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Da Revolução Científica à Tecnociência: Uma abordagem filosófica e sócio-histórica da ciência moderna Por Maysa Leal de Oliveira [email protected] Introdução Esse trabalho se dedica a uma compreensão mais detalhada acerca do que seja a própria ciência, propondo alguns entendimentos fundamentais sobre a natureza da atividade científica moderna. Com o modesto objetivo de pintar um cenário geral e fornecer alguns elementos introdutórios para a compreensão do atual debate sobre as ciências, tenta acompanhar os desenvolvimentos da ciência moderna, desde a revolução científica, de seu processo de institucionalização na Europa, como ciência acadêmica sob financiamento do Estado, até tornar-se pós-acadêmica, com a mudança forte operada nas condições sociais e institucionais de investigação. Passa pelo entendimento do ethos mertoniano, pelos conceitos de ciência normal e pós-normal, até chegar ao conceito de tecnociência e às ideias que o sustentam. Sob a perspectiva dos Science Studies ou Estudos sobre as Ciências 1 , integra contribuições históricas, abordagens sociológicas e reflexões filosóficas, tentando uma aproximação mais verossímil da temática científica e o entendimento de suas tensões e complexidades. Não poucas vezes o conhecimento científico nos é apresentado como o conhecimento verdadeiro, em oposição ao conhecimento errado ou duvidoso. Outras vezes o conhecimento científico se apresenta como resultado de experiências e investigações, em oposição ao que aprendemos espontaneamente. Também é comum a noção de que se trata de um conhecimento medido, quantificado, privilégio de sábios e iniciados. Ou ainda, a ideia de que ciência é, simplesmente, o que os cientistas fazem. Nenhuma dessas definições, no entanto, é satisfatória. Não existe um conceito único e consensual sobre o que seja ciência. O que existe são noções que variam ao longo do tempo e do espaço. Além disso, existem sociedades e períodos históricos que produziram ou produzem mais e melhor ciência do que outros, ou ciência de um ou outro tipo. Isso significa que ciência (conhecimento em latim) não é algo simples, “que se possa definir com facilidade recorrendo a uma boa enciclopédia”. A ciência é um fenômeno social e humano bastante complexo e variadoe suficientemente importante, (pelo lugar central que ocupa no centro das sociedades e pelo impacto de seus resultados tecnológicos em todas as esferas da vida) para gerar todo um esforço para compreendê-la. 2 É necessário compreender de antemão, que “o homem é um ser em constante processo de se produzir3 e que são das suas tentativas de compreender o mundo e atribuir significados à realidade que ele cria o conhecimento 4 . A racionalidade humana depende da maneira como o homem entra em contato com o mundo que o cerca; o que equivale a dizer 1 O que se convencionou chamar science studies ou estudos sobre as ciências refere o amadurecimento de uma área de pesquisa que vem se configurando desde os anos de 1960 e que se encontra relativamente estabelecida no Brasil se apresentando hoje, como um campo sinérgico e relativamente harmônico de diversidades. Um espaço onde filósofos, cientistas, historiadores, sociólogos e antropólogos se encontram. Onde cada uma dessas áreas se relaciona e se enriquece em contato com as outras fundamentando o atual debate sobre as ciências. 2 SCHWARTZMAN, Simon. Ciência da ciência. Revista Ciência Hoje, SBPC, vol. 2, nº 11, Março/Abril, 1984. P. 54-59. 3 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. P. 116. 4 COSTA, Maria Cristina Castilho. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. P. 05.

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Page 1: Da Revolução Científica à Tecnociência: Uma … · Da Revolução Científica à ... 1 O que se convencionou chamar science studies ou estudos sobre as ciências ... Um repolho

Da Revolução Científica à Tecnociência:

Uma abordagem filosófica e sócio-histórica da ciência moderna Por Maysa Leal de Oliveira

[email protected]

Introdução

Esse trabalho se dedica a uma compreensão mais detalhada acerca do que seja a

própria ciência, propondo alguns entendimentos fundamentais sobre a natureza da atividade científica moderna. Com o modesto objetivo de pintar um cenário geral e fornecer alguns elementos introdutórios para a compreensão do atual debate sobre as ciências, tenta acompanhar os desenvolvimentos da ciência moderna, desde a revolução científica, de seu processo de institucionalização na Europa, como ciência acadêmica sob financiamento do Estado, até tornar-se pós-acadêmica, com a mudança forte operada nas condições sociais e institucionais de investigação. Passa pelo entendimento do ethos mertoniano, pelos conceitos de ciência normal e pós-normal, até chegar ao conceito de tecnociência e às ideias que o

sustentam. Sob a perspectiva dos Science Studies ou Estudos sobre as Ciências1, integra

contribuições históricas, abordagens sociológicas e reflexões filosóficas, tentando uma aproximação mais verossímil da temática científica e o entendimento de suas tensões e complexidades.

Não poucas vezes o conhecimento científico nos é apresentado como o conhecimento verdadeiro, em oposição ao conhecimento errado ou duvidoso. Outras vezes o conhecimento

científico se apresenta como resultado de experiências e investigações, em oposição ao que

aprendemos espontaneamente. Também é comum a noção de que se trata de um

conhecimento medido, quantificado, privilégio de sábios e iniciados. Ou ainda, a ideia de que ciência é, simplesmente, o que os cientistas fazem. Nenhuma dessas definições, no entanto, é

satisfatória. Não existe um conceito único e consensual sobre o que seja ciência. O que existe

são noções que variam ao longo do tempo e do espaço. Além disso, existem sociedades e períodos históricos que produziram ou produzem mais e melhor ciência do que outros, ou

ciência de um ou outro tipo. Isso significa que ciência (conhecimento em latim) não é algo

simples, “que se possa definir com facilidade recorrendo a uma boa enciclopédia”. A ciência é

“um fenômeno social e humano bastante complexo e variado” e suficientemente importante, (pelo lugar central que ocupa no centro das sociedades e pelo impacto de seus resultados

tecnológicos em todas as esferas da vida) para gerar todo um esforço para compreendê-la. 2

É necessário compreender de antemão, que “o homem é um ser em constante processo

de se produzir”3 e que são “das suas tentativas de compreender o mundo e atribuir

significados à realidade que ele cria o conhecimento”4. A racionalidade humana depende da

maneira como o homem entra em contato com o mundo que o cerca; o que equivale a dizer 1 O que se convencionou chamar science studies ou estudos sobre as ciências refere o amadurecimento de uma área de pesquisa que vem se configurando desde os anos de 1960 e que se encontra relativamente estabelecida no

Brasil se apresentando hoje, como um campo sinérgico e relativamente harmônico de diversidades. Um espaço onde filósofos, cientistas, historiadores, sociólogos e antropólogos se encontram. Onde cada uma dessas áreas se

relaciona e se enriquece em contato com as outras fundamentando o atual debate sobre as ciências.

2 SCHWARTZMAN, Simon. Ciência da ciência. Revista Ciência Hoje, SBPC, vol. 2, nº 11, Março/Abril, 1984. P. 54-59.

3 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. P.

116. 4 COSTA, Maria Cristina Castilho. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. P. 05.

