democracia e desconfianÇa

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Universidade Federal de Minas Gerais Programa de Pós-Graduação em Direito Disciplina: Hermenêutica e Direitos Fundamentais III Professor: Bernardo Gonçalves Fernandes Aluno: Daniel Piovanelli Ardisson Tema: ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: Uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Do original: Democracy and Distrust: a theory of judicial review (1980). PREFÁCIO O autor aponta que o debate constitucional está dominado por uma falsa dicotomia: enquanto um lado afirma que devemos nos ater firmemente aos pensamentos daqueles que escreveram os trechos essenciais da Constituição e considerar ilegais apenas as práticas que eles julgavam inconstitucionais, o outro lado afirma que os tribunais devem ter autoridade para corrigir e reavaliar as opções valorativas do legislativo, a fim de que possam controlar a legislação. Nenhuma dessas duas posições, contudo, é compatível com os pressupostos democráticos implícitos do sistema americano. Assim, a intenção do autor é elaborar uma terceira teoria do controle judicial de constitucionalidade, que seja coerente com os pressupostos democráticos implícitos do sistema constitucional. Tal teoria é estruturada de modo que faça com que os tribunais sejam instrumentos que ajudam a tornar os pressupostos democráticos implícitos uma realidade 1 . 1 Dworkin afirma que tanto a teoria que busca valores nas intenções dos constituintes quanto a que se limita a fiscalizar os processos democráticos (teoria de Ely) são nocivas. Ao se referir à última, Dworkin diz que os juízes não podem decidir qual processo político é

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Page 1: DEMOCRACIA E DESCONFIANÇA

Universidade Federal de Minas GeraisPrograma de Pós-Graduação em Direito

Disciplina: Hermenêutica e Direitos Fundamentais III

Professor: Bernardo Gonçalves Fernandes

Aluno: Daniel Piovanelli Ardisson

Tema: ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: Uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Do original: Democracy and Distrust: a theory of judicial review (1980).

PREFÁCIO

O autor aponta que o debate constitucional está dominado por uma falsa dicotomia: enquanto um lado afirma que devemos nos ater firmemente aos pensamentos daqueles que escreveram os trechos essenciais da Constituição e considerar ilegais apenas as práticas que eles julgavam inconstitucionais, o outro lado afirma que os tribunais devem ter autoridade para corrigir e reavaliar as opções valorativas do legislativo, a fim de que possam controlar a legislação.

Nenhuma dessas duas posições, contudo, é compatível com os pressupostos democráticos implícitos do sistema americano. Assim, a intenção do autor é elaborar uma terceira teoria do controle judicial de constitucionalidade, que seja coerente com os pressupostos democráticos implícitos do sistema constitucional. Tal teoria é estruturada de modo que faça com que os tribunais sejam instrumentos que ajudam a tornar os pressupostos democráticos implícitos uma realidade1.

1 Dworkin afirma que tanto a teoria que busca valores nas intenções dos constituintes quanto a que se limita a fiscalizar os processos democráticos (teoria de Ely) são nocivas. Ao se referir à última, Dworkin diz que os juízes não podem decidir qual processo político é realmente justo ou democrático, a menos que tomem decisões políticas substantivas iguais àquelas que os proponentes da intenção ou do processo consideram que os juízes não devem tomar. A intenção e o processo são ideias nocivas porque encobrem essas decisões substantivas com a piedade processual e finge que elas não foram tomadas. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 42/43.

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1. A SEDUÇÃO DO INTERPRETACIONISMO

Há uma antiga disputa na teoria constitucional, principalmente na teoria constitucional americana, levada a cabo por duas correntes de análise constitucional: o interpretacionismo e o não interpretacionismo2.

A primeira afirma que os juízos que decidem as questões constitucionais devem se limitar a fazer cumprir as normas explícitas ou claramente implícitas da Constituição escrita. A segunda adota a opinião de que os tribunais devem ir além desse conjunto de referências e fazer cumprir normas que não se encontram claramente indicadas na linguagem do documento3.

O que distingue a corrente interpretacionista da outra não é, em essência, uma tendência conservadora ou mesmo uma natural automoderação. O que a distingue é a insistência em que os atos dos poderes políticos só sejam declarados inconstitucionais a partir de uma inferência cujo ponto inicial ou cuja premissa subjacente seja claramente perceptível na constituição (implícita ou explícita)4.

A corrente interpretacionista é a tendência na Suprema Corte norte americana, quando do controle judicial de constitucionalidade, principalmente em razão de dois atrativos: primeiro, ela se encaixa melhor nas concepções sobre o que é o direito e como ele funciona; segundo, ela é mais coerente com a teoria democrática norte americana.

Contudo, a função central da Corte (o controle de constitucionalidade) é também seu problema central: um órgão que não foi eleito, ou que não é dotado de nenhum grau significativo de responsabilidade política, diz aos representantes eleitos pelo povo que eles não podem governar como desejam.2 O autor afirma que em ambas as correntes pode haver variações como o “ativismo” e a “automoderação”. Contudo, há uma intrínseca ligação entre o interpretacionismo e o positivismo, e o não interpretacionismo e o jusnaturalismo.3 O professor Lenio Luiz Streck, em discussão sobre a extensão da união estável aos casais homoafetivos, afirma que “[...] ao defendermos a possibilidade e a necessidade de respostas corretas em direito (cf. Lenio Streck, Verdade e Consenso, op.cit, ‘respostas adequadas à Constituição’), não é possível nos rotular como interpretativistas (originalistas). Isso por um motivo simples: quando afirmamos tal tese — de que a resposta adequada à Constituição, no caso vertente, passa pelos meios democráticos de decisão (o que, por exemplo, Habermas diria disso?) —, temos por pressuposto que a dicotomia interpretacionismo/não-interpretacionismo está, de há muito, superada e os problemas daí decorrentes já tenham sido sanados. Isto porque, quando em Law’s Empire Ronald Dworkin enfrenta o aguilhão semântico e o problema do pragmatismo, há uma inevitável superação das teses clássicas sobre a interpretação da Constituição Americana. Ou seja, o problema da resposta adequada à Constituição e não a um conjunto de valores (sic) que ninguém sabe bem o que é, não se resume à identificação da sentença judicial com o texto da lei ou da Constituição. Se pensássemos assim, estaríamos ainda presos aos dilemas das posturas semânticas. Quando se fala nesse assunto há uma série de acontecimentos que atravessam o direito que ultrapassam o mero problema da ‘literalidade do texto’”. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-jul-19/confiar-interpretacao-constituicao-poupa-ativismo-judiciario?pagina=6>.4 Segundo Dworkin, todas as teorias são interpretativas, pois sempre partem de algo preexistente. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 49.

