desenvolvimento sustentável, consumo, cidadania e
TRANSCRIPT
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
Desenvolvimento Sustentável, Consumo, Cidadania e Responsabilidade Social da Imprensa
Sérgio Euclydes de Souza / Fernando Oliveira Paulino Universidade de Brasília
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Palavras-chave: Consumo, cidadania, responsabilidade social da imprensa
RESUMO:
A concepção moderna de cidadania, baseada nos ideais iluministas de formação de sociedade,
tem se transformado a partir da consolidação de uma relação de consumo, somada ao impacto dos
conteúdos veiculados pelas instituições de comunicação. A partir do paradigma do
desenvolvimento local, integrado e sustentável, que se propõe construir uma dinamização
ambientalmente segura e ecossocialmente equilibrada, o presente texto também visa sugerir
caminhos para o papel da imprensa na construção de uma sociedade melhor.
1. Cidadania e Modernidade
Os ideais do Iluminismo, ou Filosofia das Luzes, começaram a marcar presença na Europa a
partir do século XVII. Os filósofos iluministas Montesquieu, Voltaire e Rosseau, por exemplo,
diziam que somente quando a razão e o conhecimento fossem difundidos entre todos é que a
humanidade faria grandes progressos. Seria apenas uma questão de tempo para que
desaparecessem a irracionalidade e a ignorância e surgisse uma humanidade iluminada,
esclarecida. Os filósofos iluministas franceses não se contentaram apenas com concepções
teóricas sobre o lugar do homem na sociedade. Eles lutaram por aquilo que chamaram de
"direitos naturais", também chamados de direitos humanos básicos, dos cidadãos. O projeto
iluminista procurava generalizar saúde, educação, trabalho e moradia. A idéia era fazer com que a
modernidade fosse o lar de todos.
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
A modernidade nasceu da ruptura da visão religiosa do mundo1. Tratava-se sobretudo de
uma luta contra a censura, ou seja, pela liberdade de expressão. No que diz respeito à religião, à
moral e à política, o indivíduo precisava ter assegurado o seu direito à liberdade de pensamento e
de expressão de seus pontos de vista. Além disso, lutou-se contra a escravidão e por um
tratamento mais humano aos infratores da lei.
O princípio da "inviolabilidade do indivíduo" acabou resultando na "Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão", promulgada pela Assembléia Nacional Francesa em 1789,
instituição conseqüente da Revolução Francesa, que declarou uma série de direitos que deveriam
valer para todos os cidadãos, na época, basicamente os homens. A questão dos direitos da mulher
foi colocada no bojo da revolução francesa, contudo, logo que as coisas se acalmaram numa nova
ordem, a antiga predominância dos homens foi restabelecida. Somente no século XIX é que o
movimento das mulheres começa efetivamente a ganhar mais espaço, tanto na França quanto em
toda a Europa. E foi muito lentamente que essa luta começou a dar os seus primeiros frutos. No
Brasil, por exemplo, somente a partir de 1934 as mulheres conquistaram o direito ao voto e em
muitos países elas continuam a lutar pela igualdade de direitos.
Em 1795, Immanuel Kant escreveu o artigo "Sobre a paz perpétua", onde o filósofo
defende a união de todos os países em uma liga, que teria a atribuição de zelar pela coexistência
pacífica das diferentes nações. Cerca de 125 anos depois de publicado este artigo, logo após a
Primeira Grande Guerra, esta Liga das Nações foi efetivamente fundada. Depois da Segunda
Grande Guerra ela foi substituída pela Organização das Nações Unidas (ONU). Pode-se dizer,
então, que Kant foi o mentor da idéia da ONU. Kant achava que a "razão prática" dos homens
forçaria os Estados a abandonar um "estado natural", que provocava sucessivas guerras, e a
fundar uma ordem legal internacional com o objetivo de evitar conflitos.
