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I Jornada Acadêmica Discente PPGMUS – Universidade de São Paulo – São Paulo – 2012 Da aperiodicidade à periodicidade: o primeiro processo de Modulations, de Gérard Grisey Daniel Paes de Barros Pinto Universidade de São Paulo – [email protected] Resumo: Este trabalho apresenta uma exposição analítica do primeiro processo envolvido na composição de Modulations (1987), quarta parte do ciclo Les Espaces acoustiques (1974-1985), de Gérard Grisey (1946-1998). Os exemplos são precedidos e acompanhados por considerações do compositor, referentes às ferramentas composicionais empregadas na peça e às preocupações estéticas envolvidas no seu procedimento composicional. Concluímos relacionando as ideias apresentadas à caraterísticas comuns ao pensamento musical de Grisey. Palavras-chave: Análise musical; Música do século XX; Gérard Grisey; Les Espaces acoustiques; Modulations. From Aperiodicity to Periodicity: The First Process of Modulations, by Gérard Grisey. Abstract: This work presents an analytical exposure of the first process employed in Modulations (1987), the fourth piece of the cicle Les Espaces acoustique (1974-1985), by Gérard Grisey (1946- 1998). The musical examples are preceded and followed by composer’s considerations about the tools employed in the composition of the piece, and about his aesthetic considerations involved in his compositional procedure. We conclude making a relationship between the ideas presented by us and some characteristics that are common to the musical thought of Grisey. Keywords: Musical Analysis; 20 th Century Music; Gérard Grisey; Les Espaces acoustiques; Modulations. A música de Gérard Grisey (1946-1998), de acordo com o próprio compositor, ocupa-se essencialmente dos “diferentes processos de mutação de um som em outro som ou conjunto de sons em outro conjunto de sons” 1 (GRISEY, 2008: 27). Assim, torna-se essencial, no trabalho do compositor, “definir a todo instante concedido o que muda em relação ao que o precedeu (...) a diferença entre todo evento e o seguinte (...)” 2 (GRISEY, 2008: 106). Trabalhar com as diferenças percebidas entre os sons faz com que o elemento composicional fundamental desta música seja o grau de previsibilidade entre eles, ou, como afirma o Grisey, o grau de pré-audibilidade (GRISEY, 2008: 31). Ao ouvirmos uma sequência de eventos sonoros extremamente previsíveis, nossa percepção é aguçada e qualquer diferença percebida ganha muita importância. Por outro lado, um evento sonoro imprevisível afeta a percepção de outra maneira e precisamos de um tempo para que o equilíbrio perceptivo seja estabelecido. Ao longo deste tempo, os eventos são percebidos de maneira diferente, emocional e temporalmente. Assim, este trabalho composicional emprega como material básico o tempo – não o tempo cronométrico, mas o tempo perceptível (GRISEY, 2008: 31). “O tempo cronométrico não é de forma alguma

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Page 1: de Gérard Grisey - eca.usp.br · Grisey credita parte de suas reflexões à Teoria da Informação e Percepção Estética, do cientista e filósofo francês Abraham Moles (1920-1992)

I Jornada Acadêmica Discente PPGMUS – Universidade de São Paulo – São Paulo – 2012

Da aperiodicidade à periodicidade: o primeiro processo de Modulations,

de Gérard Grisey

Daniel Paes de Barros Pinto Universidade de São Paulo – [email protected]

Resumo: Este trabalho apresenta uma exposição analítica do primeiro processo envolvido na composição de Modulations (1987), quarta parte do ciclo Les Espaces acoustiques (1974-1985), de Gérard Grisey (1946-1998). Os exemplos são precedidos e acompanhados por considerações do compositor, referentes às ferramentas composicionais empregadas na peça e às preocupações estéticas envolvidas no seu procedimento composicional. Concluímos relacionando as ideias apresentadas à caraterísticas comuns ao pensamento musical de Grisey. Palavras-chave: Análise musical; Música do século XX; Gérard Grisey; Les Espaces acoustiques; Modulations.

From Aperiodicity to Periodicity: The First Process of Modulations, by Gérard Grisey.

