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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Macedo, FrancieleLáquesis / Franciele Macedo. -- São Paulo :

All Print Editora, 2016.

1. Ficção brasileira I. Título.

16-00069 CDD-869.3

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura brasileira 869.3

Franciele Macedo

LÁQUESISCopyright © 2016 by Franciele Macedo

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(11) 2478-3413

SuMário

PRÓLOGO ��7

1� PROCURA-SE UMA CASA ��9

2� CHAVES PARA O PASSADO ��23

3� O DIÁRIO DE LUCAS RANGEL ��36

4� O AMOR BATE À PORTA ��48

5� A REALIDADE SE FAZ DE SONHOS ��63

6� VISITA INESPERADA ��77

7� RESQUÍCIOS DE ESPERANÇA��87

8� QUANDO SE ENCONTRA UM DIAMANTE ��97

9� ACIDENTES ACONTECEM ��110

10� OS VIZINHOS DA ESQUERDA ��122

11� AMAR-TE E RESPEITAR-TE ��130

12� LEMBRANÇAS ��138

13� DIAMANTE EM PEDAÇOS ��148

14� ELISA ��161

15� DESVENDANDO O MISTÉRIO ��168

16� LUCAS ��175

17� DE VOLTA AO PASSADO ��187

18� LAR, DOCE LAR ��202

19� RAÍZES��213

EPÍLOGO ��219

Dedico esse livro a todas as pessoas que me incentivaram e apoiaram o meu trabalho.

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Prólogo

Elisa caminhou devagar até a janela de seu quarto, fixan-do seu olhar na trilha ladeada de pequenas flores que levava diretamente ao portão de entrada� Mas era inútil esperar que Lucas retornasse� Olhou a aliança delicada que segurava em suas mãos, enquanto uma lágrima descia por sua face� Ela não tentou conter a dor� Já havia se acostumado com aquela sensação de vazio� Novas lágrimas brotaram em seus olhos ao pensar no significado daquele pequeno objeto dourado que um dia lhe trouxera tanta felicidade� Fazia-a recordar de um tempo, no qual ela se sentira amada e valorizada pelo ser que lhe jurara amor eterno; protegida pela promessa de que ele jamais a abandonaria ou a faria sofrer�

No entanto, ali estava ela� O metal continuava intacto, mas seu coração estava partido em milhares de pedaços, impossíveis de restaurar� Numa tarde linda de verão, Lu-cas a deixara, alegando razões absurdas, sem sequer dar-lhe tempo para entender o que estava acontecendo ou talvez falar a sua versão da história� A princípio, ela esperou pa-cientemente seu retorno� Conhecia Lucas e tinha certeza de que ele a amava� Contudo, os dias foram passando e por mais que ela esperasse vê-lo abrindo o portão, dizendo que cometera um grande erro, isso nunca aconteceu� Três meses haviam se passado sem que dele tivesse notícias� Ela o ha-via procurado por muitos lugares, sem sucesso, até que se convenceu de que ele realmente havia partido� Os últimos resquícios de esperança esvaiam-se nesse momento com suas lágrimas�

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Ela não suportava mais ficar naquela casa� Tudo naquele lugar o lembrava� Até mesmo as coisas mais insignificantes guardavam memórias de seu sorriso, de seu olhar tão cheio de ternura, do calor dos seus braços nos dias frios� Sem ele não tinha sentido continuar ali� Seria sofrer eternamente, sorvendo a dor gota a gota� Ela não pensava em recomeçar� Só pensava em sobreviver� Quem sabe com o passar dos anos conseguisse retomar sua vida, depois que as feridas cicatrizassem�

Estendeu a mão através da janela, enquanto sentia a bri-sa suave acariciando sua pele� Fechou os olhos, decidida, enquanto seus dedos soltavam a aliança que rolou no va-zio, se perdendo em meio às azaleias do jardim� Reunindo a coragem necessária e o que restava das suas forças, jun-tou suas roupas e colocou-as em uma mala, fechou o zíper e lentamente desceu a escada� Sem olhar para trás passou pela porta e a trancou� Quando tivesse forças retornaria para vender a casa, se possível, com todos os móveis� Não queria guardar nada que lembrasse seu passado� Se Lucas, que era a parte mais importante, não mais existia, o resto não tinha significado� Se ele dera as costas a tudo aquilo que ambos haviam sonhado, ela também o imitaria�

“Adeus, Lucas!” – pensou Elisa, enquanto deixava to-dos os seus sonhos para trás�

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caPítulo 1

Procura-Se uMa caSa

A noite havia sido longa� A cama do hotel, por mais con-fortável que fosse, não permitiu a Marcelo um sono tran-quilo� Ele havia rolado de um lado para o outro e, quando finalmente conseguiu dormir já passava das duas horas da manhã� Ao acordar, viu pela janela entreaberta que ainda estava escuro� Sabia que não dormiria novamente, então sentou-se junto à cabeceira da cama e ficou observando o céu que após algum tempo começou a mudar de tonalidade� As trevas densas assumiram nuances de vermelho no hori-zonte, dando espaço aos primeiros raios de sol que tingiam a manhã fria e úmida� Pouco a pouco, o sol começou a bri-lhar com mais vigor, despertando os passarinhos que mal abriam os olhos já cantavam alegremente nas copas das ár-vores, animados para viver mais um dia� Nas ruas, a cidade ganhou vida à medida que pedestres e carros surgiam�

Marcelo sentia-se enjaulado entre aquelas quatro pare-des, pintadas em um tom de amarelo pálido, enquanto di-vidia espaço com a mobília simples: uma cama de solteiro, um closet pequeno e um criado mudo� Para completar a de-coração, tinha uma cortina estampada na janela em um tom chamativo e um quadro abstrato de um pintor anônimo na parede� Olhando num todo, o quarto não era ruim� Tinha até uma boa vista de onde estava no terceiro andar� Mas ele sa-bia que, pelo seu estado de espírito, mesmo se estivesse em um hotel cinco estrelas, não mudaria o que estava sentindo�

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Ele continuou contemplando o movimento, sem a míni-ma vontade de sair daquele quarto� Sentia a cabeça pesada e não era apenas de sono� Seus pensamentos estavam bem despertos e galopantes, fazendo-o refletir sobre a situação na qual se encontrava� Após muitos anos de trabalho e es-tudo no exterior, voltara para o Brasil, mas ainda não con-seguia se sentir em casa� Talvez porque não tivesse retor-nado para aquele que realmente era seu lar� É verdade que já estivera em Cianorte, a cidade paranaense que agora se esparramava ante seus olhos, mas isso fora há muitos anos e apenas em breves temporadas, quando passava as férias na casa dos avós�

Lembrou-se com nostalgia de sua infância, quando tudo era mais simples e belo, e a vida adulta era apenas um so-nho cheio de planos e projetos que pareciam tão distantes, enquanto a realidade era aproveitar as férias ao máximo en-quanto brincava com seus amigos� Os anos passados leva-ram detalhes importantes daqueles dias tão felizes� Já não lembrava o nome de seu melhor amigo, com quem brincava até que todas as estrelas estivessem resplandecentes no céu de verão, ou se fosse inverno, até que o avô tivesse lhes contado histórias de aventuras aos pés da lareira�

Muitas coisas haviam mudado desde então� De seus avós, só tinha lembranças� Eles haviam falecido há muitos anos� A grande fazenda deixada em herança para o único fi-lho fora vendida e totalmente usada para plantação de soja� E quanto a Marcelo�� Bem, ele não era mais um menino magrinho, de pernas finas, correndo desajeitado pelos cam-pos, com os cabelos caindo nos olhos� Ele se tornara um homem alto e forte, bem proporcionado� Os cabelos negros e lisos estavam bem curtos, contrastando com sua pele cla-ra� Seus olhos negros já estavam cercados por pequeninas

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rugas, lembrando-lhe que vinte e sete anos já haviam se pas-sado de sua vida na terra, repletos de acontecimentos que influenciaram profundamente o homem no qual se tornou�

Tentava não sentir amargura ao constatar que seus so-nhos talvez não tivessem se realizado da forma como es-perara� É verdade que conhecera pessoas e muitos lugares diferentes, aprendera muitas coisas, principalmente durante o tempo que pode estudar e trabalhar nos Estados Unidos� Mas ainda assim, ele não se sentia uma pessoa realizada� Ao contrário, seu mundo interior era um caos que ele não sabia como organizar�

O fracasso que Marcelo sentia pesar em seus ombros não era profissional� Sua situação econômica era bastante estável� A profissão de escritor lhe proporcionara bons lu-cros com seus últimos livros lançados e seu trabalho para uma grande editora norte-americana� Seu descompasso era outro� Era como ser humano que ele não se ajustava� Não havia uma palavra certa para definir o que sentia, ou me-lhor, o que não sentia�� Talvez a expressão mais apropriada fosse dizer que ele estava passando por uma crise existen-cial, na qual nada atraía seu interesse e nenhum lugar era bom o suficiente para estar� Por tudo isso não havia como negar: o Marcelo que voltara para Cianorte (a capital brasi-leira do vestuário) não era o mesmo que partira desde a sua última visita aos doze anos�

Localizada no noroeste do Paraná, próxima ao Trópi-co de Capricórnio, Cianorte era beneficiada com um clima agradável� Na maior parte do ano o sol brilhava com in-tensidade e as chuvas geralmente eram calmas, cumprindo seu propósito de irrigar a terra� Embora a cidade estivesse situada no sul do Brasil, o inverno não era muito rigoroso� A estação exigia que em certos dias você saísse de casa bem

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agasalhado, mas em outros era possível caminhar tranquila-mente ao ar livre, apenas de bermuda e camiseta�

Os campos eram formados por uma paisagem de belas planícies cobertas na maior parte pelo verde das plantações ou das pastagens� E quanto à zona urbana era protegida pela reserva de árvores que formavam o “cinturão verde”, cons-tituindo uma orla de mata que circundava a cidade, produ-zindo oxigênio e abrigando pequenos animais silvestres�

Era possível encontrar os mais diferentes tipos de pro-fissionais, desde pessoas que lidavam com a lavoura e agropecuária, vendedores de artesanato, até grandes em-presários, comerciantes ou outros profissionais envolvidos com o mercado da moda� Confecções e outdoors estavam espalhados pelos quatro cantos da cidade, buscando atender consumidores dos pontos mais remotos do país�� e até do mundo� Com uma população de aproximadamente setenta e cinco mil habitantes, era fácil imaginá-la apenas como uma cidade interiorana, mas em seu âmago o que se via era uma cidade desenvolvida que chamava a atenção em vários aspectos, principalmente o vestuário�

Já fazia uma semana que Marcelo havia chegado e se hospedara naquele hotel enquanto procurava uma boa casa para comprar� A sua intenção era permanecer apenas alguns dias naquele quarto, porém não estava sendo tão fácil como imaginava� Das várias casas que vira, não havia gostado de nenhuma� Não que fossem feias� Ao contrário, as casas que viu eram bem bonitas e com um ótimo preço� Apreciou também alguns apartamentos, mas nenhum parecia ser bom o bastante para chamar de lar� Então continuava se sentindo desajustado, como se encontrar seu lugar no mundo tivesse se tornado a coisa mais impossível�

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Todas as imobiliárias haviam sido consultadas� Para complicar sua vida, seu Manoel, o corretor que o estava au-xiliando, era formidável� A criatura não ficava um segundo com a boca fechada� Revirou sua memória em busca de al-guém com quem comparar, mas chegou à conclusão de que aquele ser era único� Jamais em sua vida conhecera alguém que falasse como ele�

O relógio já marcava oito e meia quando Marcelo fi-nalmente decidiu procurar o corretor para ver outras ca-sas� Arrumou-se sem pressa e tomou um pouco de café bem quente na sala de refeições do hotel, para despertar� Embora fosse junho, o clima estava bastante agradável e, como a imobiliária era perto, ele foi caminhando� Era sá-bado e as ruas estavam repletas de pessoas apressadas, que corriam de um lado para outro, como formigas, tentando resolver seus próprios problemas� O barulho dos alto fa-lantes era intenso� Várias lojas anunciavam seus produtos em busca de clientes ávidos por novidades�

– Bom dia, Marcelo! Que prazer vê-lo logo pela ma-nhã! – cumprimentou-o seu Manoel, assim que o viu en-trar na imobiliária� Ele era um homem baixo e gordo, bem humorado, que sorriu de orelha a orelha através de seus bigodes�

– Bom dia, seu Manoel! – respondeu Marcelo, apertan-do a mão que o outro lhe estendera�

– Por favor, Marcelo, sente-se� Logo iremos ver as ca-sas de que lhe falei� Deixe-me ver seu formulário�� – disse enquanto pegava uma pastinha azul� – Minha nossa! Ontem vimos seis casas e você não gostou de nenhuma?! Não é possível! É difícil agradar um cliente tão exigente! Mas eu tenho certeza de que gostará da próxima� É muito bonita!

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– É claro que gostarei, seu Manoel! – respondeu Mar-celo com um tom de sarcasmo que o corretor não percebeu� – O senhor já me disse isso de todas as casas que vimos!

– É porque todas as nossas casas são bonitas� Aliás, você já viu que cidade maravilhosa é essa? Não é grande, mas tem tudo de que precisa�� As pessoas são comunicati-vas, gostam de fazer amigos��

– Claro! – concordou Marcelo, enquanto murmurava para si mesmo� “ – Estou perdido! Se todo mundo falar como esse ser�� Que lugar eu escolhi para morar?!”

– A propósito – continuou seu Manoel – sem querer ser intrometido, com o que você pretende trabalhar mesmo?

– Pretendo dar aulas� Pelo menos estou aguardando a resposta de algumas escolas nas quais deixei meu currículo�

– Ah�� sim! Agora me lembro�� Desculpe minha me-mória fraca� O senhor já havia me dito isso ontem quando te perguntei�

“O problema não é a memória fraca� – refletiu Marcelo – É a boca que não fecha�”

– Que pena! – continuou seu Manoel, alisando seus bi-godes� – Já ia propor para o senhor um bom negócio� Temos um excelente imóvel, ideal para montar uma empresa de confecção� Como você sabe é um dos ramos mais lucrativos de Cianorte�

– É�� Eu sei� Mas não tenho o mínimo talento para tra-balhar com roupas� A primeira empresa que eu abrisse iria direto à falência�

– Como pode ter tanta certeza de que não daria cer-to? Você já teve algum negócio? – questionou o corretor interessado�

– Não� Nunca tive e nem pretendo ter – respondeu Mar-celo ainda com uma voz calma, dando um leve sorriso� Era

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melhor levar o assunto na esportiva para não se estressar tão cedo�

– Mas você só pode dizer que não dá certo se já tiver tentado� Se quiser, poderemos passar no local e você verá se gostaria de trabalhar ali� Posso até lhe dar umas dicas�� – disse seu Manoel empolgado�

– Muito obrigado por sua gentileza, senhor – interrom-peu Marcelo, tentando não demonstrar sua crescente irrita-ção� – Mas, a única coisa que gostaria no momento era ver uma boa casa para morar�

– Ah�� A casa! Claro!�� Vamos lá! Aliás, tenho uma bela casa para mostrar-lhe hoje� – disse o homem se levantando da cadeira e convidando Marcelo a acompanhá-lo�

Marcelo não aguentava mais� Se não precisasse encon-trar uma casa, com certa urgência, já teria largado aquele homem falando sozinho� Assim que deu a partida no carro e manobrou para sair do estacionamento, Seu Manoel reco-meçou o falatório:

– Você irá adorar os vizinhos� Fiz amizade com todos eles� Tem a dona Joana a direita, ela é uma viúva muito bondosa, e do lado esquerdo tem a Susana, te aconselho a não olhá-la� Ela é muito bonita, mas o marido, Hugo, é muito ciumento e se descobrir ou imaginar que você está olhando para ela�� Meu amigo, eu tenho pena de você! – e o baixinho fez um gesto engraçado com o dedo como quem corta o próprio pescoço – Ah! Você será um homem morto!

Marcelo só esperava que seu Manoel tivesse um bom senso de direção� Nunca vira uma pessoa que dirigia olhan-do o tempo todo para a cara dos outros� Ele se obrigava a concordar para ver se o homem pelo menos mantinha as mãos no volante�

E seu Manoel continuava��

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– As casas da frente, pintadas de verde, são de uma mes-ma família� Tem um casal de idosos que são os “patriarcas”, cercados por filhos e alguns netos� É uma grande comédia� Não se assuste com o barulho, apenas falam um pouco alto, mas no fundo eles são pessoas boas� Claro! Como eu disse, aqui todos são simpáticos e hospitaleiros� Logo você terá vários amigos e vai gostar daqui mais do que de sua cida-de�� Como era mesmo o nome dela?

– Nova Iorque! – respondeu Marcelo, só por dizer, pois sabia que o homem não o ouvira, de tão atento ao que tinha que falar�

– Então, você verá como esta cidade é linda, maravilho-sa�� E se convencerá que não há lugar melhor para viver do que Cianorte�

Finalmente, quando Marcelo estava quase a ponto de des-cer do carro e desistir, o homem estacionou diante de uma bela casa, em uma rua arborizada� Faltavam adjetivos a Marcelo para descrevê-la� Se dissesse que ela era magnífica e esplêndi-da, ainda estaria deixando a desejar� A casa era branca, de dois andares, com um modelo colonial moderno, valorizada por um belo jardim� A grama estava perfeitamente aparada, contornan-do belas rosas nos tons de vermelho, branco, rosa e amarelo, dispostas de uma maneira harmoniosa em canteiros com for-mato circular� Havia também pequenos lírios, cravos, flores do campo e muitas azáleas� E como que para proteger toda aquela beleza, grades brancas trabalhadas cercavam a propriedade� Realmente era um lugar muito bonito�

Por quase dois minutos Marcelo perdeu a fala� Estava diante de um lugar no qual sempre sonhara morar� Parecia o aconchego da felicidade ou dos lares perfeitos que ele gos-tava de descrever em seus livros� Só então percebeu que o corretor estava mudo, o que era novidade� Seguiu a direção

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de seu olhar e viu o que prendera sua atenção: um carro tinha acabado de estacionar em frente à casa ao lado e dele saíra uma belíssima mulher�� “a vizinha da esquerda”� Realmente seu Manoel não exagerara�� Ela parecia uma daquelas atrizes de Hollywood� Mesmo ao longe podia perceber a fineza das vestes, o penteado impecável e o andar compassado�

– É aquela a mulher que não se pode olhar, pois corre o risco de se perder a cabeça? – disse Marcelo com um sorri-so, sobressaltando o vendedor�

– Certo, meu jovem�� Vamos ver a casa! – disse Ma-noel, lembrando-se do motivo de estar ali� – É muito bo-nita, não acha?

– Sim� Por fora ela realmente parece ser bem bonita� Vamos ver se por dentro também é� – respondeu Marcelo�

– Ah! Você verá como é impressionante! A proprietária era muito caprichosa – disse ele, dando um suspiro – Pena que o casamento dela não deu certo� Coitada! Abandonada pelo marido� Mas, para falar a verdade, esses casamentos de hoje não duram� Não é novidade para ninguém�

Marcelo caminhou devagar pela trilha ladeada de flores, absorvendo a beleza do lugar� Pegou a chave que seu Ma-noel lhe estendia e abriu a porta bem trabalhada de madeira� Ele não estava preparado para o que viu em seguida� A casa tinha um toque de sonho, o ambiente ideal para se escre-ver um romance� Mas o que realmente o impressionou foi ver que a casa estava mobiliada – e sem dúvida com muito bom gosto� O primeiro cômodo era uma ampla sala de estar� Cortinas brancas, com belos bordados, pendiam das enor-mes janelas de vidro� Dois belíssimos quadros retratando paisagens estavam nas paredes� Havia dois sofás grandes na cor marfim, que pareciam bem confortáveis, de frente para um estante de mogno que abrigava além de alguns objetos

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ornamentais, um aparelho televisor de última geração� E do lado direito da escada que levava ao andar superior, tinha um belo piano�

Marcelo estava confuso� Por que alguém deixaria a casa intocada? Não parecia um imóvel para venda, mas uma casa de quem sai de férias e em breve retornará� Pelo menos foi essa a impressão que teve na sala de estar� Antes que ele perguntasse, como se lesse seus pensamentos, seu Manoel se antecipou�

– Você deve estar se perguntando: Por que a casa está mobiliada e porque os móveis não estão cobertos?

Marcelo apenas concordou com a cabeça, aguardando a resposta� O corretor prosseguiu:

– A proprietária não quis ficar com nada� Pediu-nos que vendêssemos a casa com tudo que havia dentro� Você é a primeira pessoa que está vendo� Ela contratou nossos servi-ços há dois dias� Tivemos tempo apenas de fazer uma visto-ria quanto à estrutura e em relação aos móveis para estipular um valor justo� Devo dizer que essa casa foi construída há cinco anos e pertenceu apenas a dois proprietários� Tenho aqui os papéis com a avaliação do engenheiro� – disse ele, estendendo uma pasta para Marcelo – Como pode ver, está tudo no mais perfeito estado�

– Entendo – disse Marcelo olhando sem muita atenção os papéis e voltando seus olhos para os detalhes da casa�

Manoel continuava falando, mas sua voz parecia vir de muito longe� O que mais intrigava Marcelo, naquele momento, era a história que aquele lugar continha� As paredes, os quadros, os móveis, ainda que fossem coisas inanimadas pareciam gritar um passado repleto de aconte-cimentos� Ele via alegria, amor e dedicação no ambiente aconchegante� Mas por algum motivo, algo fundamental

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se perdera� Como se faltasse um elo que fizesse tudo ter sentido�� ter vida�

Cômodo a cômodo, ele via os mesmos traços e senti-mentos� Seguiu por uma porta com um pequeno corredor que o conduziu a uma grande sala de jantar, com mais quadros, um da Santa Ceia e outro retratando uma bela paisagem campestre� Havia ainda uma grande mesa de mogno com seis cadeiras� A beleza da sala era realçada pelas janelas de vidro com vista para o jardim� O próximo recinto era uma cozinha acolhedora com balcões brancos que combinavam com o fogão, a geladeira e o armário� Pratos, talheres, copos e todos os utensílios domésticos que se possa imaginar em uma cozinha, estavam guarda-dos e organizados nas prateleiras�

No fundo da cozinha havia outra porta� Marcelo des-trancou-a, ficando impressionado com a grande lavanderia� E mais ao fundo ficava um banheiro� Havia mais uma porta que levava a uma grande varanda nos fundos da casa� À frente o gramado se estendia verdejante e limpo, circundan-do uma piscina, que no momento se encontrava vazia�

Marcelo retornou até a sala de estar e subiu a escada, para ver o outro andar� Pouco a pouco ele voltou a perceber a pre-sença de seu Manoel enquanto subiam as escadas� Não que ele fosse mal educado� Sabia que o corretor devia ter falado igual a um papagaio nos últimos minutos, mas ele simplesmente não ouvira nada� A casa tinha absorvido toda a sua atenção�

– E então? É maravilhosa, não é, Marcelo? Mas não se preocupe com o preço� Como eu disse, temos descontos es-peciais� Enfim, fazemos qualquer negócio se você realmen-te gostou dela�

Assim que subiram a escada saíram em outro corredor com duas portas a direita, duas à esquerda e outra no final�

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As duas primeiras eram quartos simples, mas amplos, com camas de casal e roupeiros e as outras duas era um banheiro e uma suíte espaçosa com uma imensa cama e um guar-da roupa� Com certeza a suíte devia ser o quarto do casal� Abriu as portas do guarda-roupa, mas assim como os dos outros quartos estava vazio� Aparentemente, as roupas fo-ram as únicas coisas levadas pelos moradores�

Seu Manoel guiou Marcelo até à última porta que ficava no final do corredor:

– Olhe que beleza! Creio que o senhor gostará dessa sala� É uma pequena biblioteca�

– Não acredito! – exclamou Marcelo ao olhar o recinto� Realmente ali estava uma biblioteca modesta, com duas

prateleiras de livros encostadas na parede e uma pequena escrivaninha, no centro� Era um ótimo lugar para passar suas horas lendo e escrevendo� Puxou a cortina, era pos-sível visualizar o gramado que se estendia sob as sombras de árvores frondosas, abrigando bancos de madeira, ideais para sentar ao fim da tarde�

– Nossa! Dá para ver a casa da Susana de um ângulo perfeito� Uh��! A vista é muito boa! – exclamou seu Ma-noel, subindo em um banquinho para ver melhor da janela�

Marcelo voltou sua atenção para as prateleiras; alguns livros didáticos, biografias de grandes músicos e pintores, além de romances dos mais variados autores divididos em várias seções: infanto-juvenil, nacionais, internacionais e autoajuda� De tudo havia um pouco� Marcelo se deteve em uma seção em particular – a etiqueta fixada dizia: Nossos livros preferidos.

A maioria Marcelo já havia lido� Tratava-se de alguns clássicos e outros livros de autores modernos� Começou a folheá-los em busca de algo que lhe dissesse algo mais do

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que a mensagem vaga que a casa trazia� As primeiras pági-nas sempre tinham dois nomes: pertence à Elisa e Lucas� Mas quem era Elisa e quem era Lucas?

Como que para responder às perguntas de Marcelo, uma foto de um belo casal caiu do livro que folheava� Eles eram jovens e bonitos� Ele tinha cabelos castanhos claros da mes-ma cor de seus olhos� Seu semblante era de uma pessoa con-fiante, mas serena� Combinava perfeitamente com a jovem� Seus cabelos, também castanhos, eram lisos e longos� Seus olhos da cor de mel exalavam uma doçura impressionante� Marcelo calculou que deviam ter uns 25 anos� A foto havia sido tirada no jardim da casa� Ambos estavam sentados em um banco, entre as rosas tão cheias de vida� Era nítido o brilho em seus olhares e a alegria que trasbordava em seus sorrisos� No verso da fotografia havia apenas uma frase:

“Elisa, o que sinto por você jamais terá fim� Você é tudo para mim� Ti amo! – Lucas�”

Marcelo chegou a uma conclusão: ele queria comprar a casa não só porque gostara dela, mas também porque ali ha-via uma história� Uma história inacabada� Ele se lembrava das palavras de Manoel�� O que mesmo ele dissera? Algo como a proprietária ter sido abandonada pelo marido�� Mas naquela foto Lucas confessava seu amor por Elisa� Se ele a amava tanto, porque a deixou? Sim, havia muitas hipóte-ses� Uma delas era a de que as dificuldades no casamento anularam o amor como acontece com tantos casais, ou sim-plesmente Lucas um dia olhou para Elisa e descobriu que o que sentia não era verdadeiro, apenas tinha imaginado seus sentimentos por ela�� Mas não era isso o que aquelas paredes diziam� Não importava� Ele iria descobrir a verdade�

Virou-se para seu Manoel, que ainda observava a vizi-nha pela janela, a ponto de cair de seu banquinho:

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– Seu Manoel, quanto o senhor quer pela casa com tudo dentro?

– É muito barato, Marcelo! Pela beleza, por estar bem conservada, toda mobiliada�� – disse o corretor, descendo rapidamente de seu ponto de observação�

– Quanto?– Como eu disse, é baratinho�� Podemos conversar so-

bre as formas de pagamento��– Quanto? – repetiu Marcelo�– Setecentos mil reais!– Ótimo! Vou ficar com ela! Mas gostaria de te pergun-

tar uma coisa: O senhor disse que a proprietária dessa casa foi abandonada pelo marido?

– Sim, sim! Um casal tão lindo, tão jovem!– E o senhor sabe por que ele a abandonou?– Não! Na verdade ninguém sabe� Eles haviam se mu-

dado para cá há um ano e meio, quando se casaram� A única coisa que sabemos é que um dia ele saiu de casa, discutindo com Elisa e dizendo que não voltaria� Passaram-se alguns meses e quando Elisa viu que ele realmente não iria voltar, ela foi embora� Somente agora ela entrou em contato com a imobiliária e colocou a casa à venda� Uma história triste��

– Eu preciso de um favor��– Mas é claro, meu jovem� – Por favor, o senhor poderia me informar o endereço

da Elisa?

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caPítulo 2

chaveS Para o PaSSado

Na manhã seguinte Marcelo acordou em um estado de animo totalmente diferente do dia anterior� Foi com espanto que constatou ao olhar no relógio que havia dormido até às oito horas, sem acordar uma única vez durante a noite e sem nenhum pesadelo� Pela primeira vez, em meses, havia con-seguido ter um sono tranquilo� Uma sensação de bem estar tomava conta de seu ser� Sentia-se mais leve e pronto para recomeçar sua vida� Continuou deitado por mais alguns mi-nutos tentando organizar seus pensamentos em relação ao que iria fazer�

Chegou à conclusão de que era inútil esperar mais tem-po para mudar-se para sua nova casa� Afinal, ela já estava mobiliada e os detalhes mais importantes já haviam sido acertados com a imobiliária, restando apenas alguns pa-péis para registrar no cartório, o que não era um empecilho� Além disso, um sentimento de urgência crescia dentro dele, como se fosse de suma importância iniciar a investigação do mistério da separação de Lucas e Elisa�

Após tomar um banho, guardou seus pertences apressa-damente� Olhou ao redor verificando se não estava esque-cendo algo, enquanto carregava duas malas pesadas con-tendo roupas e livros – tudo o que trouxera de Nova Iorque�

O saguão estava vazio� Apenas alguns hóspedes toma-vam café no recinto ao lado, onde eram servidas as refei-ções� Marcelo dirigiu-se à recepção e pediu ao jovem aten-dente que calculasse suas despesas, referentes aos dias em

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que estivera hospedado� Depois entregou-lhe o cartão para que descontasse o valor, enquanto dava-lhe em dinheiro uma boa gorjeta� O rapaz o havia ajudado muito naqueles dias, e não apenas porque era sua obrigação�

Enquanto guardava suas coisas no carro, Marcelo avis-tou uma mercearia que estava aberta� Resolveu então com-prar algumas coisas de que provavelmente precisaria� O lugar era pequeno e as mercadorias estavam espremidas nas prateleiras� Infelizmente não tinha muita variedade, o que fez Marcelo optar por levar apenas o necessário� Ele pegou alguns frios, enlatados, comidas de preparo instantâ-neo, frutas, produtos de higiene e limpeza e se dirigiu para o balcão� Por ser o único cliente àquela hora da manhã, foi rapidamente atendido por um senhor bem humorado�

Embora Marcelo ainda não estivesse familiarizado com as ruas, conseguiu dirigir sem problemas, agradecendo si-lenciosamente por ser domingo e não ter muitos veículos transitando� Parecia que a maioria da população ainda es-tava adormecida, alheias ao badalar dos sinos que tocavam freneticamente convidando-as para a missa�

Apesar de Cianorte não ser uma cidade grande, havia certos dias que o trânsito ficava caótico no centro� O sufi-ciente para irritar qualquer um que estivesse com pressa� Mesmo assim, ter um meio de transporte facilitava muito a vida, porque nem tudo era perto� Essa foi uma das razões que havia levado Marcelo a comprar um carro logo no se-gundo dia em que chegou à cidade�

No primeiro dia tinha sofrido como um condenado, an-dando à procura de casas e imobiliárias� Então, chegou à conclusão que antes de ter uma casa precisava comprar um carro� Por sorte, conseguiu fazer um excelente negócio com uma concessionária e comprou um utilitário SW4 preto que

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muito lhe havia agradado� Gostava de utilitários por sua ca-pacidade de abrigar muitas coisas e entrar em muitos luga-res que os sedans não conseguiam, além de serem ótimos para viagens longas�

Sentiu-se um pouco deprimido ao constatar que talvez o quesito viagem não fosse importante, uma vez que não tinha amigos ou parentes que quisessem vê-lo� No mo-mento havia apenas uma pessoa que ele precisava visi-tar – Elisa – e ele não tinha a menor ideia de como seria recebido� O endereço que seu Manoel lhe dera ficava na capital do estado, Curitiba� Mas, sinceramente, ele não sa-bia o que dizer se a visse� Quando pedira o endereço agira por impulso� A magia presente na casa levara-o a imaginar como estaria essa mulher, onde viveria e o que sentiria� E o mais importante�� porque o marido a havia abandonado? Sabia perfeitamente que nada disso era da sua conta, mas o que sentiu era mais forte do que ele� Como se fosse uma necessidade descobrir o mistério que envolvia os dois jo-vens tão apaixonados da foto�

Sentiu isso novamente, assim que estacionou em frente à casa, que agora era sua� Desceu do carro e abriu seu por-ta-malas� Não precisava olhar à sua volta para saber que os vizinhos o olhavam com curiosidade, tentando conhecer o novo indivíduo�

De fato, estava tirando a última mala quando uma voz soou às suas costas o sobressaltando:

– Bom dia! O senhor está se mudando pra cá? Marcelo virou e viu-se frente a frente com uma figura

simpática que aparentava ter uns oitenta anos de idade� Era um senhor magro e encurvado que se apoiava em uma ben-gala� Seus cabelos brancos e óculos redondos davam a sua fisionomia uma aparência engraçada�

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– Bom dia! – respondeu Marcelo – Sim, eu estou me mudando�

– Me chamo Afonso Martins e moro na casa da frente� – ele se apresentou muito formalmente�

– É um prazer conhecê-lo� Meu nome é Marcelo� – falou cumprimentando o velhinho com um aperto de mão�

Seu Afonso observou as malas nas mãos de Marcelo e o carro vazio, franziu as sobrancelhas e então perguntou:

– O senhor está vindo com sua família?– Na verdade, eu vim só� – respondeu Marcelo meio

sem jeito fitando a expressão do velhinho que parecia es-perar por uma resposta diferente� Ele realmente parecia encabulado�

– E vai morar nessa casa tão grande sozinho? – ele tor-nou a perguntar�

A vida solitária nunca havia sido um problema para Marcelo� Até então ninguém nunca o havia questionado�

– Eu não sou casado� Não tenho família� – respondeu simplesmente�

Realmente, pela expressão de seu Afonso percebia-se que ele estava muito chocado�

– O Senhor não tem ninguém no mundo? – insistiu o an-cião com a face visivelmente angustiada, como se o vizinho padecesse de um mal terrível�

– Bem�� – disse Marcelo meio desconcertado� – Eu tenho alguns parentes�� Meus pais�� Mas eles moram longe daqui�

– Ah�� – exclamou ainda confuso e após um momento de reflexão, pareceu desistir ou guardar o assunto para aná-lise posterior, focando-se no motivo de estar ali – Na ver-dade, eu vim aqui para dar as boas-vindas e convidá-lo para conhecer minha casa� Já que será nosso vizinho, gostaria que conhecesse minha família�

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– Muito Obrigado! – respondeu Marcelo com um sorri-so sincero� – Pode deixar, logo irei�

Seu Afonso deve ter interpretado mal o sentido de logo de Marcelo, pois se entusiasmou e disse:

– Que ótimo! Por favor, venha almoçar conosco hoje� O senhor irá gostar muito da comida da minha esposa e pode-rá conhecer todos da minha família�

– Mas��– Sem mas, meu rapaz! Não aceito não como resposta�

Vejo-te daqui a pouco, seu Marcelo� Até logo! – concluiu afastando-se apoiado em sua bengala�

“Essa não!” – pensou Marcelo – “Essa gente é muito hospitaleira� Isso dá nos nervos”� Com certeza inventaria alguma dor de cabeça para não comparecer ao almoço�

Entrou na casa carregando as malas, admirando mais uma vez o ambiente requintado da sala de estar� Abriu as janelas para entrar um pouco de ar e luz� Após guardar as compras, subiu a escada e escolheu um quarto pequeno para si� Não fazia sentido ficar na suíte� Na verdade ele não con-seguiria ficar ali, era como se estivesse invadindo a privaci-dade de alguém� Talvez precisasse fazer algumas mudanças no futuro� Mas ele sabia que o lugar que mais ficaria era a biblioteca� Enquanto não encontrasse um trabalho apro-veitaria seu tempo livre para ler livros e escrever um novo romance, e na medida do possível descobrir a verdade sobre Lucas e Elisa� A única coisa que realmente necessitava era encontrar alguém que fizesse o serviço de limpeza da casa� Quem sabe o seu prestativo vizinho Afonso lhe ajudasse�

Após organizar suas roupas no armário, dirigiu-se para a biblioteca, em busca de uma prateleira para colocar seus livros� Próximo ao local onde achara o livro com a foto de Elisa e Lucas encontrou uma seção vazia� Foi ali que

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decidiu colocar seus livros� Pegou um espanador para re-tirar o pó que se acumulara, e ao se inclinar para limpar melhor, percebeu que havia um livro caído atrás da estante� Retirou-o de lá, surpreso, ao ver o que encontrara�

O caderno de aproximadamente quinhentas páginas, capa dura, encadernado em espiral, estava coberto de poei-ra, mas, ainda assim, era possível visualizar na capa preta duas letras douradas desenhadas: L e E� Como alguém que pisa um território sagrado, Marcelo virou a primeira página� Numa caligrafia muito bonita estava escrito apenas” Diário de Lucas Rangel”�

– Não é possível! – exclamou em voz alta, sem acreditar no que os seus olhos viam�

Folheou algumas páginas e constatou que realmente era um diário� A última data em que estava escrito era 31 de de-zembro de 2012 – seis meses atrás – restando umas dez pá-ginas em branco� Porém havia uma informação no verso da capa, escrita em letras miúdas, quase imperceptível – diário nº 4� O que significava que esse diário era uma sequência, da história vivida por Lucas�

Marcelo tinha consciência de que havia encontrado um verdadeiro tesouro� Sabia que era algo muito íntimo, que não deveria ler, mas dada as circunstâncias, ele via como uma dádiva dos céus tê-lo encontrado� Com certeza naque-las páginas haveria algo que explicasse o mistério da sepa-ração do casal� Era uma chave para o passado�

Ia começar a lê-lo, mas justo neste momento a campa-inha tocou� Quem quer fosse não iria desistir de encontrá--lo� Só enquanto descia as escadas, o som estridente soou três vezes� Para sua surpresa, apoiado na bengala estava seu Afonso, sorrindo com toda sua simpatia�

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– Senhor Marcelo, vim buscá-lo para o almoço� O se-nhor estava demorando, vim ver se estava bem� – falou ele com seus olhinhos vivos brilhando de entusiasmo�

Marcelo ainda tentou pensar em uma desculpa, mas a expressão de seu Afonso não deixava dúvidas: nada o faria aceitar a recusa de seu convidado para o almoço� Então se limitou apenas a sorrir e responder:

– Muito obrigado, seu Afonso! Eu já estou indo�A casa de seu Afonso também tinha um modelo colonial

semelhante à de Marcelo, com a diferença que não tinha dois andares� Era até engraçado de se ver, pois havia mais quatro casas na mesma rua, idênticas� Duas de cada lado, de modo que a de seu Afonso era a do meio� Todas pintadas de verde� Eram notáveis ao longe na rua�

– Vamos entrando, seu Marcelo! O senhor adorará co-nhecer minha família! – disse seu Afonso, abrindo o portão de ferro� E elevando um pouco mais a voz chamou sua es-posa – Isabel, venha receber nosso vizinho�

A porta da frente se abriu e uma senhora de aparente-mente setenta e cinco anos e de estatura mediana apareceu� Ela devia estar ocupada com os preparativos para o almoço, pois enxugou as mãos no avental� Tinha a mesma expressão simpática e acolhedora de seu Afonso�

– Esta é Isabel, minha esposa – apresentou seu Afonso�– Que honra recebê-lo, seu Marcelo� Por favor, entre e

fique a vontade – a mulher apertou sua mão com suavidade� O interior da casa era decorado com simplicidade� Os

móveis eram de cores neutras e apesar de estarem em per-feito estado de conservação, notava se que eram antigos e de alta qualidade� Talvez seu Afonso não quisesse se des-fazer de suas antiguidades, e na verdade elas davam certo

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charme à bela construção, competindo com os inúmeros quadros com fotos de família que cobriam as paredes�

Marcelo foi conduzido por um corredor pequeno que levava a uma espaçosa cozinha, onde várias mulheres divi-diam o espaço preparando o almoço� Pelo cheiro provavel-mente iria ficar delicioso� Seu Afonso apresentou cada uma delas� Marcelo não conseguiu gravar o nome de nenhuma, apenas sabia que cinco eram netas e as outras quatro eram noras� Pelos seus cálculos as primeiras tinham entre vinte a trinta anos e as outras deviam ter mais ou menos cinquenta�

– Suponho que vocês já estejam terminando de preparar o almoço� Por favor, não vamos desapontar nosso vizinho� Eu disse a ele que vocês fazem pratos divinos�

– Pode deixar, vô! Ele ficará encantado com nossa culi-nária� – respondeu a neta mais próxima beijando o avô e piscando para Marcelo que sorriu em resposta�

– Então vou levar nosso convidado de honra para co-nhecer o resto da família, enquanto vocês terminam esse banquete�

Em uma varanda estava instalada uma grande mesa com várias cadeiras� Havia também uma grande churrasqueira onde quatro homens conversavam energicamente, enquanto cuidavam das carnes que assavam� Seu Afonso apresentou os como seus filhos� Desses era mais fácil gravar os no-mes, o difícil era saber quem era quem� – João Ricardo, João Paulo, João Roberto e João Alexandre� Eram mais ou menos da mesma estatura, parecidos com o pai, com ida-des aparentemente variando de cinquenta a sessenta anos� Também eram muito simpáticos e receberam Marcelo com toda cortesia�

Havia ainda alguns jovens� Todos eram netos de seu Afonso, alguns já casados e com filhos� Pelo menos dez

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crianças pequenas corriam de um lado para o outro, cir-culando em torno das mesas enquanto esperavam, impa-cientes, o almoço ser servido� A presença de um estranho não as intimidou� Corriam, pulavam, gritavam, brigavam e as repreensões paternas pareciam não surtirem efeito� Marcelo pensava que encontros familiares assim, só acon-teciam no Natal�

Assim que o almoço ficou pronto, todos se sentaram e começaram a comer� O cardápio servido estava delicioso: frango ao molho, carne de boi e de porco assadas, arroz, feijão, mandioca e saladas variadas�

Marcelo se viu cercado por pessoas curiosas, que fala-vam muito e também riam alto� Ele estava desacostumado com esse tipo de convivência� Durante a refeição fizeram--lhe inúmeras perguntas� Parecia que ele era um objeto de estudo em um laboratório sendo revirado e analisado com lupas, microscópios�� Mas, com surpresa, percebeu que não se sentia constrangido e muito menos entediado� Ao contrá-rio, estava se divertindo muito, tentando responder a todas as perguntas� O interrogatório havia começado simples até que virou um verdadeiro reality show�

– Onde você morava, Marcelo, antes de vir para cá? – per-guntou uma das netas de seu Afonso, cujo nome era Flávia�

– Pra falar a verdade, eu morei toda minha vida em São Paulo, mas depois que cresci fui embora para os Estados Unidos e passei alguns anos lá� Então resolvi voltar�

À menção do país norte americano eles fizeram inúme-ras perguntas, sobre como era o lugar, o que tinha de legal e o que mais gostou de lá� Todos queriam perguntar ao mesmo tempo� Só ficavam em silêncio para ouvir as res-postas� Geralmente Marcelo não se abria com tanta facili-dade, mas sentiu-se muito a vontade com aquela família�

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Respondeu com sinceridade e sem nenhum embaraço a todas as perguntas� Descreveu a beleza e a intensidade da vida nova-iorquina; a magnificência do Central Park no inverno que deixava a paisagem despida de folhas e coberta de neve, assim como seu colorido extraordinário no outono e na primavera; a variedade de lugares para se visitar e a diversidade de pessoas de vários países que era possível conhecer�

– Pela forma como você fala desse lugar, você gostava muito de lá� – observou Flávia� – Porque resolveu voltar?

