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  • 7/24/2019 Desconstruir a corrupo: o papel do Legislador, prncipe e soberano. A anlise do caso no pensamento de Jean-Ja

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    UNIVERSIDADE CATLICA DEPERNAMBUCO Ano 16 n. 1 jan/jun. 2016-1

    ________________________________ GORA FILOSFICA______________________________________________

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    Desconstruir a corrupo: o papel do Legislador, prncipe e soberano.A anlise do caso no pensamento de Jean-Jacques Rousseau.

    Adriano Medeiros Eurpedes Martins*

    DOI 10.20399/P1982-999X.2016v1n1pp23-37

    Resumo: No h Estado sem os indivduos. Para Rousseau a construo do Estado requer aparticipao direta dos cidados. A participao ativa dos cidados resultar na expresso davontade geral. a vontade geral que, via pacto social, dar vida e unio ao Estado. O Estado um projeto de corpo poltico. A participao ativa dos cidados com vistas a impedir a

    corrupo e a dissoluo da sociedade remete concepo da soberania popular. Nessamodalidade de soberania, os cidados seriam capazes de construir e manter os fundamentos dasociedade civil. Rousseau, como um contratualista, pensa a sua poca e as solues polticaspara os problemas reais de seu tempo. Portanto, desse cenrio entre a teoria e a prtica, queRousseau partir para configurar a distino e a relao desse importante trip: soberano,Legislador e prncipe.Palavras-chave: 1. Jean-Jacques Rousseau; 2. Legislador; 3. Soberano; 4. Renaturao.

    Abstract: There is no state without subjects. For Rousseau state-building requires the directparticipation of citizens. The active participation of citizens will result in the expression of thegeneral will. It is the general will that via social pact, give life and unity to the state. The state is

    a political body design. The active participation of citizens in order to prevent corruption anddissolution of the company refers to the conception of popular sovereignty. In this mode ofsovereignty, citizens would be able to build and maintain the foundations of civil society.Rousseau, as a contractualist, thinks his time and political solutions to the real problems of histime. So it is this scenario between theory and practice, which Rousseau will start to set up thedistinction and the relationship of this important tripod: Sovereign, Legislator and Prince.Keywords: 1. Jean -Jacques Rousseau; 2. Legislator; 3. Sovereign; 4. Renaturation.

    Antes de adentrarmos nas especificidades da relao e distino entre o

    Legislador, o prncipe e o soberano, abordaremos uma outra relao tambm importante

    na configurao do corpo poltico. Trata-se da diferenciao entre o Estado e o governo.

    Tal distino essencial para delimitarmos o lugar do Legislador no processo de

    *Professor de Filosofia do Instituto Federal do Tringulo Mineiro (IFTM).Graduado em Filosofia pelaUniversidade Federal de Uberlndia (UFU). Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG).Ps-doutorando em Filosofia pela UFU.

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    renaturao1. Para Jean-Jacques Rousseau, cidado de Genebra, tal distino se

    configura nos seguintes termos:

    H uma diferena essencial entre esses dois corpos: o Estado existepor si mesmo e o Governo s existe pelo soberano. Desse modo, avontade dominante do prncipe s , ou deveria ser, a vontade geralou a Lei, e sua fora no seno a fora pblica nele concentrada:desde que deseje derivar de si mesmo qualquer ato absoluto eindependente, comea a afrouxar-se a ligao do todo. Enfim, seporventura tivesse o prncipe uma vontade particular mais ativa doque a do soberano e, para obedecer a essa vontade particular, seutilizasse da fora pblica de que dispe, de modo que se teriam, porassim dizer, dois soberanos, um de direito e outro de fato,imediatamente a unio social desapareceria e dissolver-se-ia o corpopoltico.2

    Essa uma passagem singular, pois nela os principais temas do presente texto aparecemnum ordenamento importante e consequente; alm de abarcar a gnese e o telos das instituies

    polticas e sociais que se vai construir.

    No h Estado sem os indivduos. Para Rousseau, a construo do Estado requer a

    participao direta dos cidados. A participao ativa dos cidados resultar na expresso da

    vontade geral. a vontade geral que, via pacto social, dar vida e unio ao Estado3. Dada essa

    maneira de construir seus argumentos, podemos deduzir que o Estado aqui tratado um projeto

    de corpo poltico. At porque essa participao ativa dos cidados com vistas a impedir a

    corrupo e a dissoluo da sociedade remete concepo da soberania popular. Nessa

    modalidade de soberania, os cidados seriam capazes de construir e manter os fundamentos da

    sociedade civil. Apesar de parecer uma utopia, defendemos que essa proposta no uma mera

    idealizao do Genebrino. Trata-se de uma proposta ou melhor, de um projeto. E como tal, ele

    poder ser de difcil implementao, mas no irrealizvel. Ademais, Rousseau, como um

    contratualista, pensa a sua poca e as solues polticas para os problemas reais de seu tempo.

    Portanto, desse cenrio entre a teoria e a prtica4, que Rousseau partir para configurar a

    distino e a relao desse importante trip: soberano, Legislador e prncipe. Comecemos,

    ento, pelo soberano.

    1Para Rousseau o homem civilizado est corrompido. Mas, tal situao, dada a perfectibilidade humana,pode ser modificada. E a sada da corrupo para uma situao oposta designada pelo autor derenaturao.2ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 399.3Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 378.

