant. Paris: PUF, 2004 ; e BIDEAUD, J., HOUDÉ, O., PEDINIELLI, J-L. L´homme en développement. Paris: PUF, 2004. 7 DARRAS, Bernard. Au commencement était l’image. Du dessin de l’enfant à la communication de l’adulte. Paris: ESF Éditeur, 1996.

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Ele vai, sem receios, propondo desenhos para Simonne, sua filha. Ele observa

detalhes que nós buscamos até hoje: a temática, os elementos fundamentais

do desenhar da criança (intenção, interpretação, tipo e modelo interno). Hoje

eu posso ler a concepção de “modelo interno” formulada por Luquet à luz dos

estudos atuais no campo da neurologia, assim como eu posso ler a concepção

neuronal de Freud à luz da nova neurologia. Eu penso que Luquet aborda o

desenvolvimento gráfico e apresenta etapas gráficas, meio a contragosto,

devido à época em que publica o segundo livro “O desenho infantil” e é

justamente ali que ele recebe a maior crítica. Ele fica conhecido pelas suas

“fases do realismo infantil”, eu cheguei à conclusão que a parte mais

importante de sua teoria é justamente aquela que não foi considerada como

deveria. Na minha compreensão sua contribuição sobre os “elementos do

desenho infantil” é fundamental. A ideia de que desenhar envolve uma

“intenção”, caso contrário não é desenho, constrói, em si, um conceito de

desenho. Parece-me fundamental, ainda, a noção de que a “interpretação” que

a criança dá ao desenho pode mudar durante o processo de desenhar, porque

ela está construindo um sentido e uma concepção visual, fazendo analogias

formais. Essa ideia de desenho como configuração de um objeto, uma

configuração buscada, envolve a noção de que o desenhar é um ato de

compreensão dos objetos do mundo pela forma, um ato viabilizado pelo jogo

de analogias que a criança vai fazendo...

Rejane: Concordo com você, sua análise está correta. Luquet conseguiu

estruturar uma teoria, conseguiu estruturar o campo em função do objeto, o

desenho infantil. Quando operamos no campo teórico é comum tentar isolar o

objeto, mas o objeto nunca se apresenta isolado. O desenho infantil não pode

ser entendido desvinculado da criança que o produz e do contexto onde é

produzido e Luquet considera isso. Considera as diferenças do desenho

produzido em casa e do desenho produzido na escola tecendo considerações

sobre a especificidade de cada contexto. Ele tem o cuidado de observar e

acompanhar o desenhar no contexto familiar. Concordo que ele ainda é uma

referência forte no campo teórico. Mas sei que há controvérsias em relação a

esta opinião. Outro dia, conversando com Ana Mae Barbosa, não lembro a

Revista PALÍNDROMO 1 Entrevista

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propósito exatamente do quê, ela fez o seguinte comentário que ressoou em

mim: “Veja você, o pessoal ainda está ligado em Luquet!” Ela estava fazendo

uma crítica e na ocasião eu não estava preparada e senti certa dificuldade em

argumentar que Luquet ainda era importante para mim. Mas, concordo com

essa questão que você levanta sobre o realismo, o fato de ele ter tomado como

referência o realismo para denominar as etapas do desenvolvimento do

desenho infantil naquele momento histórico: “realismo fortuito”, “realismo

falhado”, “realismo intelectual” e “realismo visual”. Hoje esta terminologia ainda

choca, e foi, sobretudo, a partir de uma perspectiva modernista que se

desencadeou toda uma reação a esta terminologia, esta reação obscureceu

todo seu esforço em esclarecer os “elementos do desenho infantil”. Percebo

também no processo de construção de sua teoria que Luquet considerou os

vários estudos anteriores sobre o desenho a que teve acesso, além de ter tido

todo esse cuidado que você apontou no acompanhamento, no detalhamento,

na observação longitudinal que demanda tempo na coleta de dados. Em seu

livro de 1927, em muitos momentos, ele reproduz desenhos de outros

pesquisadores como exemplos para corroborar seus achados. Ele usa

desenhos pesquisados por Rouma, Barnes, Levinstein, Sully, Kerschensteiner,

entre outros autores. Ele considerava as pesquisas transversais e as pesquisas

sob pontos de vista culturais. Kerschensteiner, por exemplo, colecionou e

estudou desenhos infantis de uma variedade enorme de países e começou a

observar as similaridades entre as produções das crianças de diferentes

culturas.

