desenvolvimento econômico, desigualdades sociais e ambiente
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Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas
ISSN 2238-1627, Ano III, Nº 7, agosto de 2013
Desenvolvimento econômico, desigualdades sociais e ambiente
urbano deteriorado: o que fazer?
Selene Herculano
Resumo: este artigo esboça o quadro de alguns aspectos contrastantes do
desenvolvimento econômico e social do Brasil e mostra o lado contraditório entre
crescimento econômico, desenvolvimento social e a resultante deterioração
metropolitana. Sugere novas formas de atuação.
Palavras-chave: desenvolvimento; cidade, planejamento urbano, desenvolvimento
social
Abstract: this paper focuses on the imbalance between economic and social
development in urban Brazil.
Keywords: development, urban planning, sustainability, Brazil.
Apresentação: Este texto se origina de uma palestra proferida pela autora durante o
III Congresso em Desenvolvimento Social: (Des)Igualdades Sociais e
Desenvolvimento, organizado pela UNIMONTES em Montes Claros, entre 30 de
maio a 01 de junho de 2012. Sua intenção foi estimular o estudante de ciências sociais
a ir além dos diagnósticos e das denúncias e tornar-se propositivo, elaborando
propostas sobre o que fazer para reverter o quadro de desigualdades sociais e de
degradação ambiental metropolitana em nosso país. A sociologia tem se atribuído o
papel de criticar (“desencantar”, segundo Bourdieu), pouco o de propor. Desvendar
estruturas ocultas de dominação, encorajar revoltas e revoluções tem sido o foco
sociológico mais caro, não o ramerrão daquilo que é considerado gestão. Quando a
sociologia se debruça sobre a atuação, tende a fazê-lo de forma normativista, moral,
em termos do que deve ser e da distância entre o que é e aquilo que deve ser.
Convidada aqui a falar sobre desenvolvimento e desigualdades no ambiente urbano,
tento um recado diferente, inspirada em Ermínia Maricato e em Cristóvam Buarque:
o que fazer, eis a questão. Gerir é altamente político e pode ser extremamente
questionador, inovador e indutor da democracia real.
Introdução:
Estudos sobre o teor do desenvolvimento brasileiro e seus reflexos sobre o bem-
estar social e ambiental tem pontos bem conhecidos e apenas os mencionarei
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minimamente, à guisa de introdução, como elementos para melhor entender o tema
em foco, desigualdades e ambiente urbano. São estes:
1. O desenvolvimento brasileiro tem sido formidável.
2. O desenvolvimento brasileiro convive com crianças pobres e miseráveis.
3. O desenvolvimento brasileiro cria favelas e miséria metropolitana.
4. O desenvolvimento brasileiro tem provocado mobilidade social ascendente.
5. O desenvolvimento brasileiro produz degradação ambiental.
1. O desenvolvimento brasileiro tem sido formidável, os economistas assim
o tem afirmado: desde os anos 50 (quando o Presidente JK adotou o lema de
fazer “50 anos em 5”), passando pelo milagre brasileiro do período da ditadura
militar (quando a literatura aponta para um crescimento do PIB da ordem de
11% em 1969 e 14% em 1973) até a retomada do crescimento, no final da década
de 90 para cá. Mas cresceu com desigualdades e com um PIB ultrapassado pelas
dívidas. Como se pode ver na Tabela 1 em anexo, o PIB brasileiro cresceu 17
vezes e o PIB per capita 4,5 vezes entre 1950 e 2009. Este crescimento foi
acompanhado por uma dívida ainda maior: a dívida externa cresceu 354 vezes e
a interna 244 vezes no período.
2. O desenvolvimento brasileiro se caracteriza pelo alto número de crianças
pobres e miseráveis: 77% delas vivem em famílias com até um salário mínimo de
rendimento mensal, como se vê na Tabela 2, anexa.
3. O desenvolvimento brasileiro criou favelas, provocou um processo de
urbanização e metropolização desigual e degradante, caracterizado pela
presença de “aglomerados subnormais” (terminologia do IBGE para favelas). A
tal ponto que são fenômenos quase correlacionados (crescimento econômico e a
presença crescente das favelas). Sua presença e expansão é como que um
indicador (perverso, mas indicador) de dinamismo econômico local (Tabela 3,
anexa).
