desligue o projetor e espie pelo olho mágico · otÁvio (desligando o chuveiro) – que se alguém...
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PERSONAGENS
OTÁVIO – Estudante de Direito, idade entre 24 e 26 anos, com gestos
suaves e femininos, veste-se não muito discretamente.
ARMANDO – Estudante de Comunicações, usa barbas longas, idade
entre 25 e 27 anos, discreto no vestir-se, bastante comedido
e recatado, ficando sempre mais à vontade quando só ou na
presença de Otávio.
SUZANA – Prostituta vinda do interior do Paraná, cujo ideal é ser atriz,
idade entre 23 e 27 anos, veste-se de maneira indiscreta
porque gosta, usando roupas comuns apenas na presença
do pai ou quando lhe são impostas. De caráter duvidoso,
mas realista, está sempre pronta a revidar qualquer
argumento ou diálogo que não seja do seu agrado.
SEVERINO – Pai de Suzana, de aparência rude, reside no interior do
Paraná, preserva a moral da família, embora brincalhão e
simplório.
MARGÔ – Ex-atriz, mãe de Armando, veste-se sempre com muito mau
gosto e exagero. Veio recentemente do interior de
Pernambuco para morar no Rio de Janeiro. Seu sonho é
poder um dia voltar a ser atriz.
VANESSA – Irmã de Otávio, noviça de uma Irmandade, esconde um
passado que gostaria de esquecer. Aproximadamente 20
anos.
FERNANDO – Irmão de Armando, estudante de Comunicações, muito
extrovertido, de aproximadamente 20 anos, alegre e
brincalhão.
CENÁRIO
Apartamento comum, com certo conforto, mas não luxuoso,
contendo: uma pequena biblioteca, uma sala de visitas e de jantar
conjugadas, com a porta de entrada dando para esta sala, uma
janela com venezianas, uma cozinha pequena e duas portas
subentendendo-se que uma delas dará para o quarto e a outra para
o banheiro. A distribuição dos móveis e objetos de cada
compartimento ficará a critério do cenógrafo e da direção do
espetáculo, obedecendo sempre às necessidades do texto.
PRIMEIRO ATO
Pano abre. Entra Otávio.
OTÁVIO (Entrando com alguns livros debaixo do braço e alguns
cadernos na mão, coloca-os em uma estante próxima.
Quando passa por uma janela, que está aberta ouve
xingos, para imediatamente diante da janela aberta) – O
quê?... Ah! Vai você... Vai cuidar do seu feijão..., safadona!
(Fecha rapidamente a janela). Essa é boa!... (Vai em direção
ao banheiro, arrepende-se e para). Espera aí..., isso não
pode ficar assim. (Volta, abre a janela e grita). Bicha é a puta
que te pariu... É isso mesmo... Ah!... Vá... Vá... Vá... Vá: suas
piranhonas sem-vergonha... (Toma fôlego). Sapatão! (Fecha
imediatamente a janela). Agora sim, estou vingado. (Vai para
o banheiro, fecha a porta atrás de si e começa a cantar
uma música qualquer, de preferência antiga. Ouve-se o
barulho do chuveiro. Continua cantando). Nossa! Que água
gelada! No dia em que esse chuveiro esquentar eu viro Liza
Minelli.
ARMANDO (Entra com alguns livros e cadernos debaixo do braço,
um fichário na mão e os coloca na mesma estante. Está
vestindo paletó e gravata. Percebe os pertences de Otávio
na estante, olha para o banheiro, ouve o barulho do
chuveiro e Otávio cantando. Vai em direção ao banheiro.
Otávio continua cantando. Armando batendo na porta do
banheiro) – Oi, Tatá... Tudo bom?
OTÁVIO (Parando de cantar) – Armando?... Ué?... Você já chegou?
ARMANDO – Não: eu ainda estou na faculdade.
OTÁVIO (Com desdém) – Ah! Ah! Ah!... Que ótima essa piada! Agora
conta outra, Armando.
ARMANDO (Sorrindo, tira o paletó e a gravata e os coloca no
quarto, cuja porta deverá ser ao lado da porta do banheiro,
voltando em seguida. Otávio continua cantando. Armando
aproxima-se, novamente, do banheiro, batendo à porta) –
Você está tomando banho?
OTÁVIO – Não: estou estourando pipoca.
ARMANDO (Sorrindo, vai preparar uma bebida) – Sabe?... Eu hoje
saí da redação do jornal e, antes de ir pra faculdade, passei na
Fotótica e peguei os slides...
OTÁVIO (Gritando do banheiro) – O quê?... Fala mais alto!
ARMANDO (Mais alto) – Eu passei na Fotótica antes de ir pra
faculdade e peguei os slides...
OTÁVIO (Sai só com a cabeça para fora do banheiro, usando uma
touca bem feminina) – O que foi que você disse?
ARMANDO – Eu trouxe os slides que nós tiramos na viagem...
OTÁVIO – Ah! Sei... Ficaram bons?
ARMANDO – Eu sei lá! Só vendo.
OTÁVIO (Entrando no banheiro novamente) – Eu nunca vi ninguém
pagar slides sem saber se ficaram bons ou não. Só você
mesmo, Armando.
ARMANDO (Gritando) – O quê? (Otávio não ouvindo Armando,
continua cantando mais um pouco. Armando aproxima-se
até a porta do banheiro). O que você falou?
OTÁVIO (Desligando o chuveiro) – Que se alguém chegasse pra mim
e me perguntasse: (imitando) imagine só quem pagou uma
fortuna numa loja de São Paulo, pra revelar uns slides, sem
saber se eles ficaram bons ou não? (Sai do banheiro,
vestindo um roupão de banho, com uma toalha na mão).
Eu já responderia na hora, sem pensar: (categórico) o
Armando!
ARMANDO – Ah! Como você é trouxa mesmo, não?
OTÁVIO (Indo em direção à cozinha) – Ah! Sei... (Sarcástico). Tem
razão, querido, o esperto... É você!
ARMANDO – Não, não é isso! É que se não saiu legal, eles nem
revelam... (Vai atrás de Otávio na cozinha).
OTÁVIO – Tá bom, Armando. Logo mais você vai projetar e nós vamos
ver a obra-prima da fotografia brasileira. (Tempo). Você vai
tomar banho?
ARMANDO – Vou.
OTÁVIO – Então vá logo e veja se não demora que eu estou com fome.
(Começa a preparar o jantar).
ARMANDO (Indo para o banheiro) – Tá legal... (Tempo). O que foi que
você fez de janta?
OTÁVIO (Irritado) – Um banquete para 150 pessoas!
ARMANDO – Pô!... Mas que bicho te mordeu hoje?
OTÁVIO (Mais irritado, tentando controlar-se) – Nenhum... Não foi
mordida, foi chifrada.
ARMANDO (Parando na porta do banheiro) – Ei! Mas o que é que há?
OTÁVIO – Porra, Armando! Eu cheguei cinco minutos antes de você e
você vem me perguntar o que é que tem de janta?... (Tempo).
O que é que você sugere que eu responda?
ARMANDO – Bom... Eu não sou obrigado a adivinhar a hora que você
chegou..., ou sou? (Volta para a cozinha).
OTÁVIO – Claro que não! Mas se você pensasse um pouco, você veria
que se o jantar estivesse pronto, deveria ter, pelo menos, um
cheirinho de comida no apartamento..., ou não?
ARMANDO (Meio aborrecido) – Ah! Sei lá, Otávio... Você tem cada
coisa que... (indo para a janela), que realmente não dá pra
gente entender, (abre a janela) sabe?...
OTÁVIO (Imediatamente, gritando) – E não abra essa janela!
ARMANDO (Fechando rapidamente a janela) – Por quê? O que foi
que aconteceu? (Otávio arruma a mesa, nada
respondendo). O que é Otávio? Você está louco?... (Tempo).
Não me diga que você vai querer que eu fique dentro deste
apartamento com todas as janelas fechadas e com o calor que
está fazendo hoje?
OTÁVIO – Não..., não é isso..., é que..., eu briguei aí com uns
vizinhos..., e..., (continua arrumando a mesa, pondo pratos,
talheres, etc.).
ARMANDO (Sério) – Quando? Hoje?
OTÁVIO (Sempre arrumando a mesa) – É..., coisa simples...,
besteira...
ARMANDO – De manhã?
OTÁVIO – Não... (Receoso). Agora há pouco...
ARMANDO – Ah! Quer dizer que pra fazer o jantar você não teve tempo,
mas pra brigar com a vizinhança, houve tempo de sobra, né?
OTÁVIO – Bom, Armando... (Quebra ovos em um prato, batendo-os
em seguida, para fazer uma fritada). Não fui eu quem
provocou... (Armando olha furioso). Juro!... Pelo contrário!
Eu fui provocado, me xingaram! (Tempo). Aí eu xinguei
mesmo, você me conhece, né? Se me provocam, eu já logo...
ARMANDO (Irritado) – Mas você não disse que tinha chegado cinco
minutos antes de mim?
OTÁVIO – Disse. E cheguei mesmo! (Tempo). Ou você está achando
que eu estou mentindo?
ARMANDO – Não, não é isso! É que..., é que você é a única pessoa
neste mundo capaz de chegar em casa e em menos de cinco
minutos já estar brigando com os vizinhos...
OTÁVIO (Tentando sorrir, coloca os ovos batidos numa frigideira e
põe no fogo) – Bom... Mudando de assunto. (Tempo). Você
vai ou não vai tomar logo esse banho? Eu estou morrendo de
fome!
ARMANDO – Não vamos mudar de assunto, não senhor! (Tempo).
Quem são os vizinhos? (Otávio abaixando e levantando,
resmunga algo que ninguém entende). Quem? (Otávio,
novamente, abaixa-se e levanta-se, falando
inaudivelmente. Armando irritado). Otávio: eu não entendi.
OTÁVIO – As piranhas do AP 21.
ARMANDO – Eu tinha certeza disso... (Tempo). Puta merda! Quantas
vezes eu já disse pra você não falar com essas vaquinhas aí
de cima?
OTÁVIO – Mas eu não falei.
ARMANDO (Ironicamente) – Não.
OTÁVIO – Eu xinguei.
ARMANDO – O que é muito pior! Eu já disse pra você mais de mil vezes
que com esse tipo de gente não dá pra se levar papo. É uma g
ente sem escrúpulos, ignorante... (Tempo). Será que você não
entende? (Tempo). Bom..., eu vou tomar banho. (Vai indo
para o banheiro).
OTÁVIO – Mas foram elas que me provocaram...
ARMANDO (Indo para o banheiro, de costas para Otávio) – Mesmo
assim, poxa! Quando acontecer isso, você finge que não ouve
e pronto! É a melhor coisa.
OTÁVIO (Sem Armando ver, dá-lhe uma banana) – Tá legal. (Toca o
telefone. Armando, nesse momento vira-se para Otavio.
Otávio disfarçando a banana finge espantar mosquitos).
Nossa!... Este apartamento está cheio de mosquitos...
ARMANDO (Referindo-se ao toque do telefone) – Veja se não inventa
de sair hoje, tá?
OTÁVIO – Hum, hum! (Armando entra no banheiro. Otávio
atendendo ao telefone). Alô!... (Dá um número de telefone).
É... Oi, tudo bem?... Tudo bem... Ahn? Hoje?... Acho que não
vai dar..., não, não é frescura, é que o Armando trouxe os
slides de nossa última viagem e nós combinamos de passar
hoje... (Armando abre o chuveiro. Otávio percebe e fica
mais à vontade no telefone). Mas logo hoje? Hoje não vai
dar, ele já ficou nervoso aqui porque eu briguei com aquelas
piranhas do apartamento 21, sabe?... Não! Aquelas do andar
de cima e que a janela da minha sala dá de frente pra cozinha
delas... É... Puxa vida! Se são... Claro! Mas eu não deixei
barato, me xingou, eu xingo mesmo... De bicha... É... De
sapatão... Não, não deu tempo, eu xinguei de sapatão e já
fechei logo a janela na cara delas... Nossa! Se devem... Não,
agora só amanhã que eu vou saber... Se ficou? Nem queira
saber, falou uma porção de coisas, disse que é pra eu não me
meter com esse tipo de gente, que ele já está cansado de
avisar, que eu só vivo criando confusão... É, acha, ele acha
que eu devo fingir que não escuto... Claro que não, eu não sou
bobo, eu finjo que não vou mais brigar e ele acaba
acreditando. Pois sim, vai nessa!... Me admiro você dizer uma
coisa dessas. Você me conhece, você acha que eu sou de
ficar quieto?... Lógico: elas que venham me aporrinhar, que
elas vão ver só, não fica um vidro no apartamento delas!
Destruição total! Mas nem a bomba de Hiroshima destruiu
tanto... Mas não tenha dúvidas... (Armando desliga o
chuveiro. Otávio percebendo). Olha Cláudia: o Armando vai
sair do banho, depois eu te ligo, tá?... Claro que conto, conto
tudo... Lógico... Tá bom. Ah olha e obrigado pelo convite do
teatro, quem sabe amanhã, né? (Armando sai do banheiro
vestindo um roupão. Otávio continuando). Ótimo!
Combinado. Pra você também. E um beijão na tua mãe. Tá:
dou sim, obrigado. Tchau! (Desliga o telefone).
ARMANDO – Quem era? (Senta-se à mesa para o jantar).
OTÁVIO – A Cláudia. (Indo para a cozinha pegar a fritada).
ARMANDO – Que Cláudia?
OTÁVIO – O Cláudio que foi caso do César. (Vindo com a fritada na
frigideira e um prato na mão).
ARMANDO – Ah! O Cláudio. (Fica irritado). Que mania que você tem
de falar o nome dos homens como se fosse de mulheres!
OTÁVIO (Coloca a fritada no prato e põe à mesa) – Que homens?
Tudo bicha... Imagine! Nem vem que não tem, hein? (Corta a
fritada no meio, põe uma parte em cada prato).
ARMANDO – Você sabe que eu não gosto disso.
OTÁVIO – Olha! Tem um montão de coisas também que eu não gosto e
você faz. (Começa a comer).
ARMANDO – O que, por exemplo? (Comendo a fritada).
OTÁVIO (Sempre comendo) – Mil coisas.
ARMANDO – Mas me dá um exemplo!
OTÁVIO – Ah! Sei lá... Tem um montão...
ARMANDO – Um exemplo, sim?
OTÁVIO (Para, repentinamente, de comer, mostrando a comida no
prato) – Fritada de ovo. Eu detesto, mas faço porque você
gosta.
ARMANDO – Mas eu nunca obriguei você a comer fritada.
OTÁVIO – Mas eu como.
ARMANDO – Porque é burro. Faça outra coisa pra você.
OTÁVIO – Não faço.
ARMANDO – Por quê?
OTÁVIO – Porque tenho preguiça. E depois, detesto cozinhar! Por mim,
eu comeria sempre fora.
ARMANDO – É..., mas não vai comer fora, não senhor.
OTÁVIO – Eu sei disso. (Tempo). Tá contente agora?
ARMANDO – Contente com o quê?
OTÁVIO – Com o exemplo que eu dei. Eu disse que tinha mil exemplos
a dar. Pois bem! Tenho mais novecentos e noventa e sete.
ARMANDO – Novecentos e noventa e nove, burro!
OTÁVIO – Novecentos e noventa e sete, porque eu já matei três
coelhos com uma cajadada só. Numa frase, dei três exemplos:
(enumerando nos dedos) detesto fritada, detesto cozinhar e
adoro comer fora. (Tempo). E faço tudo ao contrário.
ARMANDO – Bom... (Terminando de jantar). Eu já acabei. (Tempo).
Só tem isso?
OTÁVIO – Só. Eu cheguei agora há pouco, não deu tempo pra fazer
outra coisa.
ARMANDO – Cadê a sobremesa?
OTÁVIO – Que sobremesa? (Começa a tirar a mesa).
ARMANDO – O doce de abóbora.
OTÁVIO – Acabou. (Tempo). Você comeu o restinho que tinha hoje no
almoço, esqueceu?
ARMANDO (Lembrando-se) – Ah! É verdade! (Tempo). Então traz o
café.
OTÁVIO – Não tem café. Acabou o pó e eu me esqueci de comprar.
ARMANDO – Então vai buscar.
OTÁVIO (Mais irritado) – Nem morta! Imagina! Tá louco?
ARMANDO (Nervoso) – Porra! Você sabe que eu gosto de tomar café
depois das refeições.
OTÁVIO – Eu também gosto, mas acabou o pó e o que é que eu vou
fazer?
ARMANDO (Gritando) – Relaxamento!
OTÁVIO (Cortando) – Ah! Vá à merda! Por que não comprou você?
ARMANDO – E eu lá vou saber se tem ou não tem pó de café?
OTÁVIO (Mais irritado) – E por que é que eu tenho que saber se tem
ou não tem?
ARMANDO – Porque é você quem cozinha.
OTÁVIO (Sempre irritado) – Porque você é um vagabundo.
ARMANDO (Nervoso) – Não, senhor! Porque eu trabalho fora e você
não.
OTÁVIO (Gritando) – E o que é que tem que ver o cu com as calças?
(Tempo). Eu não trabalho porque o meu pai me manda
mesada no fim do mês. (Tempo). Mas pago a metade de
todas as despesas, ou melhor, pago exatamente a mesma
quantia que o senhor. (Tempo). E se o senhor trabalha fora é
porque quer.
ARMANDO (Sempre nervoso) – Absolutamente! O senhor sabe
perfeitamente que eu trabalho porque preciso.
OTÁVIO – Azar o seu! Eu não tenho nada que ver com isso. (Tempo).
Ora, onde já se viu? Detesto cozinhar, cozinho só para você
fazer economia e ainda por cima me vem com exigências?
(Irritadíssimo. Tempo). Não tem café: vire-se! (Armando,
extremamente aborrecido, levanta da mesa, senta-se numa
poltrona e começa a folhear um jornal. Otávio, sempre
tirando a mesa. Quando percebe o aborrecimento de
Armando começa a se arrepender e tenta o diálogo). Você
nem perguntou o que o Cláudio queria. Sabe o que era? Ele
nos convidou para ir ao teatro. Sabe: estreou uma peça ótima
na semana passada. Comédia. Daquelas que você gosta.
(Tempo). Mas eu disse pra ele: (como se estivesse
conversando com o Cláudio) hoje não, o Armando foi buscar
os slides de nossa viagem e nós vamos vê-los esta noite.
(Tempo). Quem sabe amanhã? Né? (Tempo). Você vai
projetar os slides? (Tentando sorrir). Armando? Eu estou
falando com você! Você vai ou não vai passar os slides?
ARMANDO (Que permaneceu lendo o jornal durante todo esse
tempo, com essa pergunta de Otávio, desvia os olhos do
jornal e, timidamente, pergunta) – Você quer?
OTÁVIO (Suspira, levemente, sorrindo) – Quero.
ARMANDO (Fechando o jornal, coloca-o de lado) – Tá legal. Eu vou
pegar o projetor e os slides.
OTÁVIO (Alegre) – Ótimo! Então, enquanto você monta o projetor e
coloca os slides, eu vou dar um pulinho no ap. da Dona Marta.
ARMANDO – Que Dona Marta?
OTÁVIO – Aquela, do quarto andar, que tem o marido doente.
ARMANDO (Intrigado) – Qual?
OTÁVIO (Continuando a explicar, sem se alterar) – Aquela que usa
bengala...
ARMANDO – Ah! Sei. (Tempo). Mas o que é que você vai fazer lá?
OTÁVIO – Eu vou pedir pra ela me emprestar um pouco de pó de café.
ARMANDO (Meio sem graça) – Não... Besteira, deixa pra lá.
OTÁVIO – É rápido, dois minutos. (Tempo). E depois, amanhã eu vou
ter que comprar mesmo. Devolvo pra ela, tá? Eu volto já.
(Saindo). Tchau!
ARMANDO – Tchau! (Otávio sai. Observação: neste momento pode
haver um blecaute, com transição musical, ou então
Armando poderá realmente montar o projetor de slides,
ficando a marca dessa cena a critério da direção do
espetáculo. Quando o projetor já estiver montado, entra
Otávio).
OTÁVIO (Entrando com um copo cheio de café já coado em uma
das mãos e um pouco de café na outra) – Olha só, que
sorte, Armando. A Dona Marta, além de me emprestar o pó,
me deu um pouco de café já coado. É só esquentar um
minutinho, e pronto! (Vai para a cozinha e esquenta o café
em uma caneca).
ARMANDO (Enquadrando a tela do projetor na altura exata) – Então
não demora que aqui já está tudo pronto.
