dialnet-o aprendizadodonaosabernamisticadeangelussilesius-3630986

18
Temática Livre – Artigo original DOI Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 196 O aprendizado do não-saber na mística de Angelus Silesius * The learnig of the not-knowing in the mystique of Angelus Silesius Cleide Oliveira * * Resumo A linguagem apofática é um gênero discursivo estreitamente relacionado à Teologia Negativa, cuja formulação mais acabada se encontra na obra do Pseudo-Dionísio (séc. V), místico que funda uma tradição negativa que se perpetuará durante toda a Idade Média e Moderna. Na contemporaneidade diversos autores (DERRIDA, 1995 e 1997; FRANKE, 2007; PONDÉ, 2003; VEGA, 2004 e 2009 e outros) têm destacado a retomada desse gênero discursivo nas artes, na literatura e nas ciências humanas de forma geral. A linguagem apofática é, portanto, um discurso que visa à própria transcendência e se orienta para a denúncia de um vazio intrínseco à linguagem e ao mundo que dela se origina, de tal modo que o Deus que aí comparece desliza sob nossa linguagem sem se deixar prender em nossas teias discursivas. No presente texto a impossibilidade do nome de Deus torna-se metáfora para se refletir, a partir do exemplo da mística de Angelus Silesius, sobre as possibilidades de um pensamento negativo cujos fundamentos sejam o esvaziamento da linguagem, que se vê despojada de sua capacidade de dizer o mundo, e o aprendizado do não-saber. Palavras-chaves: Linguagem apofática, Linguagem, Angelus Silesius, não-saber. Abstract Apophatic language is a genre closely related to negative theology, whose the most accomplished formulation is found in the Pseudo-Dionysius work (fifth century), who founded a mystical tradition that perpetuated throughout the Middle and Modern Ages. Several authors in contemporary such as Derrida (1995 and 1997), (Franke, 2007), (Pounde, 2003), (Vega, 2004 and 2009), and others, have highlighted the resumption of that genre in the Arts, Literature and the Humanities in general. Apophatic is, thus, a discourse that seeks transcendence, and it orients itself to denounce the emptiness intrinsic to language as well as to world, so that the God that there appears slips under our language without being caught in our discursive webs. In this text the impossibility of God's name becomes a metaphor to reflect, from the example of the mystique of Silesius Angelus, on the possibility of a negative thought whose foundations are the emptiness of the language, which finds itself stripped of its ability to tell the world, and from the learning of the not-knowing. Key-words: Apophatic language, Failure of language, Angelus Silesius, not-to knowing Artigo recebido em 14 de junho de 2010 e aprovado em 02 de setembro de 2010. * O artigo integra minha tese de doutorado de título "Por um Deus que seja noite, abismo e deserto: considerações sobre a linguagem apofática", defendida em março de 2010 na PUC-Rio. * * Doutora em Estudos de Literatura (PUC-Rio, 2010). Professor substituta de Literatura Brasileira na UFRJ. E-mail: [email protected]

Upload: juniorribeiro

Post on 17-Aug-2015

215 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Mistica não saber

TRANSCRIPT

Temtica Livre Artigo original DOI Licena Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 196 O aprendizado do no-saber na mstica de Angelus Silesius The learnig of the not-knowing in the mystique of Angelus Silesius Cleide Oliveira ResumoAlinguagemapofticaumgnerodiscursivoestreitamenterelacionadoTeologia Negativa,cujaformulaomaisacabadaseencontranaobradoPseudo-Dionsio(sc. V),msticoquefundaumatradionegativaqueseperpetuardurantetodaaIdade MdiaeModerna.Nacontemporaneidadediversosautores(DERRIDA,1995e1997; FRANKE, 2007; POND, 2003; VEGA, 2004 e 2009 e outros) tm destacado a retomada desse gnero discursivo nas artes, na literatura e nas cincias humanas de forma geral. A linguagemapoftica,portanto,umdiscursoquevisaprpriatranscendnciaese orientaparaadennciadeumvaziointrnsecolinguagemeaomundoquedelase origina,detalmodoqueoDeusqueacomparecedeslizasobnossalinguagemsemse deixar prender em nossas teias discursivas. No presente texto a impossibilidade do nome deDeustorna-semetforaparaserefletir,apartirdoexemplodamsticadeAngelus Silesius, sobre as possibilidades de um pensamento negativo cujos fundamentos sejam o esvaziamento da linguagem, que se v despojada de sua capacidade de dizer o mundo, e o aprendizado do no-saber.Palavras-chaves: Linguagem apoftica, Linguagem, Angelus Silesius, no-saber. AbstractApophaticlanguageisagenrecloselyrelatedtonegativetheology,whosethemost accomplishedformulationisfoundinthePseudo-Dionysiuswork(fifthcentury),who foundedamysticaltraditionthatperpetuatedthroughouttheMiddleandModernAges. SeveralauthorsincontemporarysuchasDerrida(1995and1997),(Franke,2007), (Pounde, 2003), (Vega, 2004 and 2009), and others, have highlighted the resumption of thatgenreintheArts,LiteratureandtheHumanitiesingeneral.Apophaticis,thus,a discoursethatseekstranscendence,anditorientsitselftodenouncetheemptiness intrinsic to language as well as to world, so that the God that there appears slips under our languagewithoutbeingcaughtinourdiscursivewebs.Inthistexttheimpossibilityof God's name becomes a metaphor to reflect, from the example of the mystique of Silesius Angelus, on the possibility of a negative thought whose foundations are the emptiness of thelanguage,whichfindsitselfstrippedofitsabilitytotelltheworld,andfromthe learning of the not-knowing. Key-words: Apophatic language, Failure of language, Angelus Silesius, not-to knowing