4. O desenvolvimento brasileiro trouxe mobilidade social ascendente:
formou uma nova classe média, através do surgimento e expansão de uma
tecnocracia da esfera privada e da esfera pública. Os anos militares (1964-1979)
multiplicaram as empresas estatais e viram chegar muitas das empresas
mutinacionais, daí fornecendo mercado de trabalho para jovens recém-
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formados. Décio Saes chegou a se perguntar se esta expansão teria significado
cooptação aos ideais ditatoriais nos anos 70 e concluiu que não. Mas o dinheiro
do FGTS e os esforços do programa habitacional foram dirigidos a ela.
Segundo Saes, durante a fase de consolidação do Estado nacional, até 1870, as
camadas médias tradicionais eram marcadas pelas relações de dependência com as
oligarquias rurais, que formaram um "vasto corpo burocrático civil e militar" (SAES,
1985:42). Mais tarde, após a Constituição de 1891, a idéia de uma democracia de
homens cultos, inspirada por um liberalismo antidemocrático e antipopular, vicejou
entre essas camadas médias tradicionais. A partir da Revolução de Trinta, a formação
de um Estado pós-oligárquico se fez em moldes populistas, com base nas camadas
médias baixas - empregados de escritório, bancários, pequenos funcionários públicos
- além da classe operária. Após 1956, com a passagem a uma etapa monopolista de
industrialização periférica, novas camadas médias surgiram, formadas por gerentes,
economistas, técnicos médios, engenheiros, chefes de serviço das novas empresas
modernas e não estariam mais identificadas com o Estado populista, nem
subordinadas às oligarquias rurais. Por fim, em 1964, grandes proprietários de terras
e a média burguesia industrial deram apoio a uma militarização, que pensavam
provisória, do aparelho de Estado, a fim de barrar a ascensão política das classes
populares. No entanto, o Estado militar estável que surgiu a partir daí não os
favoreceu e sim aos setores monopolistas. Com a expansão deste setor e da máquina
de Estado, as novas camadas médias foram beneficiadas. Na literatura sobre classes
médias estas novas camadas foram também denominadas de "classe profissional
dirigente”, uma classe específica do capital monopolista, definida como
"trabalhadores mentais", cuja função na divisão social do trabalho era definida como
sendo a função de reprodução da cultura capitalista e das relações de classe
capitalistas (EHRENREICH ,1977).
Darcy Ribeiro desenhou o mosaico da estratificação social brasileira com a
seguinte composição:
as classes dominantes, em função de COMANDO, compostas por 5 estratos:
patronato oligárquico (senhorial, parasitário); patronato moderno
(empresarial contratista); patriciado estatal (político, militar, tecnocrático);
patriciado civil (eminências, lideranças, celebridades); estamento gerencial
estrangeiro;
os setores intermediários, dotados de DINAMISMO, compostos por
autônomos (profissionais liberais, pequenos empresários e dependentes
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(funcionários, empregados) e que, segundo estudos do IPEA em 2002 pagava
62% do IR nacional;
as classes subalternas, COMBATIVAS, formadas pelo campesinato
(assalariados rurais, parceiros, minifundistas) e pelo operariado (fabril e de
serviços);
as classes oprimidas, MARGINAIS: trabalhadores estacionais, recoletores,
volantes, camelôs, biscateiros etc. (RIBEIRO, 1995: 211)
Em resumo, o desenvolvimento brasileiro provocou mobilidade social
ascendente, que beneficiou as novas camadas médias metropolitanas da tecnocracia
estatal e empresarial, o que, por sua vez estimulou a mobilidade geográfica de
componentes das classes subalternas e oprimidas, com os fenômenos migratórios do
campo para a cidade, das pequenas cidades para as metrópoles. Mas tais migrações
não explicam sozinhas o crescimento das favelas, que ocorreu pelo crescimento
vegetativo da pobreza metropolitana.