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Os adeptos do não interpretacionismo confiam à Corte a tarefa de definir quais valores devem ser colocados fora do alcance do controle majoritário, enquanto os interpretacionistas retiram os valores diretamente da constituição, e, consequentemente, do povo (que a ratificou). Logo, quem controla o povo não é o Judiciário, mas a constituição, e, indiretamente, o próprio povo. Daí decorre a sedução mencionada no título do capítulo.

2. A IMPOSSIBILIDADE DE UM INTERPRETACIONISMO PRESO ÀS CLÁUSULAS CONSTITUCIONAIS

A incompatibilidade com a teoria democrática é um problema (tanto do interpretacionismo quanto do não interpretacionismo) que enfraquece a ideia de que ao aplicar a Constituição, os juízes estariam pondo em prática a vontade do legislador.

O interpretacionismo corriqueiro costuma abordar as diversas disposições da Constituição como unidades contidas em si mesmas, interpretando-as a partir de sua linguagem, com a ajuda da história legislativa, sem recorrer a qualquer conteúdo oriundo de fontes exteriores à disposição constitucional. Essa corrente, que chama a Constituição de Bíblia interpretacionista, é problemática, pois a própria Constituição possui disposições que nos convidam a ir além do seu sentido literal, ou que convidam, até certo ponto, que sejamos adeptos do não interpretacionismo.

Segundo os interpretacionistas, apesar da dificuldade, parte da tarefa de interpretação constitucional consiste em atualizar o objeto e significado de disposições que o país, em época anterior, formulou e consignou no texto da Constituição, e há disposições que permitem esse tipo de atuação.

Todavia, disposições há que clamam mais insistentemente por uma referência a fontes externas ao próprio documento ou a sua história legislativa.

O devido processo

O devido processo legal, incluído pela Décima Quarta Emenda, é um exemplo de disposição constitucional cuja interpretação vai além do próprio texto constitucional. O “devido processo substancial”, por exemplo, é extraído da emenda, sem, contudo, poder ser retirado da redação constitucional.

Em casos similares, o autor entende que é relevante buscar a intenção dos legisladores. Contudo, melhor do que vasculhar a própria história legislativa, o meio mais fácil de buscar a intenção do legislador é verificar a própria linguagem

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constitucional, caso em que a história legislativa servirá como dicionário para contextualização dos termos e solução de ambiguidades.

No caso da Décima Quarta Emenda, a utilização de devido processo legal como devido processo substancial é uma contradição em termos. Não há nada que indique que “processo” significava algo diferente quando da criação da emenda do que significa hoje. Pelo mesmo raciocínio, “devido processo procedimental” é uma redundância.

O devido processo substancial, não obstante, foi utilizado inclusive pelos defensores do interpretacionismo, como forma de correção das distorções substantivas causadas pela lei. E assim foi utilizada em razão da falta de uma disposição constitucional específica de conteúdo substantivo.

Privilégios ou imunidades

A cláusula de Privilégios ou Imunidades da Décima Quarta Emenda prevê que “nenhum estado fará ou executará qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos”. O entendimento vigente é de essa cláusula se encontra limitada àqueles direitos que são garantidos de outras formas pela Constituição ou que estão claramente implícitos na relação do cidadão com o governo federal. Entretanto, segundo o autor, a interpretação mais plausível da Cláusula de Privilégios ou Imunidades é aquela sugerida pelo seu texto – que ela delegava aos futuros responsáveis por decisões pertinentes à Constituição a proteção de certos direitos que o documento não lista, pelo menos não exaustivamente, nem dá diretrizes específicas para que sejam encontrados.

Trata-se, portanto, de mais um exemplo de cláusula impossível de ser interpretada tal qual determinado pelo próprio texto segundo o interpretacionismo estrito, porquanto a cláusula pede complementação (em sua maioria) posterior e externa à constituição.

A igual proteção

Pelo texto literal, sabe-se que a Cláusula da Igual Proteção foi criada para proibir desigualdades: “Nenhum estado... negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis”. Pela história da cláusula, sabe-se que foi criada para combater a desigualdade entre brancos e negros e que a decisão de usar uma linguagem, sem especificar a raça, foi uma decisão consciente.

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Praticamente toda lei possui classificações (e exceções)5 em seu texto. Contudo, nem toda classificação deve ser declarada inconstitucional, ou praticamente toda lei também o seria. Para distinguir classificações constitucionais das inconstitucionais, a Corte criou e utiliza o critério do “fundamento racional”: os contraexemplos, mesmo em grande número, não invalidam uma classificação, desde que uma pessoa sensata possa encontrar correlações suficientes entre o mal combatido e a característica utilizada como base da classificação.

Todavia, métodos como o apartheid são racionais. Assim, é necessário ao menos um outro critério, que complemente o critério do fundamento racional. Esse critério não pode ser extraído do texto constitucional, e, portanto, enquanto tal, a cláusula é, na verdade, uma autorização muito ampla que permite a possibilidade de controle das decisões governamentais com base na igualdade, o que, diante de um advogado experiente, pode ser utilizado em basicamente qualquer tipo de pleito.

Logo, o conteúdo da Cláusula da Igual Proteção (quais desigualdades são aceitáveis e sob que circunstâncias) não poderá ser extraído de seu próprio texto, nem das ponderações dos legisladores que a escreveram.

A Nona Emenda

A Nona Emenda estabelece que “a enumeração de certos direitos na constituição não será interpretada de modo que se neguem ou se diminuam outros retidos pelo povo”.

Segundo a interpretação tradicional, esta emenda foi anexada à Declaração de Direitos para negar a hipótese de que o Poder Federal era quase ilimitado e abrangia tudo o que não fosse incluído entre os direitos citados nas primeiras oito emendas, de forma a reiterar que o governo dos Estados Unidos era um governo de “poucos e definidos poderes”. Tal interpretação, como se pode ver, distancia-se muito da redação original. Assim, o autor afirma que a emenda teve outros objetivos.

Ela não tinha somente a intenção de indicar que havia outros direitos constitucionais em nível federal, mas também que, não obstante a Declaração de Direitos, o Congresso e os legisladores estaduais poderiam criar outros direitos.

