d e s i n o - visionvox · 2017. 12. 17. · condenável em qualquer circunstância. você pode ter...
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Digitalização/Formatação: Leo
D E S I N O
NO FUTURO, A SOCIEDADE ESCOLHE:
ONDE VOCÊ MORA. O QUE VOCÊ COME. ONDE VOCÊ TRABALHA. COMO
VOCÊ SE DIVERTE. COM QUEM VOCÊ SE CASA. QUANDO VOCÊ MORRE.
Cassia tem absoluta confiança nas escolhas da Sociedade. Ter o destino
definido pelo sistema é um preço pequeno a se pagar por uma vida tranquila e
saudável, um emprego seguro e a certeza da escolha do companheiro perfeito para
se formar uma família. Ela acaba de completar 17 anos e seu grande dia chegou: o
Banquete do Par, o jantar oficial no qual será anunciado o nome de seu
companheiro. Quando surge numa tela o rosto de seu amigo mais querido, Xander -
bonito, inteligente, atencioso, íntimo dela há tantos anos -, tudo parece bom demais
para ser verdade. Quando a tela se apaga, volta a se acender por um instante,
revelando outro rosto, e se apaga de novo, o mundo de certezas absolutas que ela
conhecia parece se desfazer debaixo de seus pés. Agora, Cassia vê a Sociedade com
novos olhos e é tomada por um inédito desejo de escolher. Escolher entre Xander e o
sensível Ky, entre a segurança e o risco, entre a perfeição e a paixão. Entre a ordem
estabelecida e a promessa de um novo mundo.
CAPÍTULO 1
AGORA QUE DESCOBRI COMO VOAR, QUE DIREÇÃO DEVO SEGUIR
noite adentro? Minhas asas não são brancas nem emplumadas. São verdes,
feitas de seda verde que estremece ao vento e se dobra quando me mexo —
primeiro num círculo, depois numa linha, finalmente numa forma que eu mesma
inventei. A escuridão atrás de mim não me preocupa, nem as estrelas à frente. Rio de mim mesma, da minha imaginação boba. Pessoas não podem
voar, embora, antes da Sociedade, existissem mitos sobre aquelas que
podiam. Vi uma pintura delas, certa vez. Asas brancas, céu azul, círculos
dourados sobre as cabeças, olhos voltados para o alto, surpresos, como se
não conseguissem acreditar naquilo que o artista havia pintado, como se
não conseguissem acreditar que seus pés não tocavam o chão.
Aquelas histórias não eram verdadeiras. Sei disso. Mas, esta noite,
fica fácil esquecer. O trem aéreo desliza pela noite estrelada tão
suavemente, meu coração bate tão rápido, que parece que eu poderia
subir ao céu a qualquer momento.
— Tá sorrindo por causa de quê? — Xander me pergunta enquanto
aliso e ajeito as dobras do meu vestido de seda verde,
— De tudo — digo a ele, e é verdade. Esperei tanto por isso: pelo
meu Banquete do Par. Onde vou ver, pela primeira vez, o rosto do garoto
que vai ser meu Par. Vai ser a primeira vez que vou ouvir o nome dele.
Mal posso esperar. Por mais rápido que o trem aéreo avance, ainda
não é rápido o bastante. Ele silencia a noite, e seu som é um pano de
fundo para os chuviscos das vozes de nossos pais e os relâmpagos das
batidas do meu coração. Talvez Xander também consiga ouvir meu
coração batendo, porque me pergunta "Tá nervosa?". No assento ao lado,
o irmão mais velho de Xander começa a contar para minha mãe a história
do seu Banquete do Par. Não vai demorar muito para que Xander e eu
tenhamos nossas próprias histórias para contar.
— Não — digo. Mas Xander é meu melhor amigo. Ele me conhece
bem demais.
— Mentira — provoca ele. — Você tá nervosa.
— E você, não?
— Eu não. Estou pronto — diz, sem hesitação, e eu acredito nele.
Xander é o tipo de pessoa que tem certeza do que quer.
— Não importa se você está nervosa, Cássia — diz ele, agora com
delicadeza. — Quase 93% dos que comparecem ao Banquete do Par
mostram alguns sinais de nervosismo.
— Você decorou todo o material oficial do Par?
— Quase todo — diz Xander, sorrindo. Ele estende as mãos como se
dissesse "O que você esperava?'.
O gesto me faz rir. Além do mais, eu também decorei o material. É
fácil quando você lê aquilo tantas vezes, quando a decisão é tão
importante.
— Então você está na minoria — digo. — Os 7% que não mostram
nervosismo algum.
— E claro — concorda.
— Como é que você percebeu que eu tava nervosa?
— Porque você fica abrindo e fechando isso. — Xander aponta o
objeto dourado em minhas mãos. — Não sabia que você tinha um
artefato. — Poucos tesouros do passado circulam entre nós. Embora os
cidadãos da Sociedade tenham permissão para possuir um artefato cada,
eles não são fáceis de se achar. A menos que você tenha tido ancestrais
que se deram ao trabalho de passar essas coisas adiante, ao longo dos
anos.
— Eu não tinha, até algumas horas atrás — conto para ele. — Vovô
me deu de aniversário. Pertenceu à mãe dele.
— Como se chama? — pergunta Xander.
— Estojo de pó compacto — digo. Gosto muito do nome. Compacto
significa pequeno. Eu sou pequena. Também gosto do som quando você
pronuncia: com-pac-to. Dizer a palavra faz um barulho parecido com o do
próprio artefato ao se fechar.
— O que querem dizer as iniciais e os números?
— Não sei bem. — Passo o dedo sobre as letras ACM & os números
1940 gravados sobre a superfície dourada. — Mas olha só — digo a ele,
abrindo o compacto para mostrar a parte de dentro: um espelhinho, feito
de vidro de verdade, e um pequeno espaço vazio onde a antiga dona
costumava guardar pó para passar no rosto, segundo o Vovô. Agora, eu
uso para guardar os três comprimidos de emergência que todo mundo
carrega — um verde, um azul, um vermelho.
— É conveniente — diz Xander. Ele estica os braços diante de si e
reparo que ele também tem um artefato: um par de reluzentes
abotoaduras de platina. — Meu pai me emprestou isso, mas não dá para
guardar nada nelas. São completamente inúteis.
— Mas são bonitas. — Meu olhar viaja até o rosto de Xander, seus
olhos azuis ofuscantes, o cabelo louro, o terno escuro e a camisa branca.
Ele sempre foi bonito, mesmo quando éramos pequenos, mas eu nunca o
tinha visto arrumado desse jeito. Meninos não têm tanta liberdade de
opção para escolher as roupas quanto meninas. Ternos são todos meio
parecidos. De qualquer forma, eles têm direito a escolher a cor das
camisas e das gravatas, e a qualidade do tecido é bem superior a do
material usado nas roupas comuns.
— Você tá bem. — A garota que descobrir que ele é Par dela vai se
empolgar.
— Bem? — diz Xander, erguendo as sobrancelhas. — Só isso?
— Xander — diz a mãe dele, ao lado, bom humor e censura
misturados na voz.
— Você tá linda — Xander me diz e eu fico meio envergonhada,
apesar de conhecê-lo a vida inteira. Eu me sinto bonita neste vestido verde,
esvoaçante, comprido. A suavidade pouco habitual da seda contra a minha
pele me faz sentir ágil e graciosa.
Ao meu lado, minha mãe e meu pai respiram fundo quando a
Prefeitura aparece, iluminada de azul e branco, cintilando com as luzes
especiais que indicam uma celebração acontecendo. Ainda não consigo
ver a escadaria de mármore diante do prédio, mas sei que vai estar polida
e reluzente. Toda a vida, esperei pela hora de subir aqueles degraus
limpos de mármore e cruzar os portões da Prefeitura, um prédio que já
havia visto a distância, mas onde nunca entrei.
Quero abrir o compacto e me olhar no espelho para ter certeza de
que está tudo perfeito. Mas não quero parecer fútil, por isso dou uma
olhada no reflexo do meu rosto na superfície.
A tampa arredondada do compacto distorce meus traços um pouco,
mas ainda sou eu. Meus olhos verdes. Meu cabelo castanho-cobre, que
parece mais dourado no compacto do que na vida real. Meu narizinho
reto. Meu queixo com vestígios de uma covinha como a do meu avô.
Todas as características exteriores que fazem de mim Cássia Maria Reyes,
exatos 17 anos.
Viro o compacto nas mãos, vendo como as duas partes se encaixam
perfeitamente. Meu Par vem ao meu encontro com a mesma harmonia, a
começar por eu estar aqui esta noite. Como meu aniversário cai dia 15,
mesmo dia em que o Banquete acontece todos os meses, sempre sonhei
encontrar meu Par na data do meu aniversário — mas eu sabia que isso
podia não acontecer. Você pode ser convocado para o Banquete a
qualquer momento no ano seguinte ao seu aniversário de 17 anos.
Quando a notificação apareceu no terminal, duas semanas atrás, avisando
que eu, de fato, saberia quem era o meu Par no dia do meu aniversário, eu
quase ouvi um estalo combinando as peças, exatamente como eu sonhava
havia tanto tempo.
Porque, apesar de não ter esperado nem um dia inteiro pelo meu
Par, de certa forma eu esperei por ele a vida inteira.
— Cássia — diz minha mãe, sorrindo para mim. Pisco e levanto os
olhos, assustada. Meus pais se levantam, prontos para desembarcar.
Xander também se levanta, endireita as mangas. Eu o escuto respirar
fundo e sorrio para mim mesma. Talvez ele esteja um pouquinho nervoso,
então.
— Lá vamos nós — ele me diz. Seu sorriso é tão gentil e bom. Estou
feliz por termos sido convocados no mesmo mês. Dividimos tanta coisa na
infância. Me parece justo que também possamos dividir o fim dela.
Sorrio de volta para ele e ofereço a melhor saudação que temos na
Sociedade.
— Te desejo os melhores resultados — digo a Xander.
— Para você também, Cássia — responde.
Ao sairmos do trem aéreo e caminharmos em direção à Prefeitura,
meus pais unem os braços aos meus. Como sempre, estou cercada pelo
amor deles.
Somos só nós três, esta noite. Meu irmão, Bram, não pôde vir ao
Banquete do Par porque tem menos de 17 anos, jovem demais para
comparecer. O primeiro Banquete ao qual você vai é sempre o seu. Eu,
porém, vou poder comparecer ao banquete de Bram porque sou a irmã
mais velha. Sorrio sozinha, pensando em como vai ser o Par de Bram.
Dentro de sete anos eu vou descobrir.
Mas hoje é a minha noite.
É fácil identificar aqueles de nós que vão conhecer seus Pares. Não é
só porque somos mais jovens do que os outros, mas também porque
circulamos em vestidos lindos e ternos bem-cortados, enquanto nossos
pais e irmãos mais velhos estão de roupas comuns, um pano de fundo que
nos permite desabrochar. Os Funcionários da Cidade sorriem para nós
com orgulho, e sinto uma onda de emoção no coração quando entramos
na Rotunda.
Além de Xander, que se despede de mim com um aceno ao cruzar o
salão até a área onde deve ficar sentado, vejo outra menina que eu
conheço, chamada Lea. Ela escolheu um vestido vermelho vivo. E uma boa
opção para ela, porque é bonita o bastante para que chamar a atenção
funcione a seu favor. Mas parece preocupada, e não para de mexer no artefato
dela, uma pulseira de pedras vermelhas. Fico um pouco surpresa em encontrar
Lea aqui. Eu apostaria que ela fosse ser um dos Solteiros.
— Olha essa porcelana — diz meu pai, quando chegamos ao nosso lugar
nas mesas do Banquete. — Isso me lembra as peças Wedgwood que achamos
ano passado...
Minha mãe olha para mim e revira os olhos, achando graça. Nem no
Banquete do Par meu pai consegue deixar de reparar nessas coisas. Meu pai
passa meses trabalhando em áreas antigas que estão sendo restauradas e
transformadas em Bairros para uso público. Ele revira as relíquias de uma
sociedade que não está tão distante no passado quanto parece. Atualmente,
por exemplo, está trabalhando em um projeto de Restauração particularmente
interessante: uma antiga biblioteca. Ele separa as coisas que a Sociedade
determinou que são valiosas das outras que não são.
Mas eu acabo tendo que rir porque minha mãe não consegue deixar de
falar das flores, já que estão na área de conhecimento dela, como trabalhadora
do Arboreto.
— Ah, Cássia! Olha os arranjos de mesa. Lírios. — Ela aperta a minha mão.
— Por favor, sentem-se — avisa-nos um Oficial do pódio. — O jantar vai
ser servido.
É quase cômica a rapidez com que nos sentamos. Porque podemos admi-
rar a porcelana e as flores, podemos estar aqui para conhecer nossos Pares,
mas também mal podemos esperar para experimentar a comida.
— Dizem que os candidatos a pares nunca aproveitam o jantar — diz um
homem de aspecto jovial, sentado na nossa frente, sorrindo. — Ficam tão ner-
vosos que não conseguem comer. — E é verdade. Uma das garotas sentada do
outro lado da mesa, de vestido cor-de-rosa, olha fixamente para o prato sem
tocar em nada.
Eu, no entanto, não tenho esse tipo de problema. Embora não me
empanturre, consigo comer um pouco de tudo — os legumes assados, a carne
bem temperada, as verduras crocantes e o queijo cremoso. O pão leve e
quente. A refeição parece uma dança, como se estivéssemos não só num baile,
mas também num banquete. Os garçons deslizam os pratos diante de nós com
mãos graciosas. A comida, vestida com ervas e ornamentos, está tão enfeitada
quanto nós. Erguemos os guardanapos brancos, os garfos de prata, as taças re-
luzentes de cristal como sé seguíssemos o ritmo da música.
Meu pai sorri feliz quando o serviçal coloca, diante dele, uma fatia de
bolo de chocolate com creme fresco, no final da refeição.
— Maravilhoso — ele cochicha, tão baixo que só eu e minha mãe
escutamos.
Minha mãe ri um pouco, zombando dele, que busca a mão dela.
Eu compreendo o entusiasmo quando dou uma mordida no bolo, de
sabor intenso, mas não em excesso, profundo, escuro e delicioso. É a
melhor coisa que comi desde o tradicional jantar da Festa de Inverno,
meses atrás. Queria que Bram pudesse comer um pouco de bolo e, por um
minuto, penso em guardar um pouco para ele. Mas não tenho como levar.
Não caberia no estojo. Seria feio esconder na bolsa da minha mãe, mesmo
se ela concordasse, e ela não concordaria. Minha mãe nunca desrespeita
as regras.
Não posso guardá-lo para depois. É agora ou nunca.
Acabei de colocar a última garfada na boca quando o apresentador
diz:
— Estamos prontos para anunciar os Pares.
Engulo com surpresa e, por um segundo, sinto uma inesperada onda
de raiva: não saboreei devidamente o último pedaço de bolo.
— Lea Abbey.
Lea revira a pulseira furiosamente, ao se levantar, esperando o rosto
aparecer na tela. Porém, ela tem o cuidado de manter as mãos baixas,
para que o garoto que vai vê-la em outra Prefeitura enxergue apenas a
loura bonita e não suas mãos preocupadas, mexendo naquela pulseira.
E estranho como nos agarramos a pedaços do passado enquanto
aguardamos por nossos futuros.
Há uma organização, naturalmente, em relação aos Pares. Em
Prefeituras por todo o país, todas cheias de gente, os Pares são
anunciados em ordem alfabética, de acordo com o sobrenome das
meninas. Sinto um pouco de pena dos meninos, que não têm a mínima
idéia de quando seus nomes serão chamados, momento em que devem
ficar de pé para serem recebidos como Pares por meninas de outras
Prefeituras. Como meu sobrenome é Reyes, vou estar em algum lugar do
meio para o final. O começo do fim.
A tela mostra o rosto de um garoto, louro e bonito. Ele sorri ao ver o
rosto de Lea na tela diante dele, e ela também sorri.
— Joseph Peterson — disse o apresentador. — Lea Abbey, seu par é
Joseph Peterson.
A anfitriã do Banquete leva uma caixinha de prata para Lea. A mesma
coisa acontece com joseph Peterson, na tela. Quando Lea se senta, ela
olha a caixinha de prata com ansiedade. Não a culpo. Lá dentro está um
microcartão com todas as informações sobre seu Par. Nós todos as
recebemos. Mais tarde, as caixas vão servir para guardar os anéis para o
Contrato Matrimonial.
A tela volta à imagem padrão: um menino e uma menina sorrindo
um para o outro, com luzes cintilantes e um Funcionário de casaco branco
ao fundo. Embora a Sociedade programe o anúncio dos Pares da forma
mais eficiente possível, ainda há momentos em que a tela volta a esta
imagem, o que significa que nós esperamos enquanto algo acontece
noutro lugar. E tão complicado — os Pares —, e me lembro mais uma vez
dos complicados passos de dança que se faziam muito tempo atrás. Esta
dança, porém, é feita de uma forma que só a Sociedade pode coreografar.
A imagem desaparece.
O apresentador chama outro nome. Outra garota se levanta. Logo,
mais e mais pessoas do Banquete estão com as suas caixinhas de prata.
Algumas as deixaram sobre as toalhas de mesa brancas diante delas, mas a
maioria as segura cuidadosamente, sem querer deixar o futuro fora do
alcance das mãos assim tão depressa.
Não vejo outras garotas de vestido verde. Não me importo. Gosto de
pensar que, por uma noite, eu não me pareço com mais ninguém.
Espero, segurando o estojo numa mão e a mão da minha mãe na
outra. Sua palma parece úmida. Pela primeira vez, percebo que ela e meu
pai também estão nervosos.
— Cássia Maria Reyes.
E a minha vez.
Levanto, soltando a mão da minha mãe, e me volto para a teia. Sinto
o coração bater forte e a tentação de mexer nas mãos como Lea, mas fico
completamente parada, com o queixo erguido e os olhos na teia. Observo
c espero, determinada a fazer com que a garota que meu Par vai ver na
tela, em sua Prefeitura em algum lugar da Sociedade, seja equilibrada,
calma e bela, a melhor imagem de Cássia Maria Reyes que posso
apresentar.
Mas nada acontece.
Continuo de pé olhando a tela e, enquanto passam os segundos,
tudo o que posso fazer é permanecer imóvel, tudo o que posso fazer é
continuar a sorrir. Começo a ouvir cochichos. Com o canto dos olhos, vejo
minha mãe mexer com as mãos como se fosse novamente pegar a minha,
mas então ela recua.
Uma garota de vestido verde aguarda, de pé, o coração batendo. Eu.
A tela está escura e permanece escura.
Isso só pode querer dizer uma coisa.
CAPÍTULO 2
OS COCHICHOS SE ELEVAM SUAVEMENTE À MINHA VOLTA, COMO
se fossem pássaros batendo as asas sob a cúpula da Prefeitura.
— Seu Par se encontra aqui, esta noite — diz a anfitriã, sorridente. As
pessoas ao meu redor também sorriem, e os murmúrios aumentam de
intensidade. Nossa Sociedade é tão vasta, as Cidades são tantas, que as
chances de o seu Par perfeito estar na sua própria Cidade são minúsculas.
Há muitos anos não acontece algo assim por aqui.
Os pensamentos se precipitam na minha cabeça e eu fecho os olhos
rapidamente, ao perceber o que isso significa, não em teoria, mas para
mim, a garota de vestido verde. Eu talvez conheça meu Par. Ele pode ser
alguém que freqüenta a mesma Segunda Escola que eu, alguém que eu
vejo todos os dias, alguém...
— Xander Thomas Carrow.
Na sua mesa, Xander se levanta. Um mar de rostos atentos e toalhas
de mesa brancas, taças de cristal cintilantes e reluzentes caixas de prata se
estende entre nós.
Não dá para acreditar.
É um sonho. As pessoas voltam os olhos para mim e para o garoto
bonito, de temo escuro e gravata azul. Não parece ser verdade até que
Xander sorri para mim. Penso, Eu conheço aquele sorriso, e subitamente eu
também estou sorrindo, e a onda de aplausos e o perfume dos lírios me
convence totalmente de que aquilo está mesmo acontecendo. Sonhos não
têm cheiros nem ruídos tão intensos quanto esse. Quebro o protocolo um
pouquinho ao acenar discretamente para Xander, e o sorriso dele
aumenta.
A anfitriã diz.
— Podem voltar aos seus lugares. — Ela parece contente por
estarmos tão felizes. Naturalmente, deveríamos estar. Nós somos o melhor
Par um para o outro, afinal de contas.
Quando ela me traz a caixa de prata, eu a seguro com cuidado. Mas já
sei muito do que há ali dentro. Xander e eu não só freqüentamos a mesma
escola, como moramos na mesma rua. Somos melhores amigos desde que
me entendo por gente. Não preciso de um microcartão para me mostrar
imagens de Xander na infância, porque tenho muitas na minha cabeça.
Não preciso baixar uma lista de favoritos para decorar, porque já sei quais
são. Cor favorita: verde. Atividade de lazer favorita: natação. Recreação
favorita: jogos.
— Meus parabéns, Cássia — cochicha meu pai, com expressão de alívio.
Minha mãe não diz nada, mas está radiante de alegria e me abraça forte.
Atrás dela, outra garota se levanta, com os olhos na tela.
O homem sentado ao lado do meu pai sussurra:
— Que sorte para a sua família. Você não precisa confiar o futuro dela
a alguém sobre quem não sabe nada.
Fico surpresa com a ponta de infelicidade no seu tom de voz, como o
comentário parece beirar a insubordinação. A filha, a menina nervosa de
vestido rosa, também escuta aquilo. Parece pouco à vontade e muda de
posição na cadeira. Eu não a reconheço. Ela deve freqüentar outra das
Segundas Escolas da nossa Cidade.
Dou uma olhada sorrateira para Xander, mas tem gente demais no
caminho e não consigo vê-lo. Outras meninas se revezam, se levantando.
A tela se ilumina para cada uma. Não fica escura para mais ninguém. Eu
sou a única.
Antes de irmos embora, a anfitriã do Banquete dos Pares pede a
Xander, a mim e às nossas famílias para irmos falar com ela.
— E uma situação rara — diz ela, mas se corrige imediatamente. —
Rara não. Perdão. É meramente incomum. — Ela sorri para nós dois. —
Como vocês já se conhecem, o procedimento vai ser diferente para vocês.
Grande parte das informações iniciais sobre o outro vocês já saberão. —
Ela aponta para nossas caixinhas. — Algumas novas orientações para o
namoro foram incluídas nos seus microcartões, por isso vocês devem se
familiarizar com elas quando tiverem a oportunidade.
— Vamos lê-las hoje à noite — Xander promete com sinceridade.
Tento não dar sinal de que estou achando graça, porque ele soa
exatamente como quando recebe uma nova tarefa de aprendizado de um
professor. Ele vai ler as novas orientações e memorizá-las, como leu e
memorizou o material oficial sobre os Pares. E então volto a corar, ao me
lembrar subitamente de um parágrafo daquele texto:
Se você escolher ter um Par, seu Contrato Matrimonial acontecerá ao completar
21 anos. Estudos demonstram que a fertilidade dos homens e das mulheres chega ao
auge aos 24 anos. O Sistema de Pares foi planejado para permitir aos Pares que
tenham filhos por volta desta idade — com maiores possibilidades de gerar crianças
saudáveis.
Xander e eu vamos fazer um Contrato Matrimonial. Vamos ter filhos
juntos.
Não tenho que passar os próximos anos aprendendo tudo sobre ele
porque eu já o conheço, quase tão bem quanto a mim mesma.
Sou pega de surpresa pelo pequeno sentimento de perda no meu
coração. Minhas colegas vão passar os próximos dias se desmanchando
diante dos retratos de seus Pares, se gabando deles na hora da refeição na
escola, esperando que mais e mais informações sejam reveladas. Cheias
de expectativa pelo primeiro encontro, o segundo encontro e assim por
diante. O mistério não existe para Xander e eu. Não vou ficar imaginando
como ele é ou sonhando acordada com nosso primeiro encontro.
É quando Xander me olha e pergunta:
— No que você está pensando? E eu respondo:
— Que nós temos muita sorte — e é sério. Ainda há muito por desco-
brir. Até agora, eu só conhecia Xander como amigo. Agora ele é o meu Par.
A anfitriã me corrige com delicadeza.
— Não é sorte, Cássia. Não existe sorte na Sociedade.
Concordo com um aceno. Claro. Eu não devia usar um termo tão
arcaico e pouco preciso. Hoje só há a probabilidade. O quão esperado, ou
inesperado, que algo ocorra.
A anfitriã volta a falar.
— Foi uma noite cheia e está ficando tarde. Vocês podem ler as
orientações de namoro mais tarde, outro dia. Há muito tempo.
Ela tem razão. É o que a Sociedade nos deu: tempo. Vivemos mais e
melhor do que quaisquer outros cidadãos na história do mundo. E é em
grande parte graças ao Sistema de Pares, que produz crianças saudáveis
do ponto de vista físico e emocional.
Eu sou parte de tudo isso. Meus pais e os Carrow não param de
exclamar como tudo isso é maravilhoso, e, enquanto descemos juntos os
degraus da Prefeitura, Xander se aproxima de mim e diz:
— Dá impressão que foram eles que combinaram tudo isso.
— É inacreditável — digo, me sentindo ao mesmo tempo opulenta e
um pouco tonta. Não posso acreditar que sou eu, com um belo vestido
verde, segurando ouro em uma mão e prata na outra, caminhando ao lado
do meu melhor amigo. Meu Par.
— Não acho — diz Xander, me provocando. — Na realidade, eu sabia
o tempo todo. Foi por isso que eu não fiquei nervoso.
Provoco-o de volta.
— Eu também sabia. Por isso é que eu fiquei.
Estamos rindo tanto que, quando o trem aéreo se aproxima; nenhum
dos dois toma conhecimento de imediato, e há um breve momento de
estranheza quando Xander me dá a mão para me ajudar a embarcar.
— Aqui — diz ele, com a voz séria. Por um momento, não sei o que
fazer. Há algo de diferente em tocar o outro agora, e minhas mãos estão
ocupadas.
Xander então envolve minha mão com a dele e me puxa para o trem
com ele.
— Obrigada — digo, enquanto as portas se fecham atrás de nós.
— Imagina — diz ele, sem soltar minha mão. A caixinha de prata que
eu seguro cria uma barreira entre nós mesmo que outra esteja sendo
derrubada. Não damos as mãos desse jeito desde que éramos crianças. Ao
fazê-lo, naquela noite, atravessamos a fronteira invisível que separa a
amizade de algo mais. Sinto um formigamento no braço. Ser tocada pelo
meu Pai é um luxo que os outros Pares dos Banquetes desta noite não
têm.
O trem aéreo nos leva para longe das luzes brancas glaciais,
resplandecentes, da Prefeitura, em direção às luzes amarelas, mais suaves,
das sacadas e dos postes dos Bairros. Enquanto as ruas passam voando
pela janela durante a viagem para casa, até o Bairro de Mapletree, olho
para Xander. As luzes douradas lá fora parecem ter a cor do cabelo dele; o
rosto dele é bonito, seguro e bom. E, no geral, familiar. Se você sempre
soube como olhar para alguém, é estranho quando há uma nova
orientação. Xander sempre foi alguém que eu não podia ter e eu era o
mesmo para ele.
Agora tudo é diferente.
Bram, meu irmão de 10 anos, espera por nós na varanda na frente de
casa. Quando contamos a ele sobre o Banquete, ele não consegue
acreditar nas notícias.
— O seu Par é o Xander? Eu já conheço a pessoa com quem você vai
casar? Isso é tão esquisito.
— Você é que é esquisito — provoco, e ele se esquiva quando finjo
tentar agarrá-lo. — Quem sabe? Talvez o seu Par more aqui na rua
também. Talvez seja...
Bram tapa os ouvidos.
— Não fala. Não fala...
— A Serena — digo, e ele se afasta, fingindo que não me ouviu.
Serena mora ao lado. Ela e Bram se atormentam incessantemente.
— Cássia — minha mãe diz em tom de desaprovação, olhando em
volta para ter certeza de que ninguém ouviu. Não se deve depreciar os
outros moradores da nossa rua e da nossa comunidade. O Bairro
Mapletree é conhecido pela união, por ser exemplar nesse aspecto. Não é
graças ao Bram penso comigo mesma.
— Estou brincando, Mãe. — Sei que ela não consegue ficar zangada
comigo. Não na noite do meu Banquete do Par, quando foi lembrada do
quão rápido eu estou crescendo.
— Entrem — disse meu pai. — Está quase na hora do toque de
recolher. Podemos conversar sobre tudo amanhã.
— Tinha bolo? — Bram pergunta quando meu pai abre a porta. Eles
todos me olham, aguardando.
Não me mexo. Não quero entrar ainda.
Se entrar, significa que a noite está chegando ao fim, e eu não quero
isso. Não quero tirar o vestido e voltar às roupas comuns. Não quero
voltar aos dias de sempre, que são bons, mas não tão especiais quanto
este.
— Vou entrar logo. Mais uns minutinhos.
— Não demora — diz meu pai com delicadeza. Ele não quer que eu
desrespeite o horário. E o horário de recolher da Cidade, não dele, e eu
compreendo.
— Não vou — prometo.
Sento nos degraus da casa, com cuidado, claro, por causa do vestido
emprestado. Observo as dobras do belo tecido. Não pertence a mim, mas
esta noite pertence, esta ocasião que é escura e iluminada e ao mesmo
tempo repleta do inesperado e do familiar. Contemplo a noite de
primavera e volto o rosto para as estrelas.
Não demoro do lado de fora porque amanhã, sábado, é um dia cheio.
Preciso me apresentar para o meu posto de trabalho experimental no
centro de classificação, de manhã cedo. Depois disso, terei minhas horas
de recreação livre de sábado à noite, uma das poucas ocasiões em que
posso ficar com meus amigos fora da Segunda Escola. E Xander vai estar lá.
De volta ao meu quarto, tiro os comprimidos do compartimento vazio
na base do compacto. Então conto — Um, dois, três. Azul, verde, vermelho
— enquanto os devolvo ao cilindro metálico de sempre.
Sei para que servem os comprimidos azuis e os verdes. Não sei se
alguém sabe ao certo o que fazem os vermelhos. Existem boatos há anos.
Vou para a cama e paro de pensar no comprimido vermelho. Pela
primeira vez na vida, me é permitido sonhar com Xander.
CAPÍTULO 3
SEMPRE ME PERGUNTEI COMO MEUS SONHOS PARECEM QUANDO
colocados no papel, em números. Alguém por aí sabe, mas não sou eu.
Puxo os sensores de sono da pele, tomando cuidado de não usar força
demais no que fica atrás da orelha. A pele é frágil ali e puxar o disco
sempre dói, especialmente quando um ou dois fios de cabelo se prendem
no adesivo embaixo. Feliz por minha vez ter passado, ponho o
equipamento de volta na caixa. Hoje à noite é a vez de Bram ser
monitorado.
Não sonhei com Xander. Não sei por quê.
Mas dormi tarde e vou me atrasar para o trabalho se não me apressar.
Ao entrar na cozinha, segurando o vestido da véspera, vejo que minha
mãe já pôs na mesa a remessa de comida para o café da manhã. Aveia,
marrom-acinzentada e esperada. Nós comemos em função da saúde e do
desempenho, não do gosto. Feriados e festas são as exceções. Como
nossas calorias são moderadas a semana inteira, ontem, no Banquete,
pudemos comer tudo o que estava à nossa frente sem um impacto
significativo.
