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Antíteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 677-699 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses Pensando a paz entre as guerras: o lugar do ensino de história nas relações exteriores Thinking about peace between the wars: the place of history teaching in the foreign relations Juçara Luzia Leite * RESUMO No início do século XX, principalmente após a 1ª Guerra Mundial, historiadores e educadores passaram a se perguntar sobre a influência que o ensino de História poderia ter nas afinidades e hostilidades entre povos e nações, para além da sua já considerada função cívica. Os chamados “abusos” da História –refletidos em seu ensino para a infância e para a juventude– passaram a ser debatidos na Europa (especialmente França, Alemanha e Espanha) e nos EUA, alcançando di- versas organizações internacionais (leigas e re- ligiosas), incluindo desde sindicatos de profes- sores até a Liga das Nações. A revisão dos pro- gramas escolares e de livros didáticos esteve no centro dessa discussão. Na América do Sul, essa iniciativa coube aos governos do Brasil e da Ar- gentina que, representados por seus ministros das Relações Exteriores, assinaram, em 1933, um “Convênio entre o Brasil e a República Ar- gentina para a Revisão dos Textos de Ensino de História e Geographia”. Neste artigo, investiga- mos os interesses políticos e educacionais –in- seridos no contexto internacional– que propor- cionaram a assinatura do Convênio, e considera- mos a atuação conjunta de governos, de políticos e de intelectuais-professores na intenção de pre- venir a excitação “no ânimo desprevenido da ju- ventude a adversão a qualquer povo americano”. PALAVRAS-CHAVE: História do Ensino de Histó- ria; Políticas Educacionais; Relações Interna- cionais; Direitos Humanos; Livros Didáticos. ABSTRACT In the early 20th century, especially after the First World War, historicians and educators wondered about the influence that history teaching might have on friendship and hostilities among nations. The so-called “abuses” of history –reflected in his teaching for children and youth– began to be deba- ted in Europe (mainly in French, Germany and Spain), and the U. S., reaching several international organizations (seculars and re- ligious) including from teachers’ unions to the League of Nations. The revision of school curricula and textbooks was the focus of this discussion. In South America, this initiative was leaded by Brazil and Argentina that signed in 1933 the “Agreement between Brazil and Argentina for the Revision of Texts for Teaching the History and Geography”. This paper investigates the political and educa- tional interests –in the international context– provided that the signing of the Agree- ment, and consider the actions of govern- ments, politicians, intellectuals and tea-chers in order to prevent the excitation against any nation of America. KEYWORDS: History of History’s Teaching; Educational Policies; International Relations; Human Rights; Textbooks. * Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) / Brasil.

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  • Antteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 677-699 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

    Pensando a paz entre as guerras: o lugar do ensino de histria nas relaes exteriores Thinking about peace between the wars: the place of history teaching in the foreign relations

    Juara Luzia Leite

    RESUMO No incio do sculo XX, principalmente aps a 1 Guerra Mundial, historiadores e educadores passaram a se perguntar sobre a influncia que o ensino de Histria poderia ter nas afinidades e hostilidades entre povos e naes, para alm da sua j considerada funo cvica. Os chamados abusos da Histria refletidos em seu ensino para a infncia e para a juventude passaram a ser debatidos na Europa (especialmente Frana, Alemanha e Espanha) e nos EUA, alcanando di-versas organizaes internacionais (leigas e re-ligiosas), incluindo desde sindicatos de profes-sores at a Liga das Naes. A reviso dos pro-gramas escolares e de livros didticos esteve no centro dessa discusso. Na Amrica do Sul, essa iniciativa coube aos governos do Brasil e da Ar-gentina que, representados por seus ministros das Relaes Exteriores, assinaram, em 1933, um Convnio entre o Brasil e a Repblica Ar-gentina para a Reviso dos Textos de Ensino de Histria e Geographia. Neste artigo, investiga-mos os interesses polticos e educacionais in-seridos no contexto internacional que propor-cionaram a assinatura do Convnio, e considera- mos a atuao conjunta de governos, de polticos e de intelectuais-professores na inteno de pre-venir a excitao no nimo desprevenido da ju-ventude a adverso a qualquer povo americano. PALAVRAS-CHAVE: Histria do Ensino de Hist-ria; Polticas Educacionais; Relaes Interna-cionais; Direitos Humanos; Livros Didticos.

    ABSTRACT In the early 20th century, especially after the First World War, historicians and educators wondered about the influence that history teaching might have on friendship and hostilities among nations. The so-called abuses of history reflected in his teaching for children and youth began to be deba-ted in Europe (mainly in French, Germany and Spain), and the U. S., reaching several international organizations (seculars and re-ligious) including from teachers unions to the League of Nations. The revision of school curricula and textbooks was the focus of this discussion. In South America, this initiative was leaded by Brazil and Argentina that signed in 1933 the Agreement between Brazil and Argentina for the Revision of Texts for Teaching the History and Geography. This paper investigates the political and educa-tional interests in the international context provided that the signing of the Agree-ment, and consider the actions of govern-ments, politicians, intellectuals and tea-chers in order to prevent the excitation against any nation of America. KEYWORDS: History of Historys Teaching; Educational Policies; International Relations; Human Rights; Textbooks.

    Doutora em Histria pela Universidade de So Paulo (USP) e Professora da Universidade Federal do Esprito Santo (UFES) / Brasil.

  • Juara Luzia Leite Pensando a paz entre as guerras: o lugar do ensino de histria nas relaes exteriores

    Antteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 677-699 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

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    Desde a virada do sculo XIX para o sculo XX, crescente a preocupao

    intelectual com o envolvimento da educao nas concepes de progresso e

    sobrevivncia. Com a ecloso da Guerra de 19141918, fortaleceu-se a

    preocupao acerca da influncia que o ensino de Histria poderia ter nas

    relaes entre povos e naes. Essa preocupao passou a ser tema de debates

    na Europa e nos EUA. A reviso dos programas escolares e de livros didticos

    esteve no centro dessa discusso. Na Amrica do Sul, essa iniciativa coube aos

    governos do Brasil e da Argentina que, representados por seus ministros das

    Relaes Exteriores, assinaram, em 1933, um Convnio entre o Brasil e a

    Repblica Argentina para a Reviso dos Textos de Ensino de Histria e

    Geographia. Nossa pesquisa estuda esse Convnio e seu contexto,

    considerando a fronteira entre as polticas educacionais e as polticas de

    relaes exteriores. Dessa forma, investigamos as relaes polticas e

    educacionais inseridas no contexto internacional que proporcionaram a

    assinatura do documento, a formao de uma Comisso Brasileira encarregada

    de elaborar as normas para a realizao dessa reviso, bem como as prprias

    normas por ela institudas e aprovadas.

    No presente trabalho, destacaremos, inicialmente, o contexto

    internacional do trabalho da Liga das Naes (e outras instituies) que refletiu

    os debates acerca da necessria reviso dos textos escolares de Histria. Em

    seguida, focaremos o contexto nacional que originou o Convnio Brasil-

    Argentina. Nesse sentido, consideramos a proposta contida no prprio

    documento de atuao conjunta de governos, de polticos, de intelectuais e

    professores na inteno de [...] proceder a uma reviso dos textos adotados

    para o ensino da histria nacional em seus respectivos pases, expurgando-os

    daqueles tpicos que sirvam para excitar no nimo desprevenido da juventude a

    adverso a qualquer povo americano. Finalmente, apontamos algumas

    discusses atuais que ainda relacionam o ensino de Histria a uma funo

    moral e pacfica.