A conclusão de que a Nona Emenda buscava indicar a existência de direitos constitucionais federais além dos especificamente enumerados na Constituição é a única conclusão capaz de ser confortavelmente corroborada pela própria linguagem da

5 Por “classificações” deve-se entender as categorias incluídas e excluídas, expressa ou implicitamente, pela lei. Por exemplo, a lei que prevê que apenas pessoas com diploma em medicina podem exercer a atividade médica inclui os titulares de diploma de medicina, e ao mesmo tempo exclui todos os demais.

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emenda. Logo, a interpretação tradicional, apesar da origem interpretacionista, vai muito além do texto da própria emenda.

Se não for possível desenvolver uma abordagem honesta da aplicação judicial das disposições abertas da Constituição, uma abordagem que não seja irremediavelmente incompatível com o compromisso norte-americano com a democracia representativa, os críticos responsáveis devem considerar seriamente a possibilidade de simplesmente proibir aos tribunais essa atividade. Dado o fracasso óbvio da modalidade dominante de controle por meio do “não interpretacionismo”, foi sábia a intuição do Justice Black6 de negar essa autorização ao Judiciário. Entretanto a modalidade dominante pode ser melhorada, tarefa a que se propõe o autor.

3. DESCOBRINDO OS VALORES FUNDAMENTAIS

Como o interpretacionismo acaba por anular a si mesmo (como foi visto acima), cumpre agora verificar o funcionamento do não interpretacionismo.

Segundo a opinião predominante7, a Suprema Corte, para dar conteúdo às disposições abertas da Constituição, deve identificar e impor aos poderes políticos os valores que são, de acordo com uma ou outra fórmula, realmente importantes ou fundamentais.

A Corte é uma instituição responsável pela evolução e aplicação dos princípios fundamentais da sociedade e sua função constitucional é definir valores e afirmar princípios8.

Os valores próprios do juiz

A ideia de o juiz aplicar seus próprios valores não é defendida explicitamente. Nos diversos métodos de definição de valores, embora seja proposto um método de identificação pretensamente impessoal, o juiz provavelmente irá “descobrir”, quer tenha ciência disso ou não, seus próprios valores. Essa ideia, exposta pelo realismo e defendida por alguns, deve ser absolutamente afastada.

6 Juiz da Suprema Corte norte-americana.7 Essa afirmação contradiz a indicação anterior de que o interpretacionismo é a corrente tradicionalmente seguida pela Corte.8 Dworkin diz que a afirmação de Ely de que “a revisão judicial deve ter em vista o processo da legislação, não o resultado isolado desse processo” é vigorosa e correta. Contudo, as afirmações de que “ela deve avaliar esse processo segundo o padrão da democracia”; de que “a revisão baseada no processo [...] é compatível com a democracia”, ao contrário da “revisão baseada na substância”; e de que “o Tribunal [...] erra quando cita uma valor substantivo putativamente fundamental”, são erradas de diferentes maneiras. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 81.

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Alguns autores afirmavam que a Corte limita a si própria e suas intervenções na vontade da maioria por medo de sua “destruição”. Contudo, a história constitucional demonstrou que essa ameaça não se concretizou, e o poder das cortes, ao invés de diminuir, só cresceu nos últimos duzentos anos.

A fim de evitar essa posição extremada (de que o juiz pode aplicar seus próprios valores), de tão poucos adeptos, segundo o autor, a Corte, em sua atuação, empreende “[...] uma busca objetiva e neutra; busca-se algo que está lá fora, à espera de ser descoberto: seja o direito natural, por exemplo, seja um suposto consenso de valores dos Estados Unidos de ontem, de hoje ou de amanha”.

O direito natural

À época da ratificação da Constituição americana, e durante o período de produção da Décima Quarta Emenda, havia um grande número de adeptos a um sistema de direito natural. A teoria jusnaturalista, portanto, parece ser candidata ao papel de fonte de valores para dar conteúdo às disposições abertas da Constituição.

Entretanto, todas as teorias jusnaturalistas caracterizam-se por uma falta de clareza, que é tanto uma vantagem quanto uma desvantagem. É uma vantagem no sentido de que seus adeptos podem invocar o direito natural para defender o que quiserem. É uma desvantagem porque todos sabem disso.

Todas as inúmeras tentativas de construir uma teoria moral e política sobre o conceito de uma natureza humana universal falharam: ou os fins supostamente universais são muito poucos ou demasiado abstratos para dar conteúdo à ideia do bem, ou são muito numerosos e concretos para serem verdadeiramente universais.

A sociedade não aceita a noção de um conjunto de princípios morais objetivamente válidos e passíveis de serem descobertos; pelo menos, não aceita um conjunto que sirva para derrubar as decisões de nossos representantes eleitos – com razão, segundo o autor.

Princípios neutros

Segundo defendido por Herbert Wechsler, em 1959, a Corte deve agir com base em princípios que transcendem o caso em questão, tratando casos semelhantes de maneira semelhante (princípios neutros).

Os princípios neutros deixaram de ser meros requisitos para a boa conduta judicial e tornaram-se, para muitos, uma condição necessária e suficiente para a legitimidade do processo decisório em causas constitucionais. A formulação de um

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princípio neutro seria uma garantia de que a Corte está se comportando de maneira adequada (agindo sempre com base nos mesmos princípios).

Para ser declarado “neutro”, além de ser aplicado em todos os casos, o princípio também deve ter algum grau de generalidade. Mas as exigências de generalidade de princípio e neutralidade de aplicação não fornecem uma fonte de conteúdo substantivo, e os princípios neutros, portanto, apresentam-se como princípios vazios.

A razão

Tecnicamente, a razão por si só não diz nada: simplesmente liga premissas a conclusões. Assim, para ser válida, a ideia precisa conter não só a forma de raciocínio, mas também as premissas de que parte.

As premissas básicas são que a filosofia moral é o objeto do direito constitucional; que existe uma maneira correta de praticar essa filosofia e que os juízes são mais aptos que os outros para identificá-la e aplicá-la.

A história refuta a tese de que o Judiciário é o melhor órgão para falar em nome dos princípios morais.

Entretanto, o erro mais grave é supor que existe algo chamado “método da filosofia moral”, com cujas linhas-mestras todos os especialistas concordem, e segundo o qual haveria apenas dois tipos de raciocínio: um seguro e o outro não. Simplesmente não existe um único método de filosofia moral.