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que “a razão humana é histórica e vai sendo tecida na trama da existência humana”5. À

historicidade da razão humana corresponde a historicidade da ciência; que “representa sempre a forma mais elevada de captação da realidade pela mente humana, que cada época se mostra

capaz de produzir” 6. Se aceitarmos que sempre foi possível distinguir do conhecimento

vulgar e quotidiano, um outro tipo de conhecimento, derivado “da aplicação de métodos investigatórios e interpretativos”, (mesmo aqueles que do nosso ponto de vista atual, lhes atribuímos o caráter de mágicos); será possível afirmar que “mesmo nas condições mais

primitivas de cultura houve ciência” 7. Nas palavras de Álvaro Vieira Pinto:

“A historicidade essencial do método é o conceito fundamental que nos deve

guiar na compreensão da ciência e nos servir de regra para discernir em cada etapa

civilizatória o que era aí produto do saber empírico, popular, tradicional, não

científico, resultado de crenças injustificadas ou de opiniões individuais, em

contraposição ao que, para essa fase histórica, já possuía o caráter de ciência.

Assim, nas civilizações primitivas a interpretação mágica da realidade, património

de restrito círculo sacerdotal, que a detinha quase sempre na forma de saber

esotérico, era a manifestação, então única possível, da ciência nas condições

históricas vigentes. Tanto assim era que seus detentores mereciam socialmente o

reconhecimento de sábios. Pouco importa que de nossa perspectiva atual apareçam

ignorantes do que para nós são agora as verdadeiras funcionalidades da

natureza.”8

Podemos então dizer que, na sua forma mais pura e grandiosa, a ciência se apresenta como uma vertente básica da natureza humana, ligada à busca primordial do homem de compreender o universo e o seu lugar dentro dele. É importante guardar essa dimensão porque num sentido mais restrito e aquém das representações que qualquer tipo de civilização ou grupo humano faz do mundo por via de suas próprias razões, o termo ciência pode, ainda, designar um outro tipo de fenônemo: a ciência moderna; ou seja, uma particular “representação do mundo adotada pela civilização ocidental, em especial a partir do século

XIV” 9. De acordo com Ziman, embora atitudes científicas como a criatividade técnica, a

acuidade filosófica, a perícia matemática ou a curiosidade em relação aos fenômenos naturais possam ser “prontamente encontrados em qualquer cultura que tenha deixado um registro de seus pensamentos e atividades”, nunca antes da Europa, esses fatores tinham-se combinado tão sinergicamente. Os ingredientes, ali e então, “misturados nas proporções exatas e submetidos às necessárias temperaturas religiosas e pressões políticas”, reagiram e

combinaram-se para formar um novo composto cultural. 10

A Ciência Moderna

A compreensão da ciência moderna pede-nos uma atenção mais detalhada no que se refere ao contexto sócio-histórico de sua evolução. Antes de seu advento, durante muito tempo, predominou na Europa uma visão orgânica do mundo, em que os fenômenos

materiais e espirituais eram considerados interdependentes, as necessidades individuais eram subordinadas às da comunidade e os objetivos da ciência eram a sabedoria, a compreensão da

ordem natural e a vida em harmonia com ela. De acordo com Frijot Capra, a visão de mundo medieval assentava-se numa estrutura conceitual estabelecida por Tomás de Aquino (1227-

5 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. P.

116. 6 VIEIRA PINTO, Álvaro Ciência e Existência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. P. 92 7 Ibid Idem. P. 92.

8 Ibid Idem. P. 92.

9 FOUREZ, Gerárd. A Construção das Ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. P. 155

10 ZIMAN, John. A Força do Conhecimento. P. 281.

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que, no século XIII, “combinou o abrangente sistema da natureza de Aristóteles com a teologia e a ética cristãs”. Baseada na razão e na fé esta perspectiva permaneceu inconteste durante toda a Idade Média, sendo que a principal finalidade da ciência medieval era “compreender o significado das coisas e não exercer a predição ou o controle”. A investigação dos “desígnios subjacentes nos vários fenômenos naturais, consideravam do mais alto

significado as questões referentes a Deus, à alma humana e à ética” 12

. Para compreender as

mudanças que sucederam, há um interessante trabalho de Gerárd Fourez, que pode ser bastante útil. Trata-se de uma contrução teórica simplificada, como reconhece o próprio autor, que deixa de lado numerosos aspectos, mas que coloca em relevo um enfoque particular do problema científico que nos interessa considerar. Fourez nos conta que:

“Há cerca de mil anos, e até aproximadamente o século XII, as pessoas, no Ocidente, tinham uma visão do mundo fortemente ligada à sua existência nas

aldeias autárquicas. Elas nasciam, viviam e morriam no mesmo ambiente humano.

Para elas, os objetos não eram inanimados, pois faziam parte do universo humano

no qual viviam. Um carvalho, por exemplo, não era apenas “um carvalho

qualquer”, mas ligava-se sempre a uma história particular, à aldeia, a seus

acontecimentos. Um repolho ou um par de sapatos não eram, como em nossa

sociedade moderna, mercadorias impessoais, mas o repolho produzido por fulano

ou os sapatos fabricados por beltrano” 13

.

Nesta perspectiva, era praticamente impossível, falar de um objeto puramente material, uma vez que a natureza e o mundo como um todo estavam humanizados. Em um mundo assim, era quase impossível imaginar o olhar frio de um observador científico. Esse olhar supõe com efeito uma certa distância como se houvesse de um lado, o observador e de outro, a natureza que se vê. Ora, no ambiente das aldeias autárquicas, o observador e a natureza podiam ser considerados, pelo menos em uma primeira aproximação, como um todo

unificado 14

. Ocorreu, porém, em poucos séculos, uma transformação profunda e para

explicá-la Fourez recorre à imagem do comerciante burguês:

“Esse comerciante é em primeiro lugar um ser sem raízes. Vive uma boa parte de

sua existência fora do universo humano no qual nasceu. Vê coisas estranhas,

desconhecidas, coisas que, aliás, ele tentará contar quando retornar a sua casa.

Mas, onde é a sua casa? O universo aparece aos seus olhos como um lugar cada vez

mais neutro e com uma estrutura cada vez menos humana. Não se centra mais em

torno da aldeia natal, onde tudo é marcado por objetos familiares, mas, trata-se de

um universo onde se pode caminhar em direção ao norte, ao sul, ao leste ou ao

oeste, ou seja, a direções definidas de maneira bastante abstrata. É um mundo em

que todos os lugares se equivalem, um mundo de pura extensão de onde vai poder

nascer a representação do espaço físico que conhecemos (...). Enquanto o camponês

não podia se imaginar fora de seu habitat, o comerciante começa a viver sozinho.

Além disso, é nessa cultura que vê difundir uma nova noção: a da vida interior. O

centro do universo não é mais a aldeia, uma exterioridade sempre animada pela

interioridade, mas torna-se interioridade pura, ligada ao indivíduo. (…) O 11 Tomás de Aquino apresentou a solução definitiva do problema das relações entre a razão e a fé tratando -as como duas ciências independentes, mas que apresentam às vezes o objeto material comum (a existência de Deus, a essência da alma, etc.): a filosofia e a teologia. A primeira funda-se no exercício da razão humana; a segunda, na revelação divina. A doutrina escolástica de Tomás de Aquino foi adoptada oficialmente pela Igreja Católica e se caracteriza, sobretudo, pela tentativa de conciliar o aristotelismo com o cristianismo. FERRARI, Márcio.