Essa não era uma pergunta fácil de responder� Nem para ele mesmo conseguia dar uma resposta satisfatória� Mas re-solveu dar um dos motivos�

– A vida nos grandes centros pode tornar-se�� estressan-te� Quando decidi voltar para o Brasil estava à procura de uma cidade menor e mais tranquila, sem o trânsito das me-trópoles, onde a vida fosse mais simples�� menos agitada�

– Mas, seu Marcelo – questionou seu Afonso, que até o momento ouvira calado� – Eu só não entendo uma coisa: Por que o senhor escolheu Cianorte para morar?

– Bem – começou Marcelo – meus avós paternos mora-vam aqui em Cianorte� E eu costumava passar as férias com eles� Lembro que eu contava os dias para vir� Eles moravam em uma fazenda e eu gostava de brincar nos campos, com os garotos que moravam na propriedade e outros que tam-bém vinham passar férias na vizinhança� Em São Paulo, eu ficava preso dentro de casa� Tinha amigos, mas parecia que não eram tão legais quanto os daqui� Enfim, eu me divertia um monte� Meu avô era muito bom e me levava para vários lugares� Aprendi muito com ele� E minha avó era o tipo de pessoa que fazia de tudo para agradar um neto� Tenho mui-tas lembranças agradáveis dessa época� E creio que essas

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lembranças foram o que me fizeram voltar para cá, ainda que meus avós não estejam mais vivos�

Todos o ouviram atentamente em silêncio� Marcelo narrou algumas das aventuras que vivera junto com seu avô e o tom nostálgico que descera foi aos poucos se dissipando, porque as histórias eram muito engraçadas� E por fim, todos estavam rindo das travessuras do garoto de cidade grande no interior�

– Mas como assim, Marcelo, você não sabia distinguir uma vaca de um cavalo? – perguntava João Roberto, en-quanto todos riam até não poder mais, de uma façanha que ele lhes contara�

Mais para o final do almoço, a conversa mudou de rumo: Começaram a dar detalhes das vidas das pessoas que mo-ravam na cidade� Pareciam saber de tudo o que acontecia�

“Como é possível? – pensou Marcelo� – Só podem ter um bom sistema de câmeras que monitora a vida alheia�”

E para a felicidade de Marcelo, tocaram no assunto que no momento era de seu máximo interesse�

– O Senhor realmente fez um ótimo negócio� – disse João Alexandre – Essa casa é muito bonita! Por acaso co-nhecia os donos?

– Não� Mas, me disseram que eles se separaram� – falou Marcelo com a intenção de colher informações daqueles vi-zinhos tão curiosos�

– Separaram?! Que nada! Lucas abandonou a esposa! – acrescentou João Ricardo� – Coitadinha! Sofreu tanto� Não saía e não falava com ninguém�

Marcelo fez a pergunta pela qual buscava uma resposta:– E vocês sabem por quê? – Ninguém sabe! – prosseguiu o primeiro João� – Al-

guns dizem que ele era amante da Susana, a esposa des-cobriu e ele precisou ir embora� É fato que ninguém tem

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provas, mas Susana e seu esposo eram visitantes assíduos do casal� A única coisa que sabemos é que na véspera de ano novo, estava tudo quieto como sempre, de repente ouvi as vozes alteradas�� Eu estava na frente de casa pre-parando os fogos de artifício para soltar à noite, quando vi seu Lucas saindo com uma mala para o carro� Elisa estava atrás dele e chorava desesperadamente implorando para que ele ficasse e não fosse embora� Foi uma cena aterro-rizante� De nada valeram seus pedidos, ele simplesmente entrou no carro e partiu�

– Então, não faz sentido a versão de que ele era amante de Susana� Caso contrário, quem teria ido embora seria Eli-sa� – Questionou Marcelo�

– As más línguas inventaram isso porque não encontra-ram uma explicação melhor� – disse João Paulo�

– E depois, o que aconteceu com Elisa? – perguntou Marcelo�

– Ela não saía de casa, não recebia ninguém� Eu sem-pre gostei de visitá-la, mas nem a mim ela recebia, dizia apenas que queria ficar só� – falou seu Afonso� – Ape-sar dela não falar, eu sabia que ela estava sofrendo muito� Lucas e ela eram muito unidos� Nunca vi um casal mais bonito do que aquele�

Seu Afonso teve que fazer uma pausa nesse momen-to, pois todos ao redor da mesa diziam alguma palavra de concordância�

– Aqui no nosso bairro eles eram muito queridos� Foi triste ver Elisa sofrendo sem saber como ajudá-la� Ficamos preocupados, mas não tinha nada que podíamos fazer� – continuou seu Afonso, com o olhar distante, como se revi-vesse aqueles momentos� – Passaram-se três meses, até que um dia ela finalmente decidiu ir embora� E há uma semana

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a imobiliária colocou a placa para vender, com tudo dentro� Quem sabe o senhor encontre algo que ajude a solucionar esse mistério!

– Talvez, vamos torcer para que isso aconteça! Nesse momento, Marcelo lembrou-se que na verdade

já havia encontrado uma importante chave para o enigma� Tinha que ler o diário de Lucas� Com espanto, olhou no re-lógio e constatou que já eram três horas da tarde� O tempo simplesmente voara� Agradeceu o almoço e despediu-se de todos, que o convidaram a vir sempre visitá-los� Seu Afon-so o acompanhou até o portão e prometeu-lhe que no dia seguinte lhe enviaria uma neta para ajudá-lo nos afazeres da casa� Só não a apresentou porque ela não estava ali no momento� E despediu-se com uma filosofia intrigante:

– Seu Marcelo, Família é o que temos de mais impor-tante na vida� Mas tenho certeza que aqui em nossa cidade, você encontrará uma bonita moça para se casar�

“O velhinho realmente era de outra época�” – pensou Marcelo�

Ao cruzar a rua para retornar para sua casa, sem inten-ção seus olhos se fixaram na casa de Susana� Ela estava sentada na varanda, linda como no dia anterior, mas agora o marido estava ao seu lado� Por um momento ela levantou seus olhos da revista que lia e encarou Marcelo� Mesmo à distância, seus olhos eram sedutores e penetrantes� Em um segundo ele entendeu porque a vizinha da esquerda era tão atraente�

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caPítulo 3

o diário de lucaS rangel

Ao entrar na casa, Marcelo permitiu-se novamente con-templar aquele ambiente tão silencioso e vazio, como se procurasse por respostas� Seus passos ecoavam estranhos enquanto caminhava, lembrando-se do que a família de seu Afonso dissera sobre Lucas e Elisa� Apesar do dia alegre que tivera, ao entrar na casa ele sentiu-se profundamente triste ao imaginar o quanto Elisa teria sofrido sozinha na-quele lugar cheio de recordações�

Subiu a escada dirigindo-se para a biblioteca� Abriu as janelas para entrar um pouco de ar� Pegou o diário de Lucas, que havia deixado sobre a mesa e sentou-se em uma poltro-na bastante confortável� Abriu-o devagar, como se abrisse algo sagrado ou um cofre com um tesouro escondido� Ler um diário não é como ler um livro ou uma história qualquer� É como adentrar a alma de uma pessoa� Naquelas páginas se revelam o que há de mais nobre em um ser humano, como o que há de mais vergonhoso� A vida nua e crua, com suas vitórias e fracassos; sonhos e temores; alegrias e tristezas; encontram um abrigo seguro em um diário�

Escrever naquelas páginas é um modo diferente de par-tilhar o que se sente sem ter alguém que julgue e condene� E mesmo que aquelas linhas inanimadas não deem nenhu-ma resposta, pelo menos dá a sensação de que de algum modo elas ouviram e entenderam a grandiosidade da alma que nelas se derramou� Não importa quantos anos passem,

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amareladas e empoeiradas elas guardarão o segredo a elas confiado, sem alterar uma só palavra�

Ao ler a primeira página, Marcelo sentiu-se como um intruso cruzando o limite de um espaço que jamais poderia ser adentrado� Lucas não lhe dera permissão� Mas sua mis-são ali era sublime� Não lia por simples curiosidade� Jamais iria revelar o que descobrisse por interesses mesquinhos� Seu único objetivo era descobrir o mistério da separação do casal e se possível ajudá-los� Então, com a imaginação digna de um escritor, mergulhou na leitura, enquanto lia as linhas e entrelinhas do passado de Lucas�

***

O ano de 2011 começou maravilhoso para Lucas. Não havia uma palavra melhor para definir seu estado de espí-rito do que realização. Havia concluído com louvor seus estudos de música, algo em que havia se dedicado pode-se dizer a vida inteira e finalmente nesse momento da vida ele se sentia recompensado. Na manhã de três de fevereiro, exatamente quando completava seu vigésimo quarto ani-versário, a universidade na qual estudou enviou-lhe o co-municado de que o estava contratando para ser professor no Curso de música.

Relembrou com gratidão o caminho que havia percorri-do para chegar até ali e quantas pessoas o haviam ajudado nesse processo. E quanta dedicação e esforço foram neces-sários para que aprimorasse seus talentos.

Desde os dois anos de idade, quando ganhou sua pri-meira violinha de presente de Natal, o gosto pela música começou a crescer dentro dele. Depois veio o teclado e à medida que ia crescendo insistiu com os pais para que o

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deixassem estudar música. Implorar não foi preciso. Os pais o amavam. Era seu filho caçula. Nascera em um par-to difícil para Ana, a Mulher que lhe dera a vida. Eles queriam que ele fosse feliz. Também haviam percebido sua habilidade com a música e o matricularam na melhor escola da cidade.

Helena, sua professora, ajudou a desenvolver ainda mais seu talento. Devia ter pouco mais de trinta e cinco anos quando começou a ensiná-lo. Era uma mulher doce, sensível, que amava a música e ensinou Lucas a também amá-la. Com ela, aprendeu tocar flauta, violão, teclado, piano e violino. Mas o que o fascinava mesmo era o pia-no. Quando sentava naquele banquinho e seus dedos pas-seavam pelas teclas, parecia-lhe que sua alma se elevava da terra.

A música era sua diversão e brinquedo. Todos os pre-sentes que ele ganhava estavam relacionados com ela: CDs e camisetas de suas bandas preferidas, instrumentos musi-cais... Essa paixão pela música não deixou dúvidas quanto a sua profissão. Queria se tornar um professor. Como He-lena, ele ensinaria outros a amar a música.

Assim que concluiu o ensino médio, soube que era tem-po de alçar voos maiores. Conseguiu passar no vestibular e ingressou em uma faculdade em Curitiba. Deixar o confor-to da convivência com a família em Maringá – sua cidade natal – foi uma das primeiras dificuldades que enfrentou. Mas foi no universo acadêmico que aprendeu as maiores lições de sua vida.

Ele ainda era um calouro quando começou a participar do projeto Rouxinol, de iniciativa da universidade, cujo ob-jetivo era ensinar música para crianças carentes com idade entre sete e quinze anos. Na época, eles se reuniam nas

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praças e as aulas eram dadas ao ar livre para um grupo de vinte crianças em um bairro da periferia. Como o projeto estava sendo um sucesso, a prefeitura se dispôs a ajudar e construiu um salão pequeno com salas adequadas, com capacidade para atender cem crianças. Surgiram novos vo-luntários e além de música, havia professores que ensina-vam teatro, dança e trabalhos artesanais.

Por ser de uma família rica, Lucas sempre teve tudo o que desejou. Nunca conheceu a carência de nada e muito menos a privação do que era essencial para viver. O contato com a dura realidade de muitas famílias daquelas crianças deu-lhe uma nova percepção da vida, assim como despertou dentro dele a sensibilidade para com o sofrimento alheio. É certo que havia pessoas que viviam em condições precárias porque não faziam nada para mudar. Não se importavam em trabalhar ou buscar soluções e ainda dificultavam a vida dos que estavam à sua volta. Mas também, existiam aqueles que por mais que se esforçassem era em vão, porque sofriam in-justiças ou porque simplesmente não conseguiam alcançar o que buscavam. A vida não lhes era favorável.

Se havia uma questão de sorte no mundo dividindo as pessoas entre ricos e pobres, Lucas não saberia dizer. Mas duas lições ele havia aprendido. A primeira foi que tinha duas escolhas: estar alheio ao que se passava ao seu re-dor ou ser um agente de transformação. Uma ação sua, por menor que fosse, tinha o poder de mudar, ainda que imperceptivelmente, um pouco daquela realidade sofrida. Então ele ofertava o que tinha de melhor: seu dom. Através da música ele podia restaurar sonhos, alcançar as profun-dezas da alma onde nenhum ser humano conseguia tocar, inspirando a esperança de um novo amanhã.

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A segunda lição que aprendeu e talvez a mais impor-tante, foi que a quantidade de dinheiro realmente não era o que definia a felicidade. Vira pessoas paupérri-mas que sabiam sorrir das coisas mais simples da vida. Tinham o semblante sereno simplesmente por comparti-lhar a companhia de alguém. Por outro lado conhecera pessoas riquíssimas que viviam frustradas e depressivas. Ele não era hipócrita de dizer que dinheiro não era nada enquanto sua conta bancária tinha seis dígitos. Mas ti-nha a percepção dentro de si de colocar os bens mate-riais no seu devido lugar, sabendo distinguir o que era necessário do que era supérfluo, valorizando o que na vida era mais importante.

Além da experiência profissional que Lucas adquiriu no projeto, quando estava no terceiro ano da faculdade ele conseguiu emprego em um Conservatório no centro de Curitiba, onde qualquer pessoa era bem vinda para aprender ali, desde que tivesse pelo menos cinco anos de idade. Logo, os alunos eram bem variados, o que lhe ren-deu mais experiência.

Durante os quatros anos da faculdade Lucas estudou com garra e determinação para ser um excelente músico, inclusive fazendo cursos no exterior no período de férias, concluindo com sucesso seus estudos. E dois anos depois, em seu currículo já invejável foi acrescentado um curso de mestrado que fez na mesma universidade.

A parte melhor dessa nova fase que começava em sua vida, era que graças à sua posição como professor univer-sitário, seria coordenador do projeto Rouxinol, que tanto marcara a sua vida. Já estava até pensando no que poderia desenvolver com seus alunos, não só para que o projeto

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tivesse mais qualidade, mas para que seus alunos também aprendessem valores necessários para a vida.

Da mesma forma que era um estudante dedicado, Lu-cas também deu o melhor de si como professor. Tinha um grande talento para tocar, mas outro igualmente grande para ensinar. O primeiro contato com seus alunos foi ma-ravilhoso. Os calouros fizeram-no lembrar de seu passado quando chegara à faculdade, cheio de sonhos e vontade de aprender.

Os primeiros meses passaram rápidos e intensos. Po-rém, por mais que amasse a vida de professor universitário, ele começou a perceber que algo estava faltando. É verdade que sua vida profissional estava ótima, mas o mesmo não se podia dizer de sua vida sentimental. Já fazia um ano desde que rompera seu último relacionamento. Ele nem lembrava porque resolveu terminar o namoro na época. A garota era legal, mas para ele um relacionamento para levar a um casamento tinha que ter algo mais profundo, um sentimento verdadeiro. E isso ele nunca encontrara em nenhuma das garotas que conhecera ao longo da vida. Fábio, seu melhor amigo com quem dividia o apartamento, dizia que ele era muito exigente e acabaria seus dias sozinho e abandonado em algum asilo.

O outono chegou de mansinho com seus tons dourados colorindo a paisagem. Dias frios e chuvosos anunciavam que quando o inverno chegasse seria intenso. Geralmente Lucas almoçava em um restaurante próximo à universidade, junto com Fábio que também fora contratado como profes-sor. O local era simples, mas servia a típica comida caseira muito bem feita. O dia dezenove de maio seria uma data co-mum, se um incidente não tivesse quebrado a rotina do lugar.

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– Vamos almoçar, Lucas! Se decide!... – dizia Fábio impaciente.

– Bem que eu gostaria de ser prático como você, mas sinceramente gosto de fazer uma alimentação saudável! – dizia Lucas enquanto olhava o cardápio do dia fixado pró-ximo à mesa self-service.

– Claro! Vocês ricos só sabem comer coisas boas... sau-dáveis... São cheios de frescuras. Pelo que estou vendo, tudo aqui é saudável. E como eu estou com muita fome, já vou me servir.

Lucas apenas riu enquanto acompanhava o amigo.– Por falar em ricos, se eu tivesse o tanto de dinheiro

que você tem, não iria querer trabalhar. Iria curtir a vida. – continuou Fábio.

– Você já sabe o que penso a respeito do trabalho! – falou Lucas, levando na esportiva o comentário de Fábio.

– Claro, Claro! Aquelas frases formadas, do tipo: “O trabalho dignifica o homem”!

– Além do mais, meus pais é que são ricos, não eu. – redarguiu Lucas.

Assim que terminaram de se servir, os dois sentaram-se à mesa do canto.

– Olá! O que vocês vão querer beber hoje? – perguntou a garçonete se aproximando e interrompendo a conversa.

– Olá, Elisa! Por gentileza, um suco natural de morango.– Está anotado! – disse ela com educação. – E você o

que vai querer? – tornou ela agora para Fábio.– Uma Coca-Cola está ótimo.Com um sorriso delicado, Elisa afastou-se deles.– Eu sei que você a acha bonita, Lucas! Por que não a

chama para sair? – perguntou Fábio que gostava de fazer

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brincadeiras com Lucas, desde um mês atrás quando Elisa começou a trabalhar ali.

– Eu já te disse para parar de bancar o cupido. Não estou aberto para romances no momento.

– Sempre ouço isso. Mas eu te conheço! Você olha para ela de um jeito diferente...

– Por favor, pare de imaginar coisas que não existem. Eu não sinto nada, nem por ela, nem por ninguém. Está claro?

– Ok... Só estou tentando fazer você ver a verdade. Até um cego perceberia que você está interessado nela.

Lucas ia dizer algo, porém foi interrompido: Elisa, que trazia cuidadosamente a bandeja com o pedido dos dois e de mais alguns clientes, bateu por acidente em um homen-zinho de terno e gravata, derramando todo o conteúdo. Na verdade, as bebidas caíram mais nela do que no homem.

– Você não olha por onde anda? Olhe o que fez no meu terno! – do alto de seu pedestal imaginável, o homem olha-va Elisa com olhos nada amigáveis.

– Desculpe-me, senhor! Eu sinto muito! Eu não que-ria... – gaguejou ela.

– Eu não quero saber. – insistiu o homem furioso. – Pre-ciso do meu terno limpo! Agora! Você sabe quanto custa um terno desses? Onde está o seu chefe que deixa uma ir-responsável como você trabalhar aqui? Espero que ele des-conte do valor do seu salário o terno novo que eu quero.

– Sim, senhor! – disse Elisa, com a fala entrecortada. – Por favor, aguarde um momento que vou falar com ele.

Chamar o chefe não era preciso... A cena se desenrolou de tal modo em um restaurante pacato, que todos os olhares se voltavam para a garçonete caída e o homem do terno agora manchado de suco.

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– Com certeza, senhor, ela irá pagar pelo seu terno – disse Alfredo, proprietário do restaurante, entrando na “conversa”. – Poderia me acompanhar, por favor?

– Sim, claro! Mas vou te dar um conselho: uma funcio-nária desastrada como esta, é bom demitir para não causar mais transtornos aos clientes.

O chefe só olhou com menosprezo para Elisa, que es-tava pior do que o homem, encharcada de suco. Só por um instante Lucas pensou que ele fosse defendê-la pelos bons serviços prestados, mas ele só balançou a cabeça em con-cordância dizendo um “Eu acho que você tem razão”.

– Me acompanhe, senhor. – falou Alfredo para o cliente.Lucas não podia mais ficar quieto, sentiu o sangue fer-

vendo em suas veias de uma maneira como nunca sentira antes. Não era só porque estava vendo uma injustiça acon-tecendo na sua frente, mas porque pelo pouco que conhecia de Elisa, ela era a pessoa mais doce e delicada do mundo. Era inconcebível ver alguém a tratando daquela maneira tão rude. Era uma cena impossível de se suportar, suas en-tranhas se contorciam...

– Um momento, por favor! – disse Lucas com uma voz cheia de autoridade.

O chefe, o homem, assim como todos do restaurante vi-raram-se para ele atônitos.

– Não precisa descontar ou demitir essa moça, eu pago pelo terno.

– Para mim é indiferente quem irá pagá-lo. – disse o sujeito. – Eu só quero um terno limpo.

Lucas deu um passo à frente, abriu sua carteira e de lá tirou quatro notas de cem reais.

– Acho que isso é mais do que suficiente para com-prar o seu terno novo. E agora, por gentileza, gostaria

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que o senhor pedisse desculpas pelas ofensas que dirigiu a essa moça!

– Como?! – perguntou o homem alterado, com a face aver-melhada de raiva. – Foi ela quem derramou suco em mim!

– Acredito que ela não fez por querer, senhor! Como acredito também, que o senhor frequenta este lugar há bas-tante tempo, e posso imaginar que tenha sido sempre bem servido, caso contrário, não continuaria vindo aqui. – iro-nizou ele no fim. – Afinal, lembro-me que todos os dias o senhor se senta naquela mesa.

Pela primeira vez o sujeito do terno ficou sem palavras. Inacreditavelmente olhou para Elisa e sussurrou um pedido de desculpas, saindo logo em seguida sem sequer pegar o dinheiro.

– Você está bem? – perguntou Lucas, estendendo a mão para Elisa e ajudando-a levantar.

– Estou. – disse ela fitando-o agradecida. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. – Muito obrigada! Não preci-sava ter feito isso...

– Não foi nada. – disse ele enquanto um nó se formava em sua garganta.

– Muito Obrigada, mais uma vez! – repetiu ela, e afas-tou-se rapidamente.

Lucas chegou em casa exausto naquela noite. Colocou seu CD preferido – Mozart – para tocar em um volume baixo e aconchegou-se no sofá observando a chuva cair através da vidraça, enquanto seus pensamentos divagavam sobre o que havia acontecido na hora do almoço. Por mais que tentasse seus pensamentos sempre voltavam para Eli-sa. Mais tarde tentou tocar um pouco de piano, mas sentia uma sensação de inquietude que nem a música conseguia

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acalmar. Quando olhou no relógio de parede, já eram qua-se onze horas, porém não sentia sono. Deitou-se no sofá e ficou observando o teto. O barulho da porta abrindo re-tirou-o de seus pensamentos. Fábio entrou todo molhado.

– Olá, Lucas! Que chuva! Estou me sentindo uma sopa.Realmente seu cabelo preto e liso estava escorrido ao

redor do rosto, pingando em bicas. Suas roupas também estavam molhadas.

– Olá, Fábio! – respondeu Lucas. – Acho melhor você tomar banho e se secar, caso contrário vai pegar um resfriado!

– Qual é cara? Você está parecendo minha mãe... Mas você está acordado até agora?!

Fábio tinha razão em estar surpreso. Geralmente, quando chegava Lucas já estava dormindo.

– Já sei! Essa insônia tem nome... Elisa...– Olha, vai tomar banho! – disse Lucas, tentando pare-

cer sério em duplo sentido.Ele não queria admitir, mas dessa vez o amigo acerta-

ra na mosca. Ele não conseguia esquecer o episódio com Elisa. Ao lembrar-se da doçura daqueles olhos castanhos, uma luz se acendeu em seu interior. A origem de sua inquie-tação foi descoberta. Fábio estava certo. Ele sentia algo por Elisa. algo que ele ainda não sabia explicar e definir. Mas de uma coisa tinha certeza, não podia mais ignorar esse sentimento.

***

Marcelo olhou o relógio e levou um susto, já eram dez horas da noite� Havia mergulhado tanto na leitura, que se-quer percebera a hora passar� Tinha que parar e descansar,

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no dia seguinte continuaria lendo� Estava feliz, pois come-çara a descobrir algo sobre Elisa e Lucas� Tinha consciên-cia que estava longe de solucionar o mistério, mas por in-crível que pareça, sentia-se realizado� Vivera bem seu dia� Conhecera pessoas especiais, compartilhara uma refeição com elas e ainda por meio de um diário adentrara o mundo interior de um estranho, com o objetivo de ajudá-lo�

Tomou um banho bem quente para ajudar a relaxar os músculos e fez uma refeição rápida� Somente quando dei-tou na cama, percebeu o quanto estava exausto� As pálpe-bras pesadas se cerraram rapidamente, mergulhando-o em um sono profundo�

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caPítulo 4

o aMor bate à Porta

O barulho insistente da campainha despertou Marcelo na manhã seguinte� Olhou no relógio sobre o criado mudo, ainda eram sete horas da manhã� Quem estaria importunan-do-o tão cedo? Vestiu-se rapidamente e desceu as escadas para abrir a porta para a pessoa impaciente que continuava a tocar� Pela experiência do dia anterior, ele já tinha uma vaga ideia de quem seria�

De fato, assim que abriu a porta, viu-se frente a fren-te com seu Afonso� Porém, ele não estava sozinho� Ao seu lado se encontrava a mais bela moça que Marcelo já vira na vida� Deveria ter no máximo vinte e cinco anos� Era de uma estatura mediana e tinha longos cabelos negros, levemente ondulados que emolduravam seu rosto� O mais perturbador, no entanto, eram seus intensos olhos verdes� Olhar para eles era como se jogar em um abismo sem paraquedas� Contu-do, o efeito devastador de sua beleza surreal era prejudica-do pelo vestuário, que demonstrava a necessidade de uma mudança urgente� Sua calça jeans já estava bem gasta e o moletom velho e desbotado daria para vestir duas pessoas do tamanho dela, juntas�

– Bom dia! – cumprimentou seu Afonso, com seu habi-tual bom humor, trazendo Marcelo de volta à terra� – Espero não tê-lo acordado�

– Bom dia! – respondeu Marcelo� – Na verdade o senhor me acordou� Mas não tem problema� Já estava na hora de

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levantar� Por favor, entrem! – Era impossível ficar zangado com seu Afonso� Ele era muito amável�

– Muito Obrigado! Mas só vim trazer minha neta Bea-triz� Ela irá ajudá-lo com a limpeza da casa e no que preci-sar� O senhor gostará muito dela�

– É um prazer conhecê-la� – disse Marcelo, estendendo--lhe a mão�

– Igualmente! – respondeu ela timidamente, em uma voz tão baixa que não combinava com a sua beleza�

– Tenho certeza que a Bia fará um ótimo trabalho� Ela conhece muito bem a casa, pois fazia a limpeza para Elisa� – explicou seu Afonso�

– É mesmo? – perguntou Marcelo surpreso�Beatriz só balançou a cabeça concordando� – Certo, Bia! Está entregue! – falou seu Afonso, abra-

çando-a� E depois se virando para Marcelo acrescentou – E o senhor cuide bem da minha netinha! Até logo! – e foi se afastando apoiado em sua bengala�

Marcelo ficou intrigado� É certo que precisava de al-guém para limpar sua casa, mas aquela criatura angelical, à sua frente, era a última pessoa que ele imaginava desti-nada para essa tarefa� Além disso, seu Afonso não era uma pessoa pobre�� Sua casa revelava que era um homem de posses� Porque então sujeitaria a neta a um trabalho como esse quando podia estudá-la para ter um emprego melhor na vida? E mais�� Se ela era neta, era porque era filha de um dos “Joões” que ele conhecera na tarde anterior� E para falar a verdade, eles pareciam desfrutar de uma boa situa-ção financeira� Então, porque aquela moça, que continuava parada à sua porta, precisava trabalhar de diarista? Ele não sabia o que pensar�

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– É melhor entrar! – convidou ele, torcendo para que ela não notasse a confusão de seus pensamentos�

– Com licença! – disse ela na mesma voz baixa�Como escritor, Marcelo amava decifrar as pessoas� Mas

sabia também que era mais fácil entender o mundo de Platão do que a alma feminina� Contudo, revirou suas lembranças e constatou que nunca havia conhecido alguém tão tímida quanto a jovem que ali estava�

Ele a observou entrar e olhar a sala de estar� Sua expres-são traía alguma emoção�� Um misto de perda e saudosismo talvez� Parecia fazer um esforço enorme para controlar-se diante do cenário a sua volta� Como se o lugar lhe desper-tasse recordações que ela não podia suportar� Aos poucos, porém, ela assumiu a mesma postura apática anterior�

Marcelo quebrou o silêncio:– Eu vou precisar que limpe a casa duas vezes por sema-

na� Então, eu lhe pagarei o valor da diária� Pode ser?Ela só balançou a cabeça novamente em sinal de

afirmação� “É muito esquisito!” – pensou Marcelo�– Se quiser começar agora, vou lhe mostrar onde estão

os produtos de limpeza� Ela seguiu-o sorrateira como uma sombra, quase sem

ruído, de modo que Marcelo precisava virar a cada dez se-gundos para ver se ela ainda estava ali ou se não estava falando sozinho� Ela não falava nada, apenas balançava a cabeça negando ou concordando� Essa fugia à regra da ci-dade e da família de seu Afonso� Ela conseguia o que era impossível aos seus conterrâneos: ficar em silêncio�

– Como você pode perceber, a casa continua do mesmo jeito que os antigos proprietários deixaram� Pelo menos foi isso o que me disse o corretor� Então imagino que não terá

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dificuldades para realizar o trabalho� Mas se precisar de al-guma coisa, é só me chamar�

Como ele já esperava, ela apenas inclinou a cabeça em concordância�

Após deixar Beatriz com seus afazeres, Marcelo vol-tou para seu quarto� Tomou um banho e se preparou para começar um novo dia� Queria voltar o quanto antes à lei-tura do diário� Quem sabe hoje conseguisse avançar um pouco mais na história� Desceu para a cozinha e prepa-rou uma caneca de café com leite bem quente� Já estava se dirigindo para a biblioteca quando lembrou que não estava sozinho� Decidiu perguntar se Beatriz queria co-mer algo� Ela estava limpando a suíte quando ele entrou, sobressaltando-a�

– Desculpe-me! Vim perguntar se você quer tomar café�– Não, obrigada – respondeu ela, continuando a espanar

o pó da cômoda�– Está bem! Se sentir fome pode comer do que quiser na

geladeira ou dos armários que lhe mostrei� – falou Marcelo�– Obrigada! – disse ela novamente� Pelo menos uma palavra ela sabia dizer: obrigada� Já era

um começo� Talvez ele entrasse na internet para pesquisar casos de timidez� Já ouvira e lerá muito sobre fobia social, poderia ser o caso dela� Mas ele não era psicólogo para dar um diagnóstico, se é que precisava ser diagnosticado� Ele acabará de conhecê-la, não era justo julgá-la pelo que per-cebeu em poucos minutos�

“Não é certo definir uma pessoa sem realmente conhe-cê-la� Cada ser é único e esconde dentro de si uma rique-za imensa, grandiosa demais para ser lida por um primeiro olhar�” – disse para si mesmo� E além do mais, não era da sua conta, afinal já tinha um enigma para resolver�

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Dirigiu-se para a biblioteca, sentou-se junto à escriva-ninha e abriu o diário na página em que parara� Estava an-sioso para descobrir o que aconteceria depois entre Elisa e Lucas� Afinal, pelos seus cálculos, eles se casaram sete meses depois do episódio com o sujeito do terno�

***

Lucas não conseguiu parar de pensar em Elisa e cada dia com mais frequência. Parecia um adolescente vivendo a primeira experiência do amor. Nem dormindo tinha paz de espírito, porque todas as noites sonhava com ela. E como se não bastasse, ainda tinha Fábio para torturá-lo com seus comentários. Lucas não sabia o que estava acontecendo. Nunca tivera dificuldades com as garotas. Na verdade elas pareciam se atirar sobre ele, não que tivesse tido muitas namoradas. Mas, o que sentia agora era diferente. Sentia--se intimidado e tinha medo de convidar Elisa para sair e receber um não como resposta. Além do mais, não sabia se ela sentia algo por ele. Tentava se lembrar do olhar dela quando a ajudou se levantar do chão. Um olhar cheio de gratidão. Mas podia ser só isso – gratidão.

Uma semana se passou. Ela continuou a atendê-lo sem-pre prestativa e sorridente. E a cada dia, era como se seus olhos e seu sorriso regassem o sentimento que crescia den-tro de Lucas. Ele estava quase enlouquecendo.

– Por que você não a convida para sair? – sugeriu Fá-bio ao chegar em casa na sexta-feira à noite e encontrar o amigo ainda acordado.

– Por favor, me deixe em paz! – pediu Lucas, entediado.– Só quero te ajudar. Não custa nada tentar. – conti-

nuou Fábio. – O pior que pode acontecer é ela te dizer

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não. Mas se isso acontecer pelo menos você se tortura pelo motivo certo.

– Não é tão simples assim...– Desde quando Lucas Rangel ficou tão covarde? –

zombou Fábio.– Isso! Sorria! Você fala assim porque não é com você.– Cara, é que eu não suporto mais! Parece que estou

vendo um personagem de um filme dramático. Todos os dias, quando eu chego, você esta aí nessa poltrona, com o olhar vazio, suspirando – disse Fábio, imitando Lucas para dar mais veracidade aos fatos. Mas o jeito que ele fez foi tão engraçado que até Lucas riu.

– Puxa! A situação esta tão crítica assim?– Na verdade está um pouco pior! Não sou bom ator,

então não consigo te mostrar direito.– Hum?! Vou pensar no que você me disse. – rendeu-

-se Lucas.– Assim fico mais tranquilo. – disse Fábio rindo. – Não

quero ter que visitá-lo em um manicômio.O dia seguinte amanheceu lindo. Céu azul com um sol

esplêndido. Lucas queria dormir um pouco mais, porém era sábado e ele precisava ir para o projeto das crianças carentes. Sentiu-se feliz. Pelo menos teria algo com que se distrair para manter seus pensamentos longe de Elisa. Se é que isso era possível.

A mente não consegue controlar um coração, quando este decide seguir os caminhos da paixão. Os gregos cul-pariam Cupido e suas flechas, os químicos os hormônios, mas a realidade é que quando se trata de sentimentos avas-saladores, como o amor, não há fórmula mágica ou real que seja útil para controlá-lo. Sofre-se sem motivo, do mes-mo jeito que ama-se sem motivo. Em um dia qualquer, um

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lugar qualquer, quando menos se espera esse sentimento pode surgir, a princípio de mansinho, quase imperceptível, mas tem o poder de transformar completamente a vida de um ser humano, levando-o a tortura só de pensar como se-ria sua vida sem o ser amado. Para quem olha de fora ou que nunca se permitiu ceder às loucuras desse sentimento, parece insano, mas quem o vive sabe que insano seria per-dê-lo para sempre.

Lucas dirigiu com cuidado pelo trânsito agitado, até que finalmente chegou ao bairro do projeto, situado na periferia da cidade. Era um dos bairros mais pobres de Curitiba, então as casas não eram um modelo de beleza arquitetônica. Eram em sua maioria velhas e com cores apagadas. O branco, coberto de poeira ao longo do tem-po, em muitas delas havia se tornado marrom. Algumas eram de madeira e estavam bem tortas. Lucas não sabia como estavam em pé. Tinham algumas bonitas, mas eram raras. A população que vivia ali, em sua maioria, eram trabalhadores mal remunerados ou que viviam de “bi-cos” trabalhando por conta com o que aparecia. Apenas sobreviviam.

As crianças não tinham boas condições de vida, além de ficarem expostas à violência e aos perigos do tráfi-co de drogas presente na região. A vulnerabilidade delas chamou a atenção de um professor universitário quan-do conheceu o bairro, levando-o a desenvolver o projeto Rouxinol como uma oportunidade para que elas tivessem uma vida melhor. Já fazia oito anos que o projeto esta-va melhorando a vida de muitas crianças. E agora, como professor universitário, Lucas já havia percebido muitas mudanças.

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Assim que ele estacionou junto a uma pracinha, já avis-tou vários alunos da faculdade envolvidos com as crianças, brincando com elas em frente ao barracão. Algumas crian-ças, que estavam jogando bola, pararam o que faziam e correram para o seu lado gritando e cercando-o.

– Professor Lucas! Professor Lucas!– Bom dia, pessoal! Estão animados para tocar?Nem era preciso perguntar. Os olhinhos brilhantes e

rostinhos sorridentes eram a resposta. Elas aguardavam a chegada do sábado cheias de expectativa.

A manhã passou tranquila, entre risos de crianças, brincadeiras e notas musicais. Com orgulho, Lucas via seus acadêmicos dedicarem se com afinco para ensinar as crianças. Talvez eles aprendessem mais do que ensinassem. Com aquelas crianças era possível aprender muitas coisas sobre a vida, valores e dignidade humana.

Apesar de amar ensinar, Lucas cuidava mais da organi-zação dos cursos. Ainda assim, conseguia dar aula de vio-lão para uma turma.

O horário do almoço chegou rápido, mas a manhã havia sido bem produtiva. Lucas dispensou as crianças e começou a guardar os materiais para ir embora. Como sempre, todos saíram apressados. Ficou apenas um garotinho – Victor. Ele tinha sete anos, era franzino e pequeno para sua idade, mas muito esperto. Tinha muita facilidade para aprender tocar e todos os sábados ao final da aula ele ficava conversando com Lucas e vendo-o guardar os instrumentos.

– Tio Lucas, eu quero ser como o senhor quando crescer. Quero tocar vários instrumentos. – não importava quantas vezes Lucas o ensinara a chamá-lo de professor, ele sempre o chamava de tio.

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– E você vai conseguir Victor! Você toca muito bem! – incentivou Lucas.

Lucas fechou a sala e ambos se dirigiram para a saída. Victor ficou em silêncio, o que não era comum.

– Está tudo bem? – Perguntou Lucas.– Está. É que... – ele hesitou e depois continuou: – Eu

queria poder tocar todos os dias. Mas, eu não tenho um violão. – respondeu ele, baixando os olhos tristemente para o chão. – Pedi a mamãe, mas ela disse que não podia comprar.

Lucas se abaixou, fitando os olhos do garotinho, cheios de lágrimas, mas foi Victor quem continuou falando:

– Sabe... Mamãe trabalha muito, mas sei que há muitas coisas para ela pagar... Mas não faz mal – disse rapida-mente, sorrindo um pouco agora – Papai do Céu me deixa tocar aos sábados com você tio Lucas.

Lucas ficou sem palavras. Somente seus braços fo-ram capazes de alguma atitude. Envolveu Victor em seus braços, enquanto seus próprios olhos se enchiam de lágrimas.

– Um dia você vai ter um violão, Victor. Eu tenho certe-za disso, está bem?

O garotinho deu um enorme sorriso acenando com a cabeça em concordância, enquanto segurava a mão de Lu-cas e caminhava para a saída, cheio da sua habitual ale-gria, já sem nenhuma melancolia.

“É, o mundo das crianças é bem mais simples. Porque complicamos tanto as coisas quando crescemos? – pensou Lucas. – Nos frustramos facilmente e nem sempre nos recu-peramos das nossas perdas com a mesma rapidez.”

Olá! – disse uma voz conhecida, interrompendo seus pensamentos.

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– Olá! – respondeu ele surpreso ao ver que era Elisa quem estava ali, na sua frente. Ela também parecia surpre-sa em vê-lo.

– Tia Elisa! – exclamou Victor, correndo e se atirando nos braços dela.

– Oi, Victor! Aprendeu bastante coisa hoje? – disse Eli-sa com carinho enquanto abraçava o garoto.

Empolgado e atropelando as palavras, Victor descreveu o que fizera e as músicas que aprendera. Por fim pareceu lembrar-se de algo.

– Onde está a mamãe? Ela não vem me buscar?– Ela está em casa te esperando. Eu prometi a ela que

viria te buscar. Vamos? Diga tchau para o Lucas.– Vocês não querem uma carona? – Foi a coisa mais

inteligente que Lucas conseguiu dizer. Cérebros de apaixo-nados nem sempre funcionam bem.

– Não precisa se incomodar. Nós moramos perto. – res-pondeu Elisa.

– Imagina! Não é incomodo algum! – disse Lucas, ten-tando convencê-la. Ele queria desesperadamente ficar mais alguns minutos com ela.

– Por favor, tia Elisa? Vamos com o tio Lucas! – implo-rou Victor. – Por favor?

Não havia como recusar um pedido daqueles.– Está bem, senhor Victor! – respondeu ela, sorrindo.– Eba! – gritou o garoto já correndo em direção ao

carro.Lucas não sabia o que Elisa estava pensando. Ele ainda

estava meio que em transe. Como era possível encontrar Elisa ali, onde jamais esperava encontrá-la? Na verdade parecia um de seus sonhos tê-la ao seu lado. Mil pensamen-tos passavam por sua cabeça. Ela aceitara ir com ele. Mas

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o que isso queria dizer? Ela gostava dele ou era simples-mente para atender ao pedido de uma criança?

Victor interrompeu seus pensamentos:– Nossa! Tio Lucas, seu carro é irado! Olha só, tia Eli-

sa, quantos botões! O que eles fazem?– Nem pense em colocar seus dedinhos, Victor – alertou

Elisa com suavidade. – Coloque seu cinto de segurança.– Está bem, tia Elisa. Eu não ia mexer. Eu só estava

olhando. – garantiu com uma cara séria de menino bem comportado, sentando-se no banco de trás.

– Hum, sei... – disse Elisa, olhando para Lucas e dando um leve sorriso. – Acho que o Lucas sabe como você gosta só de olhar, e nunca toca em nada quando está curioso, não é?

Lucas sorriu de volta e depois encarou Victor pelo re-trovisor, dando uma piscadela.

– É, eu sei. Victor é um menino muito bem comportado. Só as vezes que ele gosta de ver mais de perto.

– É que às vezes só olhando eu não sei o que é. – ad-mitiu por fim, dando de ombros. – Então eu coloco meus dedinhos. – concluiu balançando as mãozinhas.

– Então, Victor, que tal ser meu copiloto? Pode me ensi-nar o caminho da sua casa?

Victor gostava de Lucas e estar com seu professor por mais alguns instantes parecia-lhe um grande presente. En-sinou direitinho o caminho de sua casa, enquanto fazia mais perguntas sobre o carro, e Elisa tentava em vão contê-lo.