Kant foi o grande inspirador do ideal de uma ética universal, de um agir sempre baseado
no imperativo categórico: a lei moral como ato absoluto e universal. O agir humano deve sempre
visar a ação como seu fim último. O ser humano age em liberdade quando "age seguindo aquelas
máximas através das quais possa ao mesmo tempo, querer que elas se transformem numa lei
geral". A ação deve ser feita de modo que outras pessoas possam, na mesma situação agir da
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
mesma maneira. A idéia é compatível à concepção de obediência à razão pública preconizada por
John Rawls: “Para saber se estamos de acordo com a razão pública ou não, precisamos perguntar:
como nossos argumentos nos pareceriam sob a forma de uma opinião do supremo tribunal?
Pareceriam razoáveis? Abusivos?”2 Numa sociedade democrática a razão pública é razão de
cidadãos iguais, que enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns
sobre os outros no promulgar leis e emendar sua constituição3.
2. Modernidade e Concepções de Desenvolvimento
Em consonância com a consolidação da modernidade, surge a idéia de busca de melhoria
das condições de vida dos seres humanos que proporciona o encontro do conceito de
desenvolvimento, adaptado da idéia de evolução biológica em alguns idiomas e com definição
sempre discutível, ocupando, para Esteva, “(...) o centro de uma constelação semântica
incrivelmente poderosa”, pois não havia nenhum outro conceito no pensamento moderno que
tenha influência comparada sobre a maneira de pensar e o comportamento humanos (...)” e ao
mesmo tempo, poucas palavras são tão ineficazes, tão frágeis e tão incapazes de dar substância
e significado ao pensamento e ao comportamento (...)” 4
Para se consolidar uma proposta de ação, torna-se necessário comparar definições de
desenvolvimento. De acordo com a Declaração sobre o Direito dos Povos ao Desenvolvimento
da ONU, de 18 de outubro de 1993, desenvolvimento significa “um processo econômico, social,
cultural e político abrangente, que visa o constante melhoramento do bem-estar de toda a
população e de cada indivíduo na base de sua participação ativa, livre e significativa e na justa
distribuição dos benefícios resultantes dele”5
Se relacionado a ONU e às políticas nacionais, há atualmente, de certa forma, mudanças
no paradigma relacionado aos métodos e demandas que conduziriam, levariam ou induziriam um
conjunto de pessoas, uma comunidade, uma nação a atingir grau de desenvolvimento. Para
Rostow, economista americano, havia no pós-guerra uma receita a cumprir a medida que existiam
dois tipos de nações no mundo: as comuns e as livres. Para sair do modelo comum, de sociedade
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
tradicional, seria necessário buscar ações que possibilitassem o arranco, transformando e criando
uma sociedade em transição e trazendo progresso com “dignidade nacional, lucro privado, bem-
estar geral e vida melhor para os filhos”. Para tanto, deveria haver mudanças na forma de
produção: “a sociedade cujo dispositivo gira em torno da vida de regiões relativamente pequenas,
sobretudo auto-suficientes – tem de orientar seu comércio e suas idéias para a nação e para um
ambiente ainda mais amplo”6.
Diferente enfoque se comparado ao que se chama atualmente de Desenvolvimento Local
Integrado e Sustentável, relacionado a vários tipos de processo de desenvolvimento local. O
conceito é utilizado “(...) hoje tanto por aqueles que continuam enfatizando o papel determinante
exclusivo do fator econômico, quanto aqueles que têm uma visão mais sistêmica do processo de
desenvolvimento, como por exemplo, os que trabalham com a chamada Agenda 21 Local. E tanto
aqueles que não estão tão preocupados assim em encontrar alternativas para o padrão de
desenvolvimento ainda predominante quanto aqueles que, por diversos motivos, questionam tal
padrão”. 7
O sociólogo Augusto de Franco associa desenvolvimento a transformação e criação de
possibilidades. “(...) Uma comunidade se desenvolve quando torna dinâmicas suas
potencialidades. É possível que a palavra desenvolver queira dizer isso mesmo: desenrolar,
desdobrar, dar seguimento a uma tendência, realizar uma predisposição genética, rodar um
programa herdado. Quer dizer tornar dinâmica uma potencialidade (...)”.8 O autor salienta a
necessidade de se implementar ações relacionadas a uma postura de desenvolvimento associado a
sustentabilidade ambiental e social, melhorando “(...) a vida das pessoas (desenvolvimento
humano), de todas as pessoas (desenvolvimento social), das que estão vivas hoje e das que
viverão amanhã (desenvolvimento sustentável) (...)”.9
3. Ações sugeridas para promoção do desenvolvimento
Para alguns economistas, se o Produto Interno Bruto (PIB) aumentar, e o conhecimento e
o poder não forem mais bem distribuídos, a renda tenderá a permanecer concentrada. Por outro
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
lado, não é muito provável que o PIB aumente consideravelmente e de maneira durável, enquanto
a riqueza, o conhecimento e o poder permanecerem concentrados. Sabendo isso, o que pode ser
feito para a promoção do melhoramento de bem-estar?