Deixar sua escolha ao Judiciário é igualmente um erro, pois a experiência demonstra que os juízes tenderão a considerar fundamentais os valores dos profissionais liberais da alta classe média, classe da qual se originam a maioria dos juristas e filósofos.

A objeção à razão como fonte dos valores fundamentais define-se melhor quando formulada como uma alternativa: ou ela é tão vazia quanto os princípios neutros ou é tão elitista e antidemocrática que deveria ser desconsiderada imediatamente. A sociedade não tomou a decisão de facultar o sufrágio universal para depois “dar meia volta” e sobrepor às decisões populares os valores dos juristas de primeiro escalão.

A tradição

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É um repositório óbvio em que buscar valores fundamentais. O primeiro problema é que a tradição pode ser invocada para dar apoio a qualquer coisa. Portanto, a tradição não gera uma resposta (suficientemente inequívoca) para justificar a reforma de uma decisão tomada por um órgão legislativo.

Além disso, ela é evidentemente antidemocrática: é difícil conciliar com a teoria de governo atual a hipótese de que as maiorias do passado (supondo que de fato eram maiorias) devem controlar a maioria de hoje.

Consenso

Há doutrina a afirmar que o consenso foge às falhas anteriores, primeiro por ser uma ideia completa, e segundo por não ser antidemocrática. O autor, contudo, discorda.

Segundo ele, não há consenso algum a ser descoberto e conhecido (e, caso apareça algum, o fato apenas reflete a dominação de alguns por outros). Ainda que houvesse, ele não seria passível de ser descoberto pela Corte.

Além disso, o consenso também pode apoiar qualquer posicionamento. O legislativo, contudo, é mais bem situado para refletir um suposto consenso.

São duas as razões possíveis para que se busque no consenso o conteúdo das disposições abertas da Constituição: a) proteger os direitos da maioria, para que a legislação realmente reflita os valores populares; ou b) proteger o direito dos indivíduos e das minorias contra as ações da maioria. A primeira é mais bem alcançada pela atuação legislativa. Já a segunda é contraditória, pois é absurdo que a minoria busque sua defesa contra os abusos da maioria nas próprias posições da maioria.

Prevendo o progresso

Não há razão para supor que os juízes são qualificados para prever o desenvolvimento melhor do que o Legislativo. Ademais, sua intervenção, neste caso, é antidemocrática. A imposição de valores supostamente majoritários é maneira insensata de proteger as minorias, e tomar como referência uma maioria futura não faz com que isso tenha sentido. Por fim, é possível que a Corte não busque os valores do futuro, mas imponha os seus valores sobre o futuro.

A odisseia de Alexander Bickel

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Não poderia haver resposta certa para uma pergunta errada: “Que valores, adequadamente neutros e gerais, são suficientemente importantes, ou fundamentais, ou seja o que for, para serem preferidos pela Corte em face de outros valores afirmados pelos atos legislativos?”.

Bickel percebeu que a Corte não deve impor seus próprios valores, e que não há um conjunto de valores baseados em direito natural que responda a essa pergunta. Viu também que a invocação dos princípios neutros não dá pistas sobre quais são esses princípios, e que a razão necessitava de algo mais. A tradição olhava muito para o passado, e o consenso ou não existe, ou não é de fato reconhecível.

Dada a ausência de uma resposta certa, Bickel passou a considerar devíamos impor nossos próprios valores, resposta essa fruto do desespero advindo da impossibilidade de se responder a uma pergunta errada.

4. CONTROLANDO O PROCESSO DE REPRESENTAÇÃO: A CORTE COMO ÁRBITRO

Uma abordagem interpretacionista (ao menos uma que aborde as disposições constitucionais como unidades contidas em si mesmas) mostra-se incapaz de se manter fiel ao espírito de certas disposições. Por outro lado, quando se busca uma fonte externa de valores para preencher a textura aberta da Constituição, nada se encontra. Essas, contudo, não são as únicas opções.

A Corte de Warren9, apesar de não ser a primeira a reconhecer o vínculo entre a atividade política e o funcionamento correto do processo democrático, foi a primeira a agir seriamente sob esse pressuposto. Segundo o autor, foi a primeira a tocar no assunto da qualificação dos eleitores e da má distribuição proporcional do número de representantes. Suas decisões, evidentemente intervencionistas, contudo, não foram movidas pelo desejo de impor certos valores substantivos que a Corte considerava importantes ou fundamentais, mas sim pelo desejo de assegurar que o processo político estivesse aberto aos adeptos de todos os pontos de vista, em condições de relativa igualdade.

Além disso, em questões relativas à igualdade, a Corte atuava não de modo a dizer que o direito X é mais importante ou fundamental que outro, mas sim de modo que, se concedido X para um grupo de pessoas, esse mesmo direito fosse concedido a todos os outros, ou então de modo a exigir uma boa explicação para a sua recusa.

A nota de rodapé a Carolene Products

9 Justice Warren foi presidente da Suprema Corte por algum tempo. É costume referir-se à corte por meio da indicação de seu presidente, por isso a menção à “Corte de Warren”.

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A nota de rodapé nº 4, do caso United States vs. Carolene Products (1938), representa, em boa medida, o modo de agir da Corte de Warren:

A presunção de constitucionalidade pode ter margem mais estreita quando a legislação parece, à primeira vista, estar compreendida numa proibição específica da Constituição, tal como as dez primeiras emendas, consideradas igualmente específicas quando entendidas como contidas na Décima Quarta Emenda...

Não será necessário, agora, considerar se uma lei que restringe aqueles processos políticos dos quais, via de regra, pode-se esperar que provoquem a revogação das leis indesejáveis, deverá estar sujeita a uma análise judicial mais rigorosa (no contexto das proibições gerais da Décima Quarta Emenda) do que a maioria dos outros tipos de legislação...

Também não será necessário procurar saber se considerações do mesmo naipe devem influenciar o controle de leis direcionadas a certas minorias religiosas (...) ou de nacionalidade (...) ou raciais (...); se o preconceito contra minorias separadas e isoladas (discrete and insular minorities) pode ser uma condição especial que tende a restringir seriamente o funcionamento dos processos políticos em que costumamos nos basear para proteger as minorias, e que pode exigir, nessa mesma medida, um exame judicial mais minucioso.