Realmente, o lugar onde ele morava não era longe. Minutos depois Lucas estacionava em frente a uma casa pequena de madeira, pintada de um azul claro desbotado. Cristina, a mãe do garoto, veio recebê-lo, surpresa por vê--lo em sua casa. Era uma mulher jovem, provavelmente um pouco mais velha que Elisa.

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– Bom dia, seu Lucas! O Victor deu muito trabalho? – perguntou com um ar de preocupação.

– O Victor nunca dá trabalho, Cristina. Você tem um ótimo filho! – disse Lucas, tranquilizando-a. – Eu só vim deixá-los.

Ela sorriu agradecida e depois pareceu meio sem jeito, como se questionasse se sua casa estava à altura de rece-ber o professor do filho.

– A minha casa é simples, mas entre, por favor? – disse com humildade.

– Em uma próxima vez prometo vir como visita, mas hoje só estou aqui para deixá-lo.

– Então, muito obrigada! Victor, agradeça seu profes-sor. – ela parecia aliviada.

– Obrigado, Tio Lucas! Até sábado! – disse Victor en-quanto corria empolgado, brincando com um cachorrinho que apareceu no quintal, seguido pela mãe que o chamava para lavar as mãos para almoçar.

– Então você é tia do Victor? – perguntou Lucas assim que ficou a sós com Elisa e colocou o carro em movimento. Victor já havia lhe dito que a casa de Elisa era a última da rua.

– Não. A Cris é minha melhor amiga – respondeu ela com afeto na voz. – Eu praticamente vi o Victor nascer. De certa forma eu o considero meu sobrinho. Mas, na verdade ele chama muita gente de tio ou tia. Você por exemplo.

– É verdade. – concordou Lucas. – Tentei ensiná-lo cha-mar-me de professor, mas não deu certo.

– Eu não sabia que você era professor. O que você en-sina no projeto?

– Eu coordeno o projeto e no tempo que sobra, dou au-las... Ensino as crianças a tocar violão. O Victor por sinal é um excelente aluno.

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– Deve ser legal ensinar essas crianças. O trabalho que vocês desenvolvem tem ajudado muitas crianças aqui no bairro.

– É um trabalho gratificante. Ver alguém que sabe tão pouco ou nada, desenvolver seus talentos a partir do que eu ensino é muito bom. – Nesse momento Lucas percebeu que talvez estivesse falando demais, o que poderia ser maçante para ela. – Desculpe, é que eu me empolgo quando falo de música.

– Não. Estou admirada. Você realmente ama o seu tra-balho. Mas também estou curiosa... Além de violão, que instrumentos você ensina?

Lucas tentou responder sem parecer presunçoso. Afinal, sua vida fora dedicada à música. Aprendera a tocar muitos instrumentos.

– Eu ensino violão, piano...– Você toca piano?! – perguntou ela encantada – Des-

culpe! Eu te interrompi. Por favor, continue! – falou ela, parecendo envergonhada.

– Não tem problema. – disse Lucas, rindo, contente de que ela se interessasse por algo que ele fazia. – Como eu ia dizendo... Ensino violão, piano, flauta, teclado e violino. Mas, como eu amo a música, gosto de pensar que ensino as pessoas a amar a música. E pelo que percebi você gosta de piano.

– É – respondeu ela, ainda fascinada. – Eu acho muito bonito. Meu avô tocava para mim quando eu era criança. Ensinou-me a gostar. – e após uma pausa – Ah, por favor, pode parar aqui. Moro nessa casa.

A casa de Elisa também tinha um aspecto bem pobre. Era de madeira, com um ângulo bem torto e a pintura pa-recia ter sido branca no passado.

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– Eu devo confessar que fiquei surpreso em vê-la no projeto. Afinal, sempre a vejo praticamente do outro lado da cidade. – disse Lucas.

– É verdade. Acho que não tínhamos nos encontrado antes porque eu trabalho aos sábados. Hoje, por acaso, consegui um dia de folga.

– Mas é muito longe do seu trabalho... – falou Lucas, enquanto tentava calcular mentalmente o tempo que ela gastava para chegar ao trabalho, e pensando o quão ab-surdo era.

– Só preciso levantar um pouco cedo... Mas a gente se acostuma – disse ela, sorrindo da expressão de Lucas. – Não quer entrar?

– Obrigada, Elisa! Mas, tenho um compromisso à tar-de e preciso ir agora ou chegarei atrasado. – disse Lucas, olhando no relógio sem a mínima vontade de partir. Era a primeira vez que realmente podia conversar com Elisa e estava sendo uma experiência maravilhosa. – Elisa, o que você irá fazer hoje à noite? – a pergunta saiu antes que ele pensasse em como formulá-la.

– Eu... eu não tenho nada para fazer. – gaguejou ela.– Você gostaria de ir comigo a um concerto? – ele não

sabia se estava preparado para ouvir um não como respos-ta. Elisa parecia ter perdido a fala. Isso era ruim.

Após segundos que pareceram minutos, ela conse-guiu falar.

– Eu?! Você está me convidando para ir a um concerto com você?

– Há algum problema? – perguntou ele, imaginando que ela tinha um namorado. Ele nunca pensara na possibi-lidade de que talvez Elisa gostasse de outra pessoa.

– Nossa! É claro que eu quero! – respondeu finalmente.

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– O concerto começará às vinte horas e trinta minutos – disse Lucas, tentando ocultar a emoção de ouvi-la aceitar seu convite. – Mas, como é um pouco longe, passarei aqui dez para às oito. Pode ser?

– Claro! – disse ela, sorrindo.– Até a noite, Elisa. – despediu-se Lucas.– Até e muito obrigada pela carona. – disse ela com o

sorriso mais encantador do mundo.

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caPítulo 5

a realidade Se Faz de SonhoS

Os pensamentos de Lucas voavam na velocidade da luz, enquanto dirigia pelas ruas da cidade, seguindo o tráfego in-tenso. Felizmente tinha algo para ocupar sua mente até a noi-te. Como membro da equipe organizadora, deveria ajudar a preparar o anfiteatro para o concerto, a fim de que tudo saísse perfeito. O grupo musical que se apresentaria era formado por ex-alunos da faculdade. Alguns deles haviam estudado com Lucas. Eles já tinham se apresentado por todo o país, encantando as pessoas com sua performance e agora volta-vam a Curitiba para fechar a turnê, onde fariam um evento destinando parte da renda para projetos sociais da faculdade.

Ao fim do dia, após muito trabalho, finalmente tudo es-tava perfeito. Lucas dirigiu-se apressadamente para casa, temendo se atrasar. Entrou cantarolando no apartamento, indo direto tomar banho, deixando Fábio de boca aberta na sala, com uma expressão facial que podia ser traduzida como “Enlouqueceu de vez”. Escolheu uma camisa bran-ca, junto com blazer preto e a tradicional calça jeans, para não parecer tão sofisticado. Queria ir apresentável e não extravagante. Sabia que Elisa era pobre e não queria que ela se sentisse mal ao seu lado.

– Uhu! – Fábio não se conteve quando viu Lucas na sala. – Onde você pensa que vai vestido desse jeito?

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– Não posso te explicar agora ou irei me atrasar. É uma longa história. Tchau, tchau! – falou Lucas enquanto gira-va a chave na porta.

– Isso não é justo! – disse Fábio. Mas já era tarde. Lucas já havia saído, de modo que na

hora combinada ele estava estacionado em frente à casa de Elisa. Pensou se deveria descer e bater à porta. Mas logo viu a porta abrindo e ela sair enquanto um senhor olhava-a descer os degraus.

Só quando ela chegou sob a luz, ele percebeu como ela estava ainda mais bonita. Usava um vestido com mangas longas de tricô, preto e simples, e botas de cano médio. Os cabelos estavam soltos, descendo livres até o meio das costas.

– Oi! – disse ele, abrindo a porta do carro para ela e cumprimentando-a com um beijo suave no rosto. – Você está muito bonita!

– Oi! Muito obrigada! – respondeu ela, entrando no carro.

Assim que manobrou o carro para sair, Lucas perguntou:– Quem era aquele senhor?– Ele é o meu avô. Chama-se Antônio. É uma pessoa

maravilhosa. Ele só queria te ver para ter certeza de que você é uma boa pessoa.

Lucas olhou para ela confuso.– Mas ele sequer falou comigo, como pode saber só de

olhar que sou “uma boa pessoa”?Ela fez uma pausa como se fosse dizer algo que a

constrangia.– Eu contei para ele o que aconteceu no restaurante e

como você me defendeu. Isso foi o suficiente para ele sa-ber que você é do bem. Ele só quis vê-lo para ter certeza.

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Lucas pensou por um momento no que ela dissera, mas logo decidiu mudar de assunto. Lembrar-se daquela cena no restaurante era a última coisa que ele queria naquela noite.

Durante o percurso até o concerto, a conversa fluiu naturalmente entre os dois, parecia que eles se conheciam há anos. E Lucas se perguntava: porque havia demora-do tanto tempo para falar com ela? Estar com Elisa era como se um novo mundo se descortinasse ante seus olhos. Ela era espontânea, alegre... Cada atitude e palavra suas eram cheias de vida e harmonia. Lucas já havia conhe-cido sua simpatia ao observá-la no trabalho, mas agora podia perceber o quanto ela era incrível.

Pela primeira vez na vida a música não conseguia pren-der a atenção de Lucas. Seus olhos estavam atentos a Elisa, o modo como ela sorria ao assistir o espetáculo... Ele via o concerto, mas era como um pano de fundo. Só tinha olhos para ela, que estava encantada. Elisa nunca havia assistido a um concerto.

Embora não fosse uma apresentação com músicos famosos, foi belíssimo. O repertório incluía desde gran-des nomes da música clássica como Beethoven e Chopin, como nomes de músicos modernos, misturando o antigo com o novo, num efeito impressionante. Além de talento, via-se que os artistas tinham se dedicado muito em seus estudos, pois executaram com perfeição e sincronia as músicas.

Em frente ao anfiteatro, no qual aconteceu o concer-to, ficava um dos lugares preferidos de Lucas. Como ainda não estava muito tarde e a temperatura já havia caído bas-tante, ele convidou Elisa para acompanhá-lo. Ela pareceu confusa ao entrar no estabelecimento.

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– Tem certeza de que realmente quer entrar aqui? A pla-ca diz que é uma sorveteria.

– Eu sei. Eu jamais tomaria sorvete com esse frio, mas aqui servem o melhor chocolate quente da cidade. Seria um crime se eu não a trouxesse para apreciar.

O lugar estava repleto. Mas eles conseguiram encon-trar uma mesa pequena, próxima à janela de vidro, com vista para a cidade, agora toda iluminada. Assim que se sentaram, Elisa começou a falar do concerto, fazendo per-guntas e comentando o que achara mais bonito. Finalmen-te, após alguns minutos foram servidos. Assim que provou o chocolate, Elisa fechou os olhos.

– Nossa! Isso é muito bom! Lucas riu ao ver a reação dela.– Acho que todo mundo faz essa cara quando experi-

menta esse chocolate pela primeira vez.– E eu adoro chocolate, mas sinceramente, nunca provei

nada parecido com este. É muito bom! – disse ela, olhando--o com ternura. – Obrigada por ter me convidado para sair.

– Por nada. O prazer foi todo meu. Aliás, estou curioso sobre uma coisa... Se eu não tivesse te convidado, o que você iria fazer hoje à noite?

– Provavelmente iria achar um programa entediante na TV e estaria assistindo, debaixo do calor das cobertas, tomando um chocolate sem graça, mas que acharia muito gostoso porque ainda não conhecia este aqui. – respondeu Elisa bem humorada.

– Parece um programa interessante. É bem possível que eu estaria fazendo o mesmo – disse ele, rindo. – É que você demorou a responder quando te convidei, então eu imagi-nei que você tinha outros planos...

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– Por outros planos você quer dizer... um namorado...?! – perguntou ela, estudando a expressão de Lucas.

Ele apenas balançou a cabeça confirmando.– Não! No momento não tenho ninguém... – ela fez uma

pausa e em seus olhos passou uma sombra de tristeza. – Minha última experiência foi um pouco frustrante, então resolvi dar um tempo...

Lucas desejou não ter feito a pergunta, ao perceber que havia tocado num assunto delicado para ela. A forma como ela falou não escondia que sua alma ainda estava ferida. Mas ela prosseguiu falando.

– Mas o que passei me ensinou algo: Percebi que às ve-zes esperamos demais das pessoas... Você já se perguntou se existe alguém perfeito para você? Que neste momento, em algum lugar deste mundo, está esperando por você?

– Acho que muitos acreditam nisso, Elisa. E devemos acreditar, porque é o que mantêm os nossos sonhos vivos... a esperança acesa... Como também inspira poetas e escri-tores. Os maiores romances escritos, somente se tornaram lindas histórias por existir uma pessoa especial: como ima-ginar Tristão sem Isolda, Romeu sem Julieta, Elizabeth Bennet sem o senhor Darcy...?

– Acredita mesmo nisso? – perguntou ela, olhando pro-fundamente em seus olhos.

– Tudo bem, deixemos os grandes nomes da literatura e falemos da vida real... Quando olho para os meus pais, casados há trinta anos, não consigo imaginá-los um sem o outro. Se podemos chamá-los de almas gêmeas, eu não sei, mas o modo como se completam e se esforçam para fazer um ao outro feliz, apesar de suas limitações, não há como negar, é como se tivessem sido feitos um para o outro.

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– Talvez você tenha razão – disse ela, por fim dando um sorriso, descontraindo o tom sério que a conversa assumi-ra. – Tem certeza de que só é formado em música?

– Digamos que o trabalho de um músico seja interpre-tar o que se passa no coração do ser humano e traduzir em canções. – respondeu Lucas, sorrindo também.

Lucas olhou no relógio e viu que já estava tarde. O tem-po ao lado de Elisa havia passado rapidamente.

– Acho melhor levá-la embora, ou seu avô não vai mais me considerar uma boa pessoa.

O percurso de volta era longo, mas passou rapidamen-te. Lucas colocou uma seleção de músicas clássicas para tocar e Elisa aproveitou para questioná-lo sobre composi-tores e inspirações para suas criações.

– Obrigada! – disse ela, sorrindo, enquanto ele esta-cionava o carro em frente à casa dela. – Foi uma noite maravilhosa.

Lucas queria que o tempo parasse. Elisa era uma pes-soa muito melhor do que imaginara. Mas, algo ainda o in-comodava. Quando ela olhava para ele, via que ela sentia alguma coisa. Mas, podia apenas ser fruto de sua mente. Ela gostava de música, talvez só tivesse aceitado ir ao concerto com ele por isso. “Apaixonar-se por alguém é uma tortura” ele pensou. Porque apesar de terem conver-sado tanto durante a noite, ela podia não vê-lo como uma pessoa especial. Mas ele gostaria de ficar mais tempo com ela, conversar com ela, conhecê-la melhor... E mais uma vez as palavras saíram de sua boca sem pensar no que estava dizendo.

– Elisa, você gostaria de almoçar comigo, amanhã?Dessa vez ela não demorou a responder:– Com certeza! Eu ficarei muito feliz!

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A porta da casa de Elisa estava entreaberta. Alguém devia estar esperando por ela. Talvez aquele senhor, dos cabelos grisalhos.

– Bem, eu te pego às onze e meia. Tenha uma boa noite! – disse, beijando-a com delicadeza na fronte. Prometendo a si mesmo que independente do que a tivesse feito sofrer no passado, ele jamais a magoaria.

– Até amanhã! – disse ela com a face visivelmente cora-da sob a luz do carro.

Lucas dormiu até tarde no domingo. Acordou inspirado e tocou um pouco de piano, deu uma explicação sobre o que acontecera na noite anterior ao curioso Fábio, que fez inú-meras perguntas, antes de deixá-lo sair para o almoço.

Devido ao clima, Elisa estava usando uma blusa de lã, calças e botas. Mas nem o frio tirou seu bom humor. Du-rante todo o caminho até o restaurante havia comentado sobre a beleza da paisagem e o quanto gostava de ficar em contato com a natureza.

O restaurante que ele escolheu era afastado da cidade, no alto de uma colina. Era um lugar tranquilo, sem muita gente e cercado por árvores frondosas em tons dourados e marrons, próprios do outono. O cardápio oferecia comidas italianas, incluindo deliciosas massas; macarrão prepara-do de diversas formas, lasanhas e tortas assadas em um grande forno a lenha. Pelas janelas, podia se apreciar a paisagem de vales e montanhas que se estendiam no hori-zonte. Por dentro o restaurante era revestido de madeira, dando um tom rústico, mas aconchegante ao ambiente.

– Nossa! A comida daqui é muito gostosa! Mil vezes melhor do que a do restaurante do Alfredo! – disse Elisa, rindo, enquanto comia um pedaço de lasanha. – Opa! É

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melhor não dizer isso em voz alta. Se ele souber é capaz de me demitir.

– Faz tempo que você trabalha como garçonete? – per-guntou Lucas.

– Na verdade é o meu segundo emprego de verdade. Com dezesseis anos eu comecei a trabalhar em um restau-rante, onde fiquei até a pouco tempo. Era um bom lugar para se trabalhar, mas eu não ganhava muito.

– Você disse emprego de verdade... Importa-se se eu perguntar o que você fazia antes?

– Você vai achar estranho se eu disser. – disse ela meio envergonhada. – Não gosto de falar sobre esse tempo da minha vida.

– Por favor, me conte? Prometo que não vou te julgar – disse Lucas curioso.

– Muitas pessoas não aceitam, ou melhor, nos olham como se fossemos inferiores. Aliás, antes de dizer o que eu fazia, quero te agradecer.

– Agradecer pelo quê? – perguntou Lucas intrigado.– Por que mesmo depois de ver onde moro, você ainda

me convidou para sair.– Para mim as pessoas vão além das aparências, Elisa.

Mas o que você fazia antes?– Eu trabalhava na cooperativa do bairro, reciclando

lixo. Na realidade, desde criança, meu avô e eu apanhávamos lixo naquelas carrocinhas. E depois montamos a cooperativa.

Lucas tentava imaginar a cena. Elisa, pequena, com rou-pas sujas e velhas, revirando lixo. Lembrou-se de sua infân-cia, cercado de brinquedos caros, casas luxuosas e piscinas.

“A vida às vezes é tão injusta. Alguns tinham de sobra, enquanto outros não tinham sequer o básico para viver.” – pensou.

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– E o restante de sua família, o que fazia?– Bem – disse ela com uma pausa – A minha família,

desde que me entendo por gente, somos meu avô e eu.Lucas desejou não ter levantado o assunto, mas ela não

parecia ressentida.– Meu pai eu não conheci, sequer por foto. E minha

mãe, assim que nasci, sumiu no mundo. Ela não gostava muito de casa. Nunca tivemos notícias dela.

– Desculpe-me – disse Lucas.– Não, está tudo bem. Mas me conte de você. Aposto

que tem uma história interessante. Além de trabalhar no projeto em meu bairro, o que você faz?

– Como você sabe, sou músico. Sou professor na uni-versidade e aos finais de semana passo meu tempo ensinan-do as crianças do projeto.

– Caramba! – disse ela impressionada. – Seus pais devem ter muito orgulho de você! E você mora com sua família?

– Não! Meus pais moram longe daqui, em Maringá, no interior do estado. Eu vim para cá estudar e acabei ficando.

– E o que eles fazem?– São comerciantes. Eles vendem joias. – Não preci-

sava dizer que eles eram um dos joalheiros mais famosos do país.

– E você não quis continuar no ramo? – perguntou Elisa.– Bem que meus pais adorariam. Mas eles viram, desde

cedo, que o meu dom era a música. Foram excelentes, sem-pre me apoiaram. E, além disso, eu tenho um irmão mais velho, Luciano, que parece ter talento para os negócios. Acho que ele não se importa de cuidar das joias. E eu fico muito feliz. Mas, por falar nisso, qual é o seu sonho?

– Meu sonho?! – exclamou ela confusa.

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– Sim! Todos queremos ser alguma coisa! Qual é o seu dom?

– Bom... Eu sempre gostei muito de desenhar... O meu sonho era ser professora de artes.

– Era? – questionou Lucas.– Eu não consigo estudar com o que eu ganho. Eu até

comecei fazer faculdade, mas tive que trancar a matrícula.Lucas a olhou com ternura.– Acho que só temos o direito de desistir dos nossos

sonhos quando já os realizamos. Do contrário, eles sempre serão possíveis.

– Você não entende... – Elisa começou a dizer, tentando explicar.

– Desculpe-me interrompê-la – disse Lucas, olhando-a profundamente nos olhos. – Mas você ainda desenha?

– Às vezes – ela respondeu. – Eu gostaria de ver alguns dos seus desenhos. Você

poderia me mostrar, por favor?Lucas não entendeu a reação dela. Mas, outra vez ela

perdeu a fala. Será que ele dissera algo de errado.– O que foi?– Não, é que... Ninguém nunca me pediu para ver meus

desenhos.– E então, você vai me mostrar? – perguntou Lucas.– Claro! – disse ela. – Será bom ter a opinião de al-

guém além do meu avô. Ele costuma superestimar tudo o que eu faço.

Lucas lembrou-se dela trabalhando no restaurante com dedicação e eficiência. E pensou que talvez já a estivesse superestimando também. Ele pagou a conta e saíram do restaurante. Caminharam, lado a lado, por entre as árvo-res, até o carro. Ela quebrou o silêncio.

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– Você realizou seu sonho de ser músico. E agora, qual é o seu sonho?

Lucas refletiu se diria ou não. Mas quis ser sincero.– Além de continuar sendo um bom músico, ajudar as

crianças carentes... eu tenho um sonho. Mas, parece que está se tornando realidade. – ele parou, fitando-a. – Meu sonho é conhecer alguém especial, com quem eu possa dividir minha vida, minhas alegrias e conquistas. Alguém sensível a quem eu possa amar sem medidas. Estou certo de que encontrei quem eu procurava. Eu te encontrei Elisa.

Os olhos de Elisa estavam fixos nos seus. Cheios de lágrimas.

– Como pode gostar de mim? Somos tão diferentes... – sussurrou ela.

– Eu discordo. – disse Lucas, beijando-a apaixonadamente.

A casa de Elisa não era pobre só por fora. Não era muito grande. As paredes de madeira, com a pintura des-botada, pareciam ter dois séculos de existência. Havia uma sala pequena com dois sofás e uma estante de canto. A cozinha pequena abrigava uma mesa de madeira com quatro cadeiras, uma pia e um armário gasto pelo tempo. Havia dois quartos, em que mal cabiam as camas e as cô-modas, e tinha um modesto banheiro no final do corredor. Talvez, fosse o toque feminino – as flores sobre a mesa, a toalha delicadamente bordada – que transformasse a sim-plicidade da casa em um lugar aconchegante.

Seu Antônio, o avô de Elisa, estava em casa e recebeu Lucas muito bem. Era um senhor magro, de setenta e cinco anos, baixo e moreno, de semblante sereno.

– É um prazer conhecê-lo, Lucas. Elisa falou muito bem de você.

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– O prazer é meu, seu Antônio. Ela também falou muito bem do senhor. – respondeu Lucas.

– Elisa gosta de me bajular muito. Com certeza ela falou de mim melhor do que realmente sou e deixou de fora a parte que eu sou ranzinza, insuportável e má companhia.

A jovem só revirou os olhos em resposta. Dirigiu-se ao seu quarto de onde voltou com três pastas pretas. Ela havia dito que gostava de desenhar. Mas Lucas não ima-ginava que ela desenhava tão bem. Ela era uma artista. Seus traços eram delicados e cheios de detalhes. Eram desenhos de pessoas, animais, flores de várias espécies e muitas paisagens. Tudo muito bonito, bem caprichado.

– Como você aprendeu a desenhar assim? Seus desenhos são perfeitos, Elisa! – elogiou Lucas, após alguns minutos.

– Eu desenho desde pequena. Acho que fui aperfeiçoan-do com o tempo. Muito obrigada!

Lucas estava encantado. Ela aprendera a desenhar so-zinha! Era um talento nato. Ele só não entendia como ela havia conseguido esconder esse talento por tanto tempo.

– Que bom que você disse isso, Lucas! Ela acha que eu digo que são bonitos só para não magoá-la. – falou seu Antônio.

– Nunca mostrou seus desenhos para alguém, além de seu avô, Elisa?

– Quando eu tinha dez anos mostrei para um pintor em uma exposição. Queria vender quadros como ele. Mas, ele disse que eu não tinha talento e nunca pintaria um quadro que pudesse ser vendido. Então desenhava em casa e decidi não mostrar para mais ninguém.

Um pintor que destruiu o sonho de uma criança. Lucas podia imaginar o impacto que aquelas palavras tiveram na

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vida de Elisa. Ele precisava dizer algo melhor do que aque-le sujeito.

– Elisa, você precisa acreditar no seu dom, no seu so-nho. Você pode ser uma grande professora de artes e tam-bém uma grande pintora.

Os olhos de Elisa estavam cheios de lágrimas.– Muito obrigada, Lucas!Lucas ficou mais algum tempo na casa de Elisa, vendo

desenhos e conversando. Seu Antônio contou muitas histórias de sua vida. Ele gostou muito de conhecer Lucas, também apreciava a música e sabia tocar um pouco de piano, embora, por não ter mais o instrumento, fazia muito tempo que não tocava. Por outro lado, Lucas ficou encantado com seu Antô-nio – o homem forte que criara a neta, sozinho, e embora já não pudesse fazer muita coisa, uma vez que a idade já estava avançada, ainda trabalhava para ajudar no sustento da casa.

O sol já estava se pondo quando Lucas convenceu-se de que precisava ir embora. Despediu-se de seu Antônio, prometendo-lhe que em breve o buscaria para tocar piano. Elisa o acompanhou até o portão.

– Seu avô é uma pessoa maravilhosa. Fiquei feliz em conhecê-lo.

– É, vovô é uma pessoa especial. Eu gosto muito dele.– Bem, a gente se vê no restaurante amanhã. – ele não

queria ir embora.– Está bem. Boa noite, Lucas! – Boa noite, Elisa! Tenha bons sonhos!– Ah, com certeza serão se sonhar com você! – disse

ela, corando um pouco.– Você sonha comigo? – Lucas perguntou curioso.– Acho que todas as noites – disse ela, desviando o

olhar do dele.

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O coração de Lucas estava disparado – ela sentia algo por ele. Suavemente ele tocou o rosto dela, forçando-a a olhar para ele.

Ela continuou:– Esse fim de semana foi tão perfeito que pareço estar

sonhando. Tenho medo de acordar e ver que nada disso aconteceu.

Ele colocou o dedo em seus lábios a silenciando. Mas o que ela disse era o que ele também sentia. Estar com Elisa era como um sonho que ele queria que nunca tivesse um fim.

– Então vamos fingir que estamos sonhando e nunca mais vamos acordar.

Ele envolveu Elisa em seus braços, certificando-se de que ela era real. Tudo o que dissesse não explicaria o que sentia por ela. Ele era o homem mais feliz do mundo.

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caPítulo 6

viSita ineSPerada

Marcelo finalmente conseguiu desprender os olhos do diário� Já era meio dia� Como o tempo passou rápido! Pre-cisava fazer algo para comer� Já estava descendo as escadas, quando lembrou que Beatriz estava em sua casa� Ela espe-rava-o ao pé da escada, com um embrulho nas mãos�

– Ia levar para o senhor� – disse ela timidamente� – Mi-nha avó mandou um prato com o seu almoço�

“Hum�� parecia que ela havia evoluído� Começara a di-zer umas palavras novas” – pensou Marcelo�

Mas seu ego estava ferido: uma coisa era ser chamado de senhor pelo avô de Beatriz, que parecia tratar a todos daquela forma, sabe Deus porque, mas outra bem diferente era ser chamado de senhor por ela, que aparentemente era somente alguns anos mais nova do que ele�

– Muito obrigado! – disse Marcelo� – É muita generosi-dade� Seus avós estão me mimando demais, vou ficar mal acostumado�

Pela primeira vez, desde que chegara, ela deu um sorriso�– Vou limpar a biblioteca agora� Não quis interrompê-lo�– Tudo bem!Só então Marcelo olhou ao redor e percebeu como tudo

estava impecável� Havia até flores frescas na sala de estar� O almoço estava uma delícia� D� Isabel realmen-

te tinha mãos de fada� No cardápio havia arroz, feijão, abobrinha, bife ao ponto e salada de tomate; estava sim-plesmente divino� Enquanto mastigava, Marcelo pensava

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no que havia lido no diário de Lucas� Até agora, só o que sabia era que Lucas estava realmente apaixonado por Elisa� Estava resistindo à tentação de ir direto à data da separação� Mas sabia que se fizesse isso, ficaria tão perdido quanto estava, sem entender o meio da história� Precisava ter paciência�

Ele já estava voltando para a biblioteca, quando a campa-inha tocou� Talvez fosse seu Afonso querendo saber da neta� Porém, ao abrir a porta teve uma surpresa: no portão de sua casa, com um vestido vermelho justíssimo, sustentando-se em um salto quinze, estava uma loira atraente – a vizinha da esquerda� Marcelo já a vira de longe, mas de perto ela era muito mais bonita� Seus olhos azuis eram ainda mais per-turbadores pessoalmente� Contudo, algo em seu semblante inquietou Marcelo� Algo que ele não sabia definir�

– Olá! – disse ela com uma voz sedutora� – Sou Susana e moro na casa ao lado�

– Olá! – cumprimentou ele, com a voz quase sumindo diante da estranha aparição� – É um prazer conhecê-la� Pode me chamar de Marcelo�

– Desculpe-me por não ter vindo dar as boas-vindas antes, mas eu estava ocupada�� – ela falou com uma voz suave�

– Eu mudei ontem, então acredito que ainda esteja den-tro do prazo – ele brincou� – Obrigado�

– Não vai me convidar para entrar? – perguntou Susana com um sorriso sedutor�

Era impressão dele ou essa visita tinha segundas inten-ções? Ainda assim preferiu ser cortês�

– Ah! Perdoe-me a falta de educação� Por favor, entre! Com passos dignos de uma passarela, ela entrou na sala�– Ah, sente-se – gaguejou Marcelo�

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– Obrigada! – disse ela sentando-se no sofá e cruzando as pernas no melhor estilo Sheron Stone�

– Você é casado?Por essa pergunta tão direta, Marcelo não esperava�

Onde ela queria chegar? Como ele demorou a responder, ela acrescentou:

– Desculpe-me, é só curiosidade minha� É que a casa parece ser grande para uma pessoa�

– Não! Eu não sou casado! – respondeu Marcelo, ten-tando manter o tom leve e recuperando seu sangue frio� – Realmente me senti um pouco perdido quando cheguei aqui ontem, mas já estou me acostumando com o excesso de espaço�

“Nada melhor do que uma mulher enigmática e miste-riosa para inspirar um livro” – pensou Marcelo, logo afas-tando a ideia da mente, sabendo que um livro assim só ter-minaria em tragédia�

Ele estava intrigado� O que ela queria dele? Ele podia perceber que aquilo não era mera visita de cortesia� Ela olhou ao seu redor, mas não como Bia fizera� Apenas como se constatasse como estava o ambiente� Nesse momento, Marcelo conseguiu identificar aquele algo mais que perce-bera quando ela chegara� Ela era uma pessoa superficial� Era inevitável não rotulá-la� Todos os seus movimentos eram mecânicos, como se tivesse consciência de que sua beleza provavelmente era admirada� Assim que descobriu isso, todo o poder de sedução que essa mulher poderia ter sobre ele caiu por terra� Em sua concepção, não existia nada pior na terra do que uma alma feminina superficial e vulgar�

– Nossa! Está tudo exatamente igual quando Elisa e Lu-cas moravam aqui� – comentou ela sem demonstrar nenhum sentimento�

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– Mudei ontem e não tive tempo de pensar em redeco-rar a casa – mentiu Marcelo, que comprara exatamente por estar daquele jeito�

– Se precisar de ajuda com a decoração, terei o máximo prazer em ajudá-lo�

– Muito obrigado! Fico feliz em saber que tenho vizi-nhos tão prestativos� – falou Marcelo� “Não que eu vá que-rer essa ajuda” – disse para si mesmo�

– Na verdade será um prazer ajudá-lo a escolher uma bela decoração� Infelizmente a antiga proprietária não tinha muito bom gosto� Talvez a sua origem pobre não contri-buísse muito para apreciar o que é sofisticado�

Marcelo ficou surpreso com aquele comentário, e não pode deixar de expressar sua opinião�

– Sinto contradizê-la, mas eu acho que a pessoa que de-corou essa casa tinha muito bom gosto� Talvez você não se simpatize com a casa por uma questão de personalidade�

Susana o olhou surpresa como se o avaliasse� Provavel-mente traçando um perfil de sua pessoa�

– Desculpe-me, mas não entendi o que quis dizer com o termo personalidade�

– É simples� Todos nós temos um tipo de personalidade e geralmente impregnamos as características dessa perso-nalidade, ainda que inconscientemente, em tudo que há ao nosso redor� Essa casa provavelmente tem muito a dizer à respeito dos antigos proprietários� Posso ver simplicidade na decoração, mas ainda que seja contrastante, nem por isso deixa de ser sofisticada� Eu os definiria como pessoas que viviam a vida com entusiasmo, harmonia e de sentimentos profundos� E claro�� com muita sensibilidade, dado o gosto dele pela música e o dela pela arte�

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Marcelo sabia que nas entrelinhas estava criticando Susana� Assustou-se ao perceber que isso era involuntá-rio� De algum modo ele já estava aceitando que ela era a culpada pela separação de Lucas e Elisa� Ela talvez perce-beu isso, pois sua expressão era de desconfiança quando perguntou:

– O senhor conhecia o Lucas e a�� Elisa?– Não! Eu não os conhecia� – falou Marcelo calmamen-

te� – Apenas ouvi um pouco da história deles� Aliás, uma triste história�

– É� – disse ela como se o reavaliasse e pensasse no que falar� Ela o olhava como uma aranha tece sua teia, tentando achar o melhor meio de aprisionar sua presa� – Acredito que você já deve ter ouvido muitas versões dessa história desde que chegou, não é?

O olhar penetrante parecia buscar respostas no interior de Marcelo� Ele preferiu ser honesto� Era a única maneira de levantar a verdade�

– Ouvi, sim� E confesso que fiquei surpreso� A versão mais aceita é justamente a que você está envolvida�

Susana sequer piscou, como se aquele comentário não fosse nenhuma novidade para ela�

– Eu sei� Infelizmente as pessoas gostam de inventar fo-focas envolvendo o nome dos outros quando não encontram respostas� Você não acha?

Marcelo percebeu que em sua voz tinha um tom de má-goa� Como se ela fosse vítima de uma injustiça� Ele daria uma chance para ela se defender� Então preferiu responder sua pergunta com outra�

– Você era amiga do casal, Susana?– Sim, claro! – ela falou com um tom melancólico�

Marcelo só não sabia se ela estava sendo sincera� – Éramos

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amicíssimos� Sempre estávamos juntos� Fiquei muito triste com a partida deles� Inconsolável� – disse ela, dando um suspiro profundo�

– Então você deve saber por que eles se separaram? – perguntou Marcelo�

– Na verdade não� Mas penso que não estaria errada em supor que a culpa era da Elisa� – disse ela como se fizesse uma confissão não muito agradável� – Apesar de ser sua melhor amiga, eu sempre tive uma desconfiança de seu ca-ráter� Nunca me deixei conquistar pelo gênero boa moça dela� Do modo como Lucas saiu de casa, talvez tivesse des-coberto uma pequena infidelidade da esposa�

Essa versão da história era nova para Marcelo� Elisa traindo Lucas? Era possível?

– O que a faz pensar assim? – questionou Marcelo� Antes que Susana pudesse responder, uma nova voz se

ouviu na sala�– Eu também gostaria de saber� Em que você baseia essa

calúnia, Susana? – perguntou Beatriz que nesse momento retornava da biblioteca, sobressaltando ambos� Seu tom de voz era baixo, mas firme� Sua pele estava mais rosada do que o normal, nem parecia mais a menininha tímida que Marcelo conhecera horas antes�

Por um momento Susana perdeu a fala� Pelo seu olhar dava para notar que não gostava de ver Beatriz ali�

– Não vai dizer? – Beatriz perguntou um pouco mais nervosa e num tom mais elevado�

– Achei que estava sozinho! – falou Susana para Mar-celo, recuperando-se do choque� – Talvez deva voltar ou-tra hora�

Beatriz se aproximou, com cara de poucos amigos�

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– Calma, Beatriz – disse Marcelo, segurando seu braço� – Eu acredito que nossa vizinha responderá, não é, Susana?

– Ah, claro! – respondeu ela, forçando um sorriso� – Eu peço desculpas se a ofendi, Bia� Mas, é o que o povo fala� Eu não tenho provas�� Somente suposições�

– Então você deveria ter mais cuidado com o que fala, antes de espalhar histórias sem fundamento� – redarguiu Bia, sem abaixar o tom� Realmente ela estava muito brava�

– Você tem toda razão, Bia – disse Susana numa voz surpreendentemente doce� – Desculpe-me mais uma vez�

Marcelo estava espantado� Ele não conseguia conci-liar o que os seus olhos viam� Susana era uma espécie de mulher que provavelmente conseguiria trazer as pessoas mais poderosas debaixo de seus pés com sua simples pre-sença� Por outro lado, Beatriz era a última pessoa na ter-ra que ele podia imaginar ter algum poder sobre aquela mulher� Era como ver uma pantera ser dominada por um gatinho�

Susana levantou-se rapidamente e voltando-se para Marcelo falou em um tom totalmente diferente� Como se ainda não tivesse se recuperado por completo do choque�

– Acho que é melhor eu voltar outra hora� De qualquer forma, foi um prazer conhecê-lo e se precisar de alguma coisa, meu esposo e eu estamos à disposição� Fique à von-tade para nos visitar�

– Obrigado� – disse Marcelo aliviado que ela já estives-se de partida� A aranha desistia de sua presa�

Com passos apressados, quase caindo do salto, Susana se dirigiu até a porta, ignorando totalmente Beatriz�

Marcelo fez Bia se sentar e buscou um copo de água� Pouco a pouco suas feições começaram a voltar ao normal�

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– Desculpe-me seu Marcelo! É sua casa, não devia ter falado assim� Não vai acontecer de novo� – disse ela, assu-mindo sua habitual voz baixa�

– Não tem problema� – ele sorriu de leve� – Todos nós nos alteramos às vezes, não é? Mas, não entendi porque você ficou com tanta raiva� – Era óbvio que o que Susana dissera teve um efeito explosivo em Beatriz, suas mãos ain-da tremiam levemente�

– Bom, eu não gosto que as pessoas caluniem as outras, muito menos meus amigos! E a Elisa – disse ela com um sorriso triste e os olhos cheios de lágrimas – é minha me-lhor amiga!

Agora quem estava chocado era Marcelo� Ali, diante dele, estava uma garota que se dizia ser a melhor amiga de Elisa e ele não sabia o que dizer� Uma garota que pela manhã parecera ser a pessoa mais tímida da face da terra, mas que agora parecia disposta a tornar-se uma fera para defender alguém com quem se importava� De uma coisa ele tinha cer-teza� A primeira sessão do tribunal estava encerrada� Elisa só podia ter uma melhor amiga, e com certeza não era Susana�

– Seu Marcelo, sua casa já está limpa� – disse Bia, inter-rompendo seus pensamentos� – Eu vou embora� Mais uma vez me desculpe�

Marcelo pensou em fazer perguntas sobre o que ela sa-bia� Mas ela parecia muito abalada� Era melhor deixar para outro momento�

– Não foi nada! – disse simplesmente, ainda impactado com o que presenciará� Agora parecia que era ele quem per-dera a fala�

Acompanhou-a até o portão para ter certeza de que estava bem� Mas ela parecia ter recuperado sua habitual personalidade�

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Ele já estava voltando para dentro de casa quando avis-tou na casa da direita uma senhora de aproximadamente uns sessenta anos, em pé na varanda, que lhe acenou sorridente� Assim como os outros vizinhos, parecia ser muito simpáti-ca� Usava um vestido estampado, com flores grandes e cores chamativas, que ficava bem destacado devido estar um pou-co acima do peso� Mas seu cabelo preto e curto conseguia equilibrar o visual para que não ficasse tão extravagante�

Com passos lentos ela se aproximou do muro, provavel-mente tentando falar com Marcelo�

“Mas o que é isso? – pensou Marcelo – Todos os vizi-nhos resolveram falar comigo no mesmo dia?”

Sabia que o corretor havia comentado algo sobre a se-nhora que agora lhe sorria do outro lado do muro, convi-dando-o para se aproximar, mas honestamente já havia se esquecido�

– Boa tarde! O senhor é o seu Marcelo, não é?– Boa tarde! Sim, sou eu! – O seu Afonso falou que você será nosso vizinho� Pode

me chamar de dona Joana� É um prazer conhecê-lo�– Igualmente – respondeu Marcelo�– Não quero que pense que sou intrometida ou que vivo

cuidando da vida alheia – disse ela em um tom confidencial – mas, vi Susana saindo de sua casa� Só quero avisá-lo para tomar cuidado com essa mulher� Ela pode parecer um anjo, mas só Deus sabe o que é de verdade�

– Não precisa se preocupar, dona Joana� Já me avisaram para manter distância�

– Isso mesmo, meu filho� Porque ninguém tira da minha cabeça que ela foi culpada pela separação do Lucas e da Elisa, os antigos proprietários dessa casa� – falou enquanto lançava um olhar rancoroso em direção à casa da vizinha�

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– Obrigado pelo alerta, dona Joana� – disse Marcelo� – E foi um prazer conhecer a senhora�

– Por nada, meu filho� Se precisar de alguma coisa é só falar� Até mais�� – Dona Joana já estava se afastando, quan-do pareceu lembrar-se de algo� – Por acaso, o senhor sabe tocar algum instrumento?

– Infelizmente, não – respondeu Marcelo� – Eu não te-nho dom para tocar�

– Ah�� que pena! Estamos precisando de um professor de violão na escolinha� – ela parecia desapontada�

– A senhora tem uma escola de música? – perguntou Marcelo interessado�

– Não, eu só coordeno� É uma escolinha que o Lucas, havia fundado para crianças carentes� Chama-se Projeto Sol Nascente� Eu sou uma professora de artes aposentada e as-sim que ele começou a ensinar, eu quis ajudá-lo�

– Mas vocês continuam com a escola mesmo sem o Lucas?– Quando ele iniciou o projeto pediu apoio de muitas

empresas, instituições e de pessoas que gostariam de ajudar� E ainda hoje essas pessoas continuam contribuindo fiel-mente todos os meses� Aliás, eu estou indo lá agora� Fica há dois quarteirões daqui� O senhor não gostaria de conhecer o lugar?