Artigo recebido em 14 de junho de 2010 e aprovado em 02 de setembro de 2010. Oartigointegraminhatesededoutoradodettulo"PorumDeusquesejanoite,abismoedeserto: consideraes sobre a linguagem apoftica", defendida em maro de 2010 na PUC-Rio. Doutora em Estudos de Literatura (PUC-Rio, 2010). Professor substituta de Literatura Brasileira na UFRJ. E-mail: [email protected] Cleide Oliveira Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 197 Introduo Umadascaractersticasmaismarcantesdotempocontemporneoadeclarada trplicemortedosujeito,dalinguagemedeDeus.Nessascircunstncias,odiscurso apoftico tem se tornado praticamente uma koin nas cincias humanas, uma lngua comum paraosdiscursos,maisoumenoscatastrficos,sobreacircularidadedalinguagemea contingnciadoconhecimentoedemaisconstrutoshumanos.Essa,porexemplo,a opinio de William Franke (2007) em sua coletnea e anlise de discursos apofticos desde osclssicosatostemposcontemporneos.Paraele,osdiscursosapofticosse caracterizamprincipalmenteporseremumaexperinciaderesistnciadalinguagemque nasceemmomentosculturaisemquehumcolapsodosdiscursosdeautoridade.A contemporaneidadeseria,devidoabsolutacrisedeconfiananologos,umapoca particularmentepropcia aosurgimento desses discursos, que se caracterizariam por serem ataquespretensorepresentativadalinguagemetentativasdedesestabilizaodas expectativas da linguagem como fundo literal/superfcie figurativa. Para Frank, o indizvel semostranostextoscontemporneoscomooslimitesdeumaopacidadeintrnsecaatodo discurso,umainevitvelnointeligibilidadenodizvel.Dessaforma,aexperinciada apoftica,comoumaexperinciadaquiloquenopodeserdito,essencialmente lingustica:aexperinciaelamesmaintrinsecamenteumaexperinciadefracassoda linguagem (FRANKE, 2007, p. 3).1

Restasaber se essa confisso de fracasso no constituiria antes umaestratgia para sepensaroimpensvel,umaformadeescapardadicotomiamythosversuslogos,eassim desestabilizaratiraniadosentidoedareferncia,liberandoopensamentodasarmadilhas do antropocentrismo, que parece inerente a nossa cultura epistmica.Investindonessapossibilidade,gostariadeexploraraspotencialidadesdodiscurso apofticoenquantotentativadeconstruodeinteligibilidadeeethosapartirdealguns poemas do mstico alemo Angelus Silesius. O convite que fao para pensarmos a mstica apoftica,esuacorrelatateologianegativa,comoummtodoque,pormeioderigorosa ascesedalinguagempositivaedarazodiscursiva,rejeitanoapenasosensvel,mas

1 The experience of apophasis, as an experience that of not being able to say is quintessentially linguistic: the experience itself is intrinsically an experience of the failure of language.Temtica Livre Artigo: O aprendizado do no-saber na mstica de Angelus Silesius Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 198 tambmointeligvel,epropeumaterceiraviadeacessoaoncleodurodorealque podemostambmchamardeDeusatravsdasuperaodaquiloquePond(2003)chamoudeangstiadarefernciasemnticaoupragmtica.Defende-sequeodiscursoda mstica no se encontra no mbito do non-sense, mas que o mesmo se constitui como uma tentativadeelaboraodeumpensarque,nosinstigantesversosdeFernandoPessoa, exigeumestudoprofundo/umaaprendizagemdodesaprender(2005,p.49)daquiloque milhares de anos de cultura e filosofia nos ensinaram.Anegatividadeintrnsecaaessepensamentoaproxima-odachamadateologia negativa,ouapoftica.Grossomodo,poder-se-iadefiniraapofticacomoummtodode kathrsis(purificao)dodiscursoedaintelignciacomfinsdesealcanaraquiloque Pseudo-Dionsio2 chamou de Causa universal, ou treva superluminosa: Comodevemo-nosunirCausauniversaletranscendente,ecomo devemoslouv-la.Rezemosparaencontrarmo-nostambmnessatreva superluminosa,paraveratravsdacegueiraedaignorncia,epara conhecer o princpio superior viso e ao conhecimento. Louvaremos o princpiosuperexistentedemaneirasupernatural,removendotodasas coisas: do mesmo modo pelo qual aqueles que modelam uma bela esttua aplainam-lheosimpedimentosquepoderiamobnubilarapuravisode suaarcanabeleza,sendocapazesdemostr-laplenamente,mediantea remoo. Ameu juzo, as negaes e as afirmaes devem ser louvadas comprocedimentoscontrrios:comefeito,afirmamos,quandopartimos dosprincpiosmaisoriginriosedescemostambmdosmembros intermdios s ultimas coisas; no caso das negaes, todavia, removemos tudo,quandosubimosdasltimascoisassmaisoriginrias,para conheceraignornciaescondidaemtodososseresportodasascoisas cognoscveis, e para ver a treva supernatural escondida por todas as luzes presentes nos seres. (PSEUDO-DIONSIO AEROPAGITA, 2005, p. 21-22, grifo itlico nosso). Esse trecho significativo para compreender vrios aspectos do discurso apoftico: a afirmao de uma realidade/princpio que transcende nossas possibilidades cognitivas de

