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1 Sorte e Oportunidade: um estudo do igualitarismo de fortuna 1 Marcos Paulo de Lucca Silveira Lucas Cardoso Petroni Francesca Cricelli Departamento de Ciência Política, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (USP/SP) 2 É comum encontrarmos na literatura recente sobre teoria política a afirmação de que todas as teorias normativas relevantes assumem como premissa o valor da igualdade. O conceito de igualdade, enquanto ideal regulativo, seria reconhecido entre teorias divergentes, mesmo por aquelas que, a primeira vista, sejam refratárias às demandas políticas por mais igualdade social. Desse modo, mesmo uma teoria da justiça na qual todos os indivíduos usufruiriam apenas de um conjunto básico de direitos, capazes de protegê-los da intervenção coletiva, possuiria em algum grau um fundamento igualitário na medida em que somos todos igualmente possuidores desses mesmos direitos. Um modo de formularmos essa concepção seria afirmar que as bases morais de qualquer teoria normativa contém em seu fundamento uma proposição do tipo “todos os indivíduos possuem direito de igual reivindicação a Φ3 , na qual Φ pode ser preenchida com direitos individuais, bem-estar, igual consideração, autorrealização, pertencimento comunal, etc. Dificilmente, continuaria o argumento, encontraríamos uma resposta de caráter radicalmente exclusivista à pergunta de como devemos distribuir os benefícios e encargos sociais. A conclusão é que poderíamos supor que o debate teórico na disciplina se constituiria meramente nos modos mais apropriados de aplicarmos essa igualdade. Contudo, pagamos um preço alto ao colocarmos a questão dessa maneira. Deixando de analisar adequadamente o conceito de igualdade, corremos o risco de 1 Working-paper preparado para apresentação no 8 Encontro ABCP (Gramado, de 01 a 04 de Agosto de 2012). Não citar sem a autorização dos autores. 2 O presente trabalho contou com o apoio CAPES/PROEX. 3 Formulações como essa podem ser encontradas, por exemplo, em Nagel [1977] 2002 pp. 64-65; e 2 O presente trabalho contou com o apoio CAPES/PROEX. 3 Formulações como essa podem ser encontradas, por exemplo, em Nagel [1977] 2002 pp. 64-65; e Sen 1996 p. 395.

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Sorte e Oportunidade: um estudo do igualitarismo de fortuna1

Marcos Paulo de Lucca Silveira

Lucas Cardoso Petroni

Francesca Cricelli

Departamento de Ciência Política,

Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (USP/SP)2

É comum encontrarmos na literatura recente sobre teoria política a afirmação

de que todas as teorias normativas relevantes assumem como premissa o valor da

igualdade. O conceito de igualdade, enquanto ideal regulativo, seria reconhecido entre

teorias divergentes, mesmo por aquelas que, a primeira vista, sejam refratárias às

demandas políticas por mais igualdade social. Desse modo, mesmo uma teoria da

justiça na qual todos os indivíduos usufruiriam apenas de um conjunto básico de

direitos, capazes de protegê-los da intervenção coletiva, possuiria em algum grau um

fundamento igualitário na medida em que somos todos igualmente possuidores desses

mesmos direitos. Um modo de formularmos essa concepção seria afirmar que as bases

morais de qualquer teoria normativa contém em seu fundamento uma proposição do

tipo “todos os indivíduos possuem direito de igual reivindicação a Φ”3, na qual Φ

pode ser preenchida com direitos individuais, bem-estar, igual consideração,

autorrealização, pertencimento comunal, etc. Dificilmente, continuaria o argumento,

encontraríamos uma resposta de caráter radicalmente exclusivista à pergunta de como

devemos distribuir os benefícios e encargos sociais. A conclusão é que poderíamos

supor que o debate teórico na disciplina se constituiria meramente nos modos mais

apropriados de aplicarmos essa igualdade.

Contudo, pagamos um preço alto ao colocarmos a questão dessa maneira.

Deixando de analisar adequadamente o conceito de igualdade, corremos o risco de                                                                                                                          1 Working-paper preparado para apresentação no 8 Encontro ABCP (Gramado, de 01 a 04 de Agosto de 2012). Não citar sem a autorização dos autores. 2 O presente trabalho contou com o apoio CAPES/PROEX. 3 Formulações como essa podem ser encontradas, por exemplo, em Nagel [1977] 2002 pp. 64-65; e

2 O presente trabalho contou com o apoio CAPES/PROEX. 3 Formulações como essa podem ser encontradas, por exemplo, em Nagel [1977] 2002 pp. 64-65; e Sen 1996 p. 395.

  2  

esvaziá-lo como uma categoria normativa útil. Se por um lado, como afirmou o

pensamento conservador nos últimos séculos, afirmar a igualdade substantiva de

todos pode resultar em um princípio moral absurdo, porque irrealizável ou indesejável

na medida em que não levamos em conta as diferenças pessoais e circunstâncias

sociais às quais tal princípio deveria se submeter, por outro, tornar a igualdade uma

mera constatação formal de que em alguma medida somos iguais não passa de uma

platitude teórica. Dificilmente teorias da justiça que não forneçam uma métrica

definida de distribuição e que não concebam os meios efetivos de realizá-la,

valorizam a igualdade. Como afirmou certa vez Bernard Williams: “quando a

afirmação da igualdade deixa de reivindicar mais do que lhe é permitida, rapidamente

ela atinge um ponto no qual reivindica menos do que é interessante” (Williams, 1999,

pp. 110-111).

Este trabalho se propõe a explorar uma discussão recente no debate igualitário

acerca dos usos conceituais apropriados e das avaliações práticas do conceito de

igualdade. Nosso objetivo último é demonstrar como uma discussão sistemática a

respeito de um problema conceitual (em torno das questões sobre responsabilidade

individual) pode ajudar a esclarecer problemas enfrentados pelo pensamento

igualitário, isto é, teorias que assumem o ideal de igualdade como princípio

normativo fundamental. Para isso, mostraremos como o papel da responsabilidade

individual na formulação de princípios distributivos foi debatido na teoria política a

partir da discussão, retrospectivamente intitulada, de igualitarismo de fortuna 4 .

Gostaríamos de chamar à atenção não apenas para as diferentes conceituais

encontradas nas teorias de Dworkin, Roemer, Cohen e Arneson, como também para a

relevância teórica do problema em si, i. e., a relação normativa entre justiça

distributiva e responsabilidade individual. Pretendemos mostrar como qualquer

discussão relevante sobre justiça distributiva hoje, invariavelmente precisará enfrentar

a questão - mesmo que rejeitando as proposições dessa modalidade de igualitarismo5.

Inicialmente (1), procuraremos reconstruir em linhas gerais a origem

conceitual do debate a partir das consequências teóricas trazidas pela obra de John

Rawls, dando destaque pela forma como Uma Teoria da Justiça deixa em aberto                                                                                                                          4 “Luck Egalitarianism”. A denominação surgiu explicitamente em Anderson 1999 p. 289, como uma caracterização contrária às teses desse conjunto heterogêneo de teorias. Voltaremos à questão na conclusão da nossa apresentação. Seguimos a tradução encontrada em Vita 2011 pp. 584-585. 5 Notemos que a partir do momento que definimos uma métrica para uma distribuição justa, já estamos enfrentando – conscientemente ou não – questões em torno da responsabilidade individual.

  3  

aspectos importantes do papel da responsabilidade individual. De muitas maneiras, a

influente reinterpretação dos princípios liberal-igualitários defendida por Ronald

Dworkin estabeleceram os marcos iniciais da discussão sobre igualitarismo e sorte,

especialmente por enfrentar a critica conservadora de que o igualitarismo ignora a

responsabilidade moral dos agentes. A seguir (2), apresentaremos três alternativas

críticas à teoria de Dworkin, formuladas respectivamente nos textos de Richard

Arneson, Gerald Cohen e John Roemer. Em nossa opinião, esses autores

apresentaram as melhores formulações do igualitarismo de fortuna a partir das quais

podemos avaliar a contribuição do debate para o igualitarismo. Por fim (3),

concluiremos com alguns apontamentos provisórios sobre o estatuto do debate para o

pensamento igualitário. Mesmo que rejeitemos a coerência ou a relevância prática da

discussão acerca do igualitarismo de fortuna, seu aspecto constitutivo – o papel da

responsabilidade individual em uma teoria distributiva - é um problema normativo

que deve ser levado a sério por qualquer teoria política que se debruce sobre questões

distributivas.