    Ensino de Histria: Guerra e Paz

    No incio do sculo XX, principalmente mas no somente aps a 1

    Guerra Mundial, historiadores e educadores passaram a se perguntar sobre a

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    influncia que o ensino de Histria poderia ter nas afinidades e hostilidades

    entre povos e naes, para alm da sua j considerada funo cvica. Os

    chamados abusos da Histria refletidos em seu ensino para a infncia e para

    a juventude passaram a ser tema de debates na Europa (especialmente Frana,

    Alemanha e Espanha) e nos EUA (The Carnegie Endowment for International

    Peace), alcanando diversas organizaes internacionais (leigas e religiosas),

    incluindo desde sindicatos de professores at a Liga das Naes (em sua

    Comisso Internacional de Cooperao Intelectual CICI). A reviso dos

    programas escolares e de livros didticos esteve no centro dessa discusso.

    O Carnegie Endowment for International Peace, por exemplo, desde sua

    fundao, em 1910 por Andrew Carnegie industrial americano, teve como

    finalidade especfica promover uma cultura pela paz e a ajuda internacional.

    Uma de suas trs divises era justamente a Diviso de Relaes Internacionais e

    Educao. Em 1912, a instituio fundou uma seo europia em Paris.1

    Contudo, foi entre 1914 e 1918 que se produziu o que alguns historiadores

    chamam de mobilizao dos espritos, isto , uma espcie de desarmamento

    moral das novas geraes. A educao passara, assim, a fazer parte da agenda

    de associaes pacifistas que denunciavam como a propaganda blica se havia

    servido da histria e de seu ensino como instrumento de fomento de dios

    antigos e novos. Sobretudo no caso europeu, os programas escolares (e os livros

    didticos) passaram a privilegiar uma histria mais contempornea, visando

    eliminar aspectos que poderiam alimentar comportamentos excessivamente

    nacionalistas. Relatos de ex-combatentes, por exemplo, foram utilizados para

    ilustrar os males da guerra (GIUNTELLA, 2003). O ensino de Histria e o de

    Geografia estavam no centro dessa questo: no apenas os abusos da guerra

    eram questionados, mas a prpria noo de paz.

    Para Maria Cristina Giuntella (2003), os primeiros a darem uma ateno

    especial, nesse sentido, ao ensino de Histria e Geografia foram os prprios

    professores que, no caso francs, haviam desenvolvido uma orientao pacifista

    nos sindicatos. Segundo a pesquisadora italiana, [...] foi graas ao trabalho do

    Sindicato Nacional dos Professores que, no aps-guerra, 26 manuais escolares

    1 Sobre a fundao da Carnegie Endowment for International Peace e sua relao com o ensino de Histria, visite: .

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    foram boicotados e, em conseqncia, retirados do comrcio; um trabalho de

    trocas com os professores alemes comeou, ento, e se seguiu de 1926 a 1936.

    (GIUNTELLA, 2003: 162 [T A]).

    A dcada de 1920 foi marcada por uma discusso ampla, abarcando

    educadores de tendncias opostas, incluindo a presena cada vez maior dos

    EUA. De acordo com a UNESCO (1950), algumas organizaes internacionais

    no governamentais se incumbiram de protagonizar pesquisas sobre manuais

    escolares de diferentes pases, considerando especialmente os contextos francs,

    alemo e espanhol.2 Em 1921, por exemplo, o Carnegie Endowment for

    International Peace realizou uma pesquisa sobre as causas da Primeira Guerra e

    sobre as imagens que os pases veiculavam de si e dos outros nos livros

    didticos, focando especificamente o caso dos EUA.

    Aos poucos, no cenrio internacional do ps-primeira guerra, aos objetivos

    cvicos do ensino de Histria, somavam-se os objetivos morais. No perodo de

    1908 a 1934, foi realizada uma srie de Congressos Internacionais de Educao

    Moral. Durante o 3 Congresso (Genebra, agosto de 1922), por exemplo, o

    ensino de Histria foi amplamente debatido sob uma perspectiva

    internacionalista, tendo sido denunciada por muitos congressistas a tendncia

    militarista dada ao ensino de Histria. Anos depois, durante o 5 Congresso

    (Paris, setembro de 1930), foi expressado que o ensino de Histria deveria se

    tornar cada vez mais voltado para uma concepo de ensino de acordo com um

    esprito internacional (CICCHINI, 2004).

    Jean-Louis Claparde, naquele mesmo Congresso, props alguns critrios

    que deveriam ser adotados para a avaliao de livros didticos, a saber:

    imparcialidade, objetividade nos julgamentos, excluso de todo esprito de hostilidade ou vingana, o respeito a uma nao, a justa noo da guerra como um evento brbaro e destruidor, destaque para o desenvolvimento internacional, eliminao de toda forma de chauvinismo. (GIUNTELLA, 2003: 164 [T A]).

    Na ocasio, a ento recentemente criada Federao Internacional de

    Associaes de Professores (1926), j tomara como principal atividade a reviso

    dos livros didticos considerando o papel da escola no processo de

    reconciliao dos povos. Essa preocupao decorria das expresses do Bureau

    2 Esse trabalho de reviso da trajetria histrica da adequao dos livros didticos para a paz, protagonizado pela Unesco, gerou, em 1952, o documento tude sur les manuels scolaires dhistoire et de geographie disponvel em:

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    International de la Paix que, durante os Congressos de Berlim (1924) e Atenas

    (1929), props que uma reviso cuidadosa dos livros didticos fosse realizada

    seguindo um esprito pacifista (GIUNTELLA, 2003: 165).

    Ao longo desses debates, o papel da CICI (Comission Internationale de

    Coopration Intellectuelle) se destacou na Liga das Naes. Ainda que o objetivo

    da CICI no tenha sido eminentemente educacional, ocupou-se de questes da

    Educao, sobretudo interessando-se pela anlise dos livros didticos. De

    acordo com Jean-Jacques Renoliet (1999), embora o Pacto da Liga das Naes

    no expusesse nenhuma clusula relativa cooperao intelectual, seu Conselho

    adotou, em 1921 (apesar da hesitao inglesa), uma proposta francesa que

    respondia s demandas de diferentes associaes internacionais favorveis

    extenso do papel da Liga a favor da consolidao da paz mundial.