Malu: Luquet estava buscando construir uma teoria do desenho infantil.

As questões para mim são: Qual é a natureza do desenho infantil? Realmente

toda criança desenha? Por que desenha? O que ela está fazendo ao

desenhar? Uma aluna minha, Gisele Ventura, acompanhou o processo de um

menino desenhando. Ela foi pedindo, devido a toda uma condição da relação,

que ele dissesse para ela como é que ele desenhava. Ele ia verbalizando: “Se

você for desenhar um elefante, você faz uma cabeçona, aí você faz um corpão,

aí você faz um narigão e uma orelhona, a pata você faz assim como se fosse

um quadrado, mas aí você coloca as unhas como se fosse uma toquinha de

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rato...”. Ele vai descrevendo todo o processo de pensamento que acompanha o

seu desenhar. E, quando ele passa do elefante para a onça, por exemplo, ele

fala assim: “...a onça é como o elefante, você tem que fazer a cabeça, você

tem que fazer o corpo, só que o rabo é mais assim... a pata é mais assim...”.

Neste caso, eu vejo muito claramente, um processo cognitivo de

sistematização classificatória, que é a origem da teoria da Eleanor Rosch e do

pensamento de Darras sobre o desenho cognitivo-comunicacional. Para esse

menino do meu exemplo, um animal de quatro patas se desenha com uma

cabeça, um corpo, as patas e um rabo. Na onça, o rabo é mais comprido, o

corpo menor e mais delgado do que o corpo do elefante... Nos registros de

Gisele, o menino Gabriel vai desenhando vários bichos e vai mostrando qual é

o elemento formal que configura aquela propriedade específica de um grupo de

animais, ainda que todos tenham quatro patas, que sejam quadrúpedes. Fica

ali altamente salientada a ideia de “compreensão lógica”, tão cara a Luquet. Na

origem, no livro de 19138, Luquet não usa o termo “realismo intelectual”, ele

escreve “realismo lógico” em antagonismo a “realismo visual”. Ele apoia o

termo “realismo lógico” no conceito de “compreensão” oriundo da matemática.

Rejane: Eu gosto da pergunta com a qual você começou essa segunda

fala. O porquê desse desenho. Talvez quem tenha buscado esclarecer essa

questão, ou pelo menos clareou minha compreensão a respeito do campo, foi

Darras que procura identificar as diferentes vocações dos signos gráficos em

nossa cultura e assim esclarece muito sobre o contexto do desenho da criança.

Em seu livro já citado, ele situa historicamente as linhas de pesquisa, os vários

teóricos sobre o desenho infantil e constrói a partir de Rosch e da semiótica

cognitiva uma compreensão das imagens iniciais buscando encontrar as

diferentes vocações para esses signos. É importante compreender como esses

signos funcionam dentro do sistema social e cultural como sistemas de

comunicação. Por esta via ele responde à pergunta. Talvez o que precisemos

fazer seja testar a estrutura que ele propôs, no sentido de verificar se

realmente a teleologia dos sistemas de comunicação, as diferentes intenções

comunicacionais funcionam com a criança e seu desenho. O que me parece é

8 LUQUET, Georges-Henri. Les dessins d’un enfant. Paris: Félix Alcan, 1913.

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que não vamos encontrar na criança uma única intenção tão específica em

relação a seu desenho, entendeu?

Malu: Dê um exemplo.

Rejane: Para nós, adultos, a intenção é mais clara quando fazemos uso

de um sistema gráfico comunicacional. Desenhamos mapas, gráficos, figuras

etc. em situações comunicacionais específicas (não estou aqui discutindo o

desenho artístico). Em relação à criança, como ela está em processo de

aprendizagem das linguagens em geral e da linguagem gráfica

especificamente, ela também está aprendendo junto com os signos, seus usos

e significados. Este processo de aprendizagem se dá na interação da criança

com a cultura na qual está inserida. Parte deste processo acontece

informalmente e parte dele se formaliza na escola. O que acontece é que

muitas vezes as expectativas e demandas do meio não são claras em relação

ao ato gráfico das crianças. Na escola, onde podemos observar este processo

de forma mais controlada, a relação dos professores em geral com o desenho

da criança é ambígua. Por exemplo, espera-se que a criança desenhe formas

reconhecíveis, organizadas espacialmente etc. e ao mesmo tempo espera-se

que elas sejam criativas e expressivas em seus desenhos. Então, a criança

que está tentando dominar um sistema de representação e de comunicação,

tentando se apropriar dos “iconotipos” de sua cultura, de um repertório de

signos com suas funções específicas, ao mesmo tempo busca corresponder a

demandas de expressividade, invenção e criação. É complexo para a criança

realizar suas apropriações e corresponder a tudo isto. Fazer um desenho

reconhecível, “bonito”, “bem feito” e, além disso, criativo e expressivo,

categorias altamente subjetivas. Para mim, pela natureza, o desenho da

criança se insere num sistema de comunicação, numa perspectiva cultural.

