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Departamento de História
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A COMPANHIA DE JESUS E OS ÍNDIOS NA CAPITANIA DO RIO DE
JANEIRO: SÉCULOS XVI XVII E XVIII
Aluna: Aline de Souza Araújo (PIBIC)
Orientadora: Eunícia Barros Barcelos Fernandes
Introdução: Este é um projeto de pesquisa, realizado pelo Departamento de História,
existente desde 2008 e que possui a previsão de ser concluído neste ano de 2014. O projeto
é financiado pelo CNPq e pela FAPERJ, tendo como membros bolsistas pesquisadoras
da Graduação em História e, em alguns de seus momentos, pesquisadores voluntários.
Objetivos: Desde seu início, o projeto possui como principal objetivo realizar um estudo
sobre as relações entre a Companhia de Jesus e os Índios no espaço da Capitania do Rio
de Janeiro. O recorte temporal se deve ao tempo no qual a Ordem esteve presente na
América portuguesa e atuante no referido espaço: dos séculos XVI ao XVIII. Para tanto,
outros objetivos da pesquisa são: realizar levantamentos documentais em arquivos do Rio
de Janeiro (Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional e IHGB) e bibliográficos (Biblioteca
da PUC-Rio) sobre a Companhia e os Índios nestes três séculos; promover pesquisa
individualizada sobre o que foi identificado pela Orientadora, Eunícia Fernandes em sua
tese de doutorado, como instrumentos de ação da Ordem (colégio, aldeamento, fazenda)
no espaço da capitania do Rio; desenvolver uma reflexão sobre a aliança entre a Igreja –
representada pela Companhia – e Coroa no processo colonizador na Capitania do Rio de
Janeiro e na América portuguesa.
Metodologia: O modo pelo qual o projeto vem se encaminhando é através,
principalmente, da pesquisa individual, que possui resultados coletivos. Como o período
de atuação da Ordem na capitania é muito extenso, abrangendo três séculos, para a
realização da pesquisa há a divisão a partir dos instrumentos de ação da Companhia de
Jesus (colégio, aldeamentos, fazendas), e, assim, cada pesquisadora é designada a realizar
levantamentos documentais e bibliográficos, resenhas, fichamentos, produção de artigos,
verbetes e cronologias.
Desde o ingresso no projeto, realizo pesquisa sobre o Colégio do Rio de Janeiro.
Desde o segundo semestre de 2013, as atividades que realizadas e em processo são as
seguintes: participação na organização do seminário A Companhia de Jesus e os Índios,
realizado pela orientadora em novembro de 2013 na PUC-Rio; fichamentos dos artigos
(a) Artes liberais e ofícios mecânicos nos colégios jesuíticos do Brasil colonial, dos
historiadores Amarilio Ferreira Jr. e Marisa Bittar e (b) O debate sobre a escravidão entre
os missionários jesuítas no Brasil, de Carlos Alberto Zeron; resenha da tese de doutorado
Conflitos entre jesuítas e colonos na América portuguesa – 1640-1700, de Joely
Aparecida Pinheiro; fichamento da dissertação de mestrado A busca da salvação entre a
escrita e o corpo. Nóbrega, Léry e os Tupinambá, de Thiago de Abreu e Lima Florêncio;
fichamento da monografia O Breve de 1639: Encontros na América e a liberdade cristã
diante do outro, de Agnes Alencar de Castro Araújo Pastor; e levantamento documental
no IHGB e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
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Conclusão: A participação no projeto tem auxiliado bastante em minha formação na
Graduação em História. É pela prática de realizar todas as atividades que são propostas
que percebo o fazer do historiador e isso na hora de, por exemplo, realizar uma prova,
texto, uma leitura ou uma apresentação oral faz toda a diferença.
Posso apontar dois grandes resultados disso em minha formação: o primeiro é um
artigo, que realizado a pedido da orientadora para a pesquisa, foi publicado no Caderno
Universitário da UFRJ em 2013; o segundo é que, graças a minha participação no projeto,
já estou pesquisando para a realização da escrita da monografia. Apesar de o projeto de
monografia ter sido realizado com o objetivo de pesquisar o debate no interior da
Companhia de Jesus representado por dois missionários (Manuel da Nóbrega e Luís da
Grã) em torno da posse da mão de obra indígena, circunscrevi mais o objeto de pesquisa.
Graças a leituras que foram indicadas pela orientadora, tenho a pretensão de pesquisar
sobre o conceito de escravidão nas cartas de Nóbrega, refletindo sobre como os jesuítas
e principalmente Nóbrega viam e tratavam a questão da escravidão indígena. Como as
leituras realizadas no ano puderam me alicerçar, identifiquei que para Nóbrega, era
necessário controlar o corpo para a realização da catequese. O trabalho, a escravidão, a
educação foram meios que os jesuítas encontraram para o controle do corpo indígena e
para as mudanças de muitos hábitos indígenas (poligamia, antropofagia, etc.), tão
essenciais para o sucesso da evangelização. Meus estudos apontam, portanto para o fao
de que era pelo controle do corpo que os missionários poderiam cumprir seus objetivos
religiosos e é sobre isto que quero tratar na monografia.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Aline de Souza. “A escrita de uma História e a construção de uma
imagem da atuação da Companhia de Jesus no Rio de Janeiro”, In: Caderno Universitário
de História, Rio de Janeiro, ano IX, n. 20, 2013.
FERREIRA JR., Amarilio; BITTAR, Marisa. “Artes liberais e ofícios mecânicos
nos colégios jesuíticos do Brasil colonial”, In: Revista Brasileira de Educação, v. 17, n.
51, set./dez. 2012, pp. 693-716.
FLORENCIO, Thiago de Abreu e Lima. A busca da salvação entre a escrita e o
corpo: Nóbrega, Léry e os Tupinambá. Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2007.
LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae. Roma, Monumenta Historica Societatis
Iesu, 4 vols., 1957-1968.
PASTOR, Agnes Alencar de Castro. O Breve de 1639: encontros na América e a
liberdade cristã diante do outro. Monografia (Graduação em História). Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2012.
PINHEIRO, Joely Aparecida Ungaretti. Conflitos entre jesuítas e colonos na
América portuguesa – 1640-1700. Tese (Doutorado em Economia). UNICAMP, 2007.
ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. “O debate sobre a escravidão entre os
missionários jesuítas no Brasil”, In: Linha de fé. A Companhia de Jesus e a escravidão
no processo de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII). São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2011.
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Anexos
Anexo (1) – fichamento
FERREIRA JR., Amarilio; BITTAR, Marisa. “Artes liberais e ofícios mecânicos nos
colégios jesuíticos do Brasil colonial”, In: Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 51,
set./dez. 2012, pp. 693-716.
Localização dos autores
Amarilio Ferreira Jr. é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).
Professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Marisa Bittar é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e
professora titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Argumento fundamental
Os autores analisam a relação entre artes liberais e ofícios mecânicos no âmbito dos
colégios, partindo da hipótese de que, pelas circunstâncias das condições de
evangelização da América portuguesa, se fez necessário que não existisse um
distanciamento entre artes liberais e artes mecânicas, e sim uma aproximação. Quer dizer,
nos colégios também existiam oficinas anexas encarregadas de promover a instrução nas
artes mecânicas.
Conteúdo do texto
Introdução
“Aqui procuramos mostrar que nas terras do Novo Mundo a missão jesuítica extrapolou
a constituição de colégios regidos pelo Ratio studiorum, porque, desde o início, o seu
complexo – composto de fazendas, colégios, residências e igrejas necessárias à
evangelização – foi obrigado a contar também com oficinas de artes mecânicas anexas
para fabricar as manufaturas essenciais que garantissem a sua existência”. (p. 694)
“Com base em pesquisa documental, a hipótese aqui adotada é a de que o complexo
jesuítico difundia a cultura latina cristã, sua principal função, mas ao mesmo tempo
ensinava ofícios e produzia mercadorias, imbricando o trabalho intelectual com trabalho
manual”. (p. 694)
As artes liberais nos colégios jesuíticos coloniais
“(...) as casas de bê-á-bá, além de não terem sido fechadas, transformaram-se
paulatinamente, durante a segunda metade do século XVI, nas celulae matres dos
primeiros colégios jesuíticos do Brasil colonial. (...) em 1570, (...) a colônia lusitana já
contava com cinco casas de bê-á-bá – Porto Seguro, Ilhéus, São Vicente, Espírito Santo
e São Paulo de Piratininga – e três colégios – Bahia, Rio de Janeiro, e Pernambuco”. (p.