5- O desenvolvimento tem provocado degradação ambiental: não é preciso nos
alongarmos sobre dados a respeito da realidade, sobejamente conhecida a olho nu,
do desmatamento, poluição hídrica, expansão urbana sem saneamento,
assoreamento de rios, vazadouros de lixo a céu aberto, valas negras, descarte
aleatório de dejetos industriais venenosos etc. O que merece destaque é que essas
ocorrências começaram, a partir dos anos 90, a ser objeto de uma reflexão crítica das
ciências sociais, dos movimentos sociais e do terceiro setor sob um novo conceito e
uma nova bandeira, a da luta por justiça ambiental, uma reflexão que junta a
temática ambiental ao tema da pobreza e das vulnerabilidades sociais. Segundo
Bullard,
“Justiça Ambiental é o conjunto de princípios que asseguram que
nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe,
suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais
negativas de operações econômicas, de políticas e programas federais,
estaduais e locais, bem como resultantes da ausência ou omissão de tais
políticas” É ainda “a busca do tratamento justo e do envolvimento
significativo de todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor,
origem ou renda no que diz respeito à elaboração, desenvolvimento,
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implementação e reforço de políticas, leis e regulamentações
ambientais”1
No Brasil, criou-se em 2001 a Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA e o
GT contra o Racismo Ambiental.
O que fazer?
Finda esta introdução um tanto longa, fica a pergunta: o que trago aqui?
Diagnósticos e denúncias estão feitos, são importantes, mas não bastam. É preciso
gerir mudanças.
Ermínia Maricato (2002) escreveu sobre a nossa tragédia urbana e sobre a perenidade
do arcaico no Brasil: contrastando com o pensamento do senso comum de que
haveria um Brasil arcaico, rural, em contraste com um Brasil moderno e urbano (a
conhecida tese da dualidade). Maricato afirmou que o processo de urbanização no
Brasil não superou o Brasil arcaico, mas o recriou e recria. A pobreza nacional
emerge nas periferias metropolitanas e não há políticas urbanas para ela. Se houve
melhoras sociais - diminuição da taxa de natalidade, queda da mortalidade infantil e
aumento da expectativa de vida - isso se deveu a políticas públicas de saúde, não foi
por causa da urbanização. As favelas metropolitanas, define Maricato, são quase
guetos, verdadeiras “bombas sociológicas” onde permanecem “pessoas ociosas,
exiladas em periferias urbanas pelo alto custo e baixa qualidade dos transportes”:
“Concentração territorial homogeneamente pobre, ociosidade, ausência de
atividades culturais e esportivas, ausência de regulação social e ambiental,
precariedade urbanística, mobilidade restrita ao bairro e, além dessas
características todas, o desemprego crescente que, entre outras consequências,
tende a desorganizar núcleos familiares e enfraquecer a autoridade dos pais,
essa é a fórmula das bombas socioecológicas” (MARICATO, 2002: 36).
Nossa urbanização é uma “máquina de produzir favelas” e de agressão
ao meio ambiente, onde se admite a invasão, mas não o direito à cidade. Boa parte
das cidades é feita de forma ilegal, sem a participação dos governos, sem recursos
técnicos e financeiros significativos. Além das questões estruturais bem sabidas,
Maricato elencou ainda outras causas para a nossa tragédia urbana, das quais
1 ACSELRAD, Henri et al (orgs.). Conflitos Ambientais e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004;
HERCULANO, Selene & PACHECO, Tania. Racismo Ambiental. Rio de Janeiro: FASE, 2006.