Tornam-se necessárias, então, quatro ações básicas: “(...) gerar renda, multiplicar o
número de proprietários produtivos, elevar o nível de escolaridade da população e aumentar o
número de organizações da sociedade civil. Ou seja, aumentar a produção e democratizar o
acesso à riqueza, ao conhecimento e ao poder (no sentido de empoderar as populações)”10.
Segundo Leonardo Boff, um dos idealizadores da Teoria da Libertação, é necessário uma
mudança no paradigma do desenvolvimento, indispensável para resguardar a natureza, salvar a
humanidade e também possibilitar um projeto-Brasil alternativo. Assim, o sujeito central do
desenvolvimento não é a mercadoria, o mercado, o capital, o setor privado e o Estado, mas o ser
humano e os demais seres vivos nas suas múltiplas dimensões e os cidadãos são convocados a
participar do desenvolvimento, enquanto sujeitos ao mesmo tempo singulares e plurais. Cada um,
chamado a ajudar na produção do suficiente e do decente para todos, com especial destaque a
atuação das universidades, que, para Boff, são urgidas a assumir o desafio:
(...) As várias faculdades, institutos e programas buscarão um enraizamento orgânico nas periferias, nas bases populares e nos setores ligados diretamente a produção dos meios da vida. Aqui pode estabelecer-se uma fecunda troca de saberes, entre o saber popular e o saber acadêmico, pode elaborar-se a definição de novas temáticas nascidas do confronto com a anti-realidade popular e valorizar a riqueza incomensurável de nosso povo na sua capacidade de encontrar (...) saída para seus problemas. (...) A partir dessa prática a universidade pública resgatará seu caráter público, será servidora da sociedade e não apenas daqueles privilegiados que conseguiram se inscrever nela. E a universidade privada realizará sua função social, já que grande parte é refém dos interesses privados das classes proprietárias e feita chocadeira de sua reprodução social”.11
Leonardo Boff também descreve a emergência da necessidade da tomada decisões em um
novo projeto baseado numa ordem social sustentável, distanciando-se dos outros porque quer se
construir sobre outra base social. A proposta deveria, então, ser constituída principalmente por
“(...) todos aqueles que, excluídos da história brasileira, lentamente foram se organizando na
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
sociedade civil e nos mais diferentes movimentos sociais. (...) Para esse projeto, fundamental é
construir uma nação autônoma, capaz de democratizar a cidadania, mobilizar a sociedade
inteira para erradicar, em curto prazo, a pobreza absoluta, projetar um tipo de desenvolvimento
sustentável, a partir de uma sociedade sustentável, desenvolvimento que se faça com a natureza e
não contra ela, visando o suficiente e decente para todos e não a acumulação para poucos”.
Para resumir, então, Boff define desenvolvimento sustentável como aquele que “(...) leva à
construção de comunidades humanas sustentáveis, ou seja, comunidades que buscam atingir um
padrão de organização em rede dotado de características como interdependência, reciclagem,
parceria, flexibilidade e diversidade (...)”.12
A necessidade brasileira de participação para construção de uma proposta coletiva
também pode ser medida pela entrevista concedida pelo empresário Oded Grajew, um dos
organizadores do Fórum Social de Porto Alegre (jan. 2000), à revista Isto É (12 fevereiro de
2001):
ISTOÉ: Qual o motivo que o levou a atuar na área social? Oded: Essa pergunta várias pessoas me fazem. Mas acho que podia ser feita ao contrário para quem não tem nenhuma preocupação social: como é possível viver no Brasil, onde as carências sociais São absolutamente visíveis a cada esquina, sem se preocupar com essas questões? O dia-a-dia obriga as pessoas com um mínimo de sensibilidade e visão da sociedade a se envolverem.