Abstract: This work presents an analytical exposure of the first process employed in Modulations (1987), the fourth piece of the cicle Les Espaces acoustique (1974-1985), by Gérard Grisey (1946-1998). The musical examples are preceded and followed by composer’s considerations about the tools employed in the composition of the piece, and about his aesthetic considerations involved in his compositional procedure. We conclude making a relationship between the ideas presented by us and some characteristics that are common to the musical thought of Grisey. Keywords: Musical Analysis; 20th Century Music; Gérard Grisey; Les Espaces acoustiques; Modulations.

A música de Gérard Grisey (1946-1998), de acordo com o próprio compositor,

ocupa-se essencialmente dos “diferentes processos de mutação de um som em outro som ou

conjunto de sons em outro conjunto de sons”1 (GRISEY, 2008: 27). Assim, torna-se essencial,

no trabalho do compositor, “definir a todo instante concedido o que muda em relação ao que o

precedeu (...) a diferença entre todo evento e o seguinte (...)”2 (GRISEY, 2008: 106).

Trabalhar com as diferenças percebidas entre os sons faz com que o elemento composicional

fundamental desta música seja o grau de previsibilidade entre eles, ou, como afirma o Grisey,

o grau de pré-audibilidade (GRISEY, 2008: 31).

Ao ouvirmos uma sequência de eventos sonoros extremamente previsíveis, nossa

percepção é aguçada e qualquer diferença percebida ganha muita importância. Por outro lado,

um evento sonoro imprevisível afeta a percepção de outra maneira e precisamos de um tempo

para que o equilíbrio perceptivo seja estabelecido. Ao longo deste tempo, os eventos são

percebidos de maneira diferente, emocional e temporalmente. Assim, este trabalho

composicional emprega como material básico o tempo – não o tempo cronométrico, mas o

tempo perceptível (GRISEY, 2008: 31). “O tempo cronométrico não é de forma alguma

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abolido, mas a percepção que temos oculta o seu aspecto linear, por um instante mais ou

menos breve.”3 (GRISEY, 2008: 31).

Grisey credita parte de suas reflexões à Teoria da Informação e Percepção

Estética, do cientista e filósofo francês Abraham Moles (1920-1992) (GRISEY, 2008: 62).

Neste livro, Moles demonstra como a ideia de pré-audibilidade está relacionada ao conceito

de periodicidade. Um fenômeno periódico, em termos matemáticos, é aquele que se reproduz

ao fim de um intervalo de tempo – poucas repetições de um mesmo fenômeno (3 ou 4) bastam

para que “o espírito de um indivíduo que percebe “(...) desperte para o conceito de

periodicidade” (MOLES, 1978: 108).

Estas questões são exploradas de maneira composicional no primeiro processo de

Modulations, para 33 músicos, quarta parte do ciclo Les Espaces acoustiques, de Grisey. A

peça se inicia com uma situação rítmica de grande aperiodicidade, que emprega complexos

sonoros inarmônicos sobre uma instrumentação heterogênea e uma atuação rítmica instável, e

se dirige em direção à periodicidade, expressa através de complexos sonoros harmônicos e

homogêneos, aliados à estabilidade rítmica. Grisey descreve o processo da seguinte maneira: “I. Tensão – Relaxamento: homofonia Dois acordes gêmeos (complexo + sons adicionais) evoluem da heterogenia à homogenia, das durações aperiódicas às durações periódicas.”4 (GRISEY, 2008: 139).

O musicólogo Jerôme Baillet classifica o processo como uma “convergência

simétrica entre dois objetos alternados” (BAILLET, 2000: 116). A Fig. 1, adaptação de uma

tabela apresentada por Grisey em Tempus ex machina (GRISEY, 2008: 63), ilustra um

possível esquema da estrutura resultante do processo:

Fig. 1 – Esquema resultante do emprego do primeiro processo em Modulations.

Os complexos sonoros (e consequentemente os espectros inarmônicos, sons

formantes, adicionais, diferenciais e complexos resultantes de filtragens e modulações)

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empregados como objetos em Modulations derivam da análise espectral de instrumentos de

metal e suas diversas surdinas (GRISEY, 2008: 138). O espectro harmônico atingido ao final

deste primeiro processo corresponde a 41.2 Hz, relativo à altura Mi1 – ponto de referência

comum a outras peças de Les Espaces acoustiques.