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salientamos as seguintes: estudos acadêmicos teóricos, críticos e de resistência, mas
raramente propositivos, distanciados das tarefas práticas; ensino magistral, livresco
e dogmático; tradição livresca e retórica da máquina pública brasileira, com distância
entre discurso e prática, inspiração exógena e cultura usada como berloque; número
exagerado de funcionários de gabinete e número insuficiente de funcionários
operacionais, com a máquina de estado desempenhando um papel de absorvedor de
mão de obra ociosa de classe média; fiscais desaparelhados, em pequeno número,
mal pagos, de baixa escolaridade, sujeitos à corrupção frequente; paralisia
propositiva. (MARICATO 2002: 48-55)
A concepção de Maricato acerca da presença e atualidade do nosso arcaísmo
converge com a crítica de Cristóvam Buarque, para quem o desenvolvimento
brasileiro se reduziu a:
Uma modernidade técnica construída a partir da desigualdade, do
endividamento, do privilégio das elites, da exclusão social, do extermínio dos
índios, uma modernidade construída pela engenharia dos ministros e
tecnocratas e pelo empresariado selvagem, que domina a natureza, faz as UHE
de Itaipu e Sobradinho, mas não é capaz de dar comida e escola às suas crianças
(BUARQUE, 1991: 20).
Maricato é propositiva (não sem razão foi uma das fundadoras do Ministério
das Cidades): além de apontar medidas do que fazer (presença do Estado nos bairros
ilegais, formação de quadros, aperfeiçoamento e democratização das informações),
ela aponta para a necessidade de adoção de dois procedimentos muito importantes e
que ainda não foram suficientemente objetivados:
Usar a bacia hidrográfica como referência para o planejamento e gestão:
os aspectos naturais foram negligenciados pelo urbanismo moderno
tradicional e pelo enfoque econômico abstrato. Hoje se impõem, não só
pela presença do pensamento e movimento ambientalista, mas pela
radicalização dos desastres ambientais, bem como da percepção da água
como uma riqueza vital e escassa.
Produzir um programa especial para as regiões metropolitanas: 80% dos
moradores de favelas estão em áreas metropolitanas, mas não há política
institucional para as metrópoles (p. 78) e tudo fica a critério do
voluntarismo dos municípios em se organizarem. Maricato foi taxativa:
“as metrópoles brasileiras deveriam merecer um programa habitacional e
urbano específico da instância federal”. (MARICATO, 2002: 79).
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Cristóvam Buarque também procurou ir além da denúncia e do diagnóstico dos
nossos erros e elencou ainda nos anos 90 um conjunto de 10 prioridades que
“mudariam o Brasil”:
um país sem fome; todas as crianças na escola e sociedade culta; população com
saúde; Estado eficiente e sem corrupção; instituições democráticas; sociedade
sem violência; todos com habitação, saneamento e serviços básicos; meio
ambiente protegido; infra-estrutura eficiente; nação aberta (BUARQUE 1994:
126).
Que passos dar para a realização das 10 prioridades? Destaquemos alguns que
Buarque propôs e que focam as crianças, a cidade, o ambiente e o dinheiro público:
Implantar um sistema de atendimento universal às crianças de baixa
renda em idade pré-escolar. Seria um total de US$ 1 bilhão/ano (menor,
segundo C Buarque, do que os US$ 1,2 bilhão gasto anuamente para
conservar 15 hidrelétricas e termoelétricas inacabadas); implantar bolsas
oficiais para manter crianças pobres nas escolas; implantar horário
integral nas escolas; contratar professores para se obter uma média de 20
alunos/professor. Obrigar universidades a implantar escolas de
aplicação e a ter envolvimento direto no ensino básico. Formular lei de
lesa-escola que reprima atos de vandalismo contra a escola. Utilização
de cursos à distância nos veículos de comunicação e táticas de incentivo
à leitura.
Implantar saneamento básico, água potável e recolhimento e tratamento
do lixo nas cidades.
Desenvolver o PIB verde; substituir o PIB por indicadores de qualidade
de vida. Taxar o uso de recursos não-renováveis. Aplicar pelo menos 5%
dos investimentos do petróleo no abastecimento de água para o
nordeste. Considerar como investimento os gastos com educação e com
saúde.
Limitar a capacidade de endividamento dos governos. Apoiar a criação
de bancos para microfinanciamentos. Substituir a função de vereador
pela de conselheiro municipal sem remuneração; limitar gastos com
publicidade pelos governos. Tornar em crimes hediondos os crimes
contra o erário público. Dar acesso público às informações. Dar
participação direta dos trabalhadores e da sociedade civil na
administração da Previdência.