Bram sorri para mim maliciosamente, ainda com a roupa de dormir.
— E aí — diz ele, pondo a última colherada de aveia na boca —,
dormiu demais porque tava sonhando com o Xander!
Não quero que ele saiba como está próximo da verdade. Que apesar
de não ter sonhado com Xander, era isso que eu queria que tivesse
acontecido.
— Não — digo —, e você não devia se preocupar em chegar na escola
na hora?
Bram ainda é novo o bastante para ter escola aos sábados em vez de
trabalho, e se não correr, vai se atrasar. De novo. Espero que ele não
receba uma anotação.
— Bram — diz minha mãe —, vai botar sua roupa comum, por favor.
— Ela vai dar um grande suspiro de alívio quando ele for para a Segunda
Escola, cujas aulas começam meia hora mais tarde.
Enquanto Bram sai desengonçadamente, minha mãe estende a mão
para o vestido e o segura. — Você estava tão bonita na noite passada.
Detesto ter que devolver.
Nós duas olhamos o vestido por um momento/Admiro a forma com
que o tecido absorve a luz e a reflete, quase como se a luz e o pano fossem
coisas vivas.
Suspiramos juntas, exatamente ao mesmo tempo, e minha mãe solta
uma risada. Ela me dá um beijo na bochecha.
— Vão mandar um pedacinho do tecido para você, lembra? — ela diz
e eu confirmo. Cada vestido é criado com um forro interior que pode ser
recortado, um para cada garota que se veste com ele. O retalho, assim
como a caixa de prata que guardou meu microcartão, serão as lembranças
do meu Banquete do Par.
Ainda assim. Nunca mais vou ver este vestido, o meu vestido verde.
Eu soube no momento em que o vi que era o que eu queria. Quando
fiz a seleção, a mulher no centro de distribuição de vestimentas sorriu
depois de bater o número — 73 — no computador.
— Este era o que você tinha a maior probabilidade de escolher —
disse ela. — Seus dados pessoais indicavam isto, assim como a psicologia
geral. Você já escolheu coisas que não são da preferência da maioria
antes, e garotas gostam de vestidos que ajudem a destacar os olhos.
Sorri e acompanhei quando ela mandou o assistente ir até os fundos
pegar o vestido. Ao experimentá-lo, vi que ela tinha razão. Era o vestido
para mim. A bainha caía perfeitamente, a cintura se delineava exatamente
na medida. Me virei diante do espelho, me admirando.
A mulher me falou:
— Até agora, você é a única garota a usar este vestido no Banquete do
Par deste mês. O mais popular é um dos cor-de-rosa, número 22.
— Bom — respondi. Não me importo de me destacar um pouquinho.
Bram reaparece na entrada, as roupas comuns amarrotadas, o cabelo
despenteado. Dá quase para ver o pensamento se formando na cabeça da
minha mãe: é melhor pentear o cabelo dele e atrasá-lo ou deixá-lo sair do
jeito que está?
Bram toma a decisão para ela.
— Até de noite — diz ele, correndo porta afora.
— Ele não vai chegar a tempo. — Mamãe olha pela janela, na direção
do ponto do trem aéreo, onde os trilhos se iluminam para indicar a
aproximação de um trem.
— Talvez chegue — digo, ao ver Bram romper outra regra, aquela
sobre não correr em público. Chego quase a ouvir seus passos ressoando
na calçada enquanto ele desce a rua correndo, a cabeça abaixada, a
mochila da escola batendo nas costas magrelas.
Assim que ele chega ao ponto, diminui o ritmo. Ajeita o cabelo e sobe
os degraus casualmente, rumo ao trem. Com sorte, ninguém o terá visto
correr. Um momento depois, o trem aéreo se afasta com Bram lá dentro,
em segurança.
— Esse menino vai acabar comigo. — Mamãe suspira. — Eu devia ter
acordado ele mais cedo. Nós todos dormimos demais. A noite passada foi
muito especial.
— Foi — concordo.
— Preciso pegar o próximo trem aéreo para a Cidade. — Mamãe joga
a sacola sobre o ombro. — O que você vai fazer nas horas de recreação
livre, hoje à noite?
— Aposto que o Xander e os outros vão querer jogar no centro juvenil
— digo. — A gente já assistiu a todas as exibições, e a música... — Dou de
ombros.
Minha mãe ri, completando a frase.
— E para gente velha como eu.
— E eu vou usar a última hora para visitar o Vovô. — Os oficiais geral-
mente não permitem que se fuja às opções habituais da recreação livre,
mas na véspera do Banquete Final de alguém, as visitas são encorajadas e
permitidas.
O olhar da minha mãe se suaviza.
— Ele vai adorar.
— O Papai falou para o Vovô sobre o meu Par? Mamãe sorri.
— Ele estava planejando dar uma parada por lá, no caminho para o
trabalho.
— Bom — digo, porque quero que o Vovô saiba o mais rápido
possível. Sei que ele andou pensando tanto em mim e no meu Banquete
quanto eu ando pensando nele e no dele.
Depois de terminar apressadamente o café da manhã, chego ao trem
com segundos de folga e relaxo. Talvez não tenha sonhado com Xander
enquanto dormia, mas posso sonhar acordada com ele agora. Olhando
pela janela e pensando em como ele ficou bem de terno, vejo os Bairros
passarem enquanto sigo para a Cidade. O verde ainda não deu lugar à
pedra e ao concreto quando reparo em flocos brancos caindo do céu.
Todo mundo repara também.
— Neve em junho — espanta-se a mulher do meu lado.
— Não pode ser — resmunga um homem do outro lado do corredor.
— Mas olha só — diz ela. Não pode ser — diz de novo o homem. As
pessoas se contorcem,
viram para as janelas, com aparência agitada. Algo errado pode ser
verdade?
Com toda certeza, pequenas rajadas brancas esvoaçam a caminho do
chão. Há alguma coisa estranha nesta neve, mas não tenho certeza do que
é. Pego-me contendo um sorriso ao olhar todos os rostos preocupados ao
meu redor. Será que eu também deveria me preocupar? Talvez. Mas é tão
bonito, tão inesperado, e tão inexplicável neste momento.
O trem aéreo para. As portas se abrem e alguns flocos entram. Pego
um deles com a mão, mas ele não derrete. O mistério, sim, derrete,
quando vejo a sementinha marrom no meio da neve.
— E uma semente de choupo — digo a todos, cheia de confiança. —
Não é neve.
— E claro — diz o homem, parecendo feliz por haver uma explicação.
Neve em junho seria atípica. Sementes de choupo, não.
— Mas por que tantas? — pergunta outra mulher, ainda preocupada.
Um momento depois, temos a resposta. Um dos passageiros recém-che-
gados, ao sentar-se, sacode as sementes do cabelo e das roupas comuns.
— Estamos derrubando a plantação de choupo na margem do rio —
explica. — A Sociedade quer plantar árvores melhores ali.
As outras pessoas aceitam a palavra dele. Não sabem nada de árvores.
Resmungam que estão felizes por não ser sinal de outro Aquecimento;
felizmente, a Sociedade tem tudo sob controle, como sempre. Mas graças
a minha mãe, que não consegue parar de falar sobre seu trabalho de
cuidadora no Arboreto, eu sei que a explicação faz sentido. Não dá para se
usar choupos para obter frutos ou combustível. E as sementes são uma
chateação. Voam longe, pegam em qualquer coisa, tentam crescer em
toda parte. Árvores-mato, diz minha mãe. Ainda assim, ela sente uma
afinidade especial por elas por causa das sementes, que pequenas,
marrons, mas envoltas em beleza, naqueles esguios fios de algodão
branco. Pequenos pára-quedas nebulosos que atrasam lhes a queda,
ajudam-nas a voar, a aproveitar o vento e chegar a algum lugar onde
podem germinar.
Olho a semente na palma da minha mão. Ainda há mistério nela,
afinal de contas, naquele núcleo marrom. Não sei bem o que fazer com
ela, por isso guardo-a no bolso, junto com o recipiente onde guardo os
comprimidos.
A quase neve me lembra o verso de um poema que estudamos este
ano em Linguagem e Leitura. "Pausa no Bosque em uma Noite de Neve". É
um dos meus favoritos entre os Cem Poemas, aqueles que a Sociedade
escolheu guardar, quando decidiram que nossa cultura estava entulhada
demais. Criaram comissões para escolher os cem melhores de tudo: Cem
Canções, Cem Pinturas, Cem Histórias, Cem Poemas. O resto foi eliminado.
Para sempre. Para melhor, disse a Sociedade, e todos acreditaram porque fazia
sentido. Como podemos apreciar qualquer coisa por completo quando
somos sobrecarregados por coisas demais?
A minha própria bisavó fez parte do grupo de historiadores da cultura que
ajudou a selecionar os Cem Poemas, há quase setenta anos. Vovô me contou a
história milhares de vezes. Como sua mãe ajudou a escolher quais poemas
deveriam ser guardados, e quais perdidos para sempre. Ela costumava cantar
para ele partes dos poemas como cantigas de ninar. Ela sussurrava, cantava,
disse ele, e eu tentei me lembrar deles depois que ela se foi.
Depois que ela se foi. Amanha, meu avô também se vai.
Ao deixarmos as últimas sementes de choupo para trás, penso naquele
poema e em por que gosto tanto dele. Gosto das palavras sono e profundo, da
forma com que se encadeiam e se repetem. Acho que o poema seria uma boa
cantiga de ninar se você prestasse atenção ao ritmo e não às palavras. Porque se
prestasse atenção às palavras, não se sentiria descansado: Quilômetros pela
frente antes de dormir.
— Hoje nós vamos ter uma classificação de números — diz Norah, minha
supervisora.
Suspiro um pouco, mas Norah não reage. Ela faz a leitura do meu cartão e
me devolve. Não pergunta sobre o Banquete do Par, embora obviamente saiba,
pela atualização dos meus dados, que foi na noite passada. Mas isso não é
novidade. Norah mal interage comigo porque eu sou uma das melhores
classificadoras. De fato, já se passaram quase três meses desde o meu último
erro, que foi a última ocasião em que conversamos de verdade.
— Espere — diz Norah, enquanto me dirijo a meu posto. — A leitura do
cartão indica que já está quase na hora para o seu teste formal de classificação.
Assinto. Ando pensando nisso há meses. Não tanto quanto pensei no
Banquete do Par, mas com freqüência. Apesar de essas classificações numéricas
serem chatas, a atividade de separação pode conduzir a postos de trabalho bem
mais interessantes. Talvez eu possa vir a ser supervisora de Restauração, como o
meu pai. Quando ele tinha a minha idade, seu trabalho também era classificação
de informação. O mesmo aconteceu com o meu avô e, naturalmente, com a
minha bisavó, aquela que participou de uma das maiores classificações de todos
os tempos, quando fez parte do Comitê dos Cem.
Os que supervisionam a formação dos Pares também começam pela clas-
sificação, mas eu não tenho interesse nisso. Prefiro um certo distanciamento
desse campo. Não quero ser encarregada de classificar gente de verdade.
— Verifique se você está pronta — diz Norah, mas eu e ela sabemos que
estou.
Luz amarelada entra pelas janelas perto dos nossos postos no centro de
classificação. Faço sombra sobre o posto de outros trabalhadores ao passar.
Ninguém olha para cima.
Entro no meu minúsculo posto, onde só cabe uma mesa, uma cadeira e
uma tela de classificação. As finas paredes cinzentas se erguem do meu lado e
não consigo ver mais ninguém. Nós somos como os microcartões na biblioteca
de pesquisa, na Segunda Escola — cada um bem encaixado numa fenda. O
governo tem computadores que podem fazer o trabalho de classificação mais
rápido do que nós, é claro, mas nós ainda somos importantes. Ninguém sabe
quando a tecnologia pode falhar.
Foi o que aconteceu com a sociedade antes da nossa. Todo mundo tinha
tecnologia, tecnologia demais, e as conseqüências foram desastrosas. Agora nós
temos a tecnologia básica de que precisamos — terminais, leitores, escrevinha-
dores — e nosso consumo de informação é bem mais específico. Especialistas
em nutrição não precisam saber como programar trens aéreos, por exemplo, e
programadores, por sua vez, não têm que saber preparar alimentos. Tal especia-
lização impede que as pessoas se sobrecarreguem. Não precisamos compreen-
der tudo. E, como nos lembra a Sociedade, existe uma diferença entre conheci-
mento e tecnologia. O conhecimento não nos falha.
Passo meu cartão de leitura e a classificação começa. Apesar de preferir
associar palavras, imagens ou frases, também sou boa com números. A tela me
informa que padrões devo encontrar e os números começam a aparecer na tela
como soldadinhos brancos em um campo negro, esperando que eu os derrube.
Toco cada um e começo a classificá-los, colocando-os em caixas diferentes. O
bater dos meus dedos faz um som baixo, suave, quase tão silencioso quanto a
neve ao cair.
E eu crio uma tempestade. Os números voam para suas posições como
flocos levados pelo vento.
No meio do processo, o padrão que procuramos se altera. O sistema re-
gistra a rapidez com que reparamos na mudança e a velocidade com que adap-
tamos nossas classificações. Nunca se sabe quando uma mudança vai acontecer.
Dois minutos depois, o padrão se altera mais uma vez, e novamente eu percebo
na primeira linha de números. Não sei como, mas sempre prevejo a mudança
antes que ela aconteça.
Quando classifico, só tenho tempo de pensar no que vejo diante de mim.
Por isso ali, no meu pequeno espaço cinzento, não penso em Xander. Não de-
sejo sentir o vestido verde contra a minha pele, nem o gosto de bolo de choco-
late na minha língua. Não penso que meu avô vai comer sua última refeição
amanhã à noite, no Banquete Final. Não penso em neve em junho, nem em
outras coisas que não podem ser reais, mas de alguma forma são. Não vejo o sol
me atordoando, nem a lua me refrescando, nem o bordo no quintal a se trans-
formar em dourado, verde, vermelho. Vou pensar em todas aquelas coisas e em
outras tantas mais tarde, mas não enquanto classifico.
Classifico, classifico e classifico até que não haja mais dados para mim. A
minha tela está vazia. Sou eu quem a faz ficar assim.
Quando pego o trem aéreo de volta para o Bairro de Mapletree, as
sementes de choupo desapareceram. Quero falar delas para minha mãe, mas
quando chego em casa, ela, meu pai e Bram já saíram para as horas de lazer. Um
recado para mim pisca no terminal. Lamentamos não tê-la encontrado,
Cássia, brilham as letras. Tenha uma boa noite.
Um bipe soa na cozinha. Minha refeição chegou. A embalagem de alumínio
desliza pela fenda de entrega de alimentos. Eu a pego rapidamente, a tempo de
ouvir o som do veículo de nutrição batendo em seu trilho, por trás das casas do
Bairro.
Meu jantar solta vapor quando eu o abro. Deve haver um novo diretor da
equipe de nutrição. Antes a comida sempre estava morna ao chegar. Agora
chega pegando fogo. Como com pressa, queimando um pouco a boca, porque
sei o que quero fazer com este raro tempo sem obrigações nesta casa quase de-
serta. Nunca estou sozinha de fato. O terminal zumbe ao fundo, acompanhando,
vigiando. Mas está tudo bem. Vou precisar dele para o que vou fazer. Quero ver
o microcartão sem que meus pais ou Bram fiquem olhando por cima do meu
ombro. Quero ler mais sobre Xander antes de vê-lo esta noite.
Ao inserir o microcartão, o zumbido assume um tom mais determinado. A
tela do terminal se ilumina e meu coração bate mais rápido com a expectativa,
apesar de conhecer Xander tão bem. O que a Sociedade decidiu que eu deveria
saber sobre ele, a pessoa com quem vou passar a maior parte da minha vida?
Será que sei tudo sobre ele, como eu acho que sei, ou existe algo que não
percebi?
— Cássia Reyes, a Sociedade tem o prazer de lhe apresentar seu Par.
Sorrio ao ver o rosto de Xander aparecer na tela do terminal, imediata-
mente após a mensagem gravada. É um bom retrato dele. Como sempre, o
sorriso parece vivo e real, os olhos azuis, bondosos. Examino o rosto atenta-
mente, fingindo que nunca vi este retrato antes. Que só o vislumbrei uma vez,
na noite passada, no banquete. Examino a superfície do rosto, a aparência dos
lábios. Ele é bonitão. Nunca ousei pensar que ele poderia ser meu Par, natural-
mente, mas agora que isto aconteceu, estou interessada. Intrigada. Um pouco
assustada sobre como nossa amizade deverá se transformar, mas acima de
tudo, feliz.
Estendo a mão para tocar nas palavras Orientações de Namoro, mas
antes disso o rosto de Xander escurece e depois desaparece. A tela do terminal
solta um bipe e a voz diz mais uma vez:
— Cássia Reyes, a Sociedade tem o prazer de lhe apresentar seu Par. Meu
coração para, não acredito no que vejo. Um rosto reaparece no terminal, diante
de mim.
Não é o rosto de Xander.
CAPÍTULO 4
― O QUÊ?— COMPLETAMENTE ATÔNITA, TOCO NA TELA E O ROSTO
se dissolve sob a ponta dos meus dedos, se desfazendo em pontos que
parecem poeira. Palavras aparecem, mas antes que eu possa lê-las, a tela
fica completamente vazia. De novo.
— O que tá acontecendo? — digo em voz alta.
A tela permanece vazia, e eu também me sinto vazia. Isso é milhares
de vezes pior do que a tela apagada da noite passada. Eu sabia o que
aquilo queria dizer. Não faço idéia do que isso queira dizer. Nunca ouvi
falar que isso pudesse acontecer.
Não compreendo. A Sociedade não comete erros.
Mas o que mais poderia ser? Ninguém tem dois Pares.
— Cássia? — Xander me chama do outro lado da porta.
— Estou indo — respondo, arrancando o microcartão do terminal e
guardando-o no bolso. Respiro fundo e abro a porta.
— Seu microcartão me ensinou que você gosta de ciclismo — diz
Xander, todo formal, quando fecho a porta, me fazendo rir um pouco
apesar do que acabou de ocorrer. Ciclismo é a atividade que eu mais odeio
entre as opções de exercício, e ele sabe. A gente discute isso o tempo
todo. Eu acho uma estupidez andar em algo que não sai do lugar, só
fazendo as rodas girarem sem parar. Ele argumenta que eu gosto de correr
no rastreador, que é quase a mesma coisa. "E diferente", digo para ele,
mas não sei explicar por quê.
— Você passou o dia inteiro admirando o meu rosto no terminal? —
ele pergunta. Ainda está brincando, mas subitamente, eu não consigo
recuperar o fôlego. Ele também viu o microcartão dele. Será que o rosto
que ele viu era o meu? Parece estranho esconder alguma coisa,
especialmente de Xander.
— Claro que não — digo, tentando responder com uma provocação.
— E sábado, lembra? Eu precisei trabalhar.
— Eu também, mas isso não me impediu. Li todas as suas estatísticas
e examinei todas as orientações de namoro.
Sem saber, ele me joga um salva-vidas com aquelas palavras. Já não
estou mais me afogando em preocupações. Ainda estou em águas
profundas, envolvida por ondas frias, mas já consigo respirar. Xander
ainda acha que nós somos um Par. Nada de estranho aconteceu quando
viu o microcartão dele. Já é alguma coisa.
— Você leu todas as orientações?
— Claro. Você não?
— Ainda não. — Me sinto estúpida ao admitir, mas Xander ri de novo.
— Não são muito interessantes — diz ele. — A não ser uma delas. —
Ele pisca, cheio de segundas intenções.
— É? — digo, distraída. Vejo outros jovens da nossa idade se
encontrando e se juntando na rua, caminhando para o centro de
recreação, como nós. Estão acenando, nos chamando, usando as mesmas
roupas que nós usamos. Mas há uma grande diferença esta noite. Uns
observam. Outros são observados: eu e Xander.
Os olhares dos outros nos contemplam, se prendem a nós, se afastam
e voltam.
Não estou acostumada. Xander e eu somos cidadãos normais e
saudáveis, fazemos parte do grupo. Não somos intrusos.
Mas me sinto separada agora, como se uma parede fina e clara se
erguesse nitidamente entre mim e os que me encaram. Podemos nos ver,
mas não atravessá-la.
— Você tá bem? — pergunta Xander.
Tarde demais, percebo que devia ter dito alguma coisa com relação ao
comentário de Xander e perguntado que regra ele achou interessante. Se
não conseguir me recompor logo, ele vai saber que algo está errado. Nos
conhecemos bem demais.
Xander alcança meu cotovelo quando viramos a esquina e saímos do
bairro de Mapletree. Depois de darmos mais alguns passos, ele desliza a
mão pelo meu braço e entrelaça os dedos aos meus. Se aproxima da
minha orelha.
— Uma das regras dizia que nós temos permissão de expressar afeto
fisicamente. Se nós quisermos.
E eu quero. Mesmo com toda a tensão que sinto, o toque da mão dele
na minha, sem nada nos separando, ainda é bem-vindo e novo. Fico
surpresa por Xander reagir com tanta naturalidade. Enquanto
caminhamos, reconheço a emoção que vejo em alguns dos rostos das
meninas que nos encaram. É inveja, pura e simples. Relaxo um pouco
porque consigo entender a razão. Nenhuma de nós achou que poderia
ficar com Xander, louro, carismático, inteligente. Sempre pensamos que
ele viria a ser o Par de outra garota em outra Cidade, em outra Província.
Mas ele não é. Ele é o meu Par.
Mantenho os dedos presos aos dele enquanto andamos até o centro
de recreação. Talvez, se eu não soltar, isso prove que nosso destino era ser
mesmo um Par. Que aquele outro rosto na tela não significa nada: que foi
só um defeito temporário do microcartão.
Só que. O rosto que eu vi, o rosto que não era de Xander: eu conheço
ele também.
CAPÍTULO 5
―TEM UM LUGAR AQUI — DIZ XANDER, PARANDO NA MESA DE
jogos, no meio da sala. Aparentemente, os outros jovens do Bairro
pensaram a mesma coisa que nós em relação às opções de recreação para
este sábado, porque o centro está cheio de gente, incluindo a maior parte
dos nossos amigos. — Quer entrar, Cássia?
— Não, obrigada — digo. — Vou só assistir essa rodada.
— E você? — ele pergunta para Em, minha melhor amiga.
— Pode ir — ela responde, e nós rimos quando ele abre o sorriso e
vira para entregar o cartão de leitura para o Funcionário que toma conta
do jogo. Xander sempre foi assim com os jogos — completamente ligado,
cheio de energia e expectativa. Me lembro de brincar com ele quando
éramos pequenos, de como levávamos tudo a sério e não deixávamos que
o outro ganhasse.
Me pergunto quando deixei de gostar dos jogos. E difícil de lembrar.
Xander se acomoda na mesa, diz alguma coisa que faz com que todos
riam. Sorrio por dentro. E mesmo muito mais divertido vê-lo jogar do que
jogar. E este jogo, Verificação, é um dos favoritos dele. £ um jogo de
habilidade, do tipo que ele mais gosta.
— Então — diz Em, baixinho, com o som dos risos e da conversa
escondendo as suas palavras das outras pessoas. — Como é a sensação?
Conhecer o seu Par?
Sabia que ela perguntaria isso. Sei que é o que todo mundo gostaria
de saber. E respondo da única forma que posso. Digo a verdade.
— E Xander. É maravilhoso. Em assente, compreensiva.
—Todo esse tempo ninguém imaginou que podia acabar com um de
nós mesmos — diz ela. — E aí acontece.
— Eu sei — digo.
— E Xander. Ele é o melhor de nós. — Alguém a chama e Em vai até
outra mesa.
Eu observo Xander pegar as pedras cinzentas e colocá-las nos
quadrados cinza e negros do tabuleiro. A maior parte das cores no centro
de recreação é sem graça: paredes cinzentas, roupas comuns marrons para
os estudantes, roupas comuns em azul-escuro para aqueles de nós que já
tiveram acesso a postos de trabalho permanentes. E a luz da sala vem de
nós: dos tons dos nossos cabelos, do nosso riso. Quando Xander arruma a
última peça, ele me olha, de trás do tabuleiro e diz bem na frente dos seus
oponentes.
— Vou ganhar essa partida para o meu Par.
Todos se viram para me encarar e ele sorri maliciosamente. Reviro os
olhos para ele, mas ainda estou vermelha momentos depois, quando
alguém bate no meu ombro. Me viro. Uma Funcionária aguarda atrás de
mim.
— Cássia Reyes? — pergunta.
— Sim — respondo, olhando para Xander. Ele está concentrado na jo-
gada e não vê o que acontece.
— Você poderia sair um momento? Não vai demorar e não há motivo
para ficar preocupada. E só rotina.
Será que ela sabe o que aconteceu quando eu tentei visualizar o
microcartão?
— Claro — respondo, pois não há outra resposta possível quando um
Funcionário te pede alguma coisa. Olho para os meus amigos. Os olhos
estão colados no jogo diante deles e nos jogadores que movem as peças.
Ninguém repara quando eu saio. Nem Xander. A multidão me engole e sigo
o uniforme branco da Funcionária até o lado de fora.
— Deixe eu tranqüilizar você e dizer que não há motivos para se
preocupar
— diz a Funcionária, sorridente. A voz parece bondosa. Ela me leva a
uma pequena área verde do lado de fora do centro. Ainda que estar com
uma Funcionária me deixe mais nervosa, o ar livre cai bem depois de ter
estado no meio da multidão lá dentro.
Caminhamos pela grama bem-aparada até um banco metálico que fica
exatamente debaixo de um poste. Não se vê nenhuma outra pessoa.
— Você nem precisa me contar o que aconteceu — diz a Funcionária.
— Eu sei. O rosto no microcartão não era o certo, não é?
Ela é gentil: não me obrigou a dizer as palavras. Assinto.
— Você deve estar muito preocupada. Contou para mais alguém o que
aconteceu?
— Não — respondo. Ela sinaliza para que eu me sente no banco, e é o
que faço.
— Excelente. Deixe eu tranqüilizar você. — Ela me olha bem nos
olhos.
— Cássia, absolutamente nada mudou. Você continua a ser o Par de
Xander Carrow.
— Obrigada — digo, e me sinto tão grata que não me basta dizer
aquilo uma vez. — Obrigada. — A confusão me abandona e finalmente,
finalmente, finalmente, eu relaxo. Suspiro e ela ri.
— E posso felicitá-la pelo seu Par? Causou um burburinho. As pessoas
estão falando no assunto em toda a Província. Talvez até em toda a
Sociedade. Não acontece há muitos anos. — Ela fez uma breve pausa e
depois prosseguiu:
— Imagino que você não tenha trazido o microcartão com você.
— Para falar a verdade, trouxe. — Tiro de dentro do bolso. — Fiquei
preocupada... Não queria que mais ninguém visse...
Ela estende a mão e deixo o cartão cair na palma aberta.
— Perfeito. Eu cuido disso. — Ela o põe dentro da pequena maleta de
Funcionário. Vislumbro o recipiente de seus comprimidos e percebo que é
maior do que o padrão. Ela percebe o meu olhar. — Funcionários de nível
mais elevado carregam mais — diz ela. — Em caso de emergência. —
Assinto e ela prossegue: — Mas você não precisa se preocupar com isso.
Agora, isto aqui é para você. — Ela pega outro microcartão de um bolso
lateral no interior da maleta. — Eu mesma o verifiquei. Está tudo em
ordem.
— Obrigada.
Depois que guardo o novo microcartão no bolso, nenhuma de nós diz
nada, por alguns instantes. A princípio, olho para a grama, os bancos de
metal e o pequeno chafariz de concreto no meio da área verde, que
despeja jatos prateados de água com intervalos de poucos segundos. Olho
para a mulher ao meu lado, tentando vislumbrar a insígnia no bolso da sua
blusa. Sei que é uma Funcionária porque usa roupas brancas, mas não sei
bem qual é o Departamento da Sociedade que ela representa.
— Eu faço parte do Departamento de Pares, autorizada para lidar com
falhas de informação — diz a Funcionária, percebendo meu olhar. — Por
sorte, nós não temos muito trabalho. Como a formação dos Pares é muito
importante para a Sociedade, ela é muito bem regulada.
As palavras me lembram um parágrafo que consta do material oficial
sobre Pares. O objetivo da Formação de Pares é duplo: garantir à nossa
Sociedade futuros cidadãos os mais saudáveis possíveis e oferecer as
melhores oportunidades para cidadãos interessados em experimentar uma
Vida Familiar bem-sucedida. E da maior importância para a sociedade que
os Pares sejam os mais perfeitos possíveis.
— Nunca ouvi falar de um erro como esse.
— Temo que aconteça de vez em quando. Não com muita frequência.
— Ela fica em silêncio por um momento e depois faz a pergunta que eu
não queria ouvir. — Você reconheceu a pessoa cujo rosto você viu?
De repente, de uma forma irracional, fico tentada a mentir. Quero
dizer que não faço a mínima idéia de quem seja, que nunca vi aquele rosto
antes. Olho de novo para o chafariz, vejo a água subir e descer e sei que a
pausa me trai. Por isso, respondo.
— Sim.
— Pode me dizer o nome dele?
Ela já sabe de tudo isso, naturalmente, portanto não há nada a fazer
além de dizer a verdade.
— Sim. Ky Markham. É isso o que foi mais estranho em toda a
história. As possibilidades de um erro acontecer, e do erro acontecer com
alguém que eu conheço...
— São praticamente inexistentes — ela concorda. — E verdade. O
que nos leva a pensar se o erro foi intencional, se foi uma espécie de
piada. Se descobrirmos a pessoa, vamos puni-la com rigor. Foi uma
crueldade. Não só por ser perturbador e deixar você confusa, mas também
por causa de Ky.
— Ele sabe disso?
— Não. Não tem a mínima idéia. A razão que me faz dizer que foi cruel
usá-lo como parte dessa brincadeira é o fato de ele ser o que ele é.
— O que ele é? — Ky Markham mudou-se para nosso bairro quando
tínhamos 10 anos. Ele é bonitinho e quieto. Está sempre na dele. Não é um
encrenqueiro. Não o encontro tanto quanto costumava. No ano passado,
ele recebeu um posto de trabalho e não freqüenta mais a Segunda Escola
junto com o resto dos jovens do Bairro.
A Funcionária assente e se aproxima um pouco mais, embora ninguém
esteja por perto para nos ouvir. A luz do poste brilha sobre nós, quente, e
fico um pouco agitada.
— É uma informação confidencial, mas Ky Markham nunca poderia
ser seu Par. Ele nunca vai ser Par de ninguém.
— Ele escolheu ser um Solteiro, então. — Não sei bem por que esta
informação é confidencial. Muita gente de nossa escola escolheu ser
solteira. Existe até um parágrafo sobre o assunto no material oficial sobre
os Pares: Por favor, pense cuidadosamente se você é um bom candidato
para ter um Par. Lembre-se: os Solteiros são uma parte igualmente
importante da Sociedade. Como você sabe, o atual Líder da Sociedade é
um Solteiro. Tanto os cidadãos com Pares quanto os Solteiros
experimentam vidas plenas e satisfatórias. No entanto, só se permite o
nascimento de filhos daqueles que escolheram ter um Par.
Ela se aproxima ainda mais de mim.
— Não. Ele não é um solteiro. Ky Markham é uma Aberração. Ky
Markham é uma Aberração?