Malu: Para mim, o desenho infantil requer ser visto especialmente como

elemento de cognição, de construção de conhecimento.

Rejane: Tudo bem, mas você não pode desvincular este processo de

construção de conhecimento do meio social e cultural. O conhecimento se

constrói na relação do sujeito com o mundo, por necessidade de estabelecer

relações com o mundo, de se apropriar, de se comunicar com os outros. Assim

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o desenho como linguagem é um conhecimento relacionado, situado

culturalmente, a partir de uma interação construtiva como resposta às

demandas. Há pouco espaço para invenção e criação, pois a criança já nasce

dentro de um sistema dado. Por exemplo, o sistema de perspectiva, todas as

nossas imagens se estruturam a partir deste pressuposto que conforma

também nosso olhar ocidental, o sistema de leitura e de apresentação do

mundo. São informações que configuram o contexto que nos é dado, então o

aprendizado do desenho pela criança é um processo de conquista, de

apropriação de conhecimento, de interação com o mundo. Devemos cuidar

para não perder de vista essa dimensão cultural.

Malu: Você falando em linguagem e eu me lembrei do trabalho de

pesquisa que eu realizei a pouco com pesquisadores da Universidade de

Cádiz, na Espanha, no qual estas questões também surgiram9. Estava

trabalhando com pesquisadores que não são da área de arte e o meu diálogo

mais profícuo ocorreu com Antonio Ruiz, que é da área de linguística e

coordenou o projeto. Se para mim uma questão é como a criança aprende a

desenhar, para ele a questão é a aprendizagem da língua materna, e nós

pudemos discutir bastante as diferenças e semelhanças entre as duas

linguagens. Se ao desenhar os primeiros esquemas gráficos podemos dizer

que criança vai nomeando objetos, isto é, distinguindo categorias de objetos

como “flor”, “árvore” etc., Ruiz informa que ao falar a criança usa holofrases

(frases inteiras condensadas). Quer dizer que ao começar a falar a criança não

está organizando um conjunto específico de substantivos, mas utilizando

protofrases, que já sugerem ação e associam de modo condensado o nome e o

verbo. A criança diz “dá”, que pode significar “me dá esse brinquedo”, ou “me

dá essa comida”, “me dá essa bebida”, mas ela diz “dá”. Eu quase poderia

dizer que se o desenhar propriamente dito começa com os objetos (os

nomes/substantivos), a fala começa com a ação, com os verbos. Agora, a

linguagem é integralmente uma construção cultural no sentido de que é

necessário duas pessoas para a palavra existir, encontrar eco. A linguagem

9 Ver para isso: RUIZ CASTELLANOS, Antonio. Categorías cognitivas y educación de las personas ciegas. in: RUIZ CASTELLANOS, A. et al. Prototipos, lenguaje y representación en las personas ciegas. Cádiz: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 2008.

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depende de um código altamente arbitrário, ainda que precise de um corpo, de

determinado desenvolvimento de cordas vocais e motricidade para existir...

Agora, o desenho infantil, penso eu, é especialmente a construção de um

sujeito em ato de relação com a sua visualidade... Um ato que, em princípio,

poderia ser solitário, e muitas vezes é realmente solitário. Não estou pensando

agora no desenho escolar, mas no desenho doméstico, realizado

espontaneamente pela criança em sua casa enquanto os outros membros da

família estão ocupados com outras tarefas. Talvez porque eu trabalhe o

desenho com crianças cegas, penso muito o ato de desenhar como um recurso

de compreensão da própria visualidade.