2 Chamado assim porque, para emprestar maior autoridade a esses escritos surgidos no sculo V a.C, atribuiu-se a autoria quele Dionsio que o apstolo Paulo converteu com seu discurso no Arepago. Dionsio legou-nosumcorpusdeescritosqueabrangemaHierarquiaceleste,Hierarquiaeclesistica,Nomesdivinos, Teologia mstica e Epstolas. A partir das formulaes de Proclo, Pseudo-Dionsio rel o platonismo a partir deculoscristosepropeumaexperinciadeDeusporviaextticaqueserelacionacomummodode conhecer que simultaneamente supraintelectivo e suprassensvel. Sua obra influenciou grandemente toda a tradiodaapofticacrist,eapenascomoexemplotomemosDanteeaestruturahierrquicadoParaso. (SAMYN, 2007).Cleide Oliveira Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 199 apreensoe,aomesmotempo,opostuladodequesejapossvelummodode cognio/experinciadesseprincpioviauniodesubstnciashumanaetranscendente.E ainda,amenodametforadoescultorqueretiradamatriaaesculturadesejada removendo os excessos que nos impedem de v-la. Assim, o caminho que aqui se prope para a contemplao mstica incluiria a remoo de predicados que impedem a plena viso da deidade em toda sua beleza e incognoscibilidade, caminho que configura propriamente o mtododateologianegativa.Note-seque,paraPseudo-Dionsio,asteologiasafirmativae negativa no competem entre si ou se excluem, antes, so complementares e correlativas: a primeiradeordemdescendentenatentativadenomearDeus,vai-sedosnomesmais altosenobresatomaisinferior,nomeando-OcomooBem,oSer,aVida,aBeleza,o Saber,etc.;asegundateologiadeordemascendentevai-sedanegao(remoo)dos Nomes mais simples e humildes at um alm categorial, no Inefvel onde brilham as trevas divinas (SANTOS, 2004, p. 36). Se a teologia cataftica afirma de Deus que Ele o Bem, o Ser, a Beleza, a Verdade, o Saber..., a teologia negativa ir negar cada um desses atributos, dizendoqueElenooBem,oSer,aBeleza,aVerdade,oSaber...Nosetratadeuma contradio,alertaSantos,massimdeummtododesuperao:umaafirmaotrans-humana, pois seu objeto escapa a todas as categorias, a todas as nossas afirmaes e a todas as nossas negaes. A afirmao s valer na medida em que for penetrada pela prefervel negao,queorientadiretamenteparaoInefvel(SANTOS,2004,p.36-37).A,nesse lugarinabitado,Aintelignciaarrebatadaconstituiroestadoteopticoemqueo msticoexperimentaaDeus,produzindoassimumasimpatiacomarealidadeconhecida, obtendodeDeus,porconseguinte,nosomenteumsaber,masumaexperinciavivida (SANTOS,2004,p.40-41).Pelomtodoapoftico,oqueseconheceaignorncia escondida em todos os seres, e o Deus que se experimenta treva supernatural escondida por todas as luzes presentes nos seres. Ateologiaapoftica,essaficoiconoclastaconsideradaporDerridacomoa experincia mais pensante, a mais exigente, a mais intratvel da essncia da linguagem (DERRIDA,1995,p.34),testemunhaumncleoirredutvelesilencioso,umexcesso,ou, emtermosbataillianos,umapartemaldita,queretornaadinfinitum,falando silenciosamente sem comunicar produtivamente (BATAILLE, 1987, p. 56). Discurso que seerigesobreasuaprpriaruna,ateologiaapofticacoextensivateologiacataftica Temtica Livre Artigo: O aprendizado do no-saber na mstica de Angelus Silesius Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 200 (afirmativa),detalformaqueanegaonoprivativa,esimumasuperafirmaode excelncia:navia-crcisparapurificaodosconceitoshumanos,omtodoapofticofaz ummovimentoascendentedenegaodospredicados,dosmaissimplesaosmaisnobres, orientando-sediretamenteparaoInefvel,masnegandoqualquerpossibilidadede aproximaoconceitualdeDeus.Nenhumnomeadequadodivindadesuperessencial, noobstante,precisoatenderaSeuchamado,eirrecusvelcham-Lo,encontrarum Nome silencioso com o qual possamos ador-Lo, pois, como bem notou Derrida, a dupla viadaoraoedaadoraoquemarcaalinhadivisria,talvezopacamascomcerteza precisa, entre a teologia negativa e o niilismo. H a promessa de uma presena que permeia ateologianegativa,umaRefernciaabsolutaquenoapenaslegitimaessafalacomo tambm a torna possvel, e a essa presena que o mstico dirige sua orao, celebrao ou louvor,sendoessa experincia singular de orao/louvorqueguia seu discurso para longe detodanegaovaziaepuramentemecnica.3Oraoquenoumprembuloouum modoacessriodeacesso,masumchamamentoaessecompletamenteoutroqueconvida ao deserto, como veremos na citao de Derrida: Uma experincia deve guiar a apoftica at a excelncia, no deixar que digaqualquercoisa,evitarquemanipulesuasnegaescomodiscursos vazios e puramente mecnicos. Esta experincia a orao. A orao no aqui um prembulo, um modo acessrio de acesso. Aquela constitui um momento especial, ajusta a ascese discursiva, a passagem pelo deserto do discurso, a aparente vacuidade referencial que no evitar o mal delrio e a tagarelice a no ser comeando por dirigir-se ao outro, a ti. Porm a ti comoTrindadeSuperessencialemaisquedivina.(DERRIDA,1997, p.17).4