As Aberrações vivem entre nós. Não são perigosas como as Anomalias,
que têm de ser separadas da Sociedade. Embora as Aberrações
geralmente adquiram esta condição devido a uma Infração, elas são
protegidas. Suas identidades não costumam ser de conhecimento geral. Só
Funcionários do Departamento de Classificação Social e de outras áreas
relacionadas têm acesso a tais informações.
Não faço a pergunta em voz alta, mas ela sabe o que estou pensando.
— Lamento dizer que é verdade. Embora não seja culpa dele. Mas o
pai dele cometeu uma Infração. A Sociedade não podia ignorar algo assim,
apesar de permitir que os Markham adotassem Ky. Ele teve que continuar
a ser classificado como uma Aberração, e, por isso, não podia ser
candidato a um Par. — Ela suspira. — Os microcartões são feitos poucas
horas antes do Banquete. E provável que seja aí que o erro ocorreu. Já
estamos verificando quem teve acesso ao seu microcartão, quem poderia
ter acrescentado o retrato de Ky antes do Banquete.
— Espero que descubram quem foi — digo. — Você está certa. E
cruel.
— Vamos descobrir — diz ela, sorrindo para mim. — Eu prometo. —
Depois baixa os olhos e dá uma olhada no relógio. — Preciso ir embora
agora. Espero ter conseguido acabar com as suas preocupações.
— Conseguiu, muito obrigada. — Tento afastar meus pensamentos
do garoto que é uma Aberração. Deveria estar pensando em como é
maravilhoso que tudo esteja de volta ao normal. Mas em vez disso, penso
em Ky, em como lamento por ele, em como gostaria de não saber disso e
como preferia continuar achando que ele tinha escolhido ser Solteiro.
— Não preciso dizer para manter em segredo a informação sobre Ky
Markham, não é? — ela pergunta suavemente, mas percebo o ferro em
sua voz. — Só contei para você para que soubesse sem a menor sombra de
dúvida que ele nunca poderia ter sido escolhido como seu Par.
— Claro. Não vou dizer nada a ninguém.
— Muito bem. É melhor manter tudo isso em segredo. Naturalmente,
podemos marcar uma reunião, se você quiser, explicar aos seus pais, a
Xander e aos pais dele o que aconteceu...
— Não! — digo, resoluta. — Não. Não quero que ninguém saiba, a
não
ser...
— A não ser quem?
Não respondo e subitamente a mão dela está no meu braço. Ela não
me segura de forma violenta, mas percebo que ela espera uma resposta à
sua curta pergunta.
— Quem?
— Meu avô — admito. — Ele tem quase 80 anos. Ela solta meu braço.
— Quando é o aniversário dele?
— Amanhã.
Ela pensa por um momento, depois assente.
— Se você acha que precisa conversar com alguém sobre o que
ocorreu, ele seria a opção perfeita. Ainda assim. É a única pessoa?
— Sim — digo. — Não quero que mais ninguém saiba. Não me
importo que o Vovô saiba porque... — deixo a frase inacabada.
Ela sabe a razão. Pelo menos uma das razões.
— Fico feliz que você pense assim — diz a Funcionária, concordando.
— Devo admitir que facilita as coisas para mim. Obviamente, quando
conversar com seu avô, você vai avisar que ele ganhará uma anotação se
mencionar isso para outra pessoa. E, com toda certeza, não é uma coisa
que ele deseje neste momento. Ele poderia perder os privilégios de
preservação.
— Eu entendo.
A Funcionária sorri e se levanta.
— Posso ajudar com mais alguma coisa?
Fico feliz com o fim da conversa. Agora que tudo voltou ao lugar no
meu mundo, quero voltar para aquela sala cheia de gente. Subitamente,
aqui fora parece muito solitário.
— Não, obrigada.
Ela faz um gesto apontando para o caminho que leva ao centro.
— Tudo de bom para você, Cássia. Fico feliz em poder ajudá-la.
Agradeço mais uma vez e saio. Ela fica para trás e me observa. Apesar de
saber que é uma bobagem, sinto como se ela me observasse até
chegar à porta, até atravessar os corredores, voltar para a sala e ir até a
mesa em que Xander continua a jogar. Ele ergue a cabeça e me olha nos
olhos. Ele reparou que eu tinha saído. “Está tudo bem?” seus olhos me
perguntam e eu faço que sim. Agora está.
Tudo voltou ao normal. Melhor do que o normal — posso apreciar no-
vamente o fato de ter Xander como meu Par. Ao mesmo tempo, preferia
que ela não tivesse me falado de Ky. Não vou ser capaz de olhá-lo de novo
do mesmo jeito agora que sei coisas demais sobre ele.
Há tantos de nós dentro do centro de recreação. A sala está quente e
úmida, me lembra a simulação do oceano tropical que fizemos, certa vez,
na aula de ciências, uma simulação sobre os recifes de corais que tinham
peixes em abundância, antes que o Aquecimento matasse todos. Sinto
gosto de suor e respiro água.
Alguém esbarra em mim quando um Funcionário faz um pronuncia-
mento no alto-falante principal. A multidão faz silêncio e escuta:
— Alguém deixou cair o recipiente de comprimidos. Por favor, fiquem
imóveis e não falem nada até que possamos localizá-lo.
Todos param imediatamente. Ouço o rumor dos dados e uma suave
pancada quando alguém, talvez Xander, pousa uma das peças do jogo.
Então tudo fica em silêncio. Ninguém se move. Recipiente perdido é coisa
séria. Olho para uma garota que está perto de mim e ela me devolve o
olhar, de boca aberta, paralisada. Penso de novo na simulação do oceano,
em como o instrutor fez uma pausa no meio para explicar alguma coisa e
os peixes projetados pela sala ficaram nos olhando, sem piscar, até ele
ligar de novo o simulador.
Todos nós esperamos que alguém aperte o botão, que o instrutor nos
diga o que vem a seguir. Minha mente começa a vagar, a escapar deste
lugar onde ficamos paralisados. Será que existem outras Aberrações
desconhecidas ali na sala, nadando nessa água? Água. Tenho outra
lembrança da água, uma verdadeira, desta vez, de um dia quando eu e
Xander tínhamos 10 anos.
Naquela época, tínhamos mais tempo de recreação livre, e nos verões,
geralmente o aproveitávamos na piscina. Xander gostava de nadar na água
azul, clorada. Eu gostava de me sentar na superfície acimentada da
beirada e balançar os pés para frente e para trás antes de entrar. Era o que
estava fazendo quando Xander surgiu ao meu lado, com ar preocupado.
— Perdi o recipiente dos comprimidos — ele me falou em voz baixa.
Olhei para baixo para ter certeza de que o meu continuava preso à roupa
de banho. Continuava, o grampo de metal estava bem preso à alça do
meu ombro esquerdo. Tínhamos recebido os recipientes de comprimidos
havia algumas semanas e, àquela altura, continham apenas um. O
primeiro. O azul. Aquele que pode nos salvar. Aquele que contém
nutrientes em quantidade suficiente para nos manter por vários dias, se
também tivermos água.
Havia muita água na piscina. Este era o problema. Como Xander ia en-
contrar o recipiente?
— Deve estar debaixo d'água — respondi. — Vamos pedir para o
salva-vidas esvaziar a piscina.
— Não — disse Xander, de queixo erguido. — Não diz para eles. Vão
me dar uma anotação por ter perdido. Não diz nada. Eu vou achar.
Portar os próprios comprimidos é um passo importante para a
independência. Perdê-los é como admitir que não se está pronto para
responsabilidades. Nossos pais portam nossos comprimidos até que
tenhamos idade o bastante para cuidar deles, um por um. Primeiro, o azul,
com 10 anos. Depois, quando completamos 13, o verde. E o que nos
acalma, quando precisamos nos acalmar.
E quando completamos 16 anos, o vermelho, aquele que nós só
podemos tomar quando um Funcionário de alto nível manda.
A princípio, tentei ajudar Xander, mas o cloro sempre fere meus olhos.
Mergulhei, mergulhei e então, quando meus olhos ardiam tanto que eu
mal conseguia ver, voltei para o cimento ao lado da piscina e tentei olhar
sob a superfície da água, iluminada pelo sol.
Nenhum de nós usa relógio quando somos pequenos. O tempo nos é
informado. Mas ainda assim, eu soube. Soube que ele já estava debaixo
d'água mais do que deveria. Havia medido o tempo com as batidas do
coração e com as pancadas das ondas contra as bordas da piscina à medida
que uma pessoa, e outra e mais outra, mergulhavam.
Ele se afogou? Por um momento, fiquei ofuscada pelo sol que se
refletia na água, pálido, e paralisada pelo medo, que também me pareceu
pálido. Mas me levantei, respirei fundo para berrar para o mundo inteiro:
Xander tá debaixo d'água, alguém salva ele! Antes de o grito sair, uma voz
que eu não conhecia me perguntou:
— Ele está se afogando?
— Não sei — respondi, arrancando os olhos da água. Um garoto
estava ao meu lado. Pele bronzeada, cabelo escuro. Um garoto novo. Foi
tudo que tive tempo de perceber antes que ele desaparecesse, deslizando
sob a superfície em um movimento rápido.
Uma pausa, mais algumas batidas das ondas contra o cimento e a
cabeça de Xander despontou sobre a água. Ele abriu um sorriso triunfante
para mim, segurando o estojo impermeável.
— Achei — disse ele.
— Xander — falei, aliviada. — Você tá bem?
— Claro — disse ele, com o brilho confiante de volta ao olhar. — Por
que eu não estaria?
— Você ficou lá embaixo tanto tempo que eu achei que você estava se
afogando — admiti. — E aquele garoto também... — De repente, entrei
em pânico. Cadê o outro garoto? Ele não tinha saído da água para respirar.
— Que garoto? — perguntou Xander, confuso.
— Ele foi te procurar. — E então eu o vi, sob o azul, uma sombra
debaixo da água. — Está bem ali. Será que ele está se afogando?
Bem naquele momento, o garoto rompeu a superfície da água
tossindo, o cabelo reluzente. Um arranhão vermelho, quase curado, mas
ainda visível, cortava sua bochecha. Fiz o melhor que pude para não
encará-lo. Não apenas porque ferimentos são incomuns em um lugar onde
somos tão saudáveis e vivemos em tanta segurança, mas porque eu não o
conhecia. Um desconhecido.
O menino levou alguns momentos para recuperar o fôlego. Quando
conseguiu, me olhou, mas se dirigiu a Xander, dizendo:
— Você não se afogou.
— Não — concordou Xander. — Mas você quase se afogou.
— Eu sei — disse o garoto. — Queria te salvar. — Ele se corrigiu. —
Quer dizer, te ajudar.
— Você não sabe nadar? — perguntei.
— Achei que sabia — disse ele, o que fez com que eu e Xander
ríssemos. O garoto olhou nos meus olhos e sorriu. O sorriso pareceu
surpreendê-lo: pois surpreendeu também a mim, o seu calor.
O garoto voltou a olhar para Xander.
— Ela pareceu preocupada, quando você não voltou à superfície.
— Não estou mais preocupada — disse, aliviada por todos estarem
seguros. — Você está visitando alguém? — perguntei para o menino,
torcendo para que tivesse vindo fazer uma longa visita. Eu já gostava dele,
porque ele quis ajudar Xander.
— Não — respondeu ele, e embora ainda sorrisse, a voz parecia baixa
e parada como a água à nossa volta. Ele me olhou bem nos olhos. — Meu
lugar é aqui.
Agora, com os olhos fixos na multidão diante de mim, sinto a mesma
sensação de alívio e despreocupação ao ver um rosto familiar, alguém com
quem, até então, eu estava tremendamente preocupada. Alguém que eu
achei que tinha se afogado, ou escorregado, ou sido derrubado e que eu
talvez nunca mais visse. Ky Markham está aqui e ele olha bem para mim.
Sem pensar, dou um passo na sua direção. E quando sinto alguma
coisa arrebentar debaixo do meu pé. O recipiente perdido se abriu e tudo
o que devia guardar foi despejado no chão e esmagado pelo meu pé.
Azulverdevermelho.
Paro na mesma hora, mas o movimento foi percebido. Os
Funcionários me cercam e as pessoas perto de mim respiram e exclamam.
— Aqui! Está quebrado.
Preciso me virar quando um Funcionário segura meu cotovelo e me
pergunta o que aconteceu. Quando olho de volta para o lugar onde Ky
estava, ele sumiu. Como aconteceu naquele dia, na piscina. Como
aconteceu com seu rosto no terminal, na minha casa.
CAPÍTULO 6
―TINHA UM GAROTO NOVO HOJE NA PISCINA — CONTEI PARA OS
meus pais naquela noite distante, após o incidente ocorrido enquanto eu e
Xander nadávamos. Tive o cuidado de não mencionar que Xander tinha
perdido o recipiente de comprimidos dele. Não queria que ele tivesse
problemas. A omissão fazia parecer que o próprio comprimido estava
preso na minha garganta. Cada vez que eu engolia, sentia sua presença,
ameaçando me sufocar.
Mesmo assim, não disse nada.
Meus pais trocaram olhares.
— Um garoto novo? Tem certeza? — perguntou meu pai.
— Tenho — respondi. — Se chama Ky Markham. Xander e eu
nadamos com ele.
— Então ele está visitando os Markham — disse meu pai.
— Ele foi adotado por eles — contei. — Ele chama Aida de mãe e
Patrick de pai. Eu ouvi.
Meus pais se entreolharam. Adoções eram e ainda são praticamente
inexistentes na nossa Província de Oria. Ouvimos uma batida na porta.
— Fica aqui, Cássia — disse meu pai. — Vamos ver quem é.
Eu esperei na cozinha, mas ouvi o Sr. Carrow, pai de Xander, na porta,
a voz grave e alta retumbando no saguão. Não temos permissão para
entrar nas residências dos outros, mas eu imaginava que ele estivesse ali,
nos degraus, parecendo uma versão mais velha de Xander. O mesmo
cabelo louro. Os mesmos olhos azuis risonhos.
— Falei com Patrick e Aida Markham — disse ele. — Achei que vocês
iriam querer saber. O garoto é órfão. E das Províncias Exteriores.
— E? — a voz da minha mãe deixava transparecer uma ponta de
preocupação. As Províncias Exteriores ficam na periferia geográfica da
Sociedade, onde a vida é mais difícil e mais selvagem. Às vezes, as pessoas
se referem a elas como Províncias Inferiores, ou Províncias Atrasadas,
porque há tão pouca ordem e conhecimento nelas. A concentração de
Aberrações é maior ali do que na população em geral. E até mesmo a de
Anomalias, dizem. Embora ninguém saiba ao certo onde ficam as
Anomalias. Elas costumavam ser mantidas em abrigos, mas muitos deles
estão vazios hoje em dia.
— Ele está aqui com toda a aprovação da Sociedade — disse o Sr.
Carrow.
— O próprio Patrick me mostrou a documentação e disse para contar
para qualquer pessoa que pudesse se preocupar. Eu sabia que você ficaria
preocupada, Molly, e você também, Abran.
— Bem — disse minha mãe —, tudo parece estar certo.
Me esgueirei pelo canto da parede para olhar a sala e ver meus pais
com as costas para mim e o pai de Xander nos degraus, com a noite atrás
dele.
O pai de Xander então baixou a voz e eu precisei ouvir com muita
atenção para entender o que ele dizia sob o zumbido baixo do terminal, no
saguão.
— Molly, você devia ter visto a Aida. E o Patrick. Eles parecem ter
voltado à vida. O garoto é sobrinho de Aida. Filho da irmã dela.
Minha mãe levou a mão ao cabelo, gesto que sempre fazia quando se
sentia pouco à vontade. Porque todos nós nos lembrávamos muito bem
do que havia acontecido com os Markham.
Foi um caso raro de falha do governo. Uma Anomalia de Primeira
Classe nunca poderia ter deixado de ser identificada e muito menos ter
permissão para andar pelas ruas e entrar às escondidas nos escritórios do
governo onde Patrick trabalhava e que seu filho estava visitando naquele
dia. Ninguém falou nada, mas todo mundo sabia. Porque o filho dos
Markham tinha desaparecido, tinha sido assassinado enquanto esperava o
pai sair de uma reunião em outra parte do prédio. Porque o próprio
Patrick Markham precisou passar um tempo sob cuidados, já que a
Anomalia tinha esperado em silêncio, dentro do escritório, e atacado
Patrick também.
— Sobrinho dela — disse a minha mãe, a voz cheia de emparia. —
Claro que Aida ia querer criá-lo.
— E o governo talvez sinta que Patrick mereça que se abra uma
exceção
— disse o meu pai.
— Abran — falou minha mãe, em tom de recriminação. Mas o pai de
Xander concordou.
— E uma coisa lógica. Uma exceção como recompensa pelo acidente.
Um filho para substituir aquele que eles não deviam ter perdido. E como
os Funcionários pensam.
Mais tarde, minha mãe foi até o meu quarto. Com uma voz tão suave
quanto os cobertores, ela se acomodou perto de mim e perguntou:
— Você ouviu nossa conversa?
— Ouvi — respondi.
— O sobrinho... filho dos Markham vai para a escola amanhã, pela pri-
meira vez.
— Ky — disse eu. — E o nome dele.
— É.
Ela se abaixou, o cabelo louro e comprido caindo pelos ombros, as
sardas parecendo estrelas salpicadas sobre a pele. Sorriu para mim.
— Você vai ser boazinha com ele, não vai? — perguntou. — Vai ajudá-
lo a se enturmar? Pode ser difícil ser novo onde todo mundo já tem o seu
lugar.
— Vou ser sim — prometi.
Acabou que o pedido foi desnecessário. No dia seguinte, na Segunda
Escola, Ky cumprimentou todo mundo e se apresentou. Quieto e veloz,
cruzou os corredores. Contou para todos quem era, para que ninguém
precisasse perguntar. Quando a campainha tocou, desapareceu nos
grupos de alunos. Era inacreditável o quão rápido ele sumia de vista. Ele
chegou um dia — afastado, diferente, novo — e de repente se tornou
parte da turma, como se tivesse feito aquilo a vida inteira. Como se nunca
tivesse morado em outro lugar.
E foi sempre assim com Ky, percebo agora, me lembrando do passado.
Sempre o vimos nadando na superfície. Só naquele primeiro dia o vimos
mergulhar fundo.
— Tenho uma coisa para contar — digo ao Vovô enquanto puxo uma
cadeira para me sentar perto dele. Os Funcionários não me prenderam por
muito tempo no centro de recreação, depois que pisei nos comprimidos.
Ainda tinha tempo o bastante para fazer uma visita a ele. Fico grata,
porque seria a minha penúltima. O pensamento me faz sentir vazia.
— Ah — diz o Vovô. — Algo de bom? — Ele está sentado perto da ja-
nela, como costuma fazer à noite. Ele olha o sol deixar o mundo e a
chegada das estrelas e, às vezes, me pergunto se também vê o sol voltar. E
difícil dormir quando você sabe que está quase no fim? Será que você
deseja não perder nenhum momento, mesmo aqueles que poderiam
parecer sem graça e insignificantes?
A noite, as cores desaparecem. Cinza e preto tomam conta de tudo.
De vez em quando, um pontinho brilhante de luz se acende, à medida que
os postes se iluminam. Os trilhos do trem aéreo, foscos à luz do dia,
parecem belos caminhos reluzentes sobre o chão, agora que as luzes
noturnas foram ligadas. Enquanto olho, um trem aéreo passa velozmente
carregando pessoas dentro do seu espaço branco e iluminado.
— Algo de estranho — digo, e o Vovô baixa o garfo. Ele está comendo
um pedaço de uma coisa chamada torta, que eu nunca experimentei, mas
que parece deliciosa. Gostaria que não houvesse regras que o proibissem
de dividir seus alimentos comigo.
— Tá tudo bem. Xander continua a ser meu Par — digo. A Sociedade
me ensinou que é assim que se dá notícias; tranquiliza-se primeiro, depois
se diz o resto. — Mas houve um erro com o meu microcartão. Quando eu
fui visualizar, o rosto de Xander desapareceu. E eu vi outra pessoa.
— Você viu outra pessoa.
Confirmo, tentando não olhar demais para a comida no prato dele. A
textura crocante da crosta açucarada, que me lembra os cristais na beira
da neve. Os frutinhos vermelhos espalhados no prato, maduros e
saborosos, com certeza. As palavras que eu disse se prendem na minha
mente como o doce no pesado garfo de prata. Eu vi outra pessoa.
— O que você sentiu quando viu o rosto do outro garoto aparecer na
tela? — o Vovô pergunta com delicadeza, segurando minha mão. — Ficou
preocupada?
— Um pouquinho — digo. — Fiquei confusa. Porque eu conheço o se-
gundo garoto também.
As sobrancelhas do Vovô se ergueram com a surpresa.
— Conhece?
E o Ky Markham — digo. — Filho de Patrick e Aida. Ele mora no Bairro
Mapletree, na mesma rua que eu.
— Como o Funcionário explicou o erro?
— Não foi um erro da Sociedade — digo. — A Sociedade não comete
erros.
— Claro que não — diz Vovô, com o tom de voz comedido e firme. —
Mas as pessoas cometem.
— É o que a Funcionária acha que deve ter acontecido. Ela acredita
que alguém deve ter adulterado o meu microcartão e colocado o rosto de
Ky nele.
— Por quê? — se espanta ele.
— Ela acha que foi uma brincadeira cruel. Por causa... — Falo mais
baixo ainda. —... Da condição de Ky. Ele é uma Aberração.
Vovô afasta a cadeira, derrubando a bandeja no chão. Fico surpresa
como ele ficou magro, mas ele continua ereto como uma árvore.
— Havia o retrato de uma Aberração como sendo o seu Par?
— Só por um momento — digo, tentando reconfortá-lo. — Mas foi um
erro. Xander é o meu Par. O outro garoto nem fazia parte da seleção.
Vovô não se senta, ainda que eu continue na minha cadeira
esperando que isso o acalme, o faça ver que está tudo bem.
— Disseram por que ele recebeu essa classificação?
— O pai dele fez alguma coisa — digo. — Não é culpa de Ky. — E não
é. Eu sei e o Vovô sabe. Os Funcionários nunca teriam permitido a adoção
se o próprio Ky fosse uma ameaça.
Vovô olha para o prato caído no chão, perto da bandeja. Vou pegá-lo,
mas ele me impede.
— Não — diz a voz penetrante, e depois se abaixa com dificuldade.
Como se fosse feito de madeira velha, de uma árvore velha, juntas rígidas.
Põe os últimos pedaços de comida de volta no prato e depois me olha,
com seus olhos claros. Não há nada de rígido neles, estão vivos, cheios de
movimento. — Não gostei disso. Por que alguém ia querer mexer no seu
microcartão?
— Vovô — digo. — Por favor, se senta. Foi uma brincadeira de mau
gosto e vão descobrir quem fez e cuidar de tudo. Uma Funcionária do
Departamento de Pares me garantiu. — Queria não ter contado nada. Por
que eu achei que seria reconfortante contar?
E eis que vem.
— Aquele pobre garoto — diz o Vovô, com a voz triste. — Foi
marcado, apesar de não ter feito nada de errado. Você conhece bem ele?
— Somos amigos, mas não próximos. Vejo ele às vezes nas horas de
recreação livre, aos sábados — explico. — Ele recebeu o posto de trabalho
permanente há um ano, por isso não vejo mais ele tanto assim.
— E qual é esse posto de trabalho?
Hesito em contar para o Vovô, porque é dos mais deploráveis.
Ficamos surpresos quando Ky recebeu uma função tão inferior, pois
Patrick e Aida são respeitados.
— Ele trabalha no centro de descarte de nutrição. Vovô faz uma
careta.
— E um trabalho difícil, desagradável.
— Eu sei — digo. Reparei que, apesar das luvas que os trabalhadores
usam, as mãos de Ky ficam permanentemente vermelhas por causa do
calor da água, das máquinas. Mas ele não reclama.
— E a Funcionária permitiu que você me contasse? — pergunta o
Vovô.
— Sim — digo. — Perguntei se podia contar para uma pessoa. Você.
Os olhos do Vovô reluzem maliciosamente.
— Porque os mortos não podem falar?
— Não — digo. Adoro as piadas do Vovô, mas não posso responder
com outra, não sobre esse assunto. Está chegando rápido demais. Vou
sentir muita falta dele. — Eu queria contar para você porque eu sabia que
você compreenderia.
— Ah — ele ergue as sobrancelhas com ar brincalhão. — E então, eu
compreendi?
Agora eu estou rindo um pouquinho.
— Não tão bem quanto eu esperava. Você agiu como meus pais
agiriam se eu contasse para eles.
— Claro que sim — diz ele. — Quero proteger você.
Nem sempre, penso eu, erguendo as sobrancelhas para olhá-lo. Vovô
foi quem finalmente me fez parar de ficar sentada na beira da piscina. Ele
foi nos encontrar num dia de verão e perguntou:
— O que ela está fazendo?
— O que ela sempre faz — disse Xander.
— Ela não sabe nadar? — perguntou o Vovô, e olhei para ele
enfurecida porque podia falar por mim mesma. Ele sabia disso.
— Sabe — disse Xander. —- E que ela não gosta.
— Não gosto da parte de pular — informei.
— Entendo — disse ele. — E o trampolim?
— Não gosto dele, principalmente.
— Tudo bem — ele sentou-se ao meu lado na beirada. Mesmo
naquele tempo, quando era mais jovem e forte, eu me lembro de como
parecia velho se comparado aos avós dos meus amigos. Meus avós foram
um dos últimos casais que escolheram se juntar mais tarde. Tinham 35
anos quando se tornaram um Par. Meu pai, filho único, só nasceu quatro
anos depois. Hoje em dia, ninguém tem permissão para ter filhos depois
dos 31 anos.
A luz do sol atravessava seu cabelo prateado e me fazia ver cada fio,
mesmo que eu não procurasse encontrar tantos detalhes. Aquilo me
deixou triste, apesar de estar zangada.
— Isso é muito empolgante — disse ele, batendo os pés dentro
d'água. — Posso entender por que você não quer fazer outra coisa além
de ficar sentada. — Ouvi o tom de provocação na voz dele e me virei.
Então ele se levantou e caminhou até o trampolim.
— Senhor — exclamou a guarda-vidas encarregada da piscina. —
Senhor?
— Tenho um passe de recreação — disse o Vovô, sem parar. — Estou
com uma saúde excelente.
Depois, subiu a escada até o trampolim parecendo cada vez mais forte
à medida que subia mais alto.
Ele não me olhou antes de pular. Foi direto, e antes que reaparecesse
na superfície da água, eu estava de pé, caminhando pelo cimento quente e
molhado até a escada para o trampolim, com as solas dos pés e o orgulho
em chamas.
E eu pulei.
— Você está lembrando da piscina, não é? — ele me pergunta agora.
— Estou — digo, rindo um pouco. — Ali você não me protegeu. Prati-
camente me desafiou a pular para a morte — e me encolho porque não
queria dizer aquela palavra. Não sei por que tenho medo dela. Vovô não
tem. A Sociedade não tem. Eu não deveria ter.
Vovô não parece reparar.
— Você estava pronta para pular — diz ele. — Só não tinha certeza
disso ainda.
Nós dois ficamos em silêncio, lembrando. Tento não olhar o relógio na
parede. Preciso sair logo, para chegar em casa na hora, mas não quero que
o Vovô pense que estou contando os minutos. Contando os minutos para
o fim da nossa visita. Contando os minutos para o fim da vida dele. Apesar
de também estar marcando o tempo da minha própria vida, se você
pensar no assunto. A cada minuto que você passa com alguém, você
entrega a outra pessoa uma parte da sua vida e toma um pouco da dela.
Vovô percebe minha distração e pergunta no que eu estou pensando.
Eu digo, já que não vou ter muitas outras oportunidades de fazê-lo, e ele
estende o braço e me segura a mão.
— Fico feliz em te dar uma parte da minha vida — diz ele, e isso é tão
gentil de se dizer, e ele diz com tanta bondade que eu repito. Apesar de
ter quase 80 anos, apesar do seu corpo ter me parecido frágil mais cedo,
ele me segura com força e mais uma vez, fico triste.
— Tem outra coisa que eu queria dizer — digo. — Escolhi fazer cami-
nhadas como minha atividade de lazer do verão.
Ele parece feliz.
— Voltaram a oferecer? — Vovô costumava caminhar nas horas de
lazer dele, muitos anos atrás, e sempre falou no assunto.
— É uma novidade desse verão. Nunca tinham oferecido antes.
— Fico imaginando quem deve ser o instrutor — diz ele, pensativo.
Depois, olha pela janela. — Fico imaginando por onde vão te levar para
caminhar. — Sigo mais uma vez o seu olhar. Não há muitas florestas por aí,
embora haja muitas áreas verdes: parques e campos de recreação.
— Talvez nos levem para uma das áreas de recreação maiores — digo.
— Talvez para a Colina — diz ele, o brilho voltando a seus olhos.
A Colina é o último lugar da Cidade que ainda é coberto de bosques e
selvagem. Eu a visualizo agora, suas costas verdes saindo do Arboreto
onde minha mãe trabalha. Costumava ser usada principalmente para
treinamento do Exército, mas como a maior parte do Exército foi
transferida para as Províncias Exteriores, não é mais tão necessária.
— Você acha? — pergunto animada. — Nunca fui lá antes. Quer dizer,
estive no Arboreto muitas vezes, claro, mas nunca tive permissão de ir até
a Colina.
— Você vai adorar se te deixarem caminhar pela Colina — diz o Vovô,
com o rosto animado. — E uma coisa incrível subir até o ponto mais alto
que os olhos podem ver, sem ninguém abrindo o caminho para você, sem
um simulador. Tudo é real...
— Você acha mesmo que vão permitir que a gente caminhe por ali? —
pergunto. O entusiasmo dele é contagiante.
— Espero que sim. — Vovô contempla a janela, na direção do
Arboreto, e me pergunto se a razão que o leva a passar tanto tempo
olhando para fora, ultimamente, é porque ele gosta de lembrar do que
carrega consigo.
E como se ele pudesse ler a minha mente.
— Não sou nada mais que um velho sentado aqui com as lembranças
dele, não é?
Eu sorrio.
— Não tem nada errado nisso. — Na verdade, ao final da vida, é até
encorajado.
— Não é exatamente o que eu estou fazendo — diz o Vovô.
— É?
— Estou pensando. — Mais uma vez, ele sabe o que eu penso. — Não
é a mesma coisa que se lembrar. Lembrar faz parte do pensamento, mas
não é tudo.
— No que você está pensando?
— Em muitas coisas. Um poema. Uma idéia. Sua avó.
Minha avó morreu cedo, de um dos últimos tipos de câncer, quando
estava com 62 anos. Não a conheci. O compacto era dela antes de ser meu
— um presente da sogra, a mãe do Vovô.
— O que você acha que ela diria sobre o meu Par? — pergunto a ele.
— Sobre o que aconteceu hoje?
Ele fica em silêncio e eu espero.
— Acho — diz, finalmente — que ela perguntaria se você pensou
bem. Quero perguntar o que ele quer dizer com isso, mas escuto um sino
que
anuncia que o último trem para os Bairros vai passar logo. Preciso ir.
— Cássia? — diz Vovô, quando me levanto. — Você ainda tem o com-
pacto que eu te dei, não é?
—Tenho — digo, surpresa com a pergunta. É a coisa mais valiosa que
eu possuo. A coisa mais valiosa que jamais vou possuir.