    4 Segundo Machado, o governo dos monarcas do sculo XVIII caracterizava-se exatamente por umatotal confuso da vontade e interesses particulares da pessoa real com os objetivos e o exerccio dopoder do Estado. MACHADO apud ROUSSEAU. Textos Escolhidos/Rousseau. vol. I, p. 141.

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    No quadro geral, a soberania um elemento basilar no pensamento poltico-filosfico

    de Rousseau. A soberania nunca ser determinada por outra coisa que no a vontade geral 5,

    sendo que os demais poderes no devero passar de meras delegaes dessa soberania6- a qual

    no seno a vontade do corpo do povo e tendendo sempre ao interesse geral. Caso contrrio,

    no passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura, quando muito, de um

    decreto7. H, de um lado, a soberania e, do outro, as delegaes ou decretos emanadas dela.

    Consequncia preliminar: o poder legislativo soberano; ao passo que, o poder executivo ser

    uma delegao ou um decreto.

    Ao poder executivo competir, essencialmente, organizar e dar movimento ao governo.

    Ressalvamos que o Genebrino no partidrio da concepo que divide os poderes em dois, trs

    ou quatro esferas de ao distintas e complementares. No caso especifico dessa demanda entre o

    legislativo e o executivo, Derath argumenta que a separao dos poderes no tem outra

    finalidade seno a de assegurar o equilbrio e a mtua limitao dos mesmos. No se trata, de

    modo algum, de dar alguma independncia ao executivo8. At porque, nesse Estado soberano,

    o executivo regido pelas leis. Logo, o que h um nico poder e suas vrias emanaes ou

    decretos.

    Como vimos, a expresso da soberania obtida, unicamente, atravs da vontade geral.

    Posto que apenas a totalidade do corpo poltico possa legitimar aquilo que se expressa por meio

    da vontade geral. Essa totalidade no precisar construir um consenso, basta que nenhuma das

    partes seja ignorada ou esquecida. Desse modo, ficaria assegurada a unio e o compromisso dos

    cidados com a sociedade. Por isso se faz necessria a observncia da seguinte premissa: Cada

    um de ns pe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direo suprema da vontade

    geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisvel do todo9. Essa

    passagem importante para mostrar como a vontade geral constri o corpo poltico ou o

    Estado10. E este no um Estado qualquer. Temos aqui o Estado soberano e a sua fundao

    alicerada num sistema de leis. Fundao em sentido duplo, isto , como origem e como

    fundamento. A gnese e o apoio do Estado soberano esto na expresso da vontade poltica dos

    cidados, ou seja, na vontade geral.

    5 De par sa nature, la souverainet est uniquement et essentiellement volont. DERATH. Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, p. 293. Grifo do autor.6 Segundo Derath, on sait que pour lui [Rousseau] lessence de la souverainet consiste dans lavolont gnrale. Ibid., p. 252.7ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 369.8DERATH. Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, p. 301. Traduo nossa.9ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 361.10Qu'estce qui fait que l'tat est un ? C'est l'union de ses membres. Et d'o nat l'union de ses membres

    ? De l'obligation qui les lie. ROUSSEAU. Lettres crites de la Montagne. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 806.

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    Considerando que a vontade geral a vontade poltica dos cidados, no poderamos

    admitir que o Estado soberano fosse um ente poltico totalitrio? Preliminarmente sustentamos

    que, soberano e totalitrio no so sinnimos. Consideremos, por exemplo, o que diz Talmon a

    respeito das caractersticas de um Estado totalitrio:

    Imps-se um modelo fixo, austero, universal, dos sentimentos e daconduta, com o objetivo de criar o homem de uma s pea, semcontradies, sem fora centrfuga nem desejos antissociais. Oobjetivo era criar cidados que quisessem somente a vontade geral eque, desse modo, fossem livres, em lugar de que cada homemconstitusse uma entidade em si mesmo, atormentado por paixesegostas e, portanto, escravizado.11

    Em alguma medida a caracterizao do intrprete de uma sociedade monoltica

    razovel, e ela lembra o risco de interpretarmos a vontade geral como uma fora visando impor

    uma configurao nica ao comportamento dos cidados dentro do que poderamos chamar deEstado total. Mas, antes de associarmos o pensamento do Genebrino ao que foi apontado pelo

    estudioso como sendo o projeto de uma sociedade total, preciso notar que a premissa inicial,

    que trata o Estado soberano como uma imposio, merece uma anlise mais meticulosa.

    Uma vez que a soberania indivisvel12, ela totalidade, no totalitria. Assim, para

    compreender corretamente o pensamento do Genebrino, temos de reforar a distino entre

    totalitrio e totalidade. O Estado soberano apoia-se na totalidade, pois, a soberania um

    atributo que pertence a totalidade, ao corpo da nao, sem que se tenha o direito de alien-la

    ou transmiti-la13. Por no ser totalitria, a vontade geral no ignora a vontade particular dosindivduos14 e nem poderia faz-lo. Ela se aplica aos aspectos essenciais da constituio da

    unidade do corpo poltico, mas isso no quer dizer que sua funo seja criar um Estado

    monoltico. Ao contrrio, ela encontra nos princpios mesmos que a guiam, a saber, a liberdade

    e a igualdade os limites para sua expresso.