Não precisava perguntar duas vezes� – É claro! Será uma honra!

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caPítulo 7

reSquícioS de eSPerança

Como dona Joana disse, o projeto não ficava longe� Ela e Marcelo foram caminhando, a passos lentos, uma vez que ela tinha certa dificuldade para andar� Suas pernas eram cheias de varizes� Durante o curto percurso, Marcelo teve a oportunidade de conhecê-la melhor� Sem dúvida, era uma pessoa espontânea e alegre� Segundo ela, ir para o projeto era o momento mais esperado de seu dia�

– Mas eu achei que os aposentados amassem ficar em suas casas, dona Joana, apenas curtindo a vida� – falou Marcelo�

– Antes de me aposentar eu também pensava assim, fi-lho� Mas faz cinco anos que sou viúva e depois que me apo-sentei tive que passar muito tempo sozinha� Não há nada pior do que acordar de manhã e se perguntar: “E hoje, o que eu irei fazer?” Sem ter perspectiva� Graças a Deus, o Lucas e a Elisa mudaram para cá cheios de ideias e me tiraram do meu isolamento� A princípio, eu não queria� Afinal, eu tinha me aposentado porque estava cansada da escola� Mas, eles tinham um jeito tão cativante de se aproximar da gente, que era difícil negar-lhes alguma coisa�

Ela fez uma pausa enquanto provavelmente se lembrava de alguma situação� Então continuou com um sorriso�

– Os dois eram cheios de criatividade e talento� Era impossível estar ao lado deles sem se sentir melhor e com vontade de dar o melhor de si� Acho que a palavra certa pela qual poderíamos defini-los era esperança� Eles faziam a gente acreditar que tudo era possível� Precisava ver o

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carinho que eles tinham pelas crianças e como se dedica-vam� Quando começamos, há um ano e meio, eram apenas dez crianças� Mas, desde o começo, eles se esforçaram ao máximo para que aquelas crianças recebessem uma educa-ção com qualidade� E os professores�� você precisava ver como eles conseguiam atraí-los para suas causas� Vários professores aposentados nos ajudavam� Chegou ao ponto de termos mais professores cadastrados no projeto do que alunos� – disse ela, lembrando-se de um passado, ainda que recente, pelo seu tom de voz parecia tão remoto�

Por instantes ela pareceu mergulhada em lembranças� Marcelo não a interrompeu, apenas caminhou silencioso ao seu lado�

– Chegamos Marcelo – disse ela enquanto eles para-vam em frente uma casa com paredes pintadas de um ver-de claro, cercada com muros bem coloridos, com imagens de crianças brincando felizes ao lado das palavras: Projeto Sol Nascente�

Contudo, foi o edifício ao lado que chamou a atenção de Marcelo� Era um sobrado e, pelo que pôde observar, prova-velmente estava abandonado� Via-se que há muito tempo a varanda estava coberta de folhas secas e as janelas estavam fechadas sem qualquer sinal de vida� Ele não precisava que alguém lhe dissesse o porquê� A imensa placa na fachada trazia em letras garrafais a resposta:

Conservatório Musical Beethoven – Professor: Lucas Rangel�

– Era o conservatório do Lucas� – explicou dona Joana com os olhos subitamente cheios de lágrimas, ao ver que ele observava� – Aqui ele dava aula e ainda conseguia su-pervisionar o projeto� Desculpe-me� É que é triste lembrar� Acho que falar neles me fez recordar como esse lugar era

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cheio de vida� Eles eram tão bons� Ainda não entendo por-que foram embora� Eu achava que Lucas voltaria logo� Era impossível imaginá-lo sem Elisa� Mas depois ela também se foi� Honestamente a minha esperança está acabando�

Marcelo ficou impressionado com a súbita mudança de humor de dona Joana� Talvez lembrar de Lucas e Elisa fez com que ela relembrasse sua perda�

– Pode parecer um clichê, dona Joana, mas nunca deve-mos perder a esperança� E ainda que eles nunca voltem, a senhora está sendo capaz de continuar esse trabalho�

Ela se virou para a escolinha do projeto enquanto enxu-gava uma lágrima furtiva�

– Eu tenho tentado meu filho, mas sinceramente, Lu-cas e Elisa eram a alma desse lugar� Tenho trabalhado aqui porque sei o quanto esse lugar é importante para a vida das crianças que o frequentam� Mas sei que não sou tão boa quanto eles�

Dona Joana parecia cansada� Como se estivesse lutan-do contra uma forte correnteza e estivesse quase se dando por vencida� Marcelo percebeu com surpresa que talvez sua presença fosse um dos motivos pelo qual o resto das esperanças daquela boa senhora ia embora� Vê-lo com-prar a casa, era como ver um ponto final sendo posto na partida de Lucas e Elisa� Sem possibilidade de retorno� Como se o sol nascente, estivesse escondido atrás das nu-vens� Pôde perceber também o quanto o projeto era im-portante para ela�

– Tenho certeza de que a senhora está fazendo o seu melhor� – disse Marcelo, tentando encorajá-la� – E é isso que importa�

– Mas receio, meu jovem, que talvez não seja o bastan-te� – ela fez uma pausa tentando recompor-se�

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Há poucos minutos que Marcelo conhecia aquela mu-lher e já se sentia afetado pela sua dor� Podia sentir a bon-dade que emanava daquele coração e como ela realmente estava se dedicando para manter o projeto�

– Dona Joana – ele disse, olhando-a nos olhos – se a se-nhora e seus amigos estivessem atendendo uma única crian-ça nesse projeto já estaria fazendo a diferença� Tenho certe-za de que o Lucas e a Elisa ficariam felizes de ver a senhora levando essa obra em frente� Que tal me mostrar a escola?

Ela deu um leve sorriso�– É verdade� Vamos entrar�Dona Joana conduziu-o até na porta de entrada onde ti-

nha uma tabuleta indicando ser a recepção� Tratava-se de uma sala pequena, com paredes em tons pastéis� As janelas de vidro deixavam o local bem iluminado� Tinham apenas duas cadeiras em um canto e uma escrivaninha no outro� Um quadro com o nome do projeto e a imagem de uma criança tocando um violão era a única decoração da sala� Em um mural ficava o horário das aulas, dispostos da se-guinte maneira:

TURMA A (9 anos) TURMA B (10 anos)

Segunda-feira - Pintura em Tela/Inglês

Segunda-feira - Teatro/Dança

Terça-feira - Artesanato/Matemática

Terça-feira - Matemática/Cultura

Quarta-feira - Teatro/DançaQuarta-feira - Pintura

em Tela/Português

Quinta-feira - Português/Violão Quinta-feira - Música/Artesanato

Sexta-feira - Música/Cultura Sexta-feira - Inglês/Violão

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Marcelo ficou surpreso com a quantidade de aulas ano-tadas� Era um projeto bem abrangente�

– Quantos alunos vocês atendem, dona Joana?– Como te falei no caminho, o Lucas tinha uma preo-

cupação com a qualidade e não com a quantidade� E pelo quadro é possível se ter uma noção que o interesse deles não era apenas educá-las em Artes e música� A ideia era qualificá-las o máximo possível para a vida, dando-lhes oportunidades que elas não teriam� Como pode ver, damos aulas de português, matemática e inglês para completar seu aprendizado e também, através dos trabalhos discutimos te-mas sociais e culturais, de modo que as crianças entendam e despertem a consciência de serem pessoas boas� No mo-mento, as crianças que atendemos vêm de vários bairros da cidade, mas todas com uma qualidade de vida bem precária� Se Lucas estivesse aqui, com certeza estaríamos atendendo o triplo de crianças, mas hoje esse número é de apenas cin-quenta crianças; vinte e cinco com idade de dez anos, que estudaram no ano passado e continuam seus estudos, e mais vinte e cinco que iniciaram seus estudos conosco este ano� Estas com idades de nove anos�

– E quanto aos professores? Porque para fazer esse tra-balho com certeza é necessário muita gente�

– Realmente� No ano passado nós tínhamos muitas pes-soas nos ajudando� Com a partida do Lucas e da Elisa mui-tos abandonaram, ficaram desanimados e acharam que não tinham porque continuar� Hoje somos apenas cinco volun-tários, que ainda lutam para manter o projeto� Como eu sou professora de Artes, dou aulas de artesanato, mas precisei substituir a Elisa em pintura em tela também� E como falei hoje, estamos procurando alguém para dar aulas de música� O professor que estava dando aula nos deixou na semana

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passada� E infelizmente, desde maio estamos sem um pro-fessor de inglês� As aulas de português e cultura são dadas pelo professor Inácio, as aulas de matemática pela Carolina e temos o Fernando que dá aulas de dança e teatro�� e por falar nele�� – disse ela, olhando na direção da porta – aca-bou de chegar�

– Boa tarde! Dona Joana, peguei-a no flagrante falando de minha pessoa? E quem é esse novo membro? Pelo tama-nho acho que não veio se matricular� – foi logo falando o homem extrovertido que entrou na sala�

A primeira impressão que Marcelo teve do recém-che-gado era de uma pessoa descolada e dinâmica, cheio de entusiasmo e vida� Devia ter uns cinquenta anos� Sua pele negra era realçada pelas cores extravagantes que usava� A camiseta vermelha berrante parecia aumentar a aura de energia que emanava dele�

– Fernando, este é o Marcelo, meu vizinho� Acabou de mudar-se para a casa da Elisa e do Lucas� Trouxe-o para conhecer o projeto� – falou dona Joana�

– É um prazer conhecê-lo� – disse Fernando, cumpri-mentando o com um aperto de mão enquanto fazia uma re-verência exagerada�

Nesse momento, um ônibus estacionou em frente à es-cola, enquanto várias crianças desciam empolgadas e cheias de alegria, enchendo o ambiente de gritos e risadas infantis�

– Ah! Finalmente, chegaram nossos pequenos artistas – foi dizendo Fernando enquanto ia recebê-las�

– Vamos conduzi-los para as classes agora, Marcelo� Será uma honra para nós se você puder ficar e assistir nos-sas aulas� – pediu dona Joana enquanto seguia Fernando�

Marcelo estava fascinado em conhecer algo que fora tão importante para Elisa e Lucas� Aquele lugar, aquelas

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pessoas e crianças, faziam parte da história deles� Como tempo era algo que no momento ele dispunha de sobra, ele decidiu ficar mais um pouco�

Quanto às crianças dava para perceber que todas eram bem pobres, com os sapatinhos e roupas já bem surrados� E apesar da alegria em seus rostos, podia se notar que apesar de tão jovens já tinham marcas de sofrimento� Rostinhos que inspiravam compaixão e desejo de ajudá-las para que o amanhã fosse melhor�

Algo ficou claro para Marcelo� Dona Joana talvez esti-vesse errada� Lucas e Elisa não eram a alma daquele projeto, mas as crianças� O coração do projeto Sol Nascente ainda batia porque elas ainda vinham ali para ter uma experiên-cia diferente daquelas que teriam se o projeto não existisse� Mesmo com suas limitações, enquanto existisse, o projeto faria a diferença no futuro daqueles pequenos�

Enquanto seguia dona Joana por um corredor para a sala com sua turma de dez alunos, – turma A – Marcelo pôde ob-servar que havia somente duas salas grandes com carteiras dis-postas em forma de círculos� Nas paredes havia quadros de músicos e também de pintores� E no final do corredor havia uma porta que levava a um refeitório simples com mesas com-pridas e bancos de madeira� E no fundo ficavam os banheiros, feminino e masculino� Tudo estava bem limpo e conservado�

Assim que entraram na sala, dona Joana apresentou Marcelo como um amigo que tinha vindo conhecer o recin-to� Ela estava dando aula de pintura em tela naquela tarde� Sem dúvida alguma, as crianças eram bastante talentosas� Todas se dedicavam para que seu trabalho ficasse bonito� No começo, pareceram tímidas diante de um desconhecido, mas aos poucos foram se soltando e logo estavam pergun-tando o que Marcelo havia achado de seus desenhos�

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– Desde a aula passada, estou trabalhando com elas a importância das cores primárias e secundárias, agregadas à importância do meio ambiente e parece que estão enten-dendo direitinho� – disse D� Joana com orgulho indicando os trabalhos que as crianças iam colorindo�

Quando o relógio marcou três horas da tarde, dona Joa-na fez com que eles formassem uma fila para sair para o recreio� No refeitório a mesa estava servida, com um deli-cioso café da tarde� Tinha pães, biscoitos, frutas e leite�

– Só conseguimos servir essa refeição graças à ajuda das pessoas que doam� O Lucas insistia em dar-lhes algo para comer, pois sabia que muitas dessas crianças infelizmente passavam necessidades em suas casas� E outro modo que ele encontrou para ajudá-las, mas ao mesmo tempo fazer de tudo para que elas participassem do projeto, foi colocar à dispo-sição um meio de transporte e distribuir uma cesta básica ao final do mês para as crianças que não tivessem faltas� – expli-cou dona Joana enquanto eles se sentavam em um banquinho�

– Se bem que nem era preciso, elas gostam tanto do pro-jeto, que até mesmo estando doentes, não querem faltar� – disse Fernando que nesse momento juntava-se a eles�

– Eu que o diga� Esses dias, tinha uma garotinha que veio, mesmo estando com febre, porque queria terminar o trabalho de artesanato – disse dona Joana�

– Dona Joana, você falou que tinha cinco pessoas que ajudavam, mas eu só vi vocês� Onde estão os outros?

– O professor Fernando e eu estamos aqui todos os dias, mas os outros só vêm nos dias de suas aulas� Exceto aquela moça ali – disse ela enquanto apontava na direção das me-sas� Aquela você conhece�

– Espere – disse Marcelo surpreso quando reconheceu quem estava servindo as crianças – Aquela é Beatriz?

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– É sim� Ela cuida da limpeza da escola e é responsável por servir o lanche� Está conosco desde o começo� As crian-ças simplesmente a adoram� – falou dona Joana�

Marcelo observou o cuidado com que Beatriz desenvol-via sua tarefa e desejou perguntar se ela sempre fora tão silenciosa assim, mas seus pensamentos foram interrompi-dos por Fernando, lembrando-lhes que era hora de voltar às atividades� Limitou-se apenas a balançar-lhe a mão numa saudação muda que ela correspondeu com um de seus tími-dos sorrisos�

O resto da tarde passou rápido� As crianças tinham con-seguido cativar Marcelo e ao final do dia tinham feito belas obras de arte� Uma menina bem magrinha entregou-lhe um desenho e o abraçou com ternura ao se despedir�

– Obrigada por te vindo conhecer nosso projeto – falou dona Joana enquanto caminhavam de volta para suas casas�

– Eu que agradeço o convite� Foi uma tarde maravi-lhosa� Vocês estão de parabéns pelo trabalho que desen-volvem� – e após uma pausa� – Eu gostaria muito de fazer parte deste projeto�

Dona Joana ficou radiante com suas palavras�– Você quer nos ajudar?– Sim� Como eu disse, fiquei encantado como o trabalho

de vocês� Posso não tocar violão, mas vi que talvez possa ser útil à escola� Sou formado em literatura� Tudo bem que é literatura inglesa, mas já estudei muito sobre a literatura brasileira também� Se a senhora concordar, posso estar con-tando histórias para as crianças e incentivando-as na leitura, ajudando o professor Inácio com uma turma nas aulas de cultura�� E também posso dar aulas de inglês�

– Isso é ótimo, Marcelo! – disse dona Joana, juntando as mãos em êxtase, como se não acreditasse no que ouvia�

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– Realmente, o professor Inácio encontra-se sobrecarrega-do� E quanto às aulas de inglês, você nem imagina o quanto já rezei para encontrar um professor� Muito obrigada!

Ela o abraçou, sinceramente agradecida�– Professor Marcelo, é uma honra anunciar que o senhor

está contratado�Naquele fim de tarde, em que o vento gelado açoitava as

árvores, enquanto os últimos raios de sol iam sumindo no horizonte, Marcelo sentia que no seu interior havia mais luz e calor� Ele ajudaria os amigos de Lucas e Elisa a manterem o projeto, e acima de tudo, a esperança acesa� Conhecer o projeto, tocar o sonho que aquele casal desconhecido havia construído, era conhecer um pouco mais deles� Era enten-der o que Lucas escrevia no diário� E mais uma vez ele se questionava: o que teria acontecido para que Lucas abando-nasse todos os seus sonhos? Sua vida?

Sabia que só tinha um meio de descobrir a verdade� E apesar de ter chegado exausto em casa após o longo dia, Marcelo tomou banho, preparou uma refeição com os enla-tados que tinha em casa e subiu para a biblioteca� Sentou-se na poltrona, pegou o diário e reiniciou a leitura�

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caPítulo 8

quando Se encontra uM diaMante

Após aquele primeiro fim de semana que Elisa e Lucas passaram juntos, a relação dos dois ficou cada vez mais forte. Os dias que se seguiram foram maravilhosos. Pare-ciam dois adolescentes descobrindo o amor. Além de se ve-rem todos os dias no horário do almoço, saíam para jantar, dançar ou simplesmente assistir à um filme, juntos à noite. E como Elisa gostava de arte, ele a levava ao museu e sem-pre estava atento às exposições de arte que aconteciam na cidade. A cada dia Lucas conhecia algo diferente em Elisa que só a tornava mais fantástica diante de seus olhos. Ele a amava como jamais imaginara ser possível amar alguém.

Às vezes ia à casa de Elisa também. Quanto a seu An-tônio, já tinha acolhido Lucas como parte da família. Cha-mava-o carinhosamente de meu neto. E Lucas parecia fazer jus ao nome, pois levava seu Antônio para tocar piano em sua casa. Elisa fingia ter ciúmes, mas estava feliz por ver o avô aceitando com tanto afeto seu namorado.

– A coisa está mesmo séria, não é? – perguntou Fá-bio quando viu Lucas chegar certo dia, ao entardecer, com um imenso buquê de rosas vermelhas nos braços? Qual é a ocasião, já é noivado?

– Muito engraçadinho – disse Lucas, rindo. – Não, Fá-bio. Ainda não é noivado. Hoje é aniversário da Elisa.

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– Ah! Bom! – disse enquanto voltava a assistir a um programa de televisão. – Me sinto aliviado.

– Por quê? Você acha que seria estranho se eu já a pe-disse em casamento? – perguntou Lucas.

Fábio deu-lhe um olhar alarmado, como se questionas-se a sanidade do amigo.

– Só faz um mês que vocês estão namorando...Lucas o interrompeu sorrindo:– Relaxe, Fábio. Só estou brincando com você. Sei que

ainda está muito cedo.– Muito... muito cedo – concordou Fábio, voltando a

prestar atenção na TV.Lucas foi até o quarto, pegou o presente que comprara

para Elisa – um livro sobre história da arte, que ele sabia que ela queria muito comprar. Passou pela sala novamente, pegou o buque de flores, e olhou para Fábio que parecia bastante entretido com a TV. Não resistiu a tentação de pro-vocar o amigo:

– O que você acha, se eu a pedir em casamento daqui a dois meses?

Lucas saiu apressado, mas ainda teve tempo de ouvi-lo dizer algo como insanidade e camisa de forças. Riu consi-go mesmo. Sabia que talvez parecesse louco mesmo. O que Fábio diria se soubesse o que ele estava prestes a fazer?

Aquele era um dia especial e ele queria fazer uma sur-presa para Elisa. Havia pensado em muitas formas de sur-preendê-la. Mas acabou chegando à conclusão que o ver-dadeiro presente devia vir do coração.

Dirigiu apressado pelo trânsito de Curitiba olhando no relógio, enquanto tentava chegar ao seu destino. Fi-nalmente estacionou em frente ao restaurante onde Eli-sa trabalhava, em um ponto que não ficava muito visível,

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mas de onde podia ver a porta pela qual ela saía. Sabia que ela estava quase terminando o expediente. Eram qua-se seis horas. O sol estava se pondo e a temperatura ti-nha caído bastante. Lucas esperou cerca de dez minutos, até que viu a porta abrir e Elisa caminhar com passos apressados enquanto se envolvia no casaco, buscando se proteger do frio.

Lucas saiu com o violão do carro e caminhou vagaro-samente em sua direção, tentando não assustá-la. E então começou a cantar uma canção que ele próprio havia com-posto, inspirado em seus sentimentos por aquela mulher. Uma canção com uma melodia suave, na qual ele descrevia tudo o que Elisa representava para ele.

A Princípio, ela pareceu surpresa ao vê-lo ali. Mas con-forme absorvia o que aquela letra dizia, foi tomada de pro-funda emoção e assim que ele terminou de cantar ela se jo-gou em seus braços, beijando-o com ardor. Várias pessoas tinham se aproximado para ver aquela cena tão inusitada. E bateram palmas, também emocionadas.

– Feliz aniversário, querida. – disse ele com carinho.– Achei que você não soubesse que hoje era meu aniver-

sário. Afinal, você nunca me perguntou nada.– Felizmente você tem um “sobrinho” que me informa

sobre tudo que é importante a seu respeito.– Obrigada, Lucas! Você é incrível!Ele a acompanhou até o carro, onde entregou o buque

de flores e o presente. Sua expressão de surpresa ao ver o livro foi impressionante.

– Muito obrigada! – ela disse com lágrimas nos olhos. – Mas preciso confessar que não precisava me dar nada. O maior presente que poderia ter recebido em minha vida eu já tenho. É você.

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O tempo passou rápido. Veio o inverno com seus dias frios e também a primavera com suas flores e cores alegres. Lucas não tinha dúvida: Elisa era a mulher da sua vida. Já fazia quatro meses que estavam namorando e ele não conseguia imaginar viver o resto da vida sem ela. Ela se tornara essencial para sua existência. E o mais importante é que ela parecia gostar dele do mesmo modo.

Ele queria levá-la para conhecer sua família, mas não sabia qual seria sua reação quando visse a casa de seus pais e o quanto eles eram ricos. Por outro lado, ele havia falado tanto de Elisa para seus pais que eles também esta-vam ansiosos para conhecê-la. A oportunidade de levá-la até Maringá surgiu nos feriados de 12 de outubro e dia dos professores, quando a faculdade teria um recesso de três dias.

De Curitiba a Maringá eram aproximadamente seis horas de carro. Eles saíram de madrugada. Elisa estava visivelmente ansiosa. Mas à medida que iam percorrendo as belas paisagens paranaenses, ela mudou de humor e voltou a ser a pessoa entusiasmada e espontânea que era. Logo estava fotografando tudo, pedindo para Lucas ir mais devagar para ver tal coisa ou até parar para admirar algu-mas flores raras.

A rodovia bem conservada permitiu uma viagem tran-quila. Fazia meses que Lucas não vinha ali. Os vales co-bertos da relva verde e os campos de soja sempre o encan-taram. O cheiro de sua terra natal o invadiu, trazendo-lhe recordações. Estava feliz por voltar ali.

Elisa estava encantada:– Nossa! Sua cidade é tão linda! É muito grande?– Um pouco... Têm aproximadamente trezentos e cin-

quenta mil habitantes.

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– Não consigo te imaginar crescendo nesta cidade cheia de sol... sem neblina...

– Você acha que não combina comigo?– Não! Não é isso! É que fico imaginando o que você

fazia aqui quando era criança.– Bem, eu tinha alguns amigos. Nosso passatempo fa-

vorito era brincar no parque da cidade – ele deu um meio sorriso – o parque do Ingá. É um lugar muito bonito. E meus pais têm uma fazenda em uma cidade próxima daqui, em Cianorte... Nós gostávamos de passar alguns finais de semana lá fazendo trilha, acampando... Isso quando eu não estava envolvido com a música.

Ela fez cara de incredulidade.– Você fazia trilha?Ele não entendia a confusão estampada em seu rosto.– Ainda faço. É o passatempo preferido da minha famí-

lia, fazer trilhas, acampar e escalar montanhas. Acho que isso vem da época do meu avô. Ele foi um dos pioneiros na busca por pedras preciosas no Paraná e adorava esse tipo de aventura.

– Estou impressionada. – falou ela.Era pouco mais de meio-dia quando Lucas estacionou

em frente à casa de seus pais. Era uma casa muito bonita, de dois andares, em tons de branco com detalhes marrom, com uma longa faixa de pequenas pedras de mármore. Talvez a palavra casa não fosse a definição correta, dado o tamanho imenso e imponência da mesma. Elisa estava de boca aberta.

– Essa é a casa dos seus pais? – perguntou ela como se esperasse desesperadamente por um não como resposta.

– Não olhe as aparências. Lembre-se apenas que eles querem conhecê-la e meus pais são muito legais. Você vai adorá-los. – disse ele, tentando em vão tranquilizá-la.

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Ele ajudou-a a descer do carro, segurando firme suas mãos geladas, enquanto tocava o interfone.

– Pois não? – respondeu uma voz grave.– Oi, Anselmo! É o Lucas.– Seu Lucas! Um momento, por favor...O portão pequeno e central deslizou para o lado permi-

tindo a entrada dos dois. Um homem vestido todo de preto veio recebê-los.

– Como vai seu Lucas? Tudo bem?– Estou bem! Obrigado, Anselmo – disse Lucas, aper-

tando cordialmente a mão do mordomo. – Essa é Elisa, mi-nha namorada.

– É um prazer conhecê-la, senhorita.– O prazer é meu – respondeu Elisa com um sorriso,

mas ainda tensa.– Com licença, seu Lucas! Se me permite, irei guardar

seu carro.– Obrigado, Anselmo. – e voltando-se para Elisa – O

Anselmo é o empregado mais antigo da família. Trabalha para meus pais desde que nasci.

Elisa abriu a boca para falar algo, mas nesse momento surgiu Ana, a mãe de Lucas. Era uma senhora de aproxi-madamente cinquenta anos, extremamente elegante. Seus cabelos loiros eram curtos e escovados. Usava um vestido verde, simples, mas bonito.

– Lucas! Meu menino! Finalmente você chegou! – dis-se ela, dando-lhe um abraço apertado. – E essa deve ser Elisa – continuou ela, olhando Elisa de alto abaixo com um olhar de aprovação. – É um prazer conhecê-la, que-rida! – disse ela com sinceridade e um sorriso amável, abraçando Elisa.

– O prazer é meu. – disse Elisa, parecendo menos tensa.

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Ana os conduziu para a casa, fazendo perguntas sobre a viagem. Mostrou todos os cômodos da casa para Elisa. Se havia uma qualidade que Lucas admirava em sua mãe, era essa: ela era a hospitalidade em pessoa. Sabia acolher e fazer as pessoas se sentirem bem, como ninguém.

Minutos depois chegou Lauro, o pai de Lucas, junto com seu irmão Luciano. Os dois homens eram parecidís-simos. Ambos trajavam terno e gravata. A diferença era visível apenas pela aparência um pouco mais envelhecida de Lauro.

– Finalmente, poderei conhecer a doce Elisa – disse Lauro, cumprimentando-a com ternura.

E voltando se para o filho, abraçou-o afetuosamente:– Que bom vê-lo, filho. Será ótimo poder ouvir a boa

música nessa casa.Luciano também acolheu Elisa muito bem, como se ela

já fosse parte da família.Todos se sentaram à mesa para saborear a deliciosa

refeição que dona Ana pedira aos empregados para aquela ocasião tão especial. Lucas não tirava os olhos de Elisa. Ela parecia estar se adaptando ao ambiente. A conversa correu agradável sobre temas variados. Nada sério.

Após o almoço Lucas levou Elisa para caminhar no imenso jardim que cercava a casa. Era agradável passear ali. Devido às arvores grandes, o lugar era cheio de som-bras. Eles caminharam algum tempo em silêncio e senta-ram-se em um banco próximo a um chafariz. Elisa descan-sou sua cabeça sobre os ombros de Lucas.

– Elisa, por favor, me diga o que você achou da minha família. – pediu Lucas numa voz direta, mas suave.

– Não vou negar. Fiquei muito surpresa no início. Na verdade em estado de choque. Não imaginava que fossem

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tão ricos! Mas depois que realmente os conheci entendi o que você quis dizer sobre as aparências. Achei-os fantásti-cos, são muito legais.

– Mas se bem a conheço, você parece preocupada com alguma coisa.

– Estou me perguntando se você descreveu para eles como sou realmente pobre.

– Se é com isso que está preocupada, vou tranquilizá--la. Meus pais não fazem acepção de pessoas e creio que eles estão muito felizes e satisfeitos por você ser minha namorada.

O semblante de Elisa ficou mais sereno. Um sorriso brincou em seus lábios.

– Eu também gostei muito de conhecê-los.Lucas levou Elisa para conhecer cada lugar que era im-

portante em sua cidade. Os parques, praças, os lugares que frequentava quando criança e a empresa de joias de seu pai – A R’angel Joias. Sua mãe mostrou todas as suas fotos de quando era criança a Elisa, contando cada detalhe de suas travessuras. Mas como ela parecia se divertir, Lucas não conseguiu ficar zangado com a mãe.

No sábado, Lucas decidiu que levaria Elisa até Cia-norte, a cidade onde passara momentos maravilhosos de sua infância. Elisa gostou da cidade pequena, mas aco-lhedora, com uma bela paisagem cercada por vales de relva verde, entrecortadas por muitas plantações de milho e soja. Pararam na cidade para comprar alguns manti-mentos e em seguida tomaram uma estrada de chão que levaria a fazenda. Alguns quilômetros depois, ambos che-garam a uma fazenda bem arborizada e com uma casa grande e acolhedora, que encontrava-se desabitada. Era usada pela família apenas para momentos de lazer, mas

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achava-se em perfeito estado. Havia também duas casas menores, onde moravam os empregados da fazenda. Ape-nas as mulheres se encontravam em casa àquela hora da manhã, mas os receberam com alegria e colocaram-se à disposição, caso precisassem de algo.

Elisa e Lucas fizeram uma refeição com algumas frutas e alimentos que haviam comprado na mercearia da cidade e após foram fazer trilha. Ela estava radiante, fotografando tudo o que chamava sua atenção. Lucas nunca a vira sor-rindo tanto como naquele momento. Parecia uma borboleta liberta de seu casulo, voando de flor em flor, desbravando seu novo mundo.

Lucas conduziu a pela trilha que tantas vezes ele já per-correra. Como era primavera, as árvores já estavam re-vestidas de verde, e muitas esbanjavam flores colorindo a paisagem. Pássaros alegres enchiam de melodia o bosque, acompanhados pelas cigarras. Pequenos animais os obser-vavam de trás das folhas... Esquilos, macaquinhos, quatis... Após aproximadamente trinta minutos de caminhada eles atingiram o cume de um monte. Podia se ouvir o barulho leve da água correndo; uma nascente de águas claras e cristalinas brotava por entre pedras alvas... Mas o mais impressionante era que lá do alto podia se vislumbrar um vale amplo de relva verde, e fresca pela chuva da tarde an-terior, e ao fundo a cidade esparramada, com seus prédios reluzindo ao sol.

– Lucas, esse é o lugar mais lindo que eu já vi! – excla-mou Elisa, abraçando-o.

Ele já fizera aquela trilha tantas vezes que havia se acostumado com a beleza do lugar. Mas naquele momen-to parecia que tudo estava mais lindo. Como se a beleza de Elisa realçasse a beleza do vale. Com delicadeza ele

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desvencilhou-se de seu abraço para ver seu rosto. Não im-portava o quanto olhasse aqueles olhos cor de mel, sempre se perdia na doçura deles. Era como um caminhante fatiga-do do deserto quando encontra uma fonte. Nada mais podia prender sua atenção.

– Elisa... – sussurrou ele – Não sei se percebeu o quanto você é importante para mim. Não consigo imaginar mais minha vida sem você. Eu ti amo!

Ela parecia estar em êxtase.– Bem – disse ela com a voz trêmula – eu também não

saberia mais viver sem você. É claro que te amo!– Então, se não podemos mais viver um longe do ou-

tro... Você aceita se casar comigo, Elisa? – perguntou ele enquanto abria uma pequena caixinha de veludo com um belo anel de diamante.

Ela olhou para ele com os olhos nublados pelas lágri-mas. Demorou alguns segundos para que ela conseguisse responder.

– Você está me pedindo em casamento? É sério?Ele apenas sorriu, afirmando com um leve aceno de ca-

beça. Ela olhou o anel, fascinada pelo brilho do diamante.– Lucas, eu não posso aceitar esse anel... Com certeza

ele vale uma fortuna!– Elisa, ele realmente é valioso. Mas é justamente por

isso que estou te dando...– Não entendo...– Você é o que tenho de mais valioso na vida... Muito

mais valiosa do que esse diamante... Ele será apenas um símbolo do meu amor por você... Meu verdadeiro diamante.

Lágrimas rolaram pela face de Elisa.– Aceita se casar comigo? – perguntou ele, olhando em

seus olhos.

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– Sim! É claro que aceito.Era tudo o que ele precisava ouvir para envolvê-la no-

vamente em seus braços.

Ana e Lauro ficaram muito felizes com o noivado do filho. Só ficaram tristes por não poderem dar uma grande festa para comemorar. Lucas e Elisa, no entanto, ficaram satisfeitos com o almoço que eles serviram no domingo, que na verdade foi até um pouco extravagante. Não houve como conter a mãe de Lucas. Ela contratou um Buffet e le-vou Elisa para comprar um vestido novo ainda no sábado à noite. De modo que Elisa estava deslumbrante em seu almoço de noivado, com um vestido azul simples, realçado pela beleza do colar que Lauro lhe dera como presente de noivado. Lucas nunca a vira tão bonita.

Na sala de estar, onde ficaram após o almoço, havia cerca de trinta pessoas. Lucas conhecia todos. Alguns eram amigos de infância, outros amigos da família que o viram crescer. Ele andou de braços dados com Elisa apresentan-do-a e conversando com todos.

– Você precisava ver esse cara na escola, Elisa! – dizia Hugo, o melhor amigo de Lucas na infância. – Ele era o maior arruaceiro da turma!

Elisa olhava incrédula para Lucas.– Olha quem fala! – defendeu-se Lucas – O primeiro

lugar de bagunça sempre foi seu.– Fale a verdade, querido! – disse uma loira, alta e

atraente, aproximando-se deles. – Lucas era tão comporta-do que entediava qualquer um ao lado dele.

– Querida, não seja tão estraga prazeres – disse Hugo, abraçando-a. – Só queria divertir Elisa. A propósito, Lu-cas, você se lembra da Susana?

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Lucas olhou a jovem que o encarava sorrindo. Ele a conhecia de algum lugar. De repente, a lembrança veio à tona: Eles haviam cursado o ensino médio juntos. Ela era uma garota encrenqueira e franzina que se sentava no fun-do da sala. Vivia jogando charme para cima de Lucas, mas ele sempre a evitava. Porém, agora ela estava muito dife-rente – muito, muito mais bonita.

– Claro que me lembro – disse ele, cumprimentando-a. – É bom vê-la novamente. Nós estudamos juntos – explicou ele para Elisa.

– Parabéns pelo noivado! – disse Susana, abraçando Elisa. É um prazer conhecê-la.

– Obrigada! – respondeu Elisa com um sorriso – O pra-zer é meu!

– Segundo o que me lembro, vocês não se davam muito bem quando estudávamos – disse Lucas em tom de brincadeira.

– O amor muda as pessoas, Lucas! Agora eu e Hugo nos damos super bem! Já estamos casados há dois anos.

Era verdade! Lucas lembrou-se de que foi convidado para o casamento, até mandou um presente se desculpando por não poder comparecer, pois estava fazendo um projeto de férias na Europa. Na época vira o nome de Susana no convite, mas nem imaginou que fosse ela. Era uma surpresa ver que os dois haviam se casado. Em sua opinião eles não tinham nada em comum.

A comemoração continuou descontraída até às três ho-ras da tarde, quando os últimos convidados se despediram. Aparentemente todos haviam ficado encantados com Elisa. Porém o passeio tinha chegado ao fim. Ele e Elisa precisa-vam voltar para Curitiba.

***

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Não dava mais para continuar a leitura� Já era meia noi-te� Marcelo não vira o quanto o tempo passara� Ele estava fascinado com a história� Nunca imaginara que uma pessoa pudesse gostar tanto de outra na vida real� Esse tipo de amor era algo que ele só imaginava em contos de fadas� Mas suas dúvidas continuavam sem respostas, e elas só au-mentaram� Quanto mais Marcelo desvendava, menos tudo fazia sentido� Afinal, se Lucas amava Elisa tanto assim, porque a deixara?

Sem contar que um novo fator fora acrescentado: Era coincidência demais, mas Susana e Hugo só poderiam ser os mesmos que agora eram seus vizinhos� E como Lucas dissera, eram amigos de infância� Talvez devesse aceitar o convite de Susana e conhecer melhor seus novos vizinhos� Havia muitas peças do quebra-cabeça faltando, e eles po-diam ser uma delas�

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caPítulo 9

acidenteS aconteceM

No dia seguinte, ao tomar o café da manhã, Marcelo percebeu que precisava abastecer sua geladeira� Tudo o que havia de frios e enlatados estava se esgotando rapidamente� Decidiu que antes de começar sua leitura, precisava com-prar mantimentos ou passaria fome�

Tirou seu carro da garagem e dirigiu-se para o centro, onde se lembrava de ter visto um supermercado� Para sua satisfação o mercado era grande, com bastante variedade� Selecionou algumas comidas com preparo instantâneo, além de frutas, verduras e carnes, o suficiente para sobre-viver até o final da semana� Como ainda era bem cedo, não havia muitos clientes� Ficou grato por poder passar pelo caixa rapidamente�

Estava saindo apressado e distraído do mercado, carre-gado de sacolas, quando tudo aconteceu� Em um segundo ele segurava a sacola nas mãos e no segundo seguinte ele, as frutas e verduras estavam espalhados pela calçada� Le-vantou a cabeça para ver a pessoa com quem colidira pron-to para falar umas verdades como se deve olhar por onde anda, mas�� para sua surpresa era Beatriz quem estava caída ao seu lado, e pela sua cara estava machucada�

Ela estava deitada e sua mão apertava o tornozelo� Também saía sangue de um ferimento no joelho� Podia ver a mancha vermelha umedecendo o tecido da calça no local� Não precisava ser um gênio para decifrar por que uma simples trombada a ferira tanto� Havia um imenso

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buraco na calçada e provavelmente ela pisara ali durante a queda�

– Desculpe-me, seu Marcelo – disse ela ao reconhecê-lo�– Eu é que peço desculpas – falou Marcelo se sentindo

extremamente culpado� – Eu devia ter olhado para os lados antes de sair do mercado� Vou levá-la ao hospital�

– Não se preocupe, seu Marcelo! Não é nada� – disse ela se fazendo de forte�

– É melhor fazer um curativo e ver se não quebrou nada�– Não precisa – insistiu ela�Em cidades interioranas até trombadas viram espetácu-

los� Pior ainda se acontecem no centro� Já havia um círculo de pessoas em torno deles� Cada uma falando uma coisa� Era melhor tirar Beatriz dali ou só Deus sabe a versão que os fatos iriam ter�

– Não se mexa – ordenou ele�Juntou rapidamente as compras de volta nas sacolas e

ergueu Beatriz do chão� – Eu acho que machuquei meu tornozelo – disse ela, não

conseguindo se apoiar�Marcelo pegou-a no colo e levou-a para o carro� Pela

sua expressão dava para perceber que ela não estava nada feliz em ser carregada�

– Está doendo muito? – ele perguntou enquanto dirigia para o hospital�

– Não! – ela respondeu� Mas sua fisionomia provava o contrário�

O hospital não era muito grande� Marcelo dirigiu-se a uma porta grande de vidro, com letras em vermelho, escrito recepção� Uma jovem de não mais que vinte anos o aten-deu rapidamente ao vê-lo entrando com Beatriz no colo� Era simpática e solicita� Preencheu uma ficha com os dados

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pessoais de Bia e os encaminhou para uma salinha onde mais pessoas esperavam para serem atendidas�

Apesar da necessidade de um atendimento urgente, ti-nha uma pessoa em estado mais grave do que Beatriz� Eles teriam que aguardar um pouco�

– Não precisa ficar aqui comigo, seu Marcelo� – disse Beatriz assim que a recepcionista saiu�

– Em primeiro lugar, pare de me chamar de “seu Mar-celo” e em segundo, eu não vou sair daqui� Estou me sen-tindo culpado demais pelo que aconteceu� – respondeu ele com firmeza�

– Não foi sua culpa� Eu estava andando muito rápido sem prestar atenção� – ela falou, baixando os olhos�

Marcelo pensou que para distraí-la da dor era melhor mantê-la conversando� Principalmente agora que ela estava falando com ele�

– Fiquei surpreso quando te vi ontem no projeto� – Eu gosto muito de trabalhar com as crianças� Faz-me

sentir bem� – disse timidamente, ainda relutante, e após uma pausa completou: – Mas também fiquei surpresa em vê-lo lá�

– A dona Joana me convidou para conhecer o projeto� Confesso que fiquei encantado com o trabalho que vocês desenvolvem com aquelas crianças, apesar de todas as di-ficuldades� Especialmente por não terem desistido, mesmo sem o Lucas e a Elisa�

Ela levantou a cabeça por um momento olhando em seus olhos, visivelmente surpreendida pelo que ele dis-sera� Porém, logo voltou a olhar para o chão, dizendo simplesmente:

– É difícil, mas não podemos parar� Sabemos o quanto o projeto é importante para a vida das crianças�

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– Eu também percebi o quanto elas gostam de estar ali� – falou Marcelo� – Eu falei com a dona Joana e hoje à tarde vou começar a ajudar também�

Dessa vez Beatriz levantou a cabeça e encarou-o con-fusa, como se não conseguisse imaginá-lo trabalhando na-quele lugar�

– E o que irá fazer? – perguntou�– Vou ser professor de cultura e inglês� – Está falando sério?– Sim� – disse Marcelo sem entender porque a ideia dele

trabalhar no projeto lhe parecia tão impossível� Mas a rea-ção de Beatriz o surpreendeu�

Que bom! – ela deu um sorriso� – Há muito tempo está-vamos precisando de alguém para ensinar inglês� E o pro-fessor Inácio ficará feliz se tiver alguém para ajudá-lo�

Marcelo ficou surpreso com a súbita espontaneidade dela� Mas não era difícil entender� Ela se importava com as crianças e ficara feliz por elas estarem conseguindo algo de que precisavam�

– Então não precisa se preocupar� Daremos um jeito de preparar o lanche dos alunos até que você se recupere�

– Mas, não foi nada! Tenho certeza que logo estarei me-lhor – ela protestou�

Marcelo não quis contradizê-la, afinal só o médico po-deria dar um veredicto� Resolveu mudar de assunto�

– Não é da minha conta, mas onde estava indo tão cedo?Beatriz relutou em responder como se estivesse expon-

do demais sua vida para ele�– Estava voltando para casa� Tinha ido levar as crianças

na escola� Agora foi a vez de Marcelo ficar confuso� Ele não

vira nenhuma aliança em sua mão� Tudo bem que não

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perguntara se ela era casada� Não passara pela sua cabe-ça que a bela jovem à sua frente já fosse casada e mãe� E pelo que ela dissera – crianças – ela não tinha só um filho� Ia fazer novas perguntas, mas nesse momento a recepcionista surgiu na sala, chamando-os para entrar no consultório�

Beatriz tentou ficar em pé sozinha, mas não teve forças� Marcelo precisou carregá-la novamente, o que ela aceitou muito a contragosto�

– Bia! É você quem está aqui? – exclamou um homem baixo e gordo ao vê-los entrando no consultório� – O que aconteceu?