O primeiro parágrafo diz que a Corte deve aplicar as disposições “específicas” da Constituição; o segundo afirma que é função da corte manter a máquina do governo democrático funcionando como deveria, garantindo que os canais de participação e comunicação permaneçam abertos; e o terceiro diz que a Corte deve se preocupar com a atuação das maiorias sobre as minorias, em especial as minorias religiosas, nacionais e raciais. Os parágrafos segundo e terceiro são mais interessantes, e a compatibilidade de sua aplicação conjunta é objeto das análises que se seguem.

O governo representativo

Os representantes do povo são também o povo. Os constituintes deram-se conta de que era necessária “alguma força que se oponha à tendência insidiosa do poder de separar... os governantes dos governados”: a principal força concebida com essa finalidade foi o voto.

O que o sistema ainda não assegura é a proteção dos interesses da minoria em face da maioria.

O documento de 1789 e 1791 buscava, por meio de duas estratégias, proteger os interesses das minorias contra o poder potencialmente destrutivo da maioria: a) a

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estratégia da lista (que arrolava atos que não podem praticados contra ninguém – a Declaração de Direitos) e b) a estratégia do pluralismo (que busca estruturar o governo de modo que se garanta às vozes mais diversas e se impeça o predomínio de qualquer grupo).

Entretanto, nenhuma lista definida de Direitos pode abarcar todas as maneiras pelas quais uma maioria pode dominar uma minoria, e nem sempre se pode ter apoio nos mecanismos informais e mais formais de pluralismo.

Assim, a teoria da representação foi ampliada para assegurar não apenas os interesses da maioria do eleitorado, mas também que os representantes não se separassem dos interesses das diversas minorias. Os membros escolhidos, portanto, eram representantes de ambos os lados (a maioria e a minoria) – a chamada representação virtual. Logo, os representantes devem representar a totalidade do eleitorado, sem dar, de maneira arbitrária, um tratamento relativamente adverso às minorias menos favorecidas.

O autor afirma que no restante do Capítulo apresentará três argumentos em favor de uma abordagem de controle judicial de constitucionalidade que seja orientada pela noção de participação e favoreça a representatividade: a) a preservação dos valores fundamentais não é uma tarefa própria da Constituição e do direito constitucional norte-americano; b) uma abordagem do controle judicial de constitucionalidade que promova a representação não é incompatível com os pressupostos implícitos do sistema norte-americano de democracia representativa; e c) tal abordagem envolve tarefas para as quais os Tribunais estão mais aptos a executar do que as autoridades políticas10.

10 “Apoiado em tal compreensão procedimentalista da constituição, Ely deseja fundamentar “judicial self-restraint”. Em sua opinião, o tribunal constitucional só pode conservar sua imparcialidade, se resistir à tentação de preencher seu espaço e interpretação com juízos de valores morais. O ceticismo de Ely discorda, não somente de uma jurisprudência de valores, como também de uma interpretação dirigida por princípios, no sentido da interpretação construtiva de Dworkin. Ora, tal atitude não é consequente, na medida em que Ely tem que pressupor a validade de princípios e recomendar ao tribunal uma orientação por princípios procedimentais dotados de conteúdo normativo. O próprio conceito do procedimento democrático apoia-se num princípio de justiça, no sentido do igual respeito por todos: [...] Porém disso não resulta, de forma nenhuma, que os princípios que fundamentam a força de legitimação da organização e do procedimento da formação democrática da vontade não sejam suficientemente informativos devido à sua natureza procedimental e que tenham de ser completados através de uma teoria substancial dos direitos. Tampouco se pode deduzir daí que tenham desaparecido outros argumentos para um enfoque cético em relação ao tribunal.

O ceticismo de Ely volta-se, com razão, contra uma compreensão paternalista do controle jurisdicional da constitucionalidade, a qual se alimenta de uma desconfiança amplamente difundida entre os juristas contra a irracionalidade de um legislador que depende de lutas de poder e de votações emocionais da maioria. Segundo essa interpretação, uma jurisdição juridicamente criativa do tribunal constitucional justificar-se-ia a partir de seu distanciamento da política, bem como a partir da racionalidade superior de seus discursos profissionais: [...] De fato, os discursos jurídicos podem pretender para si mesmos uma elevada suposição de racionalidade, porque discursos de aplicação são especializados em questões de aplicação de normas, sendo por isso institucionalizados no quadro da clássica distribuição de papéis entre partidos e um terceiro imparcial. Pela mesma razão, porém, eles

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A natureza da Constituição norte-americana

A finalidade da Constituição norte-americana não foi estabelecer uma ideologia dominante, e sim garantir uma estrutura duradoura para a contínua resolução das disputas entre diferentes cursos de ação política. A Constituição original tratava principalmente de questões procedimentais e estruturais, e não de identificar e preservar valores substantivos específicos. A mesma linha de ação pode ser vista na maioria das emendas constitucionais.

Como exceção, um grande objetivo (e valor) da Constituição americana sempre foi preservar a liberdade. A questão que interessa saber é como alcançar tal meta. As principais respostas a essa pergunta são dadas por um conjunto amplo de proteções procedimentais e por um esquema ainda mais elaborado que visa assegurar que o processo de decisão das escolhas substantivas estará aberto a todos, em condições de igualdade, e os responsáveis pelas decisões cumprirão o dever de levar em consideração os interesses de todos os que serão afetados por suas deliberações.

O acesso em si, todavia, nem sempre é suficiente. A estratégia, portanto, não foi a de fixar um conjunto de direitos substanciais. Em vez disso, a Constituição pressupõe que a maioria jamais ameaçará seus próprios direitos; e busca assegurar que essa maioria não trate os outros grupos de modo sistematicamente pior do que trata a si mesma. Para tanto, a Constituição estrutura o processo de decisão em todos os níveis para assegurar: a) que os interesses de todos serão representados (efetiva ou virtualmente) no momento da decisão substantiva; e b) que os processos de aplicação das leis aos casos não sejam manipulados de modo que reintroduzam na prática uma discriminação que na teoria não é permitida.

A Constituição norte-americana, portanto, é e sempre foi uma Constituição propriamente dita, cuja preocupação principal são as questões constitutivas. “Como carta constitutiva do Estado, a Constituição não deve prescrever resultados legítimos, mas sim processos legítimos - isso para que [...] ela possa servir a várias gerações em diferentes eras”.