— Você pode trazer para o meu Banquete Final amanhã? — pede.
Lágrimas me vêm aos olhos. Ele precisa vê-lo mais uma vez para se lem-
brar da minha avó, da mãe dele.
— Claro que sim, Vovô.
— Obrigado.
Minhas lágrimas ameaçam se derramar no rosto dele, quando me
abaixo para beijá-lo. Eu me contenho. Não choro. Me pergunto quando
vou poder. Não vai ser amanhã à noite, no Banquete Final. Vai ter gente
olhando. Para ver como o Vovô lida com a partida e para ver como nós
suportamos perdê-lo.
Enquanto percorro o corredor, ouço outros moradores conversarem
entre si ou com visitantes, por trás de portas fechadas, e o som dos
terminais é muito alto, já que muitos dos idosos não ouvem bem. Alguns
quartos estão em silêncio. Talvez alguns, como Vovô, estejam sentados
diante das janelas abertas e pensem em pessoas que não estão mais aqui.
Ela perguntaria se você pensou bem.
Entro no elevador e aperto o botão, me sentindo triste, estranha e
confusa. O que ele quis dizer?
Eu sei que, para o Vovô, o tempo está se esgotando. Já sei disso há
muito tempo. Mas por que, quando as portas do elevador se fecham, eu
sinto subitamente que o meu tempo também está se esgotando?
Minha avó ia querer saber se eu pensei que aquilo podia não ser um
erro, afinal de contas. Que Ky talvez estivesse destinado a ser o meu Par.
Por um momento, eu pensei. Quando vi o rosto de Ky piscar na minha
frente tão rapidamente que não deu nem para ver a cor dos olhos dele, só
à escuridão deles ao me contemplarem, eu me perguntei: será que é você?
CAPÍTULO 7
HOJE É DOMINGO. MEU AVÔ FAZ 80 ANOS, E POR ISSO VAI MORRER
esta noite.
As pessoas costumavam acordar e se perguntar "Será que hoje é o
fim?" ou se deitavam para dormir sem saber se retornariam da escuridão.
Agora, sabemos em que dia a luz vai se acabar e qual noite será a longa
última noite. O Banquete Final é um luxo. Um triunfo do planejamento, da
Sociedade, da vida humana e da sua qualidade.
Todos os estudos mostram que a melhor idade para se morrer é 80
anos. E tempo o bastante para que possamos ter uma experiência
completa da vida, mas não tanto assim que nos faça sentir inúteis. Essa é
uma das piores sensações que os idosos podem experimentar. Em
sociedades anteriores à nossa, eles podiam contrair doenças terríveis,
como a depressão, por não se sentirem mais necessários. E também há um
limite para o que a Sociedade pode fazer. Depois dos 80 anos, não dá para
evitar a indignidade do envelhecimento por muito mais tempo. Há um
limite para o que a formação de Pares com genes saudáveis pode fazer.
As coisas nem sempre foram tão justas. Antigamente, nem todo
mundo morria com a mesma idade e havia todos os tipos de problemas e
incertezas. Você podia morrer em qualquer lugar — na rua, em um centro
médico; como a minha avó, até no trem aéreo. Você podia morrer
sozinho.
Ninguém devia morrer sozinho.
E bem cedo numa manhã azul clara e rosa pálida quando chegamos ao
trem aéreo quase vazio e percorremos o caminho de cimento até a porta
do prédio do Vovô. Quero sair da trilha, tirar os sapatos e andar descalça
pela grama fresca e pontuda, mas hoje não é dia para se desviar do
planejado. Não vamos trabalhar nem ter horas de lazer. Hoje o dia é todo
dedicado ao Vovô. Amanhã, as coisas voltam ao normal e nós seguimos
em frente, e ele terá partido.
E o esperado. É o justo. Fico me lembrando disso quando entramos no
elevador para ir até o apartamento dele.
— Pode apertar o botão — digo para Bram, tentando brincar com ele.
Bram e eu costumávamos brigar para ver quem ia apertar os botões
quando vínhamos fazer visitas. Bram sorri e aperta o 10. Pela última vez,
penso com meus botões. Depois de hoje, não vai mais haver o Vovô para
ser visitado. Não vamos ter razão para voltar.
Muita gente não conhece os seus avós tão bem assim. O tipo de
relacionamento que eu tenho com meus outros avós, nos Campos, é
muito mais comum. Nos comunicamos através do terminal com intervalos
de alguns meses e os visitamos com intervalos de alguns anos. Muitos
netos assistem ao Banquete Final nas telas dos terminais, um pouco
distantes do que está acontecendo. Nunca invejei aquelas crianças. Eu
sentia pena delas. Até mesmo hoje, eu me sinto do mesmo jeito.
— Quanto tempo nós temos antes do Comitê aparecer? — Bram per-
gunta a papai.
— Mais ou menos meia hora. Todo mundo está com os presentes?
Confirmamos. Cada um de nós trouxe algo para dar ao Vovô. Não sei bem
o que meus pais escolheram para ele, mas sei que Bram foi ao Arboreto
pegar uma pedra do lugar mais próximo possível da Colina.
Bram me pega olhando para ele, e abre a palma da mão para me
mostrar a pedra de novo. É redonda e marrom, e ainda está meio suja.
Parece um pouco com um ovo, e quando ele apareceu com ela ontem, me
disse que a achara debaixo de uma árvore, numa pilha de folhas de
pinheiro parecida com um ninho.
— Ele vai adorar — digo a Bram.
— Ele também vai adorar o seu. — Bram volta a fechar a mão em
torno da pedra. As portas se abrem e entramos no corredor.
Meu presente para o Vovô é uma carta. Acordei bem cedo esta
manhã e passei muito tempo cortando, colando e copiando pensamentos
no programa de composição de cartas do terminal. Antes de imprimi-la,
encontrei um poema da década em que ele nasceu e também o incluí. Não
é muita gente que continua a gostar de poesia depois de concluir os
estudos, mas o Vovô nunca deixou de gostar. Ele leu todos os Cem Poemas
muitas vezes.
Uma das portas no corredor se abre e uma velha põe a cabeça para
fora.
— Vocês vão para o Banquete do sr. Reyes? — pergunta, e nem
espera a nossa resposta. — E particular, não é?
— E sim — diz meu pai, parando educadamente para falar com ela,
apesar de estar ansioso em ver o pai dele. Ele não consegue deixar de
olhar para a porta fechada do apartamento do Vovô, no fim do corredor.
A mulher resmunga um pouco.
— Queria que fosse público. Eu gostaria de ir para ter idéias. O meu é
em menos de dois meses. Pode apostar que vai ser público. — Ela ri um
pouco, um som curto e áspero, e pergunta: — Vocês podem vir me contar
como foi, depois?
Minha mãe vem acudir meu pai, como eles sempre costumam fazer
um pelo outro.
— Talvez — diz Mamãe, sorridente. Ela pega a mão do meu pai e vira
as costas para a mulher.
Ouvimos um suspiro de decepção e um som seco atrás de nós,
quando a mulher fecha a porta. Uma placa diz que é a sra. Nash e eu me
lembro de ter ouvido o Vovô falar sobre ela. Intrometida, ele tinha dito.
— Ela não pode esperar a hora dela, em vez de falar do assunto no dia
do Vovô? — resmunga Bram, abrindo a porta da residência do Vovô.
Já parece um lugar diferente. Mais quieto. Um pouco mais solitário.
Acho que é porque o Vovô não está mais sentado à janela. Hoje ele
descansa numa cama na sala de estar, à medida que seu corpo para de
funcionar. Bem na hora.
— Podem me levar para perto da janela? — pede, depois de nos
cumprimentar.
— Claro. — Meu pai alcança a beirada da cama e a empurra
suavemente até a luz do princípio da manhã. — Lembra quando você fez
isso para mim? Quando eu era pequeno e tomei todas aquelas vacinas?
Vovô sorri.
— Aquela era uma outra casa.
— E uma outra vista — meu pai concorda. — Tudo que eu via daquela
janela era o quintal do vizinho e o trilho do trem aéreo, quando eu olhava
bem para o alto.
— Mas acima disso tudo, estava o céu — diz o Vovô suavemente. —
Você quase sempre consegue ver o céu. E o que vem depois disso, eu me
pergunto? E depois?
Bram e eu nos entreolhamos. Vovô deve estar um pouco
desorientado, o que é espetado. No d\a em que os idosos completam 80
anos, o declínio sempre se acelera. Nem todo mundo morre exatamente
na mesma hora, mas é sempre antes da meia-noite.
— Convidei meus amigos para aparecerem imediatamente após a
visita do Comitê — diz Vovô. — E depois que saírem, eu queria passar um
tempo sozinho com cada um de vocês. Começando por você, Abran.
Meu pai assente:
— Claro.
O Comitê não demora. Eles chegam, três homens e três mulheres em
longos jalecos brancos, e também trazem coisas consigo. As roupas que o
Vovô vai usar no Banquete. Equipamento para a preservação de tecidos.
Um microcartão com a história da vida dele, que ele pode assistir do
terminal.
A exceção talvez do microcartão, acho que Vovô vai preferir nossos
presentes.
Depois de alguns momentos, o Vovô reaparece com as roupas do Ban-
quete. São basicamente roupas comuns, calças simples, uma camisa,
meias, mas tudo feito com tecido de boa qualidade e ele pôde escolher a
cor.
Sinto um nó na garganta quando vejo que a cor que ele escolheu para
as roupas é um verde-claro. Somos tão parecidos. E me pergunto se ele
percebeu, quando nasci, que os dias dos nossos Banquetes seriam tão
próximos, pois os nossos aniversários acontecem com poucos dias de
diferença.
Sentamo-nos educadamente, Vovô na cama e o resto de nós em
cadeiras, enquanto o Comitê conclui sua parte na comemoração.
— Sr. Reyes, estamos entregando o microcartão com imagens e
registros da sua vida — dizem eles. — O material foi reunido por um de
nossos melhores historiadores, em sua honra.
— Obrigado — diz o Vovô, estendendo a mão.
A caixa que contém o microcartão é como a caixa prateada que
ganhamos quando conhecemos nosso Par, a não ser pela cor: dourada. O
microcartão tem imagens do Vovô na infância, na adolescência, na vida
adulta. Ele não via essas imagens há anos e acredito que esteja empolgado
em vê-las hoje. O microcartão também inclui um resumo da vida dele em
palavras, lido por um dos historiadores. Vovô vira a caixa dourada em suas
mãos, como fiz com a minha de prata há pouco tempo, no Banquete do
Par. Sua vida cabe nas palmas das mãos, assim como a minha. Uma das
mulheres fala em seguida. Parece mais delicada do que os outros, mas
talvez seja por ser menor e mais jovem do que o resto.
— Sr. Reyes, já escolheu a pessoa que vai ficar com o seu microcartão
quando o dia terminar?
— Meu filho, Abran — diz o Vovô.
Ela oferece o instrumento para coleta de tecidos, que a Sociedade
permite que aconteça em particular, junto com a família, como última
cortesia para com os idosos.
— E ficamos felizes em anunciar formalmente que seus dados indicam
que o senhor se qualificou para a preservação. Nem todo mundo se
qualifica, como o senhor sabe, e é outra honra que o senhor pode
acrescentar a sua já longa lista de conquistas.
Vovô tira o instrumento dela e lhe agradece mais uma vez. Antes que
ela possa lhe perguntar quem poderia receber a amostra, ele responde.
— Meu filho Abran também pode cuidar disso. Ela assente.
— Basta esfregar na bochecha e guardar a amostra aqui — diz ela, de-
monstrando. — E então selar. E preciso levar a amostra ao Departamento
de Preservação Biológica em até 24 horas após a coleta. Caso contrário,
não podemos garantir que a preservação será possível.
Fico feliz pelo Vovô ter se qualificado para ter uma amostra de tecido
congelada. Agora, para ele, a morte não vai ser necessariamente o fim.
Algum dia, a Sociedade talvez ache uma forma de nos trazer de volta. Não
prometem nada, mas acho que todos sabemos que isso vai acabar
acontecendo. Quando foi que a Sociedade deixou de atingir uma meta?
O homem ao lado da mulher fala:
— A comida para os seus convidados e a sua última refeição devem
chegar em menos de uma hora. — Ele se debruça para entregar ao Vovô
um menu impresso em um cartão. — Há alguma mudança de última hora
que o senhor deseje fazer?
Vovô olha para o cartão e sacode a cabeça.
— Tudo parece em ordem.
— Aproveite então seu Banquete Final — disse o homem, guardando
o cartão no bolso.
— Obrigado. —A boca do Vovô assume uma expressão irônica, ao
dizer aquilo, como se ele soubesse algo que os outros não sabem. Na
saída, os membros do Comitê apertam a mão dele e dizem "Parabéns". E
posso jurar que sou capaz de ler os pensamentos do Vovô, quando ele os
encara com seus olhos sagazes. Estão me felicitando pela minha vida ou
pela minha morte?
— Vamos acabar com isso — diz o Vovô com brilho nos olhos,
encarando o instrumento de coleta de tecidos, e todos nós rimos do seu
tom de voz. Vovô esfrega a bochecha, coloca a amostra em um tubo de
ensaio transparente e o sela. Um pouco daquela solenidade toda foi
embora depois que o Comitê partiu.
— Está tudo indo bem — diz o Vovô, entregando o tubo de ensaio
para meu pai. — Até aqui, estou tendo uma morte perfeita.
Meu pai se encolhe, uma expressão de dor passando pelo rosto. Eu sei
que ele, como eu, preferia que o Vovô não usasse aquela palavra, mas
nenhum de nós pensa em corrigi-lo hoje. A dor no rosto do meu pai faz
com que ele pareça mais jovem, quase uma criança, por um momento.
Talvez ele se lembre da morte da mãe — tão rara, tão difícil se comparada
a um Banquete Final como esse.
Depois de hoje, ele não será mais o filho de ninguém.
Mesmo sem querer, penso no filho assassinado dos Markham.
Comemoração nenhuma. Nada de preparação de tecidos, nem
despedidas. Isso quase não acontece mais, me lembro. As chances de algo
assim acontecer são quase de uma em um milhão.
— Temos presentes para você — diz Bram para o Vovô. — Podemos
entregar agora?
— Bram — meu pai diz em tom de recriminação. — Talvez ele queira
preparar o microcartão para a visualização. Os convidados dele estão para
chegar.
— Eu quero mesmo fazer isso — diz o Vovô. — Estou ansioso para ver
a minha vida passar diante dos meus olhos. E estou ansioso pela comida.
— O que você escolheu? — pergunta Bram, afoito. As seleções feitas
para o Vovô e os convidados são as mesmas, mas a lei diz que a gente
deve comer direto das bandejas e ele, do prato dele. Não temos permissão
para compartilhar.
— Todas as sobremesas — diz o Vovô, com um sorriso. — Bolo.
Pudim. Biscoitos. E mais alguma coisa. Mas deixa eu ver o seu presente
antes, Bram.
Bram abre um sorriso.
— Fecha os olhos.
Vovô obedece e estende a mão. Bram coloca a pedra delicadamente
na palma do Vovô. Algumas partículas de terra caem sobre o cobertor que
envolve o Vovô e minha mãe se aproxima para afastá-las. Mas no último
segundo, ela recolhe a mão e sorri. Vovô não vai se importar com a terra.
— Uma pedra — diz o Vovô, abrindo os olhos e contemplando. Ele
sorri para Bram. — Estou com a sensação de que sei onde foi que você
encontrou isso.
Bram sorri e abaixa a cabeça. Meu avô segura a pedra com força.
— Quem é o próximo? — pergunta ele, quase alegremente.
— Queria dar o meu presente mais tarde, durante as despedidas —
diz meu pai em voz baixa.
— Assim eu não vou ter muito tempo para desfrutá-lo — provoca o
Vovô.
De repente, fico constrangida com a carta — não quero que ele a leia
na frente de todo mundo.
— Eu também quero fazer isso — digo.
Há uma batida na porta: alguns dos amigos do Vovô. Minutos depois
de abrirmos a porta, outros chegam. E outros. E depois, a equipe de
nutrição com todas as sobremesas do Vovô — sua última refeição — e
bandejas separadas para os convidados.
Vovô tira a cobertura do seu prato e um perfume maravilhoso, de
frutas mornas, enche o ambiente.
— Achei que vocês gostariam da torta — diz o Vovô, olhando para
mim. Quer dizer que ele reparou, no outro dia, e eu sorrio para ele. Depois
de um sinal dele, tiro as tampas das bandejas dos convidados e nos
reunimos para comer. Sirvo todo mundo primeiro e depois pego minha
fatia de torta, crocante, morna, recheada de frutas. Ergo o garfo para levar
o doce à boca.
Eu me pergunto se a morte sempre tem um gosto tão bom.
Depois de todos os convidados baixarem os garfos e suspirarem
satisfeitos, eles conversam com o Vovô, que se encosta em uma pilha de
travesseiros brancos e espessos. Bram continua a comer, se fartando com
pedaços de tudo. Vovô sorri para ele do outro lado do aposento,
divertindo-se.
— E tão bom — diz Bram, enquanto mastiga um pedaço de torta, e
Vovô solta uma gargalhada, um som tão cálido e familiar que também
sorrio e baixo a mão. Estava a ponto de tocar no braço de Bram para pedir
que parasse de se fartar. Mas se o Vovô não se incomoda, por que eu
deveria?
Meu pai não come nada. Põe um pedaço de torta em um prato branco
e redondo e o segura nas mãos, a calda escorrendo da porcelana sem que
ele perceba. Uma gotinha cai no chão quando ele se levanta para se
despedir dos convidados do Vovô após a visualização do microcartão.
— Obrigado por terem vindo — diz Papai, e minha mãe se abaixa para
secar a gota com seu guardanapo. Outra pessoa vai morar ali depois que o
Vovô partir e eles não vão querer ver vestígios do Banquete de alguém.
Mas não é por isso que minha mãe age daquela forma, percebo. Ela queria
poupar meu pai de qualquer preocupação, mesmo a mais minúscula delas.
Ela pega o prato do meu pai quando a porta se fecha depois da saída do
último convidado.
— Hora de ficar em família — diz ela, e meu avô assente.
— Ainda bem — diz ele. — Tenho coisas para dizer a cada um de
vocês.
Até então, a não ser pelo momento em que falou sobre o que viria a
seguir, o Vovô estava se comportando como sempre. Ouvi que alguns dos
idosos surpreendem a todos no fim, ao escolherem uma morte sem
dignidade. Choram, se transtornam, enlouquecem. Isso só deixa as
famílias mais tristes. Não há nada que possam fazer a respeito. É assim
que as coisas são.
Numa espécie de acordo silencioso, minha mãe, Bram e eu vamos
para a cozinha, deixando que meu pai seja o primeiro a conversar com o
Vovô. Bram, sonolento e entupido de comida, encosta a cabeça na mesa e
adormece, roncando baixinho. Minha mãe acaricia seu cabelo castanho e
encaracolado com a mão, e eu imagino que Bram esteja sonhando com
mais sobremesas, um prato cheio delas. Meus olhos também estão
pesados, mas não quero perder nenhum momento do último dia do Vovô.
Depois do meu pai, é a vez de Bram, e em seguida, minha mãe entra
para falar com o Vovô. Seu presente é uma folha da árvore preferida dele
no Arboreto. Ela a colheu ontem, e por isso as beiradas ficaram enroladas
e castanhas, mas o meio permanece verde. Ela me disse, enquanto
esperávamos e Bram dormia, que o Vovô tinha pedido para fazer sua
última comemoração no Arboreto, ao ar livre. Naturalmente, o pedido foi
negado.
Finalmente, a minha vez. Enquanto entro no quarto, reparo que as
janelas estão abertas. A tarde não está fresca e a brisa parece premente e
quente ao soprar no apartamento. Mas logo vai anoitecer e refrescar.
— Quis sentir a corrente de ar — diz meu avô, quando eu me sento na
cadeira ao lado da cama.
Entrego o presente. Ele me agradece e lê.
— São belas palavras — diz o Vovô. — Lindos pensamentos. — Eu
devia ficar feliz, mas sei que algo ainda está por vir. — Mas não são suas
palavras, Cássia. — Vovô fala com delicadeza.
Meus olhos ardem com as lágrimas quando olho para minhas mãos.
Minhas mãos que, como as de quase todo mundo em nossa Sociedade,
não podem escrever, que só sabem como usar as palavras de outras
pessoas. Palavras que decepcionaram meu avô. Queria ter trazido uma
pedra, como Bram. Ou não ter trazido nada. Até chegar aqui de mãos
vazias teria sido melhor do que decepcionar o Vovô.
— Você tem as suas próprias palavras, Cássia — diz o Vovô. — Já ouvi
algumas delas e são lindas. E você já me deu um presente, ao me visitar
com tanta freqüência. Eu continuo a amar essa carta porque vem de você.
Não quero ferir seus sentimentos. Quero que você confie nas suas
palavras. Você entende?
Levanto os olhos e encontro os dele. Faço que sim, porque sei que é o
que ele quer que eu faça e posso dar a ele tal presente mesmo que minha
carta seja um fracasso. Depois, penso em outra coisa. Desde aquele dia no
trem aéreo, guardei a semente de choupo dentro do bolso da minha roupa
comum. Tiro e entrego para ele.
— Ah — diz ele, erguendo-a para examiná-la com mais atenção. —
Muito obrigado, querida. Veja. Está trilhando nuvens de glória.
Começo a achar que o Vovô talvez esteja indo embora. Não sei o que
ele quer dizer. Olho para a porta pensando em chamar um dos meus pais.
— Eu sou um velho hipócrita também — diz ele, com os olhos nova-
mente cheios de malícia. — Disse para você usar suas palavras e agora vou
pedir para ver as de outra pessoa. Deixa eu ver o seu compacto.
Surpresa, eu o entrego. Ele o segura, bate com força na palma da
mão, torce alguma coisa. A base do compacto se abre e solto uma
exclamação de surpresa ao ver um papel sair lá de dentro. Percebo
imediatamente que é velho — pesado, espesso, amarelado, nada parecido
com as ondas lisas e brancas de papel que saem dos terminais ou dos
escrevinhadores.
Vovô abre o papel com cuidado, delicadamente. Tento não olhar
demais, caso ele não queira que eu o veja, mas basta uma olhada para ver
que as palavras também são antigas. Não se usa mais aquele tipo. As letras
são pequenas, negras e amontoadas.
Os dedos dele tremem. Não sei se é porque o fim da vida se aproxima
ou por causa daquilo que ele segura. Quero ajudar, mas sei que é algo que
ele precisa fazer sozinho.
Ele não demora muito para ler o que está no papel e quando acaba,
fecha os olhos. Uma emoção passa pelo rosto dele e eu não consigo
reconhecê-la. Algo profundo.
E então ele abre os seus belos olhos brilhantes e me encara
diretamente enquanto redobra o papel.
— Cássia. Isto é para você. E ainda mais precioso do que o compacto.
— Mas é tão... — Paro antes de dizer a palavra perigoso.
Não dá tempo. Escuto as vozes do meu pai, da minha mãe e do meu
irmão lá fora.
Vovô me olha com amor nos olhos e me entrega o papel. Um desafio,
uma oferenda, um presente. Depois de um momento, eu o seguro. Meus
dedos se fecham em volta do papel e ele o solta.
Ele me devolve o compacto também. O papel cabe direitinho lá
dentro. Quando fecho o artefato, o Vovô se inclina na minha direção.
— Cássia — sussurra. — Eu estou te dando algo que você ainda não é
capaz de compreender. Mas acho que vai compreender um dia. Você, mais
do que ninguém. E lembre-se: você tem o direito de questionar.
Ele agüenta por muito tempo. Falta uma hora para a meia-noite,
numa noite escura, quando o Vovô nos olha e diz as melhores palavras
para se encerrar uma vida.
— Eu amo você. Eu amo você. Eu amo você. Eu amo você.
Todos nós repetimos as palavras para ele. Somos sinceros e ele sorri.
Recosta-se nos travesseiros e fecha os olhos. Tudo dentro dele funcionou
perfeitamente. Ele teve uma vida boa. Ela termina como deveria,
exatamente na hora certa. Estou segurando sua mão quando ele morre.
CAPÍTULO 8
― NÃO TEM NADA DE NOVO — QUEIXA-SE NOSSA AMIGA SERA.
— São as mesmas exibições dos últimos dois meses. — De novo,
sábado à noite, e a conversa é a mesma da semana anterior.
— É melhor do que as outras duas opções — diz Em. — Não é? — Ela
olha para mim, esperando minha opinião. Faço um sinal positivo com a ca-
beça. As opções são as de sempre: centro de recreação, exibição, música.
Passou menos de uma semana desde a morte do Vovô, e me sinto
estranha. Ele se foi, e eu agora sei que há palavras roubadas dentro do
compacto. Parece estranho saber de alguma coisa que os outros não
sabem e ter algo que eu não devia ter.
— Então o voto da Cássia vai para a exibição — diz Em, de olho na vo-
tação. Ela prende um cacho de cabelo preto em volta do dedo e olha para
Xander. — E você?
Tenho certeza que Xander quer voltar ao centro de recreação, mas eu
não quero. Nossa última ida para lá acabou não sendo muito boa, comigo
pisando nos comprimidos e tendo que conversar com uma Funcionária.
Xander sabe o que passa pela minha cabeça.
— Não foi culpa sua — diz ele. — Não foi você que deixou cair. Não é
como se você tivesse recebido uma anotação ou coisa parecida.
— Eu sei. Ainda assim.
Não chegamos a pensar na música. A maioria dos jovens não fica mor-
rendo de vontade de ficar sentada com outras pessoas no salão, ouvindo
as Cem Canções serem transmitidas de outro lugar — ou quem sabe, até
mesmo de outro tempo. Não me lembro de ter ouvido falar em postos de
trabalho relacionados com música. Talvez isso faça sentido. Talvez as
canções só precisem ser cantadas uma vez, gravadas e passadas adiante.
— Não, vamos na exibição — diz Xander. — Sabem, aquela sobre a
Sociedade? Com todas as vistas aéreas?
— Ainda não vi essa — diz Ky Markham, atrás de mim.
Ky. Eu me viro em sua direção, nossos olhares se encontrando pela
primeira vez desde a noite em que pisei nos comprimidos. Não o via desde
então. Não o via em pessoa, melhor dizendo. A semana inteira, seu rosto
apareceu na minha mente do jeito que apareceu na tela, me
surpreendendo com sua clareza e desaparecendo de súbito. Me fazendo
pensar no que aquilo significava. E por que continuo a pensar nele em vez
de esquecer o assunto.
Talvez seja por causa do que o Vovô me disse, no final. Ao me dizer
que eu podia questionar. De alguma forma, porém, não acho que ele
estivesse se referindo a Ky. Acho que estava se referindo a algo maior.
Talvez algo que tivesse a ver com a poesia.
— Então pronto. Vamos ver aquela — diz Sera.
— Como você conseguiu deixar de ver uma exibição assim? — A per-
gunta de Piper é boa. Nunca perdemos exibições novas. Esta já está em
cartaz há vários meses, o que significa que Ky teve muitas oportunidades
para ver. — Você não foi assistir com a gente?
— Não — diz Ky. — Trabalhei até tarde naquela noite, eu acho. — O
tom é suave, mas como sempre, há algo de mais profundo e sonoro na voz
dele. Tem um timbre ligeiramente diferente da maioria. E o tipo de coisa
que você esquece até ouvi-la de novo e se lembrar E isso. Há música na
voz dele.
Ficamos em silêncio, como sempre fazemos quando Ky fala sobre o
trabalho dele. Não sabemos o que dizer quando ele o menciona. Agora eu
sei que ele provavelmente não se surpreendeu ao ser designado para o
centro de descarte de nutrição. Ele sempre soube que era uma Aberração.
Anda por aí com segredos há muito mais tempo do que eu.
Mas a Sociedade quer que ele guarde os segredos dele. Não sei o que
fariam se descobrissem o meu.
Ky tira os olhos de Piper e volta a me olhar, e me ocorre que sempre
me enganei sobre os olhos dele. Achava que eram castanhos, mas agora
vejo que são de um tom azul-escuro, acentuado pela cor das suas roupas
comuns. Azul é a cor de olhos mais comum na província de Oria, mas há
algo de diferente nos dele e não sei bem o que é. Mais profundidade? Me
pergunto o que ele vê quando me olha. Se, para mim, ele aparenta
profundidade, será que pareço rasa e transparente para ele?
Queria ter um microcartão sobre Ky, penso. Talvez, como eu não
preciso mesmo daquele sobre Xander, eu pudesse pedir outro. A idéia me
faz sorrir.
Ky continua a me olhar e penso, por um momento, se ele vai me
perguntar no que eu estou pensando. Naturalmente, ele não faz isso. Ele
não aprende fazendo perguntas. É uma Aberração das Províncias
Exteriores, mas mesmo assim conseguiu se ambientar aqui. Ele aprende
por observação.
Então aproveito sua deixa. Não faço perguntas e guardo os meus
segredos.
Quando nos sentamos no cinema, Piper vai primeiro. Depois Sera, Em,
Xander, eu e, por último, Ky. A tela grande ainda não se abriu e as luzes
permanecem acesas, portanto temos alguns minutos para conversar.
— Você tá bem? — pergunta Xander, em voz baixa, em palavras
sussurradas perto do meu ouvido. — Não é a história dos comprimidos, é?
Ou é por causa do seu Avô?
Ele me conhece tão bem.
— É — digo, e ele segura minha mão e a aperta. Para mim, é estranho
como nossos antigos gestos de crianças retornam, aqueles que paramos
de fazer à medida que continuávamos amigos, mas crescíamos. Segurar a
mão dele ainda parece um gesto de amizade, como algo que eu conheço
há anos... mas também é diferente, porque agora significa mais do que
isso. Agora significa que somos um Par.
Xander aguarda para ver se eu tenho mais a dizer, mas não tenho.
Não posso contar a Xander sobre Ky porque Ky está sentado bem do meu
lado, penso, e não posso contar a Xander sobre o papel porque o lugar
está cheio demais. Esses são os motivos que encontro para não fazer
confidencias a Xander, como de costume.
Eles não me parecem tão verdadeiros quanto deveriam.
Em diz algo para Xander e ele se vira para responder. Olho para a
frente por um momento, pensando em como é estranho que eu tenha
começado a esconder segredos de Xander assim que formamos um Par.
— Já faz algumas semanas desde a última vez em que pude passar
uma noite de sábado com todos vocês — diz Ky. Olho em sua direção
enquanto as luzes começam a baixar, escondendo seu rosto e, de certa
forma, diminuindo o espaço entre nós. As palavras seguintes guardam
vestígios de amargura, só vestígios, mas mais do que eu já ouvi dele. —
Fico ocupado com a minha vocação. Fico feliz por vocês não se
importarem.
— Não é problema — digo. — Nós somos seus amigos. — Mas mesmo
ao dizê-lo, me pergunto se isso é verdade. Não conheço ele do jeito que
conheço os outros.
— Amigos. — Ky diz a palavra com suavidade e me pergunto se ele
está pensando nos amigos que devia ter nas Províncias Exteriores.
O cinema escurece. Mesmo sem olhar, sei que Ky náo está mais virado
para mim e que Xander está. Oiho para a frente, direto para a escuridão.