Rejane: Lembrei da pesquisa da Camilla10, exatamente sobre a

diferenciação entre o desenho que é solicitado à criança e o desenho que é

feito por iniciativa da própria criança. Quando você falou do desenho de casa,

lembrei o caso da mãe que desenha e que pede para o filho desenhar, nesta

situação o desenho de casa é feito também a partir de uma solicitação. Talvez

a diferenciação que você se refere esteja na intenção que a criança tem de se

apropriar de uma imagem, de se apropriar do mundo de imagens, e o outro

movimento, o do desenho solicitado, comum na escola e no caso dessa mãe, é

um exercício de aprendizagem de um código instituído pela cultura.

Malu: A percepção que eu tenho, após esse já longo processo de coleta

de desenhos infantis e estudos de casos realizados com os meus alunos, é que

ocorre mais ou menos assim: a criança está ali, com a mãe, sem ter o que

fazer; a mãe dá papel e lápis, a criança começa a rabiscar e ninguém presta

atenção, aquilo não é desenho, a criança está apenas ocupada, entretida,

gostando e brincando; no momento que essa criança começa a fazer alguma

coisa que “parece desenho”, isto é, um esquema gráfico mais ou menos

reconhecível, começa a interferência; então a mãe já acha que tem que dizer

para ela como é que se desenha a figura humana, por exemplo, que o modo

como ela está desenhando já não está muito bom etc. A minha impressão é

10 LA PASTINA, Camilla C. As imagens do cotidiano em diálogo com o desenho infantil: um estudo com crianças de 8 e 10 anos em uma escola urbana e uma escola rural. Dissertação de Mestrado, CEART/UDESC, 2008.

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que quando a criança consegue escapar de todo esse contexto e desenhar

para si, ela estabelece um processo de desenhar para conhecer, de desenhar

para compreender a coisa desenhada. Entretanto, ela recebe tanta

interferência o tempo inteiro, que eu gostaria de poder realizar uma experiência

na qual essas interferências fossem limitadas e controladas. No caso da

observação da Gisele, com o menino Gabriel, ele estava claramente

vivenciando a aventura, de dizer: “olha o rabo do coelho é mais assim!” ou “o

rabo do elefante é bem fino!”. É engraçado, (eu até mostrei para Bernard

Darras no nosso evento) quando ele faz um coelho, essa representação

dialoga com os coelhos antropomórficos das ilustrações. Em determinado

momento Gabriel diz assim: “...para fazer a boca do coelho, você faz um traço,

depois você faz um quadrado e coloca um traço no meio”. O resultado gráfico é

a boca do coelho com dois grandes dentes conforme é usual nas ilustrações,

mas Gabriel não diz que aquilo são dois dentes, ele diz que a boca do coelho é

assim. Eu acho que ele não entendeu que eram dentes. Neste desenho

específico, ele deve ter aprendido com a professora como desenhar a boca e

repetiu.

Rejane: Você está revelando sua intenção sobre o seu trabalho com

cegos e talvez você tenha à frente dessa intenção uma vontade de encontrar

um sujeito que não tenha contato com a visualidade, ou com os modelos que

povoam a nossa cultura visual.

Malu: Eu não queria entrar nessa questão da invisualidade, porque aí

teríamos de enfrentar inúmeras outras questões. Quando me propus a

desenhar com cegos estava pensando: cego não vê, portanto não desenha,

não sabe desenhar, então eu vou ensinar somente um meio de comunicação

gráfica. Mas eu percebi, durante a experiência, que esse meio de comunicação

que eu estava ensinando estava interferindo positivamente na compreensão

das coisas, isto é, nos processos cognitivos. Manuella11, começou a fazer

relações do tipo: “Se eu desenho uma cabeça com um círculo, esse círculo

11 Manuella é uma menina cega desde o nascimento e participante de investigação sobre o ensino de desenho desde 2002. Ver para isso: http://batezat-blind.pro.br

Revista PALÍNDROMO 1 Entrevista

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também pode ser uma laranja, também pode ser um CD... Ocorre, então, uma

generalização formal.

Rejane: Tem aqui um ponto a se pensar sobre a questão da

representação gráfica, a relação entre o visual e o que está implícito no gesto

gráfico. Talvez com um cego, quando está construindo uma representação

gráfica, ele não tenha ideia que ali tem uma configuração com uma dimensão

de analogia visual. Então, a questão é o quanto essa configuração gráfica, em

nossa cultura, está relacionada com a visualidade.