A lista de Cristóvam Buarque é bem mais extensa e detalhada. Foi escrita em
1994, há 18 anos. Vista em perspectiva, concluímos que algumas das proposições se
tornaram realidade (bolsa-escola, colégios de aplicação das universidades, cursos à
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distância, microfinanciamentos, lei de responsabilidade fiscal, lei do direito à
informação). Outras ainda não: saneamento urbano; PIB verde; tornar hediondos
crimes contra o erário; fim da vereança; controle público do dinheiro da Previdência,
limitar gastos públicos com publicidade ...
Instrumentos
O que procurei trazer de novo para discussão diz respeito a uma procura
recente que faço – em estágio ainda bem incipiente, devo acrescentar - e que se
inspira na pergunta bem simples e de resposta bem complexa: o que fazer? Que
passos dar para consertar este gap, esta lacuna e esta sinergia perversa entre
desigualdade social, deterioração urbana e degradação ambiental que parecem se
alimentar mutuamente? O que está sendo feito, como, com quais recursos, onde etc?
Tenho procurado dados relativos à efetivação, ao controle de políticas
socioambientais para uma ação corretiva da degradação social, humana e ambiental,
tanto na esfera dos governos quanto na empresarial. O que tenho encontrado é ainda
material muito modesto e um silêncio quase absoluto no quesito dinheiro gasto.
(Conclamo aqui os cientistas sociais a se constituírem em redes sobre esta questão. E
a procurarem dominar a leitura intrincada da contabilidade e seus orçamentos).
Dito de outra forma, procuro ultrapassar a dicotomia que se construiu nos anos
80 e 90 entre um ambientalismo “combativo” (que apontaria as falências estruturais
do sistema capitalista) e um “de resultados (atribuído às iniciativas pontuais,
isoladas, em parceria com o setor privado e vistas entre inócuas e falsas). Naqueles
mesmos anos se criticava a ideologia do discurso da competência, quando Chauí se
preocupou em desnudar a intenção de nossas elites dominantes e dirigentes em
desqualificar e barrar a ascensão política de pessoas de pouca bagagem acadêmica
e/ou de pouca experiência operacional, esgrimindo a argumentação de falta de
competência. Considero que a crítica ao discurso preconceituoso da competência e à
uma atuação buscando resultados, embora procedentes e adequados naquela
conjuntura em que se tentava barrar a ascensão de um operário à presidência, essa
crítica acabou por trazer como efeito correlato a reafirmação nas entrelinhas do
desdém em relação a coisas comezinhas como a gestão. (O que tem se refletido até na
reação dos docentes universitários contra a avaliação de resultados, como se ter
metas a alcançar fosse apenas um sestro pequeno-burguês capitalista).
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Buscando respostas sobre o que fazer, além dos pontos acentuados por
Maricato e por Buarque, acima referidos, proponho a adoção dos seguintes
procedimentos:
A modelagem de cenários futuros
A atuação transsetorial
A modelagem de cenários futuros – ou prospecção de futuros - é uma
metodologia empregada no mundo empresarial e desconhecida ou pelo menos não
utilizada pela esfera pública (apenas alguns estudos de urbanismo a mencionam) e
que consiste, em linhas gerais, em traçar detalhadamente os aspectos de um futuro
péssimo a ser evitado e o de um futuro ideal a ser concretizado. O truque é listar as
variáveis de cada futuro – o péssimo e o ótimo -, decompô-las em aspectos objetivos
e determinar metas (o que fazer, quando, onde, com quais recursos financeiros e de
pessoal e em que intervalo de tempo) a fim de evitar o péssimo e chegar ou pelo
menos se aproximar do desejado. O truque seguinte é reconhecer neste processo a
presença inescapável e legitima dos mais diferentes agentes – empresas, governos em
suas diferentes esferas, terceiro setor, pessoas em suas racionalidades individuais e
suas ações. Todos eles são protagonistas e figurantes tanto do cenário péssimo
quanto do desejado.