698)
“(...) o ideal pedagógico era formar alunos para o pleno domínio das artes liberais
(humanidades) por meio da língua latina.” (p. 701)
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“Criados com o intuito de formar os quadros intelectuais (internos e externos) que se
empenhariam para recolocar a Igreja católica no centro da comunidade cristã mundial, os
colégios jesuíticos pautaram-se por uma educação de rígida disciplina intelectual
engendrada historicamente pelo helenismo”. (p. 702)
“Antes de cursar filosofia, estudos da Bíblia e da patrística, direito eclesiástico, direito
moral e teologia, os alunos dos colégios jesuíticos frequentavam as classes (inferiores e
superiores) de humanidades e retórica como requisito necessário para o domínio da arte
do falar em latim e nas línguas vernáculas de forma substantiva e eloquente”. (p. 702)
“Estruturada no método mnemônico de ensino e aprendizagem e na concepção de mundo
da Igreja romana, a educação jesuítica visava formar quadros capazes de dominar
plenamente o conjunto dos conhecimentos humanos elaborados pelos autores clássicos,
desde a literatura latina helenística à dogmática cristã herdada da tradição judaica”. (p.
703)
Artes mecânicas nos colégios jesuíticos coloniais
“(...) para “estar no mundo” e pôr em prática o processo evangelizador das chamados
gentios ou da reconversão dos próprios cristãos, era preciso organizar uma sólida base
material da existência; caso contrário, o projeto catequético não lograria êxito”. (p. 704)
“(...) a Companhia de Jesus, baseada nas próprias Constituições, estabeleceu como
estratégia de atuação adquirir e manter propriedades produtoras de manufaturas com o
objetivo de financiar os seus colégios espalhados pelo mundo afora”. (p. 704)
“Das propriedades jesuíticas, eram as fazendas as que mais requisitavam “artes
mecânicas”. Para manter em plena atividade a produção econômica derivada da
agropecuária (açúcar, couro e carne de gado), cuja comercialização resultava na principal
fonte de financiamento das atividades educacionais jesuíticas, as fazendas da Companhia
de Jesus se viam na contingência de manter oficinas que fabricavam as mercadorias
necessárias ao seu consumo”. (p. 705)
“(...) foram as próprias condições materiais de existência encontradas pelos padres
jesuítas que impuseram a necessidade de se criar oficinas de artes mecânicas desde os
primeiros momentos da sua atuação nas terras brasílicas”. (p. 706)
“O exame das fontes utilizadas nesta pesquisa permite observar que na mesma proporção
em que cresciam numericamente as fazendas pertencentes à Companhia de Jesus,
multiplicava a demanda por “oficiais mecânicos” em decorrência das atividades
econômicas cotidianas desenvolvidas no âmbito das suas propriedades agrárias”. (p. 706)
“(...) desde o início dos padres jesuítas não só catequizavam os chamados “bárbaros da
terra”, celebravam missas, confessavam cristãos, ensinavam humanidades latinas,
filosofia e teologia. Eles também praticavam e instruíam artes e ofícios nos colégios
mantidos pela Companhia de Jesus”. (p. 709)
“João Filipe Bettendorff (1625-1698), reitor do Colégio de São Luís do Maranhão e autor
da obra Crônica da Missão dos padres da Companhia de Jesus no Maranhão, era
arquiteto e construtor de igrejas; Alexandre de Gusmão (1629-1724), provincial do Brasil
(1684-1688) e autor da Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia, praticou a
carpintaria; Juan de Azpilcueta Navarro (...-1650), autor dos primeiros catecismo
bilíngues (português e tupi), cantava e regia coros composto por curumins; Belchior Paulo
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(1554-1619), foi professor de ler e escrever no Colégio das Artes da Universidade de
Coimbra e adornou com pinturas casas, colégios e igrejas da Companhia de Jesus no
Brasil (...); José de Anchieta (1543-1597), exerceu os ofícios de sapateiro, fabricava
alpercatas, e de enfermeiro; Salvador Pereira (1626-1700) foi missionário fazendeiro,
administrador de engenhos de açúcar e fazendas de gado; Francisco da Silva (1695-1763)
foi boticário e escreveu tratados da Farmacopeia brasileira no Colégio de Olinda;
Francisco de Pontes (1614-1675) era alfaiate de ofício (...); e Pedro Pereira (1651-1726),
que exerceu a superintendência da cozinha do Colégio do Rio de Janeiro”. (p. 710)
“Os casos aqui citados nos fornecem uma compreensão da imbricação entre artes liberais
e artes mecânicas na vida cotidiana dos colégios jesuíticos coloniais, ou seja, inacianos
que eram ao mesmo tempo professores de artes liberais (humanidades latinas, retórica,
filosofia e teologia) e operários de artes mecânicas (os mais variados ofícios praticados
no interior das fazendas-colégios da Companhia de Jesus)”. (p. 710/711)
Conclusão
“(...) os dados aqui presentes ratificam o predomínio das humanidades no conjunto das
ações pedagógicas da Companhia de Jesus no Brasil. Ao revelarmos aspectos do ensino
de artes e ofícios nesse sistema, mostramos também que eles exerceram papel
complementar e secundário àquelas. Por isso, embora seja corrente o entendimento
segundo o qual a educação nos colégios jesuíticos tenha se pautado exclusivamente pelas
artes liberais, este artigo mostrou que não se deve dissociar delas o estudo das artes
mecânicas”. (p. 713)
Conceitos utilizados
Educação, Pedagogia brasílica
Interlocutores
Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Paulo de Assunção, Serafim Leite
Fontes
As principais fontes utilizadas pelos autores são cartas, entretanto, também são utilizadas
obras do padre Serafim Leite: José de Anchieta (Org. de Serafim Leite). Cartas,
informações, fragmentos históricos e sermões (1554-1594). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1933; Manuel da Nóbrega (Org. de Serafim Leite). Cartas do Brasil e mais
escritos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1955; Serafim Leite. História da
Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Livraria Portugália/Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira: 1945; Serafim Leite. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil (1549-1760).
Lisboa: Edições Brotéria/ Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1953.
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Anexo (2) – fichamento
ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. “O debate sobre a escravidão entre os
missionários jesuítas no Brasil”, In: Linha de fé. A Companhia de Jesus e a escravidão
no processo de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII). São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2011.
Localização do autor
Carlos Zeron é formado em História pela Universidade de São Paulo (1985). Possui
mestrado em História Social pela USP (1991), doutorado em Histoire et Civilisations pela
École des Hautes Études en Sciences Sociales, França (1998) e livre-docência em História
Moderna pela Universidade de São Paulo (2010). Atualmente é professor da Universidade
de São Paulo.
Argumento fundamental
No capítulo, Zeron realiza um estudo acerca do debate que houve no século XVI no
interior da Companhia de Jesus acerca do uso de mão-de-obra escrava pelos padres
inacianos. De acordo com o autor, seu objetivo é demonstrar a posição da Ordem em
relação a esta questão. A medida que Zeron vai apresentando os argumentos de padres
que apoiavam ou não apoiavam o uso da mão de obra escrava, vai aparecendo diversos
argumentos. E, com isso, é demonstrado que não se pode analisar esta questão somente
por um viés religioso, mas também econômico, filosófico, teológico, social.
Conteúdo do texto
I. A influência de Diogo de Gouveia na definição da política colonial portuguesa
para o Brasil: de empresa privada a empresa real e missionária
“Dom João III (...) entusiasma-se com a ideia de uma ocupação duradoura das terras
brasileiras a conselho do padre Diogo de Gouveia. Numa carta datada de 29 de fevereiro
– 1° de março, endereçada ao rei, ele sustenta que uma ocupação permanente do Brasil
seria o melhor meio de defesa do território...” (pgs. 45/46)
“(...) acrescenta o padre Diogo de Gouveia, o povoamento do Brasil por colonos
portugueses seria o meio mais eficaz para realizar aquela que deveria ser a principal
motivação de semelhante empresa, a conversão dos aborígenes.” (pg. 46)
“A chegada do governador Tomé de Sousa ao Brasil, em 29 de março de 1549, é, ela
própria reveladora da orientação política imposta doravante à colônia: nos navios da frota
encontram-se a maior força armada do Brasil, numerosos colonos, funcionários que
constituem o novo sistema de governo e enfim os jesuítas, cujo envio em missão fora
aconselhado por Diogo de Gouveia.” (pg. 56)
“(...) se considerarmos (...) os interesses financeiros dos investidores particulares,
poderemos compreender até que ponto estes três atores, representados pelo missionário
jesuíta, pelo funcionário da administração régia e pelo morador/colono, vão confrontar-
se ou se aliar, de acordo com as circunstâncias.” (pg. 57)
2. O debate sobre a escravidão no Brasil: evolução das posições tomadas pelos
jesuítas até a morte de Manuel da Nóbrega
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2.1 Implantação da missão jesuíta: a evolução das posições de Manuel da Nóbrega
sobre a conversão do gentio e sobre o financiamento da missão
“Em Portugal, a escravidão não suscita verdadeiros escrúpulos de ordem moral ou
jurídica. O sentimento de superioridade em relação aos índios e aos africanos, medido
por meio das diferenças tecnológicas e inculcado, além do mais, por uma ideologia
religiosa que exalta a verdade e a superioridade da fé católica, prepara o terreno para uma
ampla aceitação do escravismo quando o recurso à mão-de-obra escrava se torna um
modo de rentabilização da empresa colonial. Por outro lado, existe a convicção
igualmente generalizada de que a escravidão é a consequência legítima das guerras de
defesa da população portuguesa e de seus aliados indígenas travadas contra nações
indígenas hostis (como nos casos relatados nas capitanias de Itamaracá, Bahia, Espírito
Santo, Paraíba e Pernambuco), em aplicação da doutrina medieval da guerra justa.” (pg.