Sempre gostei daqueles poucos segundos na sala antes da exibição,
quando tudo fica escuro e eu estou esperando. Sinto sempre um aperto
no estômago — imaginando se, quando as luzes da exibição se
acenderem, talvez eu me encontre completamente sozinha. Ou
imaginando se as luzes vão realmente se acender. Sinto que não posso ter
certeza, não naquele primeiro momento. Não sei por que gosto disso.
Mas naturalmente as luzes surgem na tela, a exibição começa e eu
não estou sozinha. Xander está sentado de um lado, Ky, do outro, e diante
de mim a tela apresenta o começo da Sociedade.
A fotografia é excelente, voando baixo sobre o oceano azul, a costa
verdejante, os picos nevados das montanhas e a cor dourada dos Campos,
até chegar à cúpula branca da nossa Prefeitura (a platéia vibra quando ela
aparece). Passa então por mais campos verdes e dourados até chegar a
outra Cidade, e a outra, e outra. Em cada Província da Sociedade, as
pessoas provavelmente vibram ao verem a sua Cidade — mesmo se já
viram esta exibição antes. Quando você vê nossa Sociedade dessa forma, é
difícil não sentir orgulho. O que é, naturalmente, o objetivo.
Ky respira fundo e olho para ele. O que vejo me surpreende. Os olhos
dele estão arregalados e ele esqueceu de manter o rosto imóvel e calmo.
Em vez disso, está iluminado pelo espanto. Parece pensar que está mesmo
voando. Nem percebe que eu estou olhando.
Depois daquele começo grandioso, contudo, a exibição é básica.
Vemos como as coisas eram antes de a Sociedade existir, e antes de tudo
funcionar de acordo com estatísticas e previsões. O rosto de Ky volta a
assumir a expressão impassível de sempre. De quando em quando, olho
de esguelha para ver se ele voltou a reagir. Mas não volta.
Quando chegam na parte sobre a implementação do Sistema de
Pares, Xander se vira para mim. Sob a luz pálida da tela, vejo seu sorriso e
retribuo. A mão de Xander aperta a minha e me esqueço de Ky.
Até o final.
No final, a exibição nos leva de volta à situação dos tempos de antes
da Sociedade. Como seriam as coisas novamente, se a Sociedade se
desmantelasse. Não sei que tipo de cenário eles usaram para fazer esta
cena, mas é quase risível. Exageraram no terreno árido e vermelho; nas
casinhas deploráveis; nos poucos atores de aparência triste e embrutecida
que caminham por ruas perigosas, quase vazias. Então, do nada, surge no
céu uma aeronave negra e sinistra, e as pessoas começam a fugir gritando.
O Hino da Sociedade toca ao fundo, no mais agudas e elaboradas se fazem
ouvir sobre um baixo bem marcado e fort que transborda de emoção.
A cena é exagerada. Ridícula, especialmente depois da serenidade que
testemunhei na casa do Vovô, no domingo. A morte não é assim. Um dos
atores cai no chão, de forma dramática. Manchas vermelhas e
espalhafatosas de sangue cobrem sua roupa. Ouço Xander soltar uma
gargalhada ao meu lado e sei que ele sente o mesmo que eu. Me sinto mal
por ter ignorado Ky por tanto tempo e me viro para dividir a piada com
ele.
Ele está chorando. Sem fazer barulho.
Uma lágrima desce pelo seu rosto e ele a afasta com tanta rapidez que
quase não tenho certeza se ela estava ali, mas estava. Estava sim. E agora
outra lágrima, que some tão rápido quanto a primeira. Seus olhos estão
tão cheios que me espanto por ele conseguir ver. Mas ele não tira os olhos
da tela.
Não estou acostumada a ver alguém sofrer. Me viro. Quando o filme
termina, com a reprise das cenas panorâmicas do princípio, Ky respira
fundo. Percebo que é com dor. Não olho para ele de novo até as luzes se
acenderem na sala. Quando se acendem, ele está calmo e controlado,
voltou a ser o Ky que eu conheço. Ou que eu achei que conhecia.
Ninguém mais percebeu. Ky não sabe que eu o vi.
Não digo nada. Não faço perguntas. Me afasto. E assim que eu sou.
Mas não é isso o que o Vovó achou que você poderia ser. O pensamento
vem à minha cabeça como uma olhada casual, como um piscar de luzes ao
meu lado. Ky. Será que ele está me olhando? Esperando que nossos
olhares se encontrem?
Demoro demais para me virar. Quando me viro, Ky já não está mais
me olhando. Se é que em algum momento esteve.
CAPÍTULO 9
DOIS DIAS DEPOIS, ESTOU COM UM GRUPO DE ALUNOS DIANTE DO
prédio principal do Arboreto. A névoa da manhã começa a se levantar;
formas de gente e de árvores parecem sair do nada.
— Você já fez isso? — pergunta a garota do meu lado. Eu não a
conheço. Deve ser de outro Bairro, de outra Segunda Escola.
— Para falar a verdade, não — digo, distraída pelo fato de que uma
das figuras que saem da neblina tem a forma de Ky Markham. Seus
movimentos são silenciosos e seguros. Cuidadosos. Quando me vê, ergue
a mão para acenar. Aparentemente, ele se inscreveu para as caminhadas
como atividade de lazer de verão. Depois de uma pausa de um segundo,
na qual sorrio e aceno para Ky, prossigo. — Não. Já caminhei, mas nunca
fiz trilhas.
— Ninguém fez isso antes — diz Lon, um garoto chato que eu conheço
da minha Segunda Escola. — Não oferecem essa atividade há anos.
— Meu avô sabia fazer — digo. Lon não cala a boca.
— Sabia! Tipo, verbo no passado? Ele morreu?
Antes que eu possa responder, um Oficial em uniforme verde do
Exército pigarreia ao se apresentar à nossa frente. Ele é mais velho, com
cabelo curto e bem aparado, pele morena. Seu tom de pele e atitude me
faz lembrar do Vovô.
— Sejam bem-vindos — diz o Oficial, em frases tão curtas quanto seu
cabelo. Ele faz parecer que ninguém é bem-vindo e percebo que as
semelhanças com o Vovô não vão longe. Preciso parar de procurar pelo
Vovô. Ele não vai se materializar das árvores, por mais que eu deseje que
isso aconteça. — Sou seu instrutor. Vocês vão se dirigir a mim como
Senhor.
Lon não consegue se conter.
— A gente vai para a Colina?
O Oficial o encara e Lon se encolhe.
— Ninguém — diz o Oficial — fala sem ter a minha permissão
Compreendido?
Todos nós assentimos.
— Não vamos perder tempo. Vamos começar.
Ele aponta atrás de si e indica uma das colinas do Arboreto, coberta p
espessa vegetação. Não é a Colina, a grande, mas uma das subidas
menores q costumam ser proibidas a não ser quando você trabalha no
Arboreto. Ess pequenas colinas não são tão altas, mas minha mãe me diz
que ainda são um bom passeio pelo matagal.
— Vão até o topo — diz ele, girando sobre os calcanhares. — Espero
vocês lá.
Ele está falando sério? Nenhuma dica? Nenhum treinamento antes de
começar?
O Oficial desaparece no mato.
Aparentemente, ele está falando sério. Sinto um sorrisinho erguer os
cantos da minha boca e sacudo a cabeça para me livrar dele. Sou a
primeira a seguir o Oficial bosque adentro. As árvores estão cheias do
verde de verão e, no que abro caminho em meio a elas, parecem ter o
cheiro do Vovô. Talvez ele esteja nas árvores, afinal de contas. E eu penso,
se eu ousasse abrir aquele papel, este seria o lugar ideal.
Escuto outras pessoas se movimentarem entre as árvores à minha
volta e atrás de mim. Uma floresta, mesmo este tipo de floresta
semicultivada, é lugar barulhento, ainda mais com todos nós a marchar.
Arbustos estalam, gravetos são esmagados e alguém solta um palavrão
nas imediações. Provavelmente Lon. Movimento-me mais rápido. Preciso
lutar com alguns arbustos, mas consigo avançar bem.
Minha mente classificadora deseja identificar o canto dos pássaros à
minha volta e dar nomes às plantas e às flores que vejo. Minha mãe
provavelmente conhece a maioria, mas jamais terei este tipo de
conhecimento especializado, a menos que o trabalho no Arboreto se torne
minha vocação.
A subida fica mais difícil e íngreme, mas não é impossível. A pequena
colina ainda é parte do terreno do Arboreto, e por isso não é realmente
selvagem. Meus sapatos se sujam, as solas cobertas por agulhas de
pinheiro e folhas. Paro por um momento e procuro um lugar para tirar
uma parte da lama, para poder avançar com mais velocidade. Mas aqui no
Arboreto, as árvores caídas e os galhos são removidos imediatamente
depois de caírem. Preciso me conformar em esfregar um pé de cada vez
no caule nodoso de uma árvore. Meus pés parecem mais leves quando
volto a caminhar e ganho velocidade. Vejo uma pedra redonda e lisa,
parecida com um ovo polido, que lembra o presente que Bram deu ao
Vovô. Deixo-a ali, pequena e marrom sobre a grama, e ando ainda mais
rápido, afastando os ramos do caminho e ignorando os arranhões nas
mãos. Não paro nem quando o galho de um pinheiro bate em mim e sinto
a pancada das agulhas e do galho robusto no meu rosto.
Vou ser a primeira a chegar ao alto desta colina e estou feliz. Há uma
leveza nas árvores diante de mim e sei que é porque há céu e sol atrás
delas, em vez de mais floresta. Estou quase lá. Olha para mim, Vovô eu
penso, mas naturalmente, ele não pode me ouvir.
Olha para mim.
Desvio-me subitamente e mergulho nos arbustos. Avanço com
dificuldade até me agachar, sozinha no meio de um tufo cercado por
folhas espessas e intrincadas, num lugar onde espero ficar bem escondida.
Roupas comuns em marrom escuro ajudam a fazer uma boa camuflagem.
Minhas mãos tremem quando tiro o papel. Era isso o que eu tinha pla-
nejado fazer o tempo todo, ao colocar o compacto dentro do bolso das
minhas roupas comuns, hoje de manhã? Eu sabia que, de alguma maneira,
encontraria o momento certo aqui, no bosque?
Não sei em que outro lugar poderia ler. Se lesse em casa, alguém
podia me pegar. O mesmo valeria para o trem aéreo, a escola e o trabalho.
Não faz silêncio na floresta, entulhada de vegetação, e o ar úmido e
pegajoso da manhã envolve a minha pele. Insetos zumbem, pássaros
cantam. Meu braço esbarra em uma folha e uma gota de orvalho pinga no
papel fazendo um som de fruto maduro que cai no chão.
O que foi que o Vovô me deu?
Seguro o peso deste segredo na palma da mão e então o abro. Eu
tinha razão. As palavras são velhas. Apesar de não reconhecer o tipo de
letra, reconheço o formato. Vovô me deu poesia.
Claro. Minha bisavó. Os Cem Poemas. Eu sei, sem precisar verificar
nos terminais escolares, que este poema não é um deles. Ela se arriscou
muito escondendo este papel, e meu avô e avó se arriscaram ao guardá-lo.
Que poemas valeriam o risco de se perder tudo?
O primeiro verso me deixa paralisada e traz lágrimas aos meus olhos,
e não sei a razão, a não ser o fato de que mexe comigo de uma forma que
nunca aconteceu antes.
Não entre docemente naquela boa noite
Continuo a ler, decifrando palavras que não conheço e outras que
conheço.
Eu sei por que emocionava o Vovô.
Não entre docemente naquela boa noite,
A velhice deve arder e delirar ao fim do seu dia;
Revolte-se, revolte-se contra o apagar da luz.
E enquanto leio, sei por que me emociona:
Embora os sábios, ao morrer, saibam que a escuridão é o certo
Porque suas palavras não provocaram centelhas, eles
Não entram docemente naquela boa noite.
Minhas palavras não causaram centelhas. O próprio Vovô me disse
isso, antes de morrer, quando dei a ele aquela carta que, na verdade, não
escrevera. Nada do que escrevi ou fiz havia feito diferença no mundo e,
subitamente, eu sei o que quer dizer revolta e ânsia.
Leio o poema inteiro, devoro, engulo. Leio sobre meteoros e uma baía
verde e lágrimas ferozes, e apesar de não compreender tudo — a
linguagem é antiga demais — eu compreendo o suficiente. Eu
compreendo por que meu Avô amava este poema, porque eu também o
amo. Todo ele. A fúria e a luz.
A linha sob o título do poema diz Dylan Thomas, 1914-1953. Há um
outro poema do outro lado do papel.
E chamado "Cruzar a Margem" e foi escrito por alguém que viveu num
passado ainda mais distante do que Dylan Thomas — Lord Alfred
Tennyson. 1809-1892.
Há tanto tempo, penso. Há tanto tempo eles viveram e morreram. E,
como Vovô, eles nunca vão voltar.
Faminta, leio o segundo poema também. Leio as palavras dos dois
poemas várias vezes, até ouvir um graveto se quebrar estrepitosamente
perto de mim. Rapidamente, dobro o papel e o guardo. Demorei demais.
Preciso ir, compensar o tempo que perdi.
Preciso correr.
Não me contenho. Isto não é o rastreador, de forma que eu posso
forçar o ritmo, através dos galhos e subindo a colina. As palavras do
poema de Thomas são tão selvagens e belas que continuo a repeti-las
silenciosamente enquanto corro. Penso sem parar, não entre docemente,
não entre docemente, não entre docemente. Só quando estou quase no
topo da colina é que a ficha cai: há uma razão para não terem guardado
este poema.
Este poema diz que é preciso lutar.
Mais um galho belisca o meu rosto quando me projeto para a clareira,
mas eu não paro — eu avanço até o espaço aberto. Procuro o Oficial. Ele
não está ali, mas outra pessoa já chegou ao topo. Ky Markham.
Para minha surpresa, estamos sozinhos no alto da colina. Nada do Ofi-
cial. Nem dos outros caminhantes.
Ky está mais relaxado do que jamais o vi, apoiado nos cotovelos com o
rosto virado para o sol e os olhos fechados. Parece diferente e desarmado.
Ao olhá-lo, percebo que é nos seus olhos que mais percebo a distância que
ele mantém. Porque, quando ele me escuta, os abre e me olha, e quase
acontece. Eu quase vislumbro algo de real antes de voltar a ver o que ele
quer que eu veja.
O Oficial sai das árvores, do meu lado. Ele se movimenta
silenciosamente, e me pergunto o que ele teria observado na mata. Será
que me viu? Ele baixa os olhos para o terminal portátil na sua mão e
depois me olha.
— Cássia Reyes? — pergunta ele. Aparentemente, foi previsto que eu
seria a segunda a chegar. Minha parada não deve ter sido tão longa
quanto pensei.
— Sim.
-— Sente-se ali e aguarde — diz o Oficial, apontando para a clareira
coberta de grama no alto da colina. — Aproveite a vista. De acordo com os
dados, ainda vai demorar alguns minutos para o resto chegar até aqui. —
Ele faz um gesto para o aparelho e depois desaparece atrás das árvores.
Faço uma pequena pausa antes de caminhar para junto de Ky,
tentando me acalmar. Meu coração bate veloz, por causa da correria. E
por causa do som nas árvores.
— Olá — diz Ky, quando me aproximo.
— Olá. — Sento na grama ao lado dele. — Não sabia que você
também estava praticando caminhada.
— Minha mãe achou que seria uma boa opção. — Reparo na
facilidade com que ele emprega a palavra "mãe" para descrever sua tia
Aida. Penso em como ele se encaixou na vida daqui, em como ele se
tornou o que todos esperavam no Bairro Mapletree. Apesar de ser novo e
diferente, ele não chamou atenção por muito tempo.
Na verdade, eu nunca o tinha visto terminar nada em primeiro lugar e
falo antes de pensar.
— Você venceu todos nós hoje — digo, como se o fato não fosse
óbvio.
— E — diz ele, me olhando. — Exatamente como previsto. Fui criado
nas Províncias Exteriores, e tive mais experiência em atividades assim. —
Ele fala de maneira formal, como se estivesse recitando dados, mas reparo
no brilho do suor no seu rosto. E o jeito com que ele alonga as pernas
diante de si parece familiar. Ky também veio correndo e ele deve ser bem
rápido. Será que existem rastreadores nas Províncias Exteriores? Se não
existiam, para onde ele corria? Haveria coisas das quais ele tinha que
correr?
Não consigo evitar e pergunto a Ky uma coisa que eu não devia:
— O que aconteceu com a sua mãe?
Os olhos reluzem para mim, surpresos. Ele sabe que não me refiro a
Aida e eu sei que ninguém jamais fez esta pergunta a ele. Também não sei
o que a provocou. Talvez a morte do Vovô e aquilo que li no bosque
tenham me deixado sensível e vulnerável. Talvez eu não queira ficar
pensando em quem me observou nas árvores.
Eu devia pedir desculpas. Mas não peço e não é porque esteja com
vontade de ser cruel. E porque acho que ele talvez quisesse me contar.
Mas eu estou errada.
— Você não devia perguntar isso — diz ele. Não me olha, de forma
que só vejo um lado dele. O perfil, o cabelo escuro úmido com a névoa e a
água que caiu das árvores quando ele passou por elas. Ele cheira a
floresta, e ergo as mãos para cheirá-las... para sentir se também estou
com esse cheiro. Pode ser minha imaginação, mas me parece que meus
dedos cheiram a tinta e papel.
Ky tem razão. Eu sei muito bem que não devia fazer uma pergunta
dessas. Mas depois ele me pergunta algo que ele não devia ter
perguntado.
— Quem foi que você perdeu?
— O que você quer dizer?
— Dá para ver — diz ele, na maior simplicidade. Agora ele está me
olhando. Os olhos continuam azuis.
O sol bate forte na minha nuca e no alto da minha cabeça. Fecho os
olhos do jeito que Ky fez antes e jogo a cabeça para trás para sentir o calor
sobre as pálpebras e o nariz.
Nenhum de nós diz nada. Não fico com os olhos fechados por muito
tempo, mas quando os abro, a luz do sol me ofusca por um instante.
Naquele instante, sei que quero contar para Ky.
— Meu avô morreu na semana passada.
— Foi inesperado?
— Não — digo, mas na realidade foi, de certo modo. Não esperava
que o Vovô dissesse as coisas que disse. Mas esperava sua morte. — Não
— repito. — Foi o octagésimo aniversário dele.
— Correto — diz Ky, de forma pensativa, quase para si mesmo. — As
pessoas aqui morrem quando completam 80 anos.
— É. Não é assim no lugar de onde você veio? — Fico surpresa pelas
palavras escaparem da minha boca... menos de dois segundos antes ele
me lembrara que era melhor não fazer perguntas sobre o seu passado.
Desta vez, porém, ele me responde.
— Oitenta é... uma idade mais difícil de se chegar — diz ele.
Espero que a surpresa não transpareça no meu rosto. Existem
diferentes idades para se morrer em lugares diferentes?
As pessoas soltam exclamações e os pés se batem contra a beirada da
floresta. O Oficial volta a sair do mato e pergunta os nomes à medida que
chegam a clareira. Mudo de posição para me levantar e juro que escuto o
compacto no meu bolso bater contra o recipiente dos comprimidos. Ky se
vira para me olhar e prendo a respiração. Me pergunto se ele pode saber
que existem palavras na minha cabeça, palavras que luto para me lembrar
e memorizar. Porque sei que não poderei voltar a abrir aquele papel.
Preciso me livrar dele. Sentada ali, ao lado de Ky, sorvendo o sol com
minha pele, minha mente fica clara... e me permito perceber o que era
aquele som no mato, mais cedo. O som agudo, de gravetos se partindo.
Alguém me viu.
Ky respira e se aproxima.
— Eu vi você — diz ele, com a voz suave como a água caindo lá longe.
Ele é cauteloso com as palavras, pronunciando-as de forma que não
possam ser captadas pelos outros. — No mato.
Então. Pela primeira vez que eu possa me lembrar, ele me toca. A mão
no meu braço, rápida e quente, e afastada dali sem que eu mal me dê
conta.
— Você precisa ter cuidado. Uma coisa dessas...
— Eu sei. — Quero tocá-lo também, pôr minha mão no braço dele,
mas não o faço. — Vou destruir.
Seu rosto continua sereno, mas o tom da voz trai o nervosismo.
— Você consegue fazer isso sem ser pega?
— Acho que sim.
— Eu podia ajudar. — Ele olha casualmente para o Oficial ao dizer
aquilo e eu me dou conta de algo que nunca reparara até agora porque ele
esconde tão bem. Ky sempre age como se alguém o estivesse observando.
E aparentemente, ele também observa.
— Como é que você conseguiu chegar no alto antes de mim? —
pergunto de repente. — Se você me viu no mato?
Ky parece surpreso com a pergunta.
— Eu corri.
— Eu também corri — digo.
— Devo ser mais rápido — diz ele, e por um momento vejo um ar de
deboche, quase um sorriso. Depois desaparece e ele volta a ficar sério,
premente. — Você quer que eu te ajude?
— Não. Não, eu posso cuidar disso. — Então, por não querer que ele
pense que eu sou uma idiota, alguém que se arrisca apenas pelo prazer de
se arriscar, acabo dizendo mais do que devia. — Meu avô me deu. Eu não
devia ter guardado por tanto tempo. Mas... as palavras são tão lindas.
— Você consegue se lembrar delas sem ver?
— Por enquanto. — Tenho a mente de uma classificadora, afinal de
contas. — Mas sei que não vou ser capaz de guardar para sempre.
— E você quer isso?
Ele acha que sou estúpida.
— São tão lindas — repito, sem graça.
O Oficial grita. Mais pessoas saem das árvores. Alguém chama por Ky,
alguém chama por mim. Separamo-nos, despedimo-nos, caminhamos para
lugares diferentes no alto da pequena colina.
Todo mundo contempla alguma coisa a distância. Ky e seus amigos en-
caram a cúpula da Prefeitura, conversando sobre alguma coisa. O Oficial
contempla a Colina. O grupo com quem estou olha para o refeitório do
Arboreto e tagarela sobre o almoço, sobre voltar para a Segunda Escola e
se os trens aéreos vão estar circulando na hora ou com atraso. Alguém ri,
porque os trens aéreos nunca se atrasam.
Um verso do poema vem à minha cabeça: ali naquela triste altura.
Torno a jogar a cabeça para trás e olho o sol através das pálpebras
fechadas. E mais forte do que eu. Queima vermelho na escuridão.
As perguntas na minha mente fazem um zumbido parecido com
aquele dos insetos no mato, mais cedo. O que aconteceu com você nas
Províncias Exteriores? Que Infração seu pai cometeu que foi capaz de te
tornar uma Aberração? Você acha que eu sou maluca por querer guardar
poemas? O que tem na sua voz que me faz querer te ouvir falar?
É você que devia ser o meu Par?
Depois, percebo que a única pergunta que não me passou pela cabeça
era a mais premente de todas. Você vai guardar meu segredo?
CAPÍTULO 10
O PADRÃO NO MEU BAIRRO MUDOU ESTA NOITE. ALGUMA COISA
está errada. As pessoas esperam no ponto do trem aéreo de caras
fechadas, sem conversar umas com as outras. Entram no vagão sem os
cumprimentos habituais aos que saltam. Um pequeno carro aéreo branco,
um veículo oficial, permanece parado ao lado de uma casa com janelas
azuis na nossa rua. A minha casa.
Desço com pressa as escadas metálicas do ponto do trem aéreo e
procuro mais alterações no padrão à medida que caminho. As calçadas
não me dizem nada. Estão limpas e brancas como sempre. As casas
próximas à minha, trancadas, dizem um pouco mais — se trata de uma
tempestade, ela será aguardada atrás de portas fechadas.
O equipamento de aterrissagem do carro aéreo esta delicadamente
aberto, pousado na grama. Atrás das cortinas brancas da janela, vejo
vultos se mexerem. Subo os degraus correndo e hesito diante da porta.
Será que eu devo bater?
Digo a mim mesma para manter a calma, para manter a clareza. Por
alguma razão, lembro do azul nos olhos de Ky e consigo pensar melhor,
percebendo que ler corretamente a situação é meio caminho andado para
superá-la. Pode ser qualquer coisa. Podem estar examinando o sistema de
distribuição de alimentos casa a casa. Isso aconteceu uma vez, num Bairro aqui
perto. Eu ouvi falar.
Pode não ter nada a ver comigo.
Será que estão contando aos meus pais sobre o rosto de Ky no
microcartão? Será que sabem que o Vovô me deu alguma coisa? Ainda
não tive a oportunidade de destruir os poemas. O papel continua no meu
bolso. Será que alguém além de Ky me viu lendo no mato? Será que foi o
sapato do Oficial que partiu aquele graveto?
Pode ser que tenha tudo a ver comigo.
Não sei o que acontece quando as pessoas infringem as regras,
porque as pessoas aqui do Bairro não fazem isso. Tem umas anotações
insignificantes de vez em quando, como acontece quando Bram se atrasa.
Mas são coisas pequenas, erros pequenos. Não são grandes erros, ou
erros cometidos de propósito.Infrações.
Não vou bater. E minha casa. Respiro fundo, giro a maçaneta e abro a
porta.
Alguém espera por mim lá dentro.
— Você voltou — diz Bram, com alívio na voz.
Meus dedos apertam o pedaço de papel no meu bolso e olho na
direção da cozinha. Talvez eu possa chegar até o tubo de incineração e
enfiar os poemas no fogo lá embaixo. O tubo vai registrar uma substância
desconhecida. Papel espesso é totalmente diferente dos produtos de
papel — guardanapo, impressões do terminal, envelopes de entrega —
que nós temos permissão de descartar nas nossas casas. Mas talvez seja
mais seguro que guardá-lo. Não podem reconstruir as palavras depois que
eu as tiver queimado.
Vejo de relance um Funcionário Biomédico de jaleco branco
comprido, cruzando o corredor e entrando na cozinha. Solto os poemas,
tiro a mão do bolso. Vazia.
— O que houve? — pergunto a Bram. — Cadê Papai e Mamãe?
— Estão aqui — diz Bram, a voz trêmula. — No quarto deles. Os Fun-
cionários estão revistando o Papai.
— Por quê? — Meu pai não está com os poemas. Nunca nem ouviu
falar deles. Mas será que isso importa? A classificação de Ky aconteceu por
causa da infração do pai dele. Será que o meu erro pode mudar toda a
minha família?
Talvez o compacto seja o lugar mais seguro para os poemas, afinal de
contas. Meus avós o mantiveram escondido ali durante anos.
— Eu já volto — digo a Bram e entro no quarto, tiro o compacto do
armário. Giro. Abro a base e coloco o papel lá dentro.
— Alguém entrou? — um Funcionário no corredor pergunta para
Bram.
— Minha irmã — diz Bram, parecendo aterrorizado.
— Para onde ela foi?
Giro, de novo. O compacto não fecha direito. Um pedaço do papel fica
de fora.
— No quarto, mudando de roupa. Ela se sujou na caminhada — a voz
de Bram parece mais firme agora. Ele está me protegendo, embora não
saiba a razão. E está fazendo um bom trabalho.
Ouço passos no corredor, volto a abrir o compacto e esconder todo o
papel dentro.
Giro, um estalo abafado acontece. Finalmente. Com uma das mãos,
abro o zíper da minha roupa. Viro a cabeça quando a porta se abre, com
surpresa e ultraje no rosto.
— Estou me trocando! — exclamo.
O Funcionário sacode a cabeça, vendo a sujeira na minha roupa.
— Por favor, venha até a entrada quando estiver pronta — diz ele. —
Depressa.
Minhas mãos suam um pouco enquanto tiro as roupas que cheiram a
floresta e as coloco no depósito da lavanderia. Depois, em outras roupas
comuns, sem nada que possa parecer ou cheirar a poesia, deixo o quarto.
— Papai não entregou a amostra de tecido do Vovô — Bram diz num
sussurro assim que volto ao hall. — Ele perdeu. É por isso que estão aqui.
— Por um momento a curiosidade dele supera o pânico. — Por que você
precisava mudar de roupa com tanta pressa? Você não tava tão suja
assim.
— Eu tava suja — respondo em voz baixa. — Pssss. Escuta. — Ouço
murmúrios no quarto dos meus pais e depois a voz da minha mãe, mais
alta. E não posso acreditar no que Bram me disse. Meu pai perdeu a
amostra do Vovô?
A tristeza corta o medo dentro de mim. E ruim, muito ruim que meu
pai tenha cometido um erro tão enorme. Não só porque significa encrenca
para ele e para nós. Porque significa que o Vovô partiu de verdade. Não
podem trazer ele de volta sem a amostra.
De repente, me vejo torcendo para que os Funcionários achem algo
na nossa casa.
— Espera aqui — digo a Bram, e entro na cozinha. Um Funcionário
Biomédico está de pé perto do receptáculo de lixo sacudindo um aparelho
para cima e para baixo, para frente e para trás, sem parar. Ele dá um passo
e recomeça a fazer os movimentos em um outro lugar da cozinha. Vejo as
palavras escritas na lateral do objeto, instrumento de Detecção Biológica.
Relaxo um pouquinho. E claro. Eles têm um negócio para detectar o
código de barras gravado no tubo usado pelo Vovô. Eles não precisam
virar a casa de cabeça para baixo. Talvez acabem nem achando o papel. E
talvez achem a amostra.
Como Papai pôde perder algo tão importante? Como pôde perder o próprio
pai? Apesar das minhas instruções, Bram me segue até a cozinha. Toca no
meu braço e voltamos para o corredor.
— Mamãe ainda está discutindo lá dentro — diz ele, fazendo um
gesto para o quarto dos nossos pais. Pego a mão de Bram e a seguro com
força. Os Funcionários não precisam revistar meu pai. Eles têm os
Instrumentos de Detecção que dizem a eles onde procurar. Mas imagino
que queiram deixar uma coisa clara: meu pai devia ter sido mais cuidadoso
com algo tão importante.
— Também estão revistando a Mamãe? — pergunto a Bram. Vamos
todos ter que compartilhar da humilhação do nosso pai?
— Acho que não — diz Bram. — Ela só queria ficar junto com o Papai.
A porta do quarto se abre e Bram e eu saímos da frente dos Funcionários.
Os jalecos brancos fazem com que pareçam altos e puros. Um deles
percebe o quanto estamos assustados e nos dá um pequeno sorriso para
nos reconfortar. Não funciona. Ele não pode devolver a amostra perdida,
nem a dignidade do meu pai. O dano já foi feito.
Meu pai caminha atrás dos Funcionários, pálido e infeliz. Em compara-
ção, minha mãe parece corada e zangada. Ela segue meu pai e os
Funcionários até a sala da frente e Bram e eu ficamos na entrada para ver
o que vai acontecer.
Não encontraram a amostra. Sinto um aperto no coração. Meu pai, no
meio da sala, é repreendido pela Equipe Biomédica.
— Como você faz uma coisa dessas? Ele sacode a cabeça.
— Não sei. E imperdoável. — As palavras parecem inexpressivas,
como se ele as tivesse repetido tantas vezes que já abandonara qualquer
esperança de que os Funcionários acreditassem nele. Ele permanece
ereto, como sempre faz, mas o rosto parece cansado e envelhecido.
— Você compreende que não há como trazê-lo de volta agora —
dizem. Meu pai assente, o rosto cheio de dor. Apesar de estar zangada
com ele por ter perdido a amostra, percebo que se sente péssimo. Claro
que sim. E o Vovô. Apesar da raiva, queria segurar a mão do Papai, mas ele
está cercado por Funcionários demais.