3Aquiest,anossover,oprincipalargumentodeDerridaquelesqueoacusamouoparabenizampor estar recuperando o mtodo da teologia negativa com a sua desconstruo. Sobre o assunto ele afirma: No lo queescribonodependedelateologanegativa.Enprimerlugarenlamedidaenqueestaperteneceal espaciopredicativoo judiciativodel discurso,a suformaestrictamentepreposicional,yprivilegianosolo a unidadindestructibledelapalabrasinotambinlaautoridaddelnombre,axiomastodosellosqueuna desconstrucindebe empezar por reconsiderar (cosa que he intentado hacer desde la primera parte de De la gramatologa). Despus, en la medida en que aquella parece reservar, msall de toda predicacin positiva, ms all de toda negacin, ms all incluso del ser, alguna especie de superesencialidad, un ser ms all del ser. (DERRIDA, 1997, p. 03)4 Una experiencia debe guiar todava la apfasis hacia la excelencia, no dejarle que diga cualquier cosa, evitar quemanipulesusnegacionescomodiscursosvacosypuramentemecnicos.Estaexperienciaesladela oracin. La oracin no es aqu un prembulo, un modo accesorio del acceso. Aquella constituye un momento especial, ajusta la ascesis discursiva, el paso por el desierto del discurso, la aparente vacuidad referencial que no evitar el mal delirio y la palabrera a no ser comenzando por dirigirse al otro, a ti. Pero a ti como Trindad Superesencial y ms que divina. (Traduo nossa). Cleide Oliveira Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 201 Assim,naleituradeDerrida,anegaoerecusadonome,aocontrriodoque parece, salvar o nome e constatar a transcendncia referencial da linguagem: Responder ao verdadeiro nome de Deus, ao nome ao qual Deus responde ecorrespondealmdonomesoboqualnslheconhecemosoulhe ouvimos.comessefimqueoprocedimentonegativorecusa,nega, rejeitatodasasatribuiesinadequadas.Elaofazemnomedeumavia de verdade e para ouvir o nome de uma voz justa. (DERRIDA, 1995, p. 55). ParaDerrida,ateologianegativa,esseprojetodefalnciadalinguagemessa pareceseramelhordefiniodeteologianegativaseriaumaespciedeestratgia cognitiva para se salvar o Nome de quaisquer ameaas especulativas e/ou cticas. Derrida parece minimizar o carter iconoclasta da teologia apoftica, ao contrrio de scholars como PauloBorges,paraquemaviaapoftica,namedidaemquebuscaumaexperincia transconceitual da realidade ltima, no ortodoxa ou conservadora, e sim um exerccio de pensamentoextremamenteradicalemsuapropostadeemanciparohumanodetodasas balizas conceituais e representaes que do sentido e estabilidade cognitiva a seu mundo. A citao abaixo, apesar de longa, sintetiza esse posicionamento de Borges: Poder-se-iadizerqueaverdadeltimadareligio,desveladapela mstica,amortedeDeus,vividanoscomoaextinodetodosos conceitoserepresentaesreligiososeteolgicos,mastambmcomoa ausncia,aabs-entia,anoentidade,avacuidade,dasupostaPresena absoluta(aqual,noutrosentido,podetambmservistacomoa ressurreiodeDeusdamorteinfligidasuaVidapelosmesmos conceitoserepresentaesreligiososeteolgicos).Assimsendo,epara dialogarapenascomuma dasemergnciasdo temadamortedeDeus nopensamentoocidental,cremosserestaprincipalmortedeDeus, inerente experincia ltima do que se designa como Deus, que permite compreenderoefeitodamortedeDeusproclamadapelolouco nietzcheano:Paraondevamosnsprprios?[...]Noestaremos incessantemente a cair? Para diante, para trs, para o lado, para todos os lados?Haveraindaumacima,umabaixo?Noestaremoserrando atravs de um vazio infinito? No sentiremos na face o sopro do vazio?. Noserafinal,essaexperinciadevazio,ausnciadefundoe refernciasconsequnciasdahumanaabdicaodaideiadeum absoluto princpio ordenador do mundo e da vida a prpria experincia desseabismo,fundosemfundo,desertoemoradaondeningummora queatradiomsticavivecomoaexperincialtimadetranscendera Deus? (BORGES, 2009, p. 6).Temtica Livre Artigo: O aprendizado do no-saber na mstica de Angelus Silesius Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 202 Discursoquevisaprpriatranscendncia,amsticaapofticaumafalaquese orientaparaadennciadeumvaziointrnsecolinguagem(representativa)eaomundo que dela se origina.Investindo contra as formas de cognio via representao, o discurso apofticoseorientaparaoesvaziamentodaspossibilidadesprevistasdecognio,ese caracterizaporserummododecontemplaronome(aalteridadedeDeus)quealterao fazerontolgico(ecomessetodasasformasdesdobradasdeconhecimento)(POND, 2003, p. 89). Transcendncia (do mundo, de si e de Deus) e no-saber AngelusSilesiusnasceunaPolnia,em1624,dentrodeumatradicionalfamlia luterana, tendo como nome de batismo Johannes Scheffer. O pseudnimo veio depois, com aconversoaocatolicismo(em1653,aos28anos),efazrefernciaaSilsia,suaterra natal, onde nasceu outro grande mstico, Jacob Bhme.TendoestudadomedicinaefilosofiaeminstituiesrespeitadasemLeyden (Holanda) e Pdua(Itlia), em 1649Scheffer nomeadomdicoparticulardo prncipe de ls, frequentando crculos msticos e ligando-se a Abraham Von Franckenberg, que possui forte sensibilidade religiosa de vis ecumnico, alm de reunir em torno de si um crculo de eruditos, alquimistas, intelectuais e msticos cujos interesses iam da alquimia literatura, da mstica medicina, da biologia metafsica. A influncia de Abraham Von Franckenberg intensa,apesardopoucotempodeconvivnciaVonFranckenbergmorreremfinsde 1652,eessedesempenharopapeldemestresocrticonainiciaodeSchefferno itinerrio mstico. Aps a morte do amigo e mentor, Scheffer herda sua biblioteca, prdiga em obras de msticos comoS. Boaventura, Ruysbroeck, Tauler, Suso, Toms de Aquino e Jacob Bhme, esse ltimo amigo ntimo de Von Franckenberg. Scheffer se demite do cargo demdicopessoaldoprncipedelseretornaparaBreslau,mergulhandonessasleituras msticas.Em 1653,emcircunstncias nomuito claras,Scheffer seconverte aocatolicismo, tomandoosacramentodacrismaeadotandoopseudnimodeAngelusSilesius (mensageirodaSilsia).AconversodeSilesiusacontecejuntamentecomaescritados Cleide Oliveira Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 203 livrosIII,IVeVdolivroViajantequerubnico,podendo-senotarnaobraum endurecimentodoutrinrioeumdeclniodapoesia.Em1661,elerecebeaordenao sacerdotal,tornando-seumardorosocombatentedoprotestantismo,esededicaaescrever livros panfletrios, de teor apocalptico e qualidade literria duvidosa, contra os pecadores e hereges protestantes.OViajantequerubnico(KerubimnischerWandersmann),comosubttulo EpigramasemximasespirituaisparalevarcontemplaodeDeus,organizadoem epigramascomdsticosrimadosemmetroalexandrino,formapoticainflexvelespera que parece adequar-se ao poema aforstico e sentencioso. Na anlise de Franke, o aforismo alexandrinoumaformapoticaminimalista,quedizomnimoparasugeriroTodo, trazendoparadentrodalinguagemagagueiraeosilncioadvindosdaexperinciado inarticulado, principalmente atravs do recurso da cesura, prpria dos versos alexandrinos.5 Emumadastraduesportuguesasqueusaremosparaamaioriadospoemas,origor estilstico do original alemo no adotado por Dora Ferreira da Silva, a poeta responsvel pelatraduo.EmpalavrasdaprpriaDora,atraduoportuguesatentasugerira estreitezadaformaemcontrastecomacargaexplosivadocontedo,havendo(...)uma opopelapobrezadaforma(corpo)veiculandoasuperabundnciadeumaexperincia msticaqueseprocessanoabismodaalma,numaespciedequenosepotica (LEPARGNEUR; SILVA, 1986, p. 67).PertencendomesmatradioapofticadeMeisterEckhart,asimagensdesrticas comparecem nos poemas de Silesius como figuras de uma necessria aporia: a necessidade de ir alm de Deus, ultrapassando toda forma de relao objetal entre um eu humano e um Tudivino.Veja-seoconjuntodeepigramasabaixo,emcujottulojficaclaroesse imperativo de transcendncia humano-divina: Devemos ir para alm de Deus Onde minha morada? Nem eu, nem tu l estamos.Qual o fim encontrado? Onde nada encontramos. Como prosseguir e o que fazer por certo?Ultrapassando Deus*, entrar pelo Deserto. (I, 7).