58)
“Desde longa data, a escravidão é aceita também em Portugal (...), ela faz parte da vida
cotidiana dos portugueses.” (pg. 59)
“Desde seu primeiro ano de atividade no Brasil, Manuel da Nóbrega delimita claramente
um terreno de disputa que opõe e os colonos a propósito da sujeição do índio.” (pg. 63)
“O que Nóbrega observa desde a sua chegada é que a demanda crescente dos portugueses
por mão-de-obra escrava modifica os costumes indígenas: a consumação ritual do corpo
inimigo é substituída pela troca do prisioneiro por ferramentas, como os machados e
outros objetos forjados em metal, e sobretudo por armas (...) Tal comércio acarreta um
efeito de espiral, portanto, com a intensificação de guerras intertribais ilegítimas que já
visam a alimentar um mercado crescente de escravos.” (pg. 64)
“Como as guerras intertribais constituíam o principal elemento estruturador das
sociedades aborígenes, os portugueses participavam delas ativamente para conquistas
terras e escravos.” (p. 65)
“A denúncia feita por Manuel da Nóbrega desde 1549 fornece, aliás, a ocasião para o
primeiro conflito entre os jesuítas e os colonos (...) Em regra geral, os jesuítas serão
sempre apoiados pelo governador-geral e pelo ouvidor-geral em suas solicitações.” (pg.
67)
“De acordo com Manuel da Nóbrega (...) mas também segundo o ouvidor-geral Pero
Borges, os colonos portugueses estão longe de observar os procedimentos e os limites
legítimos de redução de outrem à escravidão, e notadamente dois dentre eles, que no
entanto se supões estejam disseminados a ponto de ser uso comum na cristandade: o
princípio jurídico (medieval) da guerra justa e a lei consuetudinária praticada entre eles
desde longa data, a qual proíbe a retenção e escravidão de outro cristão. Para Nóbrega, os
colonos portugueses, empolgados pelo lucro, já não se preocupam em distinguir entre
índios convertidos e gentios, entre aliados militares e tribos hostis à ocupação
portuguesa...” (pg. 68)
“A posição de Manuel da Nóbrega em relação ao problema da escravidão indígena (...)
aparece à primeira vista como essencialmente legalista. Ele não toma posição alguma
contra a utilização do trabalho escravo, que reconhece como legítima desde que se
respeitem os procedimentos de submissão e os modos de tratamento humano de escravo.
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Nesse sentido, o recurso ao trabalho escravo pode mesmo tornar-se o suporte
indispensável do trabalho catequético...” (pg. 69)
“O argumento desenvolvido por Manuel da Nóbrega sobre a escravidão, em seus
primeiros escritos, desdobra-se em torno de quatro eixos.” (pg. 69)
“(...) identificamos um eixo “diplomático-pedagógico”, no qual ele tenta responsabilizar
os colonos portugueses pela instabilidade reinante na colônia.” (pg. 70)
“Um segundo eixo da argumentação de Nóbrega consiste na evocação que ele faz dos
aspectos, a um tempo “teológicos” e “jurídicos”, concernentes às modalidades de redução
das populações autóctones à escravidão tais como elas são aplicadas pelos portugueses.”
(pg. 71)
“O terceiro eixo de sua argumentação leva em conta o aspecto “moral” da prática
escravagista dos colonos. A questão moral da escravidão em Nóbrega não decorre de um
questionamento desta instituição – desde Paulo e Agostinho, passando por Tomás de
Aquino, a doutrina cristã estabeleceu que o cativeiro do corpo não implica o da alma -,
mas de um julgamento extrínseco, emitido contra os maus exemplos dados pelos cristãos
portugueses, (...), e particularmente contra os prejuízos que suas expedições de caça ao
escravo indígena causam ao trabalho catequético dos missionários.” (pg. 71)
“O aspecto moral da argumentação de Nóbrega está, pois, ligado, por intermédio dos
títulos legítimos, aos parâmetros de ordem teológica e jurídica relativos à escravidão e as
vicissitudes de ordem diplomático-política...” (pg. 72)
“Nas cartas de Manuel da Nóbrega, com efeito, não são apenas as circunstâncias
históricas que definem as personagens descritas: a partir da oposição “virtude/pecados
capitais”, observa-se também a aplicação dos princípios agostinianos referentes à
predestinação.” (pg. 74)
“(...) o que distingue o missionário do oficial de justiça ou do governador autorizados pela
lei (...) é que ele associa uma ação temporal (...) a uma ação espiritual (...) A ação histórica
do missionário deve combinar necessariamente com sua ação espiritual para despertar
aquilo que no índio não passa de latência – o que indica talvez uma aplicação algo confusa
dos princípios agostinianos de predestinação.” (pg. 74)
“(...) Manuel da Nóbrega, em sua ótica missionária, não separa de maneira estanque os
problemas da alçada da ordem temporal, que podem impedir o trabalho catequético, dos
de uma esfera mais estritamente espiritual.” (pg. 78)
“Quando discute o problema da escravidão indígena, considera-o, em primeiro lugar, na
perspectiva da ideologia cristã, uma perspectiva agostiniana, na qual o indígena reduzido
à escravidão, como qualquer outra pessoa, continua sendo um homem dotado de uma
alma; o cativeiro do corpo não implica o da alma. (...) A principal diferença que ele quer
acentuar em suas denúncias, se refere, portanto, à atitude dos colonos...” (pg. 78)
“(...) Nóbrega desenvolve um quarto eixo de argumentação, que podemos denominar
“pragmático” (...) o padre pretende justificar o uso que os próprios jesuítas fazem do
trabalho escravo nos aldeamentos. Tais justificativas são de ordem econômica, mas
também de ordem civilizatória.” (pg. 82)
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2.2. Desenvolvimento da missão jesuíta: as polêmicas entre Manuel da Nóbrega e
Luís da Grã e a reviravolta do visitador Inácio de Azevedo
“Os interesses de ordem militar e econômica que a rede de aldeamentos pode representar
constituem doravante a principal razão dos conflitos que contrapões jesuítas e colonos.”
(pg. 84)
“(...) o aldeamento dos índios não é propriamente uma “invenção” dos missionários (...)
mas já era ordenado como tal pela Coroa desde o Regimento de Tomé de Sousa.” (pg.