    Oficialmente criada em janeiro de 1922, a CICI constituiu o primeiro passo

    da Organisation de Coopration Intellectuelle (OCI), uma das organizaes

    tcnicas da Liga das Naes. A OCI compreendia tambm as Commissions

    Nationales de Coopration Intellectuelle (1923), o Institut International de

    Coopration Intellectuelle IICI - (1925), o Institut International du

    Cinmatographe ducatif (IICE) (1928), alm de diferentes organismos

    especializados e comits de especialistas. Segundo a anlise de Renoliet (1999),

    o Institut International de Coopration Intellectuelle (proposto pela Frana em

    1924) tambm exercia o papel de fomentador da influncia cultural e poltica

    francesa. Destacam-se o fato de que, no perodo compreendido entre 1926 e

    1939, todos os diretores do Institut International de Coopration Intellectuelle

    (IICI) foram franceses; e tambm que o estatuto do IICI garantia-lhe autonomia

    em relao Liga das Naes e ao governo francs, permitindo-lhe relaes

    diplomticas com as diferentes Naes que l possuam delegados.

    interessante notar que a CICI estava diretamente ligada ao Conselho da

    Liga das Naes, rgo restrito, cuja incumbncia principal era a gerncia da

    paz. De acordo com Garcia (2005), a Liga era constituda por trs rgos

    principais: o Conselho, a Assemblia, e o Secretariado. O autor afirma que o

    Conselho foi:

    uma nova edio revista do Concerto Europeu, destinada a garantir s grandes potncias o controle sobre o poder de deciso da Liga; a Assemblia, aberta e universal, atendeu s reinvindicaes liberais e democrticas de debate poltico e de diplomacia parlamentar, consoante tendncia esboada nas duas Conferncias de Haia; o

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    Secretariado, por fim, seria o escritrio administrativo encarregado de coordenar a cooperao amistosa entre os Estados nas reas tcnicas de interesse comum, como j vinha ocorrendo por meio das agncias internacionais tais como a Unio Telegrfica Internacional e a Unio Postal Universal.(GARCIA, 2005: 44).

    A Liga das Naes nascera como proposta multilateral de organizao

    racional das relaes internacionais, e de constituio do Direito Internacional,

    a partir de viso do presidente dos EAU, Woodrow Wilson, expressa em 14

    pontos apresentados na Conferncia de Paz de 1919, em Paris. De acordo com

    Baracuhy, uma comunidade de poder iria substituir o equilbrio de poder, e

    foi nesse contexto que o regime republicano brasileiro enfrentou o seu batismo

    de fogo internacional, com o desafio de fazer poltica externa sombra do

    Baro (2006: 357). O Brasil, como lutara na I Guerra Mundial, participou da

    Conferncia em Paris defendendo a possibilidade de insero, na recm-criada

    Liga, de estados que no configuravam entre as grandes potncias. Por conta da

    atuao da diplomacia brasileira na Conferncia de 1919, o Brasil integrou a

    Comisso da Liga das Naes, com Epitcio Pessoa como chefe da delegao

    cujo trabalho foi fundamental para a indicao do pas como membro

    temporrio (rotativo) do Conselho.

    Eleito em 1921 como membro rotativo do Conselho da Liga, o Brasil

    manteve-se at 1926 postulando um assento permanente. Em 1924, como parte

    dessa campanha, foi criada uma Misso de Representao Permanente junto a

    Liga, que logo foi elevada categoria de Embaixada, destacando-se, nessa

    empreitada, o trabalho de Afrnio de Mello Franco. A pesquisadora Alexandra

    de Mello e Silva afirma que:

    A argumentao da diplomacia brasileira baseava-se, ento, no prestgio internacional de que o pas j desfrutava, produto de atributos nacionais (dimenses continentais e demogrficas, peso dentro da Amrica do Sul); de uma j consolidada tradio diplomtica (pacifismo, defesa da igualdade soberana das naes, respeito ao Direito Internacional) e mesmo do fato de ter sido a nica nao latino-americana de participar militarmente da I Guerra Mundial. Desse ponto de vista, a candidatura brasileira se apresentava como natural, tendo em vista a posio nica ocupada pelo pas na Amrica do Sul e suas fortes ligaes com os EUA e a Europa, que lhe conferiam uma posio de prestgio dentro da Liga. (SILVA, 1998: s/d).

    A atuao do Brasil no Conselho da Liga ia alm da funo de mero relator

    em questes europias. Interessando-se particularmente pela questo das

    minorias nos pases do oriente europeu, examinou e votou sobre assuntos de

    questo jurdica, codificao do direito internacional, higiene, dentre outros,

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    mas, especialmente, a cooperao intelectual e a educao.

    No de se estranhar, portanto, que, em 1925, em resposta campanha

    movida por O Jornal (dirigido por Assis Chateaubriand) criticando participao

    do Brasil na Liga das Naes, o governo tenha enviado aos institutos de ensino,

    propaganda sensibilizando a juventude brasileira em favor da Liga das Naes.

    Em 1926, ano em que o Brasil se desligou da Liga, a Liga das Naes

    adotou a Resoluo Casars como procedimento para a reviso dos livros

    didticos. Proposta, em 1924, pelo espanhol de mesmo nome, a Resoluo

    determinava que:

    cada uma das Comisses Nacionais de Cooperao Intelectual que destacasse em um livro didtico estrangeiro uma passagem possvel de crtica, poderia submeter ao exame da Comisso do pas concernente afim de que ela o corrigisse; a ela, com efeito, que incumbia a res-ponsabilidade de tomar decises oportunas. No caso de no haver res-posta, o pas que havia solicitado as correes poderia recorrer CICI; a Comisso nacional qual o pas havia se endereado no era obri-gada de expor publicamente as razes pelas quais no havia aplicado a resoluo. Dentre as correes a serem feitas, excluam-se as opinies de carter religioso, moral, poltico ou pessoal (GIUNTELLA, 2003: 166 [T A]).

    A Resoluo Casars foi adotada apenas trs vezes, entre 1926 e 1930, e dela decorreu apenas uma vez a alterao de um livro didtico (RENOLIET, 1999). Por esta razo, a Resoluo sofreu uma ementa em 1932:

    as Comisses Nacionais deveriam obrigatoriamente responder s objees levantadas a propsito de seus livros didticos. De qualquer forma, tratavam-se de iniciativas oficiosas em razo do carter no governamental das Comisses Nacionais (GIUNTELLA, 2003: 166 [T A]).

    De qualquer forma, a CICI continuou a demonstrar sua preocupao com a

    questo. A partir de 1930, o IICI foi encarregado de conduzir uma pesquisa

    sobre os livros didticos de Histria que se referia, no que diz respeito ao ensino

    de Histria, tanto sobre as aes dos pases e organizaes internacionais,

    quanto s regras adotadas pelas diferentes naes para a escolha dos livros

    didticos. De acordo com Giuntella (2003), essa pesquisa foi publicada pela

    Liga das Naes, em 1932, com o ttulo A reviso dos manuais escolares. Disso

    resultou a incluso, em 1932, de uma rubrica consagrada especificamente para a

    reviso dos livros didticos de Histria no Boletim da Cooperao Internacional

    do IICI (RENOLIET,1999).

    A OCI, por sua vez, procurou, atravs do IICI, facilitar a colaborao de

    intelectuais no servio de promoo da paz mundial dentro dos objetivos da

    Liga das Naes. De fato, o trabalho essencial do Instituto consistia mesmo em

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    pesquisas que, algumas vezes, resultaram em aes promovidas por associaes

    privadas ou no, nos diferentes campos da ao intelectual, tais como, no

    destaque de Renoliet (1999): o desarmamento moral atravs do ensino dos

    princpios da Liga das Naes, da reviso de livros didticos, e do uso pacfico

    do cinema e do rdio; uma sistematizao do ensino atravs da equivalncia de

    diplomas, intercmbio de professores e estudantes, e criao de centros de

    documentao pedaggica; coordenaes em diferentes campos cientficos;

    traduo de obras literrias; conservao e proteo internacional de obras de

    arte, colaborao entre bibliotecas e arquivos; e a defesa dos direitos

    intelectuais.