E sou um poço de hipocrisia. Também fiz algo que contrariava as
regras hoje e o que eu fiz foi intencional.
— Isto pode resultar em algumas sanções a você no trabalho — diz
uma Funcionária para o meu pai, num tom tão cruel que me pergunto se
ela mesma não vai receber uma anotação. Ninguém deve falar assim.
Mesmo quando erros acontecem, não se deve levar a coisa para o pessoal.
— Como pode-se esperar que você trabalhe na restauração e descarte
de artefatos quando não consegue saber onde deixou uma amostra de
tecido? Especialmente quando sabia o quanto era importante?
Um dos outros Funcionários fala baixo.
— Você arruinou a amostra que pertencia a seu próprio pai. E não
relatou a perda.
Meu pai passa a mão sobre os olhos.
— Fiquei com medo — diz. Ele sabe da seriedade da situação. Não
precisa que lhe expliquem. A cremação ocorre horas depois da morte. Não
há forma de se obter outra amostra. Acabou. Ele se foi. O Vovô realmente
se foi.
Minha mãe aperta os lábios com força e seus olhos reluzem, mas a
raiva dela não é dirigida ao Papai. Ela está zangada com os Funcionários
por fazerem ele se sentir pior do que já se sentia.
Apesar de não haver nada a dizer, os Funcionários não vão embora.
Alguns momentos de frio silêncio se passam em que ninguém diz nada e
nós pensamos em como nada pode salvar o Vovô nesse momento.
Uma campainha toca na cozinha. O jantar chegou. Minha mãe sai da
sala. Escuto ela pegar a entrega de alimentos e a colocar sobre a mesa.
Quando volta, os sapatos batem com força no assoalho. Ela fala sério.
— Está na hora da refeição — diz ela, olhando para os Funcionários. —
Temo que não tenham nos enviado porções extras.
Os Funcionários se irritam um pouco. Ela está tentando dispensá-los?
Difícil dizer. O rosto parece convidativo, o tom pesaroso, mas firme. E ela é
tão bonita, cabelos louros despencando nas costas, bochechas coradas.
Nada disso deveria importar. Mas, de alguma forma, importa.
E além disso: nem Funcionários ousam incomodar demais a hora das
refeições.
— Vamos relatar isto — disse o mais alto. — Tenho certeza de que
será emitida uma anotação do mais alto grau, e que o próximo erro
resultará numa infração completa.
Meu pai assente. Minha mãe volta a olhar para a cozinha para lembrá-
los de que a comida está lá, esfriando, e possivelmente perdendo
nutrientes. Os Funcionários acenam brevemente com a cabeça, um por
um, e saem, cruzando o hall, passando pelo terminal e pela única porta da
casa.
Quando saem, a família inteira suspira de alívio. Meu pai vira para
nós.
— Sinto muito — diz ele. — Sinto muito. — Ele olha para a minha mãe
e aguarda que ela fale.
— Não se preocupe — diz ela corajosamente. Ela sabe que meu pai
agora cometeu um erro que vai estar documentado de forma permanente
no banco de dados. Sabe que isso significa que o Vovô partiu para sempre.
Mas ela ama o Papai. Ama demais, penso às vezes. Penso agora. Porque se
ela não está zangada com ele, como eu posso estar?
Quando nos sentamos para jantar, minha mãe abraça ele e pousa a
cabeça no seu ombro por um momento, antes de lhe entregar a
embalagem de alumínio. Ele estende a mão para tocar no seu cabelo, no
seu rosto. Ao observá-los, penso que algum dia algo parecido pode
acontecer a mim e a Xander. Nossas vidas estarão tão entrelaçadas que o
que um de nós fizer vai afetar o outro da forma mais profunda, como a
árvore que minha mãe transplantou certa vez, no Arboreto. Ela me
mostrou quando fui visitá-la. Era uma coisinha de nada, uma árvore bebê,
mas ainda se prendia a coisas e exigia cuidado para ser mexida. E quando
ela finalmente a puxou, as raízes ainda seguravam a terra da sua antiga
casa.
Será que Ky fez isso ao vir para cá? Trouxe alguma coisa consigo? Teria
sido difícil. Ele deve ter sido revistado cuidadosamente e precisava se
adaptar bem depressa. Ao mesmo tempo, não consigo entender como não
traria alguma coisa. Secreta, talvez, interior, intangível. Algo para nutri-lo.
Algo para fazê-lo se lembrar de casa.
Pés batendo, punhos cerrados, começo a correr no rastreador.
Queria poder correr lá fora, longe da tristeza e da vergonha da minha
casa. O suor escorre pela minha roupa de exercício, pelo meu cabelo, pelo
meu rosto. Passo a mão no rosto e olho para a tela do aparelho.
Há uma elevação no gráfico: a simulação de uma colina. Ótimo.
Cheguei ao ápice do exercício, a parte mais difícil, a mais rápida. O
rastreador gira sob os meus pés, uma máquina inspirada nas trilhas
circulares onde as pessoas costumavam competir. O nome diz exatamente
o que ela faz — rastreia informações sobre a pessoa que corre ali. Se você
corre demais, pode ser um masoquista, uma anoréxica, ou coisa parecida
e vai ter que visitar um Funcionário de Psicologia para receber um
diagnóstico. Se fica determinado que você corre muito porque gosta
mesmo disso, então pode ganhar um passe atlético. Eu tenho um.
Minhas pernas doem um pouco. Olho para frente e me esforço para
ver o rosto do Vovô dentro da minha mente, para mantê-lo ali. Se não
existe uma possibilidade de que ele volte, então sou eu quem precisa
mantê-lo vivo.
A inclinação aumenta e mantenho o ritmo, desejando a sensação da
subida da colina hoje cedo, quando estávamos caminhando. Ao ar livre.
Galhos, arbustos, lama e sol no alto da colina com um garoto que sabe
mais do que diz.
O rastreador solta um bipe. Cinco minutos para o fim do exercício,
para que eu tenha corrido a distância e o tempo que devo para manter o
melhor ritmo cardíaco possível e o melhor índice de massa corporal
possível. Preciso ser saudável. É parte do que nos torna formidáveis, o que
mantém nossa expectativa de vida longa.
Todas as coisas que antigos estudos mostraram serem boas para a
longevidade — casamentos felizes, corpos saudáveis — estão ao nosso
alcance. Temos vidas boas e longas. Morremos no dia do aniversário de 80
anos, cercados por nossas famílias, antes de sermos consumidos pela
demência. Câncer, doença cardíaca e a maioria das doenças incapacitantes
foram praticamente eliminados. Nenhuma sociedade chegou tão perto da
perfeição.
Meus pais conversam lá em cima. Meu irmão faz o dever de casa e eu
corro para lugar nenhum. Todos nesta casa fazem o que deveriam estar
fazendo. Tudo vai ficar bem. Meus pés batem com força na superfície do
rastreador e eu elimino minhas preocupações passo a passo. Passo a passo
a passo a passo a passo.
Estou cansada, não sei se posso continuar, quando o rastreador apita
e diminui a velocidade, diminui, diminui até parar. Tempo exato,
programado pela Sociedade. Abaixo a cabeça, ofegante, tentando respirar.
Não há nada para ver no alto da colina.
Bram está sentado na beirada da minha cama, esperando por mim.
Segura algo. A princípio, acho que é o compacto e dou um passo para a
frente, preocupada — Será que ele achou a poesia? —, então percebo que
é o relógio do Vovô. O artefato de Bram.
— Enviei uma mensagem pelo terminal para os Funcionários, faz
alguns minutos — diz Bram. Seus olhos redondos me observam, cansados
e tristes.
— Por que você fez isso? — pergunto chocada. Por que ele ia querer
ver ou falar com um Funcionário depois do que aconteceu hoje?
Bram segura o relógio.
— Achei que talvez desse para tirar tecido disso aqui. Porque o Vovô
tocou nele muitas vezes.
A esperança atravessa minhas veias como adrenalina. Tiro uma toalha
de um gancho no armário e seco o rosto.
— O que eles disseram? Responderam alguma coisa?
— Mandaram uma mensagem dizendo que não era o bastante. Não ia
funcionar. — Ele esfrega a superfície reluzente do relógio com a manga,
para limpar as manchas dos dedos. Ele olha para o mostrador do relógio
como se ele pudesse dizer alguma coisa.
Mas não pode. Bram ainda não sabe como ver as horas. Além do mais,
o relógio do Vovô não funciona há décadas. Não é nada além de um belo
artefato. Pesado, feito de prata e vidro. Nada parecido com as faixas de
plástico fino que nós usamos hoje em dia.
— Eu pareço com o Vovô? — pergunta Bram, esperançosamente. Ele
escorrega o relógio no braço. Fica frouxo em volta do seu pulso fino.
Magrela, de olhos castanhos, bem ereto, pequeno — ele realmente se
parece um pouco com o Vovô naquele momento.
— Sim. — Me pergunto se existe alguma coisa do Vovô para ser vista
em mim. Gostei da trilha de hoje. Gosto de ler os Cem Poemas. Aquelas
coisas que eram parte dele também são parte de mim. Penso nos outros
avós que tenho nos Campos, em Ky Markham e nas Províncias Exteriores,
e em todas as coisas que não sei e nos lugares que nunca verei.
Bram sorri com a minha resposta e olha orgulhosamente para o
relógio.
— Bram, não pode levar isso para a escola, você sabe. Vai arranjar
encrenca.
— Eu sei.
— Você viu o que aconteceu com Papai quando os Funcionários
vieram atrás dele. Você não quer que eles fiquem furiosos com você por
infringir a regra sobre artefatos.
— Não vou fazer isso — diz ele. — Sei muito bem. Não quero perder.
— Ele pega a caixa de prata do meu Banquete do Par. — Posso guardar
aqui? Parece um bom lugar. Tipo, especial. — Ele dá de ombros,
constrangido.
— Tudo bem — digo com algum nervosismo. Vejo ele abrir a caixa de
prata e guardar o artefato cuidadosamente lá dentro, junto com o
microcartão. Ele nem olha para o compacto, na prateleira, e eu me sinto
grata por isso.
Mais tarde naquela noite, quando está escuro e Bram já foi para a
cama, abro o compacto e tiro o papel. Não olho para ele. Em vez disso, eu
o coloco no bolso das minhas roupas comuns para o dia seguinte. Amanhã,
vou achar um incinerador de lixo longe de casa onde possa jogá-lo. Não
quero que ninguém me pegue fazendo isso aqui. Agora é perigoso demais.
Me deito e olho o teto, tentando de novo pensar no rosto do Vovô.
Não consigo relembrá-lo. Impaciente, rolo na cama e alguma coisa dura
me aperta, de lado. O recipiente dos comprimidos. Devo ter deixado cair
quando troquei de roupas comuns mais cedo. Não costumo ser assim tão
descuidada. Sento. A luz dos postes atravessa as janelas, amortecida. E o
suficiente para que eu veja os comprimidos ao abrir a tampa e espalhá-los
na cama. Por um momento, enquanto meus olhos se acostumam, todos
parecem ter a mesma cor. Depois, consigo perceber as diferenças. O
misterioso comprimido vermelho. O azul que nos ajudará a sobreviver em
caso de emergência, porque nem mesmo a Sociedade controla a natureza
o tempo inteiro. E o verde.
A maioria das pessoas que eu conheço tomam o verde de vez em
quando. Antes de uma prova difícil. Na noite do Banquete do Par. Em
qualquer ocasião em que precisem se acalmar. Você pode tomá-lo uma
vez por semana sem chamar a atenção dos Funcionários.
Mas eu nunca tomei o comprimido verde.
Por causa do Vovô.
Fiquei tão orgulhosa em mostrar para ele quando comecei a carregá-
lo.
— Olha — disse a ele, desatarraxando a tampa do recipiente
prateado. — Eu agora tenho o azul e o verde. Só preciso do vermelho e já
vou ser adulta.
— Ah — exclamou o Vovô, parecendo estar adequadamente
impressionado. — Você está crescendo, com toda certeza. — Ele fez uma
pausa. Nós estávamos andando ao ar livre, na área verde perto do
apartamento dele. — Você já tomou o verde?
—Ainda não — disse. — Mas preciso fazer uma apresentação sobre
uma das Cem Pinturas na minha aula de Cultura, semana que vem. Talvez
eu tome. Não gosto de falar na frente de ninguém.
— Qual é a pintura? — perguntou ele.
— Número 19 — digo e ele parece pensativo, tentando lembrar qual
é. Ele não conhece... não conhecia... as Cem Pinturas tão bem quanto os
Cem Poemas. Ainda assim, ele soube qual era depois de pensar um pouco.
— A do Thomas Moran — arrisca, e eu faço que sim com a cabeça. —
Gosto das cores nessa — diz ele.
— Eu gosto do céu — respondi. — E tão dramático. Todas as nuvens lá
no alto e no cânion. — A pintura parecia um pouco perigosa, volumosas
nuvens cinzentas, pedras vermelhas e pontudas, e eu também gostava
disso.
— É — disse ele. — É uma bela pintura.
— Como isso aqui — disse eu, apesar da área verde ser bonita de
forma totalmente diferente. Flores desabrochavam em toda parte em
cores que não podíamos usar nas roupas: rosas, amarelos, vermelhos,
quase atordoantes na sua intensidade. Capturavam o olhar, perfumavam o
ar.
— Área verde, comprimido verde — disse o Vovô, e então olhou para
mim e sorriu. — Olhos verdes numa menina verde.
— Parece poesia — exclamei e ele riu.
— Obrigado. — Ele parou por um momento. — Eu não tomaria esse
comprimido, Cássia. Não por causa de um trabalho da escola. Talvez nunca
tomasse. Você é forte o bastante para não precisar tomá-lo.
Agora, deito de lado e aperto o comprimido verde com minha mão.
Acho que não vou tomá-lo, nem mesmo hoje. Vovô acha que sou forte o
bastante para não precisar tomá-lo. Fecho os olhos e penso na poesia do
Vovô.
Comprimido verde. Área verde. Olhos verdes. Menina verde.
Quando adormeço, sonho que o Vovô me deu um buquê de rosas.
— Tome isso em vez do comprimido — ele me fala. E é o que faço, tiro
as pétalas de cada rosa. Para minha surpresa, há uma palavra escrita em
cada pétala, uma palavra de um dos poemas. Não estão na ordem correta,
e isso me confunde, mas ponho-as na boca e provo. Têm gosto amargo, do
jeito que imagino ser o sabor do comprimido verde. Mas sei que o Vovô
está certo. Preciso guardar as palavras por dentro, se quiser mantê-las
comigo.
Quando acordo de manhã, o comprimido verde continua na minha
mão e as palavras continuam na minha boca.
CAPÍTULO 11
OS SONS DO CAFÉ DA MANHÃ NA COZINHA CRUZAM O CORREDOR E
chegam ao meu quarto. A campainha, anunciando a chegada da entrega
de comida que desliza pela fenda. Uma pancada, Bram derrubando
alguma coisa. As cadeiras rangem, vozes murmuram enquanto minha mãe
e meu pai conversam com Bram. Logo o cheiro da comida entra pela
porta, ou talvez até atravesse as paredes finas da casa, infiltrando-se em
tudo. O cheiro é familiar, cheiro de vitaminas e alguma coisa metálica,
talvez o papel-alumínio.
— Cássia? — chama Mamãe, por trás da porta. — Você está atrasada
para o café.
Eu sei. Eu quero me atrasar para o café. Não quero ver meu pai hoje. Não
quero conversar sobre o que aconteceu ontem, mas também não quero não
falar sobre isso, me sentar na mesa com nossas porções de comida e fingir que o
Vovô não partiu para sempre.
— Já vou — digo e saio da cama. No corredor, escuto um anúncio pelo
terminal e acho que pesco a palavra trilha.
Quando entro na cozinha, meu pai já foi para o trabalho. Bram veste
capa de chuva, sorrindo alegremente. Como ele conseguiu esquecer tão
rápido da noite passada?
— Deve chover hoje — ele me informa. — Não vai ter trilha para você.
Disseram isso pelo terminal.
Minha mãe dá o chapéu para Bram e ele o enfia na cabeça.
— Tchau! — diz ele, e se dirige para o trem aéreo, dessa vez
adiantado, porque ele gosta da chuva.
— Então — diz minha mãe. — Parece que você vai ter algum tempo li-
vre. O que você pensa em fazer?
Sei a resposta no ato. A maioria dos outros caminhantes vai passar o
tempo na área de uso comum, no interior da escola, ou terminando
deveres na biblioteca escolar. Eu tenho algo diferente na cabeça, uma
visita a uma biblioteca diferente.
— Acho que talvez eu vá fazer uma visita para o Papai. Os olhos da
minha mãe amolecem. Ela sorri.
— Tenho certeza que ele vai gostar, porque você não encontrou com
ele hoje. Mas ele não vai poder parar de trabalhar por muito tempo.
— Eu sei. Só quero dar um oi. — E destruir algo perigoso, algo que eu
não devia ter. Algo mais provável de se achar numa velha biblioteca do
que em qualquer outro lugar, se eles realmente registram a composição
de tudo o que e queimado no tubo de incineração.
Pego um dos triângulos secos de torrada que estão enfiados no papel-
-alumínio, pensando em como os dois poemas ficavam sobre o papel.
Lembro de muitas das palavras, mas não de todas, e quero todas elas.
Cada uma. Será que tem um jeito de eu dar mais uma olhada antes de
destruir o papel? Existe algum jeito de fazer com que as palavras durem?
Se nós ainda soubéssemos escrever, em vez de só digitar nos
escrevinha-dores. Aí eu poderia escrevê-las de novo um dia. Talvez
pudesse tê-las comigo quando envelhecesse.
Olho pela janela e vejo Bram no ponto do trem aéreo. Ainda não
começou a chover, mas ele pula para cima e para baixo nos degraus de
metal até a plataforma. Sorrio sozinha e espero que ninguém o mande
parar, porque sei exatamente o que ele está fazendo. Na falta do trovão
de verdade, ele está fazendo seu próprio trovão.
Ky é a única pessoa caminhando em direção à plataforma do trem
aéreo quando eu saio de casa. O trem para a Segunda Escola já partiu, e o
próximo vai para a cidade. Ele provavelmente precisa aparecer no trabalho
quando as atividades de lazer são canceladas. Não tem direito a uma ou
duas horas livres. Ao ver Ky caminhar, com os ombros eretos, a cabeça
erguida, me ocorre como ele deve ser solitário. Passou tanto tempo se
misturando à multidão e agora foi novamente separado.
Ky me ouve chegar por trás dele e se vira.
— Cássia — diz ele, parecendo surpreso. — Você perdeu o trem?
— Não. —: Paro a alguns metros de distância, para lhe dar espaço, se
ele quiser. — Vou pegar esse aí. Vou visitar meu pai. Você sabe, já que a
trilha foi cancelada.
Ky mora no nosso Bairro e, naturalmente, sabe que os Funcionários
nos visitaram na noite passada. Mas ele não vai dizer nada — ninguém vai
dizer nada. Não é da conta de ninguém, a menos que a Sociedade diga o
contrário.
Dou mais um passo na direção do ponto do trem aéreo, na direção de
Ky.
Fico à espera de que ele se mova, suba os degraus até a plataforma,
mas ele não o faz. Ele dá um passo na minha direção. A Colina coberta de
árvores do Arboreto se ergue ao longe, atrás dele, e me pergunto se algum
dia andaremos por lá, A tempestade, ainda a quilômetros de distância,
ruge e retumba, cinzenta e pesada no céu. Ky ergue os olhos.
— Chuva — diz ele, bem baixinho e olha para mim. — Você vai para o
escritório dele, na Cidade?
— Não. Mais longe. Ele hoje está num sítio lá na ponta do Bairro de
Brookway.
— Você vai conseguir chegar até lá e voltar a tempo de ir para a
escola?
— Acho que sim. Já fiz isso antes, quando ele estava trabalhando por
lá.
Com as nuvens ao fundo, os olhos de Ky parecem mais claros,
refletindo o cinza ao seu redor, e tenho um pensamento inquietante:
talvez seus olhos não tenham cor. Refletem o que ele usa, a pessoa que os
Funcionários querem que ele seja. Quando ele se vestia de marrom, os
olhos pareciam castanhos. Agora que ele usa azul, parecem azuis.
— No que você está pensando? — me pergunta. Digo a verdade.
— Na cor dos seus olhos.
Minha resposta pega Ky desprevenido. Mas após um instante, ele
sorri. Adoro seu sorriso. Nele, vejo um pouquinho do garoto que era
naquele dia, na piscina. Os olhos dele eram azuis na época? Não consigo
me lembrar. Queria ter olhado com mais atenção.
— No que você está pensando? — pergunto. Espero as janelas se
fecharem como sempre fazem: Ky vai me dar alguma resposta esperada
tipo "estava pensando no que eu tenho que fazer hoje no trabalho" ou
"nas atividades das horas de recreação livre no sábado à noite". Mas ele
não faz isso.
— Na minha casa — diz ele, simplesmente, ainda me olhando.
Nós dois nos olhamos por um longo momento, sem qualquer
constrangimento, e eu sinto que Ky sabe. Não tenho certeza do que ele
sabe — não sei se me conhece, ou se só sabe algo sobre mim.
Ky não diz mais nada. Ele me olha com aqueles olhos mutantes,
aqueles olhos que achei que eram da cor da terra mas que são da cor do
céu, e eu devolvo o olhar. Acho que nos vimos mais nos últimos dois dias
do que em todos os anos em que nos conhecemos.
A voz da locutora atravessa o silêncio:
— Trem aéreo se aproximando.
Nenhum de nós fala nada enquanto subimos rápido os degraus de
metal até a plataforma, deixando as nuvens na distância. Por enquanto,
vencemos, chegando ao alto no momento em que o trem aéreo desliza e
para diante de nós. Juntos, entramos, nos reunindo a grupos de outras
pessoas em roupas azuis e alguns Funcionários aqui e ali.
Não há dois lugares lado a lado. Acho um lugar primeiro e Ky se senta
na minha frente. Ele se inclina, repousando os cotovelos nos joelhos.
Alguém, outro trabalhador, o cumprimenta, e Ky retribui. O trem está
lotado e as pessoas passam entre nós, mas posso observá-lo de vez em
quando, nos vãos que elas deixam. E me ocorre que esta talvez seja uma
parte da razão que me leva a visitar meu pai hoje. Não é só para destruir o
papel, mas para andar neste trem com Ky.
Chegamos primeiro ao ponto dele. Ele salta sem olhar para trás.
Do alto da plataforma do trem aéreo, as ruínas da antiga biblioteca
parecem cobertas por enormes aranhas negras. Os imensos incineradores
negros estendem tubos compridos como pernas ao longo da parede de
tijolos e por sobre as beiradas até o interior do porão da biblioteca. O
resto do prédio já foi todo demolido.
Desço a escada e caminho até a biblioteca. Estou deslocada neste
local. Mas não é proibido que esteja aqui. De qualquer maneira, seria
melhor que ninguém me visse ainda. Me esgueiro o bastante para
enxergar dentro do buraco. Os trabalhadores, a maior parte em roupas
comuns azuis, puxam pilhas de papéis com tubos de incineração. Meu pai
nos disse que bem no momento em que achavam que já tinham
examinado tudo, encontraram caixas de aço com livros, enterradas no
porão. Quase como se alguém tivesse tentado esconder e proteger os
livros contra o futuro. Papai e outros especialistas em Restauração
examinaram as caixas e não acharam nada de especial, por isso vão
incinerar tudo.
Um vulto veste branco. Um Funcionário. Meu pai. Todos os
trabalhadores usam capacetes de proteção, por isso não posso ver o rosto
dele, mas a confiança está de volta ao seu andar. Se desloca de forma
decidida, à vontade, dando ordens e apontando para onde quer que os
tubos sejam colocados a seguir.
Às vezes, me esqueço que meu pai é um Funcionário. Raramente o
vejo em ação, de uniforme, que ele troca no trabalho. Vê-lo de uniforme
ao mesmo tempo me reconforta — ele não foi rebaixado depois da noite
passada, pelo menos ainda não — e me deixa agitada. E estranho ver as
pessoas de formas diferentes.
Outro pensamento me passa pela cabeça: antes de fazer 70 anos e ser
obrigado a deixar de trabalhar, Vovô era um Funcionário. Mas é diferente
com Papai e Vovô-, digo a mim mesma. Nenhum dos dois é, ou foi,
Funcionário de alto escalão em lugares como o Departamento de Pares ou
o Departamento de Segurança. Esses são os que geralmente fazem coisas
típicas de Funcionários, como implementar regras. Somos pensadores, não
fiscais. Aprendizes, não executores.
Geralmente. Minha bisavó, que foi também Funcionária, roubou
aquele poema.
Meu pai olha uma vez para o céu, consciente da aproximação da
tempestade. A velocidade é importante, mas eles precisam ser metódicos.
— Não dá para simplesmente botar fogo nas coisas — ele me disse
uma vez. — Os tubos são como os aparelhos de incineração na nossa casa.
Registram a quantidade e o tipo de material destruído. — Sobraram
algumas pilhas de livros e, enquanto observo, os trabalhadores vão de
uma a outra, seguindo as ordens dele. E mais rápido incinerar páginas que
livros, por isso cortam os volumes, retirando os miolos, preparando-os
para os tubos.
Meu pai volta a olhar para o céu e faz gestos que indicam pressa para
os outros trabalhadores. Preciso voltar para a escola, mas continuo
olhando.
Não sou a única. Quando ergo os olhos, sobre o abismo de aranhas e
livros, vejo outra figura de branco. Um Funcionário. Também observando.
Fiscalizando meu pai.
Os trabalhadores arrastam o tubo de incineração até uma das pilhas
novas. As espinhas dos livros foram quebradas, seus ossos, finos e
delicados, se esfarelam. Os trabalhadores os enfiam no tubo de
incineração. Pisam neles. Os ossos estalam sob as botas como folhas.
Lembra o outono, quando a Cidade manda o equipamento de incineração
para nossos bairros e jogamos as folhas de bordo que caíram das árvores
para dentro dos tubos. Minha mãe sempre lamenta o desperdício, pois as
folhas apodrecidas podem produzir bom adubo, da mesma forma que meu
pai, quando precisa incinerar uma biblioteca, lamenta o desperdício do
papel que podia ser reciclado. Mas Funcionários mais importantes dizem
que não vale a pena salvar certas coisas. As vezes é mais rápido e eficiente
destruir.
Uma folha escapa. Capturada por um golpe de vento da tempestade
que se aproxima, ela se ergue, quase atingindo meus pés, enquanto fico
na beira desta pequena cratera que já foi uma biblioteca. Paira ali, tão
próxima que quase consigo ver as palavras que estão escritas nela, e então
o vento diminui por um momento e ela volta a cair.
Levanto os olhos. Nenhum dos Funcionários me vê. Nem meu pai,
nem o outro. Meu pai está concentrado nos livros que ele está destruindo.
O outro está concentrado no meu pai. Está na hora. Ponho a mão no bolso
e tiro o papel que o Vovô me deu. E o solto.
Ele dança no ar por um momento antes de também cair. Uma nova
rajada de vento quase o salva, mas um trabalhador o vê e ergue um tubo
para aspirar o papel do ar, para aspirar as palavras do céu.
Sinto muito, Vovô.
Fico ali e observo até que todos os ossos sejam enfiados nos tubos de
incineração, até que todas as palavras sejam transformadas em cinzas e
nada mais.
Fiquei tempo demais no posto de trabalho da biblioteca e estou quase
atrasada para a aula. Xander me aguarda perto dos portões principais da
Segunda Escola. Ele segura um deles, suportando o peso com o ombro.
— Está tudo bem? — ele me pergunta em voz baixa, quando paro na
entrada.
— Oi Xander — alguém o chama. Ele faz um movimento de cabeça na
direção da voz, mas não desvia o olhar.
Por um momento, acho que devo contar tudo para Xander. Não só o
que aconteceu na noite passada, com os Funcionários, que é o que
preocupa a ele, mas tudo. Devo contar sobre o rosto de Ky na tela. Devo
contar sobre Ky no mato, como ele viu o poema. Devo contar para Xander
sobre o próprio poema e como me senti ao soltá-lo. Em vez disso, sacudo
a cabeça. Não quero falar nesse momento.
Xander muda de assunto, os olhos se iluminando.
— Quase me esqueci. Tenho uma coisa para te contar. Vai ter uma
nova atividade no sábado.
— Ah, é? — pergunto, grata pela compreensão, por não ter insistido.
— E uma nova exibição?
— Melhor. Vamos replantar os canteiros de flores em frente à
Primeira Escola e jantar ao ar livre. Como num — qual é a palavra? —
piquenique. Depois, vai ter sorvete.
O entusiasmo na voz de Xander me faz sorrir um pouquinho.
— Xander, isso não passa de trabalho disfarçado. Querem mão de
obra gratuita e vão nos subornar com sorvete.
Ele sorri.
— Eu sei, mas é bom ter uma mudança. Me deixa novo em folha para
os jogos da próxima vez. Então, você também vai querer plantar, né? Sei
que as vagas são preenchidas rápido, então já inscrevi você, caso quisesse
participar.
Um leve toque de irritação por ele ter feito isso sem falar comigo
antes me invade, mas desaparece quase no mesmo instante, quando
reparo que seu sorriso parece um pouco sem graça. Ele sabe que passou
dos limites — nunca teria feito tal coisa se não fôssemos um Par — e o
fato de ele se preocupar com isso faz com que tudo fique bem. Além do
mais, apesar de ser trabalho disfarçado, eu teria me inscrito num piscar de
olhos. Xander sabe disso. Ele me conhece e cuida de mim.
— Está ótimo — digo para Xander. — Obrigada. — Ele solta a porta e
entramos juntos pelo corredor. Me pego pensando no que Ky vai fazer
naquela noite. Ninguém é informado sobre opções de recreação livre no
trabalho. Quando ele voltar para casa e descobrir, todas as vagas estarão
tomadas por causa da novidade e por causa do sorvete. Mas a gente podia
inscrevê-lo. Eu podia ir até um dos terminais da escola e...
O tempo acabou. A campainha soa nos alto-falantes do corredor.
Xander e eu entramos rápido pela porta da sala de aula, sentamos nas
cadeiras e pegamos os leitores e escrevinhadores. Piper geralmente senta
do nosso lado em Ciências Aplicadas, mas eu não a vejo.
— Cadê a Piper?
— Eu ia te dizer. Hoje ela ganhou o posto final de trabalho dela.
— Foi? Qual é?
Mas a campainha toca de novo e preciso olhar para frente e esperar
até o fim da aula. Piper já tem a sua vocação! Algumas pessoas as ganham
cedo, como Ky, mas o resto de nós a recebe em algum momento no ano
seguinte ao décimo-sétimo aniversário. Um por um, somos selecionados
até que todos se vão e não sobra ninguém do nosso ano na escola.
Espero que Xander e Em demorem bastante para serem chamados.
Não vai ser a mesma coisa sem eles, especialmente Xander. Olho para ele.
Ele observa a instrutora como se isso fosse tudo o que ele quisesse fazer
no mundo. Os dedos batem no escrevinhador, ele mexe com um pé cheio
de impaciência, sempre pronto a aprender mais. Difícil acompanhar o
ritmo dele — é tão inteligente, aprende tão rápido. E se ele for levado logo
para a vocação dele e me deixar para trás?