86)
“No início da colonização do Brasil, desenvolvem-se efetivamente três tipos de
aldeamentos: os aldeamentos “privados” controlados pelos colonos, os que pertencem
diretamente à alçada da administração colonial e regidos por funcionários nomeados
capitães d’aldeia e os controlados pelos jesuítas, os únicos que subsistirão após a
escravização da população indígena “aldeada” e os diversos episódios de fuga ou de lutas
de resistência indígenas.” (pg. 86)
“(...) pretender instaurar a autonomia dos aldeamentos implica a elaboração de uma
estratégia de sobrevivência material. Como Nóbrega observa em diversas ocasiões em
sua correspondência, a esmola concedida pelo rei (...) mal dá para acudir às necessidades
essenciais dos missionários, e, ainda menos, para a manutenção das missões: o próprio
meio pelo qual a autonomia das missões deveria ser assegurada, no contexto do padroado
português, não basta para a instalação de suas estruturas elementares.” (pg. 87)
“(...) enumeram-se, em fins do século XVI, 172 missionários, uma população indígena
oscilando em torno de cinquenta mil índios, numerosos edifícios e grandes propriedades
fundiárias. Para Nóbrega e seus sucessores no posto de provincial, como para muitos de
seus colegas, a viabilidade das missões jesuíticas depende dos meios de rentabilizar as
terras, única riqueza distribuída com largueza pela Coroa.” (pg. 93)
“Os jesuítas sempre negarão o caráter estritamente econômico das atividades por eles
desenvolvidas: em sua argumentação (...) a finalidade última de suas atividades,
econômicas e políticas, é a salvação das almas.” (pg. 94)
“No princípio das discussões sobre o emprego de escravos nas missões, Nóbrega confessa
hesitar ou mesmo perfilhar os argumentos da corrente ascética, representada no Brasil
pelo padre Luís da Grã.” (pg. 97)
“(...) Nóbrega fixa a estratégia de manutenção da missão jesuítica no Brasil a partir dos
dois valores econômicos que fundam a economia colonial: a exploração da terra e o
trabalho dos escravos.” (pg. 97)
“Luís da Grã se insurge contra a ideia da utilização do trabalho escravo nos aldeamentos,
e não admite que os índios trabalhem de outra forma que não a assalariada. Por outro
lado, recusa também a criação de gado ou a renda advinda das terás. Mesmo as doações
do rei lhe parecem empanar a imagem da Companhia (...) Para ele, os missionários
deveriam viver exclusivamente das esmolas da população local.” (pg. 98)
“As posições de Luís da Grã evocam já o problema ético e moral a que se exporão os
jesuítas ao possuir escravos e grandes propriedades fundiárias.” (pg. 98)
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“(...) logo após a transmissão do poder e a partida de Nóbrega para a Bahia, o novo
provincial fecha o colégio de meninos de Piratininga e dispensa os escravos, proibindo
qualquer nova aquisição.” (pg. 99)
“Contra as opiniões algo isoladas de Luís da Grã no Brasil, as quais encerram um projeto
mais amplo de constituição de um campesinato indígena, vai impor-se finalmente a de
Nóbrega, fundada numa argumentação de caráter eminentemente pragmático, que evoca
a falta de capital disponível no Brasil para financiar a política preconizada pelo primeiro.
A opinião de Nóbrega impõe-se no Brasil apesar do longo provincialato de Luís da Grã
(1560-1570).” (pg. 99)
“O Chronicon, redigido por Juan de Polanco com base nas informações enviadas
regularmente do Brasil, expõe etapa por etapa as hesitações e discussões que têm lugar
em Roma e Lisboa no decorrer dos anos 1550, camuflando contudo os conflitos entre
Nóbrega e Grã.” (pg. 102)
“Em 1590, depois de longos anos de hesitação, Claudio Aquaviva autoriza as plantações
de cana-de-açúcar...” (pg. 108)
2.3.Anos de desequilíbrio: o crescente envolvimento dos jesuítas na política colonial
e a polêmica entre Manuel da Nóbrega e Quirício Caxa
“Os títulos de escravização, oriundos da tradição jurídica romana e retomados pela
jurisprudência medieval, são em número de quatro: a guerra justa, a comutação de uma
pena de condenação à morte, a alienação da pessoa própria, ou de sua progenitura, em
casos de necessidade e, enfim, o nascimento.” (pg. 109)
“(...) a guerra justa decorre de uma decisão pessoal do príncipe ofendido...” (pg. 109)
“(...) legitimidade à venda do filho por seu pai, sugerindo ao rei a interpretação dessa
noção como “grande necessidade” (pg. 112)
“(...) a noção de “necessidade” deve ser abolida no caso de uma pessoa com mais de vinte
anos de idade que pretende vender sua própria pessoa...” (pg. 113)
“A leitura que Quirício Caxa faz dos escritos dos diversos teólogos por ele citados
conforma-se assim largamente às exigências dos senhores de engenho no tocante às suas
necessidades de abastecimento de mão-de-obra escrava de origem indígena.” (pgs. 113-
114)
“(...) a partir de 1560-1570, passam da estratégia de simples conversão às preocupações
mais permanentes ligadas à implantação duradoura das missões, à sobrevivência material
da Ordem e à coexistência com as outras forças sociais num espaço sociojurídico pouco
regulamentado, onde sobressai precisamente a querela em torno do índio. Numerosos são
os debates internos na Ordem sobre temas como a pobreza, o trabalho assalariado, o
comércio de escravos, a legitimidade dos títulos de escravização de outrem.” (pg. 122)
“desde os anos de 1550 até o fim dos anos 1560, vê-se então multiplicar-se entre os
missionários as tomadas de posição por uma estratégia complementar à dos aldeamentos,
de submissão do índio pela força: coação ao descimento para o aldeamento e castigo físico
dentro de seu recinto.” (pg. 125)
Nóbrega e Anchieta: ideia de sujeição pelo medo (pg. 127)
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“Segundo Tomás de Aquino, existem dois tipos de medo: o medo servil, que é o temor
da punição engendrada pela cólera divina, e o medo filial, isto é, o temor inspirado pela
sujeição à autoridade divina. A falta de fé é a causa do medo servil, enquanto a fé
propriamente dita produz o medo filial. Aquele que ignora a fé pode ser levado a temer a
Deus através do medo servil. Além de Tomás de Aquino, pode-se dizer que o pensamento
de Nóbrega e Anchieta está igualmente de acordo com os ensinamentos de Agostinho.”
(pg. 127)
Para Agostinho, guerra e escravidão são consequências do pecado, são castigos divinos.
E isso é um ato de amor de Deus (pg. 127)
“Punir o culpado é, a um tempo, salvá-lo ao impedi-lo de prejudicar, prová-lo pelo
sofrimento restaurar a ordem, em suma, amar a Deus e à sua criatura, porquanto a punição
pode ter virtude catártica.” (pg. 128)
“(...) o padre Luís da Grã se aproximará progressivamente das posições dos seus colegas
no que concerne à “necessidade” da submissão do índio como condição prévia para a
consumação do trabalho de conversão.” (pg. 130)
Sujeição não quer dizer escravização (pg. 133)
“A ideia sobre a qual Manuel da Nóbrega se fixa é, doravante, segundo suas próprias
palavras, a de uma “sujeição moderada” dos índios: é assim que ele interpreta,
fundamentado em Tomás de Aquino, a passagem do “medo servil” ao “medo filial” no
contexto da América portuguesa da segunda metade do século XVI.” (pg. 134)
Conceitos utilizados
Escravidão
Interlocutores
Dauril Alden, José Eisenberg, Luiz Felipe de Alencastro, Paulo de Assunção, Serafim
Leite.
Fontes
O autor utilizou, em sua maioria, cartas jesuíticas, já publicadas ou não. Estas cartas estão
em vários arquivos do Brasil, de Roma ou Portugal ou publicadas em obras, como, por
exemplo, as organizadas por Serafim Leite, Monumenta Brasiliae.
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Anexo (3) – fichamento
PASTOR, Agnes Alencar de Castro Araújo. O Breve de 1639: encontros na América e a
liberdade cristã diante do outro. Monografia (Graduação em História). Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2012.
Localização da autora e da obra
Agnes Alencar possui Graduação em História pela PUC-Rio (2012) e está realizando o
Mestrado pela mesma universidade.
Argumento fundamental
Na obra, a autora buscou realizar uma análise sobre a liberdade indígena na ótica católica,
a partir do Breve Comissum Nobis, de 1639. Para Agnes Alencar, o Breve é fruto do
encontro (índios e não-índios) e a liberdade tratada é uma liberdade muito peculiar. Por
isso, é pelo contexto de produção do Breve que a autora o analisou: um contexto de
discussões teológicas, políticas e econômicas com relação à liberdade indígena.
Resumo de conteúdo
Introdução
Pg. 10/11: “Esta monografia é um trabalho sobre o conceito de liberdade, notadamente a
católica, que tem como hipótese a existência de articulação entre a liberdade do corpo e
a salvação da alma no discurso cristão do Breve. Suponho que religiosos, católicos
acreditassem ser necessário que o homem – no caso, o indígena – tivesse suas mãos e pés
livres para que seu coração pudesse encontrar outra liberdade, a que reside na conversão
ao catolicismo: estando o corpo livre, a alma também poderá se libertar”.
Pg. 13: “A liberdade defendida no texto cristão do Breve de 1639 deve ser vista como
contextual (...) Contextualizar este discurso em prol da liberdade nativa me parece crucial
para compreender os sentidos cristãos presentes na fala do Papa Urbano VIII.”
“(...) acredito que meu trabalho viabilize o preenchimento de certos hiatos e crie a
possibilidade de um diálogo que leve à reflexão mais profunda sobre as intencionalidades
dos discursos e da narração do outro.”
Pg. 14: “Meu trabalho baseia-se no esforço de discutir discurso e representação, de
qualificar percepções sobre a religiosidade e o colonialismo do XVII e de refletir sobre o
encontro entre culturas.”
“A cultura – tal como a liberdade, a identidade e a alteridade – não está pronta. Permitir
espaço para pensar sobre a mobilidade destes conceitos ou grupos é abrir janelas para ver
a fluidez dos pontos, seja no seu movimento ao longo de uma trajetória, seja nas
diferenças deles em relação a eles mesmos, viabilizando que vejamos não somente
brancos ou apenas pretos, mas também ser cinza.”