5Oprocessodecesurasignificaaquebraentreoprimeiro eosegundohemstico(queoconjuntode seis slabas poticas) de um verso.Temtica Livre Artigo: O aprendizado do no-saber na mstica de Angelus Silesius Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 204 Ouseja,paraalmdetudoqueseconhecedeDeusequedelesepode pensar,conformeacontemplaonegativa,sobreaqualvejam-seos msticos. (LEPARGNEUR; SILVA, 1986, p. 5) Note-sequeoaforismopropetrsperguntas,respondendoprogressivamentea cadaumadelas.Aprimeiraquestosobreessamoradaqueimperativoencontrar:a pergunta Onde minha morada? tem como resposta a constatao de que esse um lugar onde nem o eu nem o tu l se encontram, ou seja, essa morada um lugar que prescinde de toda relao objetiva e subjetiva, quer em se tratando de relaes intra ou inter-humanas queremsetratandodarelaohumano-divino.PauloBorgeschamaatenoparaa presena do verbosteben (estar) no versoNemeu, nem tu l estamos, notando o que h deinpermannciadesseeuedessetu,quenopodemserlidos,nainterpretaodoautor portugus,comoentidadesfixaseestticasemumamoradadeterminada,desdequeessa morada aparece como um acontecer que rejeita toda entificao, sendo ausente de objetos com os quais um sujeito se ponha em relao. (BORGES, 2009, p. 7).NovamenteaquiaideiadeultrapassarDeus,esquec-Lo,abandon-Lonamedida em que Ele seja objeto de conhecimento, compartilhando a mxima de Meister Eckhart de quesejaprecisopediraDeusquenoslivredeDeus.6IralmdeDeusabandonartoda possibilidade de relao eu/Tu e toda pretenso cognitiva, pois essa morada que j se possui e qual se deseja retornar tanto um no lugar onde nem eu, nem tu l estamos quanto umaespacialidadevaziaondenadaencontramos.preciso,portanto,voltaraseroque se . Naanlise precisade Paulo Borges(2009), trata-seaqui do mesmotema presente na msticadeEckhartedeoutrosmsticosapofticos:umaexperinciatransconceitualda realidade ltima que opera um retorno ao incriado ao abismo eterno do ser divino onde sujeito e divindade no maisexistem enquanto determinaes distintas entre si,em uma dupla abolio de todo referente possvel: o sujeito da razo e o Deus/linguagem/sentido.AsegundaquestoQualofimencontrado?dizrespeitoaofimquese encontra, ao encontrar tal morada. A resposta inquietante Onde nada encontramos situa definitivamente essa fala no gnero apoftico. Contrariando a compreenso mecanicista de quetodomovimento(humanoenohumano)sejaorientadoporumsentidoeuma teleologia,opoemanosfaladeumNadaquesedispecomohorizontetantodepartida quandodechegadaparaessemovimentoque,noobstante,essencialaomstico.

6 Tema tratado no sermo 52, de ttuloBem-aventurados os pobres...(ECKHART, 2004, p. 36) Cleide Oliveira Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 205 precisoumpercursomstico,umcaminharoperambulardaalmapelanoiteescura,em SanJuan;asadadaalmaparaqueDeusentreeofundodaalmasejaumcoma deidade abissal em Eckhart7 que seja desapropriante, de tal forma que, ao fim, o fim que seencontrasejaumnadaencontrar,postoquetodadeterminaofoiabandonada,no apenas as humanas (no sentido de uma ascese das paixes, dos saberes e da linguagem que tratada exemplarmente no mstico ibrico San Juan de la Cruz), mas tambm divinas (na medidaemquesejaprecisoperderDeusparadepoisencontr-Lo,comoapareceno poema eckhartiano) em um processo que Borges chama de transcender o transcendente.Oultimodsticopropenovasquestes,destavezrelacionadasaomtododesse percursoedessehabitarquesedesejounosprimeirosversos.Comoprosseguireoque fazer quando todas as balizas socioculturais e estabilidades cognitivas foram despedaadas contraesseabismosemfundo?Arespostaumaaparenteaporia:UltrapassandoDeus, entrar pelo Deserto. Aporia pois, afinal, como ultrapassar Aquele que limite e borda de todocognoscvel?SendoDeusofundamentodetodofundado,comoseriapossveldEle abdicar? A dissoluo dessa falsa aporia est na distino echkartiana entre Gott e Gottheit, sendo o primeiro o Deus percebido, entificado, e tornado objeto de f, dogma e teologia, e o segundo a Deidade anterior ao processo de distino entre as pessoas da Trindade e de criao do mundo e do humano. Transdivina divindade abissal, Gotheit um transcender de Gott,essedesertodepermannciadifcilaoqualprecisoretornar,recuperandouma identidadentimaeindissolvelentrehomemeDeidade.Borgesrelacionaodeserto metforaeckhartianadacentelhaoufundodaalma,aessefundoincriadoque comparado pelo Meister com uma terra estranha, desconhecida e inominada que nos habita, apesardenonospertencer.8Habitandooquenosmaisntimoetranscendendoatoda entificao,acentelha/fundodaalmaseencontranoquemenosdomsticoehabitvel,