    Desse concerto entre povo, vontade e Estado que surgiro as leis de interesse geral 15.

    Ou como afirma Bignotto, o interesse comum o nico verdadeiramente visado pela vontade

    geral16. Sendo assim, diferentemente do modelo totalitrio, tanto a liberdade como a igualdade

    11TALMON. Los Orgenes de la democracia totalitria, p. 42. Traduo nossa.12 Par la mme raison que la souverainet est inalinable, elle est indivisible. Car la volont estgnrale, ou elle ne l'est pas; elle est celle du corps du peuple ou seulement d'une partie. Dans le premiercas cette volont dclare est un acte de souverainet et fait loi. Dans le second, ce n'est qu'une volont

    particulire, ou un acte de magistrature, c'est un dcret tout au plus. ROUSSEAU. Du Contrat Social.In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 369.13DERATH. Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, p. 267. Traduo nossa.14 da natureza da vontade geral expressar o que h de comum nos interesses de todos os indivduos queformam o Estado. Por isso, ela no pode ser algo alheio vontade de cada um. Mas, tambm no querdizer que toda e qualquer dever ser traduzida em interesse comum, pois a poderamos ter um quadro deanarquia social. Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 368.

    15Em linhas gerais, la volont particuliere tend par sa nature aux prfrences, et la volont gnrale lgalit. ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 368.16BIGNOTTO. As aventuras da virtude: as idias republicanas na Frana do sculo XVIII, p. 170.

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    seriam preservadas, valorizadas e expandidas por um Estado soberano que agiria estritamente

    em conformidade com as leis civis. Alm disso, o Estado totalitrio existe em funo do abuso

    da vontade geral, tal situao reforaria a desigualdade entre os homens. J o Estado soberano,

    inversamente, existiria em funo do comprometimento dos cidados com o corpo poltico, o

    que seria fundamental para que a renaturao se tornasse uma realidade social e poltica. At

    porque no haver renaturao se no se preservar a soberania e a liberdade dos membros do

    corpo poltico.

    Por no estar vinculada a nenhuma forma de totalitarismo, a vontade geral no elimina

    nem a individualidade (vontade particular) nem suprime a liberdade, ao contrrio, servir como

    garantia para ambas. Vale destacar que da que surgir a figura do cidado. Ao agir em

    conformidade com a vontade geral, o indivduo se reconhece como membro do corpo poltico e

    torna-se cidado. Enquanto cidado visar sempre ao bem comum. Por isso que o Estado de leis

    e a cidadania devero caminhar juntos e em equilbrio. Assim, no h que se temer o abuso do

    poder soberano. Todos aqueles que formam o corpo poltico participam da autoridade soberana,

    sendo desse modo cidados. Por outro lado, todos esto tambm submetidos s leis do Estado,

    ou seja, s convenes entre os que participam do pacto. Nesse momento, o cidado torna-se

    sdito17. Dessa ambivalncia obedecer-a-si-mesmo/mandar-em-si-mesmo, preserva-se a

    liberdade e garante-se a igualdade de condies entre os membros da coletividade. Por isso,

    Derath sustenta que A igualdade torna-se, assim, a base do sistema e a verdadeira garantia

    dos direitos de cada um18. A, ao assumir o compromisso com o corpo coletivo cada um estaria

    assumindo um compromisso consigo mesmo. Logo, o Genebrino no concebe que esse poder

    soberano seja dividido ou delegado. O poder soberano expressa o compromisso do cidado com

    o todo. esse comprometimento que no poder ser transferido ou segmentado a outrem.

    Uma das condies para que esse referido interesse geral seja alcanado est no

    equilbrio entre Estado e Governo19. Por essa razo,o soberano, o Prncipe e o Governo devero

    sempre caminhar juntos. Juntos, mas, com atribuies institucionais bem claras e distintas.

    Nesse sentido que o Genebrino sustentar que, s a vontade geral pode dirigir as foras do

    Estado de acordo com a finalidade de sua instituio, que o bem comum20

    . Uma vez que oEstado, derivado do pacto social e da vontade geral, livre e soberano 21, passaremos a

    abordagem da configurao e da finalidade do executivo ou do governo em relao a esse

    Estado soberano.

    17 A l'gard des associs ils prennent collectivement le nom de Peuple , et s'appellent en particuliercitoyens comme participants l'autorit souveraine, et sujets comme soumis aux lois de l'Etat..ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 362.18DERATH. Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, p. 303. Traduo nossa.19Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 399.

    20ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 368.21Rousseau argumenta que, il importe donc pour avoir bien lnonc de la volont gnrale quil ny aitpas de socit partielle dans lEtat et que chaque Citoyen nopine que daprs lui. Ibid., p. 372.

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    Rousseau qualifica o governo nos seguintes termos: Chamo, pois, de Governo ou

    administrao suprema o exerccio legtimo do poder executivo, e deprncipeoumagistradoo

    homem ou o corpo encarregado dessa administrao22. Sob a gide do poder legislativo, o

    poder executivo desenvolver as aes cotidianas com vistas consecuo do interesse geral.

    Ou seja, o Estado sobrepe e determina o governo. Se o contrrio ocorrer, caminhar-se- para

    uma usurpao do poder, cuja consequncia seria a constituio de um Estado tirnico.