Os objetos que iniciam o processo são intimamente aparentados: o primeiro

complexo sonoro (A) apresentado é a origem do segundo complexo (B). Este segundo

processo (B) é gerado pelo primeiro (A) através de um processo de modulação em anel. Os

dois objetos são apresentados de maneira alternada, inicialmente por instrumentos de cordas

(A) e sopros (B). A Fig. 2, abaixo, apresenta o conteúdo harmônico inicial de cada um dos

objetos envolvidos no processo, bem como suas respectivas extensões, em sua primeira

aparição (número de ensaio 1):

Fig. 2 – Objetos A e B no início do primeiro processo de Modulations.

A este elevado grau de inarmonicidade e grande extensão frequencial empregada

na composição dos objetos, corresponde uma atividade rítmica com elevado grau de

aperiocidade. A Fig. 3, abaixo, ilustra a figuração rítmica da alternância dos objetos no início

da peça, que apresenta o mais alto grau de aperiodicidade do processo (Fig. 3):

Fig. 3 – Atividade rítmica com elevado grau de aperiodicidade no início do primeiro processo de Modulations.

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O processo se desenvolve através da repetição modificada de cada um dos

objetos. A cada repetição o âmbito frequencial é contraído. Além disso, as frequências se

aproximam do espectro harmônico, os sons fundamentais são transpostos, e as durações e

timbres tendem à similitude, à uniformidade e à periodicidade (GRISEY, 2008: 108). Ao final

do processo, os objetos são dois espectros harmônicos construídos sobre 41.2 Hz,

correspondente à altura Mi1 (Fig. 4):

Fig. 4 – Objetos A e B após sua submissão ao processo inicial de Modulations.

A Fig. 5, abaixo, ilustra a periodicidade rítmica atingida no final do processo:

Fig. 5 – Periodicidade rítmica atingida ao final do primeiro processo de Modulations.

É também significativa a progressiva aproximação rítmica dos dois elementos.

Após a apresentação inicial (Fig. 3, acima), surgem silêncios entre os elementos, que pouco a

pouco são suprimidos em direção a uma sonoridade contínua (Fig. 5, acima). A Fig. 6, abaixo,

ilustra dois estados diferentes da atuação rítmica: no primeiro deles (número de ensaio 3),

observa-se a existência de grandes espaços entre as repetições dos elementos, enquanto no

segundo (número de ensaio 9), os silêncios diminuem e já existe alguma sensação de uma

periodicidade:

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Fig. 6 – Dois diferentes momentos da atuação rítmica no primeiro processo de Modulations.

O caminho em direção à harmonicidade dos complexos sonoros e à progressiva

redução no âmbito frequencial se dá através de uma espécie de modulação em anel. Tristan

Murail (n. 1947) comenta esta técnica em uma de suas conferências:

“Uma variação da modulação em anel é o chaveamento de frequência. Através desta técnica, uma frequência é adicionada ou subtraída de um complexo sonoro. Isto produz uma transposição lienar em termos frequenciais e cria, portanto, uma transposição não linear em termos intervalares.”5 (MURAIL, 2005: 222).

A Fig. 7, abaixo, ilustra o resultado deste procedimento na primeira parte de

Modulations, em que foram omitidas transformações de menor impacto. Os números de

ensaio identificam cada um dos momentos do processo:

Fig. 7 – Complexos sonoros derivados do processo modulatório da primeira parte de Modulations.

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A homogenização progressiva dos timbres é brevemente comentada por Grisey,

que oferece também uma pequena tabela ilustrativa de seu processo. “Se compararmos os

acordes A com os acordes B a cada aparição das durações periódicas, eles tendem à

similaridade e à fusão de seus registros e timbres”6 (GRISEY, 2008: 108). A tabela oferecida

por Grisey agrupa os aspectos timbrísticos por famílias de instrumentos – metais, madeiras e

cordas. A partir de três compassos antes do número de ensaio 12, a tabela demonstra que a

instrumentação passa a ser distribuída de maneira homogênea (Fig. 8):

Fig. 8 – Evolução dos timbres no primeiro processo de Modulations (GRISEY, 2008: 108).