OTÁVIO (Da cozinha) – Tá. (Tempo). Ah! Armando: sabe a maior?
Quando eu bati na porta do ap. da Dona Marta, tinha uma
carta no batente da porta para o marido dela. E eu fiquei
horrorizado com o sobrenome deles. (Tempo). Sabe como é?
ARMANDO – Não. Como?
OTÁVIO – Imagine só! Carvão! (Ri). Você já pensou uma pessoa se
chamar Carvão? (Rindo). Ai! Deve ser de lascar, hein?
ARMANDO – Nem tanto... Combina com a cara dela (rindo) e com a
bengala, que ela usa também. (Tempo). Afinal de contas,
Otávio, você vem ou não vem?
OTÁVIO – Já... Já.
ARMANDO (Acende o projetor) – Então vem logo.
OTÁVIO (Tirando o café do fogo, coloca-o em duas xícaras) –
Prontinho! (Vindo para a sala com as xícaras, entrega uma
para Armando). Toma. Não vai queimar a língua.
ARMANDO (Toma um gole, vai até o interruptor e apaga a luz) –
Hum!... Tá uma delícia...
OTÁVIO – Não fui eu que fiz. (Senta-se).
ARMANDO – Eu sei. Por isso mesmo... Otávio: apaga a luz da cozinha.
(Otávio levanta-se, abre uma gaveta, pega um crochê já
começado, vai apagar a luz na cozinha, volta e senta-se
novamente. Durante o trajeto de Otávio, Armando continua
falando). Quanto você quer apostar que os slides saíram
bons?
OTÁVIO – Um jantar. (Tempo). Fora, naturalmente.
ARMANDO – Tá legal. (Começa a projetar os slides. Os dois
começam a comentar os slides).
OTÁVIO (Num determinado momento) – Nossa! Como eu fiquei
horrível nessa foto... (Acende um abajur próximo).
ARMANDO – Mas não precisa acender a luz para ver se está bem ou
não. Pelo contrário: com luz apagada é que se vê melhor.
OTÁVIO – É que no escuro não dá pra fazer crochê.
ARMANDO – Mas você vai fazer crochê ou ver os slides?
OTÁVIO – As duas coisas. Uma não depende da outra, onde já se viu?
ARMANDO – Hum!... Tá bem. (Observação: As fotos que se
sucedem deverão ser comentadas pelos dois
personagens, a critério da direção do espetáculo, embora
Otávio continue fazendo crochê. Em uma determinada foto
deverá aparecer Armando embaixo de uma escada ao lado
de um gato preto).
OTÁVIO – Ai, Armando: que ideia a sua de tirar essa foto.
ARMANDO (Espantado) – Ué: por quê?
OTÁVIO – Por quê? Por quê? (Tempo). Você não sabe que ficar em
baixo de escada dá azar? E ainda se não bastasse, com um
gato preto do lado! (Ouve-se um toque de campainha).
ARMANDO (Rindo) – Ai, Otávio! Você tem cada ideia...
OTÁVIO – Eu não. O mundo inteiro sabe que essas coisas dão azar.
(Outro toque de campainha).
ARMANDO – Você não está ouvindo a campainha tocar?
OTÁVIO – Estou.
ARMANDO – Então, abra a porta.
OTÁVIO – Espera um pouco... Vou terminar esta laçada, senão perco o
ponto. (Novo toque de campainha).
OTÁVIO (Gritando em direção à porta da rua) – Já vai... (Coloca o
crochê de lado e vai abrir a porta).
RAPAZ (Vestido como um porteiro de edifício) – Telegrama para o
senhor José Armando Motta Junior.
OTÁVIO – Ah! Obrigado. (Assina o recibo do telegrama e fecha a
porta na cara do porteiro). Desculpe, mas estou sem
trocado. (Abre o telegrama, lê e fica estarrecido). Não!
ARMANDO – Quem era?
OTÁVIO (Assustado) – Telegrama pra você... (Entregando o
telegrama para Armando).
ARMANDO – Quem deu ordem pra você abrir minha correspondência?
OTÁVIO (Perplexo, como se não tivesse ouvido nada) – Eu disse que
esse maldito slide ia dar azar...
ARMANDO (Meio assustado) – Mas o que é que diz o telegrama?
OTÁVIO – Leia!
ARMANDO (Lendo o telegrama) – E agora?
OTÁVIO – Caga na mão e joga fora.
ARMANDO – Ora, deixa de ser estúpido! Como é que você pode brincar
com uma situação destas?
OTÁVIO – E o que é que você sugere que eu faça?
ARMANDO – E eu sei lá? Dê alguma ideia, alguma sugestão. Faça
alguma coisa!
OTÁVIO (Pensando) – Deixe-me ver... (Tempo). Leia de novo o
telegrama. (Armando lê mentalmente). Em voz alta!
ARMANDO – Presta atenção: (lendo) querido filho. Chegarei em São
Paulo com seu irmão dia treze. Beijos, mamãe. (Tempo). Que
dia é hoje?
OTÁVIO – Treze.
ARMANDO – Então, danou-se.
OTÁVIO (Pausa) – Porra!... Mas o que é que essa bruxa vem fazer
aqui?
ARMANDO – Otávio: ela é minha mãe.
OTÁVIO – E daí? Nada impede de ser uma bruxa...
ARMANDO (Preocupado) – E agora? (Olha para Otávio). O que é que
eu faço Tatá?
OTÁVIO (Nervoso) – E não adianta olhar pra mim com essa cara de
sacristão de igreja, Armando, porque eu daqui não saio.
ARMANDO (Tentando convencer Otávio) – Puxa vida, Tatá. Você
bem que poderia...
OTÁVIO (Cortando, categórico e definitivo) – Nem morta! (Tempo).
Pense noutra coisa.
ARMANDO – Mas, então o quê?
OTÁVIO – E eu sei lá? Qualquer coisa... (Tempo). Ah! Já sei.
ARMANDO – O quê?
OTÁVIO – Vamos separar as camas.
ARMANDO – Como assim?
OTÁVIO – Vamos separar as camas. A gente deixa uma no quarto, põe
a outra na biblioteca e pronto. Já ficam dois quartos. É o único
jeito.
ARMANDO (Pausa) – É... Eu acho que o jeito é esse mesmo. (Tempo).
Que horas são?
OTÁVIO – Oito e meia.
ARMANDO (Pensativo) – A que hora será que ela vai chegar, hein?
OTÁVIO (Rápido) – Ah, meu filho, se vier de vassoura já está
chegando.
ARMANDO (Meio irritado) – Otávio: ela é minha mãe!
OTÁVIO – Você já disse isso, Armando.
ARMANDO (Nervoso) – Então vamos parar com isso, tá legal?
OTÁVIO – Está.
ARMANDO – Anda logo! Me ajuda a pegar a tua cama.
OTÁVIO (Nervoso) – A minha, não senhor: a tua cama. Porque eu, do
meu quarto, não saio. Imagina! Era só o que faltava! A bruxa
é... (Armando dá uma olhada para Otávio. Otávio
consertando, imediatamente), ou melhor, a mãe é tua e eu é
que tenho que me desacomodar? Nem pense nisso!
ARMANDO (Concorda meio sem vontade) – Tá legal. (Vai até a porta
do quarto).
OTÁVIO – Claro que está. Porque se não estiver, não tem outro jeito.
Vai ficar assim mesmo...
ARMANDO – Assim mesmo como?
OTÁVIO – Ora, Armando, não se faça de bobo. (Categórico). Eu pra
biblioteca não vou mesmo. (Tempo). O que é que você está
esperando? Anda logo, pega a cama. (Armando entra no
quarto. Otávio parando na porta do quarto). E o rebento?
Onde vai ficar?
ARMANDO (De dentro do quarto) – Que rebento?
OTÁVIO – O teu irmão, esqueceu? (Tempo). O telegrama estava bem
claro: (como se estivesse lendo um telegrama) “querido
filho. Chegarei São Paulo com seu irmão dia treze, beijos”
(tempo) assinado “Madame Mim”.
ARMANDO – Otávio: você quer parar com essa gozação?
OTÁVIO (Com voz bem fininha) – Sim querido.
ARMANDO (Irritado) – Otávio: eu estou falando sério, tá?
OTÁVIO (Com voz bem grossa) – Sim querido. (Tempo). Assim está
melhor? (Armando nada responde. Sai do quarto com a
cama. Otávio segurando do outro lado da cama). Ai: que
peso!
ARMANDO – Tá firme aí?
OTÁVIO – Tá. Pode ir puxando. (Ambos carregando a cama do
quarto para a biblioteca vão atravessando a sala, até que
chegam diante do projetor, que continua projetando na
parede o slide que causou toda a confusão. Otávio
olhando para a foto projetada na parede, solta
imediatamente a cama que vinha carregando). Armando:
essa coisa tenebrosa ainda continua projetada?
ARMANDO – E daí? Qual é o problema?
OTÁVIO (Ironicamente) – Ora, imagine! Nenhum problema... É tudo tão
simples, tudo tão rotineiro... (Tempo). Não é mesmo?
ARMANDO – Olha Otávio: sinceramente eu não acredito que você
esteja falando sério, juro!... (Tempo). Você acredita mesmo
que essa foto tenha causado tudo isso?
OTÁVIO (Categórico) – Não só acredito como também me recuso a
passar diante daquela luzinha que projeta esse horror na
parede (apontando ambas as referências).
ARMANDO (Rindo) – Tá legal. Eu desligo o projetor, mas então acende
a luz da sala, senão a gente vai ficar no escuro.
OTÁVIO – Pois não, com todo o prazer. (Acende a luz da sala).
ARMANDO (Desligando o projetor) – Ai Otávio! (Rindo). Você tem
cada uma... (Tempo). Isso foi coincidência.
OTÁVIO – É... Mas aconteceram coisas na minha vida por coincidências
que nem posso falar.
ARMANDO – Isso tudo é bobagem. (Pegando a cama).
OTÁVIO – Armando: será que dá pra trocar de lado? (Apontando). Esta
cabeceira já me acertou a cara uma porção de vezes.
ARMANDO – Tudo bem... (Colocando a cama no chão, dá a volta e
pega do outro lado). Tá pronto?
OTÁVIO – Tô.
ARMANDO – Então vamos. (Ambos carregam a cama em direção à
biblioteca).
OTÁVIO – E então, como é que a gente faz com o teu irmão?
ARMANDO – Depois a gente vê isso.
OTÁVIO – Depois não, tem que ser visto já. (Colocaram a cama na
biblioteca. Tempo). A minha querida sogra pode ficar aqui
mesmo neste sofá.
ARMANDO (Contestando) – Não. Então é preferível ela ficar na cama e
eu no sofá.
OTÁVIO (Sarcástico) – Ai: que extremoso... (Tempo). Como filho é
exemplar... (Armando fica desapontado). E o menino?
ARMANDO – Não sei Tatá. O que você sugere?
OTÁVIO – Atirar pela janela.
ARMANDO – Ah! Deixa de brincadeira, que o tempo tá passando.
(Tempo). E se ele ficasse com você, no teu quarto?
OTÁVIO (Sorrindo maldosamente) – Eu punha arsênico na mamadeira
dele. (Muda de tom). Ora, deixa de frescura: põe o menino lá
na sala. Bota umas almofadas no chão, um plástico em cima
para o caso dele mijar e pronto...
ARMANDO (Concordando) – É, tá legal, então. (Ambos vão saindo
da biblioteca para a sala). Ih! Outra coisa... E roupa de
cama?
OTÁVIO – Ah! Meu filho, isso é o que não falta. Existe um enxoval
completo no guarda-roupa.
ARMANDO – Então, tudo bem. Você já pode ir arrumando as camas.
OTÁVIO – Claro! Tinha que sobrar pra mim. (Vai para o quarto).
ARMANDO (Da sala e mais alto) – Eu vou preparar um uísque pra
mim. Você quer também?
OTÁVIO (Do quarto) – Com esse calor, uísque? Não. Pra mim não.
Prefiro um refrigerante. (Entra com roupas de cama).
ARMANDO – Soda ou guaraná?
OTÁVIO (Pausa) – Grapete. (Começa a arrumar a cama na sala).
ARMANDO – Não tem.
OTÁVIO (Sempre arrumando a cama, deve inclusive colocar
realmente um plástico em cima das almofadas) – Então
soda.
ARMANDO (Entregando a soda a Otávio) – Toma.
OTÁVIO (Pegando o copo) – Obrigado. (Toma um gole).
ARMANDO (Preocupado, senta-se em uma cadeira na sala) – Tatá?
OTÁVIO – Ahn?
ARMANDO – Tem uma coisa que está me preocupando, sabe?
OTÁVIO – Que coisa? (Toma mais um gole).
ARMANDO – A minha noiva.
OTÁVIO (Engasga-se com a bebida) – O quê?
ARMANDO – A Suzana...
OTÁVIO (Enfurecido) – Que Suzana?
ARMANDO (Tentando explicar) – Sabe: quando eu escrevo para a
minha mãe, eu sempre menciono a Suzana, dizendo que estou
noivo, que vou me casar e coisas assim, entende?
OTÁVIO – Não. (Enlouquecido). Não entendo não senhor! Que estória
é essa de Suzana, noivado e casamento? (Tempo). Eu sabia
que esse maldito slide ia destruir a minha vida.
ARMANDO – Calma, Otávio, tente compreender.
OTÁVIO (Fora de si) – Não consigo, Armando! Quero conseguir, mas
não consigo! Nem sob efeito de hipnose.
ARMANDO – Um momento, Otávio. (Pausa). Posso falar?
OTÁVIO – Deve! (Tempo). Aliás, já devia ter falado há muito tempo.
(Tempo). Olha: sejamos francos, Armando. (Com voz
trágica). Desde quando existe essa Suzana?
ARMANDO (Paciente) – Não, Tatá, não é nada disso que você está
pensando!
OTÁVIO (Irritado) – Ah! Não? Então o que é?
ARMANDO (Quase nervoso) – Claro que não! (Tempo). Afinal o que é
que você pensa que eu sou?
OTÁVIO (Imediatamente) – Um filho da puta!
ARMANDO – Otávio!
OTÁVIO – E isso ainda é pouco! Você é um indivíduo que...
ARMANDO (Grita cortando) – Otávio! (Pausa). Não existe Suzana
nenhuma.
OTÁVIO – Hein? Como assim?
ARMANDO – Não existe Suzana nenhuma.
OTÁVIO – Como não?
ARMANDO – Raciocine um pouco, Tatá. (Tempo). Quando eu escrevo
pra minha mãe, eu simulo um noivado que não existe, tá
entendendo?
OTÁVIO – Não sei... Continue.
ARMANDO – Pois bem. Então preste atenção: eu escrevi pra minha
mãe fingindo que estava namorando uma moça. Depois disso,
em outras cartas, eu falei que tinha ficado noivo, que ela se
chamava Suzana, que era de boa família..., essas coisas:
entende?
OTÁVIO – Mas com tanta coisa pra escrever, precisava tocar em
assunto tão repugnante?
ARMANDO – Bem, você não imaginava que eu escrevesse pra minha
mãe contando a nossa situação, não é mesmo?
OTÁVIO – Lógico que não. (Tempo). Mesmo porque se você tivesse
contado a verdade, seria masoquismo ficar carregando cama
para lá e para cá.
ARMANDO – Evidente.
OTÁVIO (Pausa) – Porra! E por que você não disse logo?
ARMANDO – Não consegui. (Tempo). Será que você não percebeu que
falou sem parar um segundo? Eu tentei explicar, mas você não
me deu chance.
OTÁVIO (Rindo) – Olhe..., até que vai ser divertido, né?
ARMANDO – O quê?
OTÁVIO – Essa estória. A bruxa vai chegar... (Para rapidamente.
Armando olha para Otávio furiosamente. Otávio conserta,
sorrindo). A tua mãe vai chegar e, logicamente, vai querer
conhecer a futura nora, a tão falada Suzana. E aí? Como é
que você vai se arranjar?
ARMANDO (Pensativo) – Não sei...
OTÁVIO (Sarcástico) – Eu posso me disfarçar de Suzana se você
quiser... (Ri muito).
ARMANDO – Não fala besteira! E de mais a mais, eu falo de você
também nas minhas cartas...
OTÁVIO – Não diga! É mesmo? Você escreve contando que eu lavo,
que eu passo, que eu cozinho, enfim, que eu sou a própria
escrava Isaura neste ap.?
ARMANDO – Você tá louco? Você acha que eu vou falar essas coisas?
OTÁVIO (Sempre irônico) – É: não fica bem você falar. (Tempo). Deixa
que quando ela chegar eu falo.
ARMANDO (Agarrando Otávio pelo pescoço) – Fala! Fala só pra ver o
que te acontece! Fala!
OTÁVIO (Desvencilhando-se de Armando, sorri) – Mentirinha, bobo...
(Tempo). E quando ela perguntar pela Suzana? O que é que
você vai dizer?
ARMANDO – Não sei ainda... Estou pensando...
OTÁVIO – Fala que ela morreu, vai ser um barato! (Ri). Diz que fui eu
que matei ela. (Tempo). Sem querer, é claro! (Narrando).
Você diz que ela veio aqui, me encontrou regando as plantas
na sacada e eu pedi pra ele medir quantos palmos tinha a
nossa samambaia de metro. (Sempre narrando). E que ela foi
medindo, medindo, medindo e..., bumba! Caiu de vez... (Ri.
Tempo). Depois você explica que a Suzana, embora de boa
família, era muito ingênua e burrinha... (Continuando). E que
foi por isso que ela caiu... (Ri mais ainda).
ARMANDO (Nervoso) – Cale essa boca!
OTÁVIO (Dócil) – Tá legal!...
ARMANDO – Estou num mato sem saída.
OTÁVIO – Não senhor! Tem uma sim. Agora não sei se você vai querer.
ARMANDO – Qual é?
OTÁVIO – Eu ligo pra Cláudia e digo pra ela que...
ARMANDO (Irritado) – Para o Cláudio, né?
OTÁVIO – É: tanto faz. Estamos falando da mesma pessoa. Mas tudo
bem! Eu ligo para o Cláudio e peço pra ele nos mandar uma
dessas vedetinhas de boate que ele conhece, ou então uma
piranha do prédio dele, mas que seja bonita e que, de
preferência, tenha postura fina. E aí... (Tempo). Ah! Sei lá! A
gente simula o noivado pelo tempo que durar a visita da tua
mãe e depois paga-se pra moça um dinheiro qualquer, por
serviços prestados; e pronto. Que tal?
ARMANDO – Não sei não... (Pensativo). E se não der certo?
OTÁVIO – Não deu. (Tempo). Mas pelo menos a gente tentou.
ARMANDO – Você acha tudo simples quando não é com você.
OTÁVIO – Ah! Não me enche! (Tempo). Bom, Armando, você não tem
escolha. Das duas uma: ou isso ou a estória da samambaia de
metro. Decida-se. (Pausa. Tempo). Eu disse que esse slide ia
dar azar.
ARMANDO (Pensativo) – Não sei não... Estou meio confuso,
amarrado...
OTÁVIO – É... Mas eu acho bom desamarrar logo, porque daqui a
pouco chega a tua mãe com o rebento e não se decidiu nada.
ARMANDO (Ainda pensativo) – É... Tem razão...
OTÁVIO (Animado) – E então?
ARMANDO (Pausa) – Tá legal: eu topo.
OTÁVIO – O quê? A queda de Suzana ou o noivado com a piranha?
ARMANDO – Claro que é o noivado!
OTÁVIO (Contente) – Oba!... E então? Ligo pra o Cláudio?
ARMANDO (Seco) – Liga.
OTÁVIO (Esfregando as mãos) – Deixa pra mim. (Vai para o telefone
e disca). Alô? De onde fala?... Ah! Por favor, o Doutor Cláudio
está?... É Otávio... (Afirmando)... Ele já sabe, obrigado. (Para
Armando). Ai! Vai ser ótimo: já estou adorando! (De novo ao
telefone). Alô? Quem está falando, por favor? Cláudia! Tudo
bom? Tudo... Não, não resolvemos ir ao teatro não. É coisa
muito melhor. (Tempo). Senta! Sentou?... (Armando sai da
sala e deita-se no sofá da biblioteca). Agora deita. Deitou?
