decio de almeida e o beco do teatro
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REVISTA USP, So Paulo, n.45, p. 71-73, maro/maio 2000 71
FLVIO AGUIAR
uando se aposentou o professor
Decio de Almeida Prado o Pro-
fessor Decio, como era costume
cham-lo, incorporando a funo
ao nome deu-me de presente um
azulejo de estilo portugus. O azu-
lejo estava (est at hoje) enquadrado numa
moldura de madeira simples, escura, s-
bria, o que faz dele uma verdadeira placa.
Comprara a pea em So Lus do Mara-
nho ou, pelo menos, de l era sua proce-
dncia. Nela, lia-se (l-se), em letra ma-
nuscrita, azul: Beco do Theatro, assim, com
Th. Era um presente pessoal e no era: era
um legado, o sinal de uma herana. Duran-
te anos compartilhramos a mesma sala, no
Bloco C do Crusp, desde que, a convite
seu, comecei primeiro a acompanh-lo, de-
pois a ter minhas prprias turmas nos cur-
sos de Histria do Teatro na disciplina de
Literatura Brasileira.
Quando tudo isso comeou, o curso de
Letras alojava-se nos Barracos como
eram chamados onde hoje funciona o Ins-
tituto de Psicologia. A Faculdade de Filoso-
fia, recm-desalojada de sua sede (reduto,
trincheira, baluarte) na Rua Maria Antnia,
fora distribuda de improviso em diferentes
prdios da Cidade Universitria. Para as Le-
FLVIO AGUIAR professor de LiteraturaBrasileira e diretor doCentro ngel Rama daFFLCH-USP.
We few, we happy few,
we band of brothers
(William Shakespeare,
Henry.the Fifth, Ato IV,
Cena III, Linha 60).
Decio de Almeida
Prado e o Beco do
Teatro
q tras couberam aqueles barracos que deve-riam ser (dizia-se) da Veterinria.Neles tive a felicidade de conhecer oProfessor Decio. Primeiro como aluno. Eleentrava na sala, empertigado mas acolhe-
dor (ns alunos dizamos que ele vestia o
cabide junto com o palet). Depunha as
folhas onde preparara a aula sobre a mesa.
Invariavelmente eram laudas de jornal, da-
quelas de papel amarelado com cabealho
e riscas verticais: ele utilizava o verso. E
logo ia nos encantando com suas histrias,
anlises e comentrios sobre Martins Pena,
Alencar, Gonalves Dias, Joo Caetano e
tantos outros autores, intrpretes e momen-
tos do teatro brasileiro. O Professor Decio
dava aula de manh e noite. Nas noites de
inverno vestia um sobretudo longo, de l
cinza e nunca, em aula, dispensava a grava-
ta. Para ns, alunos barbudos, cabeludos,
que fazamos do desalinho uma profisso
de f e do panfleto um estilo, ele era uma
lio de sbria elegncia. Nem sempre re-
conhecida; mas que era, era.
O Professor Decio convidou-me para
acompanh-lo em Literatura Brasileira em
1972, quando se multiplicaram as vagas
dos cursos da faculdade. Trabalhei primei-
ro como monitor. Acompanhava suas au-
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las, dei um ou outro seminrio, e deveria
corrigir os trabalhos. Eram turmas imen-
sas. De manh havia, com os ouvintes, uns
500 alunos, embora apenas uns 300 ou
350 viessem de cada vez. noite, havia
quase 300. O Professor Decio entrava, com
a mesma fleugma de sempre, e logo aquela
bela voz dominava o marulho ou trovejar
que rolavam por aquele lago agitado. Os
rudos iam se acabando, tudo se aquietava,
e a voz do Professor caminhava soberana
sobre aquele oceano de alunos. Desculpe-
me, leitor ou leitora. As imagens podem
parecer rebarbativas. Mas era assim que eu
o via, assim que eu lembro.
Depois vieram os anos de convvio mais
estreito, em que fomos, digamos assim, co-
legas: eu, discpulo; ele, mestre. Com o pas-
sar do tempo o Professor convidou-me gen-
tilmente a deixar de cham-lo de senhor,
quando me dirigia a ele, e que o chamasse de
voc. Comecei a cham-lo assim. Isso
durou uns trs meses. Um mal-estar foi cres-
cendo dentro de mim, at o dia em que a
coisa estourou. Cheguei para ele (nesse tem-
po os cursos de Letras j tinham se desloca-
do para o Crusp, transformados em exrcito
de ocupao para impedir a volta dos estu-
dantes) e desabafei: Olhe, Professor, no
d. No consigo chamar o senhor de voc.
Para mim o senhor ser sempre o senhor.
Podemos at ficar amigos, como gostaria.
Mas nunca vou conseguir deixar de chamar
o senhor de senhor. Ele riu demais da con-
ta. E ficamos amigos: eu, voc; ou o Flvio;
ele, o senhor, ou o Professor.