7 Referncia ao Poema Granum Sinapsis, de Meister Eckhart.8 Veja-se o trecho do sermo 28 de Meister Eckhart: [Mas] en todo lo creado no hay como ya dije varias veces ningunaverdad. Hay una cosa que sehalla por encimadel ser creado del alma [y]a laquenotoca ninguna criaturidad que es [una] nada; no la posee ni siquiera el ngel que tiene un ser puro que es acendrado y extenso; hasta l no la toca. Ella es afn a la ndole divina, es una sola en s misma, no tiene nada en comn con nada. En cuanto a esta cosa muchos frailes insignes comienzan a cojear. Ella es una tierra extraa y un desierto, y antes que tener un nombre es innominada, y antes que ser conocida es desconocida. Si t pudieras aniquilarteporunsoloinstante,digoyoaunquefueraporuntiempomsbrevequeuninstante,te pertenecera todo aquello que [esta cosa] es en s misma. Mientras todava prestas alguna atencin a ti mismo o a una cosa cualquiera, sabes tan poco de lo que es Dios, como sabe mi boca de lo que es el color,y como sabemivistade lo queesel gusto: tanpoco sabesyconocestloqueesDios.(MAESTROECKHART, 2007).Temtica Livre Artigo: O aprendizado do no-saber na mstica de Angelus Silesius Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 206 onde nada nem ningum na verdade habita, pelo menos como algo ou algum (BORGES, 2009, p. 8). O desconhecimento como algo que seja prprio a Deus tratado em outros poemas deAngelusSilesius.Veja-seeste,cujottuloODeusdesconhecidodeinciofaz refernciatradioapofticainiciadapeloPseudo-Dionsio,maisespecificamenteao episdio da pregao de Paulo em Atenas, quando o apstolo, diante de um altar intitulado Aodeusdesconhecido,fazumapregaoqualseconverteogregoDionsio, confundidoposteriormentecomoautordessecorpusmsticoqueinfluencioutodaa tradio da apoftica crist. O Deus desconhecido O que Deus, no o sabemos. Ele no luz, no esprito.No verdade, nem unidade, nem um, ele no aquiloque chamamos divindade.No sabedoria, no intelecto, no amor nem querer nem bondade.Nem uma coisa, muito menos uma no coisa,No uma essncia, no um corao.Ele aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma criatura,antes de ter-se tornado aquilo que ele , jamais conhecemos. (IV, 21). Opoemaseiniciacomumaembaraosaconfisso,casosetratassedeumtexto confessional ou litrgico: oque Deus, no o sabemos. Essa assuno deuma ignorncia noultrapassvellembra-nosomtodomaiuticodeScrates,queproduzresultados cognitivosnegativosdadoquevisaumacoreografiaepistmicaentreascavernasdos conceitoseanoiteescuradoinarticulado.Assimtambmpareceprocederopequeno aforismo de Silesius. A afirmao inicial de que no sabemos o que Deus prossegue com umasriedenegativasqueOvoafastandoprogressivamentedaquelasimagensmais tradicionais da divindade. importante notar que a declarao seja a de que no saibamos o que Deus , e no quem Deus , j de incio demarcando um estranhamento ontolgico: no se trata aqui de uma pessoa ou de um sujeito, ainda que com prerrogativas divinas. Trata-se de um algo ou alguma coisa sobre a qual nosso discurso s pode se pronunciar negando-se. E as negaes se acumulam, alcanando definies clssicas da ontologia divina: no sendo luz,nemesprito,nemverdade,nemunidade,nemdivindade,nemsabedoria,nem intelecto, nem amor, nem bondade, nem uma coisa, nem uma no coisa, nem essncia, nem umcorao,oquepoderiaDeusser?Alis,seriapertinenteusartalcategoriadoSer Cleide Oliveira Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 207 parasefalardesseIssoquedeslizasobrenossalinguagemsemserapreendidoporela? ComonotadoporDerrida,Deusonomedessedesmoronamentosemfundo,dessa desertificaosemfimdalinguagem(DERRIDA,1995,p.37).umnomequeno nomeia nem afirma nada, ainda que, em se perdendo esse Nome, salvo o nome, por ele seja salvo todo nome, ou mesmo a prpria possibilidade de nomeao.Aofimdasnegativas,opoematerminacomumadeclaraoquecausamaior embarao ainda: em sendo algo que rejeita todos nossos culos epistmicos, a nica forma de conhecer o que seja Deus tornar-se tambm Deus, naquele processo de deificao que jmencionamosanteriormentequandocomentvamosamsticaeckhartiana,equeto centralemAngelusSilesius.Oconhecimentoqueaquiseexigeconhecimentopor participao,sendoprecisotornar-seumcomoUmparaentoconhec-Lo,prescindindo dasrelaessujeito-objeto,interior-exterior,superfcie-profundidade,essncia-existncia, etc.Conformenossoentendimento,umtaltipodeconhecimentopodeserdenominadode pensamentoecolgico,namedidaemquerejeitadeterminadospressupostoseconcluses doparadigmamecanicistaepropeummododeaproximaoentrecoisasquenoseja hierarquizadoe/oureguladoporpretensesdesuperioridade,bemcomoporessasfices toteisquesoasnoesdesujeito,objeto,objetividade,iseno,reprodutibilidadeda experincia, estabilidades conceituais...AindasegundoDerrida,omtodonegativopropeaexperinciadeDeuscomo espacialidadevaziaedesrtica,espaopuroeisentodetodahumanizaodeondea palavra (o verbo) pronunciada em um tempo imemorial, em uma eternidade que agora esempre,empermanentedevir,demodoqueapalavraestejasempreemviasdese tornar carne,mas sempre impronunciada. Veja-se o belo aforismo abaixo, no qual Derrida se apoia para tais consideraes: O lugar a Palavra Um so o lugar e o Verbo, e se o lugar no existisse (Pela eterna eternidade) tambm o Verbo no seria. (I, 205). Parasechegaraesselugar,faz-senecessrio,emconsonnciacomosdemais msticosqueestivemosanalisando,umitinerrionoqualospassosvosemsaberpara onde, os olhos veem sem saber o qu, e os ouvidos ouvem o som inexistente, Temtica Livre Artigo: O aprendizado do no-saber na mstica de Angelus Silesius Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 208 Deus fora da criatura Caminha onde no podes! Olha onde no vs! Ouve onde nada ressoa: estars onde Deus fala. (I, 199). apenasa,quandooimpossvelexperienciadoenquantoimpossibilidadede sensibilidadeecognio,queohomemmsticopodeestarnessaespacialidade indemarcvelnodesertoealiouviropronunciardoverboprimordial.Umfilosofema tambmimportantenamsticadeSilesiusodeempobrecimentoqueculminaemuma aniquilaodeificante.Otemadapobreza/nobrezadeespritoaquiretomadoemtermos muito prximos aos de Eckhart e San Juan de la Cruz, como se v nos epigramas abaixo: A impotncia que podeQuem nada deseja, nada tem, nada sabe, nada ama nem quer, Sempre muito mais tem, sabe, deseja e ama. (I, 45). E tambm: A nudez repousa em DeusFeliz o esprito no seio do Amado!Despido de si, de Deus, do mundo criado. (I, 130). Osparadoxos,toagostodosmsticosemanlise,soabundantesnessepequeno aforismo. Mais uma vez, o percurso mstico far exigncia pelo abandono de toda potncia humana,noapenasdeato,mastambmdedesejo,pulso.necessriotornar-sefraco pois,comoensinaoapstoloPaulo,quandoestoufracoquesouforte,9tendo,sabendo, desejandoeamando emplenaliberdade e desprendimento muito mais do que quando isso quesetem,sabe,desejaeamapartedemeuser.preciso,portanto,tudoabandonar: gelassenheit, deixar ser, deixar-se, desprender-se, liberar, liberar-se, palavra do vocabulrio eckhartianoqueficaimplcitanesseaforismoequeaparececlaramenteemoutroscomo: O desapego (gelassenheit) captura Deus: mas renunciar at mesmo a Deus/ um modo de desapego(gelassenheit)quepoucoshomenscompreendem(II,92).Osimperativos continuam, e j so nossos conhecidos: exige-se uma nudez absoluta, pura e radical para se teracessoaoternorepousonosbraosdoAmado,metforaamorosaqueretornae restabelece, na potica de Angelus Silesius, os mesmos topoi do encontro amoroso divino-