Então escuta só: a mãe do Armando vai chegar hoje do Rio de
Janeiro com o irmãozinho dele. É. Não: espera aí! Ela estava
morando numa cidade de Pernambuco. Ahn?... Não. Que
Recife nada! Interior: uma cidade bem bundeira, não me
lembro agora o nome. É: deve ser. Mas acontece que faz
quinze dias que ela veio morar no Rio de Janeiro. Sei lá,
parece que quando ela escreveu a última vez, disse que vinha
pra o Rio por causa do estudo dos filhos. É claro, besteira de
bruxa. Bom, mas deixa eu te contar o porquê de eu te
telefonar. Acontece que quando o Armando escrevia pra mãe
dele, fingia que estava noivo. Não, claro que é mentira! Eu
nem sabia que ele andava escrevendo essas besteiras. Fiquei
sabendo hoje. Pois é. Agora a bruxa vai chegar e,
logicamente, vai querer conhecer a futura nora. Mas como não
existe nora nenhuma, resolvi apelar para você. Lógico, só você
pode resolver isso. Não: presta atenção, você pega uma
piranha qualquer que mora aí no teu prédio e convence ela a
fingir que vai ser noiva duma bicha. O quê? Não, por pouco
tempo. Uns dois ou três dias só, tá? Claro, a gente vai pagar.
Ah! Isso eu não sei. (Tempo). Quanto que pode custar? Não
faz mal, a gente paga o preço que for. (Tempo). Vê se você dá
uma pechinchada, né?... É lógico. (Tempo). Ah! Outra coisa:
diz pra ela que o nome dela aqui tem que ser Suzana. É.
Suzana, não vai esquecer, hein? Como? Claro: ela pode vir já,
se quiser, porque daqui a pouco a “Madame Mim” vai chegar.
(Toque de campainha. Tempo). Ih! Espera um pouco,
Cláudia, que estão tocando a campainha. (Gritando para
Armando). Armando: a campainha. (Novamente ao telefone).
Acho que é ela: espera aí!
ARMANDO (Que se levantou do sofá quando escutou a campainha,
abre a porta) – Oi, mãe! Tudo bom? (Dá um beijo na mãe).
MÃE DE ARMANDO – Oi, meu filho! (Beija-o). Como você está
magrinho!
OTÁVIO (Ao telefone) – É ela mesma. Só que não é a “Madame Mim”,
é a “Maga Patalógica”. Te conto depois. (Fala mais baixo).
Não se esquece da piranha, hein? Tá. Bye bye. (Desliga o
telefone e vai ao encontro da mãe de Armando).
ARMANDO (Meio confuso) – Mãe: este é que é o Otávio.
MÃE DE ARMANDO – Muito prazer, meu filho. Eu me chamo Margô. O
Armando escreve muito sobre você.
OTÁVIO – O prazer é todo meu, Dona Margô. O Armando é que é muito
gentil. (Entra o irmão de Armando, que deve aparentar uns
vinte anos, carregando duas malas).
IRMÃO DE ARMANDO (Entrando) – Oi gente! Tudo bom?
ARMANDO (Para o irmão) – Fernando: como vai?
FERNANDO (Colocando as malas no chão) – Olá! Seu malandro..., e
então? Como é que vai essa força?
ARMANDO – Bem. (Abraça o irmão). Tudo bem mesmo: e você?
FERNANDO – É, vai se levando... E a faculdade?
ARMANDO – Último ano.
FERNANDO – O quê! Então breve teremos um jornalista na família,
hein? E formado pela ECA! (Tempo). Eu também quero fazer
Comunicações, mas não Jornalismo. Prefiro Cinema.
ARMANDO (Para Otávio) – Otávio: este é o meu irmão Fernando.
OTÁVIO (Surpreso) – O quê? Eu pensei que ele fosse pequenininho!
FERNANDO – Ah! Então você que é o Otávio... (Abraça Otávio
fortemente). Muito prazer.
OTÁVIO (Falando para si próprio) – Nossa! Que impetuoso! (Para
Fernando). O prazer é todo meu, viu?
FERNANDO – Obrigado. (Para Armando). Mas viu, Armando, eu devo
vir para São Paulo no ano que vem. (Tempo). Se der tudo
certo, claro!
OTÁVIO (Animado) – Mas vai dar certo, tem que dar certo! (Meio sem
graça, para todos). Não é mesmo?
MARGÔ – Quem me dá um copo d’água? Estou com uma sede!...
OTÁVIO – Eu sirvo a senhora. (Vai para a cozinha).
MARGÔ – Obrigada. Eu vou com você. (Segue atrás).
OTÁVIO – A senhora prefere um refrigerante?
MARGÔ (Falando baixo) – Prefiro conhaque. (Armando e Fernando
vão para a biblioteca).
OTÁVIO (Percebendo uma das fraquezas de Margô) – Ahn... Sim...
Um momento que eu vou buscar. (Vai para a sala, pega o
conhaque, coloca-o em um copo, dá uma olhada para
Fernando e fala para si próprio). Fortíssimo. (Vai para a
cozinha com o copo de conhaque). Hoje está quente, não?
MARGÔ – Anda logo, me dá isso aqui. Se eles percebem ficam loucos
da vida.
OTÁVIO (Entregando o copo a Margô) – Tome.
MARGÔ (Bebendo tudo de uma vez só) – Obrigada. (Acende um
cigarro). O que faz você?
OTÁVIO – Tudo.
MARGÔ – Como assim?
OTÁVIO – Ah! Faço um montão de coisas.
MARGÔ – E na Escola, em que ano está?
OTÁVIO – Terceiro. (Dá uma olhada para a biblioteca).
MARGÔ – De quê?
OTÁVIO – De Direito.
MARGÔ – Onde?
OTÁVIO – Na São Francisco.
MARGÔ – Não diga!
OTÁVIO – Agora já disse. (Armando e Fernando saem da biblioteca).
FERNANDO (Para a cozinha) – Gente: eu volto já. Vou comprar
cigarros.
OTÁVIO (Indo para a sala) – Imagine! Nem pense nisso! Que
bobagem! Eu tenho cigarros aqui! (Apanha os cigarros em
cima de um móvel). Toma. Fume à vontade.
FERNANDO – Muito obrigado, Otávio, mas eu prefiro os meus.
(Tempo). Eu volto em seguida, tá?
OTÁVIO – OK. (Senta-se no sofá).
FERNANDO – Até já, então. (Sai).
TODOS – Até já.
MARGÔ (Sentando-se no sofá ao lado de Otávio) – Armando, sente-
se aqui. Me conta: e sua noiva, filho?
OTÁVIO – Pois é Armando..., e Suzana?
ARMANDO (Sentando-se no sofá) – Bem, ela...
MARGÔ – Não vejo a hora de conhecê-la.
OTÁVIO – Eu também.
MARGÔ (Para Otávio) – Você também não a conhece?
OTÁVIO – Não, não é isso, eu a conheço sim. É que eu quis dizer que
não vejo a hora da senhora conhecer a Suzana. (Ri).
MARGÔ (Para Armando) – Você gosta muito dela, meu bem?
ARMANDO (Seco) – Sim.
OTÁVIO (Sarcástico) – Nossa! Dona Margô: ele adora Suzana.
MARGÔ (Para Otávio) – E você?
OTÁVIO (Assustado) – Eu o que?
MARGÔ – Você namora?
OTÁVIO (Aliviado) – Ah!... (Caindo em si). O que?
MARGÔ – Eu perguntei se você namora?
OTÁVIO – Ah! Sei... (Tempo). Namoro, sim senhora. (Armando olha
para Otávio, intrigado).
MARGÔ – E como ela é?
OTÁVIO – Barbada.
MARGÔ (Assustada) – Como?
OTÁVIO (Sarcástico) – É... Ela tem uma barba comprida... (Tempo),
igualzinha à do Armando.
ARMANDO (Nervoso) – Otávio!
MARGÔ (Intrigada) – E como ela se chama?
OTÁVIO – Semíramis.
MARGÔ – Semíramis?
OTÁVIO – É sim senhora. (Tempo). Eu vou contar um segredinho pra
senhora. (Armando sem Margô perceber, faz gestos para
Otávio. Otávio percebendo os gestos de Armando). A
barba dela é postiça. Ela faz mulher-barbada do circo.
MARGÔ – Ah! Sei. Agora é que eu estou entendendo. Então ela é uma
artista?
ARMANDO – É mamãe. Ela é artista. (Tempo). Está sempre viajando,
sabe?
MARGÔ (Para Otávio) – Eu também sou artista.
OTÁVIO (Percebendo outra fraqueza em Margô) – Não! (Para
Armando). Armando: você nunca me disse que sua mãe “era”
artista.
MARGÔ (Irritada, levanta-se do sofá) – Era não: sou!
ARMANDO (Para Otávio) – Falta de oportunidade.
MARGÔ (Convencida) – Eu, modéstia à parte, trabalho muito bem.
OTÁVIO (Sarcástico) – Em que zona?
MARGÔ (Assustada) – Zona?
ARMANDO (Nervoso) – Otávio!
OTÁVIO – Eu perguntei se a senhora trabalha na zona norte ou na zona
sul do Rio de Janeiro.
MARGÔ (Aliviada) – Ah! Sim. (Convencida). Na zona sul é claro!
(Tempo). Aliás, espero que sim. Cheguei do norte faz só
quinze dias. (Toque de campainha. Em seguida entra uma
moça).
MOÇA – Boa noite pra todos: eu sou Suzana!
TODOS – Suzana?
SUZANA (Aproximando-se de Margô) – A senhora deve ser a...
(Tempo). Não diga nada! A mãe de Ar... Ar..., mando?
MARGÔ – Acertou... Puxa! Que moça inteligente!
OTÁVIO – Bravos! (Batendo palmas).
ARMANDO (Respira, aliviado) – Ufa!
SUZANA (Aproximando-se de Armando, faz cara de quem está na
dúvida, em seguida olha para Otávio e acredita ser este
último o seu noivo) – Oi! Meu bem... (Aproxima-se de
Otávio e lhe dá um beijo na boca).
OTÁVIO (Reage violentamente) – Ai! Mas o que é isso? (Limpando o
beijo). Nossa! (Dá uma cuspida no chão). Deus me livre! Oh
slide maldito!
MARGÔ (Para Armando) – Armando meu filho: o que deu na sua
noiva?
ARMANDO – Nada mãe. É que... (Extremamente nervoso), é que
Suzana e Otávio são muito amigos, (para Otávio e Suzana)
não é mesmo?
SUZANA (Percebendo o fora que acabou de dar) – Claro: muito
amigos... (Para Otávio). Não é Otávio?
OTÁVIO (Só para Suzana) – Nem tanto...
SUZANA (Vai para Armando) – E você, Armando, como vai, meu
amor? (Dá um longo beijo na boca de Armando. Margô
sorri, aprovando o gesto de Suzana).
OTÁVIO (Meio enfurecido) – Hum! Hum! Hum! (Armando e Suzana
continuam se beijando. Otávio tosse algumas vezes.
Armando e Suzana nada percebem).
MARGÔ (Meio orgulhosa, vai em direção ao banheiro) – Com
licença: eu vou ao banheiro. (Para Otávio). Onde fica?
OTÁVIO (Enfurecido, aponta a porta) – Lá!
MARGÔ – Obrigada. (Entra no banheiro).
OTÁVIO (Gritando) – Armando!
ARMANDO (Separando-se de Suzana calmamente) – Sim?
OTÁVIO – Que horas são?
ARMANDO (Olhando no relógio) – Dez e meia.
OTÁVIO – Então está na hora de regar as plantas. (Para Suzana).
Venha Suzana. Quero ver se você consegue medir quantos
palmos tem a nossa samambaia de metro...
ARMANDO – Otávio: não seja engraçadinho! (Vai para a biblioteca).
OTÁVIO (Para Suzana) – Olha aqui menina: acima de tudo,
compostura! (Tempo). E depois, você quase estragou tudo
quando me agrediu...
SUZANA – Bem: é que me disseram pra fingir que era noiva de uma
bicha...
OTÁVIO – E daí?
SUZANA – Daí que eu olhei para a cara dele (apontando para
Armando) e achei que ele não tinha cara de bicha.
OTÁVIO – Sei. (Tempo). E depois?
SUZANA – Bom, depois eu olhei pra você e já saquei logo de cara.
(Tempo). Só não percebe quem é trouxa, né? Aí, não tive
dúvida, fui logo beijando.
OTÁVIO – É... E quase põe tudo a perder.
SUZANA (Abismada) – Porra! Mas ninguém diz, viu?
OTÁVIO – O quê?
SUZANA (Apontando para a biblioteca) – Que aquele cara é bicha.
OTÁVIO – Mas é.
SUZANA (Pausa) – O que é a natureza, hein?
OTÁVIO – Olha aqui, Suzana, ou você modifica o seu...
SUZANA (Cortando) – Ei: sabe da maior? O meu verdadeiro nome
mesmo é Suzana...
OTÁVIO – Ótimo!
SUZANA – É sim, eu me chamo Suzana Alice dos Santos, mas sou
conhecida na boca, como Brigitte. (Tempo). É mais legal, né?
OTÁVIO – Não importa o nome que você tem: aqui você é Suzana e
todo o tempo que você estiver aqui, será chamada de Suzana,
entendeu bem?
SUZANA – Entendi.
OTÁVIO – Muito bem! Outra coisa: o irmão de Armando desceu para
comprar cigarros. (Tempo). Ele também não sabe de nada, e
quando ele chegar, veja se você se manca, hein?
SUZANA (Mostrando o dedão da mão) – Pode deixar! É comigo
mesmo. (Toque de campainha. Armando vai abrir a porta).
OTÁVIO (Para Suzana) – Eu acho que é ele. (Tempo). Já sabe né?
FERNANDO (Entrando sorridente) – Oi, pessoal! Tudo legal?
SUZANA – Tudo.
FERNANDO (Reparando em Suzana) – Ué? Você não estava aqui
ainda agora.
SUZANA – É... (Sorrindo). Sabe como é, né? É que eu estava na...
OTÁVIO (Para Suzana) – Fique quieta. (Para Fernando). Ah!
Fernando: esta aqui é Suzana, a noiva de Armando.
ARMANDO (Meio sem graça) – É... É a minha noiva.
FERNANDO – Muito prazer. (Aperta a mão de Suzana).
SUZANA – Oi, bicho. Tudo legal?
FERNANDO – Tudo.
MARGÔ (Saindo do banheiro) – Oi Fernando: você já voltou?
FERNANDO – Já mamãe... (Toque de campainha).
SUZANA – Podem deixar que eu abro a porta. (Tempo). Eu sou da
casa. (Vai para a porta).
OTÁVIO – Suzana: não abra a porta! Espie pelo olho mágico.
SUZANA – Tá legal. (Espiando). É uma freira.
OTÁVIO – É esmola. Pode deixar... (Vai até a cômoda e pega algum
dinheiro). Eu tenho uns trocados aqui. (Tempo). Mas vocês já
viram hoje em dia como andam as coisas? (Vai em direção à
porta). Essa é hora de freira pedir esmolas? (Abre a porta e
entrega o dinheiro para a freira). Olha aqui o dinheiro. (Leva
um enorme susto, abrindo a porta toda). Ahn? É minha
irmã! (Observação: o hábito de freira deve ser o mais
exagerado possível: o véu branco, engomado e
gigantesco; a saia longa e preta deverá cobrir os pés.
Deverá, a freira, usar, ainda, óculos com armação fora de
moda).
FIM DO PRIMEIRO ATO
SEGUNDO ATO
O pano abre. Aparece Fernando dormindo na
cama que Otávio fez na sala.
OTÁVIO (Vestindo um short, sai da cozinha, em direção à janela,
com uma mangueira d’água bem comprida na mão. No
percurso, Otávio não para de cantarolar. Ao se aproximar
da janela, tenta, algumas vezes, jogar uma das pontas da
mangueira para algum lugar, e, por fim, consegue) – Ufa!
Consegui. (Vai para a cozinha, pega a outra ponta a
mangueira e coloca na torneira, abrindo-a em seguida.
Depois, ele seca algumas xícaras com um pano de prato,
sempre cantarolando, mexe em algumas panelas no fogão,
etc.).
FERNANDO (Que acabou de acordar com o barulho que Otávio fez,
levanta-se, de pijama curto, e vai para a cozinha) – Bom dia
Otávio.
OTÁVIO (De costas para Fernando) – Bom dia. (Virando-se em
seguida). Nossa! (Tenta sorrir). Puxa vida!... Bom dia.
FERNANDO – Outra vez?
OTÁVIO – Outra vez o que?
FERNANDO – Você disse bom dia duas vezes.
OTÁVIO – É mesmo? Puxa! Nem reparei. É que eu fiquei meio
atordoado, de repente.
FERNANDO – Atordoado? Com o que?
OTÁVIO (Meio sem querer) – Com essas pernas.
FERNANDO (Surpreso) – Pernas. Que pernas?
OTÁVIO (Batendo em suas próprias pernas) – Estas pernas. Sei lá:
ficaram bambas. (Sorri).
FERNANDO (Aproximando-se de Otávio) – Otávio: você está se
sentindo bem?
OTÁVIO – Agora sim. Já passou o susto.
FERNANDO – Susto?
OTÁVIO – É. O impacto.
FERNANDO – Que impacto?
OTÁVIO – Nada: besteira. É que eu..., eu..., eu não tinha percebido a
sua presença..., e me assustei. Mas já passou.
FERNANDO – Bem, me desculpe. É que...
OTÁVIO – Ora imagine, não foi nada... (Tempo). Puxa! Você levantou
cedo, hein?
FERNANDO (Meio sem saber o que fazer) – É... Eu estou
acostumado.
OTÁVIO – Diferente do seu irmão. Só não perde a hora todo dia porque
eu chamo. E assim mesmo preciso sacudir ele umas dez
vezes, pelo menos.
FERNANDO – É... Ele puxou a minha mãe.
OTÁVIO (Meio nervoso) – Por quê? A sua mãe é igual?
FERNANDO – Oh! Se é! Igualzinha... Eu nunca tomo café da manhã
porque ela não acorda.
OTÁVIO – Coitado! (Tempo). Mas hoje você vai tomar. Eu já fiz.
(Tempo). Senta. (Fernando senta-se, sorridente. Tempo).
Ah! Mas aqui ela não vai ter essa moleza não. Daqui a pouco
eu vou lá e jogo os dois fora da cama, você vai ver. (Sorri).
FERNANDO (Rindo) – É... Acho que só assim mesmo.
OTÁVIO (Servindo o café para Fernando) – Mas não se preocupe: ela
vai sair daqui, na linha. (Sorri).
FERNANDO – Otávio: me diz uma coisa. Sua irmã é freira?
OTÁVIO – Ainda não. Ela está estudando pra ser, isto é, eu nem sei se
pra ser freira precisa estudar. O que eu sei é que por enquanto
ela é noviça.
FERNANDO – É uma pena. Ela é tão bonitinha...
OTÁVIO – Eu também acho. Aliás, eu não sei por que essa frescura de
ser freira. (Tempo). Era levada de pequena!
FERNANDO – É mesmo?
OTÁVIO – Oh! Se é! Quando criança foi do peru! Sapeca mesmo! Até
que inventou essa de ser freira. (Tempo). Mas pra mim foi
desgosto.
FERNANDO – Desgosto do que?
OTÁVIO (Tempo) – Come mais pão. Tem bolacha também. Olha: tem
torrada, você nem provou... (Tempo). Ah! Sei lá, desgosto, dor
de corno. Ela namorava um cara lá na minha cidade. Estava
firme mesmo, sabe? Ia até ficar noiva. Aí, não sei por que,
desmanchou tudo e veio essa de que queria ser freira, que
sempre teve vocação... (Tempo). Mas ninguém me tira da
cabeça que foi ele quem largou dela e ela então inventou essa
de ser freira. Pura dor de corno.
FERNANDO – Será?
OTÁVIO – Não sei não... Mas só pode ter sido.
FERNANDO – E os seus pais? O que disseram?
OTÁVIO – Nada. Falar o quê? Foi ela quem quis.
FERNANDO – E você? Você nunca perguntou pra ela quais os motivos?
OTÁVIO – Perguntei. E eu até uma vez...
FERNANDO (Cortando) – E o que foi que ela respondeu?
OTÁVIO – Vocação! (Fernando fica pensativo e chateado. Tempo). O
que é que você achou do café?
FERNANDO (Ainda aborrecido, sem ouvir o que Otávio perguntou)
– É... É uma merda!
OTÁVIO (Enfurecido) – O quê?
FERNANDO (Despertando de seus pensamentos) – Ahn...? Ah!
Desculpe... O que foi que você perguntou?
OTÁVIO (Com raiva) – Eu perguntei o que você achou do café?
FERNANDO (Sorrindo) – Ah! Do café? Uma delícia. (Brincando). Já
pode casar.