Tomás de Aquino: O mestre da razão e da prudência. Revista Escola On-Line, Editora Abril, nº 183 - junho/2005. www.revistaescola.abril.com.br. 12 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. P. 49-50 13 FOUREZ, Gerárd. A Construção das Ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. P. 156

14 Ibid Idem. P. 156-163

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comerciante observa costumes estranhos aos de sua aldeia; vê coisas que, para ele,

não possuem uma história: a sua observação torna-se cada vez mais fria.15

Ainda na descrição de Fourez, “enquanto nas aldeias tudo estava sempre ligado a vida das pessoas, a seus projetos, a sua vida afetiva e prática, o comerciante começa a falar de

eventos sem história”. É desse olhar impessoal e alheio que vai nascer a ideia de objetividade,

tão preciosa à ciência moderna; nasce como aquilo “que resta quando se despojou o mundo de tudo o quanto constitui a sua particularidade, do seu vínculo com este ou com aquele

indivíduo, este ou aquele grupo, esta ou aquela história”. Na perspectiva da história, “a

objetividade, longe de representar um olhar absoluto sobre o mundo, aparece como uma maneira particular de construí-lo. É a cultura dos comerciantes burgueses que institui a visão

de mundo em um agregado de objetos independentes dos observadores.” A linguagem da

objetividade pura, se ligaria “ao relato daqueles que podem contar o que viram a outros que

não partilharam a mesma história”. Não significa que ela represente mais fielmente a realidade; significa apenas que é uma representação do mundo transportável, porque

desligada da realidade mesma. É tão-somente “uma maneira de ver o mundo que permite

destacar aquilo que se vê da globalidade”. A objetividade aparece assim, como “a produção de uma cultura”, embora as descrições “objetivas” provoquem efetivamente a impressão de um

discurso universal. Além disso, Fourez destaca uma outra diferença fundamental entre a

mentalidade vivida na aldeia medieval e a nova visão de mundo formulada pelo comerciante

burguês. “Na aldeia autosubsistente da Idade Média, as pessoas se inserem. A mentalidade burguesa, pelo contrário, tenta dominar”. No universo burguês, que é também o da ciência, a

medida em que os objetos vão perdendo sua particularidade, vão também se tornando “objetos

de cálculo e de domínio”. Vejamos então, como a ciência moderna se desenvolveu, ligada à

ideologia burguesa e aos seus desejos de “dominar o mundo e controlar o meio ambiente” 16

.

Revolução Científica

As raízes da ciência moderna remontam ao processo de revolução científica iniciado com Nicolau Copérnico (1473-1543) e sua concepção heliocêntrica do universo. De acordo

com Capra, para Copérnico, a Terra não seria o centro do centro do universo, como se

acreditava até então, e sim, apenas “um dos muitos planetas que circundam um astro

secundário nas fronteiras da galáxia”. Em consequência, o homem não ocuparia a “orgulhosa posição de figura central da criação de Deus”. Esta concepção implicava em mudanças

radicais na compreensão do universo e do lugar do homem dentro dele. Sabedor de que sua

teoria “ofenderia profundamente a consciência religiosa de seu tempo”, Copérnico “retardou sua publicação até 1543, ano de sua morte” e mesmo assim, apresentou-a como apenas como

uma hipótese. “À Copérnico seguiu-se Johannes Kepler” (1571-1630) que, empenhado em

descobrir a harmonia das esferas, formulou “através de um trabalho laborioso com tabelas

astronômicas, suas célebres leis empíricas” sobre o movimento dos planetas, “as quais vieram corroborar o sistema de Copérnico”. Mas, “a verdadeira mudança na opinião científica foi

provocada por Galileu Galilei” (1564-1642), a quem se atribui o método científico de

investigação e o seu critério para a verdade, bem como a concepção moderna de

experimentação. 17

Conforme David e Arnold Brody, Galileu ingressou na Universidade de Pisa aos dezassete anos, onde estudou medicina, matemática, mecânica e hidrostática tendo sido discípulo de Ostilio Ricci, “cujos ensinamentos privilegiavam a aplicação prática dos

15 FOUREZ, Gerárd. A Construção das Ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. P. 156-163 16 Ibid Idem. P. 156-163

17 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. P. 49-50

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princípios matemáticos, o que condizia idealmente” com sua visão do universo e com “sua

habilidade como inventor” 18

. Foi responsável pelo aperfeiçoamento do telescópio e

influenciou na superação da velha cosmologia colaborando para estabelecer a hipótese de Copérnico como teoria científica válida. Segundo Capra, no entanto, as contribuições mais importantes de Galileu transcendem o domínio da astronomia, pois combinou “a experimentação científica com o uso da linguagem matemática para formular as leis da natureza por ele descobertas” e desde então, “a abordagem empírica e o uso de uma descrição matemática da natureza, tornaram-se as características dominantes da ciência no século XVII

e subsistiram como importantes critérios das teorias científicas até hoje” 19

.

Enquanto Galileu trabalhava em Itália, segue Capra, Francis Bacon (1561-1626) “descrevia explicitamente na Inglaterra, o método empírico da ciência”, tendo sido “o primeiro a formular uma teoria clara do procedimento indutivo – realizar experimentos e

extrair deles conclusões gerais, a serem testadas em novos experimentos” 20

. Foi por isso

chamado, na síntese de sua vida e obra publicada pela coleção Pensadores, “o primeiro dos modernos e o último dos antigos, inventor do método experimental, fundador da ciência moderna e do empirismo”. Nesta mesma síntese, lemos que teve uma vida contraditória “prejudicada por manchas de graves defeitos morais”, mas também, um papel histórico decisivo tendo lutado “a vida inteira pelo progresso das ciências da natureza”. Atacou frontalmente as escolas tradicionais de pensamento, particularmente a escolástica, “por sua esterilidade quanto aos resultados práticos para a vida do homem”; clamou por uma reforma total do conhecimento humano e compreendeu que vivia num tempo em que “as forças decisivas dos conflitos” eram as da inteligência e do conhecimento, pelo que, erigiu como

divisa máxima, “saber é poder” 21

. Para Bacon “o saber deveria ser concebido como um saber

ativo e fecundo em resultados práticos”. Contudo, não exigia que cada conhecimento particular da ciência tivesse imediatamente uma aplicação. “O que concebeu como ciência prática foi o saber em sua totalidade” que imaginou servindo à humanidade em geral em sua permanente luta com a natureza, em oposição à ciência concebida até então, como “contemplação de uma ordem de coisas eternas e perfeitas, supostamente criadas por um ser superior”. Nunca “chegou a descobrir qualquer coisa no domínio dos fenômenos naturais”,

mas deixou indicado em seu projeto não plenamente realizado, a Grande Instauração22

, um

novo caminho para o conhecimento científico 23

. De acordo com Capra, “o espírito baconiano mudou profundamente a natureza e o objetivo da investigação científica”, que passou ser dominar e controlar a natureza. “O antigo conceito da Terra como mãe nutriente foi 18 BRODY, David Eliot e BRODY, Arnold R. As Sete Maiores Descobertas Científicas da História. P.68 19 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. P. 49-50

20 Ibid Idem.

21 BACON (1561-1626): Vida e Obra. In BACON, Francis. Novum Organun ou Verdadeiras Indicações Acerca da interpretação da Natureza; Nova Atlântida. P. VI- X

22 “O plano de A Grande Instauração compreendia seis partes: a primeira era uma classificação completa das ciências existentes; a segunda, a apresentação dos princípios de um novo método para conduzir a busca da verdade; a terceira, a colecta de dados empíricos; a quarta, uma série de exemplos de aplicação do método; a quinta, uma lista de generalizações de suficiente interesse para mostrar o avanço permitido pelo novo método; a sexta, a nova filosofia que iria apresentar o resultado final, organizado num sistema completo de axiomas. Este vasto e ambicioso plano não foi realizado inteiramente por Bacon. Dele restaram a segunda parte, referente à metodologia, exposta em sua mais conhecida obra, o Novum Organum (publicado em 1620); o Dignitate et Augments Scientiarum (reformulação de O Progresso do Saber, feito em 1623), indicado pelo autor como devendo corresponder à primeira parte da Grande Instauração” e restou também uma “História Natural (terceira parte do plano original) mas muito distante de suas ambições”. BACON (1561-1626): Vida e Obra. In BACON, Francis. Novum Organun ou Verdadeiras Indicações Acerca da interpretação da Natureza; Nova Atlântida. P.