Pg. 15: “(...) ao pensar na historicidade da liberdade e da par alteridade/identidade
acendemos possibilidades de analisar os nossos discursos hoje sobre os ‘outros’ que
encontramos.”
Pg. 18: “Os discursos de liberdade católicos e civis são erigidos em função do contato,
são resultado do encontro e do confronto.”
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Pg. 19/20: “(...) o argumento de que a liberdade defendida para os ameríndios era uma
liberdade contextual e histórica, fruto do contato, tornou-se imensuravelmente importante
perceber o tipo de confronto existente entre jesuítas, colonos e ameríndios neste período,
sobretudo as complexas e ambíguas relações dos colonos e dos bandeirantes com os
grupos indígenas e os padres responsáveis pelas reduções religiosas.”
2 Um Breve e seus longos antecedentes
Pg. 23: “As tensões relacionadas à questão da liberdade indígena se apresentaram como
um problema continuamente em aberto desde a ocupação do Novo Mundo em função
especialmente da mão-de-obra intensificando-se, portanto, com o avanço da colonização
e o ingresso de novos personagens, como os jesuítas.”
Pg. 24: “Defendendo uma liberdade para os ameríndios cuja concepção lhes era própria,
os inacianos mantinham em suas mãos o controle e a posição privilegiada de mediação
entre portugueses e ameríndios.”
“Enquanto para os jesuítas a catequese era um fim em si mesma, para os colonos era um
meio para transformação dos nativos em súditos que não ameaçariam a ordem e se
subordinariam como mão-de-obra disponível.”
Pg. 26: “Paulistas e jesuítas tinham expectativas diferenciadas quando a questão era a da
liberdade dos ameríndios. Em cada um dos projetos, os indígenas se inseriam de forma
diversa, certamente distinguindo seus discursos de liberdade, em função da vivência de
cada um.”
“(...) os jesuítas viam os ameríndios como espaço profano que precisava ser santificado,
eles eram as pontes para essa transformação.”
Pg. 29: “Sua formulação teórica [Fredrik Barth] me permite refletir sobre a experiência
colonial, de modo que possamos compreender as fronteiras como algo que vai além dos
limites físicos e das representações gráficas, a alteridade pode também ser uma fronteira
– fronteira entre um e outro – bem como fronteira física entre onde termina o território
português e onde se inicia o território espanhol.”
Pg. 31: “A busca por mão-de-obra indígena acaba por colocar paulistas diante da
fronteira. Mas é preciso ter clareza de que não são apenas as tais fronteiras cartográficas
que gerenciam as ações daqueles homens. Devemos pluralizar as fronteiras...”
Pg. 32: “Acredito que seja muito importante perceber como os discursos presentes no
Breve falam de uma liberdade peculiar, uma argumentação exclusivamente ligada ao
contato com a alteridade ameríndia e referida por uma percepção religiosa distinta
daquela que se vive nos dias atuais.”
2.1. Especificidades do discurso: o Breve e seu contexto político e jurídico
Pg. 33: “O Breve de 1639 é em si uma inovação concernente à forma de legislar. Paolo
Prodi marca que é um ato misto – legislativo e administrativo – que foi criado em meados
do século XV(...) Este documento está inserido em um ambiente político e em um debate
sobre as questões da liberdade ou da escravidão dos ameríndios. Teóricos da política,
juristas, teólogos, em diversos campos do saber debatiam o tema nas universidades e nos
mosteiros além de publicarem tratados. O Breve é resultado de longos conflitos físicos,
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mas é também um marco dentro dos conflitos ideológicos que tais posicionamentos
promoviam.”
Pg. 33/34: “As discussões teóricas referentes a questões ameríndias como “liberdade”,
“escravidão”, “servidão”, “guerra justa”, não foram questões que surgiram em momento
anterior aos acontecimentos, ao contrário, são respostas ao encontro e aos diversos
problemas e conflitos que se desenrolam no momento posterior a conquista e a
colonização.”
Pg. 37: “Acredito que seja pertinente engajar-me em uma certa discussão de como o Breve
se insere como documento neste contexto. Compreender as inovações do Breve e as
questões que ele levanta não como algo descolado dos discursos e debates daquele
período, mas como uma bricolagem de diferentes percepções da alteridade. Até mesmo
porque, diferente do que por vezes somos levados a pensar, a posição jesuítica de defesa
da liberdade dos ameríndios nem sempre esteve ligada a qualquer tipo de benevolência
ou caridade.”
“Esta posição é uma disposição, sobretudo política, uma estratégia de ação
cristianizadora. A defesa da liberdade é vista como um meio para a transformação de
ameríndios em súditos do Rei, soldados de Cristo, fieis de Roma.”
Pg. 38: “(...) posso demonstrar que o discurso de liberdade presente no Breve papal de
1639 é fruto do encontro, e, nesse caso, expressa o sujeito indígena interagindo, como
que respondendo às ações catequéticas colonizadoras.”
Pg. 40: “Necessário sublinhar a percepção de liberdade bastante peculiar deste período
(...) cabe destacar que a percepção de liberdade destes teóricos se distancia muito de
qualquer tipo de formulação similar à liberdade individual que compreendemos hoje.”
Pg. 41: “Com Agostinho, a escravidão que Aristóteles chamou de natural (...), passou a
estar ligada ao pecado. A escravidão seria, portanto, uma punição, fruto do mal que entrou
no mundo a partir do pecado original. O ameríndio fazia parte de um território do profano,
demonizado tanto ideológica quanto concretamente – uma vez que era destino de
pecadores, hereges, bruxas, através do degredo.”
2.2. O Breve como modo católico de legislar
Pg. 46: “O Breve (...) tem força de lei, mas, diferente da legislação a que comumente
estamos acostumados, não permite uma interpretação para casos diferenciados, é válido
apenas para o motivo primeiro de sua promulgação.”
Pg. 47: “(...) o Breve tem uma forma peculiar de anunciar sua punição, não estando ligado
apenas a meios civis de punição. O pontífice tem poder sobre a vida e a morte, sobre o
terreno e o celestial, assim sendo, com a excomunhão, ele pode simplesmente decidir a
respeito da eternidade de um fiel que se torna transgressor.”
3. O Breve papal e o discurso católico de liberdade
Pg. 51: “Estar fora da Igreja significava a danação eterna, uma vez que não há salvação
fora da Igreja Católica na concepção destes homens e mulheres do século XVII. A
jurisdição papal engloba vida e morte, espaços terrenos e espirituais.”
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Pg. 52: “(...) o Breve pretende ser universal (...) o Breve busca abarcar todos os grupos
indígenas, mas não reconhece diferenças entre eles, trata-os como um grupo único.”
Pg. 53: “A validade do Breve deve ser buscada na fé católica e no reconhecimento da
autoridade papal, porém, é preciso verificar que ela se desdobra em elementos que
ultrapassam longe a própria Igreja e a questão da fé. No primeiro caso, é considerar que
o Breve era uma instrução não somente para os religiosos, mas deveria atingir as ações e
resoluções laicas. No segundo caso, é considerar que a instrução não delimitava apenas o
que as pessoas deveriam acreditar, mas também o que elas deveriam fazer, e fazer num
espaço específico, ou seja, atingia um espaço geográfico.”
Pg. 55: “A liberdade não está aqui se opondo à escravidão, mas à perdição. A liberdade é
sinônimo de salvação da alma, portanto, não elimina o trabalho e nem mesmo a relação
tutelar que os jesuítas mantinham com os ameríndios. Ao contrário, segundo a lógica
católica, o trabalho é um dos meios para cristianização do corpo, da mente e da alma.”
“A liberdade defendida aqui é específica para o caso do encontro, não abre margem para
que o ameríndio cultue suas divindades, nem mesmo permite que ele prossiga na sua
condição de alma perdida (...) A liberdade visa que ele integre-se ao corpo de Cristo, por
isso mesmo não está relacionada ao conceito moderno de liberdade individual.”
Pg. 57: “(...) as ações de apresamento e uso da mão de obra indígena nos moldes
escravistas, estão caminhando na direção oposta dos planos eclesiásticos de conversão
dos ameríndios, cristianização de seus corpos e do território por eles ocupado.”
Pg. 60: “Ser excomungado tinha um peso maior do que por vezes podemos imaginar (...),
para além de interdições práticas como o impedimento do casamento, sepultamento etc.;
era também sinônimo de uma eternidade de sofrimento.”
“Há sim, uma recusa a categoria jurídica de escravo, sobretudo, uma luta contra o
cativeiro ilegal, não mediado pela ação jesuítica. O trabalho em si é visto como elemento
cristianizador. Deste modo, uma vez tutelados pelos inacianos, devia fazer parte das
atividades diárias dos indígenas – entre outras coisas – o trabalho...”