    Mais adiante trataremos de alguns aspectos relacionados tirania e a usurpao do

    governo. Por ora, passaremos a abordagens dos possveis modelos de governo. Basicamente

    temos trs modelos de governo23: democracia, aristocracia e monarquia24. Esses trs modelos

    podem, ainda, assumir configuraes mistas. Tal como, por exemplo, uma monarquia

    parlamentarista. Essa questo do modelo de governo traz consigo um outro aspecto importante:

    a natureza dos povos e a sua receptividade s leis. Da Cassirer colocar-nos diante da seguinte

    questo: qual a forma de Estado que, em virtude da sua natureza, realiza em si, da maneira

    mais perfeita, o puro domnio da lei?25. Destacamos que, desde que o interesse geral seja

    efetivamente garantido, o modelo poltico-social, qualquer que seja, refletir apenas a

    particularidade dos membros do pacto social. Em suma, num Estado de leis e com governo

    constitudo, o que se mostrar fundamental justamente a existncia de leis e o respeito s

    mesmas.

    Conexo a isso temos que, no sendo a Lei mais do que a declarao da vontade geral,

    claro que, no poder legislativo, o povo no possa ser representado, mas tal coisa pode e deve

    acontecer no poder executivo, que no passa da fora aplicada Lei26. Nesse sentido, o

    governo, o prncipe e os magistrados tm sua existncia devido a necessidade de se executar

    aquilo que prescreve a vontade geral; jamais para fazer prevalecer os interesses parciais ou a

    vontade particular desses mesmos que dirigem o governo27. Nesse sentido, quem efetivamente

    governa o soberano, isto , a vontade geral dos membros do corpo poltico. At por isso, o

    governo no tem poderes seno aqueles que lhe so dados pela lei28. Caso isso no ocorresse,

    teria-se um flagrante ato contra a liberdade e a igualdade dos cidados. Portanto, segundo

    Goldschmidt, a instituio dos governos est em conformidade com o direito, alm de ser o22Ibid., p. 396. Grifos do autor.23Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 402-4.24Esclarecemos que no caso da monarquia, esta no ser hereditria, mas eletiva. O mesmo vale para osdemais modelos. O importante assegurar que no seja criada uma classe com certos privilgios, poisisso atentaria contra a igualdade dos cidados. Ademais, ao povo competir a difcil tarefa de zelar pelointeresse geral. E mais ainda, importante se salvaguardarem para que os membros do executivo no setornem Senhores e os demais apenas meros sditos.25CASSIRER. A questo Jean-Jacques Rousseau, p. 65.26ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 430.27 The establishment of a government is a complex act really composed of two others, namely theestablishment of the law, and the execution of law. MASTERS. The Political Philosophy of Rousseau,

    p. 336.28 ROUSSEAU. Lettres crites de la Montagne. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 840.Traduo nossa.

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    melhor possvel29. preciso ter claro que esse melhor possvel remete ao interesse geral.

    Pois, numa sociedade em que o executivo predomina sobre o legislativo, esse pretenso melhor

    possvel atentaria contra a igualdade, a liberdade e as leis civis. Ou seja, deixaria de ser uma

    emanao do poder legislativo para tornar-se uma usurpao.

    Mas, e se o governo e suas demandas executivas se sobreporem s decises do

    legislativo? Apesar disto ser uma constante na histria das sociedades civilizadas, sabemos que

    tal coisa no dever acontecer num corpo poltico bem ordenado. Por essa razo Spitz alerta que

    O poder executivo (...) necessrio para dar vida e movimento aocorpo poltico. Sem ele, o povo seria, por sua vez, soberano emagistrado, e essa confuso seria muito prejudicial, pois iria acabarconfundindo os atos que emanam dele, como um poder soberano,daqueles que ele realiza como magistrado, e que apenas dizemrespeito a objetos particulares.30

    Se tal convergncia ou confuso entre o executivo e o legislativo ocorrer, teremos um

    quadro prejudicial totalidade do corpo poltico, podendo resultar, at mesmo, num cenrio de

    opresso. Posto que, poderamos ter a vontade particular do magistrado ou prncipe poder

    executivo sobrepondo-se vontade geral poder legislativo31. Naturalmente, esse um

    ambiente de grave perigo para a liberdade e a igualdade dos prprios cidados. Logo, o povo,

    apesar de ser soberano, no dever exercer todo tipo de poder no interior do Estado. Da,

    Rousseau advogar pela alienao ou transferncia do poder executivo aos magistrados ou ao

    prncipe.

    Reforamos que a soberania tem duas caractersticas principais e que explicam o fato

    de, acima dela, no pairar nada. Rousseau parte da seguinte premissa: a soberania, tal como a

    vontade, no pode ser alienada32 e, tampouco, dividida33. Tal situao tem sua razo de ser.