XI-XII

23 BACON (1561-1626): Vida e Obra. In BACON, Francis. Novum Organun ou Verdadeiras Indicações Acerca da interpretação da Natureza; Nova Atlântida. P. VI- X

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radicalmente transformado” em seus escritos e “desapareceu por completo quando a revolução científica” substituiu “a concepção orgânica da natureza pela metáfora do mundo

como máquina” 24

. Neste processo de suprema importância para o desenvolvimento subsequente da civilização européia, tiveram papéis decisivos René Descartes e Isaac Newton.

De acordo com Capra, Descartes (1596-1650) era um matemático brilhante cuja perspectiva filosófica foi profundamente afetada pelas descobertas da filosofia natural (como

inicialmente se chamava a física) e da astronomia 25

. Recusava-se a aceitar qualquer

conhecimento tradicional tendo se proposto a construir um novo sistema de pensamento. Com uma crença firme na “certeza do conhecimento científico”, sua vocação era “distinguir a verdade do erro em todos os campos do saber”. Tanto quanto Galileu, acreditava que a linguagem da natureza era matemática e para “executar seu plano de construção de uma ciência natural completa e exata” elaborou “um novo método de raciocínio” que apresentou em seu mais famoso livro Discurso do Método para Bem Conduzir a Razão e Procurar a Verdade nas Ciências. O ponto fundamental do método que desenvolveu é a dúvida. Duvidou de tudo o que podia submeter à dúvida até chegar a uma coisa de que não podia duvidar: a existência de si mesmo como pensador. Assim, chegou à sua famosa afirmação: Cogito, ergo sum (penso, logo existo). O método de Descartes é analítico e “consiste em decompor pensamentos e problemas em suas partes componentes e em dispô-las em sua ordem lógica” tendo se tornado “uma característica essencial do moderno pensamento científico” e provado “ser extremamente útil no desenvolvimento de teorias científicas e na concretização de complexos processos tecnológicos”. É sua geometria analítica que permite representar graficamente muitos dos fenômenos estudados atualmente pela ciência. Mas, por privilegiar “a mente em relação à matéria” Descartes acabou por concluir que as duas “eram separadas e

fundamentalmente diferentes”. Essa divisão acabou por engendrar uma dicotomia que separou

o que se chama de ciência do que se chama de filosofia, contrariando frontalmente a unidade do conhecimento da filosofia grega e provocando um efeito profundo em todo o pensamento

ocidental. Descartes pretendia uma ciência completa com certeza matemática absoluta mas

não executou ele próprio seu plano ambicioso. Quem “deu realidade ao sonho cartesiano e

completou a revolução científica foi Isaac Newton”. 26

Ainda segundo Capra, Newton (1642-1727) “desenvolveu uma completa formulação matemática da concepção mecanicista da natureza”, realizando “uma grandiosa síntese das

obras de Copérnico e Kepler, Bacon, Galileu e Descartes”. Sua física “forneceu uma consistente teoria matemática do mundo, que permaneceu como sólido alicerce do

pensamento científico” até o século XX. Através de um método completamente novo, “hoje conhecido como cálculo diferencial”, Newton formulou “as leis exatas do movimento para todos os corpos sob a influência da força da gravidade”. A aplicação universal dessas leis

conferiu-lhes grande significação; sendo “válidas para todo o sistema solar”, confirmavam “a

24 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. P. 49-50

25 Inicialmente, a compreensão e estudo dos fenômenos da natureza, eram interesse do que se chamava Filosofia Natural de onde derivou a disciplina científica hoje conhecida por Física. A distinção entre ciência e filosofia foi engendrada por Descartes no curso da revolução científica iniciada com Copérnico e que culminou com a grande síntese da ordem cósmica de Isaac Newton. “É interessante notar que a ligação inicial entre a filosofia e a ciência persistiu muito tempo na nomenclatura dos cientistas”. Newton apresentava-se como um filósofo natural; o subtítulo dos Principia afirma que se trata de uma obra de filosofia natural (Princípios Matemáticos de Filosofia Natural). “Não raro se encontram livros com o título de Filosofia Natural para se referir à Física. Até hoje temos reminiscências na classificação das Faculdades de Filosofia, onde podemos estudar não só a própria Filosofia, mas também encontramos cursos de matemática, física, química etc.” O próprio título Ph.D. (Doctor of Philosophy) retoma essa designação. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires.

Filosofando: introdução à filosofia. P. 157 26 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. P. 54-56

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visão cartesiana da natureza”. O universo era, de fato, “um gigantesco sistema mecânico que

funcionava de acordo com leis matemáticas exatas” 27

.

Boaventura Sousa Santos nos explica que o “firme estabelecimento da visão mecanicista do mundo”, aliado à crença cartesiana na “certeza do conhecimento científico” promoveu a universalização do paradigma que passo-a-passo serviu de inspiração a todas as outras disciplinas que foram se destacando do corpo da física. Conforme este autor, até o século XVIII, esse modelo de racionalidade desenvolveu-se somente no domínio das ciências

naturais estendendo-se, no século seguinte, às ciências sociais emergentes.28

Ao atingir a

discussão sobre os fatos humanos esse modelo de racionalidade científica tornou-se global. Uma nova visão do mundo e da vida que reconduziu a duas distinções fundamentais. De um lado, distinguiu “entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum”, o que o tornou um modelo totalitário na medida em que passou a negar, “o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”. Por outro lado, distinguiu entre “natureza e pessoa humana”. Com a total separação entre o ser humano e a natureza, esta última é interpretada tão-somente como “extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível; mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; não tem qualquer qualidade ou

dignidade que nos impeça de desvendar seus mistérios” 29

. O conhecimento já não é um saber

contemplativo como na antiguidade clássica, é um saber ativo, como desejou Bacon. Conhecer significa dominar, controlar a natureza. Do lugar central ocupado pela matemática também derivaram duas consequências principais, sobre as quais, o mesmo autor nos explica:

“Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo

rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer,

desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que

eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente

irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da

complexidade. O mundo humano é complicado e a mente humana não o pode

compreender completamente. Conhecer significa dividir, classificar, para depois

determinar relações entre o que se separou”30

.

Fundamentado nesses pressupostos a ciência moderna avançou “pela observação descomprometida e livre, sistemática e tanto quanto possível rigorosa dos fenômenos

naturais” 31

, tendo sido perfeitamente eficaz como “instrumento intelectual que permitiu à burguesia, em primeiro lugar, suplantar a aristocracia e, em segundo, dominar econômica,

politica, colonial e militarmente o planeta” 32

. Ao escrever sobre “a ciência como um bem cultural importado” Ziman afirma: 27 Ibid Idem. P. 58-59.

28 Ao filósofo francês Augusto Comte (1798-1857) é atribuído a condição de fundador da sociologia. Politécnico, ensinava matemática e elaborou uma filosofia que se apresentava como uma filosofia das ciências.