Alguns esclarecimentos iniciais são fundamentais para o decorrer da nossa

apresentação. Em primeiro lugar, mesmo reconhecendo que o conceito de igualdade

seja altamente disputado em seu significado apropriado e que, em última instância,

toda teoria minimamente plausível precise incorporar esse valor, dificilmente

poderíamos afirmar que a maior parte das teorias políticas contemporâneas

fundamenta suas bases normativas em um ideal igualitário. Concedendo que toda

teoria aceite a igualdade como valor (o que não deixa de ser uma suposição) nem por

isso a maior parte delas seria igualitária. Ou seja, do modo como estamos pensando o

igualitarismo, apenas teorias que apresentem um esquema distributivo de recursos e

oportunidades sociais fundada em um ideal de igualdade moral pode ser denominada

estritamente como parte das teorias igualitárias. Um número considerável de teorias

políticas contemporâneas rejeitam, ou simplesmente não se posicionam sobre, a

igualdade socioeconômica como objetivo primeiro da moralidade política e, com isso,

recusam a formulação de princípios distributivos. Henry Frankfurt, por exemplo,

reconheceu essa distinção contra o igualitarismo ao afirmar que, em si mesmo, a ideia

de distribuição socioeconômica carece de relevância moral e que “exagerar o

significado moral da igualdade econômica é danoso [...] porque alienante” (Frankfurt,

1987, p.23) em relação a valores sociais mais importantes. Do ponto de vista da nossa

definição, não consideramos como (estritamente) igualitárias teorias que

  4  

fundamentem seus princípios em valores como liberdade individual, senso de

comunidade ou pertencimento histórico, satisfação de preferências não-agregadas,

que assumam a primazia absoluta de outras formas de igualdade que não a igualdade

socioeconômica, como o reconhecimento de diferenças de gênero, identidade étnica,

ou que, simplesmente, rejeitem a possibilidade de um Estado legítimo6.

Uma teoria igualitária, assim, será toda teoria na qual (i) a igualdade de status

moral de todos os indivíduos relevantes, e (ii) que exige a efetivação dessa igualdade

na forma de critérios de distribuição de recursos e oportunidades socialmente valiosas

(como posições sociais, renda, riqueza e poder político nas sociedades industriais).

Não colocaremos diretamente em questão por que o direito à distribuição de riqueza

deve existir em primeiro lugar, ou ainda qual a natureza histórica desses direitos.

Todos os autores abordados neste trabalho concordam com a importância de uma

distribuição igual de oportunidades sociais e/ou recursos econômicos escassos. Os

igualitários de fortuna discordam apenas sobre qual é a melhor maneira, ou a maneira

mais justa, de concebermos essa distribuição.

Além disso, devemos apresentar uma segunda distinção analítica importante7.

Por um lado, um tipo de questão que podemos formular é “o que é igualdade?” Por

meio dessa pergunta queremos não apenas contrastar o pensamento igualitário – como

vimos – com outras formas de teoria política, mas também entender a natureza dessas

reivindicações. Assim, podemos questionar se, por exemplo, reivindicamos a

diminuição da desigualdade de renda e riqueza porque ela diminui a distância entre os

mais ricos e os mais pobres, ou diferentemente, porque priorizamos a melhoria

daqueles em piores posições piores posições da pobreza. O que é realmente objetável

do ponto de vista do igualitarismo: uma sociedade com uma grande desigualdade

relativa entre ricos e pobres, ou uma sociedade com os piores índices de pobreza

absoluta? 8 Ainda que extremamente abstrato esse tipo de debate traz questões

                                                                                                                         6 Isso não significa, obviamente, que teorias igualitárias não precisem abordar esses problemas. Porém, teorias igualitárias (em sentido (re)distributivo) pensam tais problemas a partir de princípios distributivos gerais. 7 Ver Clayton & Williams 2002 pp. 1-2. As duas perguntas apareceram de modo explícito, respectivamente, nos trabalhos de Derek Parfit (1994) e Amartya Sen (1989). 8 Um exemplo mais radical de dilema igualitário é explorado por Parfit (2002). Dada as distribuições (i) todos com 100, (ii) metade com 100 e outra metade com 200, e (iii) todos com 130, qual padrão distributivo deveria ser escolhido? Se tanto (ii) como (iii) rejeitam (i) sobre solo igualitário, a diferença entre elas reflete duas interpretações distintas, e potencialmente conflitantes, do ideal igualitário.

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normativas importantes, como por exemplo, se é justo, assumindo a igualdade como a

menor diferença possível entre ricos e pobres, obrigar a diminuição da renda dos

primeiros mesmo que isso não aumente significativamente a renda dos segundos9.

Concentramos-nos, contudo, em um segundo tipo de debate dentro das teorias

igualitárias: a questão da “igualdade do quê?”. Nessa discussão o importante é saber

qual a métrica mais adequada para satisfazermos nosso ideal de igualdade. Os

distribuenda mais aceitos são: igualdade de recursos (objetivos), igualdade de bem-

estar (subjetivo) ou a igualdade de “capacidades” (mistura entre elementos objetivos e

subjetivos)10. Entretanto, mais do que mostrar como cada autor especifica o meio

mais adequado para a distribuição de riqueza, queremos mostrar como essa escolha é

determinada pelo papel que a responsabilidade individual assume em cada uma das

formulações do igualitarismo de fortuna. Mostraremos como o problema da

responsabilidade individual encontra uma resposta tanto para teorias de igualdade de

recursos, como para teorias de igualdade de oportunidade (seja como igual

oportunidade ao bem-estar ou como igual acesso a vantagem).

1. Escolha e circunstância

Segundo a proposição central do igualitarismo de fortuna, apenas

desigualdades derivadas de escolhas individuais voluntárias são legitimas em uma

sociedade justa. Qualquer forma de desigualdade causada, exclusivamente, por

circunstâncias sociais ou biológicas além do nosso controle é injusta.

Essa caracterização inicial do igualitarismo de fortuna é claramente

insuficiente. Por que desigualdades “voluntárias” são legítimas? Como podemos

distinguir adequadamente escolhas pessoais de circunstâncias sociais e biológicas?

Antes de entrarmos nas proposições específicas, gostaríamos de avaliar a estrutura

geral do igualitarismo de fortuna. Faremos isso por meio da distinção normativa entre

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Aquele no qual existe menos diferença relativa, ou a distribuição na qual aqueles situados nas piores condições se encontram em condições menos adversas? 9 Ver, por exemplo, Temkin (2002) e o problema do “nivelamento de cima para baixo” (levelling down objection). 10 O debate ganha em complexidade quando a questão da “oportunidade” é introduzida em torna da determinação do distribuendum. Tal questão pode ser observada ao longo da parte (2) da presente apresentação.

  6  

“escolha” e “circunstância” 11. Em primeiro lugar, mostraremos como a teoria da

igualdade de recursos desenvolvida por Ronald Dworkin (Dworkin, 2000) estabeleceu

o marco inaugural do igualitarismo de fortuna, reinterpretando criticamente a teoria

rawlsiana da justiça social – abrindo uma frente de discussão conceitual importante no

interior do igualitarismo, como veremos na próxima seção. Na próxima parte do

trabalho, procuraremos oferecer uma interpretação mais acurada sobre o papel da

responsabilidade individual no igualitarismo. Até lá, contudo, aceitaremos um quadro

simplificado para nossos fins expositivos: o igualitarismo de fortuna seria uma

tentativa de corrigir uma “ambiguidade” latente na teoria da justiça social proposta

por Rawls, da qual Dworkin, primeiramente, Cohen, Roemer e Arneson, a seguir,

tentaram corrigir.

Naquilo que podemos denominar “argumento informal” a favor de sua teoria

da justiça12, Rawls estabeleceu uma distinção conceitual importante entre uma

concepção formal de igualdade e uma concepção substantiva ou “equitativa” desse

mesmo valor. Essa distinção foi extremamente influente para o pensamento igualitário

de modo geral, mas particularmente importante para os fortunistas, pois é a partir dela

que procuram formular suas respectivas teorias da distribuição. Rawls assume que um

sistema socioeconômico justo fornece não apenas a possibilidade (formal) de

qualquer indivíduo vir a ocupar posicionamentos sociais ou políticos valiosos, mas

também os meios efetivos para isso, isto é, os capacitam com chances equitativas de

obtê-los. Sua ideia central é a de que “as posições sociais não estejam acessíveis

apenas no sentido formal, mas que todos tenham oportunidades equitativas de

alcançá-las” (Rawls, [1971] 2008, p.87). De maneira resumida, a interpretação

rawlsiana dessa igualdade efetiva seria a eliminação, ou atenuação, das circunstâncias

estruturais – legais, sociais e biológicas – que afetam negativamente o resultado da

igualdade de oportunidade 13. A estrutura geral do argumento é simples, mas suas

implicações, poderosas normativamente: se rejeitamos a arbitrariedade de

                                                                                                                         11 A distinção entre “escolha” e “circunstância” encontra-se em Scheffler (2003) pp. 5-6, e nos parece adequada para sintetizar as várias formas de distinguir características arbitrárias (ou não) dos agentes morais. Utilizaremo-na aqui como categoria geral no lugar dos sinônimos conceituais às vezes empregados no debate – como “sorte bruta” (brute luck) e “sorte optada” (option luck) ou “escolha” (choice) e “acaso” (chance) – a não ser que explicitemos o contrário. 12 Sobre a diferença entre argumentos “formais” e “informais” e o papel da “loteria natural” em Uma Teoria da Justiça, ver Vita 2007 pp. 238-250. 13 Ver Rawls op. cit., §12 esp. pp. 87 – 90.