3.1. Liberdade do corpo, salvação da alma
Pg. 62: “Na Idade Média estamos também diante de um paradoxo quando tocamos no
tema do corpo: ora ele é louvado por ter sido o meio que o salvador se encarnou, ora é
demonizado por ser também fonte de pecados diversos relacionados ao não controle do
corpo.”
Pg. 63: “A santidade e a salvação precisam (...) estar impressas no corpo.”
Pg. 64: “O aprisionamento do corpo, a violência com a qual era tratado, todos estes fatores
distanciavam os ameríndios do caminho de salvação almejado pela Igreja, sobretudo
quando destacamos que as condições do corpo eram vistas como espelho da alma.”
Pg. 65: “Restringir a ação física, controlar desejos e vontades, são alguns dos caminhos
para permitir que a alma alcance a salvação, porém, estando ainda em cativeiro
notadamente ilegal, o corpo aprisionado não permitiria que as almas dos indígenas
alcançassem o caminho mais excelente.”
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“Era necessário agir no corpo – dando-lhe liberdade – para que o reflexo na alma
permitisse ver a salvação.”
Pg. 67: “O que se advoga era que seu corpo fosse deixado em liberdade, para que sua
alma alcançasse a salvação, o que, certamente, incluía o trabalho, também como parte da
cristianização. É justamente a isso que os colonos estão se opondo, à mediação dos
inacianos.”
“Ao advogar a liberdade do corpo, o Breve não falava de liberdade individual, ou
possibilidade de escolha, ou qualquer outro tipo de liberdade de consciência. A liberdade
era a possibilidade dos colonos não limitarem a atuação dos religiosos, pois estes
possuíam um fim claro: a salvação.”
“Para os inacianos a salvação é um processo que movimenta corpo e alma,
obrigatoriamente devendo os dois serem santificados para que a cristianização e a
conquista sejam plenas.”
Pg. 69: “Não uma liberdade absoluta, pois ela não conceberia, por exemplo, a nudez
indígena. Seria uma liberdade que restringiria a atuação dos colonos, definindo aos
religiosos a oportunidade de sua missão.”
Pg. 70: “Devemos considerar, portanto, que a liberdade do corpo não pode ser mal
utilizada, pois se assim for, o próprio corpo se transforma em território profano e a
santificação se perde. No encontro entre jesuítas e ameríndios, cabe aos religiosos manter
as mãos e as pernas nativas livres, para que as mãos postas viabilizem a oração e a
genuflexão indique o respeito e a devoção diante da imagem sagrada.”
Conceitos utilizados
Escravidão, liberdade
Interlocutores
Eliane Cristina Deckmann Fleck, Eunícia Fernandes, John Monteiro, Manuela Carneiro
da Cunha, Michel de Certeau, Paolo Prodi, Ronaldo Vainfas, Thiago de Abreu e Lima
Florêncio.
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Anexo (4) – resenha
Resenha
PINHEIRO, Joely Aparecida Ungaretti. Conflitos entre jesuítas e colonos na América
portuguesa (1640-1700). Tese (Doutorado em Economia). São Paulo, Campinas:
Unicamp, 2007.
A obra resenhada é a tese de doutorado da autora. Nela, seu principal objetivo foi
realizar um estudo acerca dos conflitos entre a Companhia de Jesus e os colonos, após a
promulgação, pelo papa Urbano VIII, da Bula Comissum Nobis (1639), em algumas
regiões da América portuguesa (São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão). Esta Bula papal
chegou a América quase um ano após sua promulgação e ameaçava de excomunhão todo
aquele que mantivesse um índio como cativo. De acordo com Joely Pinheiro, ser
excomungado neste período era ser colocado à margem da sociedade. A condição de
cristão católico também era garantia de uma existência social.
O recorte espaço-temporal se deve, segundo a autora, ao modo como a economia
colonial foi gestada nessas regiões. As Capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e
Maranhão eram, comparadas àquelas que possuíam grande produção de cana de açúcar
(como Pernambuco, Bahia e outras), “pobres” e, então, a mão-de-obra indígena era
essencial – por ser mais barata que a africana – para os colonos. Quando a Bula chega em
1640 à América portuguesa, os jesuítas irão divulgar o que diz o documento e é, portanto,
esta uma das grandes razões para os conflitos. Só para ter uma ideia, por conta disso, os
inacianos serão expulsos de São Paulo por treze anos, terão o Colégio do Rio de Janeiro
invadido e serão expulsos do Maranhão.
A obra é dividida em três capítulos: Antecedentes do combate; Os bons soldados e
cenário do bom combate; e Batalhas da fé e pela fé. Para realizar o estudo a autora se
utilizou de fontes manuscritas e impressas. Em sua maioria são cartas, leis, consultas do
Conselho Ultramarino, requerimentos, decretos, alvarás, que estão em arquivos do Brasil
e de Portugal.
No capítulo, Antecedentes do combate, a autora apresenta o contexto histórico da
expansão marítima portuguesa. Nele, se pode perceber os objetivos que fizeram com que
Portugal saísse em busca de novos territórios no ultramar: objetivos religiosos e
econômicos. Assim como em suas palavras, havia uma “interdependência entre Fé e
Império”. Além disso, também apresenta historicamente a fundação da ordem que
acompanhou o primeiro Governador-Geral da América portuguesa: a Companhia de Jesus
e seus métodos missionários. Faz um panorama sobre a importância da utilização da mão-
de-obra indígena nas regiões do Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão para os colonos.
Quer dizer, o modo de trabalho mais barato que a mão-de-obra africana e que estava à
disposição dos colonos destas capitanias.
Os bons soldados e cenário do bom combate é um capítulo que analisa os conflitos
nas três regiões estudadas. Por isso, é dividido em três partes: A Capitania de São Paulo,
A Capitania do Maranhão e A Capitania do Rio de Janeiro.
Segundo a autora, São Paulo era uma capitania que se isolou no comércio
ultramarino no século XVI, mas que sobreviveu graças a utilização do trabalho indígena,
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que obtinha através de idas ao sertão. Os conflitos entre a Companhia de Jesus e os
colonos têm início nesta capitania no momento em que é colocada a questão sobre quem
poderia ser cativado ou não. Isto porque, para a autora, a ideia que está presente ao longo
de toda a tese é que os jesuítas defendiam a liberdade indígena.
Com a chegada do Breve papal à América portuguesa, na Capitania de São Paulo
os inacianos começaram a divulgar o conteúdo do Breve e, como consequência, foram
expulsos em 1640, tiveram suas propriedades confiscadas e a administração dos
aldeamentos indígenas foi transferida para o poder público. Somente retornaram para a
capitania treze anos depois, quando a Câmara Municipal expediu um documento que
autorizava o retorno dos padres, em 1653.
Assim como na Capitania de São Paulo, o argumento que os colonos utilizavam na
Capitania do Maranhão para a utilização da mão-de-obra indígena era o da pobreza da
região. Entretanto, ao contrário de São Paulo, para o Maranhão e Grão-Pará, existia um
Regimento e uma provisão que afirmava a Companhia de Jesus como a ordem mais
competente para cuidar da administração das aldeias e de controlar as entradas ao sertão.
Tudo isso irá causar conflitos com os colonos e, da mesma forma, os jesuítas também
serão expulsos.
A Capitania do Rio de Janeiro, em questões econômicas, se distinguia um pouco
das outras duas capitanias. Sua economia estava ligada a função de porto comercial, o
que fazia com que estivesse ligada as principais rotas comerciais da colônia. Porém, ainda
no século XVII, possuía uma economia periférica, estando à margem da economia
açucareira colonial. Uma questão interessante é observar o que Joely Pinheiro apresenta
que, ao contrário de São Paulo e do Maranhão, no Rio de Janeiro os jesuítas não serão
expulsos. A razão para isso é a aproximação que o governador da capitania deste período
– Salvador Correia de Sá e Benevides – tinha com os padres. Os colonos irão invadir o
Colégio, após a leitura do Breve pelos inacianos, e pedirão a expulsão dos padres. Mas,
com a intervenção do governador, foi feito um acordo com os jesuítas para que estes
renunciassem a intenção de concretizar os termos do Breve. Concordaram em não tocar
nos índios que já estivessem prestando serviços a colonos (em casa, no campo ou nos
engenhos) e, além disso, comprometeram-se em fazer voltar a seus donos todos os índios
escravos que houvessem fugido de seus senhores e que estivessem nos aldeamentos.