4. Terceiro Setor, Desenvolvimento Sustentável e Responsabilidade Social da Imprensa
Rubem César Fernandes define Terceiro Setor como sendo um setor não-governamental e
não-lucrativo, organizado, independente e mobilizador de energias voluntárias, “(...) um conjunto
de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos. (...)
Bens e serviços públicos, neste caso, implicam uma dupla qualificação: não geram lucros e
respondem a necessidades coletivas. Eventuais benefícios auferidos pela circulação destes bens
não podem ser apropriados enquanto tais pelos seus produtores e não podem, em conseqüência,
gerar um patrimônio particular(...)”13.
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
Sendo assim, o Terceiro Setor se caracteriza, somando-se ao Estado, como um potencial
pólo de debate e de ações relacionadas a possibilidades de melhoria da qualidade de vida das
pessoas, “(...) Se de um lado a presença do Estado é imprescindível, de outro atribuições no
campo da cultura e das artes, da solidariedade humana, da defesa da natureza podem ser
compartilhadas com entidades não-governamentais. Entidades criadas por iniciativas de grupos
de cidadãos dispostos a engajarem-se na busca de um ideal são necessárias para a defesa de
uma causa de interesse social (...)”14
Surge a dúvida, nesse cenário qual um potencial papel que a imprensa pode desempenhar
na promoção da melhoria da qualidade de vidas das pessoas? Qual a ação ideal frente aos
possíveis confrontos e conflitos de interesses e posturas? De acordo com Joaquim Falcão,
Secretário-Geral da Fundação Roberto Marinho e professor de Direito Constitucional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, a imprensa em geral têm se caracterizado mais pela
divergência que pela convergência, percorrendo caminhos diferentes, conflitantes muitas vezes
com a sinergia democratizante que poderia consolidar na relação com o Terceiro Setor, que acaba
por se queixar de parte da imprensa incapaz de compreender a prática privada em favor de um
objetivo público, que não o valoriza, ao contrário, e que freqüentemente o atinge com críticas,
nem sempre consistentes e quase sempre conjunturais. Incompreensões de ambas as partes. “(...)
No fundo, esta posição de uma parte da imprensa revela, ainda que de maneira não refletida,
uma eventual preferência pela democracia representativa, dificultando sem pretender, a
implementação da democracia participativa. Aquela, sendo como foi, mas não sendo mais, mais
importante do que esta. (...)”.
Em princípio, também há para Falcão, diferença de princípios entre a razão de ser do
Terceiro Setor e da Imprensa, a medida que ONGs, fundações e associações não buscam nem o
poder nem o lucro. Sua razão de ser é a possibilidade ideal, utopia ou ilusão, não importa
de poder contribuir para solucionar alguns dos problemas brasileiros (...). Já a imprensa acredita
que o Brasil vá dar certo criticando-o. O foco de sua contribuição para a democracia é o
problema. É a crítica, e não a proposição. É como se a democracia fosse essencialmente exercitar
a liberdade de expressão, e exercitá-la fosse criticar. Crítica não a favor, mas crítica contra.