De um lado, procede “uma classificação das ciências, segundo uma ordem de complexidade crescente; de outro

formula a lei dos três estados, que sucessivamente, caracterizam a história humana: o estado teológico no qual

Deus é a referência obrigatória do homem; o estado metafísico, no qual a ignorância da realidade e a descrença

num Deus levam a crer em relações misteriosas entre as coisas; enfim, o estado positivo, única maneira para o

espírito humano apreender a realidade na sua plena consistência ou positividade.” O positivismo de Comte

consiste em “aplicar às ciências sociais os métodos utilizados nas matemáticas para extrair leis que regem o

desenvolvimento das sociedades”. Larousse Cultural, vol. 7, P. 1533

29 SOUSA SANTOS, Boaventura. Um Discurso sobre a Ciência. P. 12-15 30 Ibid Idem. P. 15

31 Ibid Idem. P. 13

32 FOUREZ, Gerárd. A Construção das Ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. P. 163

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“Juntamente com a locomotiva a vapor, a metralhadora e a Bíblia Cristã, a Ciência

foi exportada da Europa nos séculos XIX e XX, e importada pelas outras nações

como um componente secundário da civilização ocidental. Na era do Colonialismo e

do Imperialismo, não houve tentativa de transplantarem os métodos científicos e

ideias ocidentais para o cabedal filosófico e técnico pré-existentes em países como a

Índia ou Japão: o sistema completo, conforme era então exposto e praticado em

Cambridge, Paris e Berlim, deveria ser aceito como um todo. A segunda lei da

termodinâmica constituía parte integrante do pacote da máquina a vapor”33

.

A ciência moderna seguiu assim, por mais de três séculos, com uma confiança tranquila e sem reservas provando suas virtudes de verificação e descoberta relativamente a todos os outros modos de conhecimento. De fato, proporcionou-nos progressos técnicos espantosos e produziu bens múltiplos. A multiplicidade e o brilho das fecundas descobertas que surgiram de toda a parte alimentaram magníficas esperanças no progresso científico e uma fé quase fanática na ciência e nos seus resultados e benefícios. É resultado desse deslumbramento (de que a filosofia positiva foi imagem como adiante notaremos) a mentalidade que então se formou, no século XIX, em face da ciência. Conforme Sousa Santos, “a arte, a religião, a vida afetiva e a vida quotidiana que não se deixam reduzir à obediência às normas físico-matemáticas”, vão sendo “desacreditadas como desprovidas de sentido” e instaura-se o que Hilton Japiassu referiu como “uma tirania pretensiosa de

submeter a totalidade dos valores à jurisdição da verdade científica” 34

. Compreende-se,

contudo, o estado de espírito que então se formou. De acordo com Fernando de Azevedo, faltava ao homem do século XIX, “não só a experiência vivida mas a perspectiva histórica para analisar os problemas sociais e humanos, morais e políticos que forçosamente teria de

levantar, em todos os domínios” 35

, a aceleração vertiginosa do progresso científico. O

próprio avanço no conhecimento e suas admiráveis descobertas se encarregariam de revelar as fragilidades dos pilares em que se funda, desencadeando um período de crise que abriria espaço para uma profunda reflexão epistemológica sobre o conhecimento científico.

De uma Ciência Acadêmica à Tecnociência

J. Ziman nos conta que na “segunda metade do século XVIII a atividade científica era

amplamente respeitada e recebia incentivo oficial”. Apesar disso, “os cientistas ativos, em sua maior parte não passavam de diletantes, vivendo às custas de outros meios de sustento”. Essa

terá sido “uma época de paz e prosperidade relativas”, conforme Ziman descreve. “Médicos,

religiosos e os membros da burguesia em geral levavam uma vida tranquila, o que lhes

possibilitava o tempo e as facilidades necessárias à realização de pesquisas particulares”. Era moda “distrair-se com experiências sobre química ou eletricidade, ler essa ou aquela obra

científica popular, comparecer a uma reunião da Real Sociedade”. Foi o período chamado “a

Idade do Iluminismo”. Uma “época também de avanço técnico na Engenharia e na Indústria – mas esses eram mundos diversos” – explica Ziman – “bem pouco relacionados com o domínio

da filosofia natural”. A partir da primeira metade do século XIX a atividade científica

institucionalizou-se, as academias e universidades tornaram-se os meios sociais encorajadores

da produção do conhecimento e o labor científico “tornou-se uma atividade social diferenciada”. Muitos entre os que prestaram alguma contribuição à ciência pura engajaram-se

no “trabalho acadêmico como professores, ou como professorandos”. Ainda segundo Ziman,

quando “se dizia de alguém que era cientista (e essa palavra foi inventada em 1840 por William Whewell), isso quase implicava automaticamente em dizer que essa pessoa teria um

cargo acadêmico”. A concentração da investigação nestes ambientes sociais sob

33 ZIMAN, John. A Força do Conhecimento. P. 281 34 JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade cientifica. P. 73

35 AZEVEDO, Fernando (org). As Ciências no Brasil. 2 vols. P. 11

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patrocínio do Estado assegurou à ciência acadêmica 36

– como Ziman a designa – uma

relativa “autonomia diretamente associada, para muitos autores, à possibilidade de maior

cientificidade e credibilidade” 37

.

Conforme M. M. de Araújo Jorge, as condições sociais “de acentuada independência face às pressões dos mercados e da procura social em que se podia realizar a investigação acadêmica” concorreram para que, na primeira metade do século XX, “filósofos de inspiração positivista” elaborassem leituras modernistas de uma ciência imparcial, neutra, objetiva e racionalmente fria, “tomando como base de apreciação o conhecimento (sobretudo da física) exposto nos livros”. Essas leituras consolidaram a “visão clássica de uma separação forte entre a ciência e a sociedade”. Visão responsável, em parte, “pela ideia de um saber científico puro, desligado de qualquer interesse e aplicação prática”, embora na realidade, sempre tenha havido “uma proximidade, muitas vezes estreita, entre os cientistas e os meios políticos,

empresariais e industriais” 38

. Esta “visão recebida” (ou “ortodoxa”) da natureza da ciência

constitui uma constante na história do pensamento moderno e formou-se a partir do “positivismo, tomado em geral, como uma atitude renitente à especulação filosófica e propenso a considerar a ciência como forma de conhecimento não só modelar, mas exclusiva” 39

. Neste início do século XX é o positivismo (ou empirismo) lógico que passa a representar

esta consciência retórica dominante. De acordo com Boaventura de Sousa Santos:

“O positivismo lógico mantém quase o monopólio da filosofia da ciência até os anos

de 1960. Essa corrente de pensamento de inspiração positivista surgiu na Europa no

início do século XX com o Círculo de Viena liderado por Carnap e Schlick. Além de

acreditar na possibilidade das ciências humanas e sociais seguirem as mesmas

metodologias das ciências naturais o Círculo de Viena estava preocupado em

diferenciar o conhecimento científico dos outros tipos de conhecimento e para

caracterizá-lo distinguiu dois contextos: o da descoberta e o da verificação. O

primeiro seria aquele em que o cientista faz sua descoberta, um contexto irrelevante

para se definir se esse conhecimento é científico ou não. O que realmente

importaria na definição do que é científico seria o contexto da justificativa, ou seja,

a forma como o cientista vai explicar sua descoberta aos pares. O Círculo de Viena,

adotou a concepção segundo a qual a filosofia consiste em análise lógica e que a

lógica e a matemática são disciplinas analíticas (puramente formais e

empiricamente vazias). Seguiram Russell ao considerarem as proposições

elementares como relatos da experiência imediata e, com base nesta ideia,

defenderam que o critério de sentido é a verificação pela experiência. Os juízos de

valor, desprovidos de significado à luz deste critério, constituem imperativos (ou

expressões de estados emocionais), e não asserções; as asserções de conteúdo

religioso e teológico seriam, na melhor das hipóteses, manifestações poéticas. O

cientista deveria explicar detalhadamente como chegou aos seus resultados para

que outros pesquisadores, repetindo a experiência, pudessem chegar aos mesmos

resultados. Para evitar equívocos (intencionais ou não) era necessário usar uma

linguagem unívoca. Ou seja, cada termo utilizado no trabalho deveria ter uma única

interpretação. O objetivo primordial do grupo era estabelecer nítidas fronteiras

entre o modo de produzir teorias científicas e a suposta ilusão cognitiva gerada pelo

especulativismo metafísico. Desse modo, o que

36 Segundo Ziman, “como o próprio nome sugere”, a ciência acadêmica “está tipicamente associada à educação superior, mas encontra-se igualmente em certo número de outros contextos institucionais, especialmente sob o patrocínio governamental”. Numa definição sociológica, o conceito de ciência acadêmica seria “quase sinônimo” dos conceitos de ciência fundamental ou ciência pura. ZIMAN, John. A Ciência na Sociedade Moderna. In GIL, Fernando. A Ciência tal qual se faz. P. 438-439

37 ZIMAN, John. A Força do Conhecimento. P.49-81 38

JORGE, Maria Manuel Araújo. Ciência, Sociedade e Ambiente. A Transdisciplinaridade como Desafio Epistemológico. Revista Educação Sociedade & Culturas, nº 21, 2004. P. 23-50. 39

NAVARRO CORDÓN, Juán Manuel; CALVO MARTÍNEZ, Tomás. Filosofia da Idade Contemporânea. P. 7-9

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o Círculo de Viena demarcou claramente foi a condição da ciência como portadora

de um status epistemológico superior, a partir da ênfase nos processos racionais de

sua construção e na possibilidade de verificação de seus enunciados” 40

.

Paralelamente à ascensão desta corrente de pensamento na década de 30 e em

estreita conexão com ela, surge nos Estados Unidos da América, a sociologia da ciência41

de

Merton, a fornecer uma descrição sociológica de como a ciência acadêmica operaria na prática, com suas regras, tradições e convenções particulares. A concepção mertoniana de normas sociais não escritas a governarem a ciência, hoje considerada muito questionável, resume muitas características sociais conhecidas da ciência acadêmica, tal como ela reivindicava ser. A norma do comunalismo concebe a ciência como uma obra coletiva cujos resultados devem ser tornados públicos. O universalismo baseia-se no caráter impessoal da ciência e exprime um ideal multicultural baseado no mérito. A norma do desinteresse obrigaria à imparcialidade e requereria comportamento compatível com a objetividade do conhecimento. E, finalmente, a norma relativa ao ceticismo organizado referindo a dependência ao juízo dos pares, o que acentuaria o teste sistemático das qualidades racionais

da investigação 42

.

Essa estreita conexão entre as normas sociais mertonianas e os princípios filosóficos

do positivismo lógico “não é acidental”, conforme Ziman afirma. São “aspectos completares

do mesmo ethos”. Aquilo que contaria “como conhecimento científico num dado momento” seria “obviamente influenciado pelo modo como a investigação” se organiza, “por quem está

envolvido nela, pelo que aqueles que a fazem pensam que estão a fazer, por aquilo que é

considerado um bom trabalho, e por outras considerações semelhantes”. É importante

ressaltar, contudo, que a sociologia da ciência de Merton não se ocupa com qualquer influência do meio social no conteúdo da ciência, apenas com as condições sociais que

moldam a sua organização. Entende que o ritmo e direção da ciência podem “ser

condicionados por fatores externos”, mas cada passo que esta dá, “dá-o por determinação

interna de seus métodos” 43

.

Tal concepção da ciência tornou-se, nos anos de 1960, insustentável. Conforme Sousa

Santos, “os compromissos da ciência com o modo de produção material acarretou seu compromisso com o sistema social e, portanto, a sua co-responsabilização na criação e gestão

dos conflitos dele emergentes e nele recorrentes” 44

. De acordo com Jorge, um crescimento

40

SOUSA SANTOS, Boaventura. Da Sociologia da Ciência à Politica Científica. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 1, Junho, 1978. P.11-56. DANTON, Gian. Metodologia Científica. VirtualBooks Formato: e-book/ PDF Código: VBOmetodologia879 © VirtualBooks 2002, Idioma: português 41

“Embora possa conceber-se a sociologia da ciência como um ramo especial da sociologia do conhecimento, a

verdade é que não há continuidade entre os estudos feitos na Europa até a década de 30 e os que se iniciam na América no final da mesma década A sociologia do conhecimento que tinha em Marx, Durkheim, Max Scheler e Karl Mannheim, os seus mais importantes cultores, desenvolvera linhas de investigação e chegara a conclusões que por vezes colidiam com a concepção dominante da ciência, também compartilhada pela sociologia norte americana, a concepção positivista. O contraste com a sociologia do conhecimento serviu para definir em grades linhas as orientações teóricas e metodológicas da sociologia da ciência mertoniana. SOUSA SANTOS, Boaventura. Da Sociologia da Ciência à Politica Científica. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 1, Junho, 1978. P.11-56. 42

MERTON, Robert K. The Normative Structure of Science. In The Sociology of Science: Theoretical and Empirical Investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973. 43 ZIMAN, John. A Ciência na Sociedade Moderna. In GIL, Fernando. A Ciência tal qual se Faz. P. 438-441 44 SOUSA SANTOS, Boaventura. Introdução a uma ciência pós-moderna. P. 130.

Nos Estados unidos da América o dramático desenvolvimento tecnológico acarretou consequências sociais

violentas. De um lado, “no domínio da produção, a introdução maciça da tecnologia provocou o desemprego tecnológico, a descontinuidade do emprego, mudança de trabalho, obsolescência das aptidões” e “alterações importantes no quotidiano dos operários”. Por outro lado, a ligação da ciência à máquina de guerra, que a

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exponencial da ciência associado à sua conversão em força produtiva conduziu a “profundas

alterações na organização do trabalho científico” 45

. Iniciou-se uma “época em que os

recursos disponíveis para a investigação são inferiores à procura, por um número crescente de cientistas profusamente imaginativos na apresentação de seus projetos”. No lugar do comunalismo de Merton, a norma passou a ser o segredo seguido das patentes a garantir a propriedade intelectual, tudo a ocorrer “num clima de muito maior ansiedade política e concorrência por financiamentos” escassos. “A ciência acadêmica” vai tornando-se assim, “industrial, pós-acadêmica” e sua nova face passa a “exigir uma nova descrição sociológica,

uma nova epistemologia, uma nova filosofia” 46

.

No contexto desta crise iniciou-se uma nova fase nos estudos sobre a ciência, “uma fase caracterizada pela crítica sistemática e mais ou menos profunda da concepção heróica da

ciência” 47

. A construção teórica que inspira e orienta essa nova fase é a obra de Thomas

Kuhn, em especial, A Estrutura das Revoluções Científicas, cuja tese central sobre a organização e o desenvolvimento da ciência, é que o conhecimento não cresceria de modo

contínuo, nem se desenvolveria “pela acumulação de descobertas e invenções individuais” 48

.