9 Segunda Carta aos Corntios, 12, 10 (A BBLIA DE JERUSALM, 1985).Cleide Oliveira Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 209 humano to caros s beguinas, a San Juan de la Cruz e a outros msticos ibricos. Despir-se de si mesmo, da prpria subjetividade, dos desejos, das pulses, das heranas culturais, dos pressupostos e conceitos. Despir-se domundo criado, da beleza, da dor, do sofrimento, do medo,daspaixesqueeledesperta.Despir-seporfimdoprprioDeus,dasideiasedos enganosqueporventuranossodesejodepresenapossaterprovocado:abandon-Lo, deix-Loir,estars,nu,fracoerepousadofrenteaesseIssoqueapenaschamamosDeus pela necessidade irrecusvel de ainda cham-Lo.Aniquilar-se.Tornar-senada,eisao(quase)fimdaexperinciaedessepercurso mstico, exceto pelo fato de que o fim ponto de origem, sendo esse caminhar um retorno quelemomentoprimeiroemqueopr-sujeitoestavaplenamenterepousadonaDeidade puraesemdistines,emumgozoeternoimemorial:UmpuroNada,sempresenteou passado: a beatitude dohomem deificado!(II, 92), e tambmA doce divindade nadae menos que nada: / quem nada v em tudo, acredita, homem, v bem! (I, 111). O Nada que aquiseconvocanodevesercompreendidoemtermosessencialistas,sendo,portanto, inconfundvelcomonoSer,remetendoantesparaanoodeausncianoprivativaou negativa,ereferindo-seaoincriadoenonascido.PauloBorgestrazmemriao substantivo feminino nonada: no nada, mas tambm bagatela, insignificncia, ninharia, e pe em destaque o fato de que o que vocbulo afirma no a negao do ser ou do ente, e sim a ausncia de determinao ontolgica, e mesmo de transcendncia da mesma. Onadaindicaoqueestantesealmdoser,conformeasua procedncia, nas duas lnguas ibricas, da expresso latina nulla res nata, ouseja,ainstnciaanteriormanifestaoou,maisexplicitamente,o nonnatum,ononascido,onomanifestado,onodeterminado,o incondicionadoeincriado:naverdade,apesardestasexpressesainda negativas, prprias dos limites onto-lgicos do conceito e da linguagem, aquiloquenoestcondicionadoporserouseralgonempelasua negao.Onadaindicaaquiloquetranscendeodomnioondese constituemeoperamdialecticamente os conceitos dualistas de ser e no ser,indicandooquetranscendetodasaspossibilidadesdapredicao lgica: ser, no ser, ser e no ser, nem ser nem no ser; A, no A, A e no A, nem A nem no A (BORGES, 2006, p. 9). Temtica Livre Artigo: O aprendizado do no-saber na mstica de Angelus Silesius Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 210 Transcendncia que exige prvia aniquilao: A aniquilao de si mesmo Nada te eleva mais acima de ti mesmo que a aniquilao: Quem mais aniquilado tem em si mais divindade. (II, 140). No aforismo acima, Silesius faz meno a uma gradao desse aniquilamento que se prope a alma mstica e, nesse caso, menos mais: quanto menos se em si mesmo, mais se possui da centelha divina. A aniquilao suprema, objetivo final do mstico que preciso entenderenquantoidealidadeaconduzirumaprxisque,excetoemraroscasos,nuncase esgota,10sinnimodeplenadeificao,confusodesubstnciasquelevaSilesiusa exclamar, beira do escndalo dos fracos: Sou criana e filho de Deus. Ele meu filho: / entocomopodemosambos,serosdois?(II,250).Perguntadifcilessa,qualnos recusamos seguindo conselho do prprio Silesius, que afirma em outro dstico: Tu mesmo deves s-loNo perguntes o que divino! Pois se no o s, Mesmo que disso te falem, meu cristo, no o sabers. (II, 142). A questo que aqui comparece a declarao de impossibilidade para o saber sobre Deus, declarao paradoxalmente vinculada ao postulado de que seja possvel experienciar, noprpriocorpo,oqueDeuspormeiodeumprocessomsticoqueconjuga desprendimento(abegescheidenheit)eabandono(gelassenheit)desi,domundoedo prprioDeus-percebido-e-relacional,aniquilaoedeificao.EntendendoDeuscomo um claro relmpago e tambm escuro nada,/ que nenhuma criatura v com sua prpria luz (II,146),Silesiusnosdumapoderosapistaparacompreenderessediscurso(apoftico) que se erige sobresua prpriaruna,teimandoem falar daquilo que nopodeser dito. Na mesma medida estranha e inquietante que claro relmpago, bela imagem desse corte que rasga o corpo da linguagem e imprime no mundo as marcas de nosso desejo e necessidade deinteligir,Deustambmescuronada,noiteescuraqueconfunde,atordoa,embaraa os sentidos e rouba a capacidade de movimento e ao nesse mesmo mundo. Um Deus que