Democracia e desconfiança

não podem substituir discursos políticos, que são talhados para a fundamentação de normas e determinações de objetivos, exigindo a inclusão de todos os atingidos. Tanto mais a racionalidade inerente ao processo político necessita de esclarecimento. O conceito básico de uma justiça procedimental da formação política da opinião e da vontade exige uma teoria da democracia, implícita em Ely, cujas feições, no entanto, se revelam cada vez mais convencionais”. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade I. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 328/330.

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Ambas as correntes anteriormente indicadas (a que toma como ponto de partida os contornos gerais da Constituição, e a que busca resultados substantivos interna ou externamente) devem ser vistas com ressalvas. Os dois argumentos seguintes são mais importantes e coerentes com o sistema norte-americano.

Segundo o autor, o primeiro é óbvio: ao contrário de uma abordagem que visa à imposição judicial de “valores fundamentais”, a tese que enfatiza a representatividade não é incompatível com o sistema norte-americano de democracia representativa. Ela admite que é inaceitável afirmar que juízes nomeados e com cargo vitalício refletem melhor os valores convencionais do que os representantes eleitos11; ao invés, apoia que se policiem os mecanismos através dos quais o sistema busca assegurar que nossos representantes irão de fato nos representar12.

Além disso, a abordagem que reforça a representatividade dá aos juízes um papel que eles são plenamente capazes de desempenhar.

A linha de decisão judicial recomendada pelo autor é análoga ao que seria, nos assuntos econômicos, uma orientação “antitruste”, e não “reguladora”: em vez de ditar resultados substantivos, ela intervém apenas quando o “mercado” está funcionando mal de modo sistêmico. A Corte, portanto, age como um árbitro de futebol: o juiz deve intervir somente quando um time obtém uma vantagem injusta, não quando o time “errado” faz gol13.11 “Mas isso significa que os juízes encarregados de identificar e proteger a melhor concepção de democracia não podem evitar de tomar exatamente os tipos de decisões de moralidade política que Ely insiste em que evitem: decisões sobre direitos substantivos individuais. Os juízes podem acreditar que a resposta utilitarista à questão dos direitos individuais é a correta – que as pessoas não têm nenhum direito. Mas essa é uma decisão substantiva de moralidade política. E outros juízes discordarão. Se o fizerem, então a sugestão de que devem defender a melhor concepção de democracia não os livrará de ter de considerar que direitos as pessoas têm”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 92.12 “O ideal abstrato de democracia, em si mesmo, não oferece nenhuma sustentação maior para uma doutrina jurídica da revisão judicial baseada no processo que para uma baseada nos resultados. [...] Ely insiste em que o papel adequado do Supremo Tribunal é policiar o processo da democracia, não rever as decisões substantivas tomadas por meio desses processos. Isso poderia ser persuasivo se a democracia fosse um conceito político preciso, de modo que não pudesse haver lugar para discordância quanto a ser ou não democrático um processo. Ou se a experiência norte-americana definisse unicamente alguma concepção particular de democracia, ou se o povo norte-americano concordasse agora com uma única concepção. Mas nada disso é verdade, como Ely reconhece. Deve-ser ler seu argumento, portanto, como supondo que uma concepção de democracia é a concepção certa – certa como questão de moralidade política ‘objetiva’ – e que a tarefa do Tribunal é identificar e proteger essa concepção certa. Está longe de ser claro, porém, que essa suposição seja compatível com o argumento de Ely contra o que ele chama de teorias de revisão constitucional de ‘valor fundamental’. Ele diz, como parte desse argumento, que não pode haver direitos políticos substantivos a serem descobertos pelo Tribunal porque não há nenhum consenso quanto a quais direitos políticos substantivos as pessoas têm, ou mesmo se elas têm algum. Ele pode supor que há uma resposta correta para a questão do que é realmente a democracia, embora não haja nenhum consenso quanto ao que é essa resposta?”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 82.13 “O argumento de Ely de que o Tribunal pode evitar questões de substância apoiando suas decisões na melhor concepção de democracia seria então auto-anulador. Pelo menos uma vez Ely reconhece (como deve e tem de reconhecer) que o Tribunal precisa definir qual é para si a melhor concepção de

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Em uma democracia representativa, as determinações de valores devem ser realizadas pelos representantes eleitos. Se a maioria os desaprovar, via de regra, deve destituí-los, ou não os reeleger, por meio do voto. O mau funcionamento ocorre quando (1) os incluídos obstruem os canais de mudança política para assegurar que continuem sendo incluídos e os excluídos permaneçam onde estão, ou (2) quando, embora a ninguém se negue explicitamente a voz e o voto, os representantes ligados à maioria efetiva sistematicamente põem em desvantagem alguma minoria, devido à mera hostilidade ou à recusa preconceituosa em reconhecer uma comunhão de interesses – e, portanto, negam à minoria a proteção que o sistema representativo fornece a outros grupos.

Segundo o autor, nossos representantes eleitos são as últimas pessoas a quem devemos confiar a identificação de qualquer dessas situações. Os juízes nomeados, no entanto, estão relativamente à margem do jogo político. Isso certamente os impede de terem acesso direto aos valores genuínos do povo. Por outro lado, permite-lhes avaliar objetivamente se houve bloqueio nos canais de mudança ou abuso do poder da maioria.

5. DESBLOQUEANDO OS CANAIS DA MUDANÇA POLÍTICA

São os tribunais que devem policiar as restrições à liberdade de expressão e a outras atividades políticas, porque não se pode confiar que os representantes eleitos o farão: em geral, os incluídos só querem que os excluídos continuem como tal14. E isso significa que os incluídos não devem ter poder para restringir gratuitamente a expressão. Isso também significa que eles não devem ter poder para restringir o direito de expressão por um motivo frágil, que na verdade é usado como mero pretexto.

Para tanto, e tendo em vista o contexto da Primeira Emenda (freedom of speech), que busca a maior amplitude possível à liberdade de expressão, o autor sugere a aplicação complementar de dois métodos que são vistos, pela doutrina e jurisprudência norte-americana, como excludentes. Para o meio de transmissão da mensagem, ele sugere a aplicação da “ameaça específica”, que vai se preocupar com o meio ilícito de divulgação, e não com o conteúdo da mensagem em si. Já para o

democracia e, assim, fazer novos julgamentos políticos de algum tipo”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 84.14 “Poderíamos testar essa intuição inicial estudando os argumentos que o próprio Ely oferece a favor de uma versão particular de democracia. Ele supõe que a melhor concepção de democracia inclui um esquema para a proteção da livre expressão, que ele descreve como manter abertos os canais de mudança política. Infelizmente, embora Ely escreva com grande interesse e vigor sobre a liberdade de expressão, o que ele diz é com o propósito de oferecer conselhos sobre como o Tribunal deve decidir casos de livre expressão. Ely supõe, em vez de demonstrar, que seus conselhos originam-se de considerações mais de processo que de substância. É assim? Ely pode efetivamente fornecer um argumento-insumo a favor da proposição de que a democracia deve incluir a livre expressão?”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 85/86.