  7  

discriminações formais institucionalizadas, como raça, gênero ou estrato social,

porque tais características são arbitrárias do ponto de vista da igualdade, então

deveríamos combater, também, todas as outras formas de injustiças

institucionalizadas, como classe social, e a valorização de talentos naturais,

igualmente arbitrárias do ponto de vista da agência individual. Mesmo sendo

impossíveis de serem eliminadas, elas poderiam ser remediadas por meio da

redistribuição da riqueza social: “[n]ão há mais motivo para a permitir que a

distribuição de renda e riqueza seja determinada pela distribuição dos dotes naturais

do que pelo acaso social e histórico” (Rawls, idem, p.89). Cometeríamos uma

contradição moral aceitando a arbitrariedade de circunstâncias sociais, por exemplo,

mas não as biológicas – sobretudo quando consideramos as interdependências entre

esses dos fatores no desenvolvimento individual.

Mais do que reconstruir com acuidade a teoria rawlsiana, o que nos interessa

aqui é a interpretação da justiça social como uma forma de mitigar contingências

sociais e biológicas. A ideia de que apenas desigualdades provenientes de escolhas

voluntárias são legítimas fará parte de todas as formulações do igualitarismo de

fortuna.

Na verdade, o papel da motivação pessoal na teoria rawlsiana é muito mais

complexo do que nosso esquema nos permite discutir. Mesmo reconhecendo a

capacidade de nos responsabilizarmos por nossas escolhas como uma faculdade moral

importante14, Rawls reconhece explicitamente que “mesmo a disposição de fazer

esforço, de tentar e, assim, ser merecedor, no sentido comum do termo, depende de

circunstâncias sociais e familiares afortunadas” (Rawls, idem, p.89). Restaria

determinarmos em que medida os agentes seriam responsáveis por suas escolhas

individuais, e se os princípios de distribuição deveriam, por exemplo, responsabilizar

escolhas pessoais improdutivas ou onerosas para a sociedade, uma vez que elas

poderiam estar além da agência voluntária.

Fazendo justiça ou não às ideias de Rawls, a maneira usual pela qual os

autores fortunistas são interpretados é por meio de sua tentativa de correção da

“ambiguidade” presente no argumento da arbitrariedade moral - i. e., Rawls teria

formulado um argumento igualitário forte, mas ao mesmo tempo teria sido incapaz de

entender as verdadeiras implicações da sua concepção ao não traçar uma fronteira                                                                                                                          14 Por exemplo, quando discute o princípio de responsabilidade ligado a desobediência civil (Rawls, op. cit., p. 483-484).

  8  

clara entre escolha pessoal e circunstâncias sociais e biológicas. Seu critério maximin

de justiça social, o célebre princípio de diferença, por exemplo, não levaria a sério a

escolha dos indivíduos nas piores posições – uma vez que esse posicionamento social

poderia ser preenchido tanto por causa de circunstâncias adversas, como pelas

escolhas deliberadas – nem tão pouco as circunstâncias individuais que poderiam

obrigar diferentes indivíduos a extraírem benefícios desiguais de uma mesma

quantidade de recursos 15.

O modo como Dworkin interpreta os objetivos de sua teoria da justiça,

denominada “igualdade de recursos”, ilustra isso que estamos chamando de

“assimilação” e “correção” da concepção rawlsiana. Para Dworkin

uma comunidade política deve ter por objetivo erradicar ou mitigar as diferenças entre as pessoas naquilo que diz respeito aos seus recursos pessoais – deve ter por objetivo, por exemplo, melhorar a posição daqueles que possuem desvantagens naturais ou são incapazes de obter uma renda satisfatória – mas não deve ter por objetivo mitigar ou compensar diferenças de personalidade – por exemplo, diferenças rastreáveis até o fato de que alguns gostos pessoais ou ambições são caros e outros baratos (Dworkin, 2000, p.286)

Dworkin torna o papel da responsabilidade individual um elemento explícito nas suas

proposições. Isto se mostra necessário na medida em que apenas uma teoria

“sensível” às ambições pessoais pode ao mesmo tempo mitigar circunstâncias

estruturais desfavoráveis sem com isso deixar de penalizar comportamentos

irresponsáveis do ponto de vista distributivo, como gostos pessoais caros. Pensemos

na diferença entre dois indivíduos com as mesmas habilidades e motivações

profissionais. Um deles, por acaso, é mulher e é obrigado a escolher entre investir em

sua carreira ou constituir uma família. Já o segundo, sendo homem, pode realizar as

duas coisas ao mesmo tempo, visto que não precisa se afastar da carreira durante um

período, para ter filhos. A profissional mulher, segundo a lógica do igualitarismo de

                                                                                                                         15 Para um exemplo dessa leitura entre as teorias de Rawls e Dworkin, ver Kymlicka 2006 pp. 97 - 98. Não temos como fazer justiça aqui à discussão. Todavia podemos resumir a crítica “fortunista” do princípio de diferença – que exige a maximização dos benefícios sociais para os indivíduos nas piores posições sociais – como a alegação de que o princípio não seria “sensível” às especificidades individuais dos agentes ao tratá-los como partes de uma categoria social mais abrangente, seja por razões instrumentais - diferentes indivíduos converteriam os mesmos recursos de maneira diferenciada - seja por razões morais - ao não levar em consideração o empenho de cada um. Para uma crítica a essa interpretação - e favorável a formulação original de Rawls -, ver Scheffler 2003.

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fortuna, não deveria ser punida em suas perspectivas pessoais por fatores contingentes

que escapam aos seus esforços. Portanto, esquemas redistributivos que transfiram

recursos dos vencimentos do segundo funcionário para o primeiro, como o no caso do

pagamento de seguro maternidade, é legítimo. Por outro lado, caso uma mulher queira

ter, talvez por preferências emocionais ou religiosos, muitos filhos, é de sua própria

responsabilidade adequar os recursos socialmente disponíveis a sua criação não

onerando com isso o sistema de segurança social – ou, pelo menos, ela não poderia

(legitimamente) exigir mais recursos do que as mulheres que escolheram ter menos

filhos, e consequentemente mais recursos per capita. O exemplo pode ser simples,

mas sua estrutura se aplicaria de modo geral a outros mecanismos de redistribuição

como oportunidades educacionais, saúde, discriminação de estilos de vida, etc.

Dissemos anteriormente que uma das vantagens do igualitarismo de fortuna

seria a capacidade de absorver críticas conservadoras dirigidas ao pensamento

igualitário. Gerald Cohen afirma, por exemplo, que “Dworkin prestou um grande

serviço ao incorporar ao igualitarismo a ideia mais poderosa do arsenal anti-

igualitário produzido pela direita: as ideias de escolha e responsabilidade” (Cohen,

1989, p.933). Encontramos essas críticas formuladas principalmente por meio de duas

ideias centrais16. Em primeiro lugar, esquemas igualitários de distribuição seriam

economicamente “ineficientes” da perspectiva da alocação de recursos por um

sistema de livre mercado, ao não levarem em consideração as preferências e

expectativas individuais no momento da distribuição dos custos e benefícios da

cooperação. Isto deixaria uma sociedade igualitária aquém das capacidades produtivas

plenas, já que não conseguiria mensurar as disposições individuais para gastar ou as

motivações para trabalhar. Nesse aspecto a teoria de Dworkin não difere em

substancia da concepção proposta por Rawls, visto que ambas aceitam um sistema de

mercado (ideal) como necessário aos fins igualitários. Um sistema de preços e

incentivos adequados ao funcionamento de uma sociedade altamente diferenciada

seria uma condição necessária do igualitarismo17. A própria ideia de um princípio

distributivo que beneficie prioritariamente os membros nas piores posições

socioeconômicas é a condição de legitimidade oferecida por Rawls aos efeitos

                                                                                                                         16 Para uma discussão sobre os dois usos do mercado na teoria liberal, ver Barry (1983). 17 Ver Dworkin 1985 pp. 194 – 193 e a discussão a seguir do mercado de seguros dworkiniano. Vale notar que Rawls enfatiza a natureza indeterminada da propriedade ou dos meios de produção, podendo ser privados ou coletivos.