Ao comentar sua preocupação com o timbre como fator composicional, Grisey

afirmou: “Como podemos compreender o mais misteriosos de todos os parâmetros sem

penetrar nas células que o compõe? (...) uma frequência de 20 Hz (...) contém

microfonicamente alturas, durações e intensidades.”7 (GRISEY, 2008: 120).

Esta afirmação está de acordo com o trabalho composicional aqui examinado. A

exposição do caminho trilhado pelo som inicial, através do acompanhamento de alguns de

seus domínios (comportamento rítmico, grau de harmonicidade dos complexos sonoros,

relacionamentos timbrísticos) permite-nos vislumbrar o funcionamento do processo envolvido

na composição. Esta mesma exposição, por outro lado, demonstra a forte relação e

interdependência, na música de Grisey, não apenas entre os diversos domínios do som, mas

também entre estes e o processo empregado em sua composição. O objetivo do compositor,

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compreende-se, não é o estabelecimento do timbre como um fator estruturante da música, no

sentido funcional do termo, mas sim a busca por uma linguagem musical que compreenda o

som como um complexo vivo que interage ativamente com os processos aos quais é

submetido.

Referências BAILLET, Jérôme. Gérard Grisey: fondements d’une écriture. Paris: l’Harmattan, 2000. GRISEY, Gérard. Tempus ex Machina. In: LELONG, Guy; REBY, A. (Org.). Écrits. Paris: Éditions MF, Collection Répercussions, 2008, p. 57-88. . Devenir du son. In: LELONG, Guy; REBY, A. (Org.). Écrits. Paris: Éditions MF, Collection Répercussions, 2008, p. 27-33. . Structuration des timbres dans la musique instrumentale. In: LELONG, Guy; REBY, A. (Org.). Écrits. Paris: Éditions MF, Collection Répercussions, 2008, p. 89-120. . Écrits sur ses œuvres. In: LELONG, Guy; REBY, A. (Org.). Écrits. Paris: Éditions MF, Collection Répercussions, 2008, p. 127-168. . Modulations, pour 33 musiciens. Paris: Ricordi, 1987. Partitura. MOLES, Abraham. Teoria da informação e percepção estética. Tradução de Helena Parente Cunha. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1978. MURAIL, Tristan. Villeneuve-lès-Avignon Conferences, Centre Acanthes, 9-11 and 13 July 1992. Tradução de A. Berkowitz e J. Fineberg. In: Contemporary Music Review, v. 24, n. 2/3, April/June. Harwood Academic Publishers, 2005.

1 “Les différents processus de mutation d’un son en un autre son ou d’un ensemble de sons en un autre ensemble (…)” (GRISEY, 2008: 27). 2 “Définir à chaque instant donné ce qui change par rapport à ce qui précède (…) la différence entre chaque événement et le suivant (…)” (GRISEY, 2008: 106). 3 “Le temps chronométrique n`est nullement aboli mais c`est la perception que nous en avons qui en occulte l`aspect linéaire pour un instant plus ou moins bref” (GRISEY, 2008: 31). 4 “I. Tension – Détente: homophonie. Deux accords jumeaux (complexe + sons additionnels) évoluent de l’hétérogène à l’homogène, des durées apériodiques aux durées périodiques.” (GRISEY, 2008: 139). 5 “A variation on ring modulation is frequency shifting. With this technique, a frequency is added to or subtracted from a complex of sounds. This produces a linear transposition in terms of frequencies an thus creates a non-linear transposition in terms of intervals.” (MURAIL, 2004: 222). 6 “Si l’on compare les accords A aux accords B à chaque apparition des durées périodiques, ils tendent vers la similarité et la fusion de leurs registres et de leurs timbres.” (GRISEY, 2008: 108). 7 “Comment pouvons-nous appréhender le plus mystérieux de tous les paramètres sans pénétrer jusqu’aux cellules qui le composent? (...) une fréquence de 20 Hz (...) contient déjà microphoniquement hauteurs, durées et intensités.” (GRISEY, 2008: 120).