OTÁVIO (Com desdém) – Já casei.
FERNANDO – Hein?
OTÁVIO – Mentirinha, bobo. (Saindo da cozinha). Eu vou acordar sua
mãe e seu irmão para tomar café.
FERNANDO (Saindo atrás de Otávio) – E eu vou aproveitar para ir até
à casa de um colega meu. (Pegando umas roupas que estão
em cima de uma cadeira, na sala, e os sapatos, e vai em
direção ao banheiro). Quero ver se ele me empresta umas
apostilas de português. (Tempo). Ah! E obrigado pelo café.
(Entra no banheiro).
OTÁVIO (Falando só para si) – Obrigado é?...
FERNANDO (Saindo do banheiro com a roupa e os sapatos na mão)
– Ei, Otávio! O que é que a Suzana está fazendo aqui na
banheira?
OTÁVIO – Dormindo.
FERNANDO – Mas na banheira?
OTÁVIO – É. Não tem mais cama. (Tempo). Mas ela não liga pra isso.
FERNANDO – Ora, mas ela poderia ter dormido em outro lugar. Aqui na
sala, ou na biblioteca. Sei lá... (Tempo), mas na banheira?
OTÁVIO – É. Foi falta de ideia mesmo. Mas não faz mal, esta noite a
gente dá um jeito. (Tempo). Você que usar o banheiro, né?
FERNANDO – Bem..., eu queria..., mas...
OTÁVIO (Cortando) – Claro! Eu vou chamar a Suzana.
FERNANDO – Não: pode deixar. Eu...
OTÁVIO – Ora imagine: já está mesmo na hora dela acordar.
FERNANDO – Mas é cedo ainda, e...
OTÁVIO – Que cedo nada! (Entrando no banheiro. Fernando vai até a
banheira, dá uma olhada e senta-se na sala, longe do
banheiro. Otávio dentro do banheiro). Ei, Suzana! Acorda! Ô
menina! Shi: essa é daquelas que dão trabalho. Psiu!... Ô
perua: acorda logo... (Tempo). Acho melhor eu abrir a torneira.
SUZANA (Dentro do banheiro, dá um grito) – Ai! O que foi?... Ai, meu
Deus, onde estou?
OTÁVIO (Dentro do banheiro) – Psiu! Sem escândalo...
SUZANA (Dentro do banheiro) – Mas você me molhou...
OTÁVIO (Dentro do banheiro) – Claro: você não acorda...
SUZANA (Irritada, dentro do banheiro) – Mas eu não consigo levantar
antes do meio dia...
OTÁVIO (Dentro do banheiro, nervoso) – Mas aqui não é colônia de
férias! E trate de sair logo daí que o Fernando quer entrar no
banheiro.
SUZANA (Dentro do banheiro) – Tá legal. (Sai do banheiro de
camisola, passa por Fernando, cumprimenta-o
secamente). Bom dia.
FERNANDO (Tentando desculpar-se) – Bom dia. Olha eu... Me
desculpe, tá? Eu não queria acordá-la, mas o Otávio...
OTÁVIO (Dentro do banheiro solta um grito de horror) – Aiiii! (Sai do
banheiro carregando na mão um vaso de “comigo
ninguém pode” completamente murcho). Mas não é
possível! (Para Suzana). O seu bafo matou o meu comigo
ninguém pode...
FERNANDO (Rindo, entra no banheiro) – Com licença...
OTÁVIO (Para Suzana) – Vai ter baixo astral assim na casa do cacete.
SUZANA – Ah! Vá à merda!
OTÁVIO – Olha aqui: o café tá pronto. Se quiser tomar é só esquentar.
SUZANA (Sentando-se no sofá) – Tá.
OTÁVIO – Não esquece de lavar a xícara depois. (Tempo). Aproveita e
lava a loucinha que está na pia, tá?
SUZANA – Tá legal. (Deita-se no sofá e dorme).
OTÁVIO (Entrando na biblioteca, acorda Margô e Armando) –
Armando acorda, tá na hora... (Chacoalha Armando). Anda!
Tá na hora... (Chacoalha Margô). Como é que é? Vai acordar
ou não vai? (Para si mesmo). Ô meu Deus: parece castigo...
(Olhando para Margô). O pior é que a... , a estrela cadente
não dorme, desmaia. (Tempo). Mas aqui ela vai sofrer de
insônia. (Chacoalhando Margô novamente). Ô velha: acorda
logo. Tá na hora! (Margô resmunga alguma coisa). O que?
Ah, anda logo, ô Maga Patalógica! Tá na hora.
MARGÔ (Sentando-se na cama, irritada) – O que é?
OTÁVIO (Fingindo gentileza) – Bom dia dona Margô. Dormiu bem?
MARGÔ (Irritada) – Dormi? O senhor vem me perguntar se eu dormi?
Eu ainda estou dormindo... (Deita-se novamente).
OTÁVIO (Irritadíssimo) – Estava! (Puxando a coberta de Margô). E
podem ir tratando de levantar que hoje é dia de limpeza geral.
(Chacoalha Armando). Ô Armando: acorda! Você quer perder
a hora? (Armando resmunga algo).
MARGÔ (Ainda deitada) – Coitadinho! (Para Otávio). Não precisa
chacoalhar ele desse jeito...
OTÁVIO (Irritado) – Olha aqui, minha senhora: quer fazer o favor de
não se intrometer? Eu é que sei como é que ele deve ser
acordado, sim? (Sai da biblioteca e volta em seguida). E
façam o favor de se levantar. (Sai e volta, mais uma vez). Os
dois! (Sai).
FERNANDO (Saindo do banheiro) – Pronto. Já estou vestido.
OTÁVIO (Sorrindo) – É..., e muito bem vestido, por sinal.
FERNANDO – Obrigado.
OTÁVIO – Mudando de assunto, Fernando, qual é o seu prato predileto?
FERNANDO – De comida?
OTÁVIO – Claro, né?
FERNANDO – Bem... É strogonoff de camarão.
OTÁVIO (Para si mesmo) – Nada trouxa!
FERNANDO – Como?
OTÁVIO – Eu disse poxa... (Sorri).
FERNANDO (Sorrindo) – Por quê?
OTÁVIO – É que eu também gosto de strogonoff de camarão.
FERNANDO – Coincidência, né?
OTÁVIO – Nem fale! A maior de todas...
FERNANDO (Olhando para Suzana) – Pô: ela está com sono mesmo,
hein?
OTÁVIO – Se está! (Venenoso). Mas logo-logo ela acorda.
FERNANDO (Brincalhão) – Será?
OTÁVIO (Sorrindo) – Não tenha dúvida!
FERNANDO – Bem..., eu vou indo.
OTÁVIO – Já?
FERNANDO – É. Já está na hora, sabe?
OTÁVIO – Que pena! (Tempo). Você vem para o almoço?
FERNANDO – Depende. Eu tenho...
OTÁVIO (Cortando) – Depende do quê?
FERNANDO – Da hora de eu ficar livre.
OTÁVIO – Ah! Logo hoje? Vê se dá um jeitinho. (Tempo). Você vai
gostar do almoço.
FERNANDO – É mesmo? E pode-se saber o que é que vai ter hoje no
almoço de tão especial?
OTÁVIO – Strogonoff de camarão.
FERNANDO (Alegre) – Oba! Então eu venho. (Vai para a porta).
OTÁVIO – Estou esperando, hein?
FERNANDO – Pode esperar. (Tempo). Tchau! (Sai).
OTÁVIO – Tchau! (Grita). E um bom dia para você. (Fecha a porta).
É... É... (Dá um suspiro ligeiro, em seguida olha para
Suzana, que está dormindo, deliciosamente, no sofá). Não
é que a Cinderela tornou mesmo a pegar no sono? (Vai até
Suzana). Ô menina! (Sacudindo-a). Anda menina: acorda! Já
passou da hora.
SUZANA (Acordando) – Já tô indo...
OTÁVIO (Levantando Suzana, coloca-a sentada no sofá) – Já
acordou ou quer que eu jogue mais um pouquinho de água?
SUZANA – Eu já acordei: não tá vendo? E cadê o café? (Tempo). Olha
aqui: se for para eu fazer o café, nada feito!
OTÁVIO – Não. Não é pra você fazer... É pra você tomar... (tempo) ou
será que você estava pensando que eu ia te levar o café na
cama? Ou melhor, na banheira?
SUZANA (Levantando-se do sofá) – Não. Claro que não. (Vai para a
cozinha).
OTÁVIO – Ah, Suzana! Vê se dá pra você lavar aquela louça que está
na pia, (tempo) depois do café, claro!
SUZANA – Tudo bem.
OTÁVIO (Abrindo a gaveta da cômoda, pega algum dinheiro) –
Ótimo, então eu vou dar um pulinho no supermercado comprar
as coisas que estão faltando para o almoço. Trago o pó de
café e já aproveito e devolvo para Dona Marta Carvão o que
ela me emprestou ontem.
SUZANA – Marta Carvão? Quem é essa?
OTÁVIO – É uma vizinha que mora no quarto andar.
SUZANA – Porra! Mas que nome: Carvão!
OTÁVIO – É Suzana: Carvão! (Tempo). Bom, eu vou indo. Até já.
(Tempo). Ah Suzana: ia me esquecendo... Lave a louça no
tanque, não na pia, porque esta mangueira não pode sair
dessa torneira, tá?
SUZANA – Tá legal. (Tempo). Mas você vai sair assim?
OTÁVIO – Assim como?
SUZANA – De shorts.
OTÁVIO – Vou. Tá calor. Qual é o problema?
SUZANA – Nenhum...
OTÁVIO – Então tchau! (Sai).
SUZANA – Tchau! (Ficando só diz). Bicha é bicha mesmo... (Vai para
a cozinha esquentar o café).
OTÁVIO (Em curto espaço de tempo entra, novamente) – Suzana...
(Vai para a cozinha e abre a geladeira). Imagine só: esqueci
o principal! Depois que você lavar a louça, aproveita e limpa
este camarão para ir adiantando o almoço, tá?
SUZANA – Olha: sinceramente, eu não sei fazer isso. (Tempo). E se eu
estragar tudo?
OTÁVIO – Que estraga nada! É tão simples! É só tirar a casca, a
cabeça e o rabo. Depois você abre com uma faca, só um
pouquinho, e tira essa tripinha escura. (Tempo). Um por um,
tá?
SUZANA – Bom, eu posso tentar, né? (Cheirando o pacote de
camarões). Mas esse bicho fede, hein?
OTÁVIO (Maldosamente) – Não... É mais impressão.
SUZANA – Você me empresta depois uma água de colônia pra tirar
esse cheiro de peixe da minha mão?
OTÁVIO – Água de Colônia? Ora Suzana: que bobagem! Pra isso eu
tenho uma água muito melhor.
SUZANA – Que água?
OTÁVIO – Água Raz. (Tempo). Tchauzinho! (Sai. Suzana começa a
tomar o café).
IRMÃ DE OTÁVIO (Saindo do quarto, com um hábito de noviça, bem
menos exagerado do que o usado quando chegou, passa
pela cozinha e, vendo Suzana, resolve entrar) – Bom dia!
SUZANA – Bom dia, irmã! Dormiu bem?
IRMÃ DE OTÁVIO – Bem obrigada, e você?
SUZANA – Mais ou menos, irmã!
IRMÃ DE OTÁVIO – Como é que você se chama?
SUZANA – Brigitte. (Caindo em si). Não! Não! Eu me chamo Suzana.
Suzana Alice dos Santos.
IRMÃ DE OTÁVIO – Ah! Muito bem, Suzana. Só que eu ainda não sou
uma irmã de caridade. Eu, por enquanto, sou noviça.
SUZANA – Quer dizer que a senhora não é freira?
IRMÃ DE OTÁVIO – Ainda não, mas pretendo ser.
SUZANA – Que pena!
IRMÃ DE OTÁVIO – Pena por quê?
SUZANA – Ah! Sei lá... A senhora é tão bonita, tão moça...
IRMÃ DE OTÁVIO (Sorrindo) – Obrigada.
SUZANA – Se eu fosse a senhora...
IRMÃ DE OTÁVIO (Cortando) – Por favor, Suzana, me chame de você.
SUZANA – Tá legal. Mas se eu fosse você, desistiria de tudo isso...
(Tempo). Ainda está em tempo, não está?
IRMÃ DE OTÁVIO – Está.
SUZANA – Então, cai fora logo disso de uma vez.
IRMÃ DE OTÁVIO – Bem..., eu...
SUZANA – Como é o teu nome?
IRMÃ DE OTÁVIO – Ah: me desculpe, Suzana. Eu esqueci de me
apresentar. Eu sou chamada pelas irmãs, de Maria do Rosário.
SUZANA – Mas é esse o teu nome?
IRMÃ DE OTÁVIO (Pausa) – Não... O meu verdadeiro nome é Vanessa.
SUZANA – Então? Corta essa de Maria do Rosário! Vanessa é muito
melhor, muito mais legal.
VANESSA (Contente) – Você acha?
SUZANA – Claro pô! (Tempo). Maria do Rosário não tá com nada.
VANESSA (Pausa) – Bem, mas..., eu não posso, não devo... (Tempo).
Sabe: eu preciso me acostumar.
SUZANA – Não pode por quê? Deixa de ser boba! As minhas colegas
vivem me dizendo: (imita as colegas) a gente só deve se
arrepender das coisas que não fez. (Tempo). E eu acho que
elas têm razão. Por isso que eu te digo: desiste disso tudo
enquanto pode.
VANESSA – Por favor, Suzana... Você está me deixando confusa.
(Tempo). Vamos falar de outra coisa?
SUZANA – Vamos.
VANESSA (Respirando aliviada) – Ótimo. (Tempo). Do quê?
SUZANA – De homem.
VANESSA (Assustada) – Ahn?... De homem?
SUZANA – É... De homens, de namorados.
VANESSA (Confusa) – Não! Eu não saberia o que dizer. (Tenta sorrir).
Eu nunca tive namorados.
SUZANA – Não mesmo?
VANESSA – Não! (Pausa). Bem, na verdade, eu tive um, mas já faz
algum tempo e...
SUZANA – Um? (Pausa). Vanessa: um só?
VANESSA (Pensativa) – Alguns...
SUZANA – Ah! Já tá melhorando.
VANESSA – O que é que você quis dizer com isso?
SUZANA – Nada. Eu até acho... (tentando sorrir), acho isso tudo muito
natural.
VANESSA (Cortando) – Olha aqui Suzana:... Todo o mundo já teve um
namorado.
SUZANA – Claro! Um ou mais de um, não é?
VANESSA – Pois é. Eu tive alguns... (Tempo). Mas um foi o que na
verdade me marcou mais.
SUZANA – Por quê?
VANESSA – Ora! Sei lá... Acontece.
SUZANA – Amor?
VANESSA (Pausa) – Talvez!...
SUZANA – Talvez não, isso já era. (Tempo). Sim ou não?
VANESSA – Sim... Eu amei. (Pensativa). Mas um só homem.
SUZANA (Sacando) – Ahn? (Tempo). É legal, né?
VANESSA – O quê?
SUZANA – Amar alguém.
VANESSA – É... (Pausa). Foi.
SUZANA – Foi?
VANESSA (Rápida) – É. Foi. Passado. Acabou.
SUZANA – Outros virão...
VANESSA – O quê? Não, de forma nenhuma! Eu não quero mais saber
disso! (Tempo). Por favor, vamos mudar de assunto?
SUZANA (Como se não tivesse ouvido) – Esse cara te marcou muito,
né?
VANESSA (Pensativa) – Sim..., muito... (tempo), mas já acabou.
SUZANA – Ele... Ele te engravidou?
VANESSA (Afirma pensativa) – Hum! Hum!... E depois sumiu. (Cai em
si). Ô meu Deus!... O que é que eu estou dizendo? (Para
Suzana). Olha Suzana: isso ninguém sabe, ouviu bem?
Ninguém! Esqueça isso, por favor.
SUZANA (Fazendo um gesto com a mão na boca) – Pode deixar: eu
sou um túmulo.
VANESSA – Olha: eu gostaria de mudar de assunto.
SUZANA – Tá legal! (Tempo). Vamos falar... (pensativa)..., deixe-me
ver... (tempo), do Fernando?
VANESSA (Susto) – Hein? Não. (Recompondo-se). Bem, isto é, nós
não temos nada o que falar a respeito do Fernando. (Tempo).
Não é mesmo?
SUZANA (Aproxima-se de Vanessa e a segura nos ombros, por
trás) – Nós não. (Tempo). Você tem.
VANESSA – Não. (Grita). Não é verdade!
SUZANA (Imitando alguma colega) – “Não tente tapar o sol com a
peneira”... (Sorri). Sabe? Esse é outro ditado que as minhas
colegas vivem me dizendo. (Tempo). Olha: (pausa)...
Ninguém, nesta casa - melhor do que eu - percebe os olhares
entre um homem e uma mulher.
VANESSA – Não, Suzana, por favor... Eu não posso, compreende? Eu
não posso!
SUZANA – Não pode por quê?
VANESSA – Não me pergunte isso, Suzana, porque eu não posso te
responder.
SUZANA (Ironicamente) – Talvez eu possa!
VANESSA (Gritando) – Você não pode.
SUZANA – Claro que posso. (Tempo). Você namorou alguns caras,
conheceu alguém muito importante, teve um filho dele...
VANESSA (Gritando) – Não é verdade! (Tempo). Eu abortei...
SUZANA – Abortou?
VANESSA – Sim.
SUZANA – Ou provocou esse aborto?
VANESSA (Pausa) – Provoquei.
SUZANA – Não devia.
VANESSA – Mas eu não queria...
SUZANA – Não queria?
VANESSA – Não podia.
SUZANA – Não podia por quê?
VANESSA – Porque a minha família jamais iria...
SUZANA – E daí? Enfrentasse! Não foi você quem fez?
VANESSA – Você não compreende! Eu...
SUZANA – Claro que compreendo. (Tempo). Você teve medo. (Pausa).
Medo que soubessem, medo que falassem, medo de uma
porção de coisas. (Tempo). Foi o caminho mais fácil... Abortou
e inventou essa de convento. (Tempo). Não foi?
VANESSA – Foi...
SUZANA – E tá numa boa? Não tá! Sabe por quê? Não tem vocação,
porque é mulher. (Tempo). Deixa de ser boba! Corta essa!
(Tempo). O Fernando é bonitão e deu umas olhadas em você
ontem à noite...
VANESSA – Você acha? Mesmo?
SUZANA – Claro pô!
VANESSA – Mas e quando ele souber que eu...
SUZANA – E daí? Eu acho até que você fez um benefício pra ele.
VANESSA – Como assim?
SUZANA – Bem: poupou o exaustivo trabalho de abrir o caminho...
(Vanessa sorri). Ora: deixe de ser boba! Isso de virgindade já
era. (Tempo). O cara hoje em dia que só quer casar com
mulher virgem, fica solteiro pra o resto da vida. (Toca o
telefone. Tempo). Deixa que eu atendo. (Tempo). Olha: eu
não tenho nada com a tua vida, mas pensa bem no que eu te
disse, (tempo) e no Fernando, viu? (Vanessa faz um sim
com a cabeça e entra no quarto. Suzana vai atender ao
telefone e cruza com Margô que vai em direção ao
banheiro).
MARGÔ – Bom dia, Suzana. Desculpe não parar, mas é que estou
apertadíssima...
SUZANA – Vai Dona Margô. Vai depressa que senão não dá tempo...
(Atende ao telefone. Margô entra no banheiro). Alô? Aqui
é..., é... (Tempo). Ah! Eu não sei o número. Com quem o
senhor quer falar? Ah! Sim. É daqui mesmo. Um momento que
eu vou chamar. (Vai para a biblioteca e acorda Armando).
Armando! Oh! Armando! (Tempo). Telefone.
ARMANDO – Pra mim?
SUZANA – É.
ARMANDO – Mande o Otávio atender.
SUZANA – Ele saiu.
ARMANDO – Saiu? Onde é que ele foi?
SUZANA – No supermercado.
ARMANDO – Tá legal. Eu atendo, então. (Levanta-se). Quem é?
SUZANA – Não sei.
ARMANDO – E por que não sabe?
SUZANA – Porque eu quebrei a minha bola de cristal.
ARMANDO – Confiada.
SUZANA (Engrossando) – Viada não, hein? Olha lá como fala.
ARMANDO (Indo para a sala) – Eu disse confiada.
SUZANA – Ah bom!