Estivemos juntos em diferentes circuns-
tncias da vida acadmica. Ele fez parte
das minhas bancas de mestrado e doutora-
do. Depois, fiz parte de bancas de
orientandos seus. Fui seu aluno em cursos
de ps-graduao, dei seminrios a convite
dele inclusive no tempo em que deu cur-
sos na Escola de Comunicaes e Artes
(ECA). No vou discutir aqui nestas mal
traadas e emocionadas linhas sua inesti-
mvel e segura contribuio para os estu-
dos de teatro e cultura no Brasil, o que j foi
feito em outros espaos, homenagens e li-
vros (como em Dcio de Almeida Prado:
um Homem de Teatro, da Edusp/Fapesp).
S quero registrar que tive a felicidade (a
honra) de ir vendo essa contribuio nascer
em aulas, em programas e depois ir-se trans-
formando em livros que, no seu conjunto,
formam um panorama histrico da forma-
o e da presena do teatro brasileiro. O
Professor Decio firmou com outros da
sua gerao, claro a presena do teatro
brasileiro nos estudos acadmicos e para-
acadmicos no Brasil. Na USP, inegavel-
mente, ele criou o Beco do Teatro.
Dois dos aspectos mais caractersticos
de sua atividade, ao lado da elegncia que
j frisei, eram a familiaridade e o bom hu-
mor. Em 1981 eu estava no Canad, cum-
prindo programa de ps-doutoramento.
Alguns meses antes de voltar escrevi-lhe,
perguntando sobre que cursos eu teria de
dar na volta. Ele respondeu-me que j era
mesmo hora de retornar, pois estava fican-
do contaminado por aquela mania de pas
desenvolvido, de se pensar tudo com me-
ses de antecedncia. Eu devia lembrar-me
muito bem de que aqui eu s ficaria saben-
do destas coisas na vigsima quinta hora,
provavelmente na escada do avio, ao de-
sembarcar Outra vez fizemos uma reu-
nio social em sua casa, noite, entre os
professores de Literatura Brasileira. Toma-
mos uns vinhos, comemos uns queijos: o
Professor Decio cedeu a casa, o Professor
Castelo (Jos Aderaldo Castelo) providen-
ciou os vinhos. A reunio era muito agra-
dvel, mas um bocado formal penso que
mais devido s preocupaes dos profes-
sores jovens (entre eles eu) e acompanhan-
tes, de estarmos assim, informalmente, di-
ante de verdadeiras sumidades dos estudos
brasileiros. Mas aos poucos os professores
mais antigos foram saindo, at que ficaram
s a gerao dos novos e os anfitries: o
Professor Decio e dona Ruth, simpatia de
pessoa. J nos preparvamos para ir embo-
ra, no querendo abusar da boa-vontade dos
dois. Mas ao despedir o ltimo dos mais
antigos e voltar para a sala, o Professor
Decio j vinha com um brilho discretamente
maroto nos olhos: Agora que ficamos s
ns, os jovens, disse ele, vamos comear
a festa! Foi uma gargalhada s. E de fato,
ficamos por l mais um bom tempo, vendo
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fotos antigas e ouvindo o Professor Decio
cantar rias de peras de sua preferncia ao
lado de canonetas francesas algumas,
diga-se de passagem, bem picantes. To
alegre foi a noitada que o Professor permi-
tiu-se, ele que nunca bebia, tomar dois goles
de vinho tinto.
Para mim, tudo isso e mais alguma coisa
estavam naquele gesto de oferecer, como
um legado, aquele azulejo do Beco do
Theatro. No era, de fato, um presente s
para mim. Era um legado para a Universida-
de. Tanto que logo compartilhei o presente
com Joo Roberto Faria, ex-orientando do
Professor Decio, que foi contratado na vaga
por ele deixada. A placa nossa e da
nossa sala. Quando o curso de Letras veio
para seu prdio definitivo, a placa azulejada
veio junto, e hoje d, discretamente, nome
sala que dividimos, eu e Joo Roberto. A
ns agregaram-se os colegas Antonio Dimas
e Ndia Gotlib que, embora no viessem dos
estudos de teatro, consideraram-se incorpo-
rados ao Beco por filiao espiritual ao lega-
do do Professor Decio.
Depois que o Professor retirou-se da
vida acadmica (embora nunca tenha dei-
xado a Universidade, assumindo outras
funes, nem a pesquisa, continuando a
escrever artigos, livros) continuamos a pri-
var da nossa amizade. Eu ia v-lo na sua
casa, no Pacaembu, onde no poucas vezes
tomamos ch, como era de seu costume
oferecer s visitas. Ou ento nos vamos
em eventos, debates, homenagens e coisas
assim. Conversvamos sobre a universida-
de, poltica, literatura, teatro, televiso,
Brasil e tudo o mais. Amigo firme, oferecia
apoio em momentos difceis; discreto, dava
conselhos mas abstinha-se de julgamentos.
Hoje estou s, aqui na sala, diante da
placa de azulejos. Ndia se aposentou, Joo
Roberto est nos Estados Unidos, Dimas
deve estar trabalhando em casa. Um pen-
samento me acode: o Professor no est
mais entre ns, verdade. Mas eu diria
que ele no morreu, assim no sentido mais
bruto da palavra. Ele saiu de cena. E nos
deixou aqui no Beco, nos deixou o prprio
Beco, com seu legado mais ntimo, alm
de seus inestimveis estudos: elegncia,
sobriedade, firmeza, segurana, calor, afe-
to, dedicao, bom humor, e seu inesgot-
vel sorriso de acolhida.
decio
deci