Tudo está acontecendo tão rápido. Chegar até o meu décimo-sétimo
aniversário foi como dar passos lentos por uma trilha onde eu via cada
pedregulho, reparava em cada folha, me sentia, ao mesmo tempo,
agradavelmente entediada e cheia de expectativa. Agora parece que eu
estou correndo pela trilha a toda velocidade, ofegante. Parece que a data
do meu Contrato vai chegar voando. Será que algum dia o ritmo volta a
diminuir?
Desvio o olhar de Xander. Mesmo se Xander receber a vocação dele
antes, ainda somos um Par, lembro a mim mesma. Ele não vai me deixar
para trás. Ele não sabe que eu vi o rosto de Ky naquele dia, na tela.
Se eu contasse para Xander, será que ele compreenderia? Acho que
sim. Não acho que ameaçaria a nós como Par, nem como amigos. Ao
mesmo tempo, são duas coisas que eu não quero arriscar perder.
Volto a olhar para a instrutora. A janela está escura, o céu cheio de
nuvens baixas e pesadas. Me pergunto como elas pareceriam vistas do
alto da grande Colina. Será que é possível escalar numa altura suficiente
para chegar acima das nuvens, contemplar a chuva de algum lugar ao sol?
Sem querer, visualizo Ky na colina, com o rosto voltado para o calor.
Fecho os olhos por um momento, imaginando que eu também estou ali.
A tempestade chega, afinal, no meio da aula. Imagino a chuva na área
verde onde conversei com a Funcionária, fazendo a fonte transbordar,
batendo no banco onde sentei. Imagino ouvir as pancadas das gotas ao
bater no metal, seus suspiros ao alcançar a grama e a terra. Está escuro
como a noite lá fora. A água bate no telhado e corre pelas calhas. Uma das
janelas da sala de aula está envolta e obscurecida pela chuva e não dá
para ver nada por trás da torrente lá fora.
Um verso daquele outro poema, o poema de Tennyson, vem à minha
mente subitamente: A torrente pode me levar para longe.
Se eu tivesse guardado os poemas do Vovô, estaria sendo levada por
uma torrente que eu não poderia deter. Fiz o que precisava fazer. Fiz a
coisa certa. Mas é como se a chuva que cai lá fora despencasse em mim,
corroendo o alívio e deixando apenas o arrependimento: os poemas se
foram e eu jamais vou poder recuperá-los.
CAPÍTULO 12
NAQUELA NOITE, NO TRABALHO, TEMOS UMA CLASSIFICAÇÃO
interessante, para variar. Até Norah fica animada ao descrevê-la para mim
em sua mesa.
— Estamos examinando diferentes características físicas para uma
seleção de Pares — diz ela. — Cor de olhos. Cor de cabelo. Altura e peso.
— O Departamento de Pares vai usar nossas classificações? —
pergunto. Ela ri.
— Claro que não. É apenas como prática. É para ver se vocês
encontram, nas informações dos candidatos, padrões que os Funcionários
já discriminaram.
Naturalmente.
— Tem mais uma coisa — acrescenta Nora. Ela baixa a voz, não
porque se trata de um segredo, mas porque não deseja que os outros se
distraiam durante o trabalho. — Os Funcionários me disseram que vão,
pessoalmente, ministrar o seu próximo teste.
E um bom sinal. Significa que querem ver por si próprios se sou capaz
de trabalhar sob pressão. Significa que podem estar me considerando para
alguma das vocações mais interessantes ligadas à classificação.
— Você sabe quando?
Ela sabe, dá para perceber, mas não pode me contar.
— Logo, logo — diz de novo, vagamente, e me dá um de seus raros
sorrisos. Ela se volta para a tela e eu sigo para a minha posição, para
começar.
Isso é bom, penso. Posso obter uma colocação perfeita se conseguir
impressionar suficientemente os Funcionários. Tudo está indo bem de
novo. Não vou pensar no Vovô e na amostra perdida, nem no meu pai e
nos Funcionários que o revistaram. Ou no fato de que Ky nunca vai ter um
Par, nem vai trabalhar em outro lugar além do centro de descarte de
nutrição. Não vou pensar em nada disso. E hora de esvaziar a mente e
classificar.
E espantoso classificar cor de olhos, na verdade; as possibilidades são
limitadas: um número tão pequeno e finito de opções. Azul, castanho-
escuro, castanho-claro, verde, cinza — essas são todas as opções para cor
de olhos, apesar da variedade de grupos étnicos presentes na população.
Há muito tempo, havia mutações genéticas, como os albinos, mas elas não
existem mais. A cor de cabelo é igualmente limitada: preto, castanho,
louro, ruivo.
Tão poucas opções e mesmo assim um número infinito de variações.
Por exemplo, muitos dos garotos neste banco de dados têm olhos azuis e
cabelos escuros como Ky, mas tenho certeza de que nenhum se parece
com ele. E mesmo se alguém se parecesse, se um daqueles garotos fosse a
cara dele, ou se ele tivesse um irmão gêmeo, ninguém poderia ter a
combinação de movimento e contenção, de honestidade e reserva de Ky.
O rosto dele fica aparecendo na minha mente, mas sei que não é mais um
erro da Sociedade. E meu. Sou eu que não paro de pensar nele quando
devia estar pensando em Xander.
A minúscula impressora ao meu lado solta um bipe, e eu pulo.
Cometi um erro e não reparei nele num espaço de tempo aceitável.
Um pequeno pedaço de papel sai na mesa ao meu lado e eu o pego.
"ERRO NA LINHA 3568". Quase nunca cometo erros, de forma que isso vai
despertar interesse. Volto à linha onde cometi o erro e a corrijo. Se isso
acontecer semana que vem, quando os Funcionários estiverem me
olhando...
Não vai acontecer. Não vou deixar que aconteça. Mas antes de me
perder mais uma vez na classificação, permito a mim mesma pensar por
um breve momento nos olhos de Ky, na sua mão no meu braço.
— Alguém me disse que uma menina da sua idade apareceu hoje na
área de trabalho — disse meu pai. Ele veio se encontrar comigo no ponto
do trem aéreo, algo que ele faz de vez em quando com Bram e comigo
para que a gente possa ter algum tempo a sós, antes de chegar em casa.
— Foi você? Fiz que sim.
— Cancelaram a trilha por causa da chuva, por isso pensei em ir te ver
antes de ir para escola. Porque não te vi de manhã. Mas você tava
ocupado e eu não tinha muito tempo. Desculpa, mas não pude ficar lá.
— Você devia voltar, se quiser — disse ele. — Eu vou estar no
escritório toda a semana que vem. É um caminho bem mais curto.
— Eu sei. Talvez eu vá. — Minhas respostas soam um pouco distantes,
e espero que ele não perceba que ainda estou ligeiramente zangada por
ele ter perdido a amostra. Sei que isso não é razoável e que ele se sente
péssimo, mas ainda estou perturbada. Sinto falto do meu avô. Me prendi
àquele tubo, à esperança de que ele talvez pudesse voltar.
Meu pai para e olha para mim.
— Cássia. Tem alguma coisa que você queira me perguntar? Ou me
contar? Foi por isso que você foi até o trabalho?
O rosto bondoso, tão parecido com o do Vovô, parece preocupado.
Preciso contar.
— Vovô me deu um papel — eu digo e meu pai empalidece na mesma
hora. — Estava dentro do meu compacto. Tinha palavras antigas nele...
— Pssss — diz meu pai. — Espera.
Um casal caminha na nossa direção. Sorrimos e nos afastamos para
dar passagem a eles na calçada. Quando os dois se afastaram o bastante,
meu pai para. Estamos na frente da casa agora, mas percebo que ele não
quer continuar a conversa lá dentro. Entendo. Tem algo que eu quero
perguntar e eu quero a resposta antes de nós entrarmos onde o terminal
zumbe e nos aguarda, no além. Estou preocupada de não termos uma
chance de voltar a falar sobre isto.
— O que você fez? — pergunta ele.
— Eu destruí. Hoje, na sua área de trabalho. Parecia ser o lugar mais
seguro.
Penso ver uma sombra de decepção no rosto do meu pai, mas então
ele assente.
— Bom, melhor assim. Especialmente nesse momento.
Sei que ele se refere à visita dos Funcionários e sem poder me conter,
pergunto:
— Como você pôde perder a amostra?
Meu pai cobre o rosto com as mãos, um gesto tão repentino e
angustiado que dou um passo para trás.
— Eu não perdi. — Ele respira fundo, eu não quero que ele conclua o
pensamento, mas não encontro as palavras para impedi-lo. — Eu destruí.
No mesmo dia. Ele me fez prometer que eu faria isso. Ele queria morrer
nos seus próprios termos.
A palavra "morrer" faz com que eu me encolha, mas meu pai não
acabou.
— Ele não queria que fossem capazes de trazê-lo de volta. Ele queria
escolher o que iria acontecer a ele.
— Mas você também tinha uma escolha — sussurro, zangada. — Você
não precisava obedecer. E agora ele se foi.
Se foi. Como o poema de Thomas. Eu estava certa em destruir o
poema. O que o Vovô pensou que eu poderia ou iria fazer com aquilo?
Minha família não se rebela. Ele não se rebelou, a não ser pelo pequeno
ato de rebeldia ao guardar o poema. E não há razão para se rebelar. Veja o
que a Sociedade nos dá.
Boas vidas. A chance da imortalidade. A única forma de arruiná-la é
arruinando a nós mesmos. Como meu pai fez, porque meu avô pediu.
Enquanto me afasto do meu pai e corro para dentro, os olhos ardendo
com as lágrimas, parte de mim o entende e entende por que ele escolheu
fazer o que o Vovô pediu. Não é isso o que eu estou fazendo também,
todas as vezes em que eu penso nas palavras do poema ou tento ser forte
o bastante para não precisar do comprimido verde?
É difícil saber como ser forte. Teria sido fraqueza soltar o papel, vê-lo
flutuar para a morte tão silencioso, branco e cheio de promessas como a
semente de choupo? É fraqueza eu me sentir como me sinto quando
penso em Ky Markham? Saber o ponto exato da minha pele em que ele
tocou?
Seja lá o que for que eu sinto por Ky, tem. que acabar. Agora. Xander
é o meu Par. Não importa que Ky tenha estado em lugares em que eu
nunca estive ou que tenha chorado durante a exibição, quando achou que
ninguém estava vendo. Não importa que ele saiba sobre as lindas palavras
que eu li no mato. Seguir as regras, ficar em segurança. E isso que importa.
É a forma que eu tenho de ser forte.
Vou tentar esquecer que Ky disse "casa" quando olhou nos meus
olhos.
CAPÍTULO 13
― CASSIA REYES — DIGO, SEGURANDO MEU CARTÃO DE LEITURA. A
trabalhadora registra no terminal de mão o número da embalagem em
papel alumínio e me entrega a refeição.
O terminai apita de novo quando Xander pega a comida dele e para ao
meu lado.
— Você está vendo a Em por aí? Ou a Piper ou o Ky? — pergunta.
Cobertores formam uma colcha de retalhos que cobre o pátio ao lado da
Primeira Escola. E um piquenique de verdade — comida consumida ao
ar livre sobre a grama. Trabalhadores correm pelo pátio, tentando
entregar as refeições certas para as mãos certas. E um tanto trabalhoso e
compreendo por que não fazem isso com muita freqüência. E mais fácil
enviar a comida para as casas das pessoas, para as escolas, os trabalhos.
— Acho que Piper e Ky não se inscreveram a tempo. Por causa do
trabalho.
Alguém acena para nós de um cobertor no meio do pátio.
— Olha lá a Em — digo a Xander, apontando, e juntos
ziguezagueamos entre os cobertores estendidos na grama para saudar
nossos colegas e amigos. Todos estão de bom humor, tontos com a
novidade. Olhando para baixo, tentando não pisar no cobertor e nem na
comida de ninguém, esbarro em Xander, que parou. Ele se vira para trás e
sorri.
—Você quase me fez derrubar o jantar — diz ele; e eu zombo, dando-
lhe um empurrãozinho. Ele desaba no cobertor ao lado de Em e se
debruça para olhar a embalagem de alumínio dela.
— O que eles nos mandaram?
— Caçarola de carne com legumes— diz Em, fazendo uma careta.
— Lembra do sorvete — digo.
Quase acabei de comer quando alguém chama Xander do outro lado
do gramado.
— Já volto — ele avisa, antes de se levantar e abrir passagem pela
multidão. Eu sigo seu avanço pela massa de gente. Eles se viram para vê-lo
passar, chamam seu nome.
Em se inclina e diz para mim:
— Acho que alguma coisa está errada comigo. Eu tomei o comprimido
verde hoje cedo. Já tomei. Queria deixar para o final da semana. Você
sabe.
Quase pergunto a Em o que ela quer dizer com isso, e aí me sinto uma
amiga terrível. Como pude esquecer? O Banquete do Par dela. Ela queria
deixar o comprimido para aquela noite, porque está ficando nervosa.
— Ah, Em — digo, pondo o braço à sua volta, abraçando-a. Ela e eu
temos nos afastado ultimamente, mas não por escolha nossa. Acontece
quando você se concentra nas tarefas de trabalho e nas vocações. Mas
sinto falta. Em noites como essa, especialmente. Noites de verão, quando
lembro como era ser mais jovem e ter mais tempo. Quando Em e eu
costumávamos passar tantas das nossas horas de recreação livre juntas.
Tínhamos mais delas, naquela época.
— Vai ser uma noite maravilhosa — digo a ela. — Eu garanto. Tudo é
tão lindo. E exatamente como eles nos prometem.
— Jura? — pergunta Em.
— Claro. Que vestido você escolheu? — Os modelos de vestido são re-
novados a cada três anos, por isso Em teve a mesma seleção que eu tive.
— Um dos amarelos. Número 14. Você lembra dele?
Tanta coisa já aconteceu desde que eu fui ao escritório de Pares
escolher o vestido.
— Acho que não — digo, tentando me lembrar.
A voz de Em fica animada quando ela descreve o vestido.
— É um amarelo bem claro, com as mangas de borboleta... Agora eu
lembro.
— Ai, Em, adorei aquele vestido! Você vai ficar linda. — Vai mesmo.
Amarelo é a cor perfeita para Em. Vai ficar lindo com a pele clara dela,
com o cabelo negro e os olhos escuros. Vai fazer ela parecer um raio de sol
de primavera.
— Estou tão nervosa.
— Eu sei. E difícil não ficar.
— Tudo mudou agora que apontaram o Xander como o seu Par — Em
me conta. — Eu andei meio que... imaginando.
— Mas eu e o Xander sermos um Par não torna nem um pouco mais
provável...
— Eu sei. Todo mundo sabe. Mas agora a gente não consegue mais
parar de imaginar. — Em olha para a embalagem de alumínio, para o seu
jantar quase intocado.
Uma campainha soa dos alto-falantes e começamos automaticamente
a juntar nossas coisas. Hora de trabalhar. Em suspira e se levanta.
Vestígios de preocupação ainda marcam seu rosto e eu me lembro de
como foi esperar pelo meu Par.
— Em — digo impulsivamente. — Eu tenho um compacto que você
pode pegar emprestado, se quiser, para o Banquete. E dourado. Vai ficar
perfeito com o seu vestido. Vou trazer amanhã.
Em arregala os olhos.
— Você tem um artefato? E você me emprestaria?
— Claro. Você é uma das minhas melhores amigas.
Mudas de rosas novas, com botões vermelhos, foram postas em tubos
de plástico preto, esperando que nós as plantemos no terreno diante da
Primeira Escola. A Primeira Escola sempre parece tão alegre. Imagino o
seu interior com paredes em amarelo vivo, piso de ladrilhos verdes e
portas azuis nas salas de aula. E fácil se sentir segura ali. Sempre me senti
quando era pequena. Me sinto segura aqui agora, penso comigo. Não
sobrou nenhum poema. Os problemas do Papai acabaram. Estou segura
aqui e em toda parte.
A não ser talvez na pequena colina onde, apesar da minha decisão de
me manter em segurança, com freqüência me pego olhando para Ky e
pensando. Querendo que nós pudéssemos voltar a conversar, mas sem
ousar correr o risco de dizer para ele nada além das coisas corriqueiras, as
coisas que nós sempre dizemos.
Olho para trás, à procura de Ky, mas não o vejo.
— Que tipo de flores são essas? — Xander me pergunta enquanto
cavamos. O solo é espesso e preto. Sai em torrões, quando o tiramos.
— Rosas novas — digo para Xander. — Você provavelmente tem algu-
mas no seu quintal. Nós temos algumas no nosso.
Não menciono que não são as favoritas da minha mãe. Ela acha que as
que temos na Cidade, em todos os jardins e áreas públicas, são híbridas
demais, distantes demais da identidade original. As rosas velhas
precisavam de muito mais cuidados para crescerem. Cada flor era um
triunfo. Mas essas são resistentes, vistosas, criadas para serem duráveis.
— Não temos rosas novas nos Campos — diz minha mãe. — Temos
outras flores, flores selvagens.
Quando eu era pequena, ela costumava me contar histórias sobre
aquelas flores diferentes que cresciam nos Campos. As histórias não
tinham enredo. Não eram histórias, propriamente, e sim descrições, mas
eram lindas e me embalavam para dormir. "Renda da Rainha Anne", dizia
minha mãe numa voz suave e lenta. — Cenoura selvagem. Dá para se
comer a raiz, quando está bem verde. A flor é branca e rendilhada. Linda.
Como as estrelas.
— Quem é a Rainha Arme? — eu perguntava, sonolenta.
— Não me lembro. Acho que ela está em algum lugar das Cem Lições
de História. Mas psss... Não importa. O que importa é que você vê a renda
diante de você, florezinhas demais para se contar, mas de qualquer
maneira, você tenta.
Xander me entrega um arbusto de rosa nova e eu o tiro de dentro do
tubo plástico e o coloco no chão. As raízes fortes e grudentas cresceram
em círculos fora do vaso, por falta de mais espaço. Eu as espalho, quando
ponho a planta no chão. Olhar para o solo me faz pensar na terra que suja
os meus sapatos quando caminhamos. E pensar em caminhar me faz
pensar em Ky. De novo.
Me pergunto onde será que ele está. Enquanto Xander e eu
plantamos flores e conversamos, eu imagino Ky trabalhando enquanto o
resto de nós se diverte ou ouvindo música transmitida para um auditório
quase vazio. Imagino-o andando em meio à multidão no prédio de
recreação e participando de um jogo que ele provavelmente vai perder.
Vejo-o sentado no teatro assistindo a exibição com lágrimas nos olhos.
Não. Tiro as imagens da minha cabeça. Não vou fazer isso de novo. A
escolha está feita.
Para início de conversa, eu nunca tive escolha.
Xander sabe que eu não estou prestando tanta atenção quanto
deveria no que ele está falando. Ele olha para ter certeza de que ninguém
está nos ouvindo e diz baixinho.
— Cássia. Você ainda está preocupada com seu pai? Meu pai.
— Não sei — digo. E verdade. Não sei como eu me sinto em relação a
ele neste momento. A raiva já está cedendo, quase contra a minha
vontade, e se transformando em mais compreensão e simpatia. Se o Vovô
tivesse me olhado com seus olhos ardentes e me pedido para lhe fazer um
último favor, teria eu sido capaz de negar?
A noite escorrega lentamente, escurecendo o céu aos poucos. Ainda
há vestígios de luz quando a campainha soa de novo e nos levantamos
para examinar nosso trabalho. Uma leve brisa sopra na área e os canteiros
de flores ondulam avermelhados no entardecer.
— Eu queria que a gente pudesse fazer isso todos os sábados — digo.
A sensação é de que nós criamos algo lindo. Minhas mãos estão
manchadas do vermelho de algumas pétalas esmagadas. Elas cheiram a
terra e a rosas novas, um cheiro intenso e floral de que eu gosto, apesar
dos comentários da minha mãe sobre o perfume das rosas velhas ser mais
sutil, mais delicado. O que há de errado em ser durável? O que há de
errado em ser algo, ou alguém, que dura?
Porém, ali, ao olhar o meu trabalho, percebo que tudo o que a minha
família tem feito é classificar. Nunca criar. Meu pai classifica antigos
artefatos, como meu avô fazia. Minha bisavó classificava poemas. Meus
avós dos Campos plantam sementes e cuidam das colheitas, mas tudo o
que plantam foi designado pelos Funcionários. Assim como as coisas que a
minha mãe planta no Arboreto.
Como nós fizemos aqui.
Então eu não criei nada, afinal de contas. Fiz o que me mandaram, se-
gui as regras e algo lindo aconteceu. Exatamente como os Funcionários
prometeram.
— Chegou o sorvete — diz Xander. Os trabalhadores empurram os
carrinhos frigoríficos pela calçada próxima aos canteiros. Xander me pega
por uma mão e Em pela outra e nos leva para a fila mais próxima.
Os trabalhadores levam bem menos tempo para nos entregar taças de
alumínio com sorvete do que levaram para distribuir o jantar, porque o
sorvete é igual para todo mundo. Nossas refeições têm vitaminas e
complementos especiais e precisam ser entregues para pessoa certa. O
sorvete é uma comida de nada.
Um pessoal chama Em e ela vai sentar com eles. Xander e eu
encontramos um lugar um pouco separado do resto. Apoiamos as costas
nas resistentes paredes de concreto da escola e esticamos as pernas. As de
Xander são longas e os sapatos estão gastos. Ele deve ganhar novos em
breve. Ele enfia a colher na bola branca de sorvete e suspira.
— Eu plantaria quilômetros de flores para ganhar isso.
Eu concordo. Frio, doce e maravilhoso, o sorvete desliza pela minha
língua, desce pela garganta e chega ao meu estômago e posso jurar que
sinto sua presença muito tempo depois de ter derretido. Meus dedos têm
cheiro de terra, meus lábios têm gosto de açúcar e estou tão desperta
agora que não sei se vou conseguir dormir esta noite. Xander estende para
mim a última colher do sorvete dele.
— Não, é seu — digo, mas ele insiste. Está sorrindo, é generoso e não
parece educado afastar sua mão, por isso aceito.
Pego a colher dele e ponho na boca o resto. É o tipo de coisa que você
nunca poderia fazer com uma refeição de verdade — dividir comida —
mas esta noite é aceitável. Os Funcionários que vagam por ali
supervisionando não dão a menor atenção.
— Obrigada — digo, e é quando o gesto de delicadeza de Xander me
faz sentir uma certa vontade inexplicável de chorar. Para disfarçar, eu
brinco. — Nós dividimos uma colher. É praticamente como beijar.
Xander revira os olhos.
— Se você pensa assim, é porque nunca deu um beijo antes.
— Claro que dei. — Somos adolescentes, afinal de contas. Até a
escolha do Par, nós todos temos as nossas paixonites, paqueramos e
beijamos de brincadeira. Mas é isso e nada além disso, uma brincadeira,
porque sabemos que nos será designado um Par, algum dia. Ou vamos
ficar Solteiros e a brincadeira nunca vai terminar.
— Tinha alguma orientação com relação a beijos? Alguma coisa de
que eu devia me lembrar? — pergunto, provocando Xander.
Vejo um olhar malicioso nos olhos dele, quando se aproxima um
pouco mais.
— Não tem regra nenhuma sobre beijos, Cássia. Nós somos um Par.
Já olhei para o rosto de Xander muitas vezes, mas nunca dessa
maneira. Nunca na penumbra, nunca com uma sensação na barriga e no
coração que é formada por duas partes de empolgação e uma de
nervosismo. Olho em volta, mas ninguém presta atenção em nós, e
mesmo se prestassem, tudo o que veriam seria dois vultos sentados um
tanto próximos na escuridão da noite.
Também me aproximo.
Se eu precisasse de mais alguma confirmação de que a Sociedade
sabe o que está fazendo, de que este é o meu Par, o gosto do beijo de
Xander teria me convencido. Parece perfeito, mais doce do que eu
esperava.
Uma campainha toca no pátio, quando eu e Xander nos separamos,
olhando um para o outro.
— Ainda temos uma hora de recreação livre — diz Xander, olhando o
relógio, o rosto aberto, sem constrangimento.
— Queria que a gente pudesse ficar — digo, e é verdade. O ar aquece
o meu rosto aqui. É ar de verdade, nem refrescado nem aquecido para o
meu conforto. E o beijo de Xander, meu primeiro beijo de verdade, me faz
juntar os lábios, tentar prová-lo de novo.
— Não vão nos deixar — diz ele, e vejo que é verdade. Já estão
juntando as taças, mandando que a gente vá terminar o tempo de
recreação em outro lugar porque a luz já está se acabando aqui.
Em se separa dos amigos dela e vem caminhando, graciosa, na nossa
direção.
— Eles vão ver o final da exibição — diz ela —, mas eu já cansei disso.
O que vocês vão fazer? — No momento em que ela faz a pergunta, seus
olhos se arregalam um pouco, lembrando. Que Xander e eu somos um Par.
Ela havia esquecido, por um momento, e agora se preocupa se não vai
ficar deslocada.
Mas a voz de Xander é carinhosa, tranqüila, amigável.
— Não temos tempo suficiente para jogar — diz ele. —Tem uma sala
de música aqui perto, a uma parada de distância. Vamos lá?
Em parece aliviada e olha para mim para ter certeza de que está tudo
bem. Sorrio para ela. Claro que está bem. Ela ainda é nossa amiga.
Enquanto caminhamos para o ponto do trem aéreo, penso em como já
fomos mais numerosos. Ky obteve o seu posto de trabalho e Piper
também. Não sei onde Sera está hoje à noite. Em está aqui, mas vai chegar
a hora em que ela também vai partir, quando ficaremos apenas Xander e
eu.
Já faz muito tempo, meses até, que estive na sala de música. Para
minha surpresa, essa aqui está cheia de gente de roupa azul.
Trabalhadores, jovens e velhos, que terminaram seu turno tardio. Acho
que isso acontece com freqüência. Com pouco tempo de sobra, para onde
mais eles poderiam ir? Devem parar por aqui, quando voltam da Cidade.
Para minha surpresa, vejo que alguns dormem, as cabeças jogadas para
trás, cansados. Ninguém parece se importar. Alguns conversam. Ky está
aqui.
Descubro-o quase que imediatamente no mar de azul, quase antes de
me dar conta de que estava procurando. Ky também nos vê. Ele acena,
mas não se levanta.
Sentamos nos assentos mais próximos, Em, Xander, eu. Em pergunta a
Xander sobre a experiência dele no Banquete do Par, ainda em busca de
segurança, e ele começa a contar uma história engraçada sobre não saber
como colocar as abotoaduras naquela noite, nem como dar o nó da
gravata. Tento não prestar atenção em Ky, mas de alguma forma vejo
quando ele se levanta e abre caminho até nos encontrai-. Sorrio um pouco
quando ele pega o assento ao meu lado.
— Não sabia que você gostava tanto de música.
—Venho muito aqui — diz Ky. — A maior parte dos trabalhadores
vem, como talvez você tenha percebido.
— Não fica chato? — A voz límpida da mulher que canta a canção se
ergue sobre nós. — Já ouvimos as Cem Canções tantas vezes.
— Às vezes, elas são diferentes — diz Ky.
— Verdade?
— São diferentes quando você está diferente.
Não sei muito bem o que ele quer dizer, mas minha atenção se desvia
subitamente quando Xander puxa o meu braço.
— Em — sussurra. Olho para Em. Ela está tremendo, respirando
rápido. Xander se levanta e troca de lugar com ela, ajudando-a,
protegendo-a com o corpo de forma que fique no meio do grupo, em vez
de na beirada. Também me abaixo, instintivamente ajudando a escondê-la
e logo Ky se aperta contra mim, também bloqueando-a. E a segunda vez
em que nos tocamos e apesar de me preocupar com Em, não consigo
deixar de notar, não consigo deixar de me inclinar para junto dele um
pouco, apesar de ainda sentir o beijo de Xander em meus lábios.
Estamos todos em volta de Em agora, escondendo-a. Seja lá o que for
que estiver acontecendo, quanto menos gente perceber, melhor. Pelo
bem de Em. Pelo nosso bem. Levanto o olhar. O Funcionário encarregado
da sala ainda não reparou na gente. Tanta gente aqui, a maioria
trabalhadores, exigindo mais atenção do que estudantes. Temos algum
tempo.
— Vamos pegar o seu comprimido verde — diz Xander delicadamente
para Em. — E um ataque de ansiedade. Já vi pessoas que sofrem deles no
centro médico. Tudo o que elas precisam fazer é tomar o comprimido
verde, mas ficam tão assustadas que esquecem. — Apesar de a voz dele
transmitir confiança, ele morde o lábio. Parece preocupado com Em e não
deve falar demais sobre seu trabalho com aqueles que não têm a mesma
vocação.
— Não dá — sussurro. — Ela tomou hoje, mais cedo. Não deu tempo
de conseguir outro. — Não digo o resto. E ela vai arranjar encrenca por
tomar dois no mesmo dia.
Xander e Ky se entreolham. Nunca vi Xander hesitar dessa forma —
ele não pode fazer nada? Sei que pode. Uma vez, uma criança da nossa rua
caiu e tinha sangue por toda parte. Xander soube o que fazer — nem
pestanejou — até que os médicos chegaram e levaram o menino para o
centro médico, para cuidar dele.
Ky também não se mexe. Como você pode?, penso, zangada. Ajuda
ela! Mas mesmo enquanto continua parado, seus olhos estão grudados
nos de Xander. Os lábios de Ky se mexem.
— O seu — sussurra, olhando para Xander.
Por uma fração de segundo, Xander não compreende. Então, no
mesmo momento em que ele entende, eu também entendo.
Mas há uma diferença entre nós. Xander não hesita, assim que ele
percebe o que Ky quer dizer.
— Claro — cochicha e pega seu recipiente de comprimidos. Agora que
sabe o que fazer, ele é rápido, é ágil, é Xander.
Ele põe o comprimido verde dele na boca de Em. Acho que ela não
sabe o que está acontecendo. Está tremendo tanto, está com tanto medo.
Engole por reflexo. Duvido que ela sinta o gosto de qualquer coisa.
Quase imediatamente, seu corpo relaxa.
— Obrigada — diz ela, fechando os olhos. — Desculpem. Tenho me
preocupado demais com o Banquete. Desculpem.
— Está tudo bem — sussurro, olhando para Xander e depois para Ky.
Juntos, eles conseguiram. Por um momento, me pergunto por que Ky não
deu para Em o comprimido dele, mas então me lembro. Ele é uma
Aberração. E Aberrações não têm permissão de carregar seus próprios
comprimidos.
Será que Xander sabe? Será que o Ky se entregou?
Mas não creio que Xander tenha percebido. Por que pensaria naquilo?
Faz muito mais sentido que ele dê o comprimido a Em, em vez de Ky. Bem
mais. Xander conhece Em há mais tempo. Ele se acomoda no assento,
olhando para Em enquanto sente seu pulso, a mão em volta do punho
delicado dela. Olha para Ky, para mim e assente.
— Agora está tudo bem — diz ele. — Ela vai ficar bem.
Ponho o braço em volta de Em e também fecho os olhos, ouvindo a
música. A canção que a mulher cantava terminou e agora é a vez do Hino
da Sociedade, as notas do baixo trovejam, o coro entra para o último
verso. As vozes parecem triunfantes. Cantam como se fossem uma só
pessoa. Como nós. Envolvemos em um círculo para protegê-la dos olhos
dos Funcionários e ninguém vai falar sobre o comprimido verde.
Fico feliz porque tudo está bem, feliz por ter prometido deixar que Em
pegasse emprestado o compacto para o Banquete. Pois qual é a vantagem
de se ter alguma coisa bonita se você não a compartilha com ninguém?