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conteúdo, ele sugere a abordagem das “mensagens não protegidas”, categorias taxativas de mensagens que, pelo conteúdo, não merecem a proteção da Emenda.

Em épocas de paz e de normalidade, esse método seria suficiente para dar conta da liberdade de expressão. O problema ocorreria nos períodos de anormalidade.

O direito ao voto:

Segundo o autor, o controle judicial deve se ocupar basicamente de eliminar as obstruções ao processo democrático, e a negação do voto parece ser a mais representativa das obstruções.

Uma teoria adequada ao tratamento dos casos que envolvem o voto deveria dizer que esses direitos (1) são essenciais para o processo democrático e (2) cujas dimensões não podem ser deixadas somente a cargo dos representantes eleitos, que têm um interesse na manutenção do status quo. Em tais casos, segundo o voto do Justice Warren no caso Kramer vs. Union Free School District, a presunção de constitucionalidade da lei cai por terra.

O tipo de controle de constitucionalidade apropriado nos casos que envolvem as qualificações do eleitor tem parentesco com o que é apropriado no contexto da Primeira Emenda. Não podemos deixar que os “incluídos” decidam quem deve ficar de fora – portanto, é obrigação dos tribunais assegurar não apenas que a ninguém se negue sem motivo seu direito de voto, mas também que, quando há um motivo, ele seja bastante convincente. Esse argumento vale tanto para defender o direito ao voto como o de valor igual ao voto (one man, one vote).

Rumo a um processo legislativo transparente

A proteção do processo democrático de escolha popular pouco significará se não soubermos o que os representantes eleitos estão fazendo. Identificar os objetivos legislativos para que os eleitores possam melhor reagir a eles parece louvável e, além disso, é uma preocupação constitucional legítima.

O autor não acredita que possa ser desenvolvido um método praticável e útil para obrigar os representantes a formular explicitamente seus objetivos. Segundo ele, o ingrediente mais importante dessa busca (dos objetivos) deve ser a terminologia concreta da lei ou do dispositivo em questão, interpretados à luz dos seus efeitos possíveis e de uma saudável dose de bom senso, e não à luz de sua história legislativa, embora ela possa ajudar em algumas ocasiões.

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Além disso, pior do que não obter do Legislativo objetivos explícitos buscados pela lei e pelas distinções que ela suporta é não obter lei ou distinção nenhuma, escapando o legislativo da responsabilização por seus atos e delegando a tarefa a outras autoridades que não respondem politicamente pelos seus atos. Assim, talvez a melhor maneira de controlar o Legislativo seja exigir que ele legisle de fato.

Para que o próprio Legislativo se encarregue de legislar

Boa parte da legislação é deixada nas mãos de legiões de membros não eleitos do Executivo, cuja tarefa passa a ser dar significado operativo às amplas delegações legislativas. Isso é errado, não porque não é “como deveria ser”, mas porque é antidemocrático, já que, recusando-se a legislar, nossos legisladores escapam da responsabilização por seus atos, o que é essencial a uma república democrática.

Os Tribunais deveriam assegurar não apenas que os administradores acatem as orientações vigentes da política legislativa, mas também que tais orientações sejam efetivamente fornecidas pelos legisladores.

Assim, o problema talvez não esteja na tendência de tomar decisões politicamente controversas sem explicar os motivos ao povo (ponto anterior), mas sim na tendência de não tomar decisões politicamente controversas, deixando-as, em vez disso, a cargo de outros, pessoas não eleitas nem controladas politicamente.

6. FACILITANDO A REPRESENTAÇÃO DAS MINORIAS

Alguns autores propõem que o papel da Corte na proteção das minorias consiste apenas em remover as barreiras à participação delas no processo político. Entretanto, o princípio da representação exige mais que o simples direito a voz e voto. Por mais aberto que seja o processo, aqueles que obtêm maior número de votos têm condições de garantir vantagens para si mesmos em detrimento de outros, ou de recusar-se a levar em conta os interesses de outras pessoas e grupos.

A tarefa da Corte nesses casos é a de observar o mundo como ele é e perguntar se aquele direito está sendo efetivamente restringido; e, em caso afirmativo, considerar quais razões podem ser aduzidas em favor dessa restrição, sem atentar para sua verdadeira causa.

Motivação legislativa (e administrativa):

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O mesmo ato pode ser constitucional ou inconstitucional dependendo dos motivos pelos quais foi efetuado. Se certas pessoas forem privadas de determinado direito por motivos de raça, religião ou política, isso será incompatível com as normas constitucionais. No momento em que tal princípio de seleção foi adotado, o sistema passou a funcionar mal: a seleção negou o devido processo. Nesses casos, a solução é rejeitar o produto do processo e começar tudo de novo.

Em essência, segundo o autor, no que tange ao resultado do devido processo, o fato de algo não ser um direito constitucional não faz com que essa coisa não possa ser distribuída de maneiras que violem a Constituição. No entanto, quando aquilo que é negado é algo constitucional, as razões por que foi negado absolutamente não vêm ao caso. Seria uma tragédia se a Corte passasse a entender que a negação de um direito constitucional não é importante se não for intencional.

Classificação suspeita:

A teoria das classificações suspeitas revela-se como um mecanismo que serve à investigação da constitucionalidade das motivações, eis que uma motivação inconstitucional nunca poderá ser utilizada para fundamentar uma classificação.

Pela teoria da classificação suspeita, a Corte exige, para a constitucionalidade da classificação, que a finalidade apontada seja extremamente relevante, e que seja demonstrado o perfeito encaixe da classificação com a finalidade. Esse processo, contudo, não deve ser feito como um conjunto de dois momentos distintos, mas como um pacote, de modo que sirva para expandir a busca inicial, baseada na desconfiança em relação à classificação e na verificação da relevância da meta e da compatibilidade da classificação.

Neste caso, o que se sugere não é uma análise sobre a existência de uma hostilidade generalizada e injustificada contra uma minoria, mas simplesmente a análise sobre a existência de uma hostilidade generalizada. Do contrário, o Judiciário acabaria entrando no mérito da hostilidade, e necessariamente teria de se basear em direitos substantivos para decidir.