No terceiro e último capítulo da obra, Batalhas da fé e pela fé, é uma parte da tese
na qual a autora apresenta, de maneira sintética, as semelhanças e diferenças entre os
conflitos entre jesuítas e colonos em São Paulo, Rio de Janeiro e Maranhão. De acordo
com sua análise, as semelhanças giram em torno das causas para os conflitos que seria a
questão da mão-de-obra indígena e a justificativa feita pelos colonos de que estas eram
regiões “pobres” e que, portanto, necessitavam desse tipo de força de trabalho. Já as
diferenças são com relação ao modo como os jesuítas, ao se aproximarem das autoridades
coloniais, conseguiram levar adiante seu projeto catequético. O exemplo para isso é o
caso do Rio de Janeiro, que diferentemente das outras duas regiões os padres jesuítas não
foram expulsos pelo fato de que mantinham relações amigáveis com o governador da
capitania.
Conflitos entre jesuítas e colonos na América portuguesa (1640-1700) é uma obra
de fundamental importância para o entendimento da inserção dos jesuítas na sociedade
colonial do século XVII. O diversos conflitos ocorridos entre Companhia de Jesus e
colonos demonstram como, por exemplo, para que fosse realizado o trabalho missionário
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na Colônia era necessário que os inacianos estivessem “em acordo” com as forças
políticas dominantes na Colônia. Quer dizer, apesar de a Ordem dever obediência
unicamente ao papa, estar em acordo com o governador, com as câmaras municipais e
com a própria Coroa, por exemplo, era o que garantia o bom andamento da missão. De
tudo isso, dá para perceber que não é possível trabalhar o aspecto missionário da Ordem
sem levar em consideração as questões políticas, econômicas e sociais que o envolvem.
Apesar de ser uma obra bem escrita, é necessário relativizar algumas informações
contidas nela. Em muitos momentos, Joely Pinheiro trata a Companhia de Jesus como a
Ordem garantidora da liberdade indígena. Ou seja, que os jesuítas defendiam a não-
escravização dos indígenas. Segundo suas palavras, “Os padres da Companhia de Jesus
eram contra o cativeiro indígena, e advogavam a sua total liberdade. Como missionários
tencionavam converter as almas dos selvagens à fé católica, através do trabalho, da
conversão e da catequese.”1 De acordo com Zeron2, é preciso levar em consideração o
lugar de onde esses padres estão falando, as ideias filosóficas e teológicas nas quais estão
baseados. Isto porque muitos padres possuiam escravos (índios e africanos) porque desde
Paulo, Agostinho e Tomás de Aquino que afirmavam que a escravidão do coro não
implica a da alma. E, além disso, o cativeiro também poderia ser visto como meio de
conversão, uma conversão que aconteceria através do trabalho.
Sendo assim, não é correto afirmara que os jesuítas defendiam a total liberdade dos
indígenas. Quando aparece uma figura que a defende – como a de Vieira, que é a que a
autora analisa -, é necessário levar em consideração o lugar de onde Vieira fala e
questionar: liberdade para quem (quais grupos indígenas)? Isto porque, os grupos
cativados em guerras justas promovidas por autoridades do governo colonial estão sendo
escravizados de forma legal.
Além disso, a autora trata de muitas questões só pelo viés econômico. Claro que
não se pode esquecer que esta é uma tese de doutorado em Economia, mas fechar os olhos
para muitos aspectos que constituíam a sociedade colonial do século XVII acaba por
reduzir o entendimento desta mesma sociedade. Tratando das questões dos aldeamentos,
Joely Pinheiro diz que “Os aldeamentos indígenas foram implantados na América
portuguesa como forma de garantir suprimento de mão-de-obra aos núcleos
colonizadores, e de povoamento, bem como, para garantir a segurança e defesa do
território.”3 Sua informação não está errada, mas está faltando um esforço de diferenciar
sobre quais aldeamentos a autora está tratando. Existiam os aldeamentos jesuíticos, mas
também os aldeamentos controlados pelos colonos e aqueles que estavam a cargo da
administração colonial.
Então, afirmar que os aldeamentos indígenas “foram implantados como maneira de
garantir suprimento de mão-de-obra aos núcleos colonizadores”, pode confundir os
distintos projetos contidos nas diferentes formas de aldeamentos. Tratando, por exemplo,
dos aldeamentos jesuíticos, a questão econômica e de defesa do território não é a
principal. Isso é uma consequência. A principal é a catequética, a evangelizadora e, na
medida que os padres constituem estes espaços de catequização, também estão garantindo
uma região colonial, também estão atuando como defensores do território e garantindo
1 Joely Pinheiro, pg. 213. 2 Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron. Linha de fé. A Companhia de Jesus e a escravidão no processo
de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII). 3 Joely Pinheiro, p. 197.
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uma mão-de-obra para a colônia. Mas, neste caso, é essencial levar em consideração
primeiramente os aspectos religiosos.
Da mesma forma, a autora trata a colônia como mera fornecedora de produtos para
a metrópole. Isso a historiografia já demonstrou que é um equívoco. Claro que a colônia
não deixava de produzir produtos para a metrópole, mas também existia um mercado
interno que não pode ser ignorado. E, por muitas vezes este é um aspecto que fica confuso
na tese.
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Anexo (5) - fichamento
FLORENCIO, Thiago de Abreu e Lima. A busca da salvação entre a escrita e o corpo:
Nóbrega, Léry e os Tupinambá. Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2007.
Localização do autor e da obra
Possui Graduação em História pela PUC-Rio (2003) e Mestrado em História (2007) e
Doutorado em Literatura, cultura e contemporaneidade (2014) pela mesma instituição.
A obra é a dissertação de mestrado do autor.
Argumento fundamental
A partir das obras Cartas do Brasil (1549-1560) do jesuíta Manuel da Nóbrega e Histoire
d’um Voyage fait en la terre du Brésil (1578) do calvinista Jean de Léry, o objetivo da
dissertação é realizar uma análise da representação do Tupinambá em ambas as obras. A
principal hipótese de Florêncio é a de que houve uma representação ambígua do corpo
Tupinambá em ambos os autores, por conta do contexto de fragmentação religiosa na qual
estes autores estavam inseridos. As narrativas exemplares da salvação descritas por estes
religiosos foram construídas a partir da relação entre escrita e o corpo indígena.
Resumo de conteúdo
A salvação entre a escrita e o corpo
2.1. A salvação e o outro
Pg. 20: “A tensão explicitada pelos autores na construção do lugar do Tupinambá dentro
do universo da salvação espelha a crise epistemológica de um mundo que passa por
grandes transformações. Os dois autores analisados expressam fortemente, em suas
narrativas, problemas epistemológicos e teológicos advindos da conjugação de dois
grandes fenômenos que marcaram o período renascentista: as Reformas religiosas e os
descobrimentos marítimos”.
Pg. 22: “(...) é preciso situar a experiência do Novo Mundo nesse contexto de fermentação
escatológica intensificado pela fragmentação religiosa. A descoberta da América e de
uma humanidade desconhecida foi interpretada por muitos dentro de um plano teológico."
Pg. 24: “(...) ao se referir aos Tupinambá como gentio, deve-se compreender que Nóbrega
associava os ameríndios aos povos idólatras e pagãos, nomeados pela Bíblia e existentes
ainda no tempo anterior à vinda de Cristo. A conversão do gentio se refere ao ideal de
uma “missão divina não cumprida” que deveria reunir todos os povos no Corpo místico
de Jesus Cristo. Nesse sentido, pode-se construir a ideia de que a salvação da própria
cristandade – e, consequentemente, de Nóbrega – dependia diretamente da conversão do
gentio. É, portanto, no ato de conversão do Tupinambá que estão depositadas todas as
expectativas de salvação do jesuíta. (...) por serem gentios, só lhes restava serem vistos
como “papel em branco em que se pode escrever à vontade”.
“Se, por um lado, Nóbrega inclui o Tupinambá em seu universo da salvação, o mesmo
não pode ser dito de Jean de Léry. Enquanto calvinista, Léry é herdeiro da doutrina da
predestinação: por não conhecer as sagradas escrituras, o Tupinambá estaria condenado
ao esquecimento divino. Enquanto os jesuítas expandiam o Reino de Deus da Índia ao
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Novo Mundo, os calvinistas pareciam mais preocupados em criar um refúgio protestante
do que converter a humanidade.”
Pg. 25: “(...) ao contrário do jesuíta, para quem a ênfase da salvação está colocada na
conversão dos nativos, o calvinista percebe o continente americano como a “Nova
Revelação”. A salvação protestante não estaria na expansão do Reino de Deus e, sim, na
fundação de um refúgio religioso em que a comunidade religiosa se distancia daquilo que
seria, segundo eles, o avanço do Anti-Cristo.”
“A partir da experiência do Novo Mundo, tornou-se intenso o debate teológico sobre a
inserção dos ameríndios na genealogia transcendental da Bíblia.”