Malu: Mas o ponto para mim, é esse. Mesmo que eu esteja copiando o

desenho do outro, importa o que está se processando na minha mente, com

que imagens mentais eu estou trabalhando para entender esse desenho, para

conceber esse desenho, para que esse desenho realmente signifique para mim

“casa”, por exemplo. O desenho de “casa” é apenas uma representação

gráfica? Quer dizer, desenhando eu estou aprendendo “casa” como eu aprendo

a palavra? O esquema gráfico é tão convencional quanto a palavra, ou é

dependente de uma visualidade? Porque a palavra é um signo que foi

arbitrariamente construído, é um acordo social.

Rejane: Acredito que o esquema gráfico parte inicialmente da

similaridade com o objeto, da analogia visual, para depois se generalizar numa

convenção gráfica com o uso. É a história da criança que mora em um prédio

de apartamentos, mas aprende a desenhar sua casa como um quadrado com

um triângulo acima. Existe a convenção gráfica “casa” que em sua origem tem

semelhança com o mundo fenomênico. Pode não ser semelhante a minha casa

em particular, mas tem o potencial cultural de representar todas as casas.

Malu: Agora, e se a percepção de casa for assim: casa é um lugar no

qual eu fico dentro e protegido, que eu entro e saio e que tem telhado, porta e

janela? Aí é um conceito, uma elaboração cognitiva.

Rejane: É do âmbito conceitual sim, e Mario de Andrade já na década

de 30 levantava esta hipótese quando discutia a transparência nos desenhos

das casas de algumas crianças. Ele se referia ao desenho da casa em que a

criança revela o interior a partir da visão da fachada com a mesinha, a cadeira,

o personagem dentro dessa casa. Ele entendia que a criança estava

Revista PALÍNDROMO 1 Entrevista

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expressando o sentido de casa como abrigo, como lugar onde se mora, como

lugar em que essa cena acontece e assim representa este conceito.

Malu: Que é o que Luquet fala também. É incrível, porque na primeira

leitura que eu fiz de Luquet, há muitos anos atrás, eu não compreendi isso.

Rejane: Voltando a questão: se a criança cega pode chegar a desenhar

ou não, se tomamos essa ideia de conceito, podemos supor que ela pode

chegar a desenhar.

Malu: Pois é. Mas antes eu preciso que essa criança entenda um

conceito de desenho, de representação plana dos objetos...

Rejane: E esse conceito de desenho deve carregar um porquê, uma

finalidade e funcionalidade própria para que faça sentido. Nesse processo de

aprendizagem, e aqui estou me remetendo a sua relação com a Manuella, ela

corresponderá a sua demanda e você neste processo precisa reconstruir o seu

conceito de desenho, buscar o porquê desse sistema, que é o que estamos

fazendo aqui, revendo o nosso conceito de desenho!

Malu: Esses dias retomei aquele texto sobre a Carolina e o seu desenho

de “rio” que eu apresentei na ANPAP em 2001. O texto “Pedras e Água”12.

Recordei que o primeiro desenho que ela fez foi justamente a “casa”. Apesar

de ser cega desde o nascimento, ela desenhou a casa de modo muito similar

ao desenho realizado pelos outros adolescentes que haviam usufruído da visão

até os cinco, oito anos de idade. A diferença é que Carol fez uma casa

utilizando apenas um quadrado e um triângulo, e nada mais. Ela desenhou

uma casa sem porta ou janela. Eu perguntei para ela como que aprendeu a

desenhar a casa e ela disse: “Aprendi nas aulas de geometria, eu aprendi o

quadrado e o triângulo, e aprendi que a parede da casa é um quadrado e o

telhado é um triângulo”. O que ela aprendeu nas aulas de geometria? Ela

aprendeu uma convenção de desenho. O que ela faz depois? O desenho de

um “rio” muito próprio. Você se lembra desse desenho? Aquele desenho não é

resultado de uma visualidade, é resultado de uma percepção corporal,

somatossensorial. Mas, do mesmo modo que os desenhos resultantes da

12 DUARTE, Maria Lúcia Batezat. “Pedras e água: um estudo sobre desenho e cognição”. Anais do XI Encontro da ANPAP, 2001, 14p. e in: http://www.batezat-blind.pro.br. Os desenhos de Carol (Carolina) citados no texto estão anexados no final deste diálogo.