– Oi, doutor Augusto! Eu caí e cortei o joelho e acho que torci o tornozelo� – respondeu ela em seu habitual tom de voz�

– E quem é você meu rapaz? – perguntou o médico com curiosidade fitando Marcelo, enquanto este deitava Beatriz na maca�

– Me chamo Marcelo� Sou vizinho da Beatriz� Mudei há pouco tempo para cá� – respondeu Marcelo, apertando a mão do médico�

– E está gostando da cidade? – perguntou o médico interessado�

– Estou – disse Marcelo� – E eu queria voltar logo para casa�� Será que vai demorar muito?

Só então o médico pareceu lembrar que tinha uma pa-ciente a tratar� Examinou o tornozelo de Beatriz, e quando ela fez uma cara de dor, chamou uma enfermeira orientan-do-a para tirar raio-X do tornozelo e fazer um curativo no joelho da jovem�

Marcelo aguardou-a numa sala ao lado� Demorou um pouco até o raio-X ficar pronto� Felizmente não era grave�

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Era uma entorse de nível dois� Com um gesso por alguns dias e repouso, logo ela estaria boa�

Uma hora depois, Beatriz, finalmente, saiu do hospital� Marcelo passou na farmácia e comprou os medicamentos que o médico receitara, pagando de seu próprio bolso, ape-sar dos protestos dela�

– Pode comprar – disse ela por fim – mas quero que desconte do meu pagamento�

– Jamais – respondeu Marcelo� – Fui eu o causador do acidente� Fim de discussão�

Sorte de Marcelo que a maioria da família de Bia esta-va trabalhando, caso contrário seria sufocado de pergun-tas� Seu Afonso, dona Isabel e duas tias de Bia quase o enlouqueceram�

– O que aconteceu com minha netinha? – foi perguntan-do seu Afonso assim que o viu estacionar o carro e sair com Beatriz no colo�

– Foi um acidente respondeu Marcelo� Mas ela está bem�Infelizmente, ninguém conseguiu ouvir sua resposta,

porque as duas tias, vindas sabe se lá de onde, já chega-vam aos gritos de “Bia foi acidentada” e alarmando a avó que veio correndo, quase enfartando, perguntando se a neta ainda estava viva� Até Marcelo conseguir convencê-los de que ela estava bem, só precisava de repouso, demorou dez minutos� Depois passaram a especular cada detalhe do ocorrido e, por fim, derramaram-se em gratidão por Mar-celo tê-la socorrido com tanta solicitude, ainda que ele fos-se o causador do acidente�

Meia hora depois, Marcelo conseguiu se despedir da fa-mília, recomendou a Beatriz que tomasse os remédios e não fizesse nenhuma estripulia�

– Obrigada! – disse ela sinceramente agradecida�

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Seu Afonso acompanhou-o até o portão�– Muito obrigado pelo que fez por minha netinha� – e

após uns momentos de reflexão, completou – Bia já sofreu muito nessa vida� É bom que ela veja que ainda existem homens bons neste mundo� – E virou-se, entrando na casa, deixando Marcelo atordoado com suas palavras�

O período da tarde passou depressa para Marcelo� Sua primeira experiência com os alunos do projeto foi maravi-lhosa� Ele decidiu começar trabalhando Monteiro Lobato� As crianças mergulharam no universo do Sítio do Picapau Amarelo� Nem piscavam os olhinhos enquanto Marcelo mostrava as figuras e lia as aventuras de Emília, Narizinho e Pedrinho� Dona Joana e Fernando também o acolheram muito bem� Estavam radiantes por ele estar participando do projeto e cheios de ideias para desenvolverem juntos� Ele também teve oportunidade de conhecer a professora Caro-lina, de matemática, que dava aula naquele dia�

Carolina, diferente dos outros professores não era apo-sentada� O que foi uma surpresa para Marcelo que já es-perava encontrar uma réplica de dona Joana� Ela devia ter uns trinta e quatro anos� Era uma mulher muito bonita, sem dúvida, com aquele olhar atento que só uma professora de matemática sabe ter� Tinha os cabelos levemente acobrea-dos e cortados num estilo Chanel� Além de muito inteli-gente, Marcelo percebeu que tinha um grande coração� Ela não desfrutava de uma boa situação financeira, mas mesmo assim tirava uma tarde na semana para estar ajudando aque-las crianças�

Havia um motivo a mais para os voluntários comemo-rarem� Fernando havia conseguido uma pessoa para dar as

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aulas de violão e música que já começaria na próxima quin-ta-feira� Logo, o quadro de professores estava completo�

Os quatro voluntários ficaram até depois do horário, reunidos, traçando planos para o futuro� Marcelo estava muito empolgado� Aquele primeiro contato havia desper-tado o desejo de realizar mais coisas por aquelas crianças que o receberam com tanto carinho� Se a escola tivesse mais voluntários, poderia desenvolver os projetos com mais qualidade, uma vez que dona Joana e Fernando en-contravam-se sobrecarregados� Quanto às despesas, não havia com o que se preocupar, a quantia doada pelas em-presas dava para manter a escola� Especialmente graças à generosa doação que a empresa R’Angel Joalherias conti-nuava fazendo todos os meses� Marcelo não entendia por que, mas os pais de Lucas continuavam mantendo a obra abandonada pelo filho�

Assim que saiu do projeto, ele decidiu passar na casa de Beatriz para ver se ela estava melhor� Talvez pudesse con-versar um pouco mais com ela� Felizmente, a sorte estava a seu favor� Beatriz estava sentada na varanda da casa de seu Afonso, sozinha, sem nenhum dos parentes por perto� Parecia imersa em pensamentos�

– Olá! Vim ver como você está� – disse Marcelo, apro-ximando-se do portão�

– Olá! Eu estou bem! Os analgésicos estão fazendo efei-to, pelo menos não sinto dor� Por favor, entre�

Marcelo entrou na varanda, sentando-se numa cadeira ao lado dela� Ficou satisfeito ao perceber que ela estava fa-lando com ele quase que normalmente� Seu tom de voz ain-da era baixo e delicado, mas pelo menos algumas barreiras pareciam estar caindo�

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– É, você já parece bem melhor� Mas acho que não é muito bom ficar aqui fora, já está ficando frio� – aconselhou Marcelo�

– Eu estou com um tornozelo torcido e não com res-friado – disse ela, dando um leve sorriso� – E eu prefiro ficar aqui, é mais tranquilo� Minha família não é muito civilizada�

Marcelo sorriu, entendendo o que ela queria dizer� De dentro da casa podia se ouvir várias vozes, como se todos falassem ao mesmo tempo�

– Eu gostei muito de conhecê-los� São pessoas maravilhosas�

– Sim�� Eles são� Mas quando se convive todos os dias junto com eles, corre-se o risco de ficar insano� Principalmen-te quando meu avô não está perto para acalmar os ânimos�

Falar de família para Marcelo era como pisar em um campo minado, devido aos seus próprios conflitos� Decidiu mudar de assunto antes que ela perguntasse sobre a sua fa-mília� Disse a primeira coisa que lhe veio à mente�

– Espero que seu esposo não tenha ficado bravo comi-go, por tê-la machucado�

Ela o olhou confusa por alguns segundos como se não entendesse o que ele estava dizendo�

– Eu não sou casada� – ela disse num tom quase inaudível� Mas naquelas simples palavras parecia haver mais� Ha-

via um quê de sofrimento que fez com que Marcelo se arre-pendesse de ter feito aquela comentário ingênuo�

– Desculpe-me, – disse Marcelo – é que quando você falou que foi levar os filhos para a escola, eu imaginei que era casada�

A expressão dela surpreendeu Marcelo� Ainda tinha tra-ços de amargura, mas deu um de seus sorrisos:

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– Acho que você interpretou errado o que eu disse� Eu falei que fui levar as crianças para a escola� Mas não são meus filhos� São meus sobrinhos�

Agora foi a vez de Marcelo rir� – Por isso que é bom perguntar as coisas ao invés de

ficar deduzindo, não é mesmo? – ele perguntou� – Sincera-mente, me desculpe�

– Não, a culpa é minha� Fui eu quem se expressou erra-do� Tem mais alguma coisa que queira perguntar, para não ter mais mal entendidos?

– No momento estou me perguntando, se você trabalha em outro lugar além da minha casa e da escola, porque sinto que você ficará impossibilitada de trabalhar por um bom tempo�

Ela fez uma careta, como se falar de sua vida profissio-nal não fosse um de seus assuntos preferidos� Era difícil falar com Beatriz� Parecia que tudo que ele dizia a feria� Após alguns segundos ela respondeu:

– Não� Eu só trabalho na escola, e agora na sua casa� Realmente acho que é melhor você contratar outra pessoa para fazer a limpeza� Segundo o médico vou ficar pelo me-nos um mês com esse gesso�

– Sei que já pedi desculpas muitas vezes – disse Mar-celo – mas, honestamente, ainda não me sinto redimido� Se tiver algo que possa fazer para te ajudar, por favor, não se sinta constrangida, é só me falar�

– Você já me ajudou mais do que devia� Por favor, sin-ta-se redimido� Aliás, tem só uma coisa que eu preciso� – disse ela, sorrindo�

– E o que seria? – perguntou Marcelo curioso�– Por favor, pare de pedir desculpas, ou irei dar um jeito

de torcer o outro tornozelo, para que você não continue se sentido culpado�

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– Tudo bem – disse Marcelo, sorrindo também� – Não vamos chegar ao extremo�

Ela pareceu satisfeita� Marcelo lembrou-se então que havia trazido algo para ela�

– Não sei se você gosta de ler, mas pensei em trazer-lhe isso para ajudar a passar seu tempo�

Ele tirou de dentro da bolsa que trazia a tiracolo um pequeno embrulho e entregou a ela, que abriu com cuida-do e de sobrancelhas levantadas� Era impossível definir sua reação ao descobrir que ele lhe dera um livro� Ela parecia ao mesmo tempo surpresa, mas também triste� Era mais um dos mistérios de Beatriz, como se o livro também a afetasse�

– Obrigada! – ela disse, olhando para ele sinceramente agradecida� – Eu gostava muito de ler� Mas, faz muito tem-po que não leio nada�

– Penso que pode ser um bom momento para recome-çar�� – sugeriu Marcelo�

– Gostei do título: “O Mensageiro”� Parece misterioso e interessante� Pode me dizer do que se trata?

– Você terá que ler para descobrir� – disse Marcelo, desafiando-a�

– Isso não é justo� Podia dar pelo menos uma dica� Por favor! – ela implorou�

Marcelo balançou a cabeça recusando-se a ceder�– Tudo bem� Então, vou demorar para lê-lo� – disse ela

fingindo indiferença� – Veja bem, não tem sinopse na contra capa� Não me sinto estimulada para folhear sequer a primei-ra página� E esse escritor R� Azevedo? Nunca ouvi falar� Portanto, já dá para imaginar que se não me der uma dica, demorarei no mínimo um ano para terminar a leitura�

– Não adianta insistir – disse Marcelo, rindo – terá de descobrir por conta própria�

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Era interessante ver Beatriz se soltando aos poucos� Até brincando com ele� Enquanto eles conversavam, o céu foi escurecendo e a temperatura caindo ainda mais� Marcelo estava gostando de conversar com Beatriz, mas não queria ser o culpado por ela pegar um resfriado� E apesar de gostar da família de seu Afonso, sabia que se eles o vissem ali, só o deixariam sair meia-noite�

– É melhor eu ir embora – disse ele, levantando-se – quando passar aqui amanhã, eu espero que já possa me con-tar o que acontece no primeiro capítulo�

Despediu-se de Bia, recomendando mais uma vez re-pouso e que se precisasse de alguma coisa, não importava a hora, poderia chamá-lo�

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caPítulo 10

oS vizinhoS da eSquerda

Honestamente a intenção de Marcelo era ir para casa e continuar a leitura do diário� Sua profissão ainda conti-nuava sendo escritor, mas ultimamente estava mais pare-cido com um detetive� Então, assim que viu seu vizinho da esquerda, Hugo, carregando uma caixa que parecia bem pesada, não perdeu a oportunidade� Em geral suas boas ações eram motivadas pelo coração, mas naquele momen-to, ao oferecer ajuda, sua única intenção era se aproximar do bom homem e extrair informações para “o caso que estava investigando”�

– Com licença� – disse se aproximando� – Parece que está pesado� Posso ajudar?

Realmente, Hugo estava em uma situação constrangedo-ra� Estava quase sucumbido sob o peso da caixa de madeira�

Marcelo não esperou por resposta� Com prontidão es-tendeu as mãos e ajudou o outro a firmar o que quer que fosse que estivesse transportando�

– Obrigado! – disse Hugo, recuperando o fôlego e colo-cando a caixa na varanda� Levou mais alguns segundos até que sua respiração voltasse ao normal� – Suponho que você seja o novo morador da casa ao lado�

– Isso mesmo! – Marcelo estendeu a mão para ele� – Meu nome é Marcelo�

– É um prazer conhecê-lo! Pode me chamar de Hugo� – respondeu, apertando-lhe a mão�

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Marcelo observou por alguns instantes o homem à sua frente� Era alto e magro� Devia ter quase a sua idade� Ti-nha o porte elegante de uma pessoa bem sucedida, dado o traje social que usava, incluindo terno e gravata� Talvez trabalhasse em algum banco�� ou em alguma empresa como administrador�� Tinha os cabelos curtos e bem penteados, como se usasse gel para mantê-los alinhados, eram bem pretos e contrastavam com sua pele muito branca� Seus olhos negros não pareciam calorosos� Ao contrário, em al-gum lugar nas profundezas era possível notar uma frieza como se a era glacial estivesse pronta a emergir em peque-nos cristais de gelo a qualquer momento� Contudo quando voltou a falar, a voz de Hugo parecia cordial�

– Gostaria de convidá-lo para conversarmos um pouco� É o mínimo que posso fazer por alguém que me ajudou sem sequer me conhecer� Por favor, entre�

Era justamente por isso que Marcelo estava ali� – Será uma honra�� Obrigado!Hugo abriu a porta e mais uma vez precisou da ajuda de

Marcelo para transportar a caixa para dentro� Assim que entrou na casa, Marcelo entendeu o que Su-

sana quis dizer com sofisticação� Embora fosse uma casa apenas térrea, o interior era mil vezes mais moderno e re-quintado que a casa que comprara�

Os móveis da sala eram modernos e de cores que es-tavam sendo lançadas no mercado�� era o que havia de última tendência�� Havia quadros abstratos nas paredes e o ambiente parecia lembrar uma cena futurista, realçado pelas luzes dos lustres� No canto da sala, tinha um peque-no e aconchegante bar� Foi para lá que Hugo conduziu Marcelo�

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Hugo serviu dois drinques e levou até onde Marcelo es-tava sentado�

– Então�� acredito que você já deve estar cansado de responder esta pergunta para os seus vizinhos curiosos, mas é inevitável, de onde você vem, qual é a sua história? – Hugo perguntou com vívido interesse�

Marcelo tomou um longo gole�� Na verdade era ele quem queria fazer as perguntas, mas por que não estabele-cer alguns laços de amizade?

– Eu sou brasileiro, mas morei alguns anos no exterior, nos Estados Unidos e agora estou de volta��

– Interessante� – disse Hugo como se realmente estivesse fascinado em conhecer um vizinho que teve a experiência de viver no estrangeiro, e sem mais delongas lançou-se a uma sé-rie de comentários sobre os pós e os contras da vida no exterior�

Marcelo tinha que admitir que o sujeito era bem inteli-gente e também simpático� Era agradável falar com ele�

– Ultimamente tenho viajado bastante para o exterior� – continuou Hugo� – Sou dono de um estúdio fotográfico e preciso estar atento a todas as novidades que são lançadas no mercado�

– Que legal! Então você trabalha como fotógrafo?– Na verdade é um pouco mais amplo� – continuou

Hugo� Sua voz evocava o orgulho de um empreendedor bem sucedido� – Quando comecei, há uns nove anos atrás, eu apenas tirava fotos para casamentos, aniversários�� mas logo eu percebi que se quisesse ter um lugar ao sol nesse mundo concorrido, precisaria batalhar muito� Mas estamos em Cianorte�� Então, não foi difícil ver uma oportunidade� Quantas empresas não precisam de um estúdio fotográfi-co para fazer suas campanhas de publicidade? Decidi fa-zer uma faculdade de Marketing para entender melhor e

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em pouco tempo já estava fazendo da minha empresa um negócio de sucesso� Hoje eu praticamente nem toco nas câ-meras, apenas gerencio meus empregados e vejo se meus clientes estão sendo bem atendidos�

– É surpreendente� – disse Marcelo não encontrando uma palavra melhor para elogiar alguém que já parecia tão orgulhoso de si próprio� – Você conquistou seu lugar ao sol!

A personalidade de Hugo era difícil de ser definida� Mas Marcelo podia perceber que ele era um homem bem suce-dido, que corria atrás do sucesso e gostava de ostentar seu poder� Podia perceber isso no ambiente ao seu redor e no modo como ele se expressava� Poderia considerar isso um defeito? Logicamente não� Ele era a espécie de pessoa que muitos empresários convidariam para dar palestras motiva-cionais em sua empresa�

Hugo provavelmente teria continuado relatando suas conquistas se naquele momento Susana não tivesse apare-cido no ambiente e interrompido a conversa�

– Olá, querido! Não o ouvi chegar�– Oi, Meu amor! Desculpe não ter ido vê-la� Trouxe um

convidado� Quero que conheça o nosso novo vizinho� – dis-se ele enquanto beijava a esposa e mantinha os braços em torno de seus ombros como que para demonstrar que ela era sua propriedade� – Este é Marcelo�

Marcelo ficou surpreso a princípio� Então, Hugo não sa-bia que ela já tinha ido visitá-lo?

– É um prazer conhecê-lo� Pode me chamar de Susana� – disse ela, sorrindo como se realmente o estivesse vendo pela primeira vez�

– É um prazer conhecê-la também! – disse Marcelo, mantendo a farsa dela� Embora sua vontade fosse desmas-cará-la ali mesmo� Mas pensou em seu objetivo ali e chegou

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à conclusão de que não adiantaria criar inimizades� E antes que a conversa voltasse para negócios, deu um jeito de mu-dar de assunto�

– Estou feliz por saber que tenho bons vizinhos� Aliás, gostei muito da casa de vocês, tem uma decoração incrível� Há tempos que não visito um lugar tão agradável� – dis-se Marcelo, imaginando que se ele fosse o Pinóquio, nesse momento seu nariz já teria atravessado a rua�

– Modéstia a parte, minha esposa tem muito bom gosto� – concluiu Hugo com um orgulho indisfarçável�

– Querido, assim você me deixa constrangida� – disse Su-sana, demonstrando uma timidez que estava longe de possuir�

– Mas sabe de uma coisa, Marcelo, a casa que você com-prou também é muito bonita� Eu gostaria de tê-la comprado, mas foi vendida tão rápido, que nem pude fazer minha oferta�

– Eu sinto muito� – disse Marcelo, notando um tom de ressentimento na voz de seu interlocutor�

– Oh�� imagina! – disse Hugo, sorrindo� – Fico feliz que tenha ficado em boas mãos� Meu único objetivo de compra era preservar o que era do meu amigo� Tenho boas memó-rias naquele lugar�

– Você era amigo do antigo proprietário? – perguntou Marcelo, fingindo admiração e feliz por a conversa ter che-gado aonde ele queria�

– Nós éramos como irmãos� Lucas foi meu melhor ami-go, desde a infância� – disse com uma expressão de dor� – Desde pequenos, sempre fomos muito ligados� Ainda não consigo acreditar no que aconteceu�� Ele era tão feliz com sua Elisa e de repente tudo se acabou, sequer sabemos seu paradeiro� Já usei todos os meus recursos nas redes sociais para achá-lo, mas até agora nenhuma resposta� Espero que

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o pior não tenha acontecido com ele� Como eu disse antes, eu o considerava um irmão�

– Querido – disse Susana, interrompendo-o – aposto que Marcelo não está interessado na vida infeliz dos anti-gos moradores�

Marcelo mordeu a língua para não perguntar se o lapso de memória dela já havia passado� Com certeza ela não ti-nha se esquecido de como ele a interrogara, e pior, como ela fugira quando Bia aparecera� Não era de se espantar que ela quisesse mudar de assunto�

– Não, eu gostaria muito de saber� – disse Marcelo, de-monstrando interesse�

Hugo se lançou então a narrar suas aventuras de menino�– Conheci Lucas na escola que estudávamos em Marin-

gá� Como ele, eu também nasci e cresci lá� Desde pequenos fomos inseparáveis� Até em nosso tempo livre estávamos juntos� Ele era o melhor da turma� Sempre tirava as melho-res notas�� – ele falou com admiração� – Nós só nos distan-ciamos quando, no fim do ensino médio, meu pai decidiu mudar para Cianorte� – Nesse momento ele ficou um pouco mais sombrio�

– E anos depois teve a oportunidade de ter o amigo mo-rando novamente ao seu lado� – instigou Marcelo�

– Foi uma coincidência que me deixou muito feliz, quando soube que ele seria meu vizinho� O ano passado foi o ano mais feliz das nossas vidas, não foi Susana?

– Claro, querido! Foi um ano�� maravilhoso!– Pobre Lucas�� agora não sabemos onde se encontra

ou o que aconteceu� Eu disse que eu teria comprado a casa Marcelo, mas a verdade é que eu não aguentaria ver aquele lugar e lembrar o quanto ele era feliz e em tão pouco tempo

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tudo desmoronou�� Se eu pudesse ter feito algo para ajudar meu amigo, eu juro que teria feito�

Nesse momento o celular de Hugo tocou e quem quer que fosse que estivesse do outro lado da linha deveria ser importante, pois ele pediu licença e retirou-se da sala, dei-xando Suzana e Marcelo a sós�

– É impressão minha ou você está investigando o que aconteceu entre Lucas e Elisa? – perguntou Susana num tom sério, com seus olhos penetrantes�

– Até que eu lhe diria, mas parece que você tem pro-blemas de memória, então prefiro não dizer nada� Pense o que quiser� – disse Marcelo em um tom petulante� Ele não ligava para o que aquela mulher pensava dele� A verdade é que a simples presença dela o estava irritando�

– Não estou dizendo isso por maldade� – disse ela qua-se que num sussurro� – É que talvez não há nada que se possa fazer�

– Você sabe o que aconteceu, não sabe? – perguntou Marcelo a encarando com frieza� Como ela não respondeu ele continuou� – Mas sabe o que eu acho estranho, de todas as versões que eu já ouvi dessa história, nenhuma parece fazer sentido�

– Por favor – pediu ela em um tom suplicante� – Esque-ça essa história� Já se passaram seis meses, a essa altura Elisa e Lucas já deram continuidade em suas vidas�� Para que mexer em feridas do passado?

– Agora você perguntou algo que faz sentido� Devemos mexer nas feridas do passado por que o único meio de curá--las é descobrindo a verdade, do contrário, elas jamais cica-trizaram e nos machucarão a vida inteira�

– Por favor�� – ela pediu novamente�

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Realmente Susana sabia de algo� Mas como saber quan-do ela estava fazendo seus joguinhos ou falando a verdade� O certo era que até que se provasse o contrário, se existia um culpado na história, ela continuava sendo a suspeita nú-mero um�

Nesse momento Hugo retornou à sala� Pareceu meio confuso com o clima tenso entre sua esposa e Marcelo, mas ignorou�

– Desculpe, era importante, tive que atender��– Sem problemas� Na verdade eu já estou de saída, tenho

algumas coisas importantes para fazer ainda hoje à noite� – Sim, claro! Teremos outras oportunidades para nos fa-

larmos� Foi realmente um prazer conhecê-lo, Marcelo�– Posso dizer o mesmo, Hugo� Até breve�� Tenham uma

boa noite�

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caPítulo 11

aMar-te e reSPeitar-te

Assim que chegou em casa, Marcelo tomou um banho, tentando esquecer aquele encontro estranho que tivera e as palavras de Susana que ainda soavam em seus ouvidos�

Tomou uma leve refeição e em seguida foi para a biblio-teca� Pegou o diário e recomeçou a leitura�

***

Elisa havia ficado encantada com o interior paranaen-se. Havia amado a cidade, as pessoas e a tranquilidade dos campos. Ela adorou conhecer toda região, principal-mente Cianorte. Havia algo naquela cidade que a havia fascinado de um modo único. Lucas também amava a vida interiorana, sentia saudades de sua terra natal e de estar mais próximo de sua família. Tudo bem que ele se sentia extremamente realizado dando aulas na faculdade. Mas parecia-lhe que naquele momento a vida lhe pedia uma mudança de atitude; um ambiente tranquilo onde pudesse educar os filhos que teria e construir uma família unida e feliz. Parecia utopia, mas ele já se imaginava brincando com os filhos nos finais de semana, na fazenda, ao ar livre, tal qual ele fizera quando criança. Ele não queria que seus filhos conhecessem apenas shopping centers ou vivessem trancados em um quarto viciados em videogames. Conver-sou com Elisa e juntos decidiram morar em Cianorte após o casamento.

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O sonho se tornou realidade quando Lauro e Ana, ao saberem dos projetos do filho e da futura nora, insistiram em dar-lhes como presente de casamento uma casa, em Cianorte. Eles tiraram fotos de uma casa e enviaram para Elisa e Lucas perguntando se era do agrado deles. Os noi-vos queriam recusar, mas Lauro e Ana tinham uma habili-dade para fazer as pessoas aceitarem seus presentes. Não houve como eles recusarem a bela casa branca de modelo colonial, adornada por um magnífico jardim.

Dezembro chegou rápido. Havia coisas que Lucas sen-tiria falta em Curitiba: os passeios no jardim botânico, as manhãs de névoa úmida e fria, a faculdade, os alunos... e claro seu amigo Fábio. Os preparativos do casamento estavam sendo bem organizados. Elisa mantinha contato com Ana o tempo todo; pareciam mãe e filha. Fábio esta-va muito empolgado, principalmente depois que Lucas o convidara para ser padrinho, assim como Cris que seria a madrinha de Elisa. Até o pequeno Victor estava eufórico para ir ao casamento.

Chegou o último dia de aula no projeto Rouxinol, e em-bora Lucas estivesse feliz por começar uma nova fase de sua vida, sabia que deixar o projeto seria muito difícil. Sen-tiu um imenso sentimento de perda ao despedir-se de seus pequenos alunos. Havia acompanhado o desenvolvimento de cada um deles durante todo o ano e agora que chegava ao fim, podia dizer que o resultado era satisfatório. Eles tinham aprendido muitas coisas e desenvolvido suas habili-dades. Despediu-se de cada um com um abraço, desejando internamente que eles tivessem um futuro brilhante.

– E agora, quantos dias faltam para o seu casamento, tio Lucas? – perguntou Victor quando todos os coleguinhas já tinham saído e Lucas guardava os instrumentos.

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– Faltam sete dias.– Sete?! É muito, tio Lucas! Porque você não fala com

o padre que quer se casar hoje? – sugeriu Victor com um enorme sorriso.

Lucas também sorriu. O mundo das crianças era tão simples.

– Vou te dar um presente para que o tempo passe mais rápido, pode ser?

Ele havia se afeiçoado de tal forma a Victor, não que os outros alunos não fossem importantes, mas aquele ga-rotinho havia conquistado um lugar único em seu coração. Sem falar na habilidade fora do comum que ele tinha com o violão.

– Um presente? – os olhinhos de Victor brilharam de curiosidade.

Lucas pegou uma caixa grande embrulhada em um pa-pel bonito que estava guardada no armário e colocou-a so-bre a mesa.

– Isso é para mim? – perguntou ele paralisado.– É sim! Pode abrir – respondeu Lucas sorrindo.Ele ajudou o garotinho rasgar o pacote, pois suas mão-

zinhas estavam trêmulas. Victor ergueu a tampa da caixa e não conteve o grito de emoção. Dentro estava um bo-nito violão. Ele olhou para Lucas com os olhos cheios de lágrimas.

– Tio Lucas, esse violão é meu?– Sim! Ele é todo seu!Victor abraçou seu professor com força.– Obrigado, tio Lucas! Papai do céu te contou que eu

queria um violão de presente de natal?– Ele não me contou Victor. Mas tudo o que você real-

mente quiser, basta pedir e acreditar. Ele nunca deixa um

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pedido sem atender. – disse Lucas, satisfeito por ver a ale-gria do menino.

Os sete dias seguintes foram os mais corridos da vida de Lucas. Organizando sua mudança e procurando um local ideal para estabelecer seu conservatório em Cianorte. Na quarta-feira, ele, Elisa e seu Antônio viajaram para Marin-gá, onde aconteceria o casamento. Seu Antônio adorou a região, assim como a família Rangel. Ele estava muito feliz por ver sua neta se casando. Só ficou um pouco triste, pois iria morar distante dela. Apesar de Elisa e Lucas terem in-sistido para que ele fosse morar com eles, o bom velhinho se recusou, alegando que Curitiba é que era seu lugar. No fun-do Elisa sabia o real motivo. Ele não queria partir, porque se um dia a filha decidisse encontrá-lo, ela iria saber onde procurar. Elisa o admirava ainda mais por isso.

O dia dezessete de dezembro amanheceu com um sol radiante. Parecia que a natureza se preparava para cele-brar as bodas de Lucas e Elisa. Ao longo do dia, as equi-pes contratadas trabalharam com afinco para deixar tudo perfeito para a cerimônia. A catedral de Maringá, na qual se realizaria o casamento foi belamente ornada. Havia um longo tapete vermelho no corredor, ladeado por arranjos de copos de leite e avencas miúdas.

Às dezoito horas, cerca de seiscentos convidados (a maioria da parte de Lucas) já se faziam presentes para tes-temunhar a união de Lucas e Elisa. Todos muito bem vesti-dos e ansiosos para assistir o enlace do casal. A cerimônia começou com vinte minutos de atraso para impaciência do noivo. Mas assim que Elisa surgiu no corredor, conduzida pelo avô, Lucas sentiu o chão sumindo sob seus pés. Ele não tinha palavras para descrever a emoção que o tomou.

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Ela estava radiante em um vestido branco, bordado com pedrarias, completado por uma calda enorme. Trazia em seu rosto o mais lindo de seus sorrisos. Seus olhos brilha-vam de felicidade.

– Meus filhos, Elisa e Lucas! – começou o padre, um senhor idoso e magrinho. – Não pretendo fazer um longo discurso, mas dizer o essencial. Todos nós adorávamos ouvir ou ler contos de fadas quando crianças. E a maioria deles terminava com o casamento do príncipe e da prin-cesa e a clássica frase: “E foram felizes para sempre!” Mas nenhum deles dava uma receita ou fórmula mágica que ensinasse a ser feliz para sempre, muito menos des-crevia como era a vida feliz dos personagens. Eu gosto de imaginar que a vida feliz que eles viviam era conquista-da a cada dia. Todos os dias ao acordar, eles precisavam se lembrar de que um amava o outro, que a pessoa com quem escolheram dividir a vida era o que fazia a existên-cia ter sentido, ter um significado maior. Todos os dias eles precisavam perdoar. Todos os dias eles precisavam ter paciência. Todos os dias eles precisavam partilhar o que sentiam. Todos os dias! E se eles fossem capazes de fazer tudo isso, ao final de cada dia eles veriam que eram felizes. O segredo... A fórmula mágica... se resumia em uma única palavra: amar.

Ele fez uma pausa e continuou:– Com certeza, vocês já disseram várias vezes um ao

outro “Eu ti amo!”. Mas como podemos definir o Amor? Gosto muito da definição poética do apóstolo Paulo: “O amor é paciente, o amor é prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconve-niente, não procura seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas se

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regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo es-pera, tudo suporta.”

Lucas olhou para Elisa. Ele podia entender aquelas pa-lavras. Desde que conhecera Elisa, ele era mais feliz. O amor que sentia por ela o transformara. Ela o mudará para melhor... Seu mundo se tornara completo. Ele sentia que por mais que demonstrasse seu amor, sempre estaria em dívida com ela, por toda felicidade que ela lhe dava. Ele sentia a necessidade... o dever de fazer dela a mulher mais feliz do mundo. Jamais magoá-la. Jamais fazê-la chorar. Jamais permitir que ela sofresse por sua causa. Porque Eli-sa se tornara uma extensão de seu próprio ser. Tudo o que a ferisse, iria doer nele também: essa era a sua definição de amor.

Sua voz estava embargada e os olhos úmidos enquanto colocava a aliança nas mãos de Elisa ao som de uma or-questra que parecia ser o coro celeste, dada a harmonia das vozes. Elisa também estava emocionada. Palavras não eram necessárias, seus olhos expressavam o quanto ela o amava.

Após a cerimônia, os convidados foram conduzidos para o elegante salão de eventos da R’Angel. A decoração era idêntica à da Catedral, tornando o lugar acolhedor. Havia uma banda que tocava músicas ao vivo deixando o ambiente bastante aconchegante. As mesas foram muito bem servidas pela equipe do Buffet com um cardápio varia-do e suculento. Reinava um clima de alegria e harmonia, enquanto os convidados parabenizavam os noivos e suas famílias. Todos eram afetados pela onda de amor que ema-nava de Elisa e Lucas. A festa estendeu-se até altas ho-ras, embalados pela noite quente de dezembro. Tudo estava

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perfeito. Com certeza foi a festa do ano, inesquecível para os noivos e convidados. Mas o que mais importava era que agora Lucas e Elisa pertenciam oficialmente um ao outro, por toda eternidade.

Ainda de madrugada, Lucas e Elisa embarcaram num voo para São Paulo, de onde seguiriam com destino para sua lua de mel. Lucas havia descoberto que um dos so-nhos de Elisa era conhecer Nova Iorque, então não pen-sou duas vezes na hora de escolher a cidade para passar a lua de mel. Ele também achava que aquela era uma das cidades mais bonitas do mundo. Apesar de grande e agi-tada, ela tinha certas particularidades que encantariam qualquer ser humano.

Os sentimentos de Lucas por Elisa se intensificaram ainda mais, se é que isso era possível. Eles passaram vinte dias nos Estados Unidos, inclusive o natal e ano novo. A deslumbrante decoração natalina tornava tudo ainda mais mágico. Visitaram todos os pontos turísticos possíveis. Ti-raram várias fotos. A estátua da Liberdade, o Central Park, a ponte de Manhattan... tudo servia de cenário... Tudo era motivo de diversão. A vida era só sorriso... E para alegria de Elisa, a neve caiu em grande quantidade. Ela nunca vira neve na vida. Era encantador ver a alegria dela aprenden-do a esquiar, fazendo bonecos de neve ou simplesmente to-mando chocolate quente para não se esquecer dos primei-ros dias quando se apaixonaram.

Finalmente chegou o dia de voltar ao Brasil. Estavam prontos para iniciar uma vida nova em Cianorte. Cheios de planos e projetos para o futuro.

***

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Marcelo largou o diário� Estava tarde e ele precisava descansar� E a partir dali o diário trataria de elementos e pessoas que o cercavam� Precisava estar atento aos míni-mos detalhes� Aquelas páginas contariam como foi a vida do casal durante o ano em que conviveram juntos naquela casa, até o dia da separação� Pela forma como seus vizinhos disseram como aconteceu a discussão do casal, ele não ima-ginava o que leria� Só esperava encontrar algo que o ajudas-se a descobrir a verdade�

Já estava em seu quarto se preparando para deitar, quan-do lembrou-se de Beatriz� Ele sentiu a tentação de ligar para ver como ela estava� Mas já estava tarde, era melhor não incomodá-la� E o médico dissera que não era grave, disse a si mesmo, tentando tranquilizar-se� Ele nunca fora uma pessoa preocupada, então porque o estado de Bia o estava incomodando tanto� Seria por ainda sentir culpa? Tomou um copo de água e foi dormir� Porém rolava de um lado para outro sem conseguir pegar no sono� Não conseguia afastar as lembranças da manhã que passara ao lado de Bia e o que seu Afonso lhe dissera, bem como os pensamentos borbulhantes em relação ao que lera�

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caPítulo 12

leMbrançaS

Naquela noite, Marcelo teve o sonho mais estranho de sua vida� Ele estava em pé em frente ao portão de sua casa e Beatriz estava ao seu lado, vestindo um longo vestido verde que realçava a cor de seus olhos�

– Eles não vão demorar, Marcelo! – disse ela em uma voz suave�

Nesse momento uma bela limusine preta com vidros muito escuros estacionou em frente à casa� Lucas desceu muito elegante e manteve a porta aberta para que Elisa, belíssima em um vestido de noiva, pudesse descer� Ela se apoiou em seu braço�

– Vamos, meu amor! Os convidados estão esperando – disse Lucas�

Marcelo olhou para trás e viu que o jardim estava reple-to de pessoas� Algumas eram amigos seus que ele não via há muito tempo, outras ele reconhecia do que imaginara ao ler o diário de Lucas� E para seu espanto, seu Afonso estava vestido de batina atrás de um altar montado na varanda�

– Vamos começar o casamento! – disse ele, ajeitando seus óculos�

Então, tão rápido como só acontece nos sonhos, Lucas e Elisa haviam desaparecido� Marcelo olhava para os lados, mas não havia nem sinal deles� Porém ao seu lado, vestida de noiva, estava Beatriz�

– Bia, você aceita o Marcelo como o seu legítimo espo-so? – perguntou o “padre” Afonso�

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Mas antes que ela respondesse, ouviu-se um grito� Su-sana surgiu repentinamente, pronta para empurrar Beatriz escada abaixo�

– Nãoooooooooooooooooo! – gritou Marcelo, acordan-do assustado�

Olhou pela janela� O dia estava amanhecendo� Eram seis horas da manhã� O sonho havia sido muito real� O co-ração de Marcelo batia disparado� Decidiu levantar� Estava agitado demais para conseguir dormir novamente� Era me-lhor parar de ler aquele diário ou ficaria louco�

Após um banho, preparou o café e tomou-o calmamen-te, enquanto via o dia amanhecendo� Os primeiros raios de sol se derramavam pela manhã fria e os pássaros cantavam alegremente� Passou um longo tempo pensando sobre tudo o que lera no diário� Como estava difícil montar o quebra--cabeça daquele mistério e como a vida às vezes era com-plicada� Muitas vezes feríamos as pessoas e nem sabíamos o que estávamos fazendo�

Ele não gostava muito de lembrar-se de seu próprio passado� Mas naquela manhã seus pensamentos o leva-ram de volta a sua antiga família� Lembrou-se de pessoas que foram tão importantes para ele e que hoje estavam excluídas de seu mundo� Pessoas com as quais, há muito tempo, ele não se preocupava em saber como estavam, se sorriam, se choravam, se sentiam sua falta�� Se sequer estavam vivas�

Marcelo não lembrava muito de seu pai� Nunca foram muito ligados� As únicas lembranças que vinham à sua me-mória eram de que Gustavo era um homem de negócios, ocupado com viagens em busca de boas e lucrativas merca-dorias, gostava de ostentação e era muito preocupado com a aparência social� Ele imaginava que o sonho do pai todas as

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noites fosse com moedas, pois era o único assunto que ele tratava com o filho quando estavam juntos�

Até aos sete anos, como toda criança ele vira no pai o seu herói, admirava o homem ambicioso, bem vestido e de palavras convincentes� O sucesso de seu pai sempre este-ve ligado a essa personalidade forte, carismática e otimis-ta� Marcelo tinha certeza de que com as habilidades que tinha, seu pai seria capaz de persuadir alguém a comprar algo insignificante pensando que era o bem mais precioso do mundo�

Mas, o tempo passou e outra face, não tão atraente, de seu pai lhe foi revelada� Primeiro, a obsessão pela riqueza e em segundo, sempre deixava a família em último plano� Nunca tinha tempo para estar com eles, sempre eram via-gens de negócios ou trabalho até tarde� Ele facilmente podia contar nos dedos as vezes que o pai fizera uma refeição junto com a família� Natal, aniversário, somente os presen-tes compareciam�� Era inevitável que se abrisse um enorme abismo entre pai e filho�

Se a relação com Gustavo era assim, com a mãe, Lilian, não era diferente� Ela era uma réplica do pai no quesito apa-rência e ostentação� Só tinha tempo para salões de beleza, clubes da sociedade e a única obrigação que tinha para com o filho era deixá-lo na escola de caratê, natação, inglês ou algum outro curso�

Porém foi em um desses compromissos da tão cheia agenda infantil que Marcelo conheceu alguém que influen-ciou profundamente sua vida: Leonardo ou Léo, como ele chamava-o� Ele foi seu professor de espanhol� Era um ho-mem de sessenta anos, que falava perfeitamente a língua espanhola, pois morara durante vinte anos em Madri� Dono de uma sensibilidade rara, amava a literatura e a música e

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aos poucos envolveu Marcelo em seu mundo, e além do espanhol ensinou lhe o gosto pela leitura de bons livros, especialmente a poesia�

Talvez fosse a decepção de Marcelo com a figura pa-terna que o moveram para um ângulo oposto� Dos dez aos dezoito anos, não foram mais os cofrinhos de moeda e os sonhos de riqueza que o acompanharam, mas os livros e os ensinamentos do professor Leo� Seu pai estava tão envolto com os negócios e sua mãe com as reuniões de clube, que não perceberam o que o filho estava sonhando para o futuro�

Porém, a leitura não apagou o vazio que Marcelo trazia dentro de si� Tudo o que Marcelo queria era crescer o quan-to antes e ir para bem longe dali� Quando terminou o ensino médio, seu pai que gozava de uma boa situação financeira o enviou para estudar nos Estados Unidos� Tão obcecado em seu trabalho, nem perguntou no que o filho se matriculara� Não que Marcelo achasse ruim� Na verdade, o pai devia imaginar que o filho ainda sonhava fazer Economia na Har-vard� Se o pai realmente soubesse que o filho iria estudar literatura, seria difícil convencê-lo a pagar a faculdade�

Disso ele não tinha dúvidas� Por isso sempre evitava ir para casa nas férias e ter de mentir para o pai sobre bolsas de valores, ações e negócios lucrativos� Mas a verdade um dia apareceria� Quando concluiu a faculdade, seu pai o con-vidou para voltar ao Brasil e ajudá-lo na empresa� Não ha-via mais como enganar o pai� Mas como contar para ele que ao invés de um homem de negócios bem sucedido de Wall Street, ele era um empregado em uma editora em Nova Ior-que, além de tentar escrever algumas histórias com a inten-ção de se tornar um escritor algum dia?