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negativos da eficácia alocativa. O “grande serviço” a que se refere Cohen na

passagem citada deve ser interpretado tendo em vista um segundo tipo de crítica

direcionada ao igualitarismo: a questão da responsabilidade moral dos agentes por

suas escolhas. Assim, não seria justo que dois indivíduos frente às mesmas

oportunidades obtivessem o mesmo quinhão de riqueza caso tenham contribuído de

modo desigual para sua produção. No exemplo da gravidez que utilizamos acima, ao

compensar a funcionária mulher, estaríamos de algum modo “privilegiando” o

comportamento (“antiprodutivo”) de criar os filhos em detrimento dos esforços

produtivos dos funcionários que escolheram não fazer isso, e, portanto, merecem

vencimentos diferenciados. De fato, Dworkin define seu “individualismo ético” por

meio de dois princípios morais, sendo o segundo deles um “princípio de

responsabilidade especial”, no qual “tanto quanto podemos afirmar que as escolhas

sobre o estilo de vida adotado por uma pessoa possa ser escolhido - dentro das

escolhas permitidas pelos recursos e pela cultura - ela é responsável por fazer suas

próprias escolhas”18. De certo modo, mais uma vez temos uma sobreposição completa

entre Rawls e Dworkin, na medida em que ambas as teorias valorizam a busca

individual por suas próprias concepções de boa vida. A diferença estaria em sua

interpretação negativa, isenta de qualquer ambiguidade para o último: existe um

elemento irredutível da personalidade individual que deve ser responsabilizado pelas

escolhas pessoais, em especial pelo uso da riqueza socialmente produzida. Devemos

penalizar agentes que optem por estilos de vida custosos para a sociedade, segundo

Dworkin, contando que possamos rastrear essa escolha para além das arbitrariedades

morais as quais eles se encontram sujeitos. Nascer mulher, ou melhor, ser a

responsável por gestar os filhos de uma relação, não faz parte do leque de preferências

individuais, mesmo que o desejo de ter filhos, ou não, faça.

O modo como Dworkin formula sua concepção de justiça social é construindo

um leilão hipotético no qual o custo das preferências individuais é mensurado pelo

valor que o restante dos agentes está disposto a oferecer pelo mesmo recurso. Em

primeiro lugar, assume-se que uma distribuição de recursos é igualitária na medida

em que ninguém escolheria um pacote de recursos diferente do seu, mesmo que em

quantidade e qualidade diversas de bens19. A seguir, que todos teriam as mesmas

                                                                                                                         18 Ver Dworkin 2000, p. 6. O primeiro princípio denomina-se “igual importância” e prescreve que toda vida é igualmente importante do ponto de vista moral.

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oportunidades iniciais, seja em termos de informação, oportunidade ou recursos, para

fazer suas ofertas e que teríamos tempo o suficiente para reajustar o valor dos

recursos à medida que os laces fossem sendo dados. O resultado pretendido por

Dworkin seria uma distribuição final do leilão equivalente a uma função social das

preferências de todos os participantes: “a justa medida dos recursos sociais devotados

a vida de uma pessoa é fixada perguntando o quão importante, de fato, esses recursos

são para todos os outros” (Dworkin, 2000, p.70). A consequência normativamente

relevante desse modelo é oferecer um critério para avaliarmos instituições ou padrões

distributivos reais, contrastando-as com os resultados de um processo idealizado de

alocação entre indivíduos (efetivamente empossados) com os mesmos recursos e

oportunidades.

Como compatibilizar esse recurso extremamente simplificado com as

instituições distributivas de uma sociedade real? Claramente o modelo seria inócuo

para uma sociedade de economia dinâmica, na qual a distribuição da riqueza é

determinada pelos padrões temporais de investimento e poupança. Caso Dworkin

postulasse a mera igualdade inicial de recursos, qualquer configuração distributiva

possível na série temporal posterior aos lances originais seriam tão adequada quanto

qualquer outra, mesmo que a riqueza fosse concentrada, digamos, apenas nas mãos

daqueles agentes que foram mais felizes na aplicação de seu quinhão inicial. Tal

proposição ficaria aquém da nossa definição inicial de igualitarismo, e dificilmente

justificaria, por exemplo, a razão pela qual, em primeiro lugar, os começaram em um

patamar igualitário20. O que ele está propondo, ao contrário, é que, de fato, no tempo

os agentes usariam diferentemente seus quinhões, e que isso produziria desigualdades

na posse de recursos e isso traria consequências cruciais nos projetos de vida de cada

um. Mas, como vimos, nem toda forma de desigualdade é justa pelos critérios da

arbitrariedade moral assumidos por Dworkin. Manter a igualdade inicial no longo

prazo significa compensar assimetrias geradas exclusivamente por fatores

contingentes do ponto de vista da responsabilidade individual. Dworkin distingue

aquelas diferenças geradas pela “sorte bruta” (brute luck) das geradas pela “sorte

assumida” (option luck), o que nos remete a distinção entre escolhas voluntárias e

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           19 Trata-se daquilo que Dworkin denomina “teste da inveja”. Cf. Dworkin op. cit., p. 67. 20 Na verdade, do ponto de vista da narrativa dworkiniana, a chegada dos “náufragos” à ilha seria um momento no tempo tão arbitrário quanto qualquer outro, servindo apenas para ilustrar a inexistência de titularidades naturais de recursos. Cf. Dworkin op. cit., pp. 87 -89.

  12  

circunstâncias arbitrárias que viemos discutindo. Se os meus recursos hoje, ou dos

meus descentes amanha, são insuficientes quando comparados com outros pacotes de

recursos socialmente disponíveis - falhariam no “teste da inveja” – devemos pergunta

qual a fonte dessa assimetria. Caso sejam resultado das minhas escolhas voluntárias –

“preferências caras”, por exemplo – devo arcar com as consequências, caso sejam

fruto de situações involuntárias – desvantagens biológicas, por exemplo – possuo o

direito de reivindicar a correção da desigualdade. Talvez o exemplo mais importante

de correção discutida pelo modelo da igualdade de recursos seja a diferença gerada

por capacidades produtivas distintas. Nem todos possuem os mesmos talentos e

habilidades, e nem todos os talentos e habilidades são igualmente apreciados por

todas as sociedades. Entretanto, dificilmente poderíamos entender esses talentos como

algo plenamente “escolhido” no sentido que a distinção escolha-circunstância exige,

e, portanto, também exigiriam redistribuições futuras. Como podemos mitigar os

efeitos das desvantagens e das diferenças de capacidade produtiva em uma sociedade

justa?

A melhor forma de mitigarmos os efeitos da sorte (bruta) seria por meio da

instauração de um mercado hipotético de seguros, financiado com recursos comuns,

responsável por distribuir os prêmios e calcular os riscos dos efeitos da má sorte. Em

última análise, ele poderia converter sorte bruta em escolha pessoal, já que

poderíamos ou não comprar uma cobertura com nosso quinhão inicial de recursos.

Para sermos mais precisos, uma série de condições precisam ser satisfeitas antes para

que esse processo de “conversão” de sorte bruta em sorte optada seja possível: (i) uma

igualdade inicial de recursos no momento da contratação, (ii) a igual probabilidade de

riscos para os efeitos mais comuns de má sorte involuntária21, (iii) informação

suficiente para a tomada das decisões. Isso poderia ser executado por meio dos

esquemas redistributivos de um Estado de Bem-Estar social, pensado como um

sistema de seguro social compulsivo, e financiado pela taxação da riqueza individual.

Lembremos que os próprios vencimentos individuais no modelo em questão são

compostos tanto pelas habilidades e talentos pessoais quanto pela motivação e

preferências sobre o estilo de vida, e, portanto, deveria ser também medida entre

riqueza merecida (escolha) e contribuição social (circunstância).

                                                                                                                         21 O que, diga-se de passagem, torna a interpretação de sorte bruta extremamente exigente na medida em que é relativamente fácil calcularmos padrões de risco diferenciados, mesmo em situações que deveriam ser consideradas como “arbitrárias” pelo critério moral.

  13  

Por meio do “corte” normativo entre escolha e circunstância, Dworkin propõe

uma teoria igualitária na qual “as pessoas devem pagar o preço da vida que elas

decidiram levar, medido por meio daquilo que os outros abriram mão para que elas

conseguissem isso” (Dworkin, 2000, p.74). Teríamos absorvido, assim, a principal

fonte de crítica conservadora aos modelos igualitários de distribuição de recursos.