Revista PALÍNDROMO 1 Entrevista

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visualidade, ele está codificado como linha, como desenho, como planificação,

ainda que se origine em outra percepção que não é visual. A percepção

corporal só pôde ser traduzida em linhas porque ela aprendeu a desenhar com

linhas. Se eu tentasse traduzir o seu pensamento, talvez ele se processasse

assim: “Eu percebi a água contra o meu corpo, o que tem entre o meu corpo e

a água? Uma linha.” Isso é desenho! O que tem embaixo dessa linha-água?

As pedras, traduzidas em bolinhas. Para mim, ela só conseguiu fazer isso

porque anteriormente, na aula de geometria, ela entendeu o que era passar do

tridimensional para o bidimensional usando linhas de contorno como recurso.

Rejane: Esse é um processo de construção de pensamento. Sobre esta

questão, Rudolf Arnheim é outro autor que está sendo retomado.

Malu: Toda essa questão conceitual do desenho é enfrentada por

Arnheim e Gombrich também... Mas ainda assim, eu penso que durante todo o

século XX ficaram incomunicáveis dois estudos paralelos: de um lado o estudo

da percepção visual, a teoria da forma, a gestalt, os processos cognitivos

atrelados à visualidade, e de outro lado, a arte como criatividade, como

expressão. Tanto Arnheim como Gombrich abordam o desenhar como

cognição e como visualidade.

Rejane: O caminho que estamos trilhando para adentrar a questão do

desenho é um caminho complexo. Aparecem todos esses conflitos porque

estamos revisitando questões que estão impregnadas por nossas experiências

com o desenho. Quando eu tenho a experiência visual como referência, eu não

preciso, obviamente, ter uma experiência sensória, por exemplo, para

apreender que esta mesa é reta, porque eu a vejo reta, eu aprendi que essa é

uma linha reta. Este meu exemplo pressupõe uma aprendizagem anterior do

que é uma linha reta. Se eu não tiver esta referência visual, a experiência

sensória dessa linha reta é fundamental para a compreensão do conceito. É

uma relação de aprendizado de representação de uma ideia, de um conceito

que se configura em uma linguagem de representação, o desenho de uma

linha reta.

Malu: Meu pensamento ainda está lá atrás, relacionando palavra e

desenho. Se a palavra é um código arbitrário, é um acordo social de

Revista PALÍNDROMO 1 Entrevista

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significação e apenas esse a priori permite a comunicação eficiente. Qual o

recurso envolvido no imbricamento entre imagem visual, desenho de um objeto

e a palavra que o nomeia? Uma concepção do objeto, uma imagem mental do

objeto na qual o componente visual é altamente significativo. Damásio vai dizer

que imagem mental não é sinônimo de imagem visual, a imagem mental de um

objeto é uma multiplicidade de imagens que constituem a sua concepção. Não

é só visual. Quer dizer, a minha imagem mental de sofá é mais do que um

assento estofado, encosto e apoio para os braços. É também a imagem de

uma percepção corporal de conforto, uma sensação de aconchego.

Rejane: Tudo está articulado no conceito, não é apenas o visual.

Malu: Esse foco na visualidade é parte da nossa história. A imagem

visual de um objeto é uma verdade biológica ou uma aprendizagem efetivada

na cultura? Ambos. Nós vemos como vemos porque possuímos um sistema

sensório visual biologicamente semelhante. Isto é, é porque nossos corpos são

semelhantes, e nossos órgãos funcionam de modo semelhante, que nós vemos

de maneira semelhante os objetos externos a nós. Mas esse sistema é

aperfeiçoado após o nosso nascimento, esse aperfeiçoamento e

desenvolvimento dependem das nossas experiências na cultura. Eu queria ler

um fragmento de um texto que estou escrevendo: “Na antiguidade, Aristóteles

denominou ‘senso comum’ a capacidade humana de sentir o sentir, isso é, a

capacidade de ter consciência das sensações referentes a vários órgãos ou

sistemas do corpo, e ainda, a capacidade de perceber determinações a partir

dessas sensações múltiplas, como, por exemplo, as concepções de movimento

e repouso, de unidade e multiplicidade, de figura e fundo.” Veja, na pré-escola

os professores trabalham esses antagonismos básicos do tipo ‘alto e baixo’,

‘largo e estreito’, como se isso fosse um princípio em si, sem questionar os

seus fundamentos. Continuo: “Hoje diríamos ‘sensoriedade comum’ para

designar essa capacidade humana de ser afetado, de modo semelhante pelo

seu próprio corpo, pelos objetos, pelas suas ações.” Esquecemos isso, não é?