    Sabemos que um indivduo em pleno gozo dos seus direitos civis pode alienar uma propriedade

    ou um bem qualquer, mas nos questionamos: como transferir uma vontade? Para Rousseau, caso

    isso ocorra, incorreremos num erro fatal cidadania e ao Estado. Em termos do corpo poltico,

    cada cidado tem que ser nica e exclusivamente o responsvel pela manifestao da sua

    vontade. Ela no poder ser delegada a outrem, se assim fosse ela estaria sendo alienada e

    dividida com esse representante. Alis, Duguit refora esse importante aspecto, ao afirmar que

    A soberania (...) uma vontade, eis o ponto fundamental de toda adoutrina... No que a soberania seja apenas uma [una], mas que ela indivisvel. Isso significa que ela no pode ser dividida em vrios

    29GOLDSCHMIDT. Anthropologie et politique, p. 679. Traduo nossa.30SPITZ. La libert politique: essai de gnalogie conceptuelle, p. 410. Traduo nossa.31Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 432.32 Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 368-9. SegundoDerath, la souverainet est un droit inalienable, imprescriptible, incommunicable, qui ne peut rdider

    que dans le corps de la nation et ne saurait en aucun cas tre exerc par un individu . DERATH. Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, p. 257. Grifos do autor.33Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 369-71.

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    componentes e incorporados em corpos separados. Uma vontade ouno : ela no pode ser partida. Se a soberania for dividida, haveriafragmentos de vontade, isso obviamente algo que a mente se recusaa conceber.34

    Por isso, uma vez que no existe soberania sem vontade, fica evidente o motivo pelo

    qual ela no poder ser transmitida. Assim, a soberania requerer um comprometimento integral

    do cidado com a totalidade do corpo poltico. E esse comprometimento tem que ser,

    necessariamente, recproco. Ou seja, todos os cidados so responsveis por si e pelos demais.

    Outra consequncia disso que os indivduos, se assim procederem, tero salvaguardado - pelo

    pacto social - a igualdade e a liberdade.

    desse cenrio que parte Spitz para considerar que tal liberdade, salvaguardada pelo

    pacto social, seja um risco ao prprio cidado35. Acreditamos que o risco de usurpao da

    liberdade, dada a sociedade ser um ente dinmico

    36

    , seja inerente prpria existncia do corpopoltico. Por isso, a elaborao das bases fundantes da sociedade inclui-se a a vontade geral e

    a ao do Legislador - so essenciais para que se minimize esse risco que lhe intrnseco.

    Ainda considerando a afirmao de Duguit, a soberania o lao que efetivamente une

    os cidados totalidade do corpo poltico. Do contrrio, segundo Rousseau, nenhuma sociedade

    poderia existir livre e legitimamente; at porque, s a fora do Estado faz a liberdade de seus

    membros37. A, considerando o aspecto da fora do Estado, temos que ser desse cenrio que

    surgiro as leis civis, isto , os limites legais que os cidados precisam impor a si mesmos.

    Assim, depender de outrem, nesse ambiente, no significa abuso ou usurpao, justamente ocontrrio, a garantia de que o interesse particular no prevalecer sobre o coletivo.

    Nesse lugar, ambguo e perigoso da existncia coletiva, encontramos a figura do

    Legislador. Ele uma pea fundamental na construo e consolidao de um Estado regido por

    leis. A instituio dessa figura equivaleria ao reconhecimento, por parte dos cidados, da

    dificuldade em transformar a vontade geral em leis e em diretrizes para o Estado. Assim,

    partiremos da seguinte premissa: o cidado comum at sabe o que almeja, mas no saberia

    determinar com a mesma facilidade os meios para alcan-lo38. a que entra em cena a figura

    excepcional do Legislador. Em linhas gerais, Rousseau qualifica o Legislador e seu contexto deao nos seguintes termos:

    Aquele que ousa empreender a instituio de um povo deve sentir-secom capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana,

    34DUGUIT apud DERATH. Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, p. 293.Traduo nossa.35ceux qui sont mis par le pacte social sous la dpendance dautrui nont aucun bnfice rel . SPITZ.La libert politique: essai de gnalogie conceptuelle, p. 353.36Isto , susceptvel de ter a vontade particular sobrepondo-se vontade geral. Ver Rousseau, Du Contrat

    Social (1 verso). In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 296-7.37ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 394.38Cf. Goyard-Fabre. Politique et philosophie dans loeuvre de Jean-Jacques Rousseau, p. 118.

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    transformar cada indivduo, que por si mesmo um todo perfeito esolitrio, em parte de um todo maior, do qual de certo modo esseindivduo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituio do homempara fortific-la; substituir a existncia fsica e independente, quetodos ns recebemos da natureza, por uma existncia parcial e moral.

    Em uma palavra, preciso que destitua o homem de suas prpriasforas para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quais nopossa fazer uso sem socorro alheio. Na medida em que tais forasnaturais estiverem mortas e aniquiladas, mais as adquiridas serograndes e duradouras, e mais slida e perfeita a instituio, de modoque, se cada cidado nada for, nada poder seno graas a todos osoutros, e se a fora adquirida pelo todo for igual ou superior somadas foras naturais de todos os indivduos, poderemos ento dizer quea legislao est no mais alto grau de perfeio que possa atingir.39

    A partir dessa definio e do contexto em que dever agir o Legislador, partiremos para

    a anlise das questes que se fazem necessrias para compreender a especificidade dessa figuraexcepcional e singular no interior de um corpo poltico.