2. Igualitarismos de Fortuna

Com a intenção de sintetizar a história das teorias da justiça distributiva

contemporâneas, podemos situar a obra de John Rawls (1971) como o momento

decisivo. Ao formular um modelo de justiça alternativo ao utilitarismo, defendendo

uma teoria e princípios igualitários, tal autor realiza uma clara ruptura com os

trabalhos anteriores sobre a temática. Podemos compreender a teoria de Rawls, assim

como as propostas de Sen (seus trabalhos de 1980 até 1993), como respostas tanto (1)

as teorias utilitárias, quanto (2) as teorias que consideram a “igualdade formal de

oportunidade”22 como necessária e suficiente para a justiça distributiva. Tais teorias,

mais do que inimigos comuns, também possuem características fundamentais em

comum. São elas quatro23:

(1) São teorias não baseadas no bem-estar (nonwelfarist). Sendo o maximandum um padrão “objetivo” (bens primários / capabilities) e não a utilidade (ou, de modo amplo, well-being).

(2) São igualitárias, no sentido estrito definido acima. (3) Nenhuma das teorias advoga por uma distribuição de resultados finais

(final outcomes). Ambas reservam algum espaço para a responsabilidade individual.

(4) Invocam uma noção de igualdade de oportunidade mais radical que a igualdade de oportunidade formal.

                                                                                                                         22 Entende-se, aqui, igualdade de oportunidade, seguindo Roemer, como sendo: “the condiction that there is no legal bar to access to education, to all positions and Jobs and that all hiring is meritocratic.”(Roemer, 1996, p. 163) 23 Com leves alterações e acréscismos, seguimos Roemer, 1996, pp. 163-164.

  14  

Nota-se que as características pares se aproximam, assim como, também, as ímpares.

Contudo, ressalta-se, não devem ser confundidas ou, ainda, consideradas idênticas24.

No mais, as distinções com teorias utilitárias são evidentes25.

Porém, além das semelhanças, as teorias igualitárias da justiça distributiva,

possuem claros distanciamentos. Podemos afirmar que uma das principais origens dos

distanciamentos entre tais teorias é a questão do correto equalizandum. Se, por uma

lado, Rawls defende que a “utilidade relevante”26 não é comparável interpessoalmente

e, mais do que isso, as próprias concepções de bem são incomensuráveis, devendo,

portanto, a distribuição se enfocar sobre os bens sociais primários, Sen, por outro

lado, realiza uma proposta diversa, ao defender a igualdade de capabilities27. Já o

trabalho de Dworkin (1981a,b), como buscamos apresentar, também apresenta a

defesa de um correto equalizadum distinto e, mais do que isso, explicita o papel e

espaço a ser preenchido pela responsabilidade individual em um modelo de

distribuição justa, se afirmando assim como outro momento decisivo para a história

das teorias da justiça distributiva contemporâneas.

Lembremos que Dworkin desenvolve, de modo conjunto, uma forte crítica aos

problemas da igualdade de bem-estar (welfare) e apresenta uma defesa da igualdade

de recursos28 como o adequado equalizadum, assim como defende a importância da

responsabilidade individual em uma teoria igualitária da justiça distributiva. Contudo,

o que merece ser destacado é que essas duas contribuições de Dworkin são distintas,

mesmo que não caminhando de modo independente (o desenvolvimento de uma

questão interfere sobre a outra). Explica-se: uma teoria que afirma papel ativo à

                                                                                                                         24 Tal questão será retomada a frente. Ver nota 45. 25 O utilitarismo convencional é uma teoria da justiça distributiva: (i) baseada no bem-estar (welfarist); (ii) não igualitária; (iii) visa maximizar a soma do utilidades finais, ou seja, contrasta por completo com o a característica (3) da teoria de Rawls (entre outros), não reservando espaço para a responsabilidade individual em seu modelo. Ver Roemer, 1996, p.164. 26 Utilizando um jargão econômico, evidentemente distinto do desenvolvido pelo autor. 27 Grosso modo, podemos afirmar que o foco da distribuição deve ser outro para Sen. Caberia à justiça distributiva equalizar ao nível mais elevado possível, os conjuntos de functionings disponíveis às pessoas. Portanto, Sen defende uma “igualdade de capabilities” (nome dado pelo autor, ao conjunto de functionings de uma pessoa). 28 Como já indicado, em Dworkin, os “recursos” são compreendidos de modo comprensivo/amplo, de forma a incluir variados talentos e desvantagens.

  15  

responsabilidade individual restringe – de modo lógico imediato – a maximização

pura/simples de resultados finais.

Podemos resumir as características da teoria distributiva de Dworkin a partir

de alguns pontos centrais29:

(1) Teoria não baseada no bem-estar (nonwelfarist). Seu equalizandum é um

padrão “objetivo”: os recursos. (2) É uma teoria igualitária, no sentido estrito. (3) Não advoga pela distribuição de resultados finais.

(3*) Reserva um nítido papel e espaço para a responsabilidade individual.

(4) Continua a invocar um noção igualitária mais exigente que a igualdade de oportunidades formal.

Justamente essas questões em torno da responsabilidade individual (3*) se

transformam na força motriz do debate entre (e desenvolvimento das) teorias da

justiça distributiva30. Um grupo de autores eminentemente igualitários, dentre os mais

importantes, John Roemer, G. A. Cohen e Richard Arneson, procuraram desenvolver

cada qual uma formulação igualitária de princípios distributivos sensíveis ao papel

instrumental e moral da responsabilidade.

Além da característica definidora dessas teorias, i. e., a sensibilidade à

responsabilidade individual, outra característica já indicada é que tais teorias

restringem as demandas por resultados finais iguais, a partir de questões de

responsabilidade. Como nos afirma Roemer, advogando, de certo modo, a favor dessa

adesão teórica:

If one idea must be singled out as a most prominent in contemporary theory of distributive justice, it is that personal responsibility justifiably restricts the degree of outcome equality. (Roemer, 1996, p.164)

Desse modo tais teorias sensitivas à responsabilidade fazem oposição, por exemplo, a

uma teoria igualitária do bem estar tradicional, dado que a última não possui um

núcleo conceitual que propicie levar a responsabilidade individual em consideração.

                                                                                                                         29 As características distintivas da teoria de Dworkin, em relação às teorias anteriores, encontram-se em destaque. 30 Dessa forma, estamos propondo que a importância do debate em torno do correto equalizadum decorre, em grande parte, como uma derivação da questão da responsabilidade individual.

  16  

Essa última teoria enquadra-se nos modelos que buscam equalização/maximização de

resultados finais (outcomes), os quais impedem a existência de uma margem de

variação – êxito/erro/esforço (ou seja, variação de resultados finais)31 – oriunda da

responsabilidade individual32.

Porém, se tais características semelhantes propiciam o agrupamento dessas

teorias em um conjunto (igualitarismo(s) de fortuna), acreditamos que existem

importantes distinções pouco trabalhadas pela literatura que se debruça sobre a

temática33. Se, por um lado, essas teorias concordam com a opção teórica de Dworkin

de reservar um espaço e um papel ativo à responsabilidade individual, por outro lado,

elas divergem a respeito do modelo teórico distributivo justo a ser aplicado.

Podemos dividir as críticas à proposta de Dworkin em dois níveis: (i) críticas

direcionadas à “eficiência interna” do modelo distributivo proposto por Dworkin, e

(ii) críticas direcionadas aos problemas ético-morais.

John Roemer, por exemplo, ao longo de uma série de artigos34, busca

compreender e analisar a coerência interna do mercado de seguros dworkiniano.

Podemos afirmar que Roemer - partindo de algumas premissas igualitário-econômicas

exigentes - demonstra que o modelo de distribuição sensível à ambição, mas não

sensível aos talentos naturais é ineficiente para equalização de recursos. Grosso modo,

Roemer afirma que o mercado hipotético de seguros proposto por Dworkin

proporcionaria uma grave perversidade: em certos casos, ele renderia as pessoas, as

                                                                                                                         31 Uma questão complicada aos adeptos dessa posição teórica seria a respeito das ações de elevado risco (sucesso e/ou fracasso) necessárias a progressos sociais altamente relevantes. Imagine, por exemplo, o caso de um cientista que utilize milhões de reais para pesquisas de ponta na area de saúde (por exemplo, pesquisas sobre doenças degenerativas de origem genética) e, no entanto, não apresente resultados científicos/sociais úteis. Como definir o grau de responsabilidade desse cientista? 32 Como podemos observar no texto de Roemer, presente na Boston Review dedicada a esse autor:

“Society, under such views [equality-of-opportunity are closely allied with a commitment to personal responsibility], is not required to insure individuals against bad results, when they are the consequences of individual choices made after opportunities have been equalized. On the equality-of-outcome view, in contrast, society’s mandate is to render all lives equally successful, at least in so far as this is feasible. Thus, persons are effectively not held responsible for their choices” (Roemer, 1995) 33 Não deixa de ser interessante notar que grande parte dos autores englobados pela terminologia “igualitarismo de fortuna” não se reconhecem como pertencentes a esse possível grupo ou, ainda, não dão importância a tal definição. A principal exceção é Richard Arneson que adota abertamente essa terminologia. Dworkin mais de uma vez recusa tal enquadramento. A posição crítica de G. A. Cohn fica evidente na passagem: “(…) Elizabeth Anderson aptly dubbed the proposal “luck egalitarianism”. Luck egalitarianism, the stated view, is now under intense investigation in a number of doctoral dissertations, and the ingenuity of aspirant members of philosophical profession is exposing ambiguities and difficulties in in that were certainly never contemplated by me.” (Cohen, 2008, p.8) 34 Grande parte dos quais reunidos em Roemer, 1994.