Um exemplo da inexistência da utilização da modelagem de cenários futuros
está no Rio de Janeiro: nosso estado se atribuiu a tarefa de se recuperar das décadas
de falta de “desenvolvimento”, de desindustrialização e de “perseguição por
governos federais”. Tornou-se um canteiro de obras na preparação de megaeventos e
de grandes projetos de investimentos e de desenvolvimento em curso (Olimpíadas
em 2016; Complexo Petroquìmico – Comperj em Itaboraí; o Complexo de Açu, em
São João da Barra; o Pré-sal na Bacia de Campos). Alguns desses grandes
investimentos se concentram em Itaguaí (siderurgia, portos, construção do arco
metropolitano), sobre os quais uma orientanda minha da UFF pesquisa. Ela quer
saber como tem sido o planejamento destes projetos de desenvolvimento e se há o
uso da técnica de modelagem de futuros para evitar o ruim, os efeitos “inesperados”
e indesejados do crescimento econômico sobre o local: favelas, poluição,
congestionamento, violência etc.. Até o momento encontrou afirmações soltas e
otimistas sobre como tudo será excelente, mas nada quanto a políticas e práticas
habitacionais, políticas públicas de saúde, ambiental, etc... para responder às
pressões demográficas. Não parece haver preocupação com o que poderá acontecer
de péssimo e como criar cenários futuros desejáveis, com moradia, escola, transporte,
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saúde, conservação ambiental, saneamento etc. Ocorre que os governos são
imediatistas, ficam no horizonte de seus mandatos e são descompromissados com
resultados. As empresas, por sua vez, pensam que suas tarefas se resumem a ter
lucro, fornecer produtos e possibilitar empregos. A responsabilidade social é com o
poder público.
Quanto à atuação transsetorial, ela significaria fazer trabalhar em conjunto
pastas diferentes e que costumam agir como se vivessem em mundos paralelos. Na
questão ambiental isto é bem aparente, com organismos ambientais que se dedicam
ao conservacionismo e cujo único contato com outras áreas – industrial, de energia,
de transporte – se dá apenas no momento do licenciamento, com os atritos que todos
sabemos. Quando alguns ambientalistas acenam com a proposta de
transsetorialidade, são interpretados como se quisessem ganhar hegemonia no jogo
político.
Em artigo que focaliza o Decreto no 2.829/1998, que constituiu a base legal para
o Plano Plurianual – PPA, Garces e Silveira, do Ministério do Planejamento,2
defendem “um choque gerencial na administração pública brasileira”,
transformando o plano em instrumento de gestão, orientando a administração
pública para resultados. Para isso o Decreto “integra plano e orçamentos, fixa os
princípios de gerenciamento dos programas e do plano, cria a figura do gerente de
programa e obriga a avaliação anual de desempenho de todos os programas”.
Resumo a seguir alguns pontos essenciais descritos pelos autores:
A ideia é a de superar a cultura orçamentária e financeira tradicionais no
setor público e fazer a ligação entre o futuro desejado e programado em
dois horizontes, de quatro e de oito anos, ajustando as decisões de curto
prazo da programação orçamentária e financeira. [...] O PPA se baseia na
formulação de programas multissetoriais mais eficazes do que a
programação setorial, típica das organizações departamentalizadas do
setor público [...] e provê o governo de um mapa, os programas, que
norteie todos os meios da administração — recursos humanos,
organizacionais, materiais e de conhecimento — para os fins definidos. O
PPA tem um modelo gerencial, [...] com o objetivo de atribuir
responsabilidades, orientar os esforços das equipes envolvidas na
execução, para a obtenção de resultados, e, por último, assegurar a
2 GARCES, Ariel e SILVERA, José Paulo. Gestão pública orientada para resultados no Brasil.
Revista do Serviço Público Ano 53, número 4, out-dez 2002, pp 53-76
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atualização permanente do plano. A forma encontrada para assegurar a
qualidade do gerenciamento foi a de criar a figura do gerente de
programa, o monitoramento em rede, com o apoio de um sistema de
informações gerenciais, o gerenciamento intensivo dos programas
estratégicos e a avaliação anual de desempenho [...] Na avaliação da
execução, busca-se verificar a adequação e suficiência dos recursos
alocados, a pertinência e eficácia da estratégia de implementação, assim
como os reflexos do modelo gerencial . A alocação estratégica de
recursos estende- se até o gerenciamento intensivo de programas
considerados estratégicos [...] submetidos a uma avaliação
mensal,contida no Relatório de Situação dos Programas Estratégicos.