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
O autor salienta que esta não é uma atitude exclusivamente brasileira, importante que se
diga. A imprensa mundial é em sua maioria assim. A notícia é a catástrofe. Prefere-se a polêmica,
muito mais que o consenso. O acidente muito mais do que a normalidade. O fracasso retumbante
ou a impossibilidade crônica muito mais que a mudança pacífica e cumulativa. “(...) É como se o
exercício da liberdade de expressão e o compromisso com a democracia se extingüissem com a
ênfase na problemática, e esqueça-se a solucionática. Eis aí outra divergência relevante. A
competição entre os órgãos da imprensa os obriga a buscar sempre o furo, o inesperado, o
imprevisível. E quanto mais espetacular o furo maior o sucesso. Donde acabam por enfatizar
muito mais o espetacular do que o cotidiano. “. 15
Para buscar uma maior aproximação, torna-se necessário, então, superar divergências,
tornando os caminhos mais sinergéticos superando conflitos: “(...) Enquanto aquela ainda
trabalha com a dicotomia público-governo versus privado-sociedade, esta não o faz. Enquanto
aquela valoriza o problema, esta valoriza a solução. Enquanto aquela busca a notícia-espetáculo,
esta busca a ação cotidiana (...)”.16
Um possível ponto de encontro entre Terceiro Setor e as instituições de comunicação,
refere-se ao fenômeno denominado civic journalism, que tem verão difícil para a realidade
brasileira, de modo que a percepção em nosso país de civismo está relaciona com a interpretação
do regime militar (1964-85). De toda forma, de acordo com o jornalista Oswaldo Braga de Souza,
“(...) uma boa tradução para civic journalism, num sentido literal, seria ‘jornalismo para a
cidadania’ ou ‘jornalismo cidadão’ (...). A noção do civic journalism, assim como é entendida
por seus elaboradores, pretende questionar, senão a idéia de neutralidade política e ideológica,
a idéia de neutralidade da imprensa como agente dinamizador comunitário em potencial
espaço de discussão e divulgação visando uma determinada ação mobilizadora. Desse ponto de
vista, a imprensa não só deve propor soluções para os mais diversos problemas sociais. Ela deve
também encampar ações concretas que levem às soluções (...)17
Joaquim Falcão assume a tradução jornalismo cívico e o define como sendo “(...) um
jornalismo de valores. Ou melhor, um jornalismo que não reduz o compromisso com a
democracia apenas a exercitar a liberdade de expressão”. O autor aponta duas características:
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
“(...) a primeira é a compreensão de que a liberdade de expressão não é um direito
hierarquicamente superior aos demais direitos e garantias individuais e coletivas. (...) A segunda
característica é uma atitude positiva e programática na defesa de valores que considera
fundamentais para a democracia. O jornalismo cívico não é um jornalismo pretensamente neutro.
A contrário, é um jornalismo que assume a defesa de determinados valores sociais (...) e o faz de
uma maneira positiva, afirmativa e exemplificativa.18
5. Formas de assegurar o respeito aos direitos humanos na imprensa
Entendendo os meios de comunicação social como um espaço público, ou seja, como a
ágora contemporânea, como um lugar que por dever deve dar o direito de expressão aos cidadãos,
como meio de interação entre os cidadãos no processo de circulação e tomada de decisões
políticas, faz-se necessário a implantação de Meios para Assegurar a Responsabilidade Social da
Mídia (MARS), que se relaciona a construção de uma nova relação de cidadania. Para Claude-
Jean Bertrand, a "irreversível mediatização do espaço público nas sociedades contemporâneas
originou a necessidade de inventar mecanismos (...) com vista a ajudarem a respeitar a
deontologia, manter a confiança do público, defender a respectiva liberdade contra as ameaças
dos poderes constituídos e do mercado".
A opinião é compartilhada por David Pritchard, Professor da Wisconsin University. Nos
Estados Unidos, utiliza-se a palavra accountability para descrever responsabilidade, exatidão.
Logo, "(...) media accountability actually function (...) from the perspective of consumers of
media content; accountability is conceptualized as a process set in motion by people who
complain, who seek to hold media accountable" O autocontrole jornalístico, diferencia-se, então,
da censura e da autocensura jornalística, entendendo-se censura como proibição e autocensura
como omissão.
Dentre os chamados MARS ou System of Media Accountability, pode-se citar: colunas de
correção de erros, seções de cartas dos leitores, colunas de Ombudsman/provedor dos leitores nos
jornais, revistas de jornalismo, Observatórios de imprensa e códigos de ética dos veículos. Pode-
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
se dizer que a criação de meios e a participação do público nestes espaços de questionamento tem
aumentado nos últimos anos. No mundo 60 jornais já praticam a experiência de ombudsman em
suas redações. A experiência concebida originalmente na Suécia (em sueco, ombuds: público,
man: representante) ganha força a cada ano e é tema de sucessivos debates
Outra espécie de MARS, o envio de mensagens para jornais e revistas foi facilitado com o
desenvolvimento da Internet.