Ao contrário, esse desenvolvimento seria descontínuo e operaria por saltos qualitativos que ocorreriam quando fossem postos em causa e substituídos os princípios, teorias e conceitos básicos que constituem o paradigma daquela ciência. Essas mudanças não se poderiam justificar por critérios internos de validação do conhecimento, sua justificação se encontraria em fatores sociológicos e psicológicos e, principalmente, na comunidade científica enquanto sistema de organização do trabalho científico. Embora na teoria de Kuhn a adesão a normas e valores não tenha a mesma centralidade com que é tratado na obra de Merton, adquire importância decisiva através das próprias definições pelas quais Kuhn articula seu conceito

principal: ciência normal49

. O conceito define-se justamente pela adesão e compromisso a um

conjunto de regras, crenças e valores que organizariam a prática científica e implica a ideia de uma atividade rotineira firmada pelo acordo comum quanto às regras do jogo. Do conceito

química já tinha iniciado na primeira guerra mundial”, tornou-se “cada vez mais íntima com a preparação e produção de instrumentos militares, armas explosivos e demais equipamentos” tendo culminado nas tragédias de

Hiroshima e Nagazaki. “Ao nível das aplicações industriais a crise revela-se quer na reacção pública à

degradação e destruição do meio ambiente provocada pelas tecnologias depredatórias, quer nos conflitos sociais

resultantes da divisão internacional do trabalho produzida pelas multinacionais”. SOUSA SANTOS, Boaventura. Da Sociologia da Ciência à Politica Científica. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 1, Junho, 1978. P.11-56. 45

JORGE, Maria Manuel Araújo. In Ciência, Sociedade e Ambiente. A Transdisciplinaridade como Desafio Epistemológico. Revista Educação Sociedade & Culturas, nº 21, 2004. P. 23-50. “Contabilizando o crescimento das publicações periódicas, desde o século XVIII, Price apercebeu-se da

expansão exponencial da atividade científica, ao longo de trezentos anos. Se o número de artigos continuasse,

porém, a dobrar de quinze em quinze anos, tal como vinha acontecendo, em breve praticamente toda a população

estaria a trabalhar na ciência, o que seria um absurdo. Para Price ‘a saturação contudo, raramente implica morte,

pelo que estamos, seguramente no começo de novas e atraentes tácticas, em relação à ciência, que funcionarão

sobre bases completamente inéditas’”. Citado por JORGE (2004). 46

JORGE, Maria Manuel Araújo. Ciência, Sociedade e Ambiente. A Transdisciplinaridade como Desafio Epistemológico. Revista Educação Sociedade & Culturas, nº 21, 2004. P. 23-50. 47 SOUSA SANTOS, Boaventura. Da Sociologia da Ciência à Politica Científica. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 1, Junho, 1978. P.11-56.

48 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. P. 21. 49

Ciência normal significaria “a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas”.

Representaria “a ciência feita em obediência a um paradigma e opor-se-ia à ciência extraordinária que não o possui.” KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. P. 29. Por paradigma entende-se “toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada”; ou seja, o conjunto global de incumbências, tanto sociais quanto cognitivas, partilhadas por um grupo. A posse de um paradigma é o que permite considerar os fundamentos de um “campo de especialidade como bem estabelecidos e enveredar para problemas mais concretos e complexos”. KUHN, Thomas. A Função do Dogma na Investigação Científica. In História e Prática das Ciências. G.I.F.E., A Regra do Jogo. P. 58

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também faz parte integrante o seu consequente fechamento à sociedade. O objetivo da ciência normal, afirma Kuhn, “não consiste em descobrir novidades substantivas de importância capital”, mas, “aumentar o alcance e precisão” da tradição (ou paradigma) à qual a atividade de ciência normal está ligada. Kuhn também descreveu a pesquisa normal como “uma tentativa vigorosa e devotada de forçar a natureza a esquemas conceituais fornecidos pela

educação profissional” 50

. Um aspecto essencial do conceito estaria ligado à maneira como o

conhecimento se transmite. A educação científica se daria quase que exclusivamente através de manuais, obras escritas especialmente para estudantes, através dos quais estes aprenderiam

o paradigma da disciplina 51

.

Os contrastes apontados por Kuhn, tendo em vista o esquema norte-americano, mas

que ele julga “igualmente visíveis na educação européia e britânica”, sugerem que este tipo de pedagogia científica pode “induzir uma rigidez profissional praticamente impossível de

alcançar noutros campos”; exceto, diz Kuhn, “na teologia”. Raramente, afirma ele, o aluno “é

posto face ao problema de conduzir um projeto de investigação, ou colocado face aos produtos diretos da investigação conduzida por outros”. Os “textos originais” teriam um papel

secundário e os estudantes não seriam encorajados “a ler os clássicos da história de seu

campo”; obras que poderiam fornecer “outras maneiras de olhar as questões” ou ainda,

apresentar “problemas, conceitos e soluções padronizados que a sua futura profissão há muito

pôs de lado e substituiu”. 52

Embora a imagem habitual da investigação científica moderna seja a de uma atividade

possuidora de “um espírito aberto”, Kuhn argumenta que muito frequentemente, o cientista individual não o tem. O processo de educação científica estabeleceria uma firme convicção

“relativamente aos fenômenos da natureza e à maneira como encaixá-lo na teoria”. A

educação profissional promoveria “uma adesão profunda a uma maneira particular de ver o mundo e praticar a ciência”. Elementos como “resistências e preconceitos”, geralmente

considerados estranhos à ciência, produto das “inevitáveis limitações humanas” e que não

encontrariam lugar no “verdadeiro método científico”; seriam mais a “regra do que a exceção

no desenvolvimento científico avançado”. Kuhn refere-se a esses elementos não como “características aberrantes”, mas como características da comunidade científica “com raízes

profundas no processo como os cientistas são treinados a trabalhar na sua profissão”. Tomado

coletivamente, este “dogmatismo” seria requisito para a “continuidade e vitalidade” das

investigações na ciência normal 53

.

No período recente, contudo, fala-se já de uma situação de pós-normalidade pelo maior envolvimento entre a ciência e a sociedade. Com a mudança forte nas condições sociais e institucionais de investigação (que levaram a uma progressiva absorção da ciência

50

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. P. 60

“Um paradigma pode até mesmo afastar uma comunidade daqueles problemas sociais relevantes que não são redutíveis à forma de quebra-cabeças, pois não podem ser enunciados nos termos compatíveis com os instrumentos e conceitos proporcionados pelo paradigma”. 51 Como aponta M. M. Araújo Jorge comentando o esvaziamento ético das ciências – a ciência fria “feita de informação consensual” e que aparece nesse tipo de livros obriga-nos a reconhecer que “o que está ali em jogo é um mundo de coisas e não de pessoas” e até mesmo o termo humano quando aí aparece, “é apenas como objecto de estudo e manipulação”, apenas “como algoritmo calculável”. Para o “operacionalismo positivista” a “aprendizagem da ciência dispensaria a ética” que nem sequer consta “dos programas de estudo tradicionais”.

JORGE, Maria Manuel Araújo. As Mulheres, as Ciências e a Ética. In JORGE, Maria Manuel Araújo. As Ciências e Nós. P. 221-222

52 KUHN, Thomas. A Função do Dogma na Investigação Científica. In História e Prática das Ciências. G.I.F.E., A Regra do Jogo. P 45-74

53 Ibid Idem.

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acadêmica pelas regras de mercado transformando-a em pós-acadêmica); alteraram-se

também as regras do jogo de fazer ciência, obrigando-a a “repensar” suas relações “com todo

um leque de instâncias sociais e culturais” que “ao longo de seu trajeto histórico ela tinha

vindo a deixar de considerar” 54

.