    Alm da CICI, tambm o Bureau International dducation (BIE) do

    Instituto Jean-Jacques Rousseau, de Genebra, fundado em 1925, destacou-se

    na tarefa de reviso dos livros didticos de Histria e reuniu uma srie de

    projetos elaborados em nvel internacional entre o final do sculo XIX e o incio

    do sculo XX. De acordo com Giuntella (2003), seu objetivo era centralizar e

    coordenar a documentao educativa e de obras destinadas formao dos

    professores. Ainda que tenha sido criado como organizao no governamental,

    tornou-se intergovernamental aps uma reforma em seu estatuto ocorrida em

    1929. Ainda que se definisse oficialmente como um organismo neutro, o Bureau

    foi extremamente ativo, no perodo entre guerras, no que diz respeito a uma

    educao para a paz. Seu primeiro diretor foi Pierre Bovet, que foi seguido por

    Jean Piaget3. Em 1938, o BIE publicou, sob o ttulo de laboration, utilization

    et choix des manuels scolaires daprs les donnes fournies par les Ministres

    de lInstruction publique, o resultado de pesquisa realizada junto a diferentes

    Ministrios da Educao sobre a interferncia do Estado na escolha de livros

    didticos de Histria e sobre a existncia de instituies governamentais

    especficas para a produo dos livros.

    Giuntella (2003), atenta, ainda, para importncia da atuao de

    organizaes religiosas, no que diz respeito ao campo do ensino de Histria:

    mais especificamente a Confrence du Christianisme, prtica que constituiu, desde o encontro em Stocolmo em 1925, uma comisso especial para a educao e ensino de histria; essa comisso realizou

    3 Em 1969, o BIE passou a fazer parte da UNESCO, apesar de continuar com sede pr-pria em Genebra. Nesse sentido, visite: http://www.unesco.org/new/fr/unesco/about-us; http://www.ibe.unesco.org/index.php?id=1&L=1>; e tambm .

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    uma pesquisa sobre o nacionalismo nos livros de histria, publicada em 1928. Essa pesquisa, muito vasta, foi conduzida por especialistas de diferentes pases que efetuaram um trabalho crtico bastante detalhado sobre os manuais tradicionais bem como sobre as revises conduzidas aps a guerra. O trabalho realizado por Jules Prudhomme se revelou particularmente interessante: reconstituiu a gnese e as diferentes fases do boicote a 26 obras julgadas belicistas pelo Sindicato Nacional dos Professores e publicou a lista. A Itlia foi a nica a publicar os extratos das relaes da Comisso Nacional para os manuais escolares, sem o menor comentrio. Esta pesquisa representou sem dvida alguma uma das mais abertas e das mais crticas da poca (GIUNTELLA, 2003: 169 [T A]).

    A pesquisadora italiana destaca, tambm, as iniciativas da Ligue

    Internationale des Femmes pour la Paix et la Libert (LIFPL), constituda em

    1919, em Zurique. Desde sua criao, a LIFPL formou uma comisso para a

    educao e props a criao de uma escola normal superior de educao para a

    paz, a realizao de encontros peridicos entre professores e estudantes de

    pases diferentes, a fundao de uma conferncia internacional permanente

    sobre educao, e a reviso de livros didticos de Histria e de literatura

    infantil. A LIFPL publicou tambm, em 1921, editada por Eileen Power, uma

    bibliografia destinada aos professores de Histria intitulada A Bibliography for

    School Teachers of History (GIUNTELLA, 2001).

    A noo da urgncia de uma reviso moral embasava diferentes

    movimentos, associaes e expresses. Em 1932, Stefan Zweig, por exemplo,

    escritor austraco pacifista, falava da necessidade de uma reviso sobre os

    valores dos povos europeus cunhando a expresso desintoxicao moral da

    Europa. Alertava, dessa forma, para o papel da Educao das novas geraes,

    s quais seria preciso proporcionar um ensino de Histria que possibilitasse o

    confronto pacfico das diferentes civilizaes apresentadas, destacando suas

    contribuies para uma Histria comum, uma ptria comum ao corao

    (GIUNTELLA, 2001). Em 1936, Zweig visitou o Brasil pela primeira vez, trazido

    por seu editor Abraho Koogan (Editora Guanabara). De acordo com Stooss-

    Herbertz (2007), Zweig era um dos autores estrangeiros mais lido no pas. Em

    1940, publicou Brasil, pas do futuro, cujo prefcio foi escrito por Afrnio

    Peixoto,4 e, no mesmo ano, recebeu o visto de permanncia no Brasil, mudando-

    se em pleno Estado Novo. Zweig, ao lado de sua esposa, suicidou em fevereiro

    de 1942, em sua casa de Petrpolis.

    4 Mdico, professor e poltico. Foi professor de Histria da Educao no Instituto de Educao do Rio de Janeiro e, a partir de 1935, reitor da Universidade do Distrito Federal.

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    O pas do futuro do pacifista Zweig era palco de uma ditadura de modelo

    fascista. Desligado da Liga das Naes desde 1926, o Brasil, atravs de seus

    representantes diplomticos, adotou, cada vez mais, uma postura pan-

    americanista. Entretanto, o Brasil no se afastou totalmente dos debates da

    Liga, dispondo-se a participar, sempre que convidado, das conferncias e

    trabalhos promovidos pela Liga (a chamada colaborao desinteressada). Em

    dia com os debates internacionais, e tendo a pretenso de destacar-se na

    diplomacia sul americana, o Brasil tambm se articulava na promoo de um

    ensino de Histria condizente com as discusses de ento. Foi nesse contexto,

    em plena afirmao do Governo Vargas, que nasceu o Convnio entre o Brasil e

    a Repblica Argentina para a Reviso dos Textos de Ensino de Histria e

    Geographia.

    Brasil e Argentina: revisando livros didticos de Histria

    O Convnio entre o Brasil e a Repblica Argentina para a Reviso dos

    Textos de Ensino de Histria e Geographia foi assinado em 1933, por ocasio

    de visita ao Brasil do Presidente argentino, General Agustn P. Justo, como

    conseqncia dos votos emitidos, em 1928, durante o X Congresso de Histria

    Nacional realizado em Montevidu. Na ocasio, foram nomeados

    plenipotencirios por seus respectivos chefes de governo, o brasileiro Afrnio de

    Mello Franco e o argentino Carlos Saavedra Lamas.

    Afrnio de Mello Franco era o Ministro de Estado Brasileiro das Relaes

    Exteriores e ex-embaixador brasileiro na Liga das Naes. Carlos Saavedra

    Lamas era o Ministro Argentino das Relaes Exteriores e Culto,

    posteriormente, em 1936, presidiu a Assemblia da Liga das Naes, ano em

    que recebeu o Nobel da Paz.