A rede mundial de computadores também facilitou a consolidação de publicação dos
críticos da imprensa, ou, na denominação americana, media watchdogs, os cães-de-guarda da
imprensa. No Brasil, em 1996, surgiu o Observatório da Imprensa
(www.observatoriodaimprensa.com.br), vinculado ao Laboratório de Jornalismo da Unicamp e
coordenado por Alberto Dines. Outra experiência paradigmática é o Instituto Gutenberg
(www.igutenberg.org).
6. Sociedade de consumo, cidadania e direitos humanos
Ao lado das possibilidades técnicas de participação do usuário na relação imprensa-
público, também têm surgido formas de relacionamento e transformação do conteúdo veiculado
nas instituições de comunicação a partir dos direitos conseqüentes na relação de consumo. A
conquista tecnológica por si só não responde ou satisfaz todo o conteúdo a ser veiculado/
consumido. Nicholas Negroponte, em A Vida Digital, compara necessidades num ambiente onde
as pesquisas se encontram “centradas precisamente no refinamento da imagem, em detrimento
da qualidade do conteúdo. Não há nenhuma evidência que corrobore a premissa de que os
consumidores preferem melhor qualidade de imagem a um melhor conteúdo”.
Em Consumidores e Cidadãos, Nestor Canclini é preciso ao afirmar: “homens e mulheres
percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos a que lugar pertenço e que direitos
isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses recebem suas
respostas mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do
que das regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos”.
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
Segundo Canclini, para vincular consumo com cidadania, também é preciso “desconstruir as
concepções que julgam os comportamentos dos consumidores predominantemente irracionais e
as que vêem os cidadãos atuando em função da racionalidade dos princípios ideológicos”19
A aproximação da cidadania, da comunicação de massa e do consumo tem, entre outros
fins, reconhecer estes novos cenários de constituição do público e mostrar que para se viver em
sociedades democráticas é indispensável admitir que o mercado de opiniões cidadãs inclui tanta
variedade e dissonância quanto o mercado da moda, do entretenimento. Lembrar que cidadãos
também são consumidores leva a descobrir na diversificação dos gostos uma das bases estéticas
que justificam a concepção democrática da cidadania, a medida que “o consumo é conjunto de
processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. (...)
Consumir é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos
modos de usá-lo”20
Estas ações, políticas, pelas quais os consumidores ascendem à condição de usuários,
implicam numa concepção do mercado não como simples lugar de troca de mercadorias, mas
como parte de interações socioculturais mais complexas. Da mesma maneira, o consumo é visto
não como a mera possessão individual de objetos isolados, mas como a apropriação coletiva, em
relações de solidariedade e distinção com outros, de bens que proporcionam satisfações
biológicas e simbólicas, que servem para enviar e receber mensagens.
Repensar, a partir da relação consumo-consumidor, a cidadania como estratégia política
serve para abranger as práticas emergentes não consagradas pela ordem jurídica, o papel das
subjetividades na renovação da sociedade e, ao mesmo tempo, para entender o lugar relativo
destas práticas dentro de uma ordem democrática e procurar novas formas de legitimidade
estruturadas de maneira consolidada e potencializar outro tipo de Estado.
Também está certo que a cidadania, nos moldes modernos, iluministas, de expansão de
direitos humanos básicos, não pode se restringir somente aos que consomem, ainda mais quando
falamos de um mundo com recursos financeiros cada vez mais concentrados. Segundo a ONU
(dados do PNUD), as três pessoas mais ricas do mundo possuem um patrimônio superior a soma
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
de produto de 48 países e de acordo com a revista inglesa The Economist, o valor real das
matérias-primas que vendem os países pobres é hoje seis vezes menor que há oitenta anos.