    J abordamos a estreita dependncia entre a soberania e as leis. Doravante,

    explicaremos como essa relao se constitui e qual a sua relao com outro elemento

    fundamental ao corpo poltico em vias de renaturao, a saber, o Legislador. Antes de

    qualquer coisa, preciso ter claro que as leis s viro a lume aps o pacto social. No h

    leis antes disso. Tanto que, para Rousseau foi

    Pelo pacto social demos existncia e vida ao corpo poltico. Trata-se,agora, de lhe dar, pela legislao, movimento e vontade, porque o atoprimitivo, pelo qual esse corpo se forma e se une, nada determinaainda daquilo que dever fazer para conservar-se.40

    a partir desse momento que se constituir o sistema de leis que reger a

    sociedade nas suas demandas e vicissitudes. Logo, preciso delimitar quem far as leis

    e quem as aplicar. No caso da aplicao das leis, teremos essa responsabilidade

    delegada ao poder executivo nas figuras dos magistrados e do prncipe41. J a concepo

    e a configurao das leis fazem parte daquilo que Rousseau designou por poderlegislativo. Tal temtica tem certa complexidade, pois ela no se refere estritamente ao

    aspecto da formulao de leis. Se assim fosse, bastaria que se redigisse e publicssemos

    as leis para que as mesmas se fizessem obedecidas. Sabemos que as leis so emanaes

    da vontade geral com vistas consecuo do bem comum. Mas, nessa formulao

    temos apenas a gnese e o telos desse sistema de leis. Ainda, falta-nos o quem e o

    39ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 381-2.40Ibid., p. 378.41Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 396.

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    como. Para tanto, precisamos analisar outros complementos institucionais

    necessrios manuteno da soberania popular.

    Convm esclarecer que esse Legislador no , como poderia parecer, um ser humano

    superdotado de alguma qualidade rara no gnero humano. Apesar de que, qualidades tidas

    como raras42no devem ser desprezadas, quando pensamos nas tarefas que incumbem a essa

    figura. Rousseau tem diante de si o seguinte quadro:

    Para descobrir as melhores regras de sociedade que convenham snaes, precisar-se-ia de uma inteligncia superior, que visse todas aspaixes dos homens e no participasse de nenhuma delas, que notivesse nenhuma relao com a nossa natureza e a conhecesse afundo; cuja felicidade fosse independente de ns e, contudo, quisessededicar-se a ns, que, finalmente, almejando uma glria distante,pudesse trabalhar num sculo e fru-la em outro. Seriam precisos

    deuses para dar leis aos homens.43

    Ao analisarmos essa afirmao pode parecer que se trata efetivamente de um ser

    superior ou mtico. At porque, o termo deuses aparece no final da citao.Mas no bem

    isso. Acreditamos que seja propriamente uma personagem poltico-social de exceo e com

    caractersticas humanas singulares44. Mas, ainda sim um homem.

    Destacamos que esse Legislador dever ter iniciativas e aes que condigam com as

    efetivas necessidades de um Estado republicano45, o qual fundamentalmente um Estado regido

    por leis46. Ressalvamos que, se esse ator poltico tiver alguma qualidade superior, isso no

    dever ser desprezado; contudo, h que se ter claro que esse no ser o fator determinante na sua

    escolha. A inteno e o contedo das suas iniciativas que so preponderantes para o

    aparecimento dessa personagem de exceo. Acrescente-se a isso tudo, ele dever ter uma

    conscincia dos problemas que so comuns ao corpo poltico e das solues ou ajustes que se

    faro necessrios. At por isso faz-se imprescindvel que o Legislador, visse todas as paixes

    dos homens e no participasse de nenhuma delas. E tudo isso, sem ferir a soberania em

    nenhum momento. Por isso que, o legislador, sob todos os aspectos, um homem

    extraordinrio no Estado47. Contudo, desde j, ressalvamos que extraordinrio no equivale a

    totalitrio ou margem da lei.

    Dado esse cenrio, estamos diante de uma tarefa que pressupe a natureza humana e o

    corpo poltico como sendo sujeitos a mudanas ou aperfeioamentos. Da que, no podemos

    42Isto , excelente retrica ou capacidade administrativa fora do comum.43ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 381.44Cf. Machado apud ROUSSEAU. Textos Escolhidos/Rousseau. vol. I, p. 109.45Republicano no sentido de regime de leis, mas no na forma especfica do regime republicano.46 J'appelle donc Rpublique tout Etat rgi par des lois, sous quelque forme d'administration que ce

    puisse tre: car alors seulement l'intrt public gouverne, et la chose publique est quelque chose. Tout

    gouvernement lgitime est rpublicain. ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 379-80.47Ibid., p. 382.

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    ignorar a advertncia de Launay: a essncia da poltica est no seu carter mvel e

    flutuante48. O que torna as aes desse Legislador uma arte, a qual no poder ser regulada

    pelos cnones institucionais do governo, posto que estes sejam ordinrios. Acrescente-se a isso

    a seguinte situao: o Legislador no nem soberano e nem governo. Portanto, chegamos a um

    ponto importante da caracterizao e delimitao dessa personagem e de sua relao com as

    instituies polticas do Estado. Para Rousseau, o Legislador um instituidor de povos, cuja

    resultante ser um Estado, isto , uma associao civil regida por leis49. Esse o quadro geral da

    questo. Mas, segundo Salinas Fortes, desse quadro geral derivar-se- dois cenrios provveis

    para se instituir povos, a saber,

    A interveno do Legislador pode se inserir em dois momentosdistintos da vida do povo e assumir duas formas diferentes: seja noincio da vida do povo, para institu-lo, seja perante um povo j comum governo constitudo, mas ainda no totalmente corrompido, parareformar o seu governo, detendo o processo de corrupo.50

    Assim, dada a dinmica social e a perfectibilidade51humana, o Legislador poder agir

    de maneira preventiva ou corretiva. Isto , a corrupo humana poder ser contornada ou no

    incio da formao do corpo poltico ou numa fase em que a corrupo ainda no tenha

    degenerado a maior parte do Estado52. O que implica na seguinte constatao: nem todos os

    povos so suscetveis ao preventiva ou corretiva do Legislador.