ARMANDO (Atendendo ao telefone) – Alô... Sim, é ele mesmo. Ah! É
o senhor? Felizmente tudo bem, e o senhor? Estimo. Mas o
que é que manda? Viajar? Mas é claro que sim. Quanto
tempo? Perfeitamente. E qual é a matéria? Puxa vida! Mas era
exatamente o que eu estava esperando! Isso vai dar uma
reportagem fantástica! Claro que é importante, mas será que
eu teria capacidade? Não, eu digo de desenvolver esse
trabalho. Ah! Muito obrigado, Doutor Rezende. O senhor está
me dando uma oportunidade única. Eu nem sei como lhe
agradecer. (Tempo). Só que eu precisaria pedir dispensa na
faculdade esses dias. Bom, isso é verdade. O interesse é
deles também em me dar essa dispensa, mas de todo o jeito,
eu preciso comunicar a ECA. Olha: façamos o seguinte –
amanhã eu aviso o senhor o que eles me disseram e nós já
podemos marcar o dia da viagem, certo? Perfeito! Então mais
uma vez muito obrigado, Doutor Rezende. Ora, do quê! De o
senhor ter se lembrado de mim. Perfeito. Então ficamos assim.
Amanhã sem falta eu lhe comunico. Certo. Até amanhã então.
Obrigado. (Desliga o telefone). Poxa! Essa é a maior
oportunidade da minha vida! (Pausa). Xi! Mas será que o
Otávio vai topar?
SUZANA – Topar o quê? (Tempo). Quem era?
ARMANDO – Você quer fazer o favor de não ser intrometida?
SUZANA (Com demagogia) – Lembre-se de que eu sou a sua noiva e,
portanto devo estar a par de tudo o que você fizer, ou você
prefere que eu fique dando um fora atrás do outro?
ARMANDO – Não. Claro que não.
SUZANA – Então me conta.
ARMANDO – Bem... É que o meu patrão quer que eu faça um trabalho
fora de São Paulo. Esse trabalho não só servirá para nota na
faculdade, como me dará a chance de desenvolver uma
excelente matéria sobre o assunto no jornal onde eu trabalho.
SUZANA – Você é repórter?
ARMANDO – Jornalista.
SUZANA (Animada) – Jornalista?
ARMANDO – Bem, quer dizer, sou e não sou. Na verdade, até eu
terminar a faculdade, eu só posso trabalhar no jornal como
free-lancer, isto é, como estagiário.
SUZANA – E em que jornal você trabalha?
ARMANDO – O Estado de São Paulo.
SUZANA – Não! É mesmo? (Armando nada responde e vai em
direção à biblioteca). Então você vai quebrar um puta galho
pra mim.
ARMANDO – Que galho?
SUZANA – Publicar uma foto minha no jornal!
ARMANDO – Publicar uma foto tua? Para quê?
SUZANA – Sabe o que é Armando? É que o meu pai é viúvo e eu sou a
única filha. (Tempo). Isto é, eu tenho mais dois irmãos, mas de
mulher eu sou filha única. (Tempo). E eu sempre tive vontade
de ser uma artista famosa... Sei lá, chacrete, artista de cinema,
garota propaganda, qualquer coisa assim, sabe? Mas quando
eu contei isso pro meu pai e disse que vinha morar em São
Paulo, ele quase me matou de paulada. E meus irmãos
ajudaram a me bater. (Tempo). Depois disso eu resolvi fugir lá
de casa mesmo e vim pra cá sozinha. Mas como eu estava
sem dinheiro, fui forçada a trabalhar numa boate bem
vagabunda. (Tempo). Bom, depois disso eu tive que cair na
vida mesmo, sabe como é, né? (Tempo). Agora, se saísse
uma foto minha no Jornal dizendo que eu sou uma grande
artista, ou qualquer coisa assim, era bem capaz do meu pai
me receber em casa de novo. (Tempo). Você publica uma foto
minha? Por favor, vá? Quem sabe dá certo?
ARMANDO – Bom... Eu não posso prometer nada, mas eu tenho uns
colegas de faculdade que trabalham nas Notícias Populares.
Eu vou falar com eles. Se for possível, eles publicam tá?
(Otávio entra com uns pacotes de supermercado, mas
nem Armando nem Suzana percebem sua entrada).
SUZANA (Dando um beijo na boca de Armando em sinal de
agradecimento) – Puxa vida, Armando! Você é o cara mais
legal que eu conheci em toda a minha vida!
ARMANDO – Obrigado. (Tempo). Você também é muito bacana.
OTÁVIO (Bate palmas com sarcasmo. Armando e Suzana separam-
se bruscamente. Otávio continua batendo palmas) – Que
lindo! Mas que poesia! Soou nos meus tímpanos como um
canto gregoriano!
SUZANA – Sabe o que é Otávio? Eu vou te explicar.
OTÁVIO (Para Suzana) – Cala a boca! (Para Armando). Como eu ia
dizendo, chegou o momento de se esclarecer tudo. (Tempo).
Faça o favor de chamar a sua mãe que eu quero colocar os
pingos nos is.
SUZANA – Mas Otávio: isso foi um mal entendido!
OTÁVIO (Gritando) – Ai! (Para Armando). Tapa a boca dessa mulher!
Ou melhor, (para Suzana) quer fazer o favor de vir até aqui?
(Tira do pacote um rolo de esparadrapo e aplica uma tira
larga na boca de Suzana). Fala, fala agora que eu te atiro
esta lata de creme de leite na cabeça! Fala!
ARMANDO (Amedrontado) – Otávio: veja lá o que vai fazer, hein?
(Tempo). A minha mãe tem idade e se ela souber alguma
coisa sobre nós dois, ela pode morrer.
OTÁVIO (Nervoso) – Porra Armando! Eu já vi gente burra, mas como
você, tá pra nascer.
ARMANDO – Por quê?
OTÁVIO – Porque qualquer criança na idade pré-escolar sabe
perfeitamente que bruxa é imortal. Não morre nunca,
Armando.
MARGÔ (Sai vestida do banheiro, passando pela sala) – Oi gente!
(Para Suzana). O que é esse esparadrapo na sua boca, minha
filha? Você se machucou? (Suzana balbucia algo). Não
entendi.
OTÁVIO – Sabe o que é Dona Margô?
ARMANDO – Otávio!
OTÁVIO – É que a Suzana adora fingir que é um peixe carnívoro e se
empolga tanto com a brincadeira que morde a gente de
verdade.
MARGÔ – Ah bom!... (Sorri). Mas que espécie de peixe é esse?
OTÁVIO – Piranha.
MARGÔ (Dá uma gargalhada) – Ah, essa é boa! Esses jovens têm
cada uma! (Tempo). Bom, vocês vão me dar licença um
instante, que eu vou fazer umas comprinhas. (Tempo). Mas
volto pra o almoço, hein?
OTÁVIO (Irônico) – Evidente que volta.
MARGÔ – Tchauzinho, meus filhos. (Armando vai para a biblioteca e
pega um livro).
SUZANA (Tirando o esparadrapo) – Tchauzinho...
OTÁVIO – Adeus... (Margô sai. Otávio vai para a cozinha com os
pacotes, cantarolando alguma coisa, percebe que não
comprou algo que faltava). Ai, meu Deus do céu: esqueci de
comprar a cebola! (Armando com o livro, cruza a sala em
direção ao banheiro). E me toca voltar ao supermercado. (Sai
da cozinha. Quando passa pela sala vê Armando e
Suzana). Espera um pouco... (Tempo). Eu, ir ao
supermercado, e deixar vocês dois aqui sozinhos? Nem
pensar! Eu caio nessa uma vez só... (Para Suzana). Você vai
ao supermercado comprar a cebola que está faltando.
SUZANA – Tá legal. (Tempo). Cadê a grana?
OTÁVIO (Irritado) – Um momento, sim? (Para Armando). Armando: dá
o dinheiro para a cebola. (Armando tira algum dinheiro do
bolso e entrega a Suzana. Otávio avança no dinheiro que
está nas mãos dela). Um momento: deixa eu ver quanto tem.
(Conta o dinheiro e entrega-o para Suzana). Tem troco, viu?
(Suzana pega o dinheiro, guarda-o no sutiã e, sem
responder nada, vai saindo). Ouviu?
SUZANA (Gritando) – Ouvi. (Sai).
OTÁVIO – Armando: cadê aquele slide?
ARMANDO – Que slide?
OTÁVIO – O maldito. (Tempo). O que criou toda esta confusão.
ARMANDO – Tá guardado. Por quê?
OTÁVIO (Indo para a cozinha) – Porque eu só vou ter sossego no dia
em que eu botar ele dentro da soda cáustica.
ARMANDO (Sorrindo) – Deixa de ser bobo. (Vai indo para o
banheiro).
OTÁVIO – E faça o favor de não demorar aí, que o senhor tem que me
explicar a respeito do “canto gregoriano” que eu ouvi ainda há
pouco... (Armando entra no banheiro. Otávio pegando uns
tomates, sempre cantarolando, vai até a pia para lavá-los,
percebe que a mangueira ainda está na torneira). Ai! A
mangueira ainda está aqui! Que horas serão? (Vai até a porta
do banheiro). Armando: que horas são?
ARMANDO – Onze e quinze.
OTÁVIO – Onze e quinze? Ah! Então eu já posso recolher a mangueira.
(Rindo). Ai, que ótimo! Pelos meus cálculos a estas alturas o
apartamento das piranhas do 21 já deve estar todo alagado.
(Vai para a janela e começa a puxar a mangueira). Juro que
eu daria qualquer coisa só pra ver a cara delas na hora que
elas acordassem com o apartamento todo alagado...
(Recolhida a mangueira, fecha a janela). Missão cumprida!
(Vai para a cozinha, cantarolando e enrolando a
mangueira. Em seguida inicia o almoço).
ARMANDO (Saindo do banheiro, vai para a cozinha) – Acredite
você ou não, eu estava apenas fazendo um favor para a
Suzana.
OTÁVIO – Escuta aqui, Armando: afinal de contas, você tá querendo me
dizer que eu sou o quê? Eu me chamo Otávio, não otário, tá?
E tem mais: a mentira tem perna curta, e se essa história não
for verdade, mais cedo do que você pensa eu fico sabendo.
ARMANDO – Bom: se você não acredita, então vá à merda! (Tempo).
Eu tinha uma coisa pra te contar, mas não vou falar porra
nenhuma! (Sai da cozinha e senta-se na sala. Otávio dá de
ombros. Armando começa a folhear uma revista).
OTÁVIO (Se arrepende e vai até a soleira da porta) – O que é?
ARMANDO (Nervoso) – Nada.
OTÁVIO – Fala vá!
ARMANDO – Era uma novidade.
OTÁVIO – Boa?
ARMANDO – Ótima.
OTÁVIO – Então fala. (Tempo). A respeito do quê?
ARMANDO – Adivinha.
OTÁVIO (Pausa) – A tua mãe vai embora?
ARMANDO (Levantando-se do sofá, vai para a cozinha com Otávio)
– Não. Uma coisa que você sempre quis.
OTÁVIO – Aumento de salário?
ARMANDO (Afirmando) – Hum! Hum! Acertou.
OTÁVIO (Alegre) – Não! Graças a Deus! (Tempo). De quanto?
ARMANDO – Bom... Isso eu só vou saber depois que eu voltar.
OTÁVIO – Voltar de onde?
ARMANDO – Oh, Tatá... (Tempo). Da viagem...
OTÁVIO (Intrigado) – Que viagem?
ARMANDO – Olha: presta atenção, Tatá, que eu vou te contar tudo
direitinho. (Tempo). Senta aqui. (Tempo). Deixa essa louça
pra lavar depois.
OTÁVIO – Não senhor... Eu estou muito bem aqui lavando louça.
(Tempo). Quer fazer o favor de me explicar que história é essa
de viagem?
ARMANDO – Bom: é o seguinte..., o redator-chefe do jornal me
telefonou hoje, e me disse...
OTÁVIO (Intrigado) – Hoje? A que horas?
ARMANDO – Você tinha ido ao supermercado.
OTÁVIO – Ahn... Sei!... E daí?
ARMANDO – Daí que ele me ofereceu a chance da maior oportunidade
da minha vida.
OTÁVIO (Seco) – E em que consiste essa chance?
ARMANDO – Bem, todo aluno de jornalismo se interessa por uma boa
matéria, não é mesmo?
OTÁVIO (Irritado) – É.
ARMANDO – Então.
OTÁVIO – Então, o quê?
ARMANDO – O redator me escolheu pra fazer essa matéria. (Tempo).
Não é maravilhoso?
OTÁVIO – Bem... Depende...
ARMANDO – Depende do quê, Tatá?
OTÁVIO – Do local. (Tempo). Você não disse que tinha uma viagem
nessa história? Então: depende do local onde deve ser
executada essa matéria. Armando: ... (tempo) qual é o local?
ARMANDO (Receoso) – No Piauí.
OTÁVIO (Balançando negativamente a cabeça) – Tsc... tsc... tsc...
(Afirma). Você não vai.
ARMANDO – Por quê?
OTÁVIO – Porque não.
ARMANDO – Mas eu não entendo você, Tatá!
OTÁVIO (Irritado) – Ora: não se faça de idiota! Você pensa que uma
viagem dessas pro Piauí fica barata? E o tempo? Você acha
que em dois dias dá pra você ir e voltar?
ARMANDO – Mas as despesas serão todas pagas pelo jornal.
OTÁVIO (Ironicamente) – E de quantos dias será essa viagem?
ARMANDO – Vinte dias só.
OTÁVIO (Contendo a raiva para não estourar) – Armando: é melhor
você sair daqui antes que eu te arrebente uma garrafa na
cabeça.
ARMANDO – Mas é a grande chance da minha vida!
OTÁVIO (Calmo) – Tem lugar pra mim nessa viagem?
ARMANDO – Claro que não.
OTÁVIO – Então você acabou de perder a grande chance da tua vida.
ARMANDO – Mas você não vive dizendo que era preciso ter aumento?
OTÁVIO (Quase gritando) – Aumento de salário é uma coisa. Agora
aumento de férias pra você e aumento de serviço pra mim, que
fico o dia inteiro aqui dentro, lavando, passando, fazendo
pulôver de crochê pra você fazer economia do seu dinheiro, é
muito diferente! Porque o senhor sabe muito bem, que eu
detesto fazer o serviço de casa, bem como odeio fazer crochê!
E faço! (Tempo). E os meus estudos? Eu também tenho
trabalhos pra fazer e um livro de Direito Penal (mostrando)
deste tamanho pra decorar!
ARMANDO (Desapontado) – Bom... Então, como ficamos?
OTÁVIO (Irritado) – Como sempre estivemos. Aqui em São Paulo e
assunto encerrado.
ARMANDO (Indo para a sala) – Muito bem, mas saiba que foi você
quem decidiu.
OTÁVIO (Da cozinha) – Armando! Quer fazer o favor de vir aqui que eu
ainda não acabei?
ARMANDO (Vindo até a cozinha) – Ué? Você não disse assunto
encerrado?
OTÁVIO (Cortando) – Um deles. (Tempo). Eu tenho outros a tratar, e
urgentes!
ARMANDO – Então, fala logo.
OTÁVIO – O canto gregoriano com a Suzana. Você acabou não
explicando o que era.
ARMANDO – Porra! Ela me pediu um favor, eu já disse.
OTÁVIO – Que favor?
ARMANDO (Explica irritadamente) – Ela me pediu que intercedesse
junto aos jornalistas das Notícias Populares, para publicarem
uma foto dela no jornal. E eu disse que, na medida do
possível, iria tentar. Aí ela ficou agradecida e me beijou.
(Tempo). Foi isso. Acredite se quiser: tá? (Sai para a sala).
OTÁVIO – Armando!... Eu ainda não terminei.
ARMANDO (Volta para a cozinha e grita) – O que é desta vez?
OTÁVIO – Faça o favor de dizer pra “estrela cadente” da tua mãe que
aqui não é hotel e muito menos colônia de férias, se é o que
ela está pensando.
ARMANDO – Mas quem te disse que a minha mãe está pensando isso?
OTÁVIO – Porra Armando! Mas ninguém precisa me dizer. Eu vejo, não
sou cego! (Tempo). Uma mulher que dorme até a hora que
bem entende, não levanta uma palha do chão nem por
misericórdia, e ainda por cima, sai para fazer (imitando a
Margô) “umas comprinhas”, (tempo) mas volta para o almoço!
(Pausa). Será que não passa pela cabeça dela quem é que vai
fazer o almoço?
ARMANDO (Calmamente) – Sinceramente não, Otávio. (Tempo).
Minha mãe nunca cozinhou e nunca se preocupou com isso.
Na verdade, nós sempre tivemos cozinheira em casa. E
quando acontecia de faltar a cozinheira, nós comíamos em
restaurante ou em pensão, dependendo das posses da
ocasião. (Vanessa sai do quarto, sem o véu de noviça e, se
possível, com um hábito mais simples do que o anterior.
Otávio faz um gesto de silêncio para Armando).
OTÁVIO – Psiu! A minha irmã... (Vai até o batente da porta e pergunta
para Vanessa). Bom dia Vanessa... Você quer café ou chá?
VANESSA – Obrigada, Otávio. Eu... Eu estou fazendo jejum pela
manhã.
OTÁVIO (Insiste) – Então, só um cafezinho.
VANESSA – Bem, um cafezinho eu aceito. Aliás, pensando bem, o
jejum é uma besteira mesmo.
OTÁVIO (Para Armando) – Toma. (Entrega uma xícara com café). Vai
levar pra ela.
ARMANDO (Levando o café para Vanessa) – Bom dia: dormiu bem?
VANESSA – Bem, obrigada, e você?
ARMANDO – Eu também... (Sorri).
VANESSA – E a senhora sua mãe..., e o seu irmão? Dormiram bem?
ARMANDO – Olha: para ser sincero, o meu irmão, eu não sei. Quando
eu levantei, ele já tinha saído. Parece que levantou muito
cedo. Agora minha mãe dormiu bem, sim, ela saiu pra fazer
umas compras, mas já deve estar de volta.
VANESSA – Eu também me levanto muito cedo.
ARMANDO – Bem... (olhando no relógio), mas, então, hoje...
VANESSA (Cortando) – Hoje também eu levantei cedo. Acontece que a
hora em que eu me levantei você ainda estava dormindo. Se
não me engano, apenas o Fernando, o Otávio e a Suzana
tinham se levantado.
OTÁVIO (Gritando da cozinha) – Eu já te falei, Armando, os dois
únicos vagabundos nesta casa são você e a estrela cadente.
ARMANDO (Gritando) – Cala essa boca! (Para Vanessa). Não repare:
nós brincamos muito, sabe?
SUZANA (Entrando com pacotes) – Olá pessoal!
ARMANDO – Oi Suzana!
VANESSA – Onde você foi, hein?
SUZANA – Comprar cebolas.
OTÁVIO (Da cozinha) – Quer fazer o favor de trazer logo essa cebola,
que eu já estou atrasado.
VANESSA (Levantando-se, fala da sala) – Otávio: você quer ajuda?
OTÁVIO (Da cozinha) – Não, imagine... Era só o que faltava! (Tempo).
Você aqui é visita, meu anjo!
VANESSA – Bom, se é assim... (Para Suzana). Suzana: vem aqui no
meu quarto um pouco. Eu tenho uma coisa pra te mostrar.
SUZANA – Claro pô! É pra já! (Suzana e Vanessa entram no quarto).
ARMANDO (Vai para a cozinha) – Quer dizer que a sua irmã pode ser
visita. Agora a minha mãe não, né?
OTÁVIO (Tentando sorrir) – Não, Armando... Não é bem assim, sabe?
É que a minha irmã, coitadinha, quase não sai daquele
convento e... (Toca a campainha. Otávio, gentilmente, para
Armando). Vai ver quem é.
ARMANDO (Vai abrir a porta) – Oi! É você?
FERNANDO (Entrando) – Pois é: já cheguei. (Sentindo o cheirinho da
comida). Hum! O cheirinho está bom. (Passando na porta da
cozinha). Como é: a boia está pronta?
OTÁVIO (Sorridente) – Quase..., quase... (Tempo). E então? Como foi
o seu dia hoje?
FERNANDO – Foi tudo bem... Deu tudo certo!
OTÁVIO – Viu? Eu não disse? Eu tinha certeza! (Toca a campainha).
FERNANDO – Podem deixar que eu vou abrir. (Vai até a porta).
MARGÔ (Entrando cheia de bonitos pacotes) – Olhem só o que eu
comprei no shopping aqui em baixo! Um presente para cada
um!