É difícil comparar decepções: mas se há anos Marcelo descobrira que seu pai não era o homem que imaginava,

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quando Marcelo contou o que realmente estudara, a decep-ção de Gustavo estava estampada em sua face avermelhada pelo ódio� E sem dó, piedade ou qualquer remorso disse apenas para Marcelo nunca mais procurá-lo� Nunca mais aparecer em sua frente novamente�

Foi dessa maneira brusca que se romperam definitiva-mente as relações entre os dois� Marcelo não se lamentou nem um pouco por isso� Continuou morando em Nova Ior-que e trabalhando na editora com uma carreira promissora, enquanto publicava seus livros�

Passaram-se assim cinco anos em que Marcelo viveu completamente esquecido de que tinha uma família� Porém, algo começou a mudar em seu interior até transformar-se em uma torrente de emoções avassaladoras� Os dias de fes-ta, como o Natal e Ação de Graças, se tornaram verdadei-ros tormentos� Seus poucos amigos eram superficiais, para serem chamados realmente de amigos� Seus relacionamen-tos tornaram-se fúteis� Namoradas, a cada dois meses tinha uma� E por tudo isso ele passou a definir-se como “uma alma solitária”� Ele não suportava mais viver assim�

Toda essa inquietude o levou a um profundo vazio exis-tencial� Nada mais o motivava ou dava alegria� A bela cida-de de Nova Iorque parecia não ter mais encantos e a terra da liberdade tornou-se um cárcere para sua alma� A vida na metrópole tornou-se caótica e tudo que ele mais queria era fugir para um lugar calmo e tranquilo�

Foi então que decidiu mudar radicalmente sua vida: Por mais estranho que fosse, o Brasil ainda era sinônimo de tranquilidade� Lembrou-se com saudosismo das melhores épocas de sua infância quando passava as férias todos os anos na casa dos avós paternos, que moravam em Cianorte� E sem pensar duas vezes, vendeu tudo o que tinha, pediu

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demissão e semanas depois chegou ao Brasil� Trazia na ba-gagem poucos pertences, mas muitos sonhos e esperanças de ser feliz�

Duas semanas haviam se passado, desde que ele regres-sara ao Brasil� Ainda não estava totalmente equilibrado, mas podia dizer que pelo menos estava um pouco mais se-reno� As angústias pareciam ter desaparecido enquanto ele tentava dar um novo rumo a sua vida� Ele não se arrependia de ter voltado� Não podia dizer que estava feliz ainda� Mas, muitas coisas já estavam mudando�

Talvez fosse o mistério da casa que o envolvera desde que botara os pés ali, ou o ar acolhedor e tranquilo da ci-dade, ou ainda seus carismáticos vizinhos que haviam lhe feito tanto bem�� Ele riu consigo mesmo ao pensar em seu Afonso� Estava no caminho certo para a cura�

Esse pensamento o fez lembrar-se de Bia� Precisava sa-ber notícias dela�� Olhou no relógio de parede, eram sete e meia� Seu Afonso já devia estar acordado� Ainda era cedo, mas só precisava saber se ela estava bem�

A manhã estava fria, e um vento fresco balançava as fo-lhas das árvores� Tremendo um pouco, Marcelo cruzou a rua em direção à casa de Bia� Dentro de sua casa estava quente, não imaginava que lá fora estivesse tão frio� Mal chegou ao portão, seu Afonso já surgiu apoiado em sua bengala�

– Bom dia, Seu Marcelo! – disse com entusiasmo – Veio fazer um pouco de companhia a esse velho hoje?

– Bom dia, seu Afonso! – respondeu Marcelo polida-mente� – Na verdade, eu vim ver como a Bia está�

– Ah! Ela está ótima! Acordou e já estava saltitando pela casa em um pé só� Ofereci minha bengala, mas ela não quis aceitar�

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Seu Afonso conduziu Marcelo até a sala onde Bia estava sentada no sofá com a perna sobre uma cadeira�

– Bom dia, Bia! Como vai esse pé?– Bom dia, Marcelo! Está bom, mas me deixaram de

castigo� Eu disse que conseguia andar�– Esqueceu-se de dizer que conseguiu andar dois passos

e quase machucou o outro pé – disse dona Isabel, entrando na sala naquele momento� – Bom dia, seu Marcelo!

– Bom dia, dona Isabel!– O senhor aceita tomar um café?– Muito obrigado, mas acabei de tomar!– É bom que o senhor esteja aqui� Vê se aconselha a Bia

a ficar quietinha para sarar logo esse pé� – disse a avó com carinho, olhando para Bia�

– Acho que vai ser difícil! Ela é um pouco teimosa�Seu Afonso achou algo que fazer e arrastou dona Isabel

com ele� Isso era novidade�– Seus avós são muito engraçados – falou Marcelo

enquanto se sentava em um sofá de frente para Bia� Só então observou que ela estava com o livro que ele lhe dera nas mãos�

– Pode ficar feliz� – disse ela, vendo que ele olhava o livro� – Comecei a ler o livro e confesso que estou gostando da história�

– Então já pode me dizer o que acontece no primeiro capítulo?

– Estou começando a pensar que é você quem não leu e está esperando que eu lhe conte�

Marcelo sorriu�– É uma ideia interessante� Mas já que você está tão

empolgada com o livro, vou deixá-la ler tudo, e no final discutimos sobre ele�

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– Ok� Combinado� – disse ela, sorrindo em resposta� E após alguns instantes acrescentou� – Eu queria mesmo falar com você� Hoje seria dia de ir limpar a sua casa� Se quiser posso procurar alguém para ajudar-lhe, até que me recupere�

– Não tem problema! Acho que posso me virar até você se recuperar! Vou sobreviver! – disse ele com um sorriso�

– Espero que sim – ela sorriu de leve�Marcelo lembrou-se da cena em sua casa com Susana�– Você ficou muito brava com a Susana, aquele dia�– Eu conheço a Elisa! Ela jamais trairia o Lucas� In-

felizmente eu estava cuidando de uma tia desde o natal e não consegui falar com ela, para saber o que o Lucas disse� Quando cheguei, três meses depois, ela já havia partido�

– Então, por que a Susana culparia Elisa? – questionou Marcelo�

Ela pensou durante um momento, decidindo se falava ou não� Marcelo lembrou-se, que por mais que ela estivesse falando com ele, era uma jovem tímida e reservada� Tinha que ser sincero com ela�

– Bia, eu entendo se você não quiser me contar algo da Elisa, afinal ela é sua amiga� Mas eu preciso te dizer uma coisa� O motivo pelo qual comprei aquela casa, não foi só porque ela era bonita e eu gostei dela� A verdade é que as-sim que entrei naquela casa, me senti incomodado com o que vi lá� Posso ter agido por impulso, mas eu queria desco-brir o que realmente aconteceu, o porquê de Elisa e Lucas se separarem�

Bia o olhou confusa�– Devo dizer que isso é muito estranho� Por que você se

interessaria pela vida de pessoas que nem conhece?– Talvez eu não tenha a resposta nem para mim mes-

mo� Como te disse, minha primeira decisão foi por impulso�

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Uma foto que encontrei do casal e o modo como as coisas, os móveis foram deixados para trás, não faziam sentido� Eu queria desvendar o mistério� Parecia que tinha algo mal re-solvido, fora do lugar� O que busco é a verdade sobre Elisa e Lucas� Se eles foram vítimas de algum mal entendido eu quero ajudá-los�

Agora ela o olhou com admiração�– E conseguiu descobrir alguma coisa?– Como você é amiga da Elisa, e não está apenas atrás

de boatos, posso contar� Eu tive muita sorte� No dia em que me mudei para cá, enquanto guardava as minhas coisas na biblioteca, encontrei o diário do Lucas� Acho que ele esque-ceu na pressa para ir embora�

– O diário do Lucas?! – exclamou Bia surpresa� Em seus olhos parecia brilhar uma sombra de esperança�

– Estava caído atrás de algumas prateleiras� Eu sei que eu não devia ler algo tão íntimo de alguém, e o que é pior, alguém que não conheço� Mas, dadas as circunstâncias, eu vi como uma dádiva encontrá-lo� Então comecei a lê-lo�

– Eu faria o mesmo no seu lugar� – disse Bia pensativa� – Mas, ele esclarece por que foi embora?

– Ainda não cheguei a essa parte� O diário é muito gran-de! Mas estou perto de descobrir� A única coisa que sei é que ele realmente amava Elisa�

– Bem, se precisar de ajuda, pode contar comigo�– Com certeza, vou precisar! Mas, e você sabia de al-

guma coisa que poderia ter levado os dois a se separarem?– Sim�� eu sei de algumas coisas que Elisa havia co-

mentado comigo� A Susana e o Hugo eram amigos de in-fância do Lucas� Eles sempre visitavam o casal, jantavam juntos� Eu achava que ela era amiga da Elisa� Mas, depois

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percebi que ela era uma excelente atriz, disfarçava muito bem e vivia dando em cima do Lucas�

– E qual era a reação dele? – interrompeu Marcelo�– Fingia que ela nem existia� Eu alertei a Elisa� O Lucas

dizia para ela não se preocupar, que ele não queria nada com a Susana� Mas, depois de um tempo ele começou a fi-car estranho com a Elisa� Não a olhava do mesmo jeito que antes� Nem eu ou Elisa entendíamos o porquê�

– Acredito que o diário irá esclarecer� Eu parei de ler na parte que eles se mudaram para Cianorte� Então, em breve terminarei� – disse ele, rindo�

Bia também sorriu de leve�– Parece moleza!– Acho melhor ir para casa e começa a ler, então� Só vim

aqui para ver como você está�– Obrigada! – disse ela, corando levemente�– Comporte-se, nada de pular em uma perna só!– Ah�� vou tentar�� Promete que se descobrir algo você

vai me contar?– Prometo! Mesmo com um diário eu preciso de ajuda

para decifrar esse enigma! – ele se levantou� – Melhoras, Bia! Tchau!

– Obrigada, Marcelo! Tchau! E boa leitura!

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caPítulo 13

diaMante eM PedaçoS

Ao chegar em casa, Marcelo pegou o diário para ler� Folheou as páginas para ver se ainda faltava muito� Talvez fosse devido à correria e aos novos compromissos, mas Lu-cas não havia escrito muito durante aquele ano� Se Marcelo se esforçasse bastante, conseguiria terminar de ler ainda na-quele dia� Como não tinha aula no projeto, podia aproveitar a manhã e a tarde para ler�

***

Lucas e Elisa haviam se mudado para Cianorte, e es-tavam amando morar na linda casa branca. E a surpresa foi maior quando descobriram que seriam vizinhos de Su-sana e Hugo, os amigos de infância de Lucas. Durante os primeiros meses eles viveram uma verdadeira lua de mel. Estavam sempre fazendo trilhas aos finais de semana na fazenda. Ele já abrira seu conservatório musical e come-çava a ser um sucesso, graças à sua grande habilidade e paciência para ensinar. E claro, todas as noites ele tocava piano para Elisa.

Elisa encontrou um curso de artes em Maringá e ma-triculou-se para começar assim que o novo ano letivo ini-ciasse. Susana e Hugo tornaram-se grandes amigos dos re-cém-casados. Aos finais de semana o casal sempre jantava junto e Fábio vinha de Curitiba sempre que possível para

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rever o amigo, e mais tarde Bia se juntou a essa amizade. Também passavam alguns domingos com seu Lauro e Ana.

Como o conservatório estava indo muito bem, Lucas decidiu começar um projeto junto com Elisa para ajudar as crianças carentes da cidade. Aos poucos foram surgin-do voluntários e tudo foi se encaminhando. Não demorou muito e o Projeto Sol Nascente já tomou forma, dando seus primeiros passos.

Enfim, tudo parecia perfeito. Parecia que eles seriam “felizes para sempre”. Porém, seis meses depois, tudo co-meçou a mudar. Susana tentou seduzir Lucas novamente. Não importava quantas vezes ele dissesse que era casado, que amava Elisa, etc. e tal... As coisas chegaram a um pon-to que até Elisa percebeu e pediu a Lucas para irem em-bora, para longe de Susana. Ele tentara argumentar com Elisa, dizendo que a amava, que ela não precisava ter medo ou sentir-se insegura. E isso pareceu acalmá-la. E até Su-sana quando viu que não teria resultados, manteve-se mais distante.

Aparentemente a vida havia voltado ao normal, até o dia em que ele recebeu uma carta, sem remetente. Havia uma única frase escrita em letras impressas: “Lucas, sua esposa está te traindo!”

Ele simplesmente amassou o papel e jogou no lixo, dando gargalhadas. Quem quer fosse, que estivesse inven-tando esse tipo de história, não tinha coisa melhor para fazer. Elisa jamais iria traí-lo. Ele confiava nela com toda a sua vida.

Os meses foram passando e as mesmas cartas continua-vam a chegar. E ele sempre ignorando. Porém o conteúdo das cartas começou a mudar: de “Elisa não é fiel a você”;

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“Ela continua te traindo” para “Ela está saindo com o seu melhor amigo”; “Fábio e Elisa o estão enganando”.

Isso era impossível. Mas dentro dele começou a surgir uma pequena semente da desconfiança. Mesmo contra a sua vontade a mensagem começou a perturbá-lo. É verda-de que Fábio e Elisa se davam super bem, mas ele morava em Curitiba e os dois somente se viam em raros finais de semana. Eles nunca fariam isso com ele.

Um muro começou a levantar-se entre ele e Elisa. Não tinha coragem de mostrar-lhe as cartas. Observou Elisa e Fábio quando estavam juntos, e já não sabia o que pensar quando os via a sós ou conversando aos sussurros.

A situação ficou pior quando o avô de Elisa teve um infarto e ela precisou ir para Curitiba, para acompanhar o tratamento que ele estava recebendo. Devido aos seus compromissos, Lucas só pode ir para Curitiba no final de semana. Logo, Fábio e Cristina foram os suportes de Eli-sa, naqueles dias turbulentos. O que só tornava a angústia de Lucas pior. Por duas semanas, médicos e enfermeiros tentaram encontrar a cura para a doença de seu Antônio, mas foi em vão. Numa manhã de agosto, aquele que sempre amara e cuidara de Elisa deixou esse mundo.

Mesmo sendo um dia da semana, Lucas cancelou suas aulas e voou para Curitiba a fim de confortar sua espo-sa em um momento tão difícil e prestar suas homenagens àquele ser que ele próprio admirava. Mas quando lá che-gou, quase deixou o ciúme falar mais alto. Fábio já estava ali, abraçando Elisa e a consolando.

De nada adiantou Elisa voltar para casa e continuava demonstrando tamanho afeto. O ciúme era como um cân-cer a tomar-lhe as entranhas.

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Lucas teve o pior Natal de sua vida. Foi à Ceia com Elisa na casa de seus pais, mas o pensamento não parava. Na última carta que recebera tinha apenas uma frase, mas que o incomodara profundamente, deixando a sensação de vazio sob seus pés: “Vou provar que Elisa o trai”.

Elisa continuava a olhá-lo com os mesmos olhos cheios de amor, a ser carinhosa e cuidadosa... Como isso era pos-sível? E Fábio continuava a tratá-lo como sempre tratou. Conversava, brincava, igual na época em que dividiam o apartamento. E por conhecê-lo tão bem até chegou a per-guntar o que havia de errado. Então por que uma parte dele aceitava o que aquelas cartas diziam?

31 de dezembro de 2012 – Lucas escreveu um único pa-rágrafo em seu diário:

“Sou a pessoa mais infeliz do mundo. Estou atormen-tado. Meu coração está dilacerado pela dúvida. Será que minha esposa, aquela a quem eu mais amo, é capaz de me trair? E o que é pior, com o meu melhor amigo? São sete horas da manhã e estou muito angustiado. Não dormi. Sei que hoje talvez se confirme o que eu mais temo.”

***

A partir daí as páginas continuavam em branco� Marcelo sabia o porquê� Só havia uma explicação: a pessoa que en-viava as cartas anônimas provavelmente conseguiu provar o que dizia� E no mesmo dia Lucas fez as malas e deixou a casa, esquecendo o diário para trás�

Marcelo precisava contar para Bia� Olhou no relógio, eram nove da noite� Ele havia lido durante todo o dia com apenas um curto intervalo para o almoço e entrara noite adentro lendo� Será que ela já estaria dormindo? Só tinha

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um jeito de saber� Olhou pela janela que dava para a rua e viu com surpresa que Bia estava sentada na varanda, como no dia anterior� Desceu rapidamente, e se dirigiu à casa de seu Afonso�

Ela o acolheu com um sorriso ao vê-lo se aproximar e o convidou a entrar� Ainda tinha o livro nas mãos� Parecia já ter lido bastante� Mas havia algo de errado com ela� Seus olhos estavam vermelhos como se ela tivesse chorado bas-tante� O primeiro pensamento de Marcelo foi que o torno-zelo dela estava doendo�

– Boa noite! – disse Marcelo� – Desculpe incomodá-la a essa hora, mas eu precisava falar com você�

– Boa noite! Não tem problema� Pode falar�– Você está bem?Ela apenas balançou a cabeça afirmando� “Espero que não estejamos voltando a estaca zero�”

pensou Marcelo� Apesar de ela ter respondido que estava bem�� ela pare-

cia tudo, menos em seu estado “normal”� O que Marcelo ti-nha vindo dizer àquela hora já não era tão importante quan-to ouvir o que Bia tinha a dizer� Seu sexto sentido dizia-lhe que qualquer que fosse a dor que ela sentia não era física�

Ele apenas a olhou:– Bia, você sabe que pode contar comigo�– Desculpe�� é que eu acabei de ler o livro que você me

deu� Ele me fez pensar muito em minha vida�– Se soubesse que ler o livro te deixaria deprimida, não

teria te dado� Me desculpe�– Acho que me expressei errado – tornou ela – Ele foi

maravilhoso� Amei a história� E me fez questionar muitas coisas que aconteceram no meu passado, sobre quem eu era, quem eu queria ser e quem eu me tornei�

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Ela ficou quieta por alguns instantes, fechada em sua concha, como se estivesse lembrando-se de coisas doloro-sas� Finalmente ela rompeu o silêncio com uma frase que o deixou ainda mais perturbado:

– Alguma vez em sua vida, você já olhou para sua his-tória e desejou reescrevê-la de uma maneira diferente, se possível até voltar no tempo e consertar todos os seus erros?

Marcelo apenas concordou com a cabeça, encorajando--a continuar�

– Ou já se perguntou por que os seus sonhos não acon-teceram da maneira como você esperava e não te restava mais nada, sequer forças para prosseguir? Sei que não vivi muito, mas já aconteceram tantas coisas que me marcaram profundamente� Páginas da minha vida que eu faria questão de que fossem rasgadas� E nesses dias, muitas coisas vie-ram à tona� Coisas que achei que já tivesse esquecido�

Marcelo lembrou se do que seu Afonso havia lhe dito, sobre Beatriz ter sofrido bastante na vida� Mas o que po-deria haver de tão grave para atormentar uma criatura tão bela como aquela? Que espécie de sofrimento poderia ter acrisolado aquela alma?

Ela deu um profundo suspiro e continuou:– Desde que me entendo por gente, eu sempre sonhei

em viajar para terras distantes� Ouvia com encanto as pes-soas contarem sobre lugares e culturas diferentes e o meu desejo era desbravar esse mundo; Viajar bastante, apren-der novas línguas e conhecer muitas pessoas� Eu sempre fui extrovertida e fazia novas amizades com facilidade� Vivi minha adolescência como qualquer outra garota, com as fases alegres e tristes, de realizações e decepções, des-cobertas e mitos da vida adolescente� Quando eu terminei meu ensino médio, decidi que queria fazer um curso que

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possibilitasse estar em contato com pessoas e também via-jar muito�

Marcelo apenas a olhou tentando imaginá-la como ela se descrevia� O que ele via era exatamente o oposto� A Menina ostra que viva tímida e fechada� Bia pareceu perceber isso�

– Sei o que está pensando� Esse meu autorretrato não se parece nada com minha personalidade que você conheceu� É que alguns anos depois aconteceram coisas que mudaram completamente o rumo de minha vida� Como eu ia lhe di-zendo, eu queria escolher um curso que permitisse conhecer o mundo� Então decidi fazer comércio exterior� Dediquei--me com afinco nos meus estudos universitários, participei de projetos de pesquisas, fiz estágios em grandes empresas e consegui obter meu diploma�

Marcelo estava surpreso com o relato de Beatriz, porém nada disse� Deixou que ela prosseguisse�

– Eu estava muito feliz� Assim que terminei a faculdade já estava empregada em uma grande empresa multinacional� Minha carreira como executiva tinha tudo para deslanchar� E o mais importante, eu iria viajar muito� Apesar de ser tão jovem, a empresa pediu que eu me mudasse para a França, onde ficava a sede� Lá eu teria oportunidade de aprender mais, trocar experiências com pessoas que faziam o mesmo que eu, além de ser um ponto rápido de acesso a outros países da Europa� Parecia que finalmente eu ia chegar onde queria� Era dezembro e em fevereiro eu estaria viajando�

“Na realidade falar que eu estava feliz é pouco, eu es-tava embriagada de felicidade� Contava os dias para a via-gem e aproveitava os últimos dias de férias para se divertir com meus amigos e fazer os preparativos para a viagem� Mas foi em uma das noites dançantes com meus amigos, que conheci uma pessoa que mudou meu mundo e minha

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história de uma forma que eu não imaginava� Seu nome era Alan�”

“Assim como eu, ele era extrovertido e alegre� O que me encantou nele era o fato de já ter viajado por muitos países apesar de termos a mesma idade – vinte e dois anos� Nenhum dos meus relacionamentos afetivos anteriores da-vam certo porque quando eu falava que gostaria de viajar por muitos lugares, sempre havia atrito� Mas com o Alan parecia ser diferente� Era como se o universo estivesse conspirando para que todos os meus sonhos se realizassem naquele momento�”

Ela fez uma breve pausa para respirar profundamente, como se lembrar do passado retirasse suas forças�

– É inútil dizer que eu parecia uma adolescente com seu primeiro namorado, perdidamente apaixonada� Meu mundo passou a girar em torno de Alan� E apesar das pou-cas semanas que estávamos juntos, eu dizia a todos que não conseguia imaginar minha vida sem ele� Minha famí-lia o recebeu de braços abertos, pois eles viam o quanto eu estava feliz� E de fato ele me tratava como uma rainha� Mandava flores, ligava sempre e era muito afetuoso� Só o meu avô não o elogiava� Ele só observava e dizia que tinha algo de estranho com ele� Eu dizia que era coisa de sua cabeça, fruto da imaginação ou uma de suas últimas tentativas de me manter por perto, uma vez que meu avô nunca concordou com meus projetos de viagem�

“Faltava uma semana para minha partida, para come-çar a conhecer o mundo, quando por ironia do destino, o meu próprio mundo começou a desmoronar� Era sábado à tarde e eu havia combinado de encontrar Alan para um passeio� Cheguei um pouco antes da hora marcada� Eu bati à porta do quarto onde ele estava hospedado, mas ele

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estava tão entretido no telefone em uma conversa que não percebeu minha entrada� Fui pé ante pé até ele, pensan-do em surpreendê-lo assim que ele desligasse o telefone� Porém, após ouvir suas palavras fiquei estarrecida�”

“Você sabe que eu ti amo� Eu não poderia imaginar minha vida sem você� – ele ouviu mais algumas palavras da outra pessoa e continuou – Claro� Nós nos veremos em breve� Até a semana que vem�”

“Ele desligou e virou-se, se assustando com minha pre-sença� Eu estava meio que morta, parecia não ter nenhu-ma reação� Mas ele pareceu se recuperar rápido� Ele foi tão inocente e seus olhos eram tão límpidos e sinceros ao dizer que estava falando com sua mãe, que eu acreditei� Senti-me estúpida por ter imaginado que ele talvez pudesse, estar me traindo com outra pessoa� Engavetei qualquer suspeita que pudesse ter com relação a ele e viajamos para a França, onde eu continuaria meu trabalho�”

“Tudo era novo e diferente� Eu estava maravilhada� Alan continuava a ser meu príncipe encantado� Acontece-ram alguns fatos estranhos, como seus atrasos no traba-lho, suas viagens demoradas, mas parecia não ter nada de mais� Contudo, dois meses depois que estávamos moran-do juntos, ele começou a mudar de atitude� Passou a ser grosseiro, irritava-se com facilidade e parecia que apenas suportava a minha presença� Eu estava infeliz� Mas não queria admitir isso para mim mesma� Achava que com o tempo ele voltaria a ser a pessoa maravilhosa que eu havia conhecido� Mas descobri que ele não era a pessoa que eu imaginei, da pior forma possível� Após já ter vi-vido seis meses de sofrimento, ao voltar para casa uma tarde, recebi um telefonema de uma amiga que morava do outro lado da cidade, dizendo que vira Alan saindo

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de uma casa� Isso era impossível, pois segundo o que eu sabia, ele estava na Austrália em uma viagem de negó-cios� Na mesma hora, fui até o endereço mencionado e me apresentei como se tivesse assuntos profissionais a tratar com ele� A mulher que me recebeu tinha aparentemente a mesma idade que eu, mas já trazia uma linda criança no colo� Qual não foi meu choque ao descobrir que aquela mulher não era uma simples conhecida de Alan, mas sua verdadeira esposa� Reuni todas as forças que tinha para não desmoronar ali mesmo�”

Beatriz fez uma pausa, dando um profundo suspiro� Marcelo pode perceber o esforço que ela fez para continuar seu relato�

– Honestamente, eu não sei como consegui chegar em casa� Eu me sentia fraca e vazia� Eu queria chorar, mas nem para isso eu tinha forças� Era como se todo o meu mundo tivesse sido retirado� Como se tudo aquilo que fazia senti-do em minha vida tivesse deixado de existir� Eu abandonei meu trabalho e dias depois retornei para o Brasil� Deixei apenas uma carta para Alan, a qual ele nunca se deu ao tra-balho de responder� Todos os meus sonhos haviam evapo-rado e eu não acreditava mais na vida� Meu avô Afonso me acolheu de braços abertos e foi meu suporte nos meus dias mais sombrios� Faz dois anos que estou morando aqui com meu avô, mas de certa forma é como se aquela Beatriz nun-ca tivesse existido�

Ela fez silêncio por alguns instantes e então olhou para Marcelo�

– Desculpe-me se eu falei demais� Mas como disse, hoje pensei em muitas coisas, e precisava falar com alguém� Acredito que você deve ter mais em que pensar do que ficar ouvindo histórias de quem se decepcionou com a vida�

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Marcelo olhou a com ternura, entendendo o porque de ela ser tão calada e fechada� Sentiu compaixão por aquele so-frimento tão real e um desprezo profundo pelo ser que tivera coragem de magoá-la� Foi com sinceridade que ele falou�

– Fico grato por você ter partilhado sua história comigo, Bia� Não devemos carregar sozinhos os fardos que a vida nos coloca� Mas segundo alguns pensadores, são nas eras mais sombrias de nossas vidas que nos tornamos mais for-tes� Fique tranquila, vou guardar sua história em segredo�

– Obrigada, Marcelo� – respondeu Bia sinceramente agradecida, sorrindo sob as lágrimas�

– Mas você disse que ler o livro a ajudou a perceber algumas coisas��

– Sim�� pude perceber o quanto ainda estava presa ao passado; como abandonara os meus sonhos� E a história me ajudou a perceber que nunca é tarde para buscarmos nossos sonhos� Se uns não deram certo, devemos buscar novos�

Marcelo olhou para ela surpreso�– O que foi perguntou ela?– Nada – disse ele sorrindo – Só estou me perguntando

onde foi parar aquela menina que conheci há dois dias, que mal abria a boca�

– Eu também gostaria de saber� Mas, estou curiosa, o que mais chamou sua atenção no livro�

– Tenho que ser honesto� – disse Marcelo� – Se você olhar na capa o nome do autor é R� Azevedo� Sou eu� R é de Roberto que é meu nome do meio�

Bia estava surpresa demais para falar alguma coisa� Apenas o escutou�

– Quando escrevi esse livro, foi uma época difícil� Eu havia rompido com minha família� Então coloquei muito do que sentia, meus anseios e sonhos�

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Em poucas palavras Marcelo contou sua história e as desavenças que tinha com seus pais, enquanto Bia o ouvia com interesse�

– Esse livro nunca foi publicado� Se você percebeu, o acabamento dele ainda é bem grosseiro� Eu fiz apenas um exemplar, e imprimi um modelo, na língua portuguesa� Ja-mais tive a intenção de publicá-lo�

– Mas se é uma obra rara, porque você me deu? – per-guntou Bia surpresa�

– Porque eu achei que podia ser útil de alguma forma�– Você estava certo� Ajudou-me muito� Mas permita-me

fazer uma pergunta: Você não tem vontade de voltar a falar com seus pais?

– Tenho pensado muito nisso ultimamente� Principal-mente depois de ter conhecido famílias tão unidas, como a sua, e a do Lucas, que embora só conheço do que eu li� Mas, no fundo acho que tenho um pouco de receio de como eles me receberão� Afinal faz tanto tempo que não os vejo�

– Por falar em Lucas, imagino que você ia me falar algo à respeito deles, não era, antes de me encontrar aqui toda melodramática? – perguntou ela, sorrindo�

– É verdade, ia sim� – disse Marcelo, lembrando-se de como saiu apressado de casa só para lhe contar� – É que eu terminei de ler o diário� Descobri porque Lucas aban-donou Elisa�

– Sério? E o que você descobriu? – perguntou Beatriz cheia de curiosidade�

– Alguém escrevia cartas anônimas para Lucas, falando que Elisa o traía com Fábio�

Bia ouviu-o atenta� Ela simplesmente não conseguia acreditar no que Marcelo lhe dizia�

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– É impossível! A Elisa nunca iria trair o Lucas! – afir-mou com convicção� – Eu tenho certeza!

– Mas alguém conseguiu provar para o Lucas�– Com certeza as provas eram falsas – ela insistiu�– Mas não temos como saber� Não sabemos o que Lu-

cas viu�– Se ao menos eu soubesse onde Elisa está�� eu iria falar

com ela� – disse Bia tristemente�– Bem�� eu posso te passar o endereço da Elisa�� com

uma condição – disse Marcelo – que eu vá junto�– Você tem o endereço da Elisa? – perguntou Bia

incrédula�– A imobiliária da qual comprei a casa me passou� Ela

voltou para Curitiba�– Então o que estamos esperando? – perguntou Bia, ten-

tando se levantar� – Vamos até lá!– Estamos esperando seu pé sarar� Você não pode via-

jar assim�– É claro que eu posso! Suponho que vamos de carro e

não a pé!– Engraçado – falou Marcelo, fingindo sarcasmo – para

limpar minha casa não pode, mas para viajar está pronta!– Por favor? – pediu Bia, fitando seus profundos olhos

verdes em Marcelo�– Tudo bem – disse ele, cedendo finalmente� Era inútil

discutir com tanta determinação�

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caPítulo 14

eliSa

Marcelo não conseguiu convencer Bia a esperar até que estivesse recuperada� Seu Afonso e a família acharam estra-nha a viagem� Mas como sabiam que Bia era amiga de Eli-sa, aceitaram� A única parte que não entendiam era porque Marcelo precisava ir junto�

Saíram na quinta-feira, com o sol já alto, sem a menor ideia do que encontrariam quando chegassem a Curitiba� Embora tivesse um GPS, Marcelo dirigiu devagar� O cami-nho para o litoral era cheio de curvas e montanhas� Porém a paisagem era muito bonita� Pararam para almoçar no cami-nho� Finalmente, já eram quase seis horas quando chegaram ao endereço que a imobiliária passara�

Marcelo tinha a sensação de estar de volta ao diário de Lucas� Aquele com certeza era o bairro no qual Elisa mora-ra com o avô� Estacionaram em frente a uma casa de madei-ra, cercada por um muro torto e com um portão desbotado� Um garotinho estava tocando violão na varanda�

– Olá! – perguntou Bia – A Elisa está?O menino olhou desconfiado para Marcelo, provavel-

mente se perguntando o que responder� Uma mulher apa-receu na porta enxugando as mãos em um guardanapo, sal-vando-o de seu constrangimento�

– Olá! O que vocês desejam?– Oi! Sou Beatriz, amiga da Elisa� Estou procurando-a�

E este é o Marcelo� Nós somos de Cianorte�O rosto da mulher se iluminou:

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– Claro! Bia! A Elisa falou muito de você� Eu sou a Cristina! Entrem, por favor! A Elisa logo chegará�

Marcelo ajudou Bia a descer do carro e entrar na casinha simples� O interior era bem pobre� Tinha um sofá já bem gasto pelo tempo e uma pequena estante como suporte para a TV� Uma mesa pequena, com quatro cadeiras, ficava a um canto�

– Desculpe-me perguntar – disse Marcelo assim que to-dos tinham se acomodado no sofá� – mas Elisa está moran-do com você?

– Sim� Por ela teria alugado a casinha que morava com o avô� Mas eu a convenci a ficar aqui, afinal tinha um quar-tinho sobrando�

– Onde ela está? – perguntou Bia�– Ela voltou a trabalhar no restaurante, como garçonete�

Já está na hora dela chegar do trabalho� – disse Cristina, olhando o relógio�

Nesse momento o portão se abriu e Elisa entrou� Mar-celo tinha certeza que era ela� Era a mesma moça da foto� Mas havia algo de errado; assim que ela entrou e fitou seus olhos, ele soube o que era� Não havia brilho em seu olhar, agora marcado por olheiras escuras e profundas� Sua face não tinha a antiga alegria� Ela estava muito magra� Até seus longos cabelos pareciam sem vida, opacos�

Por um instante, uma sombra de luz tingiu seu rosto ao ver Bia� Mas foi muito rápido� Vagarosamente ela abraçou Bia�

– Bia! Que surpresa vê-la aqui!– Oi, Elisa! É muito bom ver você também! – as duas

tinham os olhos cheios de lágrimas�– Como você me encontrou?– Meu amigo Marcelo – apresentou Bia – descobriu seu

endereço�

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– Olá – Elisa cumprimentou-o apertando suas mãos� – Prazer em conhecê-lo�

– Olá! O prazer é meu! – disse Marcelo não acreditando que realmente estava diante de Elisa�

– Vocês se acidentaram no caminho? – perguntou Elisa, vendo o pé de Bia engessado�

– Ah, não! Já faz um tempinho� – Ela sorriu de leve olhando para Marcelo�

– Nossa! E você viajou nesse estado?– Eu precisava vir te ver, Elisa� Nós descobrimos algu-

mas coisas e queríamos falar com você�Bia olhou para Marcelo, incerta se podia partilhar o que

sabiam na frente de Victor� Cristina pareceu entender�– Victor, vamos deixá-los conversarem com tia Elisa a

sós� – disse Cristina já se retirando�Elisa parecia confusa� O que sua melhor amiga e um

estranho poderiam ter de tão importante para falar com ela? Marcelo e Bia se entreolharam� Ele começou�

– Há alguns dias eu mudei para Cianorte, e no sábado passado eu comprei a sua casa� – disse Marcelo, lembran-do-se da quantidade de fatos que haviam acontecido naque-les breves dias em que estivera ali� Parecia que já havia se passado meses�

– Ah! Foi você? – disse Elisa, com os olhos mais uma vez marejados de lágrimas�

– Eu vim aqui hoje com a Bia porque acreditamos que você está sendo vítima de uma grande injustiça� – conti-nuou ele�

Ela enxugou as lágrimas que agora escorriam em sua face, demonstrando o quanto aquela alma estava frágil�

– Eu não estou entendendo�

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– Elisa, eu encontrei o diário do Lucas na casa� Perdoe--me se isso a ofender, mas quero que saiba que foi com a melhor das intenções que o li� – disse Marcelo�

Ela estava paralisada� – Acredito que você saiba mais do que nós porque ele

a deixou� Porém nós acreditamos que as suposições que havia no diário eram falsas e nós queremos te ajudar� – completou Bia�

Elisa agora chorava copiosamente� Após alguns instan-tes ela finalmente conseguiu se acalmar�

– Eu vou mostrar algo a vocês� Só o Fábio e a Cris viram�Ela saiu da sala e após alguns minutos voltou com um

envelope pardo nas mãos�– Alguns meses antes de ir embora, o Lucas começou

a agir de maneira estranha, não era mais a mesma pessoa espontânea e alegre que eu conheci� Eu já havia comentado com o Fábio e com a Bia o que poderia estar acontecen-do� Pensei que ele estivesse cansado� Então, naquele dia ele estava muito agitado� O sol estava quase se pondo e eu arrumava as coisas para irmos para Maringá celebrar o ré-veillon com a família dele, quando ele foi para a biblioteca carregando esse envelope e se trancou lá dentro� – ela parou de falar por alguns instantes novamente, enquanto novas lágrimas lavavam seu rosto�

Bia foi até a cozinha e trouxe um copo com água� Eli-sa bebeu alguns goles tentando se acalmar e então voltou a falar�

– Eu levei um susto quando minutos depois eu o vi ar-rastar duas malas escada abaixo� Os olhos estavam verme-lhos�� o olhar gélido, de um jeito que eu nunca vira antes� Ele começou a gritar comigo, eu não entendia nada, parecia um pesadelo�

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“ – Eu não posso acreditar! Como você pôde fazer isso comigo, Elisa?”

“ – Fazer o quê?” – eu perguntei, pois sequer imaginava do que ele estava falando�

“ – Você é muito cínica, não é?” – ele continuou em uma voz fria – “Mas isso acaba hoje! A mim você não engana mais! Eu já sei de tudo! Pode ficar com a casa, vender, fazer o que quiser� Não quero mais viver nesse lugar� Não quero mais viver ao seu lado, Elisa� Eu não quero te ver nunca mais! Ah, mais uma coisa�� é melhor fazer outra faculdade: acho que você se sairia muito bem fazendo artes cênicas”� Então ele me jogou esse envelope, enquanto saía�

Elisa abriu o envelope e de dentro tirou quinze fotos� Todas dela com Fábio se beijando ou abraçados� Com rou-pas diferentes, poses diferentes� Todas no jardim da casa de Elisa�

– Eu disse que era mentira� Que nunca o traí� Mas Lucas não me escutou� Ele já estava com a porta aberta� Apenas deu um sorriso irônico e saiu� Eu fui atrás, pedindo, implo-rando para que ficasse� Mas ele entrou no carro e se foi�

Ela soluçou durante alguns minutos� Marcelo e Bia aguardavam em silêncio� Bia a abraçava, confortando-a�

– Me desculpe! É que ainda é triste lembrar�– Nós entendemos – falou Bia – E estamos aqui para

ajudar�– Mas não há nada que se possa fazer – disse ela resignada�– Alguém enviou essas fotos� Alguém as montou� Nós

precisamos descobrir quem foi e por que� – disse Bia�– Eu tenho um ótimo palpite – disse Marcelo que obser-

vava as fotos atentamente� – As fotos são somente de um lado da casa, o jardim do lado Esquerdo� Vocês acham que a Susana ou�� o Hugo poderiam ter montado essas fotos?

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– um flash se acendeu enquanto Marcelo lembrava que Hugo era um Fotógrafo profissional� Não existia ninguém melhor que ele para montar algo assim� Mas tinha um pro-blema: porque um cara bem sucedido iria querer destruir a vida de seu melhor amigo?

Elisa e Bia se entreolharam� Marcelo continuou:– Se você me permitir, Elisa, gostaria de examinar as

fotos e continuar investigando�Ela o olhou tristemente�– Eu agradeço muito, Marcelo� Mas já faz seis meses

que ele me deixou, e nunca fez contato� Quando mostrei as fotos para o Fábio, ele procurou o Lucas para dizer o quan-to isso era absurdo� Rastreou por todos os lugares aonde ele provavelmente iria� Nem mesmo seus pais sabiam do paradeiro dele� Acredito que ele deve ter recomeçado a vida dele�� talvez esteja com outra pessoa� E eu só desejo que ele seja feliz�

– Então vamos fazer um acordo? – propôs Marcelo – Eu vou descobrir a verdade: Quem separou vocês e por que� Você tem o direito de saber�

– Posso te fazer uma pergunta? – perguntou Elisa– Claro!– Por que está fazendo isso por mim? Você nem me

conhece��– Vou ser sincero: quando comecei a desvendar esse

mistério, foi porque fiquei intrigado com a história de vo-cês�� Parecia haver algo de errado que não se encaixava no que eu sentia ao estar naquela casa� E ao encontrar o diário e começar a lê-lo, eu tive a convicção de que a história de vocês não acaba assim� Não posso ficar de braços cruzados quando é possível fazer algo, mesmo que eu não a conheça�

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Marcelo estava feliz por encontrar Elisa� Sentia-se bem por ajudar� Deixou-a com Bia e Cris, conversando, e foi para a varanda onde o garotinho continuava tocando seu violão�

– Você toca muito bem – elogiou�– Obrigado! Aprendi com o meu tio Lucas� Meu violão

também é bem bonito, você não acha?– É sim! É muito bonito!– Foi o tio Lucas que me deu�– Você continua estudando?– Continuo� É o tio Fábio quem dá aulas agora� Ele é

muito legal também, só que eu sinto falta do tio Lucas�Marcelo ficou em silêncio durante alguns minutos sem

saber o que dizer�– Sabe, todas as noites eu peço ao papai do céu para

trazê-lo de volta� Eu não gosto de ver a tia Elisa triste! – continuou o garotinho�

Marcelo se lembrou do diário de Lucas, das conversas que ele tinha ao final das aulas com Victor:

– Ele vai trazer, Victor! Ele nunca deixa um pedido sem atender�

– É, eu sei! – disse ele, sorrindo, voltando a tocar seu instrumento�

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caPítulo 15

deSvendando o MiStério

Cris e Elisa fizeram questão de hospedar Marcelo e Bia, apesar das condições limitadas de sua casa� Fizeram um jantar simples, mas delicioso, e depois ficaram ouvindo Victor tocar seu violão� Ele realmente tinha muito talento� Na manhã seguinte, bem cedo, Bia e Marcelo agradeceram a acolhida e partiram� Assim que pegaram a rodovia, Mar-celo partilhou suas dúvidas com Bia�

– Conheci o Hugo esses dias, e eu posso dizer que é bem difícil ele ter feito aquelas fotos� Não digo profissio-nalmente, mas é que ele me pareceu ser uma pessoa muito boa� Então, temos apenas um suspeito, ou melhor, suspeita� Mas a pergunta que fica é: Como Susana fez aquelas fotos?