Associado à fatura negativa do progresso técnico e ao aparecimento das economias do

conhecimento55

que são também sociedades de risco56

(que são as nossas), está a ocorrer uma

transformação na percepção social da ciência, pois a sociedade inquieta-se e olha-a como um conhecimento menos fiável (sobretudo em questões controversas como os organismos geneticamente modificados, reprodução, ambiente, etc.) passando a convocar o cientista, não como aquele que tem a Verdade para anunciar, mas como um perito, entre outros, cujo parecer interessa ouvir para a tomada de decisões em função de interesses locais. Ao mesmo tempo, “enquanto as fronteiras entre ciência e sociedade se esbatem, o mesmo vai sucedendo

às diferenças entre ciência e tecnologia” 57

. Por encontrarem-se hoje, tão intimamente

interligadas, (embora abstratamente se possa fazer a distinção entre as duas) na prática é quase impossível separá-las e de muitos pontos de vista elas podem ser tratadas como uma unidade: a tecnociência. Já não faria sentido olhar para a ciência apenas de sua dimensão “arrefecida, solidificada nos conhecimentos expostos nos livros e que a retrata como desligada do mundo

social, das suas paixões e interesses e, por isso, como objetiva certa e segura” 58

. Estudando

“a ciência em ação, e não a ciência ou a tecnologia prontas;” chegando antes que os fatos científicos ou as máquinas “se tenham transformado em caixas-pretas, ou acompanhando as controvérsias que as reabrem,” poderia-se observar, segundo Bruno Latour, que a situação da ciência seria “exatamente a mesma do gás, da eletricidade, da TV a cabo, da rede de água ou de telefone: em todos os casos é preciso estar ligado à uma rede [sociotécnica,

socioprofissional] que é cara e deve ser mantida e expandida”.59

O conceito de tecnociência (technoscience), foi criado por Bruno Latour e se originou da decisão inicial do autor de concentrar a sua atenção no estudo da “atividade de fazer ciência, e não na definição de ciência dada por cientistas ou filósofos”. Não fosse essa escolha, segundo ele, teria “acreditado na existência de uma ciência, por um lado, e de uma sociedade por outro, o que teria deixado escapar o ponto crucial”: o de que os cientistas se constituem em uma das forças impulsionadoras de iniciativas conduzidas por uma série de outros personagens. A palavra tecnociência é usada por Latour “para descrever todos os

elementos amarrados ao conteúdo científico” 60

. Usa-a como um recurso de linguagem para

denotar a íntima ligação entre ciência e tecnologia e a desconfiguração de seus limites. Para M.B. de Oliveira, várias ordens de razões sustentam a tese da tecnociência. Entre elas, a constatação da interdependência e reciprocidade entre os dois domínios: “a ciência é fornecedora de recursos teóricos à tecnologia que, por sua vez, também serve à ciência de várias formas sendo a mais evidente, a de contribuir com o instrumental necessário para a 54

JORGE, Maria Manuel de Araújo. Ciência, Sociedade e Ambiente. A Transdisciplinaridade como Desafio Epistemológico. Revista Educação Sociedade & Culturas, nº 21, 2004. P. 23-50. 55 O conhecimento transformou-se em matéria-prima do trabalho e no principal factor de criação de riqueza e de separação entre ricos e pobres.

56 Nossas sociedades modernas tornaram-se sociedades de risco porque se tornaram mais perigosas que as precedentes visto que a natureza dos riscos mudou, suscitando incertezas científicas inéditas, susceptíveis a provocar catástrofes novas. Além dos efeitos ecológicos ou sanitários associados, o risco está no centro dos novos interesses políticos e sociais.

57 JORGE, Maria Manuel de Araújo. Ciência, Sociedade e Ambiente. A Transdisciplinaridade como Desafio Epistemológico. Revista Educação Sociedade & Culturas, nº 21, 2004. P. 23-50.

58 Ibid Idem. P. 23-50. 59 LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. P. 420.

60 Ibid Idem P. 286.

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realização dos experimentos e observações científicos e, no caso dos computadores, de

funcionar também como instrumento para a realização de cálculos e outras manipulações

simbólicas envolvidos no trabalho teórico” 61

.

Considerações Finais

Hoje, a concepção e o valor da ciência moderna são surpreendentemente plurais. “Vão desde sua compreensão como um sistema de conhecimento puramente teórico e neutro até a ideia de ciência como prática política”. Entre um extremo e outro encontramos as mais diversas formas de análise. Em alguns casos, atribui-se à ciência moderna o valor de verdade objetiva, “expressão máxima da razão positiva situada ao lado do bem, das técnicas, e dos remédios, continuamente salvadora.” Em outros, desenvolve-se “a noção de ciência contextual, contingencial, circunstancial, resultante da combinação de fatores sociais e econômicos”. Para algumas vertentes contemporâneas, o estatuto da ciência é “semelhante a outras manifestações culturais como a religião e a arte, considerando-a uma prática mais

humana e mais caótica do que se acreditava anteriormente”62

. Contudo, o fato é que a

temática científica é das mais importantes da atualidade. Temos mais ciência do que nunca e nunca dependemos tanto dela como agora, mas também nunca tivemos tanta clareza sobre

seus problemas, limites e possibilidades.63

Tradicionalmente considerada como o “lugar da

verdade”, a ciência ainda se apresenta como elucidativa, enriquecedora, conquistadora, triunfante. No mesmo afã, a produção e a difusão do conhecimento científico são afirmadas como determinantes do desenvolvimento econômico e social de um povo, a verdadeira base sobre a qual o bem-estar coletivo deve ser construído. Como matriz de um conhecimento racional, porém, “a ciência não teve potencialidades para destruir o contexto irracional dentro

do qual se fomentou sua expansão teórica e sua conversão em força prática”64

. Os poderes

criados pela atividade científica escaparam totalmente aos próprios cientistas. Fragmentaram-se ao nível da investigação e só foram novamente reagrupados ao nível dos poderes

econômicos e políticos65

. A ciência tornou-se uma poderosa instituição no centro da

sociedade, absorvida e controlada por forças sociais extra e anti-científicas. Já não é possível tratá-la como um campo idealizado da razão e do bem. É preciso compreender em grande profundidade como a atividade científica se relaciona com o contexto em que tem lugar. Os parâmetros da cultura e da história devem ser considerados com sabedoria quando procuramos soluções de ciência para o desenvolvimento e o progresso local. De outra forma, os avanços possibilitados pela ciência serão apenas alavanca de um crescimento material desarticulado de qualquer progresso social. 61 OLIVEIRA, Marcos Barbosa de. Desmercantilizar a Tecnociência. In SANTOS, Boaventura Sousa (org.).

Conhecimento Prudente para uma Vida Decente: “Um discurso sobre a ciência” revisitado. P.227-248. 62 PORTOCARRERO, Vera. Filosofia, História e Sociologia das Ciências: abordagens contemporâneas. P. 18-

20. 63 SCHWARTZMAN, Simon. Um Espaço para a Ciência: a formação da comunidade científica brasileira. P.

13. 64 FERNANDES, Florestan. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina. P. 124. 65 MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. P. 15.

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Bibliografia

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