OTÁVIO (Vindo da cozinha) – Eu não acredito. Só vendo...
MARGÔ (Entregando para Armando uma enorme caixa) – Este é
para você.
ARMANDO – Ora mamãe! Que besteira: não precisava se incomodar...
MARGÔ – Imagine: não é incômodo algum. (Entrega para Fernando
outra caixa de igual tamanho). Este é para você.
FERNANDO – Obrigado mamãe.
MARGÔ (Entrega para Otávio uma gravata desembrulhada e uma
margarida) – Isto é pra você... E esta margarida é pra sua
irmã.
OTÁVIO (Depois de uma pausa, fala ironicamente) – Por falar em
gravata, me ocorreu uma ideia. (Tempo). Vocês já ouviram
dizer que dia a dia aumenta o número de pessoas
assassinadas com gravatas?
ARMANDO (Pegando Fernando pelo braço, leva-o para a biblioteca)
– Venha Fernando: eu tenho uma matéria que gostaria muito
de discutir com você.
FERNANDO – Claro, claro! Me deixe ver. É sobre o que?
MARGÔ – Com licença, Otávio. Eu vou ao banheiro.
OTÁVIO – Não esqueça de puxar a descarga, viu?
MARGÔ – Ora imagine! Mas é claro! (Entra no banheiro).
OTÁVIO (Indo para o telefone) – Essa velha está me provocando...
Mas isso não vai ficar assim! (Disca um número). Alô! De
onde fala? Ah, por favor, o Doutor Cláudio está? É o Otávio.
Sim: aguardo. (Enquanto aguarda, cantarola). Alô! Cláudia?
(Falando baixo). Você sabe o que a bruxa me fez? (Toque de
campainha). Espera um pouco que estão batendo. (Vai até a
porta e destranca-a, sem ver quem estava batendo. Em
seguida volta para o telefone). Mas, viu? Imagine só o que a
jararaca teve a coragem de me aprontar? (Outro toque de
campainha). Um momentinho só, Cláudia! (Gritando para a
porta). Entra: a porta está aberta. (A porta se abre e entra
um homem muito forte, aparentando uns 50 anos, com
botas de vaqueiro, cara rude e fumando charuto).
HOMEM – Bom dia! A Suzana está?
OTÁVIO (Ainda com o telefone na mão, pergunta para o homem) –
Quem é o senhor?
HOMEM – Bem..., eu, na verdade, sou o...
OTÁVIO (Tapando a boca do homem com a mão) – Já sei! Nem
precisa dizer. Aliás, está na cara! (Tempo). É o cafetão dela,
né? (Para o telefone). Cláudia querida: o cafetão da piranha
chegou. Te ligo mais tarde. Bye bye... (Desliga o telefone. O
homem, no mesmo momento, agarra Otávio e o levanta
para o alto. Otávio grita desesperadamente). Socorro!...
Estúpido... Ai! Me acudam!... (Todos aparecem na sala,
desesperados com os gritos de Otávio).
SUZANA (Olhando para o homem, assustada e espantada) – Papai!
O senhor aqui?
FIM DO SEGUNDO ATO
TERCEIRO ATO
O pano abre. Aparecem sentados na sala Armando, Suzana e o pai
de Suzana.
SUZANA – Mas claro pai: eu já disse pra o senhor mais de mil vezes! O
Otávio é brincalhão, ele não quis ofender. Foi só uma
brincadeira.
ARMANDO – É verdade Seu..., Seu... (Tempo). Como é mesmo o nome
do senhor?
PAI DE SUZANA – Severino Antonio dos Santos, a seu dispor.
ARMANDO – Pois é Senhor Severino. O Otávio é assim. Ele adora fazer
brincadeiras com as pessoas.
SEVERINO – É, mas ele deve aprender que nem todas as pessoas
gostam de brincadeiras. E eu sou uma delas! Principalmente
este tipo de brincadeira!
SUZANA – Tá legal, pai. (Tempo). Eu vou falar com ele.
ARMANDO – Claro Senhor Severino! O senhor pode ficar sossegado
que isso não vai acontecer de novo.
SEVERINO – Bom. Também, se acontecer, o azar vai ser dele, porque
eu amasso a cara dele. (Suzana e Armando se entreolham.
Tempo). Falei claro?
SUZANA – Tudo bem, pai, tudo bem.
SEVERINO (Tempo) – Afinal de contas, Suzana, o que é que você está
fazendo aqui?
SUZANA (Assustada) – Como assim?
SEVERINO – Por que você dormiu aqui esta noite?
SUZANA – Bom, é que..., que eu já estou dormindo aqui há alguns dias,
e eu...
SEVERINO – A troco de quê?
SUZANA – Mas eu só vou ficar uns dois ou três dias no máximo.
(Tempo). E sabe, pai, a gente vai se casar!
SEVERINO – A gente quem?
SUZANA (Indo para Armando) – Eu e o Armando...
ARMANDO (Engasgando-se) – Pois é... Nós estamos noivos.
SEVERINO – E isso dá o direito de ocês dormir na mesma casa?
ARMANDO – Bom, não é bem assim... É que...
SEVERINO – É o quê?
SUZANA – Oh, pai! Vê se o senhor entende. (Tempo). Como é que o
senhor veio parar aqui?
SEVERINO – Bom... Sempre que ocê me escrevia, ocê mencionava o
lugar que tava morando, né?
SUZANA – É. E o senhor nunca respondeu as cartas que eu escrevi.
SEVERINO – Eu não tinha vontade.
SUZANA – E como é que o senhor veio parar aqui? (Tempo). Pai:
aconteceu alguma coisa?
SEVERINO – Não, não aconteceu nada. É que o patrão pediu pra mim
vir aqui em São Paulo comprar uns remédios pra passar no
gado e eu resolvi aproveitá e te visitá. (Tempo). Mas quando
eu cheguei no endereço que ocê me deu, tinha um papel na
porta dizendo que ocê tava neste outro endereço. Aí eu vim
até aqui.
ARMANDO (Tentando sorrir) – Ora, claro! O senhor fez muito bem.
SEVERINO – Mas eu não entendo o que é que você tá fazendo aqui.
(Tempo). Noivo e noiva só dormem na mesma casa depois de
se casar.
SUZANA (Pensando) – Sabe o que é pai? É que... É que... (Tempo). É
que no meu apartamento tão passando Cascolac.
ARMANDO (Aliviado) – É. É isso! Cascolac! Sabe como é, né?
SEVERINO – Não. (Intrigado). Cascolac? O que é isso?
SUZANA – É uma cera permanente, pai. Pra toda a vida.
SEVERINO (Não entende) – Cera?
ARMANDO – Olha: Cascolac tem um cheiro muito forte. Então, quando
ele é aplicado numa casa, as pessoas, que morarem dentro
dela terão que sair, porque senão, ficarão intoxicadas,
envenenadas com o cheiro desse produto. (Tempo).
Compreende?
SUZANA – Tá vendo, pai? Por isso que eu tô aqui. Mas é provisório.
Ficando pronto o Cascolac, eu já volto pra aquele endereço.
SEVERINO – E por que você não foi dormir no hotel comigo, esta noite?
SUZANA (Meio sem graça) – É: foi falta de ideia. (Tempo). Mas a Dona
Margô, a minha sogra, também está dormindo aqui e ela não
deixa a gente sozinhos um minuto, pai!
SEVERINO – Ahn! Sei. Tô entendendo. (Tempo). Mas quando vai ser o
casamento?
ARMANDO – Que casamento?
SEVERINO – O de ocês, diacho! (Tempo). Não tão noivos?
ARMANDO (Tentando sorrir) – Ah, sim! Estamos sim. (Tempo). O
casamento? Bem, na verdade nós ainda...
SUZANA (Cortando) – Daqui a três meses, pai.
SEVERINO (Pausa) – Puxa vida! Os seus irmãos e o pessoal lá da
cidade nem vão acreditar. (Tempo). Vamos fazer uma coisa:
ocês vão se casar lá na Igreja da minha cidade.
ARMANDO – Cidade! Mas que cidade?
SEVERINO – Jandaia do Sul, ora.
ARMANDO – Jandaia do Sul?
SEVERINO – É. Assim o pessoal não vai ter o que dizer.
ARMANDO – Bem... Na verdade nós estávamos pensando em...
SUZANA (Cortando) – Em fazer isso mesmo, pai. Só que a gente não
sabia se o senhor ia concordar. (Para Armando). Não é
mesmo, Armando?
ARMANDO (Desolado) – É.
SEVERINO – Ora que bobagem, meninos. (Tempo). Então já tá
resolvido. Daqui a três meses vocês se casam lá e pronto.
(Toque de campainha).
ARMANDO (Para Severino) – Um momento: eu vou abrir a porta. (Vai
até a porta e abre).
OTÁVIO (Entrando com um bonito pé de Comigo Ninguém Pode,
plantado em outro vaso) – Ai! Que peso! Venho carregando
isto desde o mercado. (Para todos). Oi gente! (Para
Severino). Nossa! O senhor já está aqui?
SEVERINO – É... Cheguei cedo.
OTÁVIO (Colocando o vaso no chão, continua falando
ironicamente) – Veio pra o almoço, né?
SEVERINO – Vim. Eu...
OTÁVIO – Claro!
SUZANA – Pra que esse vaso, Otávio?
OTÁVIO – Pra substituir aquele que você matou.
SUZANA – Eu? Mas eu nem me encostei na planta!
OTÁVIO – Eu sei que não. (Tempo). Foi o seu baixo astral. (Tempo).
Mas este aqui não vai morrer nunca, porque eu já plantei
arruda, guiné e alecrim em volta.
SUZANA (Nervosa com Otávio) – Olha aqui: eu não sei onde eu estou
que eu...
ARMANDO (Acalmando Suzana) – Meu amor: você já conhece o
Otávio. (Faz gestos de repreensão). Ele adora brincadeiras,
não é?
SUZANA (Disfarçando) – É: tem razão.
OTÁVIO (Para Severino) – E o senhor? Dormiu bem no hotel que eu
indiquei?
SEVERINO – Mais ou menos. (Tempo). Você sabe que lá não é mais
hotel?
OTÁVIO (Fingindo surpresa) – Não? É mesmo?
SEVERINO – Pois é. Agora é uma hospedaria.
OTÁVIO (Sarcástico) – Puxa vida! Isso é uma surpresa para mim.
(Tempo). Mas duvido que não tenha quebrado o seu galho.
SEVERINO – Ah! Bom... Isso quebrou!
OTÁVIO – Ótimo! Fico satisfeito. (Para todos). E o resto do pessoal?
SUZANA – O Fernando e a Vanessa foram dar uma volta.
OTÁVIO – Hum!... Isso tá me cheirando a namoro.
ARMANDO – Cheirando? Isso é namoro firme.
SEVERINO – Pelo jeito que eles saíram daqui, vai dar casório e dos
bons. (Todos riem, menos Otávio).
OTÁVIO (Sério) – Ai, que coisa engraçada! Se vocês contarem outra
piada desse tipo eu tenho um ataque (pausa ligeira) de riso.
(Pegando o vaso do chão). Ai: que peso!...
SEVERINO – É bom fazer um pouco de força. (Tempo). O levantamento
de peso é ginástica.
OTÁVIO (Corta) – Na sua cidade. Porque aqui o levantamento de peso
se chama halterofilismo (faz um gesto de musculatura): sobe
em cima e desce em baixo (fazendo outro gesto. Tempo). E
a estrela cadente? Tá dormindo, né?
ARMANDO – Não, Otávio, não está não. Ela levantou cedo, logo depois
que você saiu.
OTÁVIO – Sério?
SUZANA – É sim. Ela reclamou a noite toda. Disse que naquele sofá
não cabia eu e ela. (Tempo). Acho que foi por isso que ela
levantou cedo.
SEVERINO – Levantar cedo só faz bem.
OTÁVIO – Também acho. (Tempo). Eu tinha certeza que aqui ela ia
perder esse hábito, mas afinal de contas, onde é que ela foi?
SUZANA – Foi fazer compras.
OTÁVIO – Mas vem pra o almoço?
ARMANDO – Não sei Tatá. Talvez venha.
OTÁVIO – Mas que santa ingenuidade a sua! (Tempo). Vem sim, claro
que vem! Aliás, (coloca o vaso de novo no chão) eu acho
até que vou abandonar os meus estudos de Direito e abrir um
pensionato neste recinto. Eu já andei até pensando em pôr
uma placa na Portaria do prédio: (tempo) AP 12 –
PENSIONATO O CU DA MARIA JOANA. (Pega o vaso que
estava no chão e entra no banheiro).
SEVERINO (Rindo) – É. Ele é engraçado mesmo, mas tem uma boca
suja!
SUZANA – Eu não disse pai? Ele é engraçado, né?
ARMANDO (Irritado) – Ele é ótimo! Mas a hora que eu puser as mãos
nele, (tenta sorrir) ele vai ficar melhor ainda.
SEVERINO – Quem é essa estrela cadente?
SUZANA – É a minha futura sogra, pai, a Dona Margô.
SEVERINO – E por que estrela cadente?
ARMANDO – É que quando minha mãe era mais moça, ela era atriz.
SUZANA (Animada) – É sim, pai. Ela me disse que foi estrela de
cinema, (tempo) mas agora ela tá um pouco afastada, sabe?
SEVERINO – Ah! Então é por isso! (Tempo). Mas ela é bonitona ainda...
(Otávio sai do banheiro). E tem muita lenha pra queimar.
OTÁVIO – E pode-se saber aonde vai ser esse incêndio?
SEVERINO (Rindo) – Ai! Essa é boa!... Nós estávamos falando da Dona
Margô.
OTÁVIO – Não! Da Dona Margô? Verdade? Ai! Meu Deus! Não acredito.
Será que eu vou me transportar pra Idade Média? (Tempo).
Mas vai ser maravilhoso voltar pra o tempo da Inquisição, onde
essas bruxas eram queimadas em enormes fogueiras. (Ri.
Severino e Suzana também riem muito).
ARMANDO (Enfurecido) – Otávio! Isso já está passando dos limites!
(Otávio joga um beijo para Armando, sem que os outros
vejam).
SEVERINO (Rindo) – Esse Otávio tem cada uma!
SUZANA – Ele é um barato hein, pai?
OTÁVIO (Para Severino) – Otávio não. (Pausa). Doutor Otávio.
(Armando dá uma gargalhada de deboche).
SEVERINO – Ué! Você não falou agora mesmo que ia largar os
estudos? (Brincalhão). Então é porque você não é Doutor.
OTÁVIO (Sarcástico) – Já que o senhor é tão esperto, (tempo) quem
sabe o senhor consegue medir quantos palmos têm a minha
samambaia de metro, hein?
SEVERINO – Ah, depois... (Tempo). No momento eu quero saber mais
a respeito da Margô. (Olhando para Armando, tenta
disfarçar). Isto é: da Dona Margô.
OTÁVIO – Você viu só, Armando? Isso me parece amor à primeira vista.
ARMANDO – Deixa de ser bobo! Ele está fazendo apenas um
comentário.
OTÁVIO (Para Severino) – O senhor aceita um cafezinho?
SEVERINO – Não obrigado.
OTÁVIO – E um aperitivo?
SEVERINO – Ah, isso eu aceito!
OTÁVIO – Ótimo. E que drink o senhor prefere?
SEVERINO (Não entendendo) – O quê?
OTÁVIO (Mais alto) – O que é que o senhor quer beber?
SEVERINO – Ah! Sim... (Tempo). Uma cachaçinha até que vai bem.
OTÁVIO – Isso não tem.
SEVERINO – Não?
OTÁVIO – Não.
SEVERINO – Bem, então...
OTÁVIO – Pode deixar. (Para Armando). Armando: prepara uma
bebida para o senhor Severino. (Tempo). Mas bem reforçada.
SEVERINO (Para Armando) – É meu rapaz! Prepara uma bebidinha
aqui pra o seu futuro sogro.
ARMANDO (Levantando-se, finge gentileza) – Como todo o prazer,
senhor Severino. Pode deixar por minha conta. (Vai para a
cozinha).
OTÁVIO (Para Severino, com espanto) – Que história é essa de
sogro?
SEVERINO (Contente) – Eles vão se casar (tempo) você não sabia?
SUZANA – Claro, papai, o Otávio sabe sim. (Tempo). Ele vai até ser o
nosso padrinho. (Para Otávio). Não é mesmo?
OTÁVIO – Ah! Sim! O casamento... (Tempo). Claro, claro que eu vou
ser o padrinho.
SEVERINO – Então...
OTÁVIO – Pois é. (Para Suzana). Vai minha filha: acompanha o seu
noivo.
SUZANA (Levanta-se e vai atrás de Armando na cozinha) – Tá legal.
OTÁVIO (Para Severino) – Psiu! Psiu! O senhor está a fim da coroa?
SEVERINO – Do quê?
OTÁVIO – Do quê não, de quem? Da estrela cadente.
SEVERINO – Bem, sabe como é... Eu sou um homem pobre.
OTÁVIO – Porra! Eu perguntei se o senhor está ou não a fim da velha.
SEVERINO – Tô.
OTÁVIO – Ótimo.
SEVERINO – Mas sabe como é: eu sou pobre e...
OTÁVIO – Mas muito pobre?
SEVERINO – Muito! Sabe: eu sempre fui muito pobre. Lutei a vida toda,
nunca deu pra juntar nada. Minha mulher morreu de parto e
tudo que eu ganhei foi sempre pra os meninos. (Tempo). E ela
deve ser rica, né?
OTÁVIO – Ah! Isso é verdade. Ela é riquíssima!
SEVERINO – Então é quase impossível.
OTÁVIO – Mas não de todo...
SEVERINO (Surpreso) – Ahn?
OTÁVIO – O senhor quer que eu dê um jeitinho?
SEVERINO (Alegre) – Mas será que vai dar certo?
OTÁVIO – Ô meu Deus! (Irritado). O senhor quer fazer o favor de
responder apenas o que eu pergunto? (Tempo). O senhor
quer ou não quer que eu dê um jeitinho?
SEVERINO – Claro que quero!
OTÁVIO – Então deixa comigo. (Tempo). Mas o senhor terá que fazer
tudo o que eu disser, certo?
SEVERINO – Certo.
OTÁVIO – Muito bem. (Tempo). Primeiro: bebe logo esse drink, (tempo)
esse aperitivo que o Armando vai trazer e fala que precisa sair
pra fazer umas compras.
SEVERINO – Mas eu já comprei o que precisava.
OTÁVIO – Não faz mal. Finge: sei lá. Finge que esqueceu alguma coisa.
SEVERINO – Tá bom.
OTÁVIO (Corta) – Segundo: não diga pra velha em hipótese alguma
que o senhor é pobre.
SEVERINO – Mas e se ela perguntar?
OTÁVIO (Desolado) – Tal pai, tal filha. (Tempo). O senhor e louco? O
senhor acha que ela vai perguntar: (imitando Margô) o senhor
é rico ou é pobre?
SEVERINO – Bem, nunca se sabe né?
OTÁVIO (Afirmando) – Claro que não! (Tempo). Ela é grossa, mas
nem tanto! (Armando chegando com o drink na mão).
SEVERINO – O quê?
OTÁVIO – Psiu! Nada. (Baixo). Já sabe né? Bebe logo e cai fora.
ARMANDO – Aqui está. Não sei se o senhor vai gostar.
OTÁVIO – Vai gostar, sim.
SEVERINO (Pegando o drink) – Com certeza. (Tempo). Obrigado.
(Bebe tudo de um gole só). Ufa! (Ficando sem fôlego).
Bem... (recompondo-se), eu preciso ir andando. (Levanta-
se).
SUZANA – Onde é que o senhor vai, pai?
OTÁVIO (Falsamente) – Ora senhor Severino: fique mais um pouco. É
tão cedo.
SEVERINO (Não entendendo Otávio) – Mais um pouco? (Senta-se
novamente). Bom, se é assim, então eu fico mais um pouco.
ARMANDO (Para Severino) – O senhor está se sentindo bem?
SEVERINO – Claro! (Pegando o copo). Isso esquenta um pouco, mas
eu estou bem. Aliás, eu na verdade estou ótimo!
OTÁVIO (Para Armando) – Abre a janela. Acho que ele não está se
sentindo bem não... (Armando corre para abrir a janela.
Otávio para Suzana). Abana ele, menina. (Suzana pegando
uma revista; abana o pai).
SEVERINO – Eu não tenho nada! Eu estou bem. (Otávio quando
Armando e Suzana estão de costas, faz gestos para
Severino ir embora. Severino percebe Otávio). Bom, a
conversa tá muito boa, mas eu preciso ir andando.