  17  

quais a ‘ética da igualdade de recursos’ quer compensar, uma pior situação que se elas

estivessem sem o seguro. A nosso ver, grande parte do problema encontrado por

Roemer no modelo igualitário de Dworkin é oriunda da opção deste último considerar

os talentos e desvantagens das pessoas como recursos a serem (re)distribuídos.35

Brevemente, o que Roemer está buscando explicitar é que, a seu ver, devido ao

mecanismo de seguros estar baseado em uma distribuição que equalizaria a utilidade

marginal 36 , dois indivíduos com talentos distintos (por exemplo, produção de

endorfina), que na situação anterior ao mercado de seguros estão com a mesma

quantidade de recursos (por exemplo, milhos)37, passarão a uma alocação derivada

desse mercado em que um dos indivíduos ficará em uma situação inferior a que estava

anteriormente. Portanto, de um ponto de vista igualitário, tal mecanismo é ineficaz.

Além do mais, outra crítica de Roemer possui maior abrangência. Segundo o

autor, o único mecanismo de alocação igualitária possível aos recursos (equalizandum

proposto por Dworkin), tenderia a equalizar resultados finais. Desse modo, o

igualitarismo de recursos formulado por Dworkin, para respeitar as propriedades de

uma alocação igualitária (tal como apresentada por Roemer), tenderia a se aproximar

de uma teoria igualitária de resultados, não preservando, portanto, uma adequada

margem para as variações de resultados finais oriundas de distintas responsabilidades

individuais38. Mas, então, qual seria uma possível saída para uma teoria igualitária

sensitiva à responsabilidade individual? A proposta positiva encontrada por Roemer é

apresentar uma saída pragmática, evitando a aridez dos debates ético-morais acerca da

definição correta de responsabilidade individual39, defendendo um conceito amplo de

                                                                                                                         35 Nota-se que não há, em qualquer momento, a proposta de exclusão de tais talentos (genéticos ou sociais) na crítica de Roemer, mas, sim, o questionamento do modo de solução realizado por Dworkin. 36 Aos olhos de Roemer, o mecanismo de seguro implementaria uma espécie de “utilitarismo seccional”. (Roemer, 1994, p.140) 37 Por simplicação, a quantidade total de recursos se encontra em poder dos dois indivíduos. 38 Para uma crítica da posição apresentada por Roemer, ver Scanlon, 1986. 39 Isso pode ser observado de modo nítido quando o autor afirma que mais do que debater os limites entre circunstância e responsabilidade individual, caberia a sua teoria apresentar um plausível modelo econômico-matemático o qual possibilitaria a introdução de inputs distintos de acordo com as demandas de cada sociedade. Como podemos notar: “Finally, each particular society will choose the extent to which it treats deviation from median behavior as due to circumstance or to personal responsibility by choosing the list of traits that define type and the number of types it admits (the dimension and fineness of the type grid). Because its choice of these parameters cannot but be influenced by physiological, psychological, and social theories of man that it has, the present proposal

  18  

igualdade de oportunidade: “My proposal is that equality of opportunity for X holds

when the values of X for all those who exercised a comparable degree of

responsibility are equal, regardless of their circumstances.” (Roemer, 1993, p.149)

Segundo o autor, é necessário se realizar a distinção entre fatores os quais os

indivíduos são responsáveis e quais são arbitrários. Ou seja, o autor compartilha a

necessidade de um corte fundamental, tal como proposto por Dworkin, porém ao

invés de realizar uma distribuição igualitária de recursos, Roemer propõe que as

políticas de “igual oportunidade” deveriam conseguir nivelar o campo nos quais estão

situadas as pessoas. Mas o que isso significa?

Para Roemer, “leveling the playing field concerned choosing that policy that

will make it the case that an individual`s final condition will be, as far as possible,

only a function of the effort he makes. In particular, equality of opportunity finds no

moral bad in inequality of final condictions across individuals ascrible to differential

effort.” (Roemer, 2002, pp.456-457) Ou seja, em uma situação em que a igualdade de

oportunidade se realiza, ninguém está pior situado em relação aos outros devido a

fatores além de seu controle.

Partindo dessas considerações, Roemer busca construir um algoritmo a partir

do qual uma sociedade, com suas particulares visões a respeito das pessoas e das

circunstâncias, poderia implementar um igualitarismo de oportunidade consoante a

essas visões40. Porém, a parte problemática (e, ao mesmo tempo, parte fundamental da

contribuição do autor), é realizar a comparação do grau de responsabilidade entre

pessoas em uma dada sociedade real, visto que por virtude de circunstâncias

diferentes, os indivíduos se esforçam distintamente. O problema básico para o

mecanismo de alocação é evidente: como distinguir a escolha autônoma das

circunstâncias em certo comportamento individual? A solução de Roemer (Roemer,

2002, p.456) se fundamenta estruturalmente em um procedimento que se baseia em:

(1) As circunstâncias fundamentais da vida de um indivíduo incluem-no em um dado

tipo social relevante, (2) as comparações de indivíduos situados em tipos distintos

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           would implement different degrees of opportunity egalitarianism in different societies.”(Roemer, 1993, p.166) 40 Portanto, essa seria, segundo Roemer, uma proposta política (e não metafísica) baseada na pressuposição de que todas pessoas teriam, excluindo-se as circunstâncias (sociais e genéticas) a mesma capacidade para exercer igual grau de responsabilidade por suas ações. Ou seja, a variação de responsabilidade seria originária ou de circunstâncias além do controle individual, ou simplesmente porque algumas pessoas se esforçariam mais que outras. Ver Roemer, 1993, pp. 165-166.

  19  

devem ser, de algum modo, ajustadas por um fator que leve em consideração a

variação desses esforços extraídos de (e/ou influenciados por) distribuições iniciais

distintas (ou seja, das circunstâncias além do controle individual), as quais os

indivíduos não podem se responsabilizarem.

Desse modo, Roemer propõe que podemos medir o grau de esforço (como

uma medida moralmente relevante) entre os indivíduos que se situam num mesmo

tipo 41 . Assim, poderíamos mensurar o esforço de uma pessoa pelo sua

colocação/posição na distribuição de esforço do seu tipo, ao invés de realizarmos um

rank absoluto. No mais, possibilitasse a comparação de indivíduos em tipos distintos,

a partir do fator intra-grupo42.

Se pensarmos por exemplo na distribuição de um recurso escasso, tal como um

medicamento de propriedade exclusiva do Estado, a partir do modelo de Roemer,

buscaríamos distribuir tal medicamento aos indivíduos mais responsáveis, dentre os

variados tipos43 (após comparação intra-tipo e entre tipos). Já, em contraste, seguindo

o princípio maximin alocaríamos tal medicamento aos piores situados (pouco

importando a responsabilidade e esforço exercidos por essas pessoas piores situadas).

Por sua vez, seguindo um modelo utilitário, buscaríamos maximizar a utilidade na

distribuição de tal medicamento, não levando em consideração nem a

responsabilidade individual, nem mesmo a posição social dos beneficiados.

Como afirmamos anteriormente, a obra de Dworkin, além da crítica em nível

de “eficiência” do modelo igualitário, recebeu também críticas ético-morais

importantes. Sobretudo nos trabalhos de Richard Arneson e G. A. Cohen, as críticas

direcionadas a Dworkin, tenderão a serem enfocadas na questão do correto corte

epistêmico para se capturar o problema central da responsabilidade individual. O

corte abrangente realizado por Dworkin é questionado pelos autores. Ou seja, o nível

da análise é outro: deixa de ser alocado em questões de eficiência e coerência

internas, passando para questões a nível “ético-moral”.