10Estamospensandoaquiemalgunsmsticosquelevaramsltimasconsequnciasessaautoaniquilao, comoabeguinaMargueritePorete,queimadavivapelaInquisioem1310emfunodeseusescritos considerados herticos pela Igreja de ento.Cleide Oliveira Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 211 noite, abismo e deserto11 pouco se presta a servir de fundamento para nossas pretenses megalomanacas de saber/poder que menosprezam o fato de que, para alm do poder, saber tambm gozo,12 tantas vezes intil e dispendioso. Consideraes finais Alimentandonossodesejodeimpossveis,aliteraturaapofticaseoferececomo uma poderosa linguagem que teria o poder de dizer o ser do mundo justamente porque se recusaadiz-lo,porqueseobstinaemnegaressemesmoNomeaoqualnosecansade chamar.Discurso destinado ao exlio e aodeserto, confessaDerrida. Entretanto, apesar da aparentecontradio,amsticaapofticanosofereceummodelodepensamentoquese mostrabastanteprodutivoparaummundodespovoadodedeuses,poisesseum pensamentoquenoseimobilizaemdoutrinasedogmas,masque,reconhecendoa impossibilidade do conhecimento o nico conhecimento possvel a negao do conhecer ainda assim demanda uma prxis compartilhada (a orao, o louvor). Assim,oqueamsticaapofticaparecenosmostrarque,quandoperguntamos pelo nome de Deus nome facilmente substituvel pelos termos linguagem, real, sentido... , a nica coisa que poderemos encontrar o prprio nome que chamamos, o que teremos aindaoquejtnhamos:apenasumaespacialidadevazia,umdesertoinabitadoouum abismo sem fundo restar como princpio e fundamento a nosso chamado. O que subsiste soNome,aoqualchamamosporforadenossafcompartilhadaemumethoseuma prxis humana. Referncias A BIBLIA DE JERUSALM. So Paulo: Edies Paulinas, 1985. BATAILLE, George. O erotismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987.

11Essassometforasbastantecomunsnamsticaapoftica,eforamexploradaspeloautoremsuatesede doutorado j citada.12Lembremosquea palavrasaberveiodolatimvulgarsapere tersabor, bom paladar,sentir oscheiros migrando depois para sabidus, sbio, aquele que percebe o mundo de modo organizado, usando os sentidos e a intuio. Conforme notaes etimolgicas de Deonsio da Silva (2009).Temtica Livre Artigo: O aprendizado do no-saber na mstica de Angelus Silesius Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 212 BORGES, Paulo. Do bem de nada ser. Supra-existncia, aniquilamento e deificao em Margarida Porete. Metabasis, septembre 2006, ano I, n 2, p. 09. BORGES, Paulo. Transcender Deus: de Eckhart a Silesius. Revista Philosophica do Departamento de Letras da Universidade de Lisboa. Anselmo sola ratione 900 anos depois. Lisboa: Edies Colibri, 2009. DERRIDA, Jaques. Como no hablar: denegaciones. Cmo no hablar y otros textos. Traduccin de Patricio Pealver. Proyecto A, 1997, pp. 13-58. Edicin digital de Derrida en castellano. DERRIDA, Jaques. Salvo o nome. Campinas: Papirus Editora, 1995. ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos/ Mestre Eckhart. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2004. FRANKE, William. Edited with theoretical on critical essays. On what cannot be said. Vol. I. Formulations classics. University Notre Dame Press, 2007. LEPARGNEUR, Hupert; SILVA, Dora Ferreira da. Angelus Silesius. A mediao do nada. So Paulo: T.A. Queiroz, 1986. MAESTRO ECKHART, 2007) . Tratados y sermones. Recopilacin y Traduccin de Ilse M. de Brugger. Edicin original - Buenos Aires 1977; Edicin Electrnica - Buenos Aires 2007. Accesible por: http://www.laeditorialvirtual.com.ar/Pages/MeisterEckart/00_Indice.htm. Acessado em fevereiro de 2008. PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caieiro. So Paulo: Companhia das Letras, 2005. PSEUDO-DIONSIO AREOPAGITA. Teologia Mstica. Traduo Marcus Lucchesi. Rio de Janeiro: Fissus, 2005. PONDE, Luiz Felipe. Elementos para uma teoria da conscincia apoftica. Revista de Estudos da Religio. N 1, 2003, pp. 74-92. SAMYN, Henrique Marques. O smbolo contra o texto: Pseudo-Dionsio Aeropagita e a irrepresentabilidade divina. Revista Mirabilia, n 7, dez, 2007, pp.29-38. Acessvel por: http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num7/numero7_2.html, acessado em 07.10.2009. SANTOS, Bento Silva. Introduo. PSEUDO-DIONSIO AEREOPAGITA. Dos nomes divinos. Introduo, traduo e notas de Bento Silva Santos. So Paulo: Attar, 2004. SILESIUS, Angelus. O peregrino querubnico. Traduo Ivo Storniolo. So Paulo, Paulus, 1996.Cleide Oliveira Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p. 196-213, jun./set. 2010 213 SILVA, Deonsio da. Etimologias. Acessvel por: http://www.caras.com.br/edicoes/806/textos/10741/, acessado em 25.01.2009 VEGA, Amador. Esttica apoftica y hermenutica del misterio: elementos para una critica de la visibilidad. Diania, vol. LIV, n 62 (mayo 2009), pp. 3-25. VEGA, Amador. Experiencia mistica y experiencia estetica en la modernidad. La experiencia mistica: estudio interdisciplinar. Madri: Editorial Trotta, 2004.