    Diante dessa tarefa, fica evidente o motivo pelo qual o Genebrino configura tal

    personagem como sendo excepcional. Para Rousseau, esse um empreendimento que implica

    em muita ousadia; posto que a meta visada pressuponha uma mudana que colocar em cena a

    figura do homem e da sua natureza. Temos justamente aqui um das formulaes em que nos

    apoiamos para defender que a renaturao uma possibilidade poltica real para, por assim

    dizer, mudar a natureza humana53. Tal mudana na natureza humana, no uma perverso ou

    corrupo da mesma. Visa-se com tal alterao encontrar meios legais e institucionais para

    fortalecer certos aspectos da constituio humana54. Tal reforo poder ser constatado na

    manuteno e ampliao da liberdade e da igualdade no interior do corpo social. Por isso que,

    segundo Machado, o Legislador (...) algum consciente desse processo necessrio efundamental, que se dispe a estimul-lo, facilit-lo e at complet-lo pelas instituies55.

    48LAUNAY. Jean-Jacques Rousseau, crivain politique, p. 253. Traduo nossa.49Cf. Rousseau. Du Contrat Social (1 verso). In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 297.50FORTES. Rousseau: da teoria prtica, p. 123.51Rousseau delimita a perfectibilidade como sendo uma singularidade especfica do gnero humano, aqual ser capaz de ajudar-nos a esclarecer o processo lento e gradual de desenvolvimento da desigualdadee da corrupo entre os homens e a possibilidade de efetivar a renaturao.52Cf. Spitz. La libert politique: essai de gnalogie conceptuelle, p.393.53Celui qui ose entreprendre d'instituer un peuple doit se sentir en tat de changer, pour ainsi dire, la

    nature humaine. ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 381.54...d'altrer la constitution de l'homme pour la renforcer. Ibid., p. 381.55MACHADO apud ROUSSEAU. Textos Escolhidos/Rousseau. vol. I, p. 110.

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    Alm do que, essa renaturao visar manter certas qualidades da natureza humana em concerto

    com as demandas poltico-sociais do Estado soberano.

    Convm reforar que o Legislador no se pe acima da vontade geral. Por isso, ele no

    de fato nem soberano e nem governo. Apesar de vinculado ao poder legislativo, o raio de

    atuao do Legislador tem certos limites importantes. Portanto, Rousseau prope a restrio do

    papel legislativo desse indivduo excepcional: aquele que redige as leis no tem e no deve ter

    nenhum direito legislativo56. Assim, vemos que no h transferncia da vontade geral dos

    cidados para essa figura excepcional. Haja vista que se preserva a autonomia dos cidados

    via vontade geral - em exercer o poder legislativo. Por conta dessa situao, Derath acrescenta

    que o poder legislativo (...) consiste em duas coisas inseparveis: fazer as leis e mant-las 57.

    Vale relembrar que a vontade no pode ser alienada, pois, trata-se de um direito

    incomunicvel58. Logo, como possvel ao Legislador fazer as leis se o mesmo no tem em

    suas mos o poder legislativo? O prprio Genebrino coloca essa problemtica nos seguintes

    termos: na obra da legislao encontramos, ao mesmo tempo, dois elementos que parecem

    incompatveis: uma empresa acima das foras humanas e, para execut-la, uma autoridade que

    nada 59. Em face dessa questo, Salinas Fortes nos adverte que no podemos considerar o

    Legislador e a sua obra desvinculadas da sociedade e do contrato social. Por esse motivo, o

    corpo poltico no preexiste (...) a ao do Legislador, guardando com ela uma anterioridade

    lgica e no-cronolgica60. Nesse aspecto a tarefa do Legislador no se desvincula das

    necessidades do povo que recebe sua orientao. Mas, tal orientao no requer que o

    Legislador tenha algum tipo de poder legislativo especial. Se o tivesse, significaria que os

    cidados teriam alienado ou dividido o poder soberano. Logo, poriam por terra a soberania do

    corpo poltico. A, sem corpo poltico no faria sentido tratarmos dos aspectos inerentes a tal

    figura excepcional. Alm do mais, o Legislador no , tambm, um membro do poder

    executivo. Posto que o executivo seja um elemento ordinrio na conduo da coisa pblica.

    O Legislador um indivduo excepcional e extraordinrio que agir se respaldando em

    sua sabedoria e prudncia. Nesse aspecto, Burgelin nos aponta que a sua sabedoria est em

    seguir os costumes e intervir com grande discernimento, conforme o caso; sem pretenderprocurar um bem absoluto imediato61. Por isso que a soberania sempre permanecer nas mos

    dos cidados e no nas do Legislador62. Da ele ser, essencialmente, um orientador ou guia da

    soberania do povo. Entretanto, como j afirmamos anteriormente, essa orientao tem limites e

    56ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 383.57DERATH. Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, p. 303. Traduo nossa.58Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 383.59ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 383.