    O Convnio tornou-se Decreto em 1934 e Documento do Ministrio das

    Relaes Exteriores em 1936. Somente ento, o Itamaraty constituiu a Comisso

    Brasileira Revisora dos Textos de Ensino de Histria e Geografia que aprovou as

    Normas estabelecidas para o cumprimento do Convnio.5

    5 A cpia oficial do Decreto 24.395, de 13/06/934, que Promulga o Convnio entre o Brasil e a Repblica Argentina para a reviso dos textos de ensino de Histria e Geografia, Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1933 est disponvel em: . Para efeitos de nossa investigao, estamos utilizando o Documento do Ministrio das Relaes Exteriores Brasileiro, publicado em

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    Destaca-se o fato de que, no perodo compreendido entre 1928 (ano do X

    Congresso de Histria Nacional, em Montevidu) e 1938, o governo brasileiro

    promovera esforos para a estatizao de territrios na fronteira Brasil-Uruguai,

    incluindo a questo da fronteira viva de Santana do Livramento-Rivera, at a

    assinatura do Convnio. Assim, era um contexto onde, na Amrica do Sul,

    buscava-se um consenso sobre as fronteiras e a estabilidade na regio do Prata.

    O Brasil, nesse sentido, estava preocupado com a influncia argentina sobre os

    pases vizinhos. De acordo com Garcia (2005):

    A rivalidade com a Argentina, alis, no se limitava luta pela supremacia regional, mas se estendia competio por prestgio internacional na Europa e, em particular, na Liga das Naes. Parecia que o pas j tinha alcanado o seu ponto timo de desenvolvimento econmico, como pas essencialmente agrcola, pouco restando a fazer seno garantir a defesa nacional contra agresses externas (o que alimentava certa preocupao defensiva na rea militar) e desfrutar, com indisfarvel regozijo, dos ganhos simblicos em termos de prestgio advindos da participao brasileira na Conferncia da Paz de Paris (GARCIA, 2005: 51).

    Somados disposio internacional para a reviso de livros didticos,

    protagonizada especialmente pela Liga das Naes, os debates sobre conflitos e

    disputas territoriais sul americanos marcaram o momento onde os governos de

    Brasil e Argentina perceberam a importncia de juntar esforos para a educao

    de geraes futuras em nome da paz. No mesmo sentido, tambm em 1933,

    Brasil e Argentina assinaram um convnio de preveno do contrabando.

    Posteriormente, em 1939, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai assinaram

    acordo amplo sobre a represso do trnsito ilegal de pessoas e mercadorias

    (RANGEL, 2000).

    Considerando o contexto europeu e o sul americano, no surpreende o

    disposto nos quatro artigos do Convnio:

    Artigo I O Governo da Repblica dos Estados Unidos do Brasil e o Governo da Repblica Argentina faro proceder a uma reviso dos textos adotados para o ensino da histria nacional em seus respectivos pases, expurgando-os daqueles tpicos que sirvam para excitar no nimo desprevenido da juventude a adverso a qualquer povo americano. Artigo II O Governo da Repblica dos Estados Unidos do Brasil e o Governo da Repblica Argentina faro rever periodicamente os textos adotados para o ensino da geografia, pondo-os de acordo com as modernas estatsticas e procurando estabelecer neles uma noo aproximada da riqueza e da capacidade de produo dos Estados

    1936 pela Imprensa Nacional, e intitulado Convnio entre o Brasil e a Repblica Argentina para a reviso dos textos de ensino de Histria e Geographia, exemplar disponvel no Real Gabinete Portugus de Leitura (Rio de Janeiro).

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    americanos. Artigo III O presente Convnio ser ratificado dentro do mais breve possvel e suas ratificaes se trocaro em Buenos Aires, continuando ele em vigor indefinidamente at ser denunciado por uma das Partes contratantes, com seis meses de antecipao. Artigo IV Qualquer Estado americano que o desejar poder aderir a este Convnio, anunciando esse propsito ao Ministro das Relaes Exteriores da Repblica dos Estados Unidos do Brasil. Cada adeso s se far efetiva depois de com ela se mostrarem de acordo dos Governos da Repblica Argentina e dos outros/estados que, na ocasio, sejam parte neste Convnio.

    A Comisso Brasileira Revisora dos Textos de Ensino de Histria e

    Geografia era cuidadosamente formada por intelectuais que tivessem se

    destacado na educao, no apenas de Histria e Geografia: Affonso de E.

    Taunay (historiador, na poca diretor do Museu do Ipiranga e professor da

    USP), Jonathas Serrano (professor de Histria do Colgio Pedro II e membro do

    Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro), Raja Gabaglia (professor de

    matemtica do Colgio Pedro II e membro da Academia Brasileira de Cincias),

    Souza Docca (militar gacho, membro do Instituto Histrico e Geogrfico

    Brasileiro), Othelo Rosa (jornalista gacho, subprocurador do estado do Rio

    Grande do Sul, secretrio particular do governador Borges de Aguiar e primeiro

    secretrio estadual de educao), Pedro Calmon Moniz de Bittencourt

    (professor da Faculdade Nacional de Direito e membro do Instituto Histrico e

    Geogrfico Brasileiro), Fonseca Hermes e Renato Mendona (gramtico, autor

    de A Influncia Africana no Portugus do Brasil). Professores, intelectuais e

    polticos compunham, assim, a Comisso.

    Especificamente em relao aos livros didticos de Histria, a Comisso

    Brasileira determinou normas constitudas pelos seguintes critrios de anlise e

    reviso:

    a) Generalidade definido como proporo conveniente entre as diferentes

    sees nas quais a Histria dividida, com o objetivo de produzir viso

    imparcial dos fatos, de modo a interessar a juventude na avaliao de todos os

    aspectos do passado nacional.

    b) Cordialidade recomendao explcita contra comentrios deprimentes de

    referncia a povos estrangeiros.

    c) Solidariedade orientao para o desenvolvimento de captulos que

    contemplem as relaes de paz e comrcio entre o Brasil e demais naes,

    notadamente americanas, dando o devido sentido histrico solidariedade

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    entre os povos.

    d) Idealismo instruo para que os livros didticos de Histria destaquem a

    poltica exterior brasileira como idealista e possuidora de coerentes

    sentimentos de conciliao e cordialidade.

    e) Americanidade d ateno ao necessrio destaque das relaes inter-

    americanas, com nfase em atitudes, iniciativas e fatos, que formam a

    conscincia americanista da nossa civilizao e constituem uma segurana dos

    destinos pacficos do novo mundo.

    f) Veracidade critrio que parte do pressuposto da existncia de uma

    veracidade histrica e determina que as suas snteses excluiro

    sistematicamente dos temas controversos comentrios e divagaes, limitando-

    se indicao dos fatos. Especificamente em relao aos assuntos

    internacionais, recomenda que se evitem as qualificaes ofensivas e os

    conceitos que atinjam a dignidade dos Estados e os seus melindres nacionais.

    Curiosamente, em relao aos compndios de Geografia, a Comisso

    definiu uma nica recomendao e critrio de anlise: Os compndios de

    geografia devero conter as estatsticas oficiais mais modernas e sempre

    estabelecer uma noo aproximada da riqueza e capacidade de produo dos

    Estados estrangeiros.