                                                                                                                         41 Lembre-se que, nesse caso, seguindo a proposta de Roemer, estamos anulando as variações derivadas das circunstâncias, pois essas seriam uma característica do tipo e não de cada indivíduo. 42 Como afirma Roemer: “Suppose the distributions of effort of the advantaged type are uniformly distributed on the interval [1,2], under some policy, while the distributions of effort of the disadvantaged type are uniformly distributed on the interval [0.25,1.25]. It makes sense of say that someome in the later type who exerted effort 1.25 tried very hard, while someone in the former type who exerted that effort did not” (Roemer, 2002, p.258). 43 Esses tipos poderiam, por exemplo, possuir características relevantes combinadas, tais como, classe social, renda, escolaridade, cor de pele, tipo familiar, entre outras.

  20  

Realizando uma crítica à divisão entre “recursos” e “preferências” tal como

realizada por Dworkin, Richard Arneson, em 1988/198944, argumenta que a ideia de

igual oportunidade para bem-estar é melhor interpretação do ideal de igualdade

distributiva. Segundo o autor, uma pessoa não é responsável pela sua oportunidade,

mas ela é responsável por transformar a oportunidade em resultados (outcomes).

Além do mais, para Arneson, (1) uma pessoa não pode ser inteiramente responsável

por suas preferencias e (2) o equalizandum apropriado que as oportunidades devem

equalizar é o bem-estar (welfare).45

Partindo de um problema – sintetizado pela questão: “Como dividir os bens a

fim de encontrar um apropriado padrão de igualdade?” (Arneson, 1989, p.77) – e de

uma premissa igualitária46, Arneson busca apresentar e defender sua opção pela “igual

oportunidade para bem-estar”. Podemos afirmar que a melhor expressão do ideal de

igualdade para teorias da justiça distributiva é obtida quando todos lidam

efetivamente com conjuntos equivalentes de opções de vida. Essas opções de vida

devem ser compreendidas como perspectivas de satisfação de (hipotéticas)

preferências individuais47. Ou seja, preferências hipotéticas no sentido idealmente

considerado de “preferencias racionais”: preferências oriundas de uma deliberação

nas quais o indivíduo formula suas preferencias com todas as informações pertinentes,

                                                                                                                         44 Estamos aqui considerando seu artigo “Equality and Equal Opportunity for Welfare” como sua primeira contribuição significativa ao debate. 45 Ressalta-se que Arneson apresenta uma teoria igualitária a nível de bem-estar (welfarist) sem defender a distribuição de resultados finais (outcomes), mas, sim, defendendo a igual oportunidade ao bem-estar; ou seja, dando margem a questões de responsabilidade individual. Essa possibilidade, a nosso ver, não é levada em consideração por grande parte da literatura, por exemplo Anderson (1999), o que, de certo modo, empobreceu o debate, visto que grande parte das críticas direcionadas à teoria de Arneson tangenciam o alvo, pois são estruturadas como críticas a teorias (igualitárias) de resultados finais baseadas em bem-estar (outcome welfarist theory). Arneson ressalta essa leitura dúbia de Anderson, ao defender sua posição. Ver Arneson, 2000. Portanto, estamos propondo aqui que dado um equívoco de leitura das principais características da teorias igualitárias (apresentadas na p.15), todas as teorias de bem-estar foram consideradas, imediatamente, como teorias que advogam pela distribuição de recursos finais por grande parte dos críticos e estudiosos do igualitarismo de fortuna. 46 A premissa igualitária – ou, ainda, igualitária de fortuna, se aceitamos que questões de mérito individual distinguem tal vertente – apresentada por Arneson é: “This discussion assumes that some goods are legitimately available for distribution in this fashion, hence that the entitlements and deserts of individuals do not predetermine the propor ownership of all resources.” (Arneson, 1989, p.77). 47 Para Arneson, a satisfação de preferências individuais é constituinte da própria definição conceitual de bem-estar (welfare). Em suas palavras: “I take welfare to be preference satisfaction. The more an individual’s preferences are satisfied, as weighted by their importance to that very individual, the higher her welfare. The preferences that figure in the calculation of a person’s welfare are limited to self-interested preferences.” (Arneson, 1989, p.86)

  21  

de modo claro, pensando calmamente e não cometendo erros não razoáveis. No mais,

as preferências envolvidas nos cálculos individuais – ou seja, na própria definição do

conceito de igual oportunidade de bem-estar – devem ser entendidas como “second-

best preferences”48.

O modo mais desenvolvido de compreender seu ideal é49:

We constructo a decision tree that gives an individual’s complete life-histories. We then add up the preference satisfaction expectation for each possible life-history. In doing this we take into account the preferences that people have regarding being confronted with the particular range of options given at each decision point. Equal opportunity for welfare obtains among persons when all of them face equivalent decision trees – the expected value of each person’s best ( = most prudent) choice of options, second-best, nth best is the same. The opportunities persons encounter are ranked by the prospects of welfare they afford. (Arneson, 1989, p. 85-86)

Ou seja, para Arneson, não é necessário se equalizar os bem-estares (ou, em casos de

incerteza, os bem-estares esperados) resultantes dos caminhos traçados (realmente

escolhidos) pelas pessoas em suas árvores de decisões, visto que na teoria formulada

pelo autor as pessoas são vistas como responsáveis por realizar escolhas50.

É justamente essa questão que possibilita a apresentação e contraste com a

posição formulada por G. A. Cohen. A nosso ver, a posição apresentada por Cohen é

ainda mais exigente, a nível igualitário.

Concordando com a crítica realizada por Dworkin a respeito da igualdade de

bem-estar, porém, também, propondo que a igualdade de recursos está sujeita a fortes                                                                                                                          48 De modo simplificado, podemos entender tais preferências como as presentes em modelos de teoria econômica: as ações estatais sobre os mercados visam, usualmente, satisfazer “second-best preferences”. No mais, ressalta-se que na teoria de Arneson, tais preferências podem ser oriundas de um acréscimo de informação ao agente, sobretudo devido a possibilidade de incerteza. 49 Essa citação também pode ser encontrada no trabalho de Roemer 1994, p.180-181. 50 Após forte crítica de Lippert-Rasmussen 1999, Richard Arneson realiza uma forte revisão em sua teoria. Afirmando que o ideal de igualdade distributiva não é a igual oportunidade para bem-estar, mas sim o resultado que tais oportunidades proporcionam, Arneson 1999 propõe que as considerações a respeito da responsabilidade não devem ser integradas à qualquer princípio de igualdade, mas, sim, deveriam ser integradas à uma visão prioritária (tal como entendida por Parfit (2002)). Ou seja, Arneson passa a defender um específico tipo de prioritarismo, responsibility-catering prioritarism, o qual considera que considerações de responsabilidade importam moralmente por si mesmo, não apenas como um meio de assegurar outros valores (como a igualdade). Contudo, ao menos em Arneson 1999, ainda o autor preserva certa ambiguidade a respeito de se adere por completo a uma visão (estritamente) “prioritária da responsabilidade”, ou se compreende esse prioritarismo ainda no interior de um igualitarismo (de oportunidade ao bem-estar). Tendemos a afirmar que sua teoria se enquadra na segunda situação apensar de o autor se basear em Parfit, ao invés de Nagel (1979) – esse, sim (ao contrário de Parfit), compreendendo claramente o prioritarismo como uma variação/ramificação interna ao igualitarismo – para desenvolver sua tese.

  22  

objeções, Cohen busca apresentar um modelo igualitário alternativo mais abrangente

e exigente que a “igualdade de recursos” (Dworkin) e a “igual oportunidade ao bem-

estar” (Arneson). Se, por um lado, a segunda opção já se enquadraria como um

avanço igualitário, por outro, ainda apresentaria limites que necessitariam ser

superados, pois, para Cohen, é necessário se eliminar mais do que deficiências de

bem-estar involuntárias, mas, sim, desvantagens em sentido amplo51. E, mais do que

isso, a própria noção de oportunidade deve ser substituída por acesso52, novamente

um conceito mais amplo e exigente.

Cohen, grosso modo, apresenta a proposta de “igual acesso a vantagem” – um

amplo igualitarismo orientado ao acesso (a wider access-oriented egalitarianism), em

distinção ao corte entre preferencias e recursos realizado por Dworkin53. Porém, dadas

as fortes exigências e constrangimentos igualitários do modelo de Cohen, um

observador externo poderia se perguntar: “Qual o espaço reservado a responsabilidade

em tal proposta igualitária?”

Em primeiro lugar, poderíamos afirmar que cabe aos indivíduos transformar

acesso em resultados finais. Entretanto, dada a abrangência do conceito de acesso tal

resposta pode tender a ser implausível. Contudo, o que merece ser destacado é que a

questão da responsabilidade está na própria base estrutural do igualitarismo de G. A.