    60FORTES. Rousseau: da teoria prtica, p. 94.61BURGELIN. La philosophie de lexistence de J.-J. Rousseau, p. 564. Traduo nossa.62Cf. Masters. The Political Philosophy of Rousseau, p. 355.

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    um deles refere-se a existncia ou no de aptido desse povo a um novo sistema de leis que seja

    afim com o interesse geral do corpo poltico.

    Enfim, as leis devem ser a expresso da vontade poltica dos cidados. Mas, um corpo

    poltico no somente vontade, tambm movimento63. O que denota uma sociedade dinmica

    diante das suas diversas instituies sociais e polticas; as leis civis devero responder a essa

    importante demanda. Posto que as leis devem balizar o agir cotidiano dos cidados e do

    governo. Dado esse aspecto central das leis alguns intrpretes colocam-na como oriunda dos

    homens, mas superior a estes. Temos, ento, uma situao inusitada e aparentemente paradoxal,

    ou seja, as leis devero estar acima dos cidados e emanar destes. Para Cassirer, a lei como tal

    no possui poder limitado, e sim absoluto; ela simplesmente ordena e exige de maneira

    incondicional64. Falamos acima em movimento e vontade, aqui Cassirer expressa

    adequadamente a lei como expresso da vontade soberana do povo. Alis, soberana e

    incondicional. por isso que Silva sustenta que a soluo estaria na edificao de uma fora

    exterior impessoal, representada pela lei, fundada na razo e nascida da combinao entre os

    indivduos colocados sob sua direo65. Essa fora exterior o prprio Estado republicano e

    regido por leis. Ao Legislador caber instituir as leis que deem conta desse movimento da

    sociedade e das provveis fontes de desvirtuamento do interesse geral66.

    Vimos que a igualdade e a liberdade so necessrias aos membros do corpo poltico,

    assim como o Legislador necessrio ao corpo poltico67. Isso implica em dizer que tal situao

    requer uma anlise da codeterminao entre o povo e o Legislador, ou dizendo de outra

    maneira, no Estado republicano, a existncia de um implica na do outro. Podemos resumir o que

    acabamos de dizer da seguinte maneira: os particulares discernem o bem que rejeitam; o

    pblico quer o bem que no discerne. Todos necessitam, igualmente de guias68. Isto , para

    que a vontade geral torne-se soberana h que se convergir os interesses particulares dissonantes

    em prol do bem comum69. E isso valido para a totalidade do Estado, ou seja, cidados,

    Legislador, prncipe, magistrados e todos os outros que se fizerem necessrios ao corpo poltico.

    Pois, o Legislador ser guiado pelo povo via vontade geral. O Legislador, por meio da

    63Par le pacte social nous avons donn l'existence et la vie au corps politique: il s'agit maintenant de luidonner le mouvement et la volont par la lgislation. ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: OeuvresCompltes-Gallimard, vol. 3, p. 378.64CASSIRER. A questo Jean-Jacques Rousseau, p. 94.65 SILVA. F. B. Os Princpios do Contrato Social e as constituies da Crsega e da Polnia. In:Notandum Libro 10, p. 32.66 Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 378. Ver Goyard-Fabre, Politique et philosophie dans luvre de Jean-Jacques Rousseau, p. 48-9.67Cf. Rousseau. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 381-4.

    68ROUSSEAU. Du Contrat Social. In: Oeuvres Compltes-Gallimard, vol. 3, p. 380.

    69seulement, quoique la volont gnrale, en sa rectitude rationnelle formelle, ne puisse errer,le peuple ne voit pas toujours le bien que, pourtant, il veut; et, quand il le voit, il ne le fait pas toujours .GOYARD-FABRE. Politique et philosophie dans loeuvre de Jean-Jacques Rousseau, p. 118.

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    instituio das leis, guiar povo e os magistrados. Os magistrados agiro no sentido de atender

    as demandas ordinrias do governo. Por isso que, todos dependem e precisam de todos.

    Por fim, diante desse cenrio, salientamos que, o Legislador no pode se igualar ou se

    sobrepor vontade geral. De acordo com Salinas Fortes, Ao Legislador caber esta difcil

    tarefa: aconservaodo corpo poltico o objeto da cincia da legislao70. Essa cincia da

    legislao uma cincia da sabedoria e da prudncia71. Isso, contudo, tem um srio problema:

    ao guiar-se pela prudncia, o Legislador no se tornaria refm da vontade popular ou tornaria o

    povo refm da sua? Tal questo refora a necessidade de compreendermos o papel fundamental

    do Legislador, a saber, garantir a consecuo do interesse geral expressando-o nas leis. Caso

    contrrio, essa figura excepcional tornar-se-ia um mero joguete da pluralidade de interesses

    privados contrastantes. Ou, um tirano.

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    70FORTES. Rousseau: da teoria prtica, p. 93. Grifo do autor.71 Prudential science. Cf. Masters. The Political Philosophy of Rousseau, p. 362. VerBurgelin, La philosophie de lexistence de J.-J. Rousseau, p. 563-5.

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    Recebido em dezembro de 2015

    Aprovado em fevereiro de 2016