Alguns pensamentos a respeito da Ação Afirmativa

Não há nada de constitucionalmente suspeito no fato de uma maioria discriminar a si mesma, mas nunca devemos relaxar a vigilância: às vezes, o que se

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pretende com essa aparente autodiscriminação é algo diferente (e, talvez, inconstitucional).

“Os direitos processuais” à moda das minorias

Diversos direitos não mencionados na Constituição devem receber proteção constitucional porque cumprem o papel de deixar desimpedidos os canais de mudanças políticas.

Todo sistema discricionário de seleção traz consigo o potencial para discriminação preconceituosa; isso não ocorre apenas quando o caso se encaixa em uma das conhecidas classificações habituais. Esses sistemas discricionários equivalem a lacunas de representação, uma vez que os legisladores, recusando-se efetivamente a legislar, criam um sistema de proteção para assegurar que eles e os que são semelhantes não estejam sujeitos às leis.

Assim, a doutrina da não delegação serve não apenas para assegurar que as decisões sejam tomadas de modo democrático, mas também para reduzir a probabilidade de que, na prática, um conjunto diferente de regras seja aplicado àqueles que têm menos poder.

CONCLUSÃO

A elaboração de uma teoria de controle de constitucionalidade que saliente a importância da representação pode se dar de várias maneiras. Nos capítulos 5 e 6, foi apresentada apenas uma15. Mas a teoria geral restringe o controle de 15 “Tomamos ciência de que a força legitimadora que habita na racionalidade dos processos jurídicos comunica-se ao poder legal, não somente através das normas de procedimento da decisão judicial, mas também, em primeira linha, através do processo de legislação democrática. À primeira vista, não parece plausível que o processo parlamentar contenha um núcleo racional no sentido prático-moral. Pois parece que, nele, a busca de poder político e a concorrência entre interesses conflitantes é tão central, que exclui uma reconstrução crítica das controvérsias parlamentares segundo o modelo da negociação equitativa de compromissos, ou da formação discursiva da vontade, permitindo apenas uma análise empírica. Neste ponto, eu não estou em condições de oferecer um modelo satisfatório; no entanto, gostaria de chamar a atenção para as doutrinas constitucionais que seguem um princípio reconstrutivo crítico [Ely]. Nelas, as regras da maioria, as normas do processo parlamentar, o modo de eleição, etc., são analisados tendo em vista o modo como processos de decisão parlamentar podem assegurar a consideração simétrica de todos os interesses envolvidos e de todos os aspectos relevantes de uma matéria sujeita a regulamentação. Eu vislumbro uma fraqueza nestas teorias, não no princípio que se orienta pelo processo, mas no fato de elas desenvolverem seus pontos de vista normativos fora de uma lógica da argumentação moral e fora das condições comunicativas que possibilitam uma formação discursiva da vontade. Além do mais, a formação da vontade intraparlamentar constitui apenas um segmento estreito da vida pública. A qualidade racional da legislação política não depende apenas do modo como maiorias eleitas e minorias protegidas trabalham no interior dos parlamentos. Ela depende também do nível de participação e de escolaridade, do grau de informação e da nitidez de articulação de questões polêmicas, em resumo: do caráter discursivo da formação não institucionalizada da vontade na

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constitucionalidade (sob os dispositivos de interpretação aberta da Constituição) na medida em que insiste que esse controle só pode tratar de questões de participação, e não dos méritos substantivos das decisões impugnadas16.

O direito constitucional existe para aquelas situações em que o governo representativo e os processos democráticos se tornam suspeitos, não para aquelas em que sabemos que eles são dignos de confiança17.

esfera pública política. A qualidade da vida pública é determinada, em geral, pelas chances concretas abertas pela esfera pública política através de seus meios e estruturas. Todavia, o crescimento rápido da complexidade social levanta uma dúvida acerca dessas teorias: parece que elas são por demais ingênuas! Quem presta atenção à crítica das escolas do realismo jurídico, radicalizada pelos Critical Legal Studies, tem a impressão de que toda a pesquisa normativa que leva o Estado democrático de direito a sério, e o analisa numa perspectiva interna, recai num idealismo impotente”. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade II. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 219/221.16 “Mas seria um erro supor (como faz Ely) que os juízes poderiam escolher ou aplicar essa teoria da revisão judicial sem deparar com questões que são, segundo qualquer descrição, questões substantivas de moralidade política. Os juízes devem decidir que o utilitarismo puro é errado, por exemplo, e que as pessoas realmente têm direitos que estão acima da maximização da utilizada irrestrita. Essa não é uma decisão processual do tipo que, segundo Ely, os juízes e advogados tomam melhor. Ele afirma que a democracia exige que a maioria decida questões importantes de princípio político, e que a democracia, portanto, é comprometida quando essas questões são deixadas aos juízes. Se isso for correto, então os próprios argumentos de Ely condenam a única teoria de “processo” da revisão judicial disponível, a própria teoria que ele mesmo oferece, se bem interpretado. Se queremos uma teoria da revisão judicial que produza resultados aceitáveis – isso permitiria que o Tribunal eliminasse leis racialmente discriminatórias mesmo que elas beneficiassem a comunidade como um todo, contando os interesses de cada um como um -, não podemos nos valer da ideia de que o Supremo Tribunal deve estar preocupado com o processo enquanto distinto da substância. A única versão aceitável da própria teoria de “processo” faz o processo correto – o processo que o Tribunal deve proteger – depender de se decidir que direitos as pessoas têm ou não. Assim, faço a objeção à caracterização que Ely oferece de sua própria teoria. Na opinião dele, ela permite aos juízes evitar questões de substância concernentes à moralidade política. Mas faz isso apenas porque a própria teoria decide essas questões, e os juízes somente podem aceitar a teoria se aceitam as decisões de substância encerradas nela”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 95/96.17 Para Dworkin, a visão de Ely só pode ser enquadrada como uma forma de ceticismo interno ou externo. Em razão disso, ele afirma que o autor é adepto do “passivismo”, corrente segundo a qual “os juízes ‘passivos’ [...] mostram grande deferência para com as decisões de outros poderes do Estado, o que é uma qualidade do estadista, enquanto os “ativos” declaram essas decisões inconstitucionais sempre que as desaprovam, o que é tirania”. DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 441/453.