– Ora, Marcelo, essa é a parte mais fácil de deduzir – disse Bia� – Provavelmente ela tirou fotos do Lucas e da Elisa no jardim e fotos do Fábio quando estava lá, sozinho, e depois fez a montagem�

– Essa parte eu entendo� Mas e a parte de montar? Ela precisaria de um profissional, para a montagem ficar perfei-ta� Hugo jamais a ajudaria�

Bia o olhou como se ele tivesse deixado passar algo óbvio�

– Mas ela é profissional� Ela e o marido são donos de um estúdio fotográfico� Para dizer a verdade, ela é tão ta-lentosa quanto ele�

Marcelo ficou de boca aberta�

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– Então só o que precisamos fazer é provar que ela mon-tou as fotos? – ele concluiu�

– Só?! Então espero que você tenha um bom plano� Caso contrário, estaremos muito longe de provar a verdade! – falou Bia�

– O que você acha de fazermos uma visitinha a Susana?– Eu penso que se formos diretos, ela se retraíra e jamais

saberemos a verdade�– Entendo! – disse Marcelo, lembrando-se da conversa

que teve com o casal� – Você está sugerindo que montemos uma arapuca? – disse ele, rindo�

– Hum�� Mais ou menos! Se Susana fez isso era porque não queria ver a Elisa e o Lucas juntos� Já sei! Poderíamos fazer uma encenação de que você está indo embora porque Lucas e Elisa estão voltando�

– E esperaríamos ela morder a isca! Perfeito, Bia! Que ideia sensacional! – e acrescentou brincando – Não sabia que você era esse tipo de mulher perigosa, dissimulada, ca-paz de contar mentiras�

– Não estou inventando nada� – ela disse, sorrindo� – Lucas e Elisa vão voltar� Só estou antecipando a notícia�

Assim que chegaram a Cianorte eles já colocaram o pla-no em ação� Como conheciam a vizinhança, já imaginavam que todos sabiam para onde eles tinham ido e que haviam ido encontrar-se com Elisa� Marcelo deixou Bia na casa de seus avós que a foram receber felizes, perguntando como foram de viagem�

– Foi maravilhoso! Encontramos Elisa e ela está muito bem� Acreditamos que na próxima semana ela já estará aqui� Ela e o Lucas estão voltando� – comentou Bia sorridente, dando o máximo de veracidade na entonação de sua voz;

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– Que boa notícia! Preciso avisar todo mundo! – excla-mou seu Afonso, saindo mancando pela rua, apoiado em sua bengala, avisando os vizinhos que já estavam nos por-tões vendo o que significava todo aquele falatório alto� – Minha gente, a Elisa e o Lucas estão voltando! – dizia ele enquanto se afastava�

– Mas, minha filha – perguntou dona Isabel – entrando em detalhes, vocês sabem o que aconteceu?

– Minha avó, é coisa de casal� Parece que tudo não pas-sou de um mal entendido� – respondeu Bia sorrindo�

– É melhor eu ir para casa e começar a arrumar minhas malas� Preciso deixar a casa o mais depressa possível� – fa-lou Marcelo� – Com licença�

Enquanto abria o portão para entrar na casa, viu que Su-sana estava na janela observando atenta a agitação na vizi-nhança� A isca estava lançada�

Tudo tinha que parecer real para que de fato desse certo� Marcelo subiu ao seu quarto, e começou a fazer as malas� Jun-tou suas roupas e objetos pessoais� Foi até a biblioteca e se-parou novamente seus livros que havia guardado ali a poucos dias� Demorou menos de uma hora para arrumar tudo� Já esta-va descendo a escada com duas malas pesadas quando o inter-fone tocou� Mas, ele já esperava por isso e estava preparado�

Porém, quando foi abrir o portão teve uma surpresa� Ao invés de Susana, viu-se face a face com o marido dela: Hugo� Estava apenas de camisa social e calça, mas ainda assim sua figura era bem imponente�

– Boa tarde, Marcelo! Tudo bem?– Boa tarde, Hugo! Tudo ótimo!– Vejo que está de partida! Nem tivemos a oportunida-

de de conversarmos mais� – falou Hugo com uma nota de ansiedade na voz�

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– Então, surgiu um imprevisto e preciso partir� – Dis-se Marcelo, lembrando-se do papel que precisava repre-sentar� – Preciso desocupar a casa� Elisa e Lucas irão voltar em breve�

Ele olhou para Marcelo como se estivesse ouvindo algo impossível� Como: “Vi elefantes criando asas”� Seu olhar perscrutador estava fixo nos olhos de Marcelo�

– Mas ele perdoou Elisa? – Uma lâmpada se acendeu na mente de Marcelo� Seria esse homem cúmplice de Susana? Preferiu se fazer de mal entendido�

– Perdoou o quê? Não havia nada para perdoar� – res-pondeu Marcelo com inocência�

– Mas Elisa traiu Lucas, com Fábio, o melhor amigo dele� – disse Hugo, elevando a voz� Atraindo as pessoas que passavam na rua e os vizinhos, inclusive seu Afonso que já voltara de sua “ronda informativa”� Os dois ainda conversavam no portão� Mas Hugo, de costas para a rua, nem parecia perceber�

– Ah! – disse Marcelo – Claro! Você e Lucas eram ami-gos� Ele deve ter te mostrado aquelas fotos de Elisa junto com Fábio�

– Sim! – disse Hugo com a respiração tensa, como se fizesse esforço para manter o controle�

– As fotos não eram verdadeiras, Hugo! Você acredi-ta que quiseram enganá-lo com montagens de quinta cate-goria? Coisa de amador! – disse Marcelo com um grande sorriso�

A expressão de Hugo foi chocante� A palavra amador foi demais para os seus ouvidos� Sua face estava avermelhada, os punhos cerrados, seu corpo tremia�

– Aquilo não era montagem de quinta categoria�Marcelo jogou mais lenha na fogueira�

172

– Era sim, Hugo! Até uma criança de oito anos, que do-mine um computador, é capaz de fazer igualzinho!

Hugo estava visivelmente transtornado, suas mãos tre-miam, a face agora já atingindo um tom de roxo�

– O meu trabalho não é de amador! Eu sou um profis-sional! – gritou ele, segurando Marcelo pelo colarinho�

– Então�� você está�� admitindo�� que foi você�� quem montou as fotos? – perguntou Marcelo, dando o golpe final�

– Sim, fui eu! E não me arrependo� Faria tudo de novo! – É melhor tirar as mãos do meu amigo – disse seu

Afonso se aproximando com a bengala� A razão pareceu voltar ao semblante de Hugo� Lenta-

mente ele tirou as mãos de Marcelo� Seus ombros ficaram cabisbaixos enquanto percebia as pessoas à sua volta� Pes-soas que havia terminado de ouvir sua confissão�

– Por que Hugo? Lucas era seu amigo! Por que destruir a vida dele? – perguntou Marcelo�

Talvez fosse por que a verdade já fora revelada, talvez não, mas Hugo simplesmente deixou o resto das máscaras caírem�

– Por que eu tinha inveja dele� Ele tinha uma esposa que o amava de verdade, tinha uma família que se importava com ele�� era feliz de um jeito que eu não era� Como se não bastasse tudo isso, eu percebi que a minha mulher gostava dele também� Eu sabia que ele não dava a mínima para ela� Mas eu o culpei pelo que eu não tinha� Eu queria vê-lo so-frer de algum modo� Eu confesso que eu senti uma alegria imensa quando o vi sair dessa casa abandonando Elisa� Pa-recia-me que naquele momento a vida estava sendo justa�

Marcelo via o erro� Mas algo do que ele disse atingiu seu coração� Ele entendia um pouco desse sentimento do que é querer ter algo e não poder� Quantas vezes durante sua adolescência ele vira famílias perfeitas e desejara poder ter

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uma igual� Sim, ele tinha inveja de seus amigos que tinham famílias lindas, unidas� Mas havia uma grande diferença entre sentir inveja e não ser capaz de dominá-la, permitindo que esse sentimento destruísse a si próprio e tudo ao seu redor� E esse limite Hugo ultrapassara�

As pessoas estavam perplexas� Ninguém parecia sequer respirar� O que era espantoso�

– Não foi a nenhum de nós que você magoou – falou Marcelo antes que eles recuperassem a fala, o que poderia levar a sérias consequências, até mesmo agressão física� – Só duas pessoas podem te dar uma sentença justa e elas não estão presentes� Nenhum de nós tem o direito de te julgar, mas gostaria que assim que Lucas voltasse, caso você esteja arrependido, você fizesse um pedido formal de desculpas a ele e a Elisa�

– Eles jamais me perdoarão� O que eu fiz não tem perdão�

– Você pode não saber, mas você sempre foi um dos amigos mais importantes para o Lucas�

– Por que você acha isso?– Por que no diário dele, ele sempre falou de você com

muita afeição� O olhar de Hugo estava desolado� Parecia que ele se

dava conta de todos os seus erros�– Não é que você não tinha nada, Hugo – disse Marcelo�

– A verdade é que você nunca valorizou as coisas que você tinha� E o Lucas, seu amigo, foi uma delas�

Com passos lentos, Hugo se arrastou por entre as pes-soas até sua casa� Ninguém teve coragem de dizer uma palavra, tão grande era o choque� Marcelo o observou de-sejando ardentemente que aquele homem mudasse sua ma-neira de ver a vida� De nada adiantava ser tão bem sucedido

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em seus negócios, se fracassasse em entender a si mesmo, corrigir seus defeitos e ser feliz com o que tinha� A ambição e a inveja o tinham destruído�

Pegou então o gravador que esteve em seu bolso e des-ligou� Ali estava a prova que precisava para convencer Lu-cas� Mas havia muito mais: Fora um momento de intros-pecção para a sua própria vida� No momento em que pode perceber traços de sua própria personalidade através dos olhos de Hugo, ele chegou à conclusão de que algumas coisas em sua vida precisavam mudar, e logo�� Antes que fosse tarde demais�

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caPítulo 16

lucaS

Conseguir a confissão de Hugo foi a coisa mais impor-tante que Marcelo e Bia fizeram� Mas agora precisavam localizar Lucas� Naquela mesma noite, os dois ficaram até tarde fazendo pesquisas na internet, procurando por algu-ma pista que os levasse até Lucas� Mas por mais que Bia e Marcelo procurassem, não conseguiram localizá-lo� Parecia que ele definitivamente havia desaparecido do planeta� Não havia nenhum contato nas redes sociais ou sites de músicos, as únicas informações que existiam datavam apenas até de-zembro do ano passado� Restava apenas uma esperança – dona Joana tinha o endereço dos pais de Lucas� Talvez eles tivessem alguma notícia do filho�

Para surpresa geral, no dia seguinte, a casa de Hugo e Susana estava desocupada� Provavelmente eles partiram de madrugada e apenas o caminhão de uma transportadora foi visto pela manhã com alguns homens que rapidamente carregaram a mudança� Apesar de seu Afonso tentar des-cobrir com sua astúcia para onde o casal se mudará, suas habilidades não foram suficientes para descobrir o novo endereço dos vizinhos� Soube apenas que a casa seria co-locada à venda�

Eram umas nove horas da manhã quando Marcelo e Bia foram para Maringá� O trânsito não estava intenso e o dia en-solarado facilitou a viagem, que durou exatamente uma hora�

Não foi difícil encontrar a casa da família Rangel� So-mente Ana estava em casa e os acolheu muito bem, assim

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que reconheceu Bia� Conduziu-os até a luxuosa sala de estar e convidou-os a se sentar� O ambiente era formidável: além da mobília luxuosa, havia também belos quadros adornan-do as paredes, tapetes persas pelo chão e vasos de cristal com as mais belas flores naturais�

– A que devo essa visita, Bia? – começou Ana com a voz segura� – Não me parece uma visita apenas de cortesia�

– Nós precisamos encontrar o Lucas� Sabemos que to-dos já procuraram em vários lugares e ninguém foi capaz de achá-lo� Viemos ver se a senhora sabe de alguma coisa que talvez ajude a encontrá-lo� – falou Bia� – É de extrema importância�

Ana apenas olhou para eles� Parecia presa em algum di-lema interno�

– Por favor! – pediu Bia� – Nós queremos ajudá-lo�De repente, Ana começou a chorar� O rosto dilacerado

pela dor revelava que o sorriso que antes ela mostrara era apenas uma máscara, que não podia mais suportar�

– Meu filho está morrendo! – disse ela, entrecortando soluços�

Marcelo e Bia se entreolharam chocados� – Lucas está doente? – perguntou Marcelo, tentando en-

tender o que ouvirá�– Eu não sei mais o que fazer com o meu filho� – Mas a senhora sabe onde ele está? – perguntou Bia�– Nós sempre soubemos onde ele esteve durante todos

esses meses�– Mas porque não contaram a Elisa quando ela veio pro-

curar por ele? – tornou Bia, a voz baixa, mas com um tom de revolta�

– Lucas havia nos contado que estava indo embora por-que não queria mais viver com a Elisa� Precisava de um

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tempo� Nós achamos que tinha alguma coisa errada, então ligamos para o Hugo que nos contou o que havia ocorrido: Elisa estava traindo Lucas, com Fábio� Então quando ela apareceu aqui com Fábio pedindo o endereço, nós preferi-mos dizer que não tínhamos mais notícias do Lucas� Não queríamos vê-lo sofrendo ainda mais�

– Eu não acredito que o Hugo teve coragem de fazer isso – Bia interrompeu com as mãos trêmulas de raiva�

– Pensando bem – disse Marcelo – Isso não me sur-preende! Depois do que ele fez, só estava garantindo o su-cesso de seu plano�

Ana olhou para eles confusa, obviamente não entenden-do a reação de Bia e Marcelo�

– Ana, eu quero que a senhora escute uma gravação que fizemos� Seu filho foi vítima de uma grande injustiça�

Bia retirou o gravador que trazia em sua bolsa e apertou o play� A mãe de Lucas ouviu chocada a confissão de Hugo� E à medida que as palavras faziam sentido, as lágrimas es-corriam por seu rosto�

– Elisa é inocente?!�� Eu não posso acreditar que a jul-gamos tão injustamente�

– Mas antes a senhora dizia que seu filho está morren-do�� O que está acontecendo com ele? Onde ele está? – per-guntou Marcelo�

– Desde janeiro, ele se trancou no quarto que era dele� Desde criança, ele sempre foi assim: quando algo o abor-recia, quando queria fugir do mundo, o quarto era seu lu-gar preferido� Nós achamos que era só uma fase e que logo ele se recuperaria e reconstruiria sua vida, mas a cada dia que passa ele fica pior� Não fala com ninguém� Raramente come� Ele se isolou do mundo� Venham comigo! Quando vocês o virem, entenderão o que eu estou falando�

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Ela os levou por uma longa escada, e após por um cor-redor espaçoso e bem decorado� Parou no final junto a uma porta e bateu de leve�

– Lucas, meu filho�� Estou entrando�Ela girou a maçaneta, abrindo devagar e empurran-

do cuidadosamente a porta� Conduziu Marcelo e Bia, silenciosamente�

As cortinas estavam fechadas pela metade então havia pouca luz no quarto� Os dois ficaram chocados assim que vislumbraram a silhueta de Lucas na penumbra do quar-to� Aquele homem, cabeludo, barbudo, magrelo, com ossos salientes, olhos fundos como uma caveira, não podia ser Lucas! Aliás, era difícil até dizer que era humano! Devia ser um engano� Marcelo esperava que Ana dissesse que haviam entrado na porta errada, que ali estava apenas um mendigo que eles acolheram� Mas, não�� Aquele ser era Lucas!

Ele estava sentado em um canto com a cabeça sobre os joelhos, desligado de tudo, mergulhado apenas em seus sen-timentos, em suas próprias emoções� Sua dor era um livro aberto� Ninguém precisava perguntar nada� Seu sofrimento, o que ele sentia, se traduzia em sua aparência e no quarto ao seu redor� Marcelo não precisava de um diário para absor-ver o que aquele silêncio dizia:

“Para Lucas o mundo acabara no dia 31 de dezembro� O calendário deixou de ter um significado para ele� Tanto fazia se era dia ou noite� Tudo que queria era esquecer as imagens que tinha em sua mente da mulher amada com o amigo� Mas era em vão� Sabia que tinha de reagir, lutar pela vida� Mas não havia nada que o alcançasse naquele abismo em que caíra� Devia haver algo que ainda fizesse a vida valer a pena�� algo pelo qual valesse a pena sair daquele quarto sombrio no qual se trancara�

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Mas o golpe que a vida dera em Lucas fora profundo� Elisa era importante demais para ele e perdê-la tirou toda a sua estrutura� A verdade é que não faltava somente motiva-ção para voltar a viver; ele não queria voltar a viver� Porque por mais que doesse saber-se traído por ela, a verdade é que ainda a amava e não podia imaginar seu mundo sem ela�

A sensibilidade de sua personalidade permitira-lhe amar aquela mulher de uma maneira única� Ela era tudo para ele� Uma das coisas que mais gostava de fazer era to-car seu piano, mas agora tudo isso parecia insignificante� Tirando Elisa que dera todo um novo sentido à sua mu-sicalidade, desaparecia o músico� Dentro dele havia so-mente notas desafinadas que não mais formavam acordes� O que restava então para apreciar na vida? A natureza? Não� Até mesmo as trilhas haviam perdido seu encanto e olhar as belas paisagens só o faria lembrar Elisa, pen-sar em como ela as pintaria� Restava então a família, mas quando olhava nos rostos de seus pais e de seu irmão via dor e desespero por verem seu sofrimento� A piedade deles era pior que tudo�

O que mais doía realmente não era só ter perdido Elisa, mas a forma como a vida a tirara� Se ela tivesse morrido, Lucas se revoltaria nos primeiros dias, choraria, mas um dia se recuperaria, afinal um dia todos vamos morrer� Ele seria capaz de continuar a vida, dar-lhe um novo significado� Se um dia ela dissesse honestamente que não o amava mais, que o que sentia por ele mudara, ele também entenderia, afinal sentimentos podem mudar� Mas do jeito que acabara era inaceitável�

Ela mentira� Ela o enganara e ainda fingira que o ama-va� Era isso que o desconcertava� Era isso que deixava seu mundo descarrilhado� Como ela era capaz de dizer que o

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amava, de olhar em seus olhos demonstrando tanto afeto, sendo que seus sentimentos não eram mais verdadeiros?”

Por vários minutos Marcelo e Bia apenas olharam Lucas absorvendo sua dor� Ele sequer percebeu a presença deles no quarto� Bia se aproximou dele lentamente, ajoelhando--se ao seu lado� Lucas finalmente a viu� Fixou nela aquele olhar vago, semelhante a um zumbi e após alguns segundos a reconheceu:

– Bia! – falou ele em uma voz igualmente sem vida – O que você faz aqui?

Beatriz tinha os olhos cheios de lágrimas� Aproximou--se dele o abraçando� Era como abraçar um poste, Lucas não teve reação alguma!

– Lucas nós sabemos de tudo e estamos aqui para aju-dá-lo� – Bia falou enquanto o soltava� O olhar dele era frio e vago�

– Não quero ajuda ou piedade de ninguém! É melhor irem embora! Mamãe, por que os trouxe aqui?

– Filho, eles querem te ajudar�Bia ainda estava ajoelhada ao lado dele:– Por favor, só nos escute� Prometo que depois saire-

mos, e se você quiser, não voltaremos mais�Marcelo percebeu que não podia explicar a história cal-

mamente ou seriam expulsos de lá antes que conseguissem provar alguma coisa� Era melhor ser direto�

– Lucas, nós temos provas de que as fotos de Fábio e Elisa são falsas�

Ele se encolheu como se levasse um choque ao ouvir o nome de Elisa� Os olhos demonstrando ainda mais dor, se é que isso era possível�

– Eu preciso que você escute essa gravação, está bem? – disse Marcelo se aproximando devagar com o

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gravador� – É a confissão da pessoa que fez uma monta-gem com as fotos�

No começo, Lucas parecia confuso� Mas à medida que escutava, a compreensão atingiu seu ser, lágrimas silencio-sas começaram a escorrer por seu rosto� E quando chegou ao final já havia se transformado em uma torrente� Ele cho-rava desesperadamente, quase se sufocando com os soluços que sacudiam aquele corpo magro�

Eram lágrimas que vinham do fundo da alma� Não eram lágrimas de alívio por descobrir que sua mulher nunca o traíra� Eram de culpa, por ter dado ouvido àquelas mentiras e ter se voltado contra o ser que era o mais importante de sua vida, uma parte de si mesmo�

Bia o abraçou novamente, tentando consolar aquele homem que mais parecia uma criança� Porém, parecia não haver nada que estancasse aquele rio de lágrimas� O único meio de esgotar a represa era deixá-lo verter tudo, até a última lágrima�

Por exatamente meia hora, Lucas chorou como uma criança� Bia continuou abraçando-o, tentando confortá-lo�

– Como eu pude ser tão duro com Elisa? – conseguiu dizer finalmente entre soluços�

– Você não fez por mal – disse Bia – Você só agiu assim porque alguém quis separá-los�

– Mas eu devia ter confirmado se era verdade� Não con-dená-la� Eu sequer dei lhe a chance de dizer algo�

– No seu lugar eu teria feito o mesmo� – falou Marcelo – Mas, o que importa agora é consertar o que está errado: Recomeçar�

– Ela jamais vai me perdoar!– Você foi tão vítima quanto ela� Ela vai te perdoar, Lu-

cas, porque ela te ama!

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– E nós estamos aqui para ajudá-lo� – disse Bia�Lucas olhou para eles agradecido, então suas sobrance-

lhas se uniram em dúvida:– É verdade, vocês me ajudaram tanto� E eu nem sei seu

nome� – disse ele, fitando Marcelo�– Eu me chamo Marcelo� Mas a história é bem longa�

Que tal sair desse quarto escuro, se alimentar um pouco para depois conversarmos? – falou Marcelo, apertando sua mão num cumprimento�

– É claro – disse Lucas, conseguindo dar um leve sorriso�Ana fez questão de que Bia e Marcelo almoçassem com

eles� Ela parecia não se conter de alegria ao ver o filho ali-mentado, tomado banho, com barba feita, com uma roupa limpa�� Lauro e Luciano, que chegaram pouco depois para o almoço, ficaram surpresos ao verem Lucas sorrindo� E também ficaram profundamente gratos por Marcelo e Bia terem descoberto a trama�

Após o almoço, Marcelo já se preparava para partir, quando Lucas o chamou para conversar, a sós:

– Eu devia estar muito horrível, mesmo� Como posso te retribuir por tudo o que você fez por mim, mesmo sem me conhecer?

– Lucas, você não precisa me agradecer� Só de saber que você está bem e o mistério foi descoberto, já é um agradecimento�

– Ouvi você dizendo a minha mãe que começou a des-vendar a história por impulso, mas acredito que você tem um grande coração�

– Não foi nada! – disse Marcelo� – Apenas fico feliz por poder te ajudar� Gostaria de te entregar seu diário� E descul-pe-me por ter lido�

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– Sei que foi por uma boa causa� Fico grato que você o tenha lido� – disse Lucas, pegando o diário que Marcelo lhe restituía�

– Eu preciso te falar sobre algo antes de voltar para Cia-norte� – disse Marcelo�

– Tudo bem� De que se trata? – perguntou Lucas�– Eu estive pensando sobre a casa de vocês que eu com-

prei�� Ela é bonita, sem dúvida� Mas Lucas, sinceramente, eu sinto que ela não me pertence�

Lucas o olhou confuso:– Mas você a comprou� É claro que é sua�– Sim, mas honestamente, quando eu a comprei, eu esta-

va motivado por descobrir o enigma da separação de vocês� Agora que eu descobri, eu sinto mais do que nunca, que o tempo que passei nela foi apenas como se eu fosse um hóspe-de� Como se tivesse cuidado dela por um tempo até que os le-gítimos donos retornassem� Se você quiser a sua casa de volta, ela será sua, posso vendê-la pelo mesmo preço que comprei�

– Eu não posso aceitar�� – começou dizendo Lucas, mas Marcelo fez um sinal com as mãos enquanto continuava�

– Eu não movi nem um móvel do lugar� Tenho certeza de você encontrará tudo como deixou�

– Marcelo, você já recomeçou sua vida lá� Todos os vi-zinhos gostam de você� E depois de tudo que você fez por nós, eu não posso de forma alguma aceitar isso�

– Eu também gostei da vizinhança� Meu Deus, como alguém consegue viver sem “um seu Afonso” na vida? – ambos deram risada� – Então eu cheguei a uma conclusão: serei seu novo vizinho da esquerda� A casa do Hugo e da Susana é bem bonita também�� tenho certeza de que vou gostar de morar lá� Eu ficaria muito feliz de vê-lo com Elisa

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de volta à casa que era de vocês� Só assim saberei que mi-nha missão foi cumprida� Por favor, aceite!

– Estou tentando descobrir uma forma de te recom-pensar por tudo o que você fez por mim e você me ajuda mais ainda� Marcelo, eu vou te dever pelo resto da vida! Muito obrigado! Saiba que o que você precisar, pode con-tar comigo�

– Lucas, eu gosto de pensar que quando eu ajudo uma pessoa, não quero que ela pense que está em dívida comigo� Neste mundo, às vezes nos achamos tão auto suficientes e independentes, mas chega um momento em que vemos o quanto na verdade, apesar de aparentemente sermos resis-tentes, em nossa essência somos frágeis e vulneráveis� O quanto dependemos uns dos outros� Como se estivéssemos em um grande círculo, em que sempre estaremos ajudan-do e sendo ajudados, de acordo com nossas capacidades� Podemos recompensar as pessoas, mas sabendo que o que realmente vale a pena é você ajudar sem esperar nada em troca� Porque no dia em que você se sentir frágil, precisará de alguém para ajudá-lo também�

Quase que imperceptivelmente, os dois já conversavam como se fossem velhos amigos� Uma amizade espontânea e sincera�

– Só gostaria de fazer uma pergunta� – disse Lucas – Você nunca morou em Cianorte antes? É que, não sei expli-car, mas parece que você tem algo de familiar�

– Também tive essa sensação� Mas respondendo a sua pergunta: Eu nunca morei em Cianorte, mas quando crian-ça passava as minhas férias com os meus avós, que mora-vam em uma fazenda na cidade� – respondeu Marcelo com certa nostalgia�

Nesse momento Bia entrou na sala, acompanhada de Ana�

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– Desculpe interromper a conversa dos cavalheiros – disse Bia – Marcelo, será que poderíamos ir?

– Sim! Acho que já podemos partir� Quero chegar cedo a Cianorte�

– Marcelo, espere só um minuto� – disse Lucas, saindo da sala�

Instantes depois ele retornou com um embrulho�– Pode ficar tranquilo� Não é nenhuma recompensa,

pois sei que você não aceitaria� Mas sei que isso pode ser importante para você� Só vou pedir uma coisa� Abra somen-te quando estiver em casa� E obrigado por ter vindo� Fiquei muito feliz por receber sua visita� Creio que poderemos conversar muito em breve� E obrigado por tudo! – Falou Lucas com a voz profundamente emocionada�

– Eu que agradeço, Lucas! Até breve! – disse Marcelo curioso para saber o que tinha no embrulho�

Marcelo estava sentindo-se muito feliz por ter descober-to a trama que separou Lucas e Elisa� É claro que sem a aju-da de Bia, ele nunca teria conseguido� Na verdade Bia fora sensacional, revelara uma força e determinação que Mar-celo não imaginava que ela possuísse� A jovem tímida dera lugar a uma pessoa de personalidade ousada e destemida�

– Bia, obrigado por tudo� Eu jamais teria conseguido sem você! – disse Marcelo enquanto estacionava o carro em frente à bela casa branca�

– Sou eu que agradeço, Marcelo� Você foi fantástico ajudando pessoas que nem conhecia� Vou ser eternamente grata pelo que você fez por meus amigos�

– Que tal começarmos a espalhar a boa notícia de que Lucas e Elisa realmente vão voltar? – perguntou ele, enquan-to observava dona Joana olhando ansiosa de sua varanda�

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– Aguarde um minuto que chamarei a pessoa ideal para isso – disse Bia, piscando para Marcelo, enquanto elevava a voz para chamar� – Oi, vô! Cheguei!

Marcelo apenas sorriu� Podia considerar a notícia como dada�

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caPítulo 17

de volta ao PaSSado

Assim que entrou em casa, Marcelo pegou o embrulho que Lucas havia lhe dado e dirigiu-se à biblioteca� Ao subir as escadas contemplou o lugar que durante os últimos dias fora seu refúgio e que lhe permitira tantas experiências di-ferentes; partilhar a vida de outras pessoas, conhecer seus dramas e ajudá-las na medida do possível� Ele estava par-tindo� Mas não era definitivo� E como era bom saber que Lucas e Elisa estariam voltando para o lugar de onde nunca deveriam ter saído�

Entrou na biblioteca já com saudades dos dias e noi-tes que passara ali� Sentou-se na poltrona e pacientemente abriu o embrulho que Lucas lhe dera� Encontrou uma cai-xa de couro, muito bem trabalhada e delicada� Quando le-vantou a tampa, porém, sentiu-se profundamente confuso� Tratava-se de um caderno pequeno, de capa dura� Era um diário� Só que aquele era extremamente familiar� Ele co-nhecia as inicias gravadas na capa – MRA – As iniciais do seu nome� Aquele era o seu diário, que há muitos anos tinha perdido� Mas como Lucas tinha seu diário? Seria uma piada do destino?

Virou a primeira página sabendo o que encontraria� Ti-nha a sensação de que estava voltando no tempo e era meni-no outra vez, correndo pelos campos ao lado do avô�

Havia um pequeno bilhete dobrado, no qual ele reco-nheceu a caligrafia de Lucas�

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“Fico feliz por finalmente poder restituir o diário que um dia ficou comigo� Sei que a vida tem caminhos estranhos, e nem sempre conseguimos explicar o que nos acontece� Só sei dizer que nesse momento sou imensamente grato, por tê-lo de volta a minha vida, meu amigo�”

Como fizera em tantas noites, lendo o diário de Lucas, nesse momento Marcelo começou a reler o seu próprio diá-rio, que ficara perdido na última visita que fizera ao sítio do avô, há muitos anos atrás�

São Paulo, 25 de junho de 1995.Não sei como geralmente se escreve um diário, mas na

verdade precisava de um amigo para me escutar esta noite. Mas, infelizmente não tenho o privilégio de ter um ao meu lado nesse momento. Só espero que você não esteja abor-recido por ficar tanto tempo trancado na gaveta do meu armário. Se não me falhe a memória, desde um ano atrás, quando o ganhei de um amigo secreto. Um amigo secreto que me ofereceu um lugar secreto para guardar segredos. Interessante. Acho que devo começar me apresentado. Meu nome é Marcelo Roberto de Azevedo. Alguns diriam que estou aborrecido porque ainda sou uma criancinha e não posso dizer o que é e o que não é bom para mim. Tenho que obedecer aos meus pais.

Sei que tenho uma família maravilhosa. Meu pai, Gus-tavo, e minha mãe, Lilian, sempre me deram tudo o que precisava. Temos uma grande casa e motoristas para me levar à escola. E sempre que quero algo meu pai me dá dinheiro para comprar. Então posso dizer que não tenho uma vida ruim.

Como diz meu pai, “vamos direto ao ponto”: O que me aflige tanto para me fazer pegar uma caneta e escrever

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em um diário (sem ofensas), no silêncio do meu quarto, enquanto poderia muito bem estar brincando.

É que eu estou chateado. Muito CHATEADO mesmo. Espero que as letras maiúsculas te deem uma noção do quanto me sinto infeliz. Veja bem, meus pais amados e ido-latrados me prometeram há seis meses, que nas minhas fé-rias de julho, eu poderia visitar a Disney. Não serei muito justo se não disser a verdade: seria a minha sexta visita àquele mundo maravilhoso. Eu sei que muitos diriam “Mas é o suficiente, Marcelo. Quantas crianças nunca conhece-ram a Disney e não fazem todo esse drama por isso?” ok. Mas meus pais só me avisaram isso hoje e as minhas férias começam no próximo fim de semana. Entenda que eu já estava quase de malas prontas quando meu pai amado me disse que ao invés de Disney irei visitar o sítio da minha fa-mília, passar um tempo de qualidade com a natureza e com o mundo real. Mais real do que o que eu já vi o semestre inteiro? O que vai ter de diferente naquele fim de mundo? Como ele pode chamar aquilo de férias, um mês perdido no meio do mato? Com certeza as minhas férias seriam mais especiais se tivessem Mickey Mouse.

Mamãe está batendo à porta. Acho que ainda quer ver se estou muito aborrecido.

São Paulo, 29 de junho de 1995.Eu sei que você é um diário, mas não tenho tempo para

escrever todos os dias. Então espero que não fique zangado se eu vê-lo apenas como um amigo confidente para momen-tos especiais. Devo dizer que não estou mais triste. Meu pai conseguiu me contagiar comprando uns brinquedos para que eu possa aproveitar ao máximo minha estadia no sítio.

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Me senti um pouco envergonhado hoje quando descobri o real motivo de não irmos a Disney... Papai está fazendo um grande negócio na sua empresa e simplesmente não po-dia abandonar o processo no meio. Ele é muito esforçado. É um bom pai. Sei que trabalha muito para que não nos falte nada. Então ele não poderá ir comigo ao sítio. Mas papai me prometeu que se eu não gostar de lá, posso voltar imediatamente. Mas primeiro “preciso me dar a chance de aproveitar minhas férias” Que escolha eu tenho quando ele fala com aquele jeito condescendente de pai que sabe o que é melhor para o filho?

Acho que é melhor fazer minhas malas. Partiremos amanhã cedo. Ah... é claro que você vai... Vou precisar de um amigo.

Cianorte, 30 de junho de 1995.Olá, amigo. Acabei de chegar na selva. É bem provável

que o filme do rei Leão tenha sido gravado nesse lugar. Como todas as vezes que venho aqui é a mesma cha-

tice (não que eu tenha vindo muitas – umas duas vezes em toda minha vida). Encontrei o vovô e a vovó com esse monte de bichos. Gostaria de dizer os nomes deles, mas só conheço o porco, porque parece com meu cofrinho de moedas. Não tem nada para ver aqui. Papai enviou um empregado para me acompanhar no ônibus, mas ele já voltou para São Paulo. A minha vontade era voltar com ele, mas fiz um trato muito lucrativo com papai, então vou tentar ficar aqui.

Já jantei e estou me preparando para dormir. Estou até imaginando como será ficar nesse lugar um mês. Vou tentar não pensar nisso. Boa noite.

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Cianorte, 5 de julho de 1995.Calma, não se assuste. Você não pulou páginas. Devo

dizer, meu diário, que você ainda está visitando Cianorte, mas ficou o tempo todo em minha mochila. Não tive um minuto para escrever.

Não tenho palavras para descrever essa semana. Ela está sendo demais! Está sendo maravilhoso ficar com o vovô. Ele é muito sábio e me levou para caminhar pelo sítio inteiro. Tiramos muitas fotos de pássaros e animais. Come-cei a perceber que aqui é um lugar muito bonito. Além dis-so, pude conhecer outras crianças que moram aqui, cujos pais trabalham no sítio. Fiz muitos amigos. Mas quem eu mais gostei de conhecer foi um amigo – Lucas – que como eu, também está passando férias, no sítio ao lado. Nós fo-mos visitá-los ontem. Vovô é muito amigo do avô dele, e enquanto eles conversavam, nós brincamos muito. O sítio deles também tem bastante espaço e é um lugar muito boni-to. Ficamos lá até tarde e a noite vovô nos contou histórias incríveis. Cheguei em casa muito cansado. No céu já dava para ver um monte de estrelas. Vovô sabe muito sobre elas. Eu queria continuar vendo-as, mas acabei dormindo.

Preciso me apressar. Hoje tem uma festa julina aqui no sítio. Nunca fui a uma, mas vovô me garantiu que é legal. Então até mais...

Cianorte, 07 de julho de 1995.Oi, Diário. Eu até que gostaria de escrever o que estou

vivendo todos os dias, mas realmente não dá tempo. Sem-pre que chega a noite estou muito cansado. Vovô acorda muito cedo e saio com ele para ver o que ele faz. Descobri que ele tem muitos animais. Vacas, bois, cavalos. Alguns são mansinhos, outros correram atrás de mim. Que medo!

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Mas foi legal. A vovó também é boa. Ela faz tantas coisas deliciosas para eu comer. Nossas cozinheiras nunca fize-ram nada disso.

Ah... estava esquecendo, mas a festa julina foi muito legal. A vovó tinha feito muitos doces e comidas de mi-lho. Teve muitas brincadeiras, pipocas e as outras crian-ças do sítio também vieram. O Lucas e eu nos divertimos bastante.

Preciso ir, vovó está chamando para jantar.

Cianorte, 27 de julho de 1995.Estou triste porque as férias acabaram. Amanhã já re-

gresso para São Paulo. Durante todos esses dias passei muito tempo brincando com Lucas. Era engraçado, quem acordava primeiro ia à casa do outro e as crianças do sítio se juntavam a nós – Fernanda, Maicon, Paulo e Vanessa. Brincávamos de bola, pega-pega, cavalgávamos e pescá-vamos. Não fui a Disney. Sei que teria sido legal. Mas, as minhas férias no sítio foram muito especiais. É claro que vou agradecer meus pais. Foi maravilhoso. Espero que no final do ano eu volte.

Cianorte, 16 de dezembro de 1995.Oi, Diário! Quanto tempo! Devo dizer que te esqueci

na casa da vovó nas últimas férias, mas eles te guardaram muito bem. Os dias em São Paulo foram tristes sem meus amigos do Paraná. Mas estou feliz. Acabei de chegar no sí-tio. Papai e mamãe ficaram em São Paulo. Papai continua fazendo investimentos importantes. Meus amigos também chegaram. Lucas e eu já fomos pescar. Ele ama música. Tentou me ensinar a tocar flauta. É legal, mas acho que não sou muito bom nisso. O vovô comprou mais animais. Ele

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também tem umas aves estranhas, mas não quero chegar perto delas. É a vovó que cuida. Acho que são perus... mas eu prefiro vê-los quietinhos e assados.

Cianorte, 24 de dezembro de 1995.Desculpe se não deu tempo de escrever, mas realmente

minha vida está muito agitada, mais do que a do papai. Todos os dias, acordei bem cedo para passear com o vovô e à tarde, fui fazer trilha com o Lucas e sua família. Foi bem bacana. A vovó está fazendo muitas coisas gostosas para o jantar. Ela disse que vai assar o peru, mas pra falar a verdade eu acho que não vou comer. Deu muita pena de ver matar o pobrezinho.

Cianorte, 25 de dezembro de 1995. Será que papai Noel faz entrega no sítio? Estou brincan-

do. Sou bem grandinho, não acredito mais nessas coisas. Mas fiquei contente por ganhar presentes. O vovô e a vovó compraram um brinquedo na cidade, com muitos carrinhos de corrida. Já vou brincar com as crianças. O Lucas ganhou uma guitarra, ele ficou muito feliz. Aliás, ontem à noite ele pousou aqui. Vovô contou histórias para nós até tarde.

Cianorte, 20 de janeiro de 1996.Estou triste. Volto para casa hoje. Vou deixá-lo guar-

dado no lugar que a vovó tinha deixado. Você é um amigo, mas especial, como as outras crianças daqui. E amigos es-peciais ficam em lugares especiais. Já estou sentido sauda-des desse lugar. Foram as férias mais legais da minha vida. Aprendi a andar a cavalo e pesquei muitos peixes, além de ter brincado muito com meus amigos. O Lucas já foi embo-ra. Até Julho.

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Cianorte, 3 de julho de 1996.Oi, Amigo. Estou de volta. Papai queria muito me le-

var para a Disney. Eu fiquei com vontade de ir, mas queria muito mais estar aqui. Fico tão feliz quando vejo a vovó e o vovô. Devo dizer que já estou quase um rapaz. Fiz dez anos. Gostaria que meus amigos daqui pudessem ter ido à festa, mas mamãe disse que não era possível. Esse ano estou gos-tando de São Paulo. Estou tendo aulas de espanhol com o professor Leo. Ele é muito inteligente e conversa muito comigo. Eu gosto muito dele. Sem contar que ele me dá muitos livros para ler. Preciso ir brincar agora, o Lucas acabou de chegar.

Cianorte 13 de julho de 1996.Nossa! Está muito frio hoje. Tive que vestir blusas bem

quentes e ficar perto do fogão a lenha, que a vovó faz comida. Lucas e eu passamos a manhã jogando dominó e xadrez. Ele é muito bom em dominó, mas no xadrez eu ganhei dele. E agora à noite, a vovó fez chocolate quente e pipoca, e ficamos ouvindo o vovô contar histórias.

Cianorte 26 de julho de 1996. Chegou o momento da partida. Estou muito triste

como sempre. Vou sentir falta de todos os meus amigos. Mas está na hora de deixar a Terra do Nunca e voltar para o mundo real. Te contei que o vovô construiu uma casa na árvore para nós, com uma ponte para atraves-sarmos? Então, estou triste por deixá-la. Tentei conven-cer meus pais a me deixarem morar com o vovô e a vovó, mas eles não quiseram. Meus amigos prometeram que irão cuidar dela.

Tchau. Até dezembro.

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Cianorte, 02 de julho de 1997.Oi, meu amigo Diário. Que bom te ver novamente. Eu

não errei a data. É que meus pais não me deixaram vir aqui nas férias de dezembro. Ouvi algo como o vovô ser uma pés-sima influência. Devo dizer que agora já estou bem gran-dinho para saber o que é certo e o que é errado. E posso dizer que o vovô é uma ótima pessoa, mesmo que não fi-que me ensinando a guardar moedas em um cofrinho. Aliás, papai também poderia vir passar um tempo aqui no sítio e aprender algumas coisas com o vovô. Sei que meu pai tra-balha para nos dar as coisas, mas o vovô também trabalha e sempre sobra um tempinho para ele estar comigo. Hoje, por exemplo, ele já me levou para dar um passeio à cavalo e à noite com certeza contará histórias para mim e o Lucas.

Por falar no Lucas, ele ainda não chegou. Vovô fi-cou sabendo que ele vai chegar à tarde. Então tenho um pouquinho de tempo para te contar como foi o meu ano. O professor Léo continuou dando aulas para mim, mas eu não falo muito dele em casa para que meus pais não fiquem preocupados se ele é ou não uma má influência. Esse ano li muitos livros legais. Marcos Rey se tornou meu escritor favorito. Mas tem outros escritores bem le-gais também, como Stella Car que escreveu “O caso da estranha fotografia”.

Hum!... estou sentindo um cheirinho de pão fresquinho saindo do forno. A vovó acabou de fazer. Estou indo comer agora mesmo.