Nós, na verdade, somos seres biológicos comuns. Nós esquecemos que existe

um corpo, um corpo que se difere, mas há milhões de semelhanças. “Essa

‘sensoriedade comum’ estaria na base de um sentido de realidade no qual

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experimentamos a nossa existência. Se não houvesse certo a priori universal

para visualidade e um sentido de ‘realidade’, a comunicação entre povos do

planeta seria impossível. Traduzimos textos de uma língua para outra, por

exemplo, porque confiamos em uma equivalência de visualidade e de

conceitos, em uma equivalência entre objetos idênticos e palavras diferentes,

que soam e são grafadas de modo diferentes em cada língua.” Quer dizer, o

que me faz entender o sentido de chair/cadeira, é uma visualidade que é

similar tanto para o inglês quanto para mim. Vou ler um pouco mais o meu

texto “pretexto”: “Eu escrevo, como tantos outros teóricos do desenho infantil,

sobre um tipo de desenho que em seu sentido primeiro, e primeira função, é

uma exteriorização por meio de linhas e planos de um registro mental

fortemente marcado pela modalidade sensorial visual. Ali, nesse sistema visual,

algo fortemente biológico permite uma similaridade de impressão, uma alta

correspondência de configuração mental entre seres humanos, que é traduzida

e interpretada no desenho com significados altamente semelhantes nas

diversas culturas do nosso Planeta. Esse desenho é ‘típico’ no sentido em que

apresenta um resumo, uma síntese de características formais de um objeto e

na medida em que corresponde, analogamente, a registros mnemônicos de

todos os seres humanos nas culturas que são de origem comum”. Temos um

corpo biológico que nos irmana. Além disso, nós latinos americanos e

europeus, temos culturas comuns, talvez tenhamos diferenças culturais mais

fortes em relação à Ásia, ao Oriente.

Rejane: As diferenças culturais são importantes. O exemplo da cadeira

é bom, ela tem um significado comum na maioria das culturas. Mas no oriente

o sentido do sentar pode ser outro. Talvez para o oriental um tatame tenha

mais relação com o sentido de sentar. E então, como representar esta relação,

no plano gráfico?

Malu: É uma boa pergunta, existe a palavra cadeira? Como é que eles

dizem isso? Porque para nós há esse senso comum. Não importa, cadeira é

uma coisa com encosto, assento, e quatro pernas, ainda que às vezes surjam

uns desenhistas muito criativos que fazem cadeiras com três pernas, mas é

isso. Esses são os componentes, e configurar mentalmente essa forma

Revista PALÍNDROMO 1 Entrevista

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convencional permite que eu compreenda significados em francês, em inglês,

em alemão, em russo.

Rejane: Acompanhando seu raciocínio, percebo diferenças sutis nesse

espaço comum no qual a imagem da cadeira transita. Pois em algumas

culturas ela pode se diferenciar em algumas coisas, mas há uma base comum.

[...]

Rejane: Penso também na perspectiva modernista que busca incluir

esta produção de imagens iniciais no âmbito das produções artísticas. A

pergunta é: pode-se considerar arte? Ou, até que ponto esta produção tem

características artísticas? Há certo consenso incrustado em nossa cultura

sobre esta produção de imagens que lhes atribui valor artístico. Pondero aqui

que, talvez esse impulso de origem seja um impulso comum, e que este

impulso vai gerar por um lado os sistemas comunicacionais gráficos e por outro

as produções do campo da arte.

Malu: Todo ser humano alfabetizado escreve, mas você não fica

dizendo que estão todos fazendo poesia. Ou que as pessoas são escritoras...

Agora no campo das artes visuais, não, mal a criança pegou o lápis, já está

fazendo arte. Então que natureza é essa da arte? O que é arte? Arte é você ser

capaz de se comunicar por meio de uma produção qualquer, seja ela gráfica ou

verbal? Ou é alguma coisa, além disso?

Rejane: É o argumento de Darras quando faz aquela consideração

sobre a criança que começa a falar e cria uma metáfora para dizer uma coisa.

O adulto pode até achar poética a expressão em determinada idade. Mas ele

vai ensinar a criança a se expressar corretamente, e ela vai querer aprender a

dominar o código da linguagem oral e vai abandonar aquela metáfora poética.