Assim, o PPA introduz a cultura de avaliação de desempenho, envolve
transparência e monitoramento, tornando disponíveis para a alta direção do governo
as informações de desempenho físico e financeiro das ações de cada programa, seus
resultados e as restrições que enfrenta durante a execução. Exige, portanto, uma
comunicação constante com a sociedade assume um papel de melhoria constante dos
programas e de transformação da gestão.
Garces e Silveira também enfatizam a necessidade de incorporar a noção de
desenvolvimento sustentável no âmbito da gestão pública. “Transformado em
conceito de valor público a partir dos anos 90, vêem-se, em todo o mundo, iniciativas
de incorporar os princípios da Agenda 21 na missão do Estado contemporâneo e na
forma de conceber o desenvolvimento. O planejamento referenciado ao território é a
opção”.
O movimento ambientalista tem exemplos muito propositivos, com um nível de
abrangência bem amplo, mas focadas em diretrizes gerais, políticas. Decompô-las em
passos objetivos a dar – gestão - é a questão. Por exemplo, no lançamento da revista
The Ecologists, o grupo britânico do mesmo nome lançou seu Manifesto em 1971 seu
Blueprint for Survival – com uma análise do estado de coisas e um manual/guia do
que fazer. Um dos pontos centrais era a crítica à economia de fluxos e a proposta de
sua substituição por uma economia de estoques. Com efeito, a economia
contemporânea se faz com base no movimento, no impulso crescente aos fluxos. Se
parar, cai, como acontece com os ciclistas. O dinheiro e as mercadorias tem de girar,
circular com cada vez mais intensidade. A economia de fluxos gera a cultura do
desperdício: exige insumos crescentes, provoca rejeitos crescentes e exige transporte
em ritmo intenso, implicando em gastos energéticos e em poluição: montanhas são
escavadas para a obtenção do minério de ferro, transformado em chapas de aço pelas
aciarias e que vão resultar em carros que produzirão congestionamentos insolúveis
até o ponto de seu uso já ser limitado por leis de rodízio e de proibição total à
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entrada de carros em ruas centrais. Se substituída por uma economia de estoques, a
racionalidade mudaria para a cultura da conservação e do planejamento do
atendimento às demandas. Falar em estoques é falar em tamanho ótimo, em ponto de
equilíbrio entre entrada e saída, entre produção e necessidade. Os passos objetivos a
dar na transformação não seriam em si tecnicamente difíceis. O ponto crucial é como
construir um planejamento democrático e consensual, pois há um aspecto autoritário
atribuído ao planejamento da produção: quem definiria o que é necessário, quanto e
onde? Implicaria em estilo monástico de vida? Em eliminação de empregos?
Diferentes respostas são esboçadas. Uma delas é o socialismo: a economia de
estoque foi uma experiência socialista: haveria uma afinidade eletiva entre
ambientalismo e socialismo, principalmente no seu veio anarquista, com ênfase no
local e na liberdade do indivíduo. Outra opção apontada como tendência é a
imaterialização ou desmaterialização da economia, com ênfase na economia criativa
– produtos culturais, softwares e aplicativos etc. – e a economia do lazer e do
turismo.
Engels escreveu que tempo viria em que o governo sobre os homens seria
substituído pela administração das coisas. E assim, ser combativo foi identificado
com alterar, inverter o sentido ou acabar com o governo dos homens. Minha
provocação aqui é que o foco na gestão com controle de resultados, ou seja, na
administração das coisas, pode também influenciar de forma muito interessante o
governo sobre os homens, ser um exercício de democracia real e trazer a igualdade.