    As Normas eram precedidas da seguinte declarao: O Governo Federal e

    os governos dos Estados no permitiro que nos estabelecimentos pblicos de

    ensino, ou pelo poder pblico fiscalizado, sejam adotados compndio de

    Histria e Geografia que no observarem as condies seguintes. Todavia,

    como afirmou Guy de Hollanda:

    A Comisso, criada por simples portaria ministerial, carecia de poderes [...] Posteriormente, ao ser criada pelo Decreto-lei n 1.006, de 30-12-1938, a Comisso Nacional do Livro Didtico, as atribuies que houvessem cabido quela, foram includas entre as que correspondiam nova Comisso. (HOLLANDA, 1957: 204-205)

    Desconsiderar a importncia do Convnio, entretanto, seria ingnuo. O

    contexto nacional, conectando-se aos debates internacionais dos quais o

    Brasil foi partcipe quando membro da Liga das Naes, era de consolidao

    do Ministrios da Educao. A prpria idia de educao estava em debate,

    incluindo questes sobre o processo de escolarizao e o currculo escolar. No

    bojo da discusso, sobressaa-se o lugar do ensino de Histria. Podemos ter

    uma idia da repercusso do Convnio se lembrarmos que, em 1936, o

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    Ministrio da Educao organizou um Questionrio para um inqurito, a

    respeito do Plano Nacional de Educao). Naquela ocasio, o Instituto

    Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB) assim se manifestou:

    Deve haver uma cadeira especial de Histria do Brasil, para que esta no continue como captulo de sumria ou somenos importncia dos compndios de Histria da Civilizao, pois toda aquela relevante dis-ciplina foi posta na rabadilha do programa oficial desta (SERRANO, 1939: 16, apud HOLLANDA, 1957: 31).

    Segundo o estudo de Hollanda, apenas a partir da Reforma Campos

    (1931) a Histria do Brasil foi incorporada Histria da Civilizao. At

    ento, essa relao era praticamente inexistente.

    [...] De 1925 a 1929, chegou a haver o interstcio de uma srie virgem de qualquer estudo histrico entre ambas as cadeiras. Nos programas de Histria Universal, os temas americanos recebiam pouca ateno. O professor de Histria do Brasil via-se, s vezes, obrigado a dar em suas aulas, algumas noes de Histria Geral e Americana, para explicar os pontos do programa que, do contrrio, houvessem resultado pouco compreensveis (HOLLANDA, 1957: 19).

    Merece destaque, tambm, o fato de que o Brasil, logo aps firmar o

    Convnio com a Argentina, firmou um outro com o Mxico, reproduzindo o

    primeiro na sua essncia. O Convnio entre o Brasil e os Estados Unidos

    Mexicanos para a Reviso de Textos de Ensino de Histria e Geografia foi

    celebrado em 28 de dezembro de 1933, mas s entrou a partir de 3 de dezembro

    de 1934. Foi a base para o Decreto n. 2245 de 4 de janeiro de 1938 e fez parte

    da Misso Alfonso Reyes, embaixador mexicano no Brasil, de expanso das

    relaes culturais entre os dois pases.6 semelhana do Convnio firmado com

    a Argentina, o texto do Convnio com o Mxico esclarece:

    O Chefe do Governo Provisrio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil e o Presidente dos Estados Unidos Mexicanos animados do desejo de estreitar ainda mais, si possvel, as relaes de amizade que vinculam os dois povos, e convencidos de que essa amizade mais se consolidar pelo perfeito conhecimento que as novas geraes adquiram, tanto de geografia como da histria de suas respectivas ptrias, resolveram celebrar um Convnio para a reviso dos textos de ensino de histria e de geografia, e para esse fim, nomearam seus plenipotencirios, a saber: O Chefe do Governo Provisrio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, ao Senhor Doutor Afrnio de Melo Franco, Ministro de Estado das Relaes Exteriores; O Presidente dos Estados Unidos Mexicanos, ao Senhor Doutor Jos Manuet Puig Casauranc, Ministro das Relaes Exteriores. 7

    6 Para acessar as informaes disponveis no Itamarati: . 7 O Decreto est disponvel em:

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    E ainda aponta, em trs artigos, a essncia da celebrao:

    Artigo Primeiro O Governo da Repblica dos Estados Unidos do Brasil e o Governo dos Estados Unidos Mexicanos faro proceder a uma reviso dos textos adotados para o ensino da histria nacional em seus respectivos pases, expurgando-os daqueles tpicos que sirvam para excitar no nimo desprevenido da juventude a adverso a qualquer povo americano. Artigo II O Governo da Repblica doe Estados Unidos do Brasil e o Governo dos Estados Unidos Mexicanos faro rever peridicamente os textos adotados para o ensino de geografia, pondo-os de acordo com as mais modernas estatsticas e procurando estabelecer neles uma noo aproximada da riqueza e da capacidade de produo dos Estados americanos. Artigo III O presente Convnio ser ratificado dentro do mais breve prazo possvel e suas ratificaes se trocaro na cidade do Mxico, continuando ele em vigor indefinidamente at ser denunciado por uma das partes contratantes, com seis meses de antecipao.8

    No temos informaes sobre o desdobramento do Convnio com o

    Mxico, mas sabemos que, com a Argentina, originou a publicaes de autores

    argentinos, traduzidos para o portugus, e respeitando os termos do Convnio.

    Reciprocamente, tambm foram publicados autores brasileiros na Argentina,

    devidamente traduzidos para o espanhol. A iniciativa de tais publicaes coube

    ao Ministrio das Relaes Exteriores. Segundo a descrio de Hollanda (1957),

    as publicaes consistiam em colees abertas por um volume relativo

    Histria do outro pas. Dessa forma, no caso argentino, o livro de abertura

    escolhido para representar o pas na Coleo Brasileira de Autores Argentinos,

    seguindo as Normas do Convnio, foi a Sntese da Histria da Civilizao

    Argentina, de Ricardo Levene. No caso brasileiro, abrindo a Biblioteca de

    Autores Brasileiros foi publicada a Histria da Civilizao Brasileira, de

    Pedro Calmon. Os livros publicados para comporem as colees no versavam

    apenas sobre Histria, mas tambm sobre temas sociolgicos, alm de obras

    literrias, como, por exemplo, Os Sertes, de Euclides da Cunha, e Facundo,

    de Sarmiento:

    As Comisses Brasileira e Argentina Revisoras dos Textos de Histria e Geografia, que tinham, respectivamente, como relator e presidente os historiadores Pedro Calmon e Ricardo Levene, no encararam a publicao de obras de geografia, disciplina a respeito da qual o

    %3Fid%3D12513&exec>. 8 Ibidem.

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    Convnio se mostrava, alis, mui lacnico. A Coleo Brasileira de Autores Argentinos foi iniciada, em 1938, pelo Servio de Cooperao Intelectual do Ministrio das Relaes Exteriores, que assumiu a sua distribuio. Na Argentina, a Biblioteca de Autores Brasileiros, que abarcou maior nmero de obras, foi entregue a uma editora particular, que lhe deu esmerada apresentao material. (HOLLANDA, 1957: 205).

    Em 1943, a Comisso de Estudo dos Textos de Histria do Brasil foi criada

    no Ministrio das Relaes Exteriores (CETHB). Em 1945, outra portaria

    reorganizava a Comisso, que passava a ter seis membros com as atribuies de

    conhecer a bibliografia sobre a Histria do Brasil editada no Brasil ou no

    exterior, preparar lista bibliogrfica contendo as principais obras sobre os

    assuntos histricos brasileiros(,) e apresentar pareceres sobre questes de

    Histria do Brasil. Dessa forma, a partir de 1944, foram publicados

    semestralmente relaes intituladas Bibliografia de Histria do Brasil.