Seria como ter um poema, um poema belo e selvagem que mais
ninguém tem, e queimá-lo.
Depois de um momento, abro os olhos e olho para Ky. Ele não
retribui, mas eu sei que sabe que estou olhando para ele. A música é
suave, lenta. Seu peito sobe e desce com a respiração. Os cílios são negros,
inacreditavelmente longos, exatamente da cor do cabelo.
Ky tem razão. Nunca mais vou ouvir esta canção do mesmo jeito.
CAPÍTULO 14
NO DIA SEGUINTE, NO TRABALHO, REPARAMOS IMEDIATAMENTE
quando os Funcionários entram no ambiente. Como peças de dominó que
caem na mesa de jogo, uma cabeça após a outra se vira em direção à
porta do centro de classificação. Os Funcionários de uniforme branco
estão aqui por minha causa. Todos sabem disso e eu sei disso, por isso não
espero por eles. Puxo a cadeira para trás e me levanto, o olhar
encontrando os deles sobre as divisórias que separam nossas baias.
Está na hora do meu teste. Eles fazem um sinal para que eu os siga.
Eu os sigo, o coração batendo forte, mas a cabeça erguida, e vou até
uma salinha cinzenta com uma só cadeira e várias mesinhas. Quando me
sento, Norah surge na entrada. Parece meio ansiosa, mas me dá um
sorriso confortante antes de olhar para os Funcionários.
— Precisam de alguma coisa?
— Não, obrigado — diz um Funcionário de cabelo grisalho, que parece
consideravelmente mais velho que os outros dois. — Trouxemos tudo de
que vamos precisar.
Nenhum dos três Funcionários perde tempo com conversa enquanto
preparam tudo. O Funcionário que falou primeiro parece comandar. As
outras, duas mulheres, são rápidas e eficientes. Prendem um leitor de
dados atrás da minha orelha e outro na minha gola. Não digo nada, nem
quando o gel que usam arde na pele.
As duas mulheres recuam e o Funcionário mais velho empurra uma
pequena tela para mim, sobre a mesa.
— Você está pronta?
— Estou — digo, esperando que minha voz pareça firme e clara.
Endireito os ombros e me sento bem erguida. Se eu agir como se não
estivesse assustada, talvez eles acreditem em mim. Embora os leitores de
dados que prenderam em mim possam contar uma história diferente,
graças ao meu pulso agitado.
— Então já pode começar.
Eles são justos. Querem que eu esteja preparada antes de passarem
para classificações mais complexas.
Enquanto separo os números na tela, criando ordem no caos e
detectando padrões, meus batimentos cardíacos se regularizam. Paro de
tentar me prender a tantas coisas — a lembrança do beijo de Xander, o
que meu pai fez, a curiosidade sobre Ky, a preocupação com Em na sala de
música, a confusão sobre mim mesma e como eu devo ser e quem eu devo
amar. Me solto de tudo, como uma criança com um monte de balões no
Primeiro Dia, na Primeira Escola. Eles se afastam de mim, coloridos,
dançando na brisa, mas eu não olho para o alto nem tento voltar a segurá-
los. Só quando não me prendo a nada eu consigo ser a melhor, só então
posso ser o que esperam que eu seja.
— Excelente — diz o Funcionário mais velho ao registrar os
resultados. — Verdadeiramente excelente. Obrigado, Cássia.
As Funcionárias retiram os leitores de dados. Olham para mim e
sorriem porque agora já não podem ser acusadas de demonstrar
preferência. O teste terminou. E parece que, no mínimo, eu consegui
passar.
— Foi um prazer — diz o Funcionário de cabelos grisalhos,
estendendo a mão sobre a mesinha. Eu me levanto e aperto sua mão e,
em seguida, as mãos das outras duas Funcionárias. E me pergunto se
conseguem sentir a corrente de energia que me atravessa: o sangue nas
minhas veias é feito de adrenalina e alívio.
— Foi uma demonstração excepcional de habilidade classificatória.
— Muito obrigada, senhor.
Ao seguirem para a porta, ele se vira para mim pela última vez e diz.
— Estamos prestando atenção em você, mocinha.
Ele bate a porta de metal ao passar. Ela faz um ruído denso, sólido,
um som de conclusão. Enquanto ouço o vazio que se segue, percebo
subitamente por que Ky gosta de passar despercebido. E uma sensação
estranha saber, com certeza, que os Funcionários me observam com mais
atenção. E como se eu estivesse no caminho quando aquela porta bateu e
agora percebo que estou presa pelo peso da observação deles, algo
concreto, real, pesado.
Na noite do Banquete do Par de Em, eu vou para a cama cedo e
adormeço rápido. E a minha vez de usar os sensores de sono e espero que
a informação que eles registrem dos meus sonhos apresente os padrões
de sono de uma garota de 17 anos absolutamente normal. Mas no meu
sonho, estou novamente fazendo classificações para os Funcionários. O
retrato de Em aparece na tela e eu estou encarregada de classificá-la
numa seleção de Pares. Fico paralisada. Minhas mãos param. Meu cérebro
trava.
— Algum problema? — pergunta o Funcionário de cabelos grisalhos.
— Não sei como eu devo classificar ela — digo. Ele olha para o rosto
de Em na tela e sorri.
— Ah. Isso não é problema. Ela está com o seu compacto, não é?
— Está.
— Ela vai levar os comprimidos para o Banquete dentro dele, como
você. Só precisa dizer a ela para tomar o comprimido vermelho e tudo vai
ficar bem.
De repente, eu estou no Banquete, passando por meninas de vestido
e garotos de terno e pais de roupas comuns. Eu os viro, empurro, faço o
que posso para ver seus rostos, porque todos usam amarelo e tudo se
mistura. Não consigo classificar. Não consigo ver.
Viro outra garota.
Não é Em.
Acidentalmente, derrubo uma bandeja de bolo da mão de um garçom
e tento alcançar uma garota de andar gracioso. A bandeja cai no chão, o
bolo se desfaz, como a terra a se desprender de raízes.
Não é Em.
A multidão rareia e a garota de vestido amarelo está de pé, sozinha
diante de uma tela vazia. Em.
Ela está a ponto de chorar.
— Tá tudo bem! — exclamo, abrindo caminho em meio a mais gente.
— Toma o comprimido e tudo vai ficar bem!
Os olhos de Em se iluminam. Ela abre meu compacto. Pega o
comprimido verde e o põe na boca depressa.
— Não! — exclamo, tarde demais. — O...
Ela põe na boca, em seguida, o comprimido azul.
— ... o vermelho! — concluo, atravessando o último grupo de pessoas
para ficar em frente a ela.
— Eu não tenho — diz ela, virando-se, agora com as costas diante da
tela. Ela me mostra o compacto aberto, vazio. Seus olhos estão tristes. —
Eu não tenho um comprimido vermelho.
— Você pode ficar com o meu — digo, ansiosa para compartilhá-lo
com ela, ansiosa em ajudá-la desta vez. Não vou ficar parada. Pego meu
recipiente, torço a tampa, coloco o comprimido vermelho bem na mão
dela.
— Ah, obrigada, Cássia — diz ela. Coloca-o na boca. Eu a vejo engolir.
Todos no salão pararam de se mexer. Todos nos olham agora,
prestando atenção em Em. Qual o efeito do comprimido vermelho?
Nenhum de nós sabe, a não ser eu. Sorrio. Sei que vou salvá-la.
Atrás de Em, a tela se acende para mostrar o Par dela — bem a tempo
para que ele a veja cair no chão, morta. Seu corpo faz um barulho surdo ao
cair, que constrasta com a leveza da agitação dos seus olhos quando se
fecham, da agitação das pregas do vestido ao redor, da agitação das suas
mãos abertas parecidas com as asas de alguma coisa pequena.
Acordo suando e com frio ao mesmo tempo, e preciso de um minuto
para me acalmar. Apesar de os Funcionários rirem da idéia do comprimido
vermelho ser mortífero, os boatos persistem. Isso explica por que sonhei
com a morte de Em.
Só porque eu sonhei com aquilo, não significa que seja verdade.
Os sensores de sono parecem pegajosos sobre a minha pele e gostaria
de não precisar usá-los hoje. Pelo menos, não se trata de um pesadelo
recorrente e por isso não posso ser acusada de estar obcecada com
alguma coisa. Além do mais, acho que eles não têm como dizer
exatamente o que eu sonhei. Só conseguem dizer que eu sonhei. E uma
adolescente com um pesadelo ocasional não seria algo raro. Ninguém vai
chamar atenção para essa informação ao carregar o meu arquivo.
Mas o Funcionário grisalho disse que estavam de olho em mim.
Olho para o escuro com uma dor no peito que dificulta a respiração.
Mas é difícil não pensar.
Desde o dia do Banquete Final do Vovô, no mês passado, alterno
entre querer que ele nunca tivesse me dado aquele papel e ficar feliz por
ele ter me dado. Porque pelo menos eu tenho palavras para descrever o
que se passa dentro de mim: o fim da luz que fulgura.
Se não pudesse dar um nome para isso, como eu saberia o que é?
Será que ao menos conseguiria sentir?
Pego o microcartão que o Funcionário me deu na área verde e vou até
o terminal, na ponta dos pés. Preciso ver o rosto de Xander. Preciso
garantir para mim mesma que está tudo em ordem.
Paro. Minha mãe está diante da tela do terminal, conversando com al-
guém. Quem entraria em contato com ela tão tarde, no meio da noite? Do
quarto da frente, onde está sentado no diva esperando minha mãe
terminar, meu pai me vê. Ele faz um gesto para que eu entre e sente ao
seu lado. Quando obedeço, ele olha o microcartão na minha mão, sorri e
brinca como faria qualquer pai.
— Ver Xander na escola não é o bastante? Quer dar mais uma olhada
nele antes de dormir?
Ele põe os braços à minha volta e me abraça.
— Eu entendo. Eu fazia a mesma coisa com a sua mãe. Era nos tempos
em que deixavam que a gente imprimisse imediatamente um retrato no
terminal, em vez de fazer esperar até o primeiro encontro.
— O que os seus pais pensaram da Mamãe, por ela vir dos Campos?
Meu pai faz uma pausa.
— Bom, os dois ficaram um pouco preocupados, para falar a verdade.
Nunca imaginaram que meu Par poderia ser alguém que não vivesse em
uma Cidade. Mas não demorou para decidirem que estavam satisfeitos. —
Ele fica com um sorriso no rosto, aquele sorriso que sempre aparece
quando ele fala sobre se apaixonar. — Só foi preciso aquele primeiro
encontro para que eles mudassem de idéia. Você precisava ter visto a sua
mãe naquele tempo.
— Por que vocês se encontraram na Cidade, em vez de ir até os
Campos? — pergunto. Geralmente, o primeiro encontro costuma
acontecer perto da casa da garota. Há sempre um Funcionário do
Departamento de Pares por perto, para garantir que tudo ocorra sem
tropeços.
— Ela insistiu em vir para cá, apesar de ser uma longa viagem de trem.
Ela queria ver a Cidade o mais rápido possível. Meus pais, o Funcionário e
eu fomos juntos para a estação encontrá-la.
Ele faz uma pausa e eu sei que está revendo o encontro na sua mente,
imaginando minha mãe saltando daquele trem aéreo.
— E aí? — Eu sei que pareço impaciente, mas preciso lembrá-lo de
que ele não voltou ao passado. Está aqui no presente e eu preciso saber
tudo o que posso sobre o Par que me criou.
— Quando ela saltou do trem, sua avó me disse: "Ela ainda tem o sol
no rosto dela." — Meu pai faz uma pausa e sorri. — Ela tinha mesmo.
Nunca vi alguém que parecesse tão quente e cheia de vida. Meus pais
nunca voltaram a manifestar qualquer preocupação. Acho que nos
apaixonamos por ela naquele dia.
Nenhum de nós repara que minha mãe está parada na entrada, até
ela pigarrear.
— E eu por todos vocês. — Ela parece um pouco triste e me pergunto
se está pensando no Vovô, na Vovó ou nos dois. Ela e meu pai são agora as
duas últimas pessoas a ainda lembrar daquele dia, a não ser talvez pelo
Funcionário que supervisionou o encontro.
— Quem te procurou tão tarde no terminal? — pergunto.
— E do trabalho — diz minha mãe. Com aparência cansada, ela senta
ao lado do Papai e pousa a cabeça no seu ombro, enquanto ele a
abraça.Vou ter que viajar amanhã.
— Por quê?
Minha mãe boceja, os olhos azuis se arregalam. O rosto ainda é
iluminado pelo sol, por causa do seu trabalho ao ar livre. Parece um pouco
mais velha do que o normal e pela primeira vez reparo em fios grisalhos
misturados a seu espesso cabelo louro, algumas sombras na luz do sol.
— Está tarde, Cássia. Você devia estar dormindo. Eu devia estar
dormindo. Vou contar tudo para você e para o Bram de manhã.
Não protesto. Seguro o microcartão na mão e digo.
— Tudo bem. — Antes que eu volte para o meu quarto, minha mãe se
abaixa para me dar um beijo de boa noite.
De volta ao quarto, escuto mais uma vez sons através das paredes.
Alguma coisa no fato de a minha mãe precisar viajar de repente me
alarma. Por que agora? Para onde ela vai? Quanto tempo vai ficar fora?
Ela raramente viaja a trabalho.
— E aí? — diz meu pai, no outro cômodo. Ele está tentando manter a
voz baixa. — Está tudo bem? Não me lembro de já termos recebido outra
chamada tão tarde assim.
— Não sei. Alguma coisa parece estar acontecendo, mas eu não sei o
que é. Estão reunindo alguns de nós, dos Arboretos, para dar uma olhada
em uma safra no Arboreto da Província Grandia. — A voz tem aquele jeito
cantado que ela assume quando fica muito tarde e está cansada. Lembro
dele das noites em que ela me contava as histórias sobre as flores e me
sinto reconfortada. Se ela não acha que algo está errado, então tudo deve
estar bem. Minha mãe é uma das pessoas mais inteligentes que conheço.
— Quanto tempo você vai passar lá? — meu pai pergunta.
— No máximo uma semana. Você acha que Cássia e Bram vão ficar
bem? É uma viagem bastante longa.
— Eles vão entender. — Há uma pausa. — Cássia ainda parece pertur-
bada. Por causa da amostra.
― Eu sei. Fico preocupada com isso. — Minha mãe suspira, um som
suave que consegue atravessar a parede de alguma forma. — Foi um erro
honesto. Espero que ela perceba isso logo.
Erro? Não foi um erro, penso. E então percebo: Ela não sabe. Ele não
contou para ela. Meu pai está escondendo um segredo da minha mãe.
E tenho um pensamento terrível.
Então eles não são um Par tão perfeito assim, afinal de contas. No
momento em que tenho o pensamento, tento desconsiderá-lo. Se o Par
deles não é perfeito, quais são as chances de que o meu seja?
Na manhã seguinte, outra tempestade derruba as folhas dos bordos e
a chuva despenca sobre as rosas novas. Estou tomando o café da manhã,
aveia dè novo, fumegante no prato de alumínio, quando escuto o anúncio
no terminal: Cássia Reyes, sua atividade de lazer, trilha, foi cancelada hoje
por causa das condições climáticas. Por favor, apresente-se na Segunda
Escola para substituí-la por horas adicionais de estudos.
Nada de trilha. Ou seja, nada de Ky.
A caminhada até o trem aéreo é quente e úmida. A chuva aumenta a
quantidade de água no ar, aprisionando a umidade. Meu cabelo cor de
cobre começa a se embaraçar e enrolar, como às vezes acontece nesse
tempo. Olho para o céu, mas só vejo a massa de nuvens, que não se abre
em lugar nenhum.
Não há mais ninguém no meu trem aéreo, nem Em, nem Xander, nem
Ky. Provavelmente pegaram outros trens ou estão ainda se aprontando,
mas tenho a sensação de que eu perdi alguma coisa, alguma coisa está
faltando. Alguém está faltando.
Talvez seja eu.
Na escola, subo as escadas para a biblioteca de pesquisa, onde há
vários terminais. Quero descobrir sobre Dylan Thomas e Alfred Lord
Tennyson, e se eles têm poemas que façam parte da seleção. Não acho
que tenham, mas quero ter certeza.
Meus dedos pairam sobre a tela do terminal e eu hesito. A forma mais
rápida de descobrir seria digitando seus nomes, mas aí haveria um registro
de que alguém procurou por eles e a busca poderia chegar até mim. E
mais seguro examinar a lista de poetas no banco de dados dos Cem
Poemas. Se olhar poeta por poeta, vai parecer mais um trabalho escolar e
menos uma busca por alguma coisa específica.
Leva muito tempo para se examinar cada nome, mas finalmente
chego à letra T. Acho um poema de Tennyson e quero lê-lo, mas não há
tempo. Não há nenhum Thomas. Há um Thoreau. Um poema dele, A Lua,
foi salvo. Me pergunto se ele escreveu alguma outra coisa. Se escreveu,
agora está perdido.
Por que o Vovô me deu aqueles poemas? Ele queria que eu achasse
algum significado neles? Não queria que eu entrasse docemente? O que
isso quer dizer, afinal de contas? Será que eu deveria combater as
autoridades? Seria a mesma coisa que perguntar se ele queria que eu
cometesse suicídio. Porque seria isso. Eu não chegaria a morrer, mas se
tentasse infringir as regras, tirariam de mim tudo o que eu valorizo. Um
Par. Uma família minha. Uma boa vocação. Eu não teria nada. Não acho
que o Vovô quisesse isso para mim.
Não consigo entender. Pensei sobre isso sem parar, virei as palavras
de cabeça para baixo na mente. Queria poder vê-las no papel de novo e
achar a resposta da charada. Por algum motivo, acho que tudo seria
diferente se eu as pudesse ver fora de mim, não só na minha mente.
Mas eu percebi uma coisa. Mesmo tendo feito a coisa certa —
queimado as palavras e tentado esquecê-las — não funciona. Aquelas
palavras não me deixam.
Fico aliviada no minuto em que vejo Em sentada no refeitório. Ela
praticamente brilha e quando me vê, ergue o braço para acenar. O
Banquete foi bem, ao que parece. Ela não entrou em pânico. Ela conseguiu
chegar até o fim. Não está morta.
Tento me desvencilhar rápido da fila e sento no lugar ao lado dela.
— Então — pergunto, como se já não soubesse a resposta. — Como
foi o Banquete? — A luz dela ilumina todos no local. Todos sorriem na
nossa mesa.
— Foi perfeito.
— Então não é o Lon? — digo, fazendo uma piadinha boba. Lon teve o
Par dele anunciado alguns meses atrás.
Em ri.
— Não. O nome dele é Dalen. É da Província Acadia. — Acadia é uma
das províncias mais arborizadas a leste, a quilômetros de distância das
nossas colinas e vales aqui em Oria. Há pedras em Acadia, e mar. Coisas
que não temos muito por aqui.
— E... — me inclino para frente assim como o resto dos nossos amigos
reunidos na mesa, todos ansiosos pelos detalhes a respeito do garoto com
quem Em vai casar.
— Quando ele se levantou, eu pensei: "Não pode ser para mim." Ele é
alto e sorriu direto para mim, da tela. Não parecia nem um pouquinho
nervoso.
— E era bonito?
— Claro. — Em sorri. — E também não pareceu ficar muito desapon-
tado comigo, ainda bem.
— Como ele poderia ficar desapontado? — Hoje, Em reluz tão intensa-
mente nas suas roupas comuns marrom sem graça, que imagino que devia
ser impossível tirar os olhos dela na noite passada, quando estava usando
o vestido amarelo. — Então ele é bonito. Mas como ele é? — Fico
constrangida em ouvir um toque de inveja na minha voz em alto e bom
tom. Ninguém se juntou à minha volta para descobrir como Xander era.
Não havia mistério, porque todos já sabiam. Em é bondosa o bastante
para ignorar isso. — Para falar a verdade, ele lembra o Xander um
pouquinho... — começa a falar, mas logo para.
Sigo seu olhar até o lugar onde Xander está, a alguns metros de nós,
segurando as embalagens de alumínio numa bandeja, com aparência
abatida. Será que ele ouviu a inveja na minha voz quando Em descreveu o
Par dela?
O que está errado comigo?
Tento disfarçar.
— Nós estávamos falando sobre o Par da Em. Ele se parece com você.
Xander se recupera rapidamente.
— Então ele é inacreditavelmente bonito.
Ele se senta do meu lado, mas não olha para mim. Estou constrangida.
Com toda certeza, ele me ouviu.
— Claro — ri Em. — Não sei por que fiquei tão preocupada! — Ela
cora um pouco, provavelmente se lembrando da noite na sala de música, e
olha para Xander. — Tudo deu certo. Do jeito que você disse.
— Eu queria que ainda deixassem a gente imprimir uma foto na
mesma hora — digo. — Queria ver como ele é.
Em descreve seu Par e nos conta fatos sobre Dalen que descobriu no
microcartão, mas estou distraída demais para ouvi-la. Fico preocupada em
ter ferido Xander e quero que ele me olhe ou segure minha mão, mas ele
não faz nada disso.
Em segura meu braço na saída do refeitório.
— Muito obrigada por ter me emprestado o compacto. Acho que ter
alguma coisa para segurar ajudou, sabe?
Faço um sinal positivo com a cabeça.
— Ky te devolveu hoje de manhã, não foi?
— Não. — Meu coração pula. Cadê meu compacto? Por que Em não
está com ele?
— Ele não devolveu? — o rosto de Em empalidece.
— Não — digo. — Por que estaria com ele?
— A gente se encontrou no trem aéreo, depois do Banquete do Par.
Ele estava voltando tarde do trabalho. Eu queria que você recebesse o
compacto de volta o mais rápido possível. — Em respira fundo. — Eu sabia
que você ia ver O Ky durante a trilha, antes de me encontrar aqui, e eu não
podia deixar direto na sua casa porque estava preocupada em não me
atrasar para o toque de recolher.
— A trilha foi cancelada hoje cedo por causa do tempo.
— Foi? — A trilha é a única atividade de lazer de verão que não pode
ser realizada de forma alguma em tempo ruim. Até natação pode ser
praticada numa piscina interna. Em parece doente. — Eu devia ter
pensado nisso. Mas por que ele não achou algum jeito de te devolver? Ele
sabia como era importante. Eu fiz questão de dizer.
Boa pergunta. Mas não quero estragar o grande momento de Em. Não
quero que se preocupe.
— Tenho certeza que ele entregou para Aida, para que ela desse para
minha mãe ou meu pai — digo, tentando parecer tranqüila. — Ou vai me
entregar amanhã na trilha.
— Não se preocupe — diz Xander, agora olhando diretamente para
mim. Suas palavras cruzam a pequena fenda que anda surgindo entre nós.
— Ky é de confiança.
CAPÍTULO 15
QUANDO CAMINHO PARA O PONTO DO TREM AÉREO NA MANHÃ
seguinte, as coisas parecem mais nítidas, menos pesadas. O frescor da
noite teve sucesso naquilo em que a chuva de ontem havia fracassado: o
ar está leve. Novo. O sol que surge timidamente em meio às últimas
nuvens encoraja os pássaros a cantar, e eles cantam. Me encoraja a deixar
que a luz penetre em mim, e eu deixo. Quem não se enfureceria com a
morte de algo tão belo? Não sou a única que se sente assim. Na trilha, Ky me encontra na
frente do grupo, justo quando o Oficial começa a falar. Ky aperta o
compacto na minha mão. Sinto o toque dos seus dedos e acho que ele os
deixa ali um tiquinho a mais do que o necessário. Ponho o compacto no
bolso.
Por que aqui?. Me pergunto, ainda sentindo o formigamento. Por que
não me entregar lá em casa?
Estou feliz por ter emprestado o compacto para Em, mas também
estou feliz por tê-lo recuperado. É o único elo que tenho com meus avós e
juro nunca mais deixar que se afaste das minhas mãos.
Acho que talvez Ky vá esperar por mim antes de entrar no bosque,
mas não é o que ele faz. Quando o Oficial apita, Ky sai sem olhar para trás
e, subitamente, meu novo sentimento de ânimo se dissolve um pouco.
Você recuperou o seu compacto, lembro a mim mesma. Uma coisa voltou.
Ky desaparece completamente nas árvores à frente.
Uma coisa se perdeu.
Três minutos depois, sozinha no mato, percebo que Ky não me
devolveu o meu compacto. É outra coisa — dá para perceber no
momento em que o retiro do bolso para ver se está tudo bem. O objeto é
semelhante: dourado, um estojo que você pode abrir e fechar, mas com
toda certeza não é o meu artefato.
Há letras — N, L, S, O — e uma flecha no interior. Gira e gira e fica
apontando para mim.
Não achava que Aberrações tivessem acesso a artefatos, mas Ky
obviamente tem. Será que ele me deu aquilo de propósito?
Acidentalmente? Devo tentar devolver ou esperar até que ele me diga
alguma coisa?
Tem segredos demais nessas matas, é o que concluo. Me pego
sorrindo, mais uma vez reluzente, pronta para o sol.
— Senhor? Senhor? O Lon caiu. A gente acha que ele se machucou.
O Oficial fala um palavrão entre dentes e olha para mim e para Ky, os
únicos que chegaram ao alto da colina além deste garoto.
— Vocês dois fiquem aqui e registrem quem chega e a que horas, ok?
O Oficial me entrega o terminal portátil e antes que eu possa dizer
qualquer coisa, desaparece na floresta com o garoto.
Penso em dizer a Ky que precisamos trocar de artefatos, mas algo me
impede de pronunciar as palavras. Por alguma razão, quero ficar com a
misteriosa flecha giratória no estojo dourado. Só por um ou dois dias.
— O que você está fazendo? — é o que eu pergunto a ele. Sua mão se
move, fazendo formas, curvas e linhas na grama que parecem familiares.
Os olhos azuis brilham para mim.
— Estou escrevendo.
Claro. E por isso que as marcas parecem familiares. Ele está
escrevendo na antiga, sinuosa forma de escrita, como as letras no meu
compacto. Já vi amostras disso antes, mas não sei como fazer. Ninguém
sabe. Tudo o que nós sabemos fazer é digitar. Poderíamos tentar imitar as
figuras, mas como? Não temos nenhuma das antigas ferramentas.
Mas, ao observar Ky, eu percebo que é possível fazer as suas próprias
ferramentas.
— Como você aprendeu a fazer isso? — Não ouso me sentar ao lado
dele. Alguém pode sair das árvores a qualquer momento e precisar que eu
registre seus dados no terminal de mão. Fico o mais próximo que me
permito. Ele faz uma careta e percebo que estou bem no meio das suas
palavras. Dou um passo para trás.
Ky sorri, mas não responde. Continua a escrever.
Esta é a diferença entre nós. Eu vivo para classificar. Ele sabe criar.
Pode escrever palavras sempre que quiser. Pode rabiscá-las na grama,
escrevê-las na areia, gravá-las numa árvore.
— Ninguém sabe que eu sei fazer isso — diz Ky. — Agora tenho um
segredo seu e você tem um meu.
— Só um? — digo, pensando na flecha que gira dentro do estojo
dourado. Ky volta a sorrir.
Um pouco da chuva da noite passada ficou detida nas pétalas pesadas
das flores selvagens daqui. Afundo o dedo na água e tento escrever na
superfície lisa de uma das folhas largas. Parece difícil, desajeitado. Minhas
mãos estão acostumadas a bater em uma tela e não a fazer movimentos
controlados, sinuosos e amplos. Não seguro um pincel há anos, desde os
tempos da Primeira Escola. Como a água é clara, não consigo ver as letras,
mas sei que não estão na forma correta.
Ky afunda o dedo em outra gota e escreve um reluzente C em uma
folha. Faz a curva uniformemente, com graça.
— Você vai me ensinar? — pergunto.
— Eu não devia fazer isso.
— Não devíamos estar fazendo nada disso — lembro a ele. Sons vêm
do mato e do emaranhado de árvores abaixo de nós. Alguém está
chegando. Sinto a ânsia de fazer com que ele prometa me ensinar antes
que alguém chegue aqui e este momento desapareça.
— Não devíamos conhecer poemas, escrever ou... — interrompo
minhas palavras. Pergunto de novo: — Você vai me ensinar?
Ky não responde.
Já não estamos mais sozinhos.
Várias pessoas chegaram ao topo e pelos gemidos que ouço através
da floresta, o Oficial e o grupo de Lon não estão muito longe. Preciso
colocar esses nomes no terminal, por isso me afasto de Ky. Volto a olhar
para onde ele está, sentado, de braços cruzados, contemplando as colinas.
Lon, no fim das contas, vai sobreviver. Assim que o Oficial dá cabo do
melodrama que envolve o ferimento, descobre que tudo que Lon tem é
uma torção no tornozelo. Ainda assim, o Oficial nos recomenda ir devagar
no caminho de volta até o pé da colina.
Quero descer com Ky, mas ele se mantém próximo do Oficial e o ajuda
a descer a montanha com Lon. Me pergunto por que o Oficial se deu ao
trabalho de levar Lon até o topo, até que escuto ele resmungando alguma
coisa para Ky sobre "cumprir a cota, para que não venham me pegar".
Aquilo me surpreende, embora eu saiba que os Oficiais também prestam
satisfação a outras pessoas.
Caminho com uma garota chamada Livy que está ficando cada vez me-
lhor na trilha à medida que os dias passam, e que parece entusiasmada
com tudo. Ela fala e fala e eu imagino a mão de Ky desenhando aquela
curva arrebatadora do C para escrever meu nome, e meu coração bate
mais rápido.
Nos atrasamos na volta. Preciso me apressar pra pegar o trem para o
Bairro e Ky precisa se apressar para pegar o que vai levá-lo para Cidade,
para o trabalho. Já desisti de falar com ele de novo hoje, quando sinto
alguém esbarrar em mim. Ao mesmo tempo ouço uma palavra tão suave e
tão baixa que chego a me perguntar se ele disse aquilo lá na colina e o
vento acabou de trazê-la para mim, aqui embaixo.
A palavra é sim.
CAPÍTULO 16
ESTOU FICANDO BOA NOS CS. QUANDO CHEGO PARA A TRILHA,
praticamente dou uma carreira até o alto da colina. Depois de passar pelo
Oficial, me apresso em ocupar o lugar ao lado de Ky. Antes que ele possa
me dizer qualquer coisa, pego um graveto e desenho um C bem ali, na
lama, ao lado dele.
— O que vem depois? — pergunto e ele ri um pouco.
—Você sabe, você não precisa de mim. Você podia até aprender
sozinha — diz ele. — Podia olhar as letras no seu escrevinhador ou no seu
leitor.
— Não são a mesma coisa — digo. — Elas não se juntam como as
suas. Já vi seu tipo de escrita antes, mas não sei como se chama.
— Cursiva — diz ele, suavemente. — É mais difícil de ler, mas é linda.
E uma das antigas formas de escrever.
— É o que eu quero aprender. — Não quero copiar as letras maciças e
achatadas que usamos hoje em dia. Gosto das curvas e dos movimentos
daquelas que Ky sabe fazer.
Ky dá uma olhada no Oficial que encara as árvores ferozmente, como
se desafiasse alguém a cair e a se machucar hoje. Não temos muito tempo
antes de os outros chegarem.
— O que vem depois? — pergunto novamente.
— A — diz Ky, me mostrando como fazer um pequeno a envolvido por
uma pequena volta no começo e