Malu: É isso, a criança falou e eu li como metáfora, a intenção da

criança não era essa, mesma coisa acontece no desenho, o que estamos lendo

como metáfora não é metáfora. O desenho do círculo com bolinhas de Carolina

é uma metáfora? Respondo: não, é uma tradução, uma transcrição literal de

uma experiência sensorial, transformada em linha pelo código do desenho. O

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próprio John Kennedy13, fala da metáfora no desenho do cego, mas a metáfora

que ele percebe é de outra natureza e eu concordo com ele. Para ele a

metáfora surge quando, por exemplo, uma pessoa cega desenha alguém

caminhando e faz a tradução do movimento. As linhas que indicam o

movimento são uma metáfora. Construir uma metáfora, nesse caso, implica

usar um recurso gráfico visual para representar uma coisa que não é forma

visual, é apenas movimento. Isso é metáfora.

Rejane: Está presente em toda esta nossa conversa, por isso me veio à

mente agora, aquela ideia do Brent Wilson14 tão verdadeira, quando ele chama

atenção que o nosso olhar para o desenho da criança tem relação direita com o

conceito de desenho que carregamos. O quanto este conceito predispõe a

pessoa a situar esta produção aqui ou ali, como arte ou linguagem, como

exercício de apropriação do mundo ou como expressão etc.

Malu: O Luquet sabe disso. O grande nó do Luquet em 1927 é a

concepção de realismo intelectual, realismo fortuito e realismo falhado. Ele diz

o seguinte: que o desenho infantil é realista porque a criança desenha a sua

experiência de vida. Perfeito, não é? Ele não está falando do realismo artístico,

ele está falando de outro realismo, está conceituando realismo como

“experiência de vida”. No sentido de: o que eu vejo, o que eu experiencio, o

que eu vivencio, eu desenho. Isso, a partir do ponto de vista da criança. Mas,

então ele diz “realismo fortuito”... Do ponto de vista de quem? “Realismo

falhado”... Do ponto de vista de quem? Do adulto, do ponto de vista do adulto

que vê e analisa o desenho infantil.

Rejane: É o adulto que está lendo o desenho e tentando fazer analogias

com as representações visuais conhecidas e legitimadas.

Malu: A criança desenha qualquer coisa e diz “vovó”. Eu posso dizer

que é realista? Posso.

Rejane: Pela intenção.

13 KENNEDY, J. M. Drawing & the blind. Pictures to touch. Yale University, New York: Vail-

Ballou Press,1993. 14 WILSON, B. e WILSON M. Uma visão iconoclasta das fontes de imagem nos desenhos de

crianças. In: BARBOSA, Ana Mae (org.) Arte-educação: leitura no subsolo. São Paulo: Cortez, 1997.

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Malu: Pela intenção. Ela está me mostrando que ela estava desenhando

a vovó, então é realista sim, é a vovó dela ali. É realista. Agora, é falhado?

Rejane: Do ponto de vista das convenções do contexto que já definiu

um modelo para a figura humana que não está ali contemplada.

Malu: Claro, é falhado para mim, adulto, não é falhado para ela, para a

criança o desenho está correto: É a vovó.

Rejane: Eu não usaria a palavra “correto” neste caso, mas o desenho

faz sentido para a criança diante de sua intenção e de seu processo de

apropriação dos esquemas gráficos. A criança vai provavelmente, com o

passar da experiência, perceber a “falha”, ou a inadequação ao modelo de

figura humana dado por sua cultura. Sabe de uma coisa? Eu cada vez mais

acredito que Luquet estava certo!

Malu: Sem dúvida Luquet tentou dar um cunho “científico” à

investigação sobre o desenho infantil. Meus alunos e eu continuamos, nos dias

atuais, a encontrar ressonâncias entre o desenho de crianças e as categorias

de observação e análise que ele criou. Uma teoria de desenho infantil deve

enfrentar, penso eu, os seus pressupostos. Mas eu penso que você também

está certa quando ressalta a necessidade de compreendermos os vários

desenhos possíveis na cultura. Importa saber diferenciar os sistemas. Você

pontuou um repertório de signos ou “iconotipos” culturais com função

comunicacional, e uma demanda de expressividade e criação atrelada à arte.

Eu insistiria ainda em um sistema cognitivo, de compreensão e generalização,

de constituição mental de uma categoria de objetos. Mas, você tem razão de

novo, fica bem difícil para a criança elaborar ao mesmo tempo todos esses

sistemas, como nós tantas vezes pretendemos.

Desenho de Carolina, 19 anos Cega congênita