    Hollanda (1957) observa que, a partir de 1947, a Bibliografia passou a ser

    publicada anualmente no formato de fascculo, mas que a periodicidade no foi

    regular, e que Cumpre observar que, embora includos na Bibliografia, os

    compndios nacionais de Histria no tm sido objeto de resenhas crticas

    (Hollanda, 1957: 208).

    Cabe lembrar que, em 1945, o Decreto-lei n. 8460 consolidou a legislao

    sobre as condies de produo, importao e utilizao do livro didtico,

    determinando que os livros didticos que no tiverem tido autorizao prvia

    nos termos daquela lei no poderiam ser adotados no ensino das escolas

    primrias, normais, profissionais ou secundrias em todo o pas, no isentando

    os livros didticos publicados pelo poder pblico. O mesmo Decreto-lei trata,

    em seu Captulo II, da criao da Comisso Nacional do Livro Didtico e de suas

    atribuies, isto : a) examinar os livros didticos apresentados, e emitir parecer

    favorvel ou contrrio a seu uso; b) estimular a produo de livros didticos e

    orientar sua importao; e c) indicar os livros didticos estrangeiros que

    meream ser traduzidos e editados pelos poderes pblicos, bem sugerindo a

    abertura de concurso para a produo de livros didticos ainda no existentes

    no pas.

    O mesmo Decreto-lei, em seu Captulo IV, dispunha os critrios que

    possibilitariam a desautorizao de uso de um determinado livro didtico em

    escola pblica. Dentre estes, alm da exigncia da declarao de seu preo de

    venda, bem como de correo gramatical, ortografia legal e linguagem

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    adequada, determinava, em seu Artigo 26, que no poderia ser autorizado o uso

    do livro didtico que: atentasse contra a honra nacional, contivesse pregao

    ideolgica ou indicao contra o regime democrtico, ofendesse as foras

    armadas ou outras instituies e autoridades nacionais, desprezasse as tradies

    nacionais, induzisse o pessimismo quanto ao destino do povo brasileiro,

    inspirasse superioridade de uma regio em relao outra, incitasse dio contra

    raas ou naes estrangeiras, despertasse luta entre classes ou raas,

    combatesse confisses religiosas, atentasse contra a famlia, e que induzisse o

    sentimento de inutilidade.

    Entre o final da 1 Guerra e o final da 2 Guerra, um tema das relaes

    exteriores no Brasil havia se tornado assunto de legislao nacional. A

    preocupao que se incidia sobre o ensino de Histria e Geografia passou a

    abarcar todos os livros didticos. O Estado Novo adotara como uma de suas

    estratgias de consolidao do poder a regulao do ensino e a centralizao dos

    assuntos educacionais no Ministrio da Educao e Sade. Em um mundo que,

    pouco a pouco, mergulhava em outra guerra, intelectuais, polticos e professores

    ainda acreditavam que o ensino de Histria poderia contribuir para a paz? O

    que diria o pacifista Zweig sobre o lugar do ensino de Histria no futuro do pas

    do futuro?

    Pas do futuro?

    A constatao de que a propaganda poltica tambm se servia da Histria e

    de que guerras se alimentavam de noes de paz parecera inevitvel no contexto

    em questo. Educar as geraes futuras para um mundo de paz foi o objetivo

    central dos debates acerca da Histria e seu ensino entres intelectuais, polticos

    e professores de diferentes pases do mundo ocidental. Contudo, de qual futuro

    se falava? Acordos, Congressos, Comisses, Conferncias, Convnios, Decretos...

    Ferramentas imperfeitas no mbito de polticas internacionais e nacionais.

    Poderia um correto ensino de Histria prevenir abusos, violncias e genocdios?

    De acordo com Joel Hubrecht e Assumpta Mugiraneza (2009), em uma

    perspectiva de reflexo acerca da noo de preveno que convm reexaminar

    as polmicas e debates do perodo entre guerras em torno do ensino de Histria.

    A noo de preveno nos obrigaria, assim, a deslocar essa questo do campo

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    da justia para o terreno do poltico. preciso considerar ainda, e, sobretudo, os

    acordos internacionais que se seguiram Segunda Guerra: Conveno para a

    Preveno de Genocdios (1948), Conveno pela Imprescriptibilidade dos

    Crimes contra a Humanidade (1968), Protocolos de Genebra (1977) e Estatuto

    de Roma (1998). Com base nessa afirmativa, os autores alertam:

    A preveno de genocdios repousa sobre dois pilares indissociveis: a elaborao e realizao de programas polticos na escala dos Estados, de uma parte, e o engajamento dos indivduos de outra parte. A categorizao dos nveis de responsabilidade de Jaspers [...] se revela, uma vez mais, dentre as mais pertinentes. Apoiando-nos sobre ela, podemos afirmar que a preveno de genocdios se implanta tambm nos quatro campos identificados por este autor: aquele do direito, da poltica, da moral e o espiritual (no sentido religioso mas igualmente no sentido da ultrapassagem do homem em outros e da solidariedade metafsica evocada por Camus) (HUBRECHT; MUGIRANEZA, 2009: 127 [T A]).

    Concordamos com os autores e, portanto, nesse sentido, destacamos a

    importncia de nossa investigao. Discutir os usos pblicos da Histria, em

    especial as relaes de poder que sustentam os processos de didatizao da

    Histria e sua relao com os Direitos Humanos se faz mister. Para tanto, de

    significativa importncia refletir sobre os registros, as formas e as prticas que

    possibilitam as leituras do passado, considerando as percepes, memrias,

    sensibilidades e leituras compartilhadas de um passado implicadas na anlise

    das relaes de poder inerentes a esses processos necessariamente polticos.

    Assim sendo, questionamos: como aquele determinado presente pensava

    os prognsticos futuros? Qual o lugar do ensino de Histria nesses

    prognsticos? Acreditamos que os Convnios e Decretos foram expresses de

    um grupo de intelectuais, polticos e professores brasileiros que, cientes dos

    debates internacionais, e atravessando diferentes governos, investiram nas

    possibilidades de construir outras representaes de Brasil, interna e

    externamente, resignificando a escrita de uma Histria oficial. Aes que

    traduziram esforos educacionais, polticos e diplomticos, bem como tentativas

    de obteno de reconhecimentos entre naes, mas tambm, internamente, de

    aparar arestas de conflitos regionais.

    Longe de pertencer ao passado, bem atual a preocupao de atribuir ao

    ensino de Histria em particular e educao de modo geral, uma

    responsabilidade moral na formao de um futuro de paz.

    Richard Aldrich (2010) enfatiza a importncia atual de se refletir

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    historicamente sobre o que ele denomina Educao para a sobrevivncia, dife-

    renciada das concepes de educao para a salvao, educao para o esta-

    do e educao para o progresso. Para o autor, a Histria da Educao precisa

    se reposicionar no contexto da historiografia atual, ao lado de outros ramos da

    Histria, com o objetivo de imprimir um rumo futuro para a Educao. Essa

    viso implica um conflito: as divergncias entre educadores e historiadores.