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Anexos:
Tabela 1: Evolução econômico-social do Brasil: alguns dados (1950-2010)
BRASIL 1950 2010
PIB US$ 93,2 bilhões
(equivalente a US$ de 2009)
US$ 1,6 trilhão (2009);
US$ 2 trilhões (2010)
RS 4,143 trilhões (2011)
Cresceu 17 vezes
PIB per capita 1,8 mil (equivalente a US$ de
2009)
8,2 mil (2009);
Cresceu 4,5 vezes
PEA – população economicamente
ativa
17 milhões 99 milhões (2010)
PEA ind. transformação 1,1 milhão 13 milhões (2008)
Inflação 12,41% 2708,17% (em 1993);
-1,44% (em 2009);
Dívida externa 559 milhões (equivalente a
US$ de 2009)
198,2 bilhões (2009) Cresceu
354 vezes
Dívida interna 3,7% do PIB = 3,448 bilhões
equivalentes a US$ de 2009
52% do PIB = 832 bilhões de
US$ de 2009
Cresceu 244 vezes
População total 45 milhões 192 milhões
Cresceu 4 vezes
Crianças matriculadas 10,54% 94,49% (2008)
Fecundidade 6,2 filhos/mulher 1,8 (2010)
Expectativa de vida 46 anos 73 em 2009
Mortalidade infantil 118,1 /1000 21,6/1000 (2010)
Analfabetos adultos 51,6% 9,1% em 2008
Concluíram ensino superior 7,1 mil pessoas 800,3 mil em 2008
Bens duráveis - geladeira 1,6 milhão dentre 13,5
milhões de domicílios
53 milhões de 57,6 milhões
de domicílios em 2008
Bens duráveis - TV 621,9 mil dentre 13,5 milhões
de domicílios
54,8 milhões dentre 57,6
milhões de domicílios em
2008
Fonte: Veja.abril.com.br/multimídia/infográficos/economia-brasileira
Tabela 2. Situação das crianças de 5 a 14 anos por rendimento nominal mensal
domiciliar (2010) em salários mínimos (S.m.): 5 a 5 a 6 anos 7 a 7 a 9 anos 10 10 a 14 anos Total % %
BRASIL 5.820.354
9.132.741
17.142.041
32.095.136
100 100
Até Até 1/ 4 sm 8.498.298
26 26
Maisde ¼ a 1 sm
sm
16.373.360
51 77
Mais de 1 a 3 sm 4.848.598
15 92
Fonte: Tabela 1.5.6. Resultados Preliminares do Censo Demográfico de 2010 – IBGE
ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Resultados_do_Universo/
Resultados_preliminares_sobre_Rendimentos/tabelas_pdf/tab1_5_6.
Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas
ISSN 2238-1627, Ano III, Nº 7, agosto de 2013
Tabela 3. População total e população em aglomerados subnormais (ASN),
número de ASN (em 2010) E PIB (2009, em mil Reais), em algumas cidades
brasileiras Cidades PIB local ASN População
total local
População
em ASN
Pop em
ASN/POP
São Paulo 389.317.167 1020 11.253.503 1.280.400 11,38
Rio de Janeiro 175.739.349 763 6.320.446 1.393.314 22,04
Macaé (RJ) 7.057.282 12 206.728 36.233 17,53
Montes Claros (MG) 3.815.101 14 361.915 15.607 4,3
Fonte: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?
Referências:
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modernidade ética.São Paulo: Paz e terra, 1994
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CHAUí Marilena . Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São
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America v II, nº2, Mar-Apr 1977, pp 7 - 31.
GARCEZ & SILVEIRA GARCES, Ariel e SILVERA, José Paulo. Gestão pública
orientada para resultados no Brasil. Revista do Serviço Público Ano 53, número 4,
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HERCULANO, Selene. Em busca da boa sociedade. Niterói:Eduff, 2006.
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades – alternativas para a crise urbana
Petrópolis: Vozes, 2002 (2ª Ed.).
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Paulo, Companhia das Letras, 1995.
SAES, Décio. Classe Média e Sistema Político no Brasil. São Paulo, T.A.Queiroz
Editor, 1984
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ISSN 2238-1627, Ano III, Nº 7, agosto de 2013