É necessário conciliar os direitos conseqüentes da relação de consumo com a salvaguarda
aos cidadãos potencialmente consumidores ou não-consumidores, estes últimos com impacto
cotidiano ainda mais passível e possível de reação retro-violenta. Jovens que se vêem expulsos do
paraíso do consumo, segregados daquela “cidadania” que pode ser comprada pelo consumo,
insurgem-se de forma violenta contra os privilegiados. Tomam à força o que o mercado não lhes
permite adquirir dentro da lei.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano aponta a publicidade nas instituições de
comunicação, que se converteram nos principais formadores de imaginário, como uma das
principais causas da violência nas grandes cidades. O paraíso do consumo é a única perspectiva
de salvação e proporciona impacto destrutivo: “automóveis imbatíveis, sabonetes prodigiosos,
perfumes excitantes, analgésicos mágicos: através da telinha, o mercado hipnotiza o público
consumidor (...) O problema é quando o dinheiro se converte no centro do universo e quando os
direitos do dinheiro passam a ser mais importantes que os direitos das pessoas” , impacto que
para alguns autores se refere a substituição da cultura do ser pela cultura do ter o que o outro não
tem, onde o exercício do consumo existe para diferenciar os homens uns dos outros dentro da
competição individualista e narcisista.
Alain Touraine, também critica a nova realidade vivida a partir da transformação pelo
consumo: (...) o espírito comunitário, mesmo quando se define como cidadania, supõe a
participação de todos na vida social e, portanto, em valores comuns. Situação que a autonomia
crescente da vida econômica fez desaparecer, simultaneamente isolando os indivíduos,
misturando grupos e indivíduos de culturas diferentes, atribuindo importância sempre maior às
relações de poder e dependência e ampliando as regiões de marginalidade e anomia (...)”21
A opinião é compartilhada em parte por Canclini que acredita não ser possível generalizar
as conseqüências sobre a cidadania resultantes da participação crescente através do consumo. As
críticas apocalípticas ao consumismo continuam sublinhando que a organização individualista
dos consumos tende a que nos desconectemos, como cidadãos, das condições comuns, da
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
desigualdade e da solidariedade coletiva. Em parte, isto está certo, mas também acontece que a
expansão das comunicações e do consumo gera associações de consumidores e lutas sociais,
ainda que em grupos marginais, melhor informadas sobre as condições nacionais e
internacionais.22
7. Conclusão: Poder legitimado como arena de luta de consumo e cidadania
O mundo em transformação constante, cada vez mais veloz, faz com que se mude também
a relação de cidadania, classificada na interpretação moderna de acordo com a territorialidade e
direitos para a ampliação geográfica e relacionada não mais apenas às nações, mas também a
força do mercado de consumo. Desiludidos com as burocracias estatais, partidárias e sindicais,
por exemplo, o público recorre à rádio e à televisão para conseguir que as instituições cidadãs não
proporcionam: serviços, justiça, reparações ou simples atenção. Como afirma Canclini, não é
possível afirmar que os meio de comunicação de massa (...) sejam mais eficazes que os órgãos
públicos , mas fascinam porque escutam e as pessoas sentem que não é preciso ater a
adiamentos, prazos, procedimentos formais que adiam ou transferem as necessidades.
O pesquisador acadêmico deve se atentar aos novos direitos na relação de consumo e
também, aos novos desafios relacionados a possibilidades de transformação das condições de
vida das comunidades. Como regular direitos e quais mecanismos para garanti-los? Qual o eixo
normativo para regulamentar espaços geográficos se considerarmos a Declaração dos Direitos
Humanos nascida em perspectiva internacional e a tecnologia que tem proporcionado laços de
cidadania global?