    Hollanda (1957) recorda que:

    j faz um quarto de sculo, a divergncia entre um historiador conceituado como Lhritier e o eminente educador Claparde, no fcil harmonizar os critrios histrico e educativo. Temem, geralmente, os historiadores que se sacrifique no ensino a verdade no altar da conciliao ou compreenso internacional. Permanecem cpticos no tocante a uma Histria cor de rosa, que impediria uma real compreenso do passado. [...] O ponto de vista dos educadores, mais otimista, parte da premissa de que a verdade histrica no padece, substancialmente, com a subordinao da escolha da matria a ser ensinada a fins educativos, que excluem, forosamente, o destaque de todos os aspectos do passado susceptveis de prejudicar a aproximao dos povos e das naes (HOLLANDA, 1957: 209-210).

    Por outro lado, Giuntella (2003) destaca que uma reflexo histrica atual

    deve considerar que, com o final da Primeira Guerra, tinha-se a iluso de que a

    paz era uma aspirao comum. Acreditava-se que o ano de 1919 assistira o

    triunfo da democracia enquanto que, na verdade, a Europa estava fragmentada

    e dividida em divergncias morais. Em pases que haviam adquirido

    recentemente sua independncia, o ensino de Histria era instrumento de

    identidade nacional. E o que dizer dos pases totalitrios, onde os livros

    didticos continuavam como propaganda do regime? Estendendo esse

    raciocnio para o Brasil e suas relaes internacionais, particularmente com

    demais pases sul-americanos, vislumbramos a especificidade da poltica

    externa brasileira como fonte para estudos na interface da Histria e de seu

    ensino. Compreender e contextualizar historicamente a dinmica da diplomacia

    brasileira relevante para a anlise das variaes das recomendaes e atitudes

    das autoridades deste ou daquele pas sobre o ensino de Histria, e mesmo

    sobre a escrita da Histria, como vimos no caso da seleo dos livros que

    compuseram a Biblioteca de Autores Brasileiros.

    Na viso de Garcia (2005), por exemplo, a poltica externa brasileira na

    poca da Liga das Naes era de natureza dialtica, resultado de uma espcie de

    interao entre um discurso idealista-principista, legado de Ruy Barbosa, e uma

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    Antteses, vol. 3, n. 6, jul.-dez. de 2010, pp. 677-699 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses

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    viso realista-pragmtica, legado de Rio Branco. O autor afirma que o Brasil via

    na Liga das Naes um foro multilateral que funcionava para sua projeo

    mundial, divulgando a imagem do pas na Europa, disputando essa rea com a

    Argentina:

    O Brasil baseou sua candidatura na Liga sobretudo na tese da representao continental no Conselho e chegou a admitir a ocupao provisria do lugar reservado aos Estados Unidos naquele rgo, mas o governo norte-americano em nenhum momento apoiou as propostas brasileiras, guardando uma total indiferena pela questo. Os Estados Unidos tambm no tiveram qualquer participao na retirada brasileira da Liga das Naes. Essa foi uma atitude de responsabilidade exclusiva daqueles que detinham o controle do processo decisrio do Estado brasileiro. Mas, dialeticamente, as alternativas polticas de insero internacional nos anos 20 pra o Brasil (universalismo ou continentalismo, Europa ou Amrica, Liga das Naes ou pan-americanismo) estavam limitadas por condies objetivas que ditavam a percepo do interesse nacional das elites no poder. [...] Aps o afastamento de Genebra, seguiu-se um perodo de deseuropeizao da poltica externa brasileira, reafirmando, de cera forma, o processo de americanizao da diplomacia ocorrido ao longo da Repblica Velha e somente ofuscado pelo interregno 1917-1926 de participao ativa na poltica mundial europia [...] (GARCIA, 2005: 141).

    A Argentina e o Chile, malgrado as aspiraes brasileiras, no pareciam

    dispostos a apoiar o Brasil como representante americano no Conselho

    Permanente da Liga das Naes, uma vez que acreditavam que esse

    posicionamento romperia com as possibilidades de equilbrio sul americano. O

    Brasil precisava ento e posteriormente, em decorrncia do necessrio

    investimento em uma poltica pan-americana consolidar representaes de si

    mesmo como um pas pacfico, equilibrado e justo. O ensino de Histria era

    uma ferramenta importante nesse processo.

    As recomendaes diplomticas, no sentido de reviso de textos escolares

    de Histria, e a conseqente regulao e controle da Histria escrita, tornaram-

    se portarias e decretos medida que a Europa caminhava para um novo cenrio

    de Guerra, culminado na criao da Comisso Nacional do Livro Didtico, em

    1945. Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva (2008), interrogando a diplomacia

    brasileira do incio do sculo XX, afirma que:

    Neste perodo a histria foi vista como capaz de colaborar para a construo do futuro; da repens-la, estud-la e, principalmente, ps-quis-la, o que lhe conferiria validade e credibilidade. Empreendimen-tos como o Convnio de Reviso dos Textos de Ensino de Histria e Geografia, assinado entre Brasil e Argentina, e a formao das Biblio-tecas de Autores Brasileiros traduzidos ao Castelhano e de Autores Argentinos traduzidos ao Portugus so exemplos que ilustram esta preocupao. So, deste modo, pretextos que demonstram o papel da

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    histria na compreenso do presente e na elaborao de prognsticos de futuro. Focalizada nestes empreendimentos, a histria exerceria um importante papel como promotora da integrao latino-americana e na construo de uma alternativa pacfica, em especial nas primeiras dcadas do sculo XX, diante dos contextos da Primeira e da Segunda Guerra (SILVA, 2008: s/d).

    Intentar produzir um futuro de paz, eliminando dos livros didticos

    representaes que levassem a expresses de preconceitos entre naes, levava

    ao risco de submeter a Histria escrita a critrios transitrios e meramente

    polticos, sem a garantia de logro. Por outro lado, analisar iniciativas como o

    Convnio entre o Brasil e a Repblica Argentina para a Reviso dos Textos de

    Ensino de Histria e Geografia, hoje, nos leva a refletir sobre como a gerao

    de intelectuais, polticos e professores daquele contexto depositaram esperanas

    e responsabilidades em si mesmos, atribuindo-se uma misso fraternal, e

    Histria a projeo do porvir. Leite (2002), baseando-se em Koselleck (1990),

    adverte para a necessria ateno que deve ser dada na pesquisa histrica sobre

    as distintas (e, no raro, conflitantes) perspectivas de futuro que co-existem em

    uma mesma poca, defendidas por diferentes geraes. No caso de nossa

    investigao, estudamos especificamente atos de uma gerao de intelectuais,

    isto , pessoas privilegiadas em uma sociedade desigual.

    Vislumbramos, assim, a importncia do Convnio entre o Brasil e a Rep-

    blica Argentina para a Reviso dos Textos de Ensino de Histria e Geographia

    como fonte e objeto de pesquisa para a Histria da Educao e para o campo da

    Histria do Ensino de Histria. Entretanto, preciso tambm articular estas

    reflexes a debates anteriores, analisar a produo, distribuio, consumo e

    ressignificao do saber histrico nas sociedades, e privilegiar as questes sobre

    os Direitos Humanos e os embates, conflitos e consensos que as cercam. Dessa

    forma, enfatizamos a construo de uma sensibilidade historiogrfica que

    compreende de forma dinmica as prticas e relaes de poder expressas nos

    usos pblicos da Histria. Compreender de que forma intelectuais, polticos e

    professores participaram de acordos normativos para o ensino de Histria no

    Brasil da primeira metade do sculo XX uma face dessa Histria.

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    Colaborao recebida em 17/10/2010.