“De fato, procura-se demonstrar que a representação do ameríndio, feita por Nóbrega e
Léry, se insere no desejo desses homens em afirmarem a salvação de seu grupo diante de
uma Europa fragmentada pela crise religiosa. (...) O outro atende ao desejo de redenção
do mesmo.”
Pg. 26: “O principal objetivo dessa dissertação é, portanto, acompanhar a representação
ambivalente do Tupinambá no universo de expectativas de salvação do jesuíta Manuel da
Nóbrega e do calvinista Jean de Léry. Entre o “papel branco” e o “índio bestial”, entre a
exaltação que anuncia o mito do “bom selvagem” e o “maldito filho de Cam”, o
Tupinambá, como visto por Nóbrega e Léry, é ambíguo.”
2.2 O jogo entre a escrita e o corpo
Pg. 27: “O propósito de analisar o discurso da salvação a partir da relação entre a escrita
religiosa e o corpo tupinambá, se insere na percepção do lugar privilegiado que ocupa a
escrita na dimensão salvacionista de Nóbrega e Léry.”
“Se por um lado (...), a escrita é o principal instrumento de consolidação das expectativas
salvíficas de Nóbrega e Léry, por outro, é no corpo que o Tupinambá manifesta,
primordialmente, sua relação com o sagrado.”
Pg. 28: “(...) relação entre o corpo e o sagrado ocupavam posição central no período das
reformas religiosas.”
Pg. 29: “Segundo Calvino, Deus é radicalmente transcendente, não podendo ser
representado em forma alguma.”
Pg. 30: Na Igreja Católica: “Os gestos corporais, as curas, as penitências públicas, a
confissão, a forte presença de imagens e relíquias, a aparição dos santos e apóstolos – são
práticas recorrentes entre os jesuítas e demonstram a relação intensa que estabeleciam a
cultura dos sentidos.” – Deus se manifesta materialmente.
Pg. 31: “(...) pela percepção de Nóbrega, escrever sobre o corpo ameríndio é agir
diretamente sobre ele, transformando-o na superfície edificada pelos sinais da salvação.
Salvação que, no entender de Nóbrega, se aplica tanto ao gentio quanto ao próprio
missionário.”
Pg. 32: “Espaço que oscila entre a salvação e a danação, entre a exaltação e a detração, o
corpo tupinambá torna-se objeto de um jogo. Dizemos jogo, pois se cria uma relação de
trocas intensas – entre a escrita, jesuítica e calvinista, e o corpo ameríndio.”
“O jogo percebido se configura numa triangulação entre a escrita, o corpo e a salvação.”
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3. O exilado e o missionário: o corpo e a salvação nas reformas religiosas
3.1. Léry: o exilado e os cortes
Corte semiológico: o corpo e a ausência de Deus
Pg. 34: “O ato de reconhecer o papa, não mais como sucessor de Cristo, e sim como o seu
possível opositor, intensificou o clima já predominante dos medos apocalípticos. Pela
lógica salvacionista de Lutero, se o Anticrito reinava em Roma, a história humana estaria
possivelmente se aproximando de seu fim.”
Pg. 35: “Na visão protestante, o culto das relíquias (...) representariam o ato herege de
reduzir a essência espiritual de Deus à dimensão terrena e imperfeita da corporalidade
Pg. 36: “Os católicos estabeleciam uma relação de continuidade entre a dimensão sagrada
e o mundo material e simbólico dos homens.” (Exemplo da Eucaristia).
Corte oceânico: as provações do corpo e a nostalgia das origens
Pg. 39: “O calvinista procura os sinais de sua eleição separando-se desse mundo putrefato
dos católicos e se isolando em um território próprio. Esse é o sentido do refúgio religioso:
delimitar um espaço comunitário próprio, imune à corrupção externa e,
consequentemente, mais próximo da pureza divina.”
Pg. 40: “Ao longo de seu livro [Léry], as descrições que exaltam o Tupinambá são quase
sempre seguidas de um movimento inverso e complementar: a condenação do católico.”
Pg. 41: “(...) é necessário perceber que a representação que Léry faz do Novo Mundo e
do Tupinambá se insere num movimento de corte especial e temporal, no qual a memória
da pureza original é construída em resposta ao violento contexto das guerras de religião.”
Pg. 44: “O Brasil é construído, pela memória do pastor calvinista, como o inverso de uma
Europa ameaçada pelas guerras religiosas.”
Pg. 46: “Através do corte da volta, Léry funda a memória nostálgica do Novo Mundo.
Sua experiência com os Tupinambá se constitui como memória de uma pureza original...”
3.2. Pragmatismo jesuítico: o missionário e a continuidade
Pg. 47: “Enquanto a narrativa de Léry se apresenta, tendo em vista o duplo corte que a
caracteriza, como memória de uma pureza perdida (...), a de Nóbrega procura
continuamente restituir a presença de Deus em um mundo marcado por Sua ausência. O
nome de Jesus repetido pela boca do Tupinambá, graças à pregação de Nóbrega, marca
os sinais da Palavra de Deus no corpo ameríndio.”
Pg. 48: “Sua salvação depende do encontro do cristão com o não-cristão...”
“(...) o missionário religa os povos em um único tempo: o tempo da salvação, expresso
pela união de todos no Corpo místico de Jesus Cristo.”
A nau e o corpo missionário: agentes intermediários
Pg. 49: “(...) posição intermediária do missionário: entre dois mundos, é ele quem
interliga a diversidade dos elementos – sagrado profano, humano e divino, cristão e não
cristão. Como a nau no oceano à procura da terra que deverá unir-se aos domínios da
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Coroa portuguesa, Nóbrega busca alcançar o gentio para incorporá-lo ao Corpo místico
da Igreja.”
Pg. 50: “(...) um objetivo pragmático: transformar o mundo pelos sinais de Cristo.”
Santos e relíquias: os sentidos do corpo
Pg. 52: “(...) Exercícios Espirituais uma experiência singular que procura aliar a vontade
humana de ação no mundo com a vontade de Deus.”
Pg. 53: “Os cinco sentidos atuam em conjunto na procura da vontade divina.”
Pg. 54: “A imitação de Cristo, pela aplicação dos sentidos do corpo, é uma atitude que
busca ter o corpo voltado para o Senhor (...) Inácio de Loyola procura, pelos sentidos do
corpo, chegar à Graça divina através de seus vestígios.”
“Os sinais mais evidentes da Graça de Cristo em terras brasileiras são as pegadas de São
Tomé. Apóstolo da época de Cristo, diz-se que esteve em terras brasileiras antes de ir
para as Índias. Os vestígios funcionam como relíquias, sinais concretos da Graça divina.
O culto das relíquias funda-se na crença de que o caráter sagrado do corpo santificado
pode ser transferido para o devoto.”
Pg. 56: “Os sinais de São Tomé, assinalam, por fim, a proximidade entre as esferas do
espiritual e do carnal, do sagrado e do profano.”
4. Nudez: os dois corpos do Tupinambá
4.1. “Papel branco” ou “boca infernal”? Nóbrega e a conversão
Cena inaugural da conversão: os “maus cristãos” e a alegoria do papel branco
Pg. 59: “Como conciliar a visão da nudez proibida, que denota o pecado da carne, com os
gestos de devoção dos Tupinambá? O nu é dessemelhante, pois foge da ordem
estabelecida pela moral cristã.”
5. A Escrita e a salvação
Pg. 90: “Por meio da escrita aproxima-se o corpo tupinambá (pecador e dessemelhante)
das palavras da semelhança presentes na Bíblia sagrada.”
Pg. 99: “É preciso considerar que a religião tupinambá, além de ser comparada à idolatria
católica, se insere nesse movimento de polarização entre a escrita e o corpo.”
6. Considerações finais: “índio bestial” ou “bom selvagem”?
Pg. 105: “Em síntese, esta dissertação analisou as diferentes formas pelas quais Nóbrega
e Léry situaram o Tupinambá em seus respectivos universos da salvação. A hipótese
central do trabalho pressupõe que a salvação, tanto do jesuíta quanto do calvinista,
constitui-se a partir do Tupinambá, e que se estabeleceu uma polarização entre a escrita
dos autores e o corpo ameríndio.”
Conceitos utilizados
Salvação, danação
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Interlocutores
Eduardo Viveiros de Castro, Eunícia Fernandes, Fernando Torres Lodoño, François
Hartog, Laura de Mello e Souza, Luís Felipe Baêta Neves, Michel de Certeau, Ronaldo
Vainfas.
Fontes
Cartas do padre Manuel da Nóbrega (na obra Cartas do Brasil e mais escritos, organizada
por Serafim Leite e Histoire d’um Voyage fait en la terre du Brésil, Jean de Léry
(publicada em 1992).