Cianorte, 15 de julho de 1997.O vovô reformou nossa casa na árvore e até pintou ela

com os restos de tinta que sobrou da reforma na casa gran-de. Nós passamos a maior parte do tempo brincando lá. O

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Lucas fez até um concerto de música para assistirmos em cima da ponte. Tivemos festa julina e ele tocou muitas mú-sicas com seu violão. Foi legal. Só estou preocupado com uma coisa. Vovô não está muito bem de saúde. Ele parece bem cansado. Estou muito exausto. Vou dormir.

Cianorte, 23 de julho de 1997.Você já sabe. Fim de férias. Só tenho algumas palavras

a dizer... (as de sempre) essas foram as melhores férias da minha vida. Até dezembro, amigo.

Cianorte, 15 de dezembro de 1997.Acabei de chegar. Já revi todos os meus amigos. Até o

Lucas chegou primeiro do que eu. Eu falei para o papai que eu estava atrasado. Papai e mamãe vieram me tra-zer. Só chegaram, viram o vovô que está se recuperan-do de uma cirurgia e já foram embora. Dizem que não suportam passar muito tempo na selva. Será que elas já assistiram o filme Anaconda para ter ideia do que real-mente é uma selva?

Quanto a mim, vou aproveitar o máximo das minhas férias. Até mais.

Cianorte, 25 de dezembro de 1997.Vovô está bem melhor. Todas as famílias que moram no

sítio estiveram reunidas aqui ontem à noite para a ceia. A vovó fez muitos pratos deliciosos junto com as outras mu-lheres. Meus amigos e eu organizamos e decoramos a sala de jantar para que ficasse bem bonito para celebrarmos o Natal. O vovô só pôde supervisionar. O Lucas, acompanha-do pelo seu violão, cantou muitas músicas de Natal. A fa-mília dele também veio. Tenho certeza de que foi o melhor

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Natal que já tivemos. E hoje tivemos um ótimo almoço e nos divertimos bastante.

Cianorte, 01 de janeiro de 1998.Dessa vez foi a família do Lucas que nos recepcionou

em seu sítio para celebrarmos o ano novo. Foi muito le-gal. Eles organizaram uma magnífica queima de fogos. Foi muito lindo. E já estão se preparando para a virada do milênio. Querem fazer uma mega virada. Mas estou muito cansado, são duas horas da manhã e preciso dormir. Não sabia, mas hoje percebi que eles são muito, muito ricos, tanto quanto papai. Perguntei ao Lucas porque eles nunca viajam para o exterior ou alguma praia como muitos milio-nários e ele me disse que é tradição da família passarem a festa de Natal e ano novo em família e em um lugar que é importante para eles.

Cianorte, 19 de janeiro de 1998.Estou indo embora hoje. Gostaria de ficar. Sei que o

vovô precisa de mais ajuda no sítio e alguém que o auxilie para que ele se recupere da cirurgia o mais rápido possível. Mas sei que não posso pedir ao papai para me deixar ficar, pois sei que além de não deixar, também não vai querer que eu venha nas próximas férias. Até breve, amigo.

Cianorte, 3 de julho de 1998.Oi, amigo. Estou triste. Estou em Cianorte, mas esse

ano não é a mesma coisa. Vovô está muito doente. Ele foi ao médico e está tomando os remédios, mas está demorando muito para sarar. Agora sou eu quem conta histórias para ele. Lucas e eu nos revezamos. Às vezes ele toca um pouco de música para distrair o vovô e em outras eu conto as

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histórias que eu li no semestre. Nesses momentos eu vejo o vovô mais animado. Mas ele passa a maior parte do tempo deitado ou dormindo. Tenho uma vontade imensa que ele se levante daquela cama e venha cavalgar comigo ou pes-car como fazíamos no passado. Poderia lhe mostrar como estou forte e já consigo cavalgar mais rápido. Mas, infeliz-mente, isso é impossível.

Cianorte, 7 de julho de 1998.Não tenho muito pra falar. Eu não brinco mais com

meus amigos. Todo o tempo que tenho passo perto do vovô quando ele está acordado, ou da vovó, pois, vejo que ela está muito triste. Saí só duas vezes para passear nas trilhas com o Lucas. Ele tem sido um bom amigo. Até mais.

Cianorte, 12 de julho de 1998.O vovô hoje está um pouco melhor. Caminhamos alguns

passos ao redor da casa. Ele até viu alguns animais. Mas logo se cansou e precisou descansar. Mas pelo menos pas-sou a maior parte do tempo na varanda. Ficamos vendo fotos e ele me contou muitas coisas sobre sua vida. Ele me mostrou até uma medalha que ganhou de quando era sol-dado na segunda guerra mundial. Eu fiquei muito surpreso. Imagina! Meu avô, um soldado de verdade!

Cianorte, 18 de julho de 1998.Estou indo embora para São Paulo. Implorei a papai

para me deixar ficar, mas ele disse que preciso ir. Sei que o vovô ainda precisa dos meus cuidados. E a vovó precisa de companhia. Quem vai fazê-la sorrir quando eu tiver ido embora? Não posso dizer que essas férias foram boas. É verdade que não gostaria de estar em nenhum outro lugar

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do mundo, mas queria estar aqui com meu avô saudável. Mas, não tem jeito. Então, até dezembro.

Marcelo largou o diário como se tivesse levado um choque, enquanto sua própria memória revivia aquelas lembranças� Lucas era seu melhor amigo de infância� O avô de Marcelo faleceu alguns meses depois de sua parti-da e ele nunca mais pôde retornar� A verdade é que ele não queria retornar� Tudo o que lembrasse seus avós era muito doloroso� E então Lucas também foi colocado na categoria esquecimento e nunca mais teve notícias de seu amigo, até agora quando as forças do destino os uniam novamente� Lucas era um amigo muito importante que agora ele reen-contrava de uma forma inusitada�

Pegou o diário novamente, como se não acreditasse no que estava acontecendo� Era coincidência demais� Ele nun-ca acreditou em coisas como destino� Isso era supertição para quem acreditava nas Moiras da mitologia�

Ele se recordava que aquela era a última página que ha-via escrito� Então, foi com surpresa que viu que alguém ha-via acrescentado mais algumas anotações� Embora a caligra-fia fosse trêmula, era legível� Havia se passado muito tempo, mas ele sabia que aquela letra só podia ser de seu avô�

Cianorte, 10 de agosto de 1998.Meu querido Marcelo, perdoe-me se escrevi em seu

diário, mas é que sinto sua falta e ao ler essas páginas senti que deveria te deixar um recado, na esperança de que um dia você o encontre. Desculpe-me se só escrevo garranchos, mas é que minhas mãos não estão mais fir-mes e tremem muito. Gostaria de dizer que estarei aqui para vê-lo nas suas férias. Ver seu rosto, seus olhar cheio

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de alegria apenas mais uma vez. Mas infelizmente não será possível.

Sou imensamente grato a Deus por ter um neto como você. Sempre contava os dias para sua chegada. Você tem nos trazido muito alegria e com você tenho passado os mo-mentos mais felizes de minha vida, ainda que sejam tão bre-ves. Estou sentado na varanda, então posso ver sua casa na árvore e te imaginar brincando nela com teus amigos. Minhas vistas ainda alcançam o rio, então me lembro de você, sentado ao meu lado em uma tarde de pesca ou sim-plesmente contando-me uma de suas histórias.

Sei que você irá crescer e tornar-se um homem valente. Tens um coração bom e eu temo apenas uma coisa. Não sei onde errei com teu pai para que esquecesse o que realmente importa nessa vida. Mas vendo o seu coração tão inocen-te, gostaria de lhe fazer um pedido. Por favor, não siga o mesmo caminho que ele. Lembre-se do que na vida é mais importante. Não importa quanto dinheiro conseguirá reunir em sua vida ou quantas posses terá, se não tiver pessoas que te ame e que você as ame também, serás a pessoa mais mise-rável deste mundo. E por favor, não condene teu pai por seus erros. Mesmo que não pareça, ele te ama profundamente, ainda que não demonstre. Sei que sentes falta dele e espero que um dia ele possa enxergar o que está deixando de lado. Mas até esse momento chegar, meu precioso neto, tenha pa-ciência. A mesma que você tinha quando se sentava ao meu lado para pescar. Mesmo que ele não te entenda – ame-o. Mesmo que ele te faça sofrer – perdoe-o. Mesmo que ele te deixe triste – alegre-o. Mesmo que algo os separe – retorne.

Receba a minha benção. Sejas feliz. Te amo muito.

Seu avô, Roberto Azevedo.

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Marcelo sentiu-se profundamente comovido ao termi-nar de ler aquelas páginas� E ali, naquele fim de tarde, com seu diário na mão, Marcelo permitiu-se chorar, não só por aquele momento, mas por tantas coisas que estavam repre-sadas dentro de seu ser�

Decidiu que já era hora de consertar seu próprio passa-do� Precisava procurar sua família, independente da forma como seria recebido� Após nove anos de ausência, desde que saíra para cursar a faculdade, dos quais cinco anos sem receber nenhuma notícia deles, decidiu que era tempo de voltar para casa� Estava na hora de voltar para São Paulo�

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caPítulo 18

lar, doce lar

Marcelo acordou ainda de madrugada verificou os ho-rários de voo para São Paulo e a disponibilidade de viajar no mesmo dia� Felizmente tinha um voo que era adequado� Saiu sem deixar recado para Bia� Mais tarde ligaria avisan-do onde estava�

Quando o avião pousou no aeroporto de São Paulo eram pouco mais de nove horas� Tomou um táxi até o bairro onde lembrava ser seu antigo endereço; a casa de sua família�

Sentira falta da grande metrópole, percebeu surpreso, enquanto seus olhos passavam pelos lugares que frequenta-ra quando criança� Seu coração estava acelerado quando o carro parou em frente à sua casa� Quase pediu para o moto-rista seguir em frente, mas nesse momento vislumbrou ao longe a sua mãe, sentada no jardim da casa�

Reunindo a coragem necessária, desceu do carro e tocou a campainha�

– Pois não? – perguntou a voz no interfone�– Por favor, eu gostaria de falar com o senhor Gustavo�

Diga a ele que é o seu filho Marcelo�O som do outro lado ficou mudo por alguns segundos�– Desculpe-me, seu Marcelo, mas temos ordens expres-

sas para não deixá-lo entrar�– Então, por favor, avise minha mãe que eu estou aqui�

Se ela também não quiser falar comigo eu entenderei�– Acho que o senhor não entendeu, seu Marcelo� Ne-

nhum dos dois deseja vê-lo� Eu sinto muito� Não sei se o

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senhor foi informado, mas há um processo aberto para de-serdá-lo� Desculpe dizer, mas para seu pai é como se o se-nhor tivesse morrido� Por favor, é melhor ir embora� Não insista� Tenha um bom dia!

Aquelas palavras foram como um punhal cravado em seu peito� Mas antes que ele se recuperasse, o mordomo já havia desligado o interfone com um clique seco� Ele ficou em silêncio por alguns instantes e respirou fundo� Não im-portava as novas circunstâncias, ele havia chegado até ali, não ia desistir tão facilmente� Sentou-se na calçada junto ao muro� Iria ficar ali até que seu pai viesse falar com ele�

Por exatamente duas horas, ele esperou inerte sob o sol ardente� Embora fosse inverno, o dia estava bem quente em São Paulo� Sua barriga já estava roncando de fome quando o interfone deu um clique seco�

A já conhecida voz do mordomo se fez ouvir:– Não se anime – foi logo dizendo, assim que Marcelo

ficou em pé – Vim apenas lhe comunicar que seu pai pediu que vá embora, caso contrário ele pedira para a polícia ti-rá-lo daqui�

– Diga que irei embora, assim que falar com ele ou com minha mãe�

– Você tem cinco minutos antes que eu ligue para a polícia�

– Por favor, senhor! Peça a ele para falar comigo� Não preciso nem vê-lo� Pode ser por interfone mesmo�

– Já perdeu um minuto�– Eu sei que o senhor está cumprindo seu dever�� – tor-

nou Marcelo com a voz tingida de desespero� – Não sei dizer qual é a sua idade, já que não posso ver seu rosto; mas suponhamos que o senhor seja pai e que seu filho tenha te magoado muito, feito algo que no momento da raiva você

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dissesse que nunca mais queria vê-lo na sua frente� Porém, não importa quantos papéis você assine renegando-o, o DNA do filho não mudará� E ninguém jamais poderia con-testar isso�� – Ou melhor, continuou Marcelo, as palavras jorrando em torrentes� – suponhamos que nem mesmo ele fosse seu filho legítimo, fosse uma criança adotada�� Mas se um dia você o acolheu e ensinou a chamá-lo de pai, é por-que um dia se importou com ele�� e independente do quão zangado o senhor esteja com ele, lá no fundo, por baixo de toda máscara da dor, o senhor continuaria amando-o��

– Meu senhor, o senhor está tomando meu tempo com essa conversa de pai e filho� Não adianta insistir� Seu pai não quer vê-lo� Já passou mais um minuto� É melhor ir em-bora agora� – interrompeu o homem�

– Por favor, senhor! – pediu Marcelo angustiado – Pro-meto que já vou sair�� Mas pense comigo�� No momento da raiva o pai poderia ter dito isso, mas no fundo ele sentiria saudade do filho� Só o que te peço é: por favor, peça para o meu pai me receber�

Fez se silêncio por alguns instantes, então o homem respondeu:

– Está bem! Você me convenceu�� Aguarde um momento�

Marcelo esperou ansioso o retorno do mordomo� Dois minutos depois ele voltou ao interfone�

– Eu lamento� Mas realmente ele não quer vê-lo, senhor� Eu sabia que ele diria isso� Mas eu tenho um filho e tentei me imaginar nessa situação, como sugeriu� Eu não hesita-ria em perdoar meu filho, independente do que ele tivesse feito� Mas nem todos os pais são iguais� Eu realmente sinto muito� – e após uma pausa – Seu tempo acabou� Pode, por favor, ir embora?

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Doeu escutar isso, mas Marcelo sabia que havia a pro-babilidade disso acontecer� Porém uma coisa era imaginar, outra era sentir o efeito que aquelas palavras causavam em seu interior� Ele estava preparado�

Tirou de sob o blazer um envelope branco e o passou pela caixa de correio�

– Então, peço um último favor: entregue esse envelope para meu pai e diga que pode ficar tranquilo� É a ultima vez que eu o procuro�

– Posso entregá-lo – retornou a voz do outro lado do interfone – mas não garanto ao senhor que ele o lerá�

– Por favor, só entregue! Muito obrigado!– Por nada! Tenha um bom dia!Marcelo ligou para um táxi e foi caminhando� Não fica-

ria naquele lugar nem mais um minuto� O próximo voo com destino até Maringá, que ainda ti-

nha vaga, sairia do aeroporto somente no final do dia� Em-bora estivesse com fome, seu apetite tinha desaparecido� Mesmo assim foi até um restaurante e tomou uma leve re-feição� Depois se sentou a um canto do aeroporto, onde fi-cou aguardando o horário de seu voo�

Apesar de tudo, ele estava com a consciência tranquila� Sua parte ele havia feito� Só o que doía era a expectativa que ele criara de que pudesse resolver seus problemas com sua família, de que pudesse ter uma família feliz como a dos seus sonhos de criança�

Sentia falta de alguém para partilhar o que sentia� Não� A verdade é que ele sentia falta de Bia� Nos últimos dias estava acostumado a conversar com ela, a partilhar tudo� Descobrira que por trás daquela aparência tímida e frágil se escondia uma mulher fantástica, cheia de solidariedade e compaixão pelo sofrimento alheio� Com certeza ela saberia

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confortá-lo� Mas, infelizmente, Bia estava a centenas de quilômetros dali�

O relógio parecia estar lento de propósito� O aeroporto pa-recia mais congestionado do que nunca� Os aviões pareciam não estar decolando com rapidez suficiente� Cada detalhe era irritante para ele� E mais uma vez, os fantasmas que o haviam atormentado em Nova Iorque pareciam reencontrá-lo�

Quando chegou a Cianorte, já eram quase dez horas da noite� Mal tinha colocado seus pertences no quarto quando a campainha tocou� Felizmente era a única pessoa que ele esperava ver naquele dia: Apoiada em uma muleta, estava Beatriz� Algo em seu rosto deve ter denunciado que ele não estava bem, porque ela simplesmente o abraçou� Pouco a pouco a tensão que sentia foi desaparecendo�

– Obrigado, por ter vindo, Bia! – Ele finalmente conse-guiu falar� – Senti muito a sua falta�

– Eu também senti a sua falta� Assim que o vi chegar, quis vim ver como você estava�

Marcelo contou-lhe, em breves palavras, o que aconte-cera em sua viagem� Conforme ele ia falando, todo aquele sentimento ruim foi desaparecendo�

– Eu vou ficar bem� – disse ele, dando um suspiro pro-fundo� – Infelizmente as coisas não aconteceram como eu esperava� Meus pais não quiseram me receber, aliás, não quiseram sequer me ver� Mas não me arrependo de ter ido procurá-los, de ter tentado�

– Você sabe que pode contar comigo! – disse Bia, olhan-do em seus olhos�

– Obrigado, Bia! Você tem sido uma das melhores coisas que aconteceram em minha vida, desde que che-guei a Cianorte�

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– Achei que eu só estivesse complicando sua vida: sen-do causa de acidentes, te deixando sem empregada�� – disse ela com um sorriso�

– Eu não tinha pensado por esse lado� – disse Marcelo, com cara de quem analisava seriamente o assunto, mas por fim sorriu� – Não! Corrigindo: Você é a melhor coisa que me aconteceu desde que cheguei a Cianorte�

Ela deu um sorriso, enquanto seu rosto corava�– Tudo bem, como você está muito cansado, não vou

levar isso a sério� Vou deixá-lo descansar� – Mas eu estou muito bem�� em minha perfeita

consciência� – Ahã!�� Boa noite, Marcelo!– Boa noite, Bia! Apesar do dia agitado, Marcelo conseguiu ter uma boa

noite de sono� O dia seguinte era segunda-feira e ele tinha uma importante tarefa a cumprir�

Na frente da casa de Hugo, já tinha uma placa da imo-biliária� Por coincidência era a imobiliária de seu Manoel�

“Outra vez não!” pensou Marcelo�Mas como não tinha outro jeito, pegou seu carro e se

dirigiu até a imobiliária� Assim que o viu entrar em seu es-tabelecimento, seu Manoel deu um grande sorriso�

– Bom dia, Marcelo! Que prazer vê-lo em minha imo-biliária! Sabia que você iria mudar de ideia� Com certeza veio comprar um salão para montar sua confecção, não é mesmo?

“Algumas coisas são impossíveis de mudar” – pensou Marcelo ao ver a tagarelice de seu Manoel�

Antes que o formidável corretor prosseguisse com suas suposições, Marcelo o interrompeu�

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– Na verdade, seu Manoel, eu vim aqui comprar a casa dos meus vizinhos� Vi que a placa da imobiliária está na frente da casa� Ainda está a venda?

– Oh�� Sim, claro, meu jovem� Podemos ir até lá ago-ra mesmo� Mas, sem querer ser intrometido, o senhor não está satisfeito com a sua casa? – perguntou seu Manoel com uma expressão séria, mas antes que Marcelo respondesse, ele sorriu e deu um tapinha nas costas de Marcelo� – Brin-cadeirinha meu jovem�� É claro que estou sabendo! As no-tícias voam meu amigo! Você conseguiu resolver o misté-rio da separação dos antigos moradores e agora eles estão voltando�

– É! O senhor acertou� – disse Marcelo� – E como eu imaginava você adorou a vizinhança e quer

continuar morando no mesmo bairro� – disse seu Manoel empolgado� – Então vamos lá ver sua nova casa, Marcelo�

Para felicidade de Marcelo, ambos foram em carros se-parados, então ele não precisou aguentar seu Manoel com sua boca que não fechava� Em compensação, assim que estacionou, o corretor já veio em sua direção falando tão apressadamente que até parecia um narrador de jogo�

Com eficiência descreveu todas as comodidades da casa� Não havia nada naquele lugar que lembrasse Suzana e Hugo� A casa estava totalmente vazia, todos os móveis haviam sido levados� Apesar de não ter dois andares, era grande e espaçosa� A pintura, tanto interna como externa, era um branco gelo, com detalhes em marrom, exceto a sala de estar que tinha uma única parede laranja�

Além da sala de estar que Marcelo já conhecia, tinha uma sala de jantar, cozinha, três quartos, dois banheiros e uma suíte� E no fundo do quintal também tinha uma piscina� Marcelo sentiu falta de um jardim, mas isso ele podia dar

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um jeito� Era só destruir as calçadas de cimento� Tirando isso, a casa só precisava de uma boa limpeza, do mais esta-va em perfeito estado�

– Seu Manoel, vou comprar a casa� Pode preparar os papéis�

– Tudo bem! Ainda bem que dessa vez você escolheu rápido, meu rapaz� Foi um prazer fazer negócio com o se-nhor� – respondeu seu Manoel�

Ele provavelmente teria continuado conversando com Marcelo, mas nesse momento seu Afonso se aproximou e distraiu-o e Marcelo aproveitou a deixa para escapar�

Ainda pela manhã, Marcelo conseguiu contratar uma equipe de limpeza� Aproveitou e já pediu que fizessem uma faxina na casa de Lucas também� Queria devolvê-la no me-lhor estado possível�

Mesmo com o pé engessado, Bia se ofereceu para acom-panhá-lo até às lojas de móveis� Graças a ela, conseguiu comprar tudo de que precisaria, por um bom preço e de muito bom gosto� Com seu toque feminino, Bia também o ajudou a escolher cortinas, toalhas e outros objetos de decoração para darem harmonia ao ambiente� Foi muito divertido�

Graças a um valor extra que ele pagou, a loja de móveis prometeu entregar e montar todos os móveis no dia seguin-te� Dona Joana não se importou que ele não comparecesse mais um dia no projeto� Ela estava agradecida e infinita-mente feliz por Marcelo ter descoberto a verdade�

Já estava escurecendo quando ele finalmente chegou em casa, depois de um longo dia de atividades� Porém, foi sur-preendido por um Sedan prata, que estava estacionado em frente sua casa� Enquanto descia, percebeu um senhor alto e magro, de cabeça calva, que estava saindo do carro� Aquele homem ele reconheceria em qualquer lugar� Mas parecia

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fora de contexto vê-lo ali na sua frente, principalmente por parecer mais velho e cansado� Marcelo ficou totalmente sem reação fitando o homem que no passado chamava de pai� Ele queria desesperadamente falar alguma coisa, mas sua garganta estava seca, os músculos do corpo paralisados em choque�

Seu pai também parecia mergulhado em uma espécie de transe, apenas fitando-o� Finalmente deu um passo em sua direção�

– Marcelo, meu filho! – disse com a voz rouca e embar-gada pela emoção�

Ouvir Gustavo chamando-o de filho foi a palavra mági-ca, para que Marcelo recobrasse seus movimentos� Como se os anos passados de brigas e desentendimentos tivessem simplesmente sido deletados� O som da voz paterna, na-quele tom, trouxe-lhe lembranças de quando era apenas um garotinho e seu olhar puro ainda conseguia ver qualidades em seu pai, para chamá-lo de herói� Ao seu modo, ainda que de um jeito torto, ele podia sentir naquele momento, que seu pai um dia o amara�

E como se ainda fosse um menino, seus pés transpu-seram a distância que o separava de seu pai, abraçando-o entre lágrimas�

– Meu filho – disse Gustavo – Por favor, me perdoe! Você sempre será meu filho!

– Pai, eu também errei� O senhor só agiu daquele modo porque eu te desapontei� Sou eu que lhe peço perdão�

– Não�� Marcelo! Eu reconheço! Eu nunca fui o pai que você precisava, meu filho� E você sempre foi um ótimo fi-lho� Eu devia ter te escutado mais, ter estado mais presente em sua vida� Não para que você se tornasse um homem de negócios, meu filho, mas para ser seu pai, seu amigo��

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Aos poucos Marcelo foi se recompondo� Desvencilhou--se de seu pai ainda sem entender como ele estava ali na sua frente� Parecia estar sonhando� Gustavo pareceu ler seus pensamentos:

– Eu li o diário que você deixou� Eu não ia abrir o enve-lope� Imaginava que você havia escrito uma carta na qual me dizia um monte de afrontas ou um pedido de perdão sem fundamento� Mas ver que era um diário dos seus tempos de menino, despertou minha curiosidade, então comecei a ler e quando no fim encontrei o relato de seu avô, eu já estava em prantos� Aquela leitura fez uma mudança extraordinária em mim, como se eu estivesse em um filme, vi toda a minha vida passando, todos os meu erros�� Eu reconheço, meu filho, que durante toda minha vida eu valorizei o tesouro errado� Colo-quei meus bens materiais acima do que era mais importante: Nossa família! Por favor, me perdoe! Eu ti amo, meu filho! – disse ele, abraçando Marcelo mais uma vez�

Aquelas eram as palavras que Marcelo sempre desejara ouvir de seu pai� Abraçou-o novamente, sentindo um tre-mendo alívio, como se um peso tivesse sido retirado de suas costas, enquanto as lágrimas rolavam pela face de ambos, lavando toda a mágoa e unindo-os novamente�

Marcelo convidou seu pai para entrar em sua casa� Ajudou-o a carregar a bolsa que trouxera de viagem� Sa-bia que ele devia estar faminto então pediu comida em um restaurante�

– Você tem uma bela casa� – elogiou ele assim que entrou�– Obrigado, pai� Mas, na verdade eu estou me mudando

para a casa ao lado� Diante da curiosidade de seu pai, ele contou a aventura

que tinha vivido nos últimos dias� Gustavo o ouviu atento e no fim do relato estava admirado�

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– Seu avô teria muito orgulho de você, Marcelo, como eu tenho�

Eles jantaram e depois sentaram-se na sala� Conversa-ram bastante naquela noite como há muito tempo não fa-ziam� Contaram tudo o que havia acontecido em suas vidas� Marcelo contou como foi seus anos de faculdade, sua vida em Nova Iorque após a briga e como estava agora que vol-tara ao Brasil� Seu pai, por sua vez, contou-lhe sobre seus negócios, os investimentos que estava fazendo, mas de uma maneira diferente da que sempre fizera� Marcelo pode per-ceber que havia nele um equilíbrio, seus valores estavam mudando�

Na manhã seguinte, Gustavo foi embora� Mas em seus olhos era possível ver como ele estava feliz por poder estar novamente com seu filho� Prometeu que em breve voltaria e traria Lilian junto� Ela também havia lido o diário e que-ria ver o filho o mais depressa possível� Só não tinha vin-do com Gustavo, porque este lhe implorara para falar com Marcelo primeiro e a sós�

Assim que Marcelo ficou sozinho, ainda sentia uma es-tranha sensação, como se estivesse flutuando em um tapete mágico� Sua vida estava voltando aos eixos�

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caPítulo 19

raízeS

Tal como o combinado, as lojas entregaram os móveis e os montaram ainda naquela manhã� É verdade que o ba-rulho era intenso, e como Marcelo estava supervisionando para que tudo ficasse perfeito, teve que suportar� Mas no fim o resultado foi satisfatório, de modo que às onze horas tudo estava terminado e ele já podia mudar-se para sua nova casa�

Subiu até o quarto onde dormira durante aqueles dias e arrumou seus pertences, nas duas malas� Enquanto descia as escadas, contemplou com certo saudosismo o ambiente à sua volta� Morara ali por pouco mais de uma semana, mas quantas coisas haviam mudado em seu íntimo naquele bre-ve espaço de tempo? O Marcelo que partia era totalmente diferente do Marcelo que chegara�

Diz uma tradição popular que se a pessoa mudar em um dia chuvoso, será bem sucedida e ficará muito tempo na-quele lugar�

Por volta do meio-dia os céus escureceram� Um vento gelado soprava do sul� Assim que Marcelo passou pela tri-lha ladeada de flores e trancou o portão, os primeiros pin-gos começaram a cair� Precisou andar a passos rápidos para chegar à sua nova casa e assim que nela entrou, parecia que havia um dilúvio desabando do lado de fora�

Ainda era estranho aquele ambiente para ele� Os mó-veis com cheiro de novo deixavam o ambiente carregado� Mas, mesmo assim, Marcelo gostou de seu novo lar� A

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casa realmente tinha ficado bonita, mais aconchegante sem aquela decoração futurista� Ainda havia muito a ser feito e organizado, mas com o tempo tudo iria se ajeitando�

Felizmente a chuva deu uma trégua, diminuindo para um breve chuvisco� Contundo a temperatura estava cain-do vertiginosamente� Marcelo sabia que isso não seria um empecilho para as crianças irem ao projeto� Ele precisava ir, afinal, mesmo com justificativa não havia comparecido nos dias anteriores� Bia ainda não tinha voltado para ajudar, então com certeza haveria algo para ele fazer� Vestiu a pri-meira camisa e calça que encontrou na mala e partiu�

De fato todas as crianças vieram, empolgadas como sempre�

As professoras do primeiro período, dona Joana e Caroli-na, já haviam conduzido suas turminhas para as salas de aula� Porém, dona Joana lembrou-se que não dera uma informação para Marcelo então retornou até a recepção onde ela o deixa-ra organizando alguns documentos com a ajuda de Fernando� Foi então que algo totalmente inesperado aconteceu�

– Estão precisando de mais um voluntário? – perguntou Lucas com uma voz sonora entrando no recinto�

A princípio ninguém parecia esboçar uma reação� Ape-nas fitavam a figura alta e magra parada ainda na porta�

Dona Joana foi a primeira a reagir� Chorando, tomada pela emoção, aquela senhora simplesmente correu até Lu-cas e o abraçou�

– Lucas! Você está de volta! Graças a Deus! – dizia ela entre soluços�

Lucas retribui-lhe o abraço também profundamente emocionado�

– Acho que não foi uma boa ideia ter aparecido de re-pente� – disse ele enquanto a boa senhora ainda continuava

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pendurada a seu pescoço, chorando, repetindo “Lucas está de volta�”

Até Marcelo se emocionou diante dessa cena� Para ele o retorno de Lucas era importante, mas para aquela senhora ele sabia que significava muito mais� Fernando e Marcelo o abraçaram assim que dona Joana deu-lhes oportunidade�

De repente, andando ainda meio tímidos, surgiram na porta os alunos da turma B – que haviam estudado com Lucas no ano anterior� Quando ouviram o som do nome do antigo mestre, pronunciado por dona Joana, não se contive-ram e vieram ver o que estava acontecendo� E mais uma vez todos na sala se emocionaram, ao ver vinte e cinco crianças tentando abraçar o querido professor ao mesmo tempo�

– Oi, meus amigos! Eu também senti falta de vocês� – dizia Lucas enquanto abraçava um por um�

Pela próxima hora, nada estava normal no projeto� To-dos queriam conversar com Lucas� Por sua vez ele também queria saber como tudo estava caminhando e realmente fi-cou muito feliz por ver que mesmo sem ele aquelas pessoas tinham seguido com o projeto�

– Muito Obrigado, por acreditar nesse trabalho e não desistir dele mesmo em condições adversas�

No fim do dia, Marcelo e Lucas foram embora cami-nhando� Ambos estavam felizes� Não era apenas o retorno de Lucas que eles celebravam, mas também a amizade de infância que era reatada� Havia uma afinidade tão grande entre eles, que era como se nunca tivessem se separado� Também estavam cheios de planos para o futuro� Lucas es-tava felicíssimo que o amigo tivesse abraçado aquela causa�

Marcelo estava surpreso que Lucas ainda não tivesse ido até Curitiba para procurar Elisa� Mas a verdade é que os meses sem alimentação deixaram Lucas muito fraco, ele

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precisou visitar o hospital e tomar soro e vitaminas� Ele só havia recebido alta no dia anterior�

Naquela tarde, ainda contra a vontade de sua mãe, ele viera para Cianorte para organizar as coisas, para que tudo estivesse perfeito para quando Elisa voltasse� Ele pretendia ir para Curitiba no dia seguinte�

Eles pararam em frente a casa branca� Lucas olhou por um momento para seu antigo lar� Era impossível dizer o que se passava em sua mente naquele momento� Apenas sua expressão traiu alguns sentimentos: arrependimento�� saudade�� esperança��

Marcelo estendeu-lhe a chave da casa� Sua missão esta-va cumprida�

O sol já estava se pondo, quando Marcelo finalmente entrou em casa� Lá fora o vento uivava� Bia tinha vindo com ele para ver como a casa tinha ficado depois da mon-tagem dos móveis�

– Ficou magnífico, Marcelo!– Que bom que você gostou! Quer dizer, só ficou bom

porque você me ajudou a escolher! – Não foi nada, fiquei feliz em ajudar� – disse ela en-

quanto contemplava o visual cheio de simplicidade, mas aconchegante da sala de estar�

– Por favor, não se ofenda com minha pergunta, mas quando você contou, há alguns dias, de seus sonhos de viagens, de ser uma grande executiva�� Você ainda pensa nisso?

Bia olhou nos olhos de Marcelo por um momento e en-tão desviou seu olhar para a janela�

– Honestamente eu não sei o que fazer de agora em dian-te� Aqueles sonhos eram meu mundo� Tudo o que queria�

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Mas as dificuldades pelas quais passei me mudaram com-pletamente� Não quero dizer que desisti dos meus sonhos, mas que eles mudaram� É como se viajar, conhecer lugares, não fosse o que me realizaria realmente�

– Entendo o que você quer dizer� Pode contar comigo para ajudá-la, independente do caminho que decidir escolher�

– Obrigada� Aliás, tenho que te agradecer por ter me fei-to ver a vida de uma forma diferente� Você me ajudou a sair do meu quarto escuro� Eu podia não estar fechada como o Lucas, mas por dentro tinha os mesmos sentimentos�

Marcelo apenas a olhou por um breve momento�– Sabe, quando li as palavras de meu avô me lembrei

de seu avô Afonso, que tantos conselhos me deu desde que cheguei� Ele estava certo em muitas coisas�

– Tipo?– Assim que mudei para cá, ele questionou o porquê de

eu ser sozinho, de não ter ninguém� Ele disse que eu en-contraria uma pessoa nessa cidade, com a qual pudesse me casar� Na verdade eu estava sozinho, porque eu era uma pessoa assolada por muitos fantasmas, era difícil suportar até a mim mesmo�

Bia apenas escutou com uma expressão confusa, não entendendo onde ele queria chegar�

– Mas o pouco tempo que passei aqui já me transfor-mou em uma pessoa melhor� Olho no espelho e posso ver o quanto mudei� E há algo que não posso negar Bia� Quando eu te disse que você foi a melhor coisa que me aconteceu desde que cheguei a Cianorte, eu não estava brincando� Eu não consigo mais me imaginar vivendo em um lugar onde você não esteja, onde você não faça parte da minha vida� Foi por isso que quis continuar mo-rando aqui�

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Não havia mais confusão no rosto de Bia� Em seus olhos podiam se ver, que os seus sentimentos estavam em sintonia com os de Marcelo�

– Então, está decidido a criar raízes aqui? – perguntou ela com um sorriso�

– Por que, não? Parece uma ótima cidade para viver�– Marcelo, você também é muito importante para mim!

Não tenho palavras para dizer o quanto estou feliz por você fazer parte de minha vida�

– Nunca ouvi falar da existência de minas de pedras preciosas em Cianorte, mas eu acredito que encontrei um diamante�

– Você acha que é um bom diamante?– Não entendo muito de joias, mas posso dizer que é um

diamante muito valioso, o qual eu quero ter comigo pelo resto da minha vida – respondeu Marcelo enquanto beijava aquela que com certeza era a mulher da sua vida�

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ePílogo

Elisa havia trabalhado o dia inteiro no restaurante� Che-gou em casa com os pés doloridos de andar servindo as me-sas� O restaurante estava muito movimentado� Tomou um banho para relaxar e ao mesmo tempo se aquecer� Vestiu um suéter e uma calça de moletom e largou-se na cama, fechan-do os olhos, tentando acalmar seus sentimentos� Ela estava se sentindo muito triste� A onda de esperança que a invadiu há uma semana já se fora� Bia e Marcelo podiam descobrir a verdade, mas Lucas aceitar e querer ela de volta era outra coisa� Seus pensamentos voavam enquanto ouvia o som da música que Victor tocava na varanda�

Contos de Fadas� Parecia lembrar-se das palavras do pa-dre em seu casamento� “Como ser Feliz para sempre?” A sua felicidade durou apenas um ano� Ela se sentia a pior das criaturas, como se não tivesse o direito de ser feliz� Sempre em sua vida fora assim� Quando pensava ter conquistado o que queria, algo acontecia e lá estava ela novamente com um vazio imenso dentro de si�� Ela aceitara viver perdendo� In-ternalizara dentro de si a imagem de filhote sofrido e despro-tegido que nunca tinha uma porção generosa de felicidade�

Durante toda a semana havia esperado por Lucas� Será que ele se lembrava dela? Sentiria sua falta como ela sen-tia a falta dele? Sem Lucas faltava uma metade de seu ser� Mas ela não queria ter esperanças para vê-las despedaçadas� Viveria um dia de cada vez, como havia feito durante os últimos seis meses em que esteve longe dele, pensou�

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Passaram-se alguns minutos, ela estava quase dormindo quando percebeu que, na varanda, a melodia que Victor to-cava foi interrompida� Seu coração bateu loucamente, quase saindo pela boca quando o ouviu gritando animadamente:

– Tio Lucas! Tio Lucas!Lucas�� Seria possível ou ela estava sonhando?– Oi, Victor! Como você está garotão? Vem cá e me dê

um abraço�Não era sonho� Aquela era a voz de Lucas� Elisa queria

sair correndo daquele quarto, para contemplar seu rosto, de que tanto sentira falta, mas suas pernas simplesmente esta-vam paralisadas� O máximo que conseguiu foi se sentar, a emoção tomando conta de cada célula de seu corpo� Mas precisava se controlar� Lucas estava ali, mas não significava que ainda a amava�

– Senti tanto a sua falta, tio Lucas! – ela ouviu Victor falando�

– Eu também, Victor! E pelo que vejo você está tocando muito bem��

– É, eu toco todos os dias! Você quer ver a tia Elisa?– Quero sim! Ela está em casa?– Ela está, tio Lucas� Pode entrar�Ela ouviu o som de seus passos se aproximando� – Elisa? – ele chamou procurando por ela� Mas sua voz

estava sufocada na garganta� Ela não conseguia responder� Parecia presa em uma espécie de transe� Então finalmente ele a achou�

– Elisa! – exclamou ele, surgindo na porta� Estava mais magro, mais envelhecido�� Mas ainda era

o seu Lucas� Aquele a quem sempre amaria� Ele trazia um belo buquê de rosas vermelhas nas mãos� Aproximou-se dela devagar� Tinha os olhos cheios de lágrimas� Ela pensou

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que iria desmaiar� Tantas emoções num só momento�� Dor, esperança, alegria, saudade��

Ele ajoelhou-se diante dela segurando suas mãos cale-jadas pelo trabalho� O olhar profundo derramando todo o amor que sentia� Ela queria desesperadamente pedir para que ele não fizesse isso� Mas ainda não conseguia mover um só músculo do corpo�

– Minha doce Elisa! Eu fui um tolo� Sei que a magoei profundamente� Fui enganado, mas isso não diminui a mi-nha culpa� Eu devia ter acreditado em seu amor� Ter te con-tado tudo� Mas eu estava cego pelos ciúmes�� pela raiva� Por favor, me perdoe! Eu não devia ter agido com você da-quela maneira� Eu fui tão injusto� – ambos choravam – eu estou te implorando, me perdoe, Elisa! Eu te amo, eu sem-pre te amei!

Finalmente ela conseguiu reagir� E se atirou em seus braços� Lágrimas de alívio e felicidade�

– Não há nada para perdoar! Eu também amo você! – disse Elisa, beijando-o�

– Eu não sei viver sem você, Elisa! Eu vim buscá-la� – disse ele enquanto tirava uma delicada aliança do bolso para colocar em seus dedos�

– É a mesma? – exclamou Elisa surpresa, olhando a aliança que um dia deixara cair entre as azaleias� – Você a achou?

– Sim� Foi a primeira coisa que encontrei ao chegar à nossa casa� Acredito que havia chovido bastante, e seja lá qual foi o local em que ela estava, as águas a levaram até a trilha para o portão�

Elisa estava sem palavras� As lágrimas continuavam a rolar por sua face� Finalmente ela conseguiu falar enquanto Lucas a abraçava�

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– Você disse nossa casa? Mas eu a vendi��– Digamos que eu a comprei de volta� Meus pais guar-

daram o dinheiro que você deu a eles da venda� E o Marcelo achou justo vender pelo mesmo preço�

– E o Marcelo vai morar onde?– Digamos que ele será nosso novo vizinho� Ele com-

prou a casa do Hugo�Após uma pausa ela perguntou:– Você descobriu quem mandava as cartas?– O Marcelo e a Bia descobriram� Se não fosse por eles,

eu não estaria aqui – disse ele�– E quem era?– O Hugo! Difícil de acreditar, não?– O Hugo?! Mas ele sempre foi seu amigo!– Não, Elisa! Ele só fingiu que era meu amigo� Mas acho

que não vou encontrá-lo tão cedo� Ele e a Susana foram em-bora da cidade, sem deixar endereço� Devemos muito ao Marcelo� Se não fosse por ele jamais saberíamos a verdade�

– Sim! Ele foi nosso anjo da guarda! Eu acho que para recompensá-lo, poderíamos deixar ele escrever nossa histó-ria�� o que você acha?

– Estou plenamente de acordo�Enquanto Elisa fazia as malas, Lucas conversou com

Cris e Victor�– Tio Lucas, mamãe disse que logo iremos visitar vocês�

Você me leva para conhecer a sua escola de música?– É claro, Victor! – Legal!Lucas tirou um pequeno embrulho que trazia no carro e

entregou para Victor�– Eu sei que você cuidou muito bem da tia Elisa, então

trouxe um presente para você�

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Victor sorriu quando ao desembrulhar viu que era uma flauta�

– Obrigado, Tio Lucas� – disse ele, abraçando seu antigo professor�

E depois voltando se para Cris:– Cris, obrigado por tudo o que você fez pela Elisa�– Era o mínimo que eu podia fazer� Ela é minha melhor

amiga� E Você não teve culpa, Lucas, de nada� Os dois fo-ram vítimas�

– Mesmo assim quero lhe agradecer� O que você fez não tem preço� Se precisar de algo, pode contar comigo�

Nesse momento, Elisa chegou à sala trazendo seus pou-cos pertences�

– Obrigada, Cris, por tudo! – disse enquanto abraçava a amiga�

– Sejas Feliz, Elisa! Minutos depois, Elisa e Lucas deixavam Curitiba� Seus

olhares se cruzaram cheios de esperança, cheios de sonhos para o futuro� As lágrimas e as dores pertenciam ao passado�

dados internacionais de catalogação na publicação (cip ... · a noite havia sido longa a cama...

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