SUZANA – Andando pra onde, pai?
ARMANDO (Voltando) – Não... Espere um pouco.
SEVERINO – Eu volto já. Eu só vou comprar uma coisa que eu esqueci
e volto em seguida.
SUZANA – Espera aí, pai, eu vou com o senhor. Um momentinho só, eu
só vou buscar minha bolsa. (Vai para o quarto).
ARMANDO – O senhor tem mesmo certeza de que está bem?
SEVERINO – Claro! Não se preocupe. Eu posso estar velho, mas ainda
estou em forma. (Tempo). E depois, um aperitivozinho antes
do almoço só pode fazer bem.
OTÁVIO – Ai, meu Deus! O almoço. (Para Severino). Com licença. (Vai
para a cozinha).
SEVERINO (Para Otávio) – Tem toda. Fique à vontade. (Para
Armando). Meu rapaz, em Jandaia do Sul vai haver a maior
festança daqui a três meses.
ARMANDO – Não me diga? (Tempo). É o aniversário da cidade?
SEVERINO – Que nada menino! É o seu casamento. (Dá uma
gargalhada).
ARMANDO (Tenta sorrir) – Ah! É verdade...
SUZANA (Saindo do quarto) – Pronto, pai, vamos indo.
SEVERINO – Vamos minha filha. (Para Armando). Até daqui a pouco.
(Para Otávio, mais alto). Até já, Otávio.
OTÁVIO (Da cozinha, gentilmente) – Até logo, senhor Severino.
(Severino sai).
SUZANA (Dando um beijo na boca de Armando) – Tchauzinho, meu
bem. (Tempo). Cuide-se, hein? (Para Otávio, mais alto).
Tchau Otávio. (Otávio da cozinha faz um gesto de deboche.
Suzana sai).
ARMANDO (Fica um instante perplexo na porta, em seguida vai
para a cozinha) – Você ainda não sabe da maior.
OTÁVIO (Fazendo o almoço) – O que é?
ARMANDO – O velho quer que a gente se case daqui a três meses.
OTÁVIO – A gente? A gente quem?
ARMANDO – Eu e a Suzana.
OTÁVIO – Ah! Bom. (Tempo). Eu não te disse que aquele slide era
maldito? (Tempo). E você?
ARMANDO – Eu o quê?
OTÁVIO – O que foi que você falou?
ARMANDO – Nada. (Tempo). O que é que você queria que eu
dissesse?
OTÁVIO – E eu sei lá? (Tempo). Qualquer coisa, porra! Você devia ter
dito que está sem dinheiro, que hoje em dia tudo é caro, que
as igrejas pediram um preço muito alto e que assim que você
puder você...
ARMANDO – Não. Ele quer que o casamento seja feito na cidade dele.
OTÁVIO – E onde ele mora? (Sempre fazendo o almoço).
ARMANDO – Jandaia do Sul.
OTÁVIO – Jandaia do Sul? Porra! Que lugar é esse? Eu nunca ouvi
falar nesse lugar.
ARMANDO – Eu já ouvi sim. E se não me engano fica no interior do
Paraná.
OTÁVIO – Então não tem jeito. (Pausa). A não ser que você queira...
(Para). Não. Não adianta. Você não vai concordar nunca!
(Tempo). Sei lá: vire-se!
ARMANDO – Fala. O que é? Quem sabe eu concordo?
OTÁVIO – Será?
ARMANDO – Não sei, ué! Fala!
OTÁVIO – Lembra ontem? (Armando reage desconhecendo). Quando
você veio me propor ir pra o Piauí?
ARMANDO (Lembrando) – Ah lembro: (tempo) mas você não
concordou.
OTÁVIO – Pois é: mudei de ideia.
ARMANDO (Contente) – É mesmo?
OTÁVIO – Com uma condição.
ARMANDO – Qual?
OTÁVIO – Uma empregada.
ARMANDO – O que?
OTÁVIO – Quero uma empregada e paga por você. Daquelas que lava,
passa, que arruma a casa toda e que principalmente cozinha!
Porque de fazer a Escrava Isaura todo o dia, eu já estou até
aqui! (Faz um gesto com a mão na testa). Olha!
ARMANDO – Não. Você sabe perfeitamente que o dinheiro que eu
ganho não dá.
OTÁVIO – Mas você não disse que se fosse pra o Piauí fazer esta
matéria ia ter o tão sonhado e decantado aumento de salário?
ARMANDO – Bem, disse... (Tempo). Pelo menos foi o que ele me
prometeu.
OTÁVIO – Então?
ARMANDO (Pausa) – Não. De maneira nenhuma.
OTÁVIO – Por quê?
ARMANDO – Porque você já está cansado de saber que eu não quero
gente estranha dentro de casa.
OTÁVIO – Tudo bem. Você é quem sabe: sem empregada, sem Piauí.
ARMANDO – Bom, mas o que é que tem isso a ver com o fato de eu
escapar do casamento que o velho quer que eu faça daqui a
três meses?
OTÁVIO – Teria, se você concordasse.
ARMANDO – Como assim?
OTÁVIO – Pois é, se você tivesse concordado; você poderia ir para o
Piauí amanhã mesmo. (Tempo). Você falava pra o velho que
se casaria daqui a três meses, conforme ele quer e...
ARMANDO (Cortando) – Taí! Tá vendo? (Tempo). Eu continuo me
casando daqui a três meses.
OTÁVIO – Espera... Eu não terminei ainda.
ARMANDO – Tá legal. Continua.
OTÁVIO – Você vai ficar fora uns vinte dias, não vai?
ARMANDO – Mais ou menos.
OTÁVIO – Então. (Tempo). Durante este tempo, eu procuro um outro
ap., nem que seja provisório. Alugo, mudo, escrevo pra você
ou pra o jornal, dando o novo endereço e pronto. (Tempo).
Quando que o velho vai descobrir você?
ARMANDO – É muito fácil. É só ele ir ao jornal.
OTÁVIO – Você pede transferência.
ARMANDO – Pra onde?
OTÁVIO – Pra o Jornal da Tarde, sei lá. Ou pra outro jornal qualquer.
(Tempo). O importante é que a gente mude de ap. (Tempo). E
depois, o velho é muito burro, não vai te achar nunca.
ARMANDO – É: podemos pensar.
OTÁVIO – Mas não se tem o que pensar! É o único jeito.
ARMANDO – E pra minha mãe, o que é que eu digo?
OTÁVIO – Ah! Isso é o de menos. Diz que desmanchou, que descobriu
coisas. (Sarcástico). Ou então, inventa a história da
samambaia de metro. (Armando coçando a cabeça,
pensativo, dá um suspiro). E então? Concorda ou não?
ARMANDO (Depois de uma pausa, decisivo) – Concordo.
OTÁVIO (Cantando) – Aleluia! Aleluia! (Tempo). Legal! (Tempo). Posso
ligar então?
ARMANDO – Ligar pra onde?
OTÁVIO – Pra agência de empregadas.
ARMANDO (Pausa) – Pode né? Que remédio!
OTÁVIO (Pega o telefone e disca) – Alô! De onde fala, por favor? Ah!
Sim. Por gentileza, será que o senhor pode me mandar uma
empregada? Mas que seja cozinheira também. (Continua em
mímica. Entram Fernando e Vanessa, de mãos dadas, e
muito contentes).
FERNANDO – Armando, o porteiro do prédio pediu pra entregar isso pra
você (entrega um envelope fechado) e disse pra você subir
imediatamente ao apartamento do síndico.
ARMANDO – Obrigado. (Abre o envelope).
VANESSA (Sentando-se no sofá) – Puxa! Nunca pensei em me divertir
tanto na minha vida, como hoje.
FERNANDO – Pô! Você é incrível, sabia? (Senta-se ao lado de
Vanessa. Vanessa fica imóvel, olhando para Fernando.
Fernando aproxima-se de Vanessa e lhe dá um beijo).
OTÁVIO (Desligando o telefone) – Pronto. Tudo arranjado.
ARMANDO (Terminando de ler a carta) – Não! Era só o que faltava!
OTÁVIO – O que foi? (Aproxima-se de Fernando). O que é que você
fez com a minha irmã? Hein, menino?
FERNANDO – Eu? Nada. Por quê?
VANESSA – O que é isso, Otávio? Ele não me fez nada.
OTÁVIO (Apontando para Armando) – E o que é então que essa
múmia tá resmungando que era só o que faltava?
ARMANDO – Oh, Otávio... Você parece bobo. Eu me referi ao que está
escrito aqui.
OTÁVIO – E o que é que está escrito?
ARMANDO (Entregando a carta para Otávio) – Toma: leia. (Otávio
começa a ler). Mas, não é possível...
FERNANDO (Para Vanessa) – Vamos lá na biblioteca?
VANESSA (Concordando) – Hum! Hum! Vai indo você, eu já volto.
(Entra no banheiro).
OTÁVIO (Terminando de ler) – Mas isso é uma calúnia!
ARMANDO – Claro que é. (Tempo). Você tá vendo? Eu cansei de te
avisar pra ignorar essas putinhas. Essa gente só cria
confusão.
FERNANDO – O que é que foi?
OTÁVIO – Nada. Assunto interno. (Tempo). Mas isso é uma mentira
muito grande! Que culpa temos nós se o apartamento delas
ficou alagado? (Tempo). Deixa que eu vou falar com o síndico,
isso é assunto pra mim.
ARMANDO – Você tá louco! Você vai me criar mais encrenca ainda.
OTÁVIO – Não senhor! Você é um songa-monga. É bem capaz de
concordar com tudo só pra evitar problemas. (Tempo). Nem
pensar! Eu vou.
ARMANDO – Otávio! Eu já disse que você não vai. Quem vai sou eu.
Pode deixar que eu sei o que faço. Eu vou ter uma conversa
com o síndico e explico pra ele o nível dessas meninas aí da
frente. (Tempo). Deixe comigo. Você vai ver: no fim tudo se
arranja e ele ainda vai me pedir desculpas.
OTÁVIO – Duvido muito. Enfim... (Dá de ombros).
FERNANDO – Eu vou com você, Armando.
ARMANDO – Então vamos. (Pegando a carta da mão de Otávio). Me
dá aqui essa carta. (Vai para a porta da rua com Fernando).
Eu volto já.
OTÁVIO – Armando! Não concorde nem afirme nada. Lembre-se de que
elas não têm prova alguma contra nós.
ARMANDO – Claro. Pode deixar. (Saem os dois).
OTÁVIO (Abrindo a janela e xingando) – Oh! Suas filhas da puta! O
quê? Espera aí... (Vai até a biblioteca e pega um livro de
direito, volta para a sala folheando o livro, procurando
algo. Vanessa sai do banheiro e vai para a biblioteca.
Otávio encontrando o que procurava). Tá aqui. (Vai para a
janela). Presta atenção, sua micheteira sambada. (Lê algo
com respeito às penalidades de calúnia, a critério da
direção do espetáculo). Você ouviu bem? Eu vou te pôr em
cana, sapatão! O quê? Que lei? Lei? (Tempo). O que é que
você entende de lei? Ah! Vá à merda!
VANESSA (Para Otávio) – Onde é que está o Fernando?
OTÁVIO (Não ouvindo a pergunta de Vanessa, continua xingando
as vizinhas) – Aqui ó! (Faz um gesto característico).
VANESSA – Aqui onde?
OTÁVIO (Fechando a janela) – O quê?
VANESSA – Cadê?
OTÁVIO (Impaciente) – Cadê o quê?
VANESSA – O Fernando.
OTÁVIO – E eu sei lá do Fernando? (Pausa). Ah: sei sim! Saiu com o
Armando.
VANESSA – Com o Armando? Mas onde é que eles foram?
OTÁVIO – Falar com o síndico da Portaria do prédio.
VANESSA – Ah! Então eu também vou.
OTÁVIO – Não precisa. Ele já vem vindo.
VANESSA – Acontece que eu quero ir. (Tempo). Dá licença? (Vai
saindo).
OTÁVIO – Vai, vai, vai. (Fechando a porta). Quando chegou aqui tinha
uma cara de fada. (Tempo). Safada... (Toca o telefone).
OTÁVIO (Atendendo ao telefone) – Alô? (Dá um número de
telefone). Sim. É ele mesmo. Ah! Pois não. Mas ela cozinha?
Não faz mal, o importante é que ela cozinhe. Ela sabe fazer
pratos variados? Então pergunta meu senhor. Espero.
MARGÔ (Entrando com alguns pacotes) – Ai! Estou morrendo de
cansaço e de fome. (Para Otávio). Você já fez o almoço?
(Senta-se no sofá).
OTÁVIO (Para Margô) – Estou fazendo. (No telefone). Alô! Ah!
Perfeito. Então já fica acertado, manda essa mesma. Certo.
Muito obrigado. Até logo. (Desliga o telefone).
MARGÔ – E pode-se saber o que é que você está fazendo para o
almoço?
OTÁVIO (Irritado) – Cacete à milanesa!
MARGÔ – Nunca ouvi falar nesse prato.
OTÁVIO – Ah! Dona Margô! Por falar em cacete, eu tenho uma ótima
surpresa pra senhora.
MARGÔ – Pra mim? O que é? Ah! Já sei. Esta noite eu vou dormir na
sua cama.
OTÁVIO – Nada disso. Tire essa ideia da cabeça!
MARGÔ – Olha, mas que foi muito cacete foi. (Tempo). Eu passei a
noite inteira em claro, Otávio.
OTÁVIO – Também pudera: a senhora e a Suzana num sofá tão
pequenininho, né?
MARGÔ – Então. Eu estou toda quebrada.
OTÁVIO – É Dona Margô, mas não é nada disso não. É uma coisa
muito melhor.
MARGÔ – O que é? Ai, eu estou tão curiosa!
OTÁVIO – O senhor Severino...
MARGÔ – Quem?
OTÁVIO – O pai de Suzana.
MARGÔ – Ah! Sei.
OTÁVIO – Ele tem muito dinheiro, sabia?
MARGÔ – Não. (Tempo). Quero dizer: o Armando quando me escreveu,
me contou que a Suzana era de muito boa família, mas isso
não quer dizer que ela pertença a uma família rica, não é?
OTÁVIO – Pois bem: pertence. (Tempo). O senhor Severino é
fazendeiro de gado, riquíssimo, viúvo e ficou muito interessado
na senhora.
MARGÔ – Ai! Você está brincando.
OTÁVIO – Não. É sério. (Tempo). Eu disse pra ele que a senhora é uma
atriz muito talentosa e ele logo se interessou em montar uma
peça pra senhora. Só pra senhora fazer o papel principal.
MARGÔ – É mesmo?
OTÁVIO – É sim. Ele é um amante das artes.
MARGÔ – Que coisa maravilhosa! Parece um sonho! Eu, de estrela?
OTÁVIO (Para si) – Cadente.
MARGÔ – O quê?
OTÁVIO – Permanente. Estrela permanente da Companhia que ele
pretende formar.
MARGÔ – Mas quando ele disse isso?
OTÁVIO – Hoje, depois que a senhora saiu. Assim que ele chegou.
MARGÔ – Eu sabia. Eu tinha certeza!
OTÁVIO – Do quê?
MARGÔ (Sonhadora) – Não sei... Assim que eu o vi ontem, eu pensei:
esse homem vai mudar a minha vida.
OTÁVIO – E vai mesmo.
MARGÔ – Graças a Deus! (Tempo). Muito obrigada, Otávio.
OTÁVIO – Ora imagine...
MARGÔ – Eu nem sei como te agradecer. (Tempo). Mas quando vai ser
isso?
OTÁVIO – Não sei.
MARGÔ – Ele vai vir hoje aqui novamente?
OTÁVIO – Vai. Daqui a pouco.
MARGÔ – Ai, meu Deus! Então vou me arrumar. (Levanta-se).
OTÁVIO – Agora não. Primeiro a senhora tem que escutar tudo o que
deve fazer. (Tempo). Sente-se. (Margô senta-se). Primeiro:
não diga em nenhum momento que a senhora não tem
dinheiro. Finja sempre que tem posses e que é uma pessoa
privilegiada, certo?
MARGÔ – Certo.
OTÁVIO – Ótimo! Segundo: arrume-se o melhor que puder e quando ele
chegar eu faço as apresentações. (Tempo). Agora o resto é
com vocês.
MARGÔ – Mas e se ele não me quiser?
OTÁVIO – Claro que quer. Ele já me disse. (Tempo). Agora: não
comente com ninguém, principalmente com o Armando, tá?
MARGÔ – Tá. (Tempo). Eu vou me arrumar, então. (Indo para o
banheiro). Por favor, Otávio, pega uma mala xadrez que está
no seu quarto, sim? (Tempo). Ah: guarda essas compras
também.
OTÁVIO – Pois não. (Pega as compras e entra no quarto. Margô
entra no banheiro. Suzana e Severino entram na sala).
SUZANA – O senhor tem que voltar pra Jandaia hoje, pai?
SEVERINO – É claro, menina.
SUZANA – Mas não dá pra o senhor ficar mais uns dois dias? Ou pelo
menos um?
SEVERINO – Não. Não dá mesmo. (Tempo). Mas antes do seu
casamento eu volto.
OTÁVIO (Saindo do quarto com a mala de Margô) – Oi gente: tudo
bom? (Entra no banheiro. Suzana e Severino não ouvem
Otávio. Otávio saindo do banheiro). Como é: tudo bem?
SEVERINO (Alegre) – Tudo.
SUZANA – Cadê o pessoal?
OTÁVIO – Eles não estão na Portaria do prédio?
SUZANA – Não.
SEVERINO – Lá só tá o porteiro.
OTÁVIO – Então o Armando tá lá no apartamento do síndico com o
Fernando e a Vanessa.
SUZANA – E o resto?
OTÁVIO – Que resto, menina? (Tempo). A Dona Margô tá tomando
banho e eu cozinhando, como sempre!
SEVERINO (Alegre) – A Dona Margô chegou, é?
OTÁVIO – Já, sim senhor. (Para Suzana). Ah! Suzana! O Armando
pediu pra você ir se encontrar com ele assim que chegasse.
Sem falta!
SUZANA – Onde?
OTÁVIO (Irritado) – No Coliseu de Roma. (Tempo). Não acabei de falar
que eles estão no apartamento do síndico?
SUZANA – E onde fica?
OTÁVIO – Nono andar, ap. 94.
SUZANA – Tá legal. (Dá um beijo no pai). Eu já volto viu, pai?
SEVERINO – Vai filha! Não se preocupe.
SUZANA – Tchau! (Sai).
SEVERINO (Para Otávio) – E então? Falou com a Margô?
OTÁVIO – Já. Tudo arranjado. Assim que ela sair do banheiro, eu faço
as apresentações.
SEVERINO – Ótimo! (Tempo). Escuta aqui, Otávio: você não tem nada
aí para eu beber? Sabe como é: pra criar coragem.
OTÁVIO – Tenho, é claro. (Sorrindo). Menos a cachaçinha.
SEVERINO – Não faz mal. Qualquer coisa.
OTÁVIO – Então vem. (Prepara algo para Severino). O senhor gosta
de conhaque? É uma bebida um pouco forte, mas anima.
(Entrega-lhe o copo).
SEVERINO – Obrigado. (Bebe de um só gole). Tomara que dê certo.
(Margô sai do banheiro com maquiagem exageradíssima,
por ser de manhã, um vestido extremamente escandaloso,
com enorme decote nas costas e uma piteira).
OTÁVIO – Psiu! Ela já saiu do banho. (Tempo). Vem: eu vou te
apresentar a ela.
MARGÔ (Toda sorridente) – Bom dia! (Senta-se no sofá).
SEVERINO – Bom dia!
OTÁVIO – Dona Margô, este é o Coronel Severino Antonio dos Santos,
um riquíssimo criador de gatos do interior do Paraná.
MARGÔ (Levanta-se sorrindo) – Oh! Coronel...
OTÁVIO (Continuando a farsa) – Coronel Severino, esta é Margô, uma
ex-atriz.
MARGÔ (Dando a mão para Severino beijar) – Muito pra... (Retira a
mão rapidamente e fala para Otávio). Ex-atriz é a puta que
te pariu!
SEVERINO – Ahn?...
MARGÔ (Tentando recompor-se) – Sabe como é né, meu senhor?
(Ajeitando o cabelo). A gente não está morta, não é mesmo?
(Sorri amavelmente).
SEVERINO (Meio sem graça) – Bem, isso é...
OTÁVIO (Rindo muito) – Se vocês me permitem, e vou até o
apartamento do síndico ver o que acontece por lá. (Tempo).