O maior desafio é expandir e universalizar o direito ao acesso para todos, levando-se em
conta a concentração econômico-financeira e a escassez de recursos naturais. De toda forma,
ainda temos o direito de apontar problemas e de sonhar em mudanças de enfoques como a
possibilidade dos economistas não chamarem nível de vida de nível de consumo, nem qualidade
de vida a quantidade de coisas. Sonhar que o povo não ser guiado pelos carros, nem
programado pelo computador, nem comprado pelo supermercado, nem visto pela tevê23
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
É preciso, por fim, conciliar à reflexão ética, da tecnologia, do uso e da expansão dos
direitos de consumo com a salvaguarda aos direitos humanos. Não se acomodando com a
concentração ou a possíveis desrespeitos existentes, é possível construir cada vez mais espaços de
participação e de mudança social. As possibilidades surgem como arena de luta para construir um
mundo mais equânime em direitos e deveres, conceitos-chave para a descoberta de atividades que
garantam a possibilidade de vivermos juntos. Humanamente, descobrindo origens e limites do
público e do privado, com respectivas transformações nas sociedades contemporâneas.
8. Bibliografia
BOFF, Leonardo. 500 anos depois, que Brasil Queremos? Petropólis: Editora Vozes, 2000. CANCLINI, N. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Ed. Da UFRJ, 1997.
ËSTEVA, Gustavo. Desenvolvimento in SACHS, Wolfgang (org). Dicionário do Desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder.
Petropólis: Vozes, 2000.
FALCÃO, Joaquim. Por um jornalismo cívico in IOSCHPE, Evelyn Berg. 3.º Setor Desenvolvimento Social Sustentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 157. FERNANDES, Rubem César. Privado, porém Público. Civicus. 1996.
FRANCO, Augusto. Por que precisamos de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável? . Brasília: Instituto de Política, 2000.RAWLS, J. O
Liberalismo Político. São Paulo: Editora Ática, 1997.
GALEANO, Eduardo. O direito de sonhar in Vea y Lea (internet)
MARCOVITTCH, Jacques. Da exclusão à coesão social: profissionalização do Terceiro Setor. In IOSCHPE, Evelyn Gerg. 3.º Setor Desenvolvimento Social Sustentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. ROSTOW, W.W. Etapas do Desenvolvimento Econômico: um manifesto não-comunista. 6.ª edição. Rio de Janeiro, 1978.
TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos?: iguais e diferentes. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
1 TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos?: iguais e diferentes. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p.30. 2 RAWLS, J. O Liberalismo Político. São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 305. 3 Idem, p. 263 4 ËSTEVA, Gustavo. Desenvolvimento in SACHS, Wolfgang (org). Dicionário do Desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder. Petropólis: Vozes, 2000. 5 Declaration o n the Right to Development, ECOSOC, United Nations Commission on Human Rights, 18/10/93 6 ROSTOW, W.W. Etapas do Desenvolvimento Econômico: um manifesto não-comunista. 6.ª edição. Rio de Janeiro, 1978, p. 34 7 FRANCO, Augusto. Por que precisamos de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável?. Brasília: Instituto de Política, 2000.p.13 8 idem .p. 13. 9 idem p. 21.
INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001
10 ibidem p. 22. 11 BOFF, Leonardo. 500 anos depois, que Brasil Queremos? Petropólis: Editora Vozes, 2000, pp. 91-3. 12 BOFF, Leonardo. Op. Cit,, p. 67. 13. FERNANDES, Rubem César. Privado, porém Público. Civicus. 1996. p. 21. 14 MARCOVITTCH, Jacques. Da exclusão à coesão social: profissionalização do Terceiro Setor. In IOSCHPE, Evelyn Gerg. 3.º Setor Desenvolvimento Social Sustentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 15 FALCÃO, Joaquim. Por um jornalismo cívico in IOSCHPE, Evelyn Berg. 3.º Setor Desenvolvimento Social Sustentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 157. 16 Idem, p.158. 17 SOUZA, O.B. Imprensa como Espaço Público. Civic Journalism. Brasília: mimeo, 1998. 18 FALCÃO, Joaquim. Op. Cit. p.159. 19 CANCLINI, N. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Ed. Da UFRJ, 1997. 20 CANCLINI, op. cit. p. 37. 21 TOURAINE, Alain. op. cit. p. 82 22 CANCLINI, op. cit.. p. 39. 23 GALEANO, Eduardo. O direito de sonhar in Vea y Lea (internet)