Cohen, dado que, segundo ele, um dos objetivos igualitários fundamentais é

neutralizar influência da sorte sobre a distribuição, isto é, de fatores pelos quais as

pessoas não são responsáveis (Cohen, 1989, p. 908)54. Nas palavras do filósofo:

In my view, a large part of the fundamental egalitarian aim is to extinguish the influence of brute luck on distribution. Brute luck is an enemy of just equality, and, since effects of genuine choice contrast with brute luck, genuine choice excuses otherwise unacceptable inequalities. (Cohen, 2004, p.147)

                                                                                                                         51 Para Cohen, as deficiências de bem-estar são uma forma específica, entre outras, de desvantagens. Cabe se perguntar se tal compreensão é plausível para um teórico que adota o bem-estar como métrica generalizante. 52 A definição de acesso, para o autor, pode ser vista em: “I shall treat anything which a person actually has as something to which he has access.” (Cohen, 2004, p. 135) 53 Cohen compartilha com Arneson grande parte das críticas a Dworkin, contudo considera sua proposta mais eficaz que a de Arneson, sobretudo por considerar que seu conceito de igual acesso é mais eficaz a igual oportunidade pois o primeiro corrigiria desigualdades de resultado derivadas de iguais oportunidades a pessoas com desvantagens naturais. 54 Esse ponto recebeu uma forte crítica de S. L. Hurley, 2003. Segundo a filósofa, o objetivo de neutralizar a sorte, tal como Cohen propõe, não providencia uma base plausível para se sustentar moralmente uma teoria igualitária. Para uma resposta a crítica, ver Cohen, 2011 (Capítulo 5).

  23  

E, mais do que isso, tendemos a afirmar que dado a negação da plausibilidade de uma

teoria da justiça a nível estritamente institucional – ou para utilizarmos a terminologia

de Rawls, uma justiça que tenha seu escopo limitado à “estrutura básica da sociedade”

–, Cohen é obrigado (a nível meta-ético) a alocar papel central à responsabilidade

individual em seu modelo de sociedade justa, visto que o ethos justo e as instituições

justas não podem ser descolados (ou distintos).

Na presente parte, buscamos apresentar como teóricos, vinculados a uma

particular vertente igualitária sensível a questões de responsabilidade individual,

alocam e desenvolvem de modo distinto (e, até mesmo, conflitante) seus conceitos e

teorias. Dworkin ao marcar a distinção entre preferência e circunstância, introduziu ao

interior da teoria igualitária a questão da responsabilidade individual, a qual até o

momento permanece na literatura como uma questão em aberto.

Devem os teóricos igualitários incorporar a responsabilidade individual como

parte do núcleo de suas teorias? Se sim, de qual modo? Defendendo a igualdade de

recursos? Ou a igual oportunidade? Ou, ainda, a igual oportunidade de bem-estar? Ou,

por fim, o igual acesso a vantagem? Em caso negativo, como reagir as usuais críticas

conversadoras e/ou libertarianas?

3. Conclusão

Propusemos neste trabalho que um grupo de autores comprometidos com o

ideal da igualdade, ao incorporarem certa crítica conservadora às teorias distributivas,

abriram uma frente de pesquisa importante para a teoria política contemporânea. A

incorporação da clivagem normativa escolha-circunstância, inicialmente formulada

pela igualdade de recursos de Dworkin, e posteriormente reformulada por Roemer,

Arneson e Cohen, recolocou o problema da responsabilidade individual para o núcleo

das teorias de justiça igualitárias. Como vimos, isso implica um comprometimento

duplo por parte das teorias de igualdade de fortuna: por um lado defender a igualdade

de oportunidades, anulando ou compensando diferenças efetivas de recursos sociais

ou talentos individuais que tornar injusto seus resultados, por outro, a formulação de

princípios capazes de penalizar do ponto de vista distributivo comportamentos

voluntariamente irresponsáveis. A igualdade social para os igualitários de fortuna é a

eliminação de fatores arbitrários (definido diferentemente por cada teoria) das

  24  

escolhas individuais e isso significa um caminho teórico distinto ao igualitarismo

liberal desenvolvido, por exemplo, por John Rawls. Podemos falar em uma clivagem

teórica entre os autores igualitários – quanto ao problema de como caracterizar a

igualdade – no que diz respeito ao papel da responsabilidade pessoal nos modelos de

distribuição.

Um ataque severo às premissas do igualitarismo de fortuna foi realizado por

Elizabeth Anderson, artigo no qual a denominação “luck egalitarianism” foi articulada

pela primeira vez, em nome de um igualitarismo “democrático”. Para Anderson, o que

esta em questão quando defendemos um ideal de igualdade sócia, não passa pela

correção de “acasos” ou mesmo pela identificação de um âmbito filosoficamente

problemático de agência voluntária, mas sim pela luta moral contra as diferentes

formas de opressão às quais estamos sujeitos vivendo em sociedade (Anderson 1999

esp. pp. 288-289). Tratar a todos como iguais significaria capacitá-los para o exercício

pleno da cidadania democrática, o que implicaria, dentre outras exigências

normativas, a distribuição de recursos (ou oportunidades efetivas no caso do exercício

do poder) suficientes. A desigualdade socioeconômica em si, para Anderson, seria

ilegítima apenas na medida em que afeta o igual estatuto de cidadãos em um regime

político democrático. Como o eixo normativo da igualdade democrática gira em torno

das estruturas produzidas socialmente e não sobre as condições de possibilidade de

escolhas individuais, o problema da responsabilidade individual deveria ser recusado

como um problema de primeira ordem em relação às condições sociais para a

igualdade de cidadania (cf. pp. 326-331). O que essa modalidade de pensamento

igualitário teria a oferecer contra as criticas conservadoras - particularmente contra as

objeções de “ineficiência“ – seria o comprometimento de segurança social apenas em

relação a um conjunto de bens moralmente relevante para o exercício da cidadania,

deixando de lado o uso da coerção estatal em matérias não relevantes politicamente.

A escolha de estilos de vida “caros”, caso não encontrem expressão em demandas

politicamente identificáveis, não fariam parte do escopo da distribuição – mesmo que

pudéssemos a princípio demonstrar a existência de arbitrariedades morais nos padrões

de planejamento e execução desses estilos (p. 327). Autores como Samuel Scheffler

(2003) e Álvaro de Vita (2011), por exemplo, poderiam ser classificados também

  25  

como defensores de uma concepção “democrática” de igualdade, mesmo que a

especificidade de cada formulação varie consideravelmente55.

A discussão conceitual a respeito dos fundamentos da igualdade é crucial para

podermos avaliar a coerência e a exequibilidade das implicações institucionais de

cada uma das modalidades do pensamento igualitário. A discussão trazida pelo

igualitarismo de fortuna nos permite, a despeito do caráter extremamente abstrato das

discussões, caracterizar com mais segurança aquilo que inicialmente identificamos

como a exigência moral de tratar todos os homens e mulheres de uma sociedade (ou

de qualquer sociedade) como iguais. Mesmo que não concordemos com as premissas

do igualitarismo de fortuna, não podemos afirmar que não entendemos o tipo de

reivindicação derivada de seus princípios. Elas podem ser contra-inutitivas ou ate

mesmo absurdas do ponto de vista de outras formulações, mas para avaliarmos isso,

em primeiro lugar, pudemos entender com qual definição de igualdade estamos

operando. Definições vagas de reivindicações igualitárias no nível teórico

normalmente resultam em formulações triviais de moralidade política no nível

prático: ideias facilmente aceita por todas as partes envolvidas - até mesmo por

premissas teóricas rivais se pensarmos na utilização genérica da igualdade como valor

axiomático - mas dificilmente capazes de alterarem o status quo desigual de nossas

sociedades reais devido a sua indeterminação conceitual. Se o preço a pagar por uma

análise mais cuidadosa dos conceitos utilizados às vezes é a obscuridade ou

dificuldade de incorporar questões pontuais, podemos ganhar entendendo melhor o

que estamos exigindo e quais as consequências dessas exigências caso sejam aceitas.

As diferentes formulações do igualitarismo de fortuna na bibliografia recente sobre

justiça social permitiu à teoria política contemporânea oferecer propostas não triviais

de igualitarismo. Se discutir igualdade é o que importa para boa parte da teoria

política, é preciso termos sempre em mente os diferentes modos de fazê-lo. As

diferenças práticas dos argumentos podem significar a relevância ou a irrelevância do

ideal igualitário no debate político presente.

                                                                                                                         55 Um elementos importante de variação entre esses autores diria respeito ao uso do enfoque de capacidades utilizado por Anderson, em oposição, por exemplo, a uma intepretação mais forte do princípio de diferença rawlsiano. Entremos aqui no problema de definir o que é igualdade.

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