Com licença. (Sai).
MARGÔ (Esticando a mão para Severino, que a beija) – Muito prazer,
Coronel...
SEVERINO – O prazer é todo meu, Dona. (Tempo). Então a senhora já
foi atriz, hein?
MARGÔ – Fui não, eu sou atriz! (Tempo). Isso foi apenas uma
brincadeira do Otávio. Aliás, eu sou considerada uma
excelente atriz. (Tempo). Pelos críticos, naturalmente.
SEVERINO – Não diga Dona?
MARGÔ – O senhor gosta de artes?
SEVERINO – Muito!
MARGÔ – Oh! Mas que homem encantador! Então venha, vamos
apreciar estas telas. (Severino acompanha Margô. Deve
haver várias telas no apartamento, da sala de jantar até a
biblioteca). Que tal esta? Tem linhas arrojadas, não é mesmo,
Coronel?
SEVERINO (Chegando bem perto de Margô) – Arrojadíssimas,
Madame.
MARGÔ (Desvencilhando-se) – Ai! Senhor Severino: que susto o
senhor me pregou! (Sorri).
SEVERINO (Brincalhão) – Sustinho bom, né?
MARGÔ (Vai para outra tela) – Bem... Não deixou de ser, mas...
SEVERINO (Agarrando Margô) – Eu sabia...
MARGÔ (Desvencilhando-se) – Senhor Severino, por favor! Pode
chegar alguém! (Vai para outra tela). E esta aqui, o que é que
o senhor acha?
SEVERINO – Belíssima: Dona! Assim como a senhora!... (Agarra
Margô novamente).
MARGÔ – Ai!... Hum!... (Dengosa). Não! (Separa-se mais
vagarosamente). Severino: assim você me encabula... (Vai
para outra tela).
SEVERINA – Que recatada, meu Deus! Oh, mulher maravilhosa!
MARGÔ (Bastante dengosa) – Severino: você gosta desta tela?
SEVERINO – Gosto.
MARGÔ (Vai para outra tela) – E desta?
SEVERINO – Gosto.
MARGÔ (Em outra tela) – E desta?
SEVERINO – Gosto de você! (Beijando Margô). Que pureza!
MARGÔ (Quase se entregando) – É hoje! Hmmmm! (Tenta recompor-
se. Severino também se recompõe. Margô vai para outra
tela).
SEVERINO (Beijando Margô em vários pontos da nuca) –
Margozinha? Meu docinho de coco...
MARGÔ – Hmmmm! Ai! Severino... Mais... Mais... Mais...
SEVERINO (Levando Margô para outra tela) – Vem, meu amor. E esta
tela? O que é que você acha, hein? (Beijando Margô nos
ombros e costas).
MARGÔ (Nem olha para a tela e se joga nos braços de Severino) –
Um devaneio! Uma loucura! Hmmmm! (Blecaute, com
transição musical. Ao acender as luzes, novamente estão
em cena: Margô e Severino, sentados um em cada canto
do sofá, tentando disfarçar o namoro. Armando e
Fernando na biblioteca, conversando baixo. Suzana e
Vanessa lavando louça na cozinha e Otávio regando a
samambaia de metro na janela) Que almoço, meu Deus!
Nunca comi tanto como hoje!
SEVERINO – Eu também. Tô empanturrado!
MARGÔ – Por que será que quando a gente come fora de casa tem
mais apetite?
SEVERINO – Isso eu não sei, mas que tem, tem. (Rindo).
OTÁVIO (Acabando de regar) – Eu sei o que é.
MARGÔ – E o que é, hein Otávio?
OTÁVIO (Com o regador na mão) – É que não foi a gente que fez.
SEVERINO – É. Eu acho que é isso mesmo. (Rindo. Otávio entra com
o regador na cozinha).
SUZANA (Na cozinha, falando para Vanessa) – Vai, pode ir. Deixa
isso aí que eu termino.
OTÁVIO (Enchendo novamente o regador) – Ir pra onde?
VANESSA – Eu vou ao cinema com o Fernando.
OTÁVIO (Com deboche) – Ah! Sei. Pensei que fosse pra o convento!
VANESSA – Não, eu mudei de ideia. Não quero mais ser freira.
SUZANA – Isso mesmo, Vanessa. É isso aí.
OTÁVIO – Claro né? Isso já tava na cara. (Vai regar a planta de novo).
VANESSA (Para Suzana) – Tchau Suzana! E obrigadão, hein?
SUZANA – Deixa de ser boba. Divirta-se.
VANESSA – Tchau!
SUZANA – Tchau! (Fica lavando louça).
VANESSA (Saindo da cozinha, vai para a biblioteca) – Vamos, hein,
Fernando?
FERNANDO – Vamos. (Para Armando). Depois a gente fala, mas eu
ainda acho que é meio arriscado, sabe?
ARMANDO – Tá legal. A gente discute isso depois, então.
FERNANDO – Tchau, pessoal.
TODOS – Tchau! (Fernando e Vanessa saem. Severino e Margô
trocam carinhos escondidos).
ARMANDO (Só para Otávio) – E esse velho, quando é que vai
embora?
OTÁVIO – Hoje. Daqui a pouco. (Tempo). E a tua mãe?
ARMANDO – Me disse o Fernando que vão amanhã. (Tempo). E a tua
irmã?
OTÁVIO – Não vai mais.
ARMANDO – O quê?
OTÁVIO – Não vai mais ser freira.
ARMANDO – Ah! Isso eu já sabia. Eu quero saber quando é que ela vai
embora daqui.
OTÁVIO – Bom, se o teu irmão vai embora amanhã, ela também deve ir.
Afinal de contas, o que é que interessa pra ela continuar aqui
se o Fernando está no Rio?
ARMANDO (Sorrindo) – É. É um raciocínio lógico.
OTÁVIO – Escuta! Se mal lhe pergunto, quem te disse que a minha irmã
não ia mais ser freira?
ARMANDO – O Fernando.
OTÁVIO – Mas esse Fernando é um dedo duro filho da puta.
ARMANDO (Agarrando Otávio) – Otávio: qualquer dia eu... (Solta em
seguida).
OTÁVIO (Gritando muito) – Ai! Estúpido! (Tempo). Você viu o que
você me fez?
ARMANDO (Assustado) – Eu? Eu não te fiz nada...
OTÁVIO – Como não? Me fez cair o regador lá pra baixo.
MARGÔ (Para Otávio) – Otávio!
OTÁVIO (Irritado) – O que é?
MARGÔ – Eu estava dizendo aqui pra o Coronel que a janela do seu
quarto tem uma bela vista. Não é verdade?
OTÁVIO – É.
SEVERINO – Será que nós podemos ver esta vista?
OTÁVIO – Podem. (Irônico). Mas não me amarrote muito a cama, hein?
(Sai. Margô e Severino vão para o quarto de Otávio).
SUZANA (Na cozinha) – Pronto. Terminei. (Tira o avental). Até que
enfim! (Vai para a sala).
ARMANDO (Percebe que está só na sala, com Suzana) – Oi!
SUZANA – Oi!
ARMANDO – Até que tá sendo fácil, né?
SUZANA – É. Até aqui tá. Pelo menos até aqui.
ARMANDO – A gente nem sabe como te agradecer.
SUZANA – Agradecer? Como assim?
ARMANDO – Por tudo o que você fez, ou melhor, tá fazendo. Você tá
sendo maravilhosa.
SUZANA – Ôpa! Espera aí! Não vem que não tem, hein? (Tempo).
Agradecer, essa não! O que vocês têm é que me pagar. O
trato foi esse (tempo), ou já se esqueceu?
ARMANDO – Não, claro. Não esqueci não. Trato é trato, mas eu quis
dizer que além de pagarmos o seu serviço, mesmo assim, a
gente ainda fica te devendo.
SUZANA (Enfurecida) – Não senhor! Nada de prestação. Eu quero tudo
duma vez só. (Pausa). E tem mais! Eu vou querer essa grana
hoje. (Tempo). Pensa que eu não sei que a tua mãe vai
embora? Eu tô sacando, bicho. Mas na Brigitte Ponta de Faca
aqui, ninguém passa peito não! (Tempo). Tá ouvindo bem?
ARMANDO (Baixo) – Brigitte, não. (Tempo). Aqui você é Suzana.
SUZANA – Não muda o papo, não. Eu quero hoje essa grana.
ARMANDO – Tudo bem. Você vai receber o seu dinheiro. (Tempo).
Acontece que eu estava tentando dizer outra coisa.
SUZANA – Que coisa?
ARMANDO – Nada..., nada. (Tempo). Sem condições. E esqueça tá?
SUZANA – Tá. (Pausa). E a grana? Vem ou não vem?
ARMANDO – Quanto é?
SUZANA – Dez mil pratas.
ARMANDO (Susto) – Quanto?
SUZANA – Dez mil.
ARMANDO – Você enlouqueceu? Por três dias?
SUZANA – Tá legal: paga oito então, e tudo bem.
ARMANDO – Nem oito...
SUZANA – Ei! Escuta aqui: você tá me achando com cara do quê, hein?
ARMANDO – É muito dinheiro, Suzana.
SUZANA – Muito dinheiro? (Tempo). Eu tiro você duma puta encrenca,
fico três dias sem faturá na rua e você ainda me vem com esse
papo de muito dinheiro? Corta essa!
ARMANDO – Oh! Suzana: entenda a minha situação. Eu...
SUZANA – Entender? Entender o cacete! (Tempo). Ou passa logo essa
grana ou então entrego tudo pra tua mãe. (Tempo). Você
quem sabe.
ARMANDO – Tá bom. Então espera o Otávio chegar que eu só tenho
seis mil.
SUZANA – Pode ir dando esses seis mesmo antes que alguém veja.
Depois, quando o Otávio chegar, você me dá o resto.
ARMANDO – Um momento. Eu vou buscar. (Vai até uma gaveta na
biblioteca. Suzana tenta espiar onde ele está pegando o
dinheiro. Armando pega o dinheiro e entrega a Suzana).
Toma. Confere. (Dando para Suzana uma a uma 12 notas
de quinhentos cruzados). Quinhentos, mil, mil e quinhentos,
dois, dois e meio, três, três e meio, quatro, quatro e meio,
cinco, cinco e meio, seis. Certo?
SUZANA – Tá legal. (Coloca o dinheiro dentro do sutiã). Mas tá
faltando mais dois, hein? Quando a bicha chegar eu vou
querer essa grana.
ARMANDO – E se o Otávio não tiver?
SUZANA – Eu quero que ele se foda! (Tempo). Pede emprestado.
ARMANDO – Ah sim. (Tenta sorrir). Tem razão. É verdade...
OTÁVIO (Entra cantando a música de costume) – Olha o que você
fez! (Mostrando para Armando um regador de plantas todo
amassado). Veja só! Amassou tudo. Destruiu o regador.
(Tempo). E agora? Molho as plantas com o quê?
SUZANA – Quer um conselho? Mija em cima.
OTÁVIO (Para Suzana) – Por que você não vai pra puta que te pariu,
hein? (Tempo). Quando eu quiser um conselho de puta, vou
na zona, tá?
SUZANA – Bom. Vamos deixar de lero-lero. E passa logo essa grana.
OTÁVIO (Assustado) – Que grana?
ARMANDO (Tentando contornar) – Tatá: será que você pode me
emprestar dois mil cruzados?
OTÁVIO – Pra quê?
ARMANDO – Oh, Tatá!... Pra pagar a Suzana. (Tempo). O serviço dela.
OTÁVIO – Serviço? Que serviço?
SUZANA – Não se faça de bobo, não. Você tá sabendo muito bem.
(Tempo). Anda logo! Passa esses dois mil, que é pra inteirar
aqui com os seis que ele já me deu.
OTÁVIO (Deixa cair o regador) – Seis mil? (Olha furioso para
Armando).
ARMANDO (Amedrontado) – Tatá: tente compreender.
OTÁVIO (Para Suzana) – Deixa eu ver esses seis mil.
SUZANA (Batendo no peito) – Tá aqui, ó! (Tempo). Não tem nada que
ver, não. E passa logo esses dois que estão faltando.
OTÁVIO (Percebe que Suzana não mostrará o dinheiro. Faz outro
jogo) – Seis mil cruzados? Só seis mil? Eu não acredito. (Para
Armando). Você teve coragem de só pagar seis mil cruzados
pra essa santa criatura? (Para Suzana). Suzana: jura que ele
só te deu seis mil cruzados?
SUZANA – Juro.
OTÁVIO (Para Armando) – Mas você é o pior caráter que eu conheci
em toda a minha vida! (Tempo). Eu não consigo acreditar... Só
vendo, mesmo! (Para Suzana). Suzana! Você está sendo
sincera? Ele só te deu seis mil?
SUZANA – Só. (Tempo). Ele me disse que só tinha seis mil.
OTÁVIO – Me deixa ver esse dinheiro, que eu não estou acreditando.
(Tempo). Eu não posso acreditar que ele tivesse a coragem
de... (Tempo). Me deixa ver? (Suzana começa a pegar o
dinheiro. Otávio percebe que Suzana caiu na sua conversa
e continua). Ele tá cheio de dinheiro guardado. (Para
Suzana). Você viu quando ele telefonou hoje antes do almoço
pra o jornal, marcando a viagem pra o Piauí. Não viu? Você
acha que quem vai pra o Piauí só tem seis mil cruzados?
SUZANA – Olha aqui. São ou não são seis mil? (Mostra o dinheiro).
OTÁVIO (Pegando o dinheiro, começa a contar nota por nota) –
Deixa eu ver... (Tempo). Quinhentos, um, um e meio, dois,
dois e meio, três, três e meio, quatro, quatro e meio, cinco,
cinco e meio... (Pausa). Seis. (Para Armando). Canalha!
(Pausa). Eu me matando de trabalhar, me sacrificando,
fazendo economia do seu dinheiro, para o senhor pegar seis
milhões e dar pra uma puta? (Empurra com a mão a cabeça
de Armando). Onde é que o senhor está com a cabeça?
SUZANA (Investindo em Otávio) – Me dá aqui o meu dinheiro!
OTÁVIO (Empurrando Suzana) – Sai pra lá, menina. Isto aqui é
assunto de família. (Para Armando). Vamos: me responda.
Onde é que o senhor está com a cabeça?
ARMANDO – Tatá! Tente compreender. Eu estou num...
OTÁVIO (Gritando) – Não vou compreender porra nenhuma! (Tempo).
Quem você pensa que é? Virou o Cyborg agora? O homem
que caga seis milhões de dólares?
SUZANA – Me dá o meu dinheiro.
OTÁVIO (Para Suzana) – Eu vou dar o teu dinheiro. Não se preocupe
que eu vou te dar. Mas não seis mil! (Contando dinheiro).
Toma: eu vou te dar mil cruzados. E já tá muito bem pago!
(Tempo). Não se esqueça que você comeu e bebeu do bom e
do melhor e ainda por cima dormiu três dias às minhas custas.
SUZANA (Muito nervosa) – Bicha filha da puta! Eu vou te entregar...
ARMANDO – Tatá: dá esse dinheiro pra ela. Ela vai contar tudo pra
minha mãe.
OTÁVIO – Conta nada.
SUZANA – Conto sim, seu viado escroto.
OTÁVIO – Que conta porra nenhuma! (Tempo). Se contar o azar vai ser
seu. Não se esqueça de que o seu pai também vai ficar
sabendo que você é puta, micheteira, sambadona! (Tempo).
E, pelo que me parece, você gostaria muito que ele não
soubesse desse seu negro passado. Aliás, se não me engano,
foi você mesma quem falou que gostaria muito de poder voltar
pra casa do seu pai um dia. (Tempo). Não foi?
SUZANA (Pensativa, para si mesma) – Puta que pariu! O que é que eu
tinha na cabeça?
ARMANDO (Sorrindo para Suzana) – Eu publico uma foto tua no
jornal, Suzana.
OTÁVIO (Para Armando) – Cala essa boca! Já fez muita cagada hoje.
(Tempo). Quer fazer mais uma é?
SUZANA – Bicha é uma merda mesmo. (Tempo). Que é que eu tinha
que me meter com bicha?
OTÁVIO (Para Suzana) – Você não conta nada e nós também não
contamos nada pra o teu pai! Uma mão lava a outra, meu bem!
SUZANA – Mas isso não vai ficar assim, não... Pode ter certeza que eu
vou-te foder! Eu vou!
OTÁVIO – Que vai nada! (Tempo). Ou melhor, o que é que você vai
fazer?
SUZANA – Não sei, ainda não pensei. (Tempo). Mas pode esperar que
eu vou-te ferrar. (Fernando e Vanessa entram na sala).
FERNANDO – Sabem da última? Na hora de tirar os ingressos no
cinema, eu me lembrei que não peguei o paletó. E o dinheiro
tava nele, é claro.
VANESSA – E o pior é que eu também fui sem bolsa.
FERNANDO (Para Armando) – Cadê a mamãe?
ARMANDO – Tá no quarto.
VANESSA – Que quarto?
ARMANDO – No meu. (Engasga). Quer dizer: no do Otávio.
FERNANDO – Tá dormindo?
SUZANA – Tá conversando com o meu pai.
OTÁVIO (Irônico) – Conversando... (Margô e Severino saem do
quarto, dando risadas).
SEVERINO – Bom pessoal: eu vou ter que ir andando.
MARGÔ (Para Fernando e Vanessa) – Ué? Vocês não foram ao
cinema?
FERNANDO – Fomos. Mas a gente esqueceu de pegar o dinheiro.
MARGÔ – Ai, essa é ótima! (Para Severino). Essa juventude é avoada,
Coronel!...
SEVERINO – Bom: então ficamos assim. (Para Armando). Quando
você voltar do Piauí, nós marcamos a data certa. (Tempo).
Combinado?
ARMANDO – Claro senhor Severino. Combinado.
MARGÔ – Eu achei ótima essa ideia de vocês casarem no Paraná. Vai
ser uma oportunidade para conhecermos a Fazenda do
Coronel.
SUZANA – Pai?... Antes de o senhor ir, eu queria dizer uma coisa...
SEVERINO – Pode dizer minha filha!
SUZANA – Eu não sei como dizer, pai. Tô sem coragem...
MARGÔ – Ora: deixe de bobagem, menina! O seu pai fará todos os
seus desejos. (Tempo). Não é mesmo, Coronel?
SEVERINO – Claro Margô. (Para Suzana). Diz minha filha. O que é que
é?
SUZANA – É que..., é que eu tô grávida do Armando, pai.
TODOS (Assustados) – O quê? Como? Repete...
SUZANA (Pausa) – Eu estou esperando um filho do Armando, pai. Já
tem dois meses...
SEVERINO (Para Armando, tirando um revólver) – Então, você não
vai mais pra o Piauí. Vai comigo pra o Cartório, agora! (Para
todos). Ou melhor: vamos todos. Lá, na hora, a gente escolhe
quem vai ser os padrinhos.
OTÁVIO – Aquele slide maldito destruiu a minha vida... (Tempo). E
agora, meu Deus, o que é que eu faço?
ARMANDO (Para Severino) – Não é verdade, senhor Severino.
SUZANA (Corta) – É verdade sim, pai! (Tempo). Eu até acho que ele tá
querendo ir pra o Piauí pra fugir do compromisso!
OTÁVIO (Extremamente nervoso, quase à beira de um colapso
nervoso) – Meu Deus! Que sacanagem! (Vai para Severino
e, de tão nervoso, não consegue pronunciar nenhuma
palavra, apenas gesticula muito. Vai para Suzana com a
mesma reação, ficando cada vez mais agitado, até que cai
no chão, duro de nervoso, estrebucha um pouco e, em
seguida, fica imóvel).
ARMANDO (Correndo até Otávio no chão) – Otávio! Otávio!
(Batendo-lhe no rosto). Otávio! (Esfrega os pulsos de
Otávio). Puxa vida! Eu nunca soube que o Otávio era
epiléptico.
OTÁVIO (Imediatamente senta-se no chão, gritando) – Eu não era!
(Cai de novo no chão, estrebuchando até parar de vez.
Blecaute com música de transição. Observação – Os
personagens saem todos, ficando em cena somente
Armando e Otávio, que devem trocar de roupa
rapidamente, enquanto vão sendo projetados na parede
novos slides que vão sendo projetados, normalmente,
como se nada tivesse acontecido. Quando estiverem
prontos, tomam a posição inicial do Primeiro Ato. Otávio,
acendendo o abajur, está fazendo crochê. Armando e
Otávio vão comentando cada novo slide, a critério da
direção da montagem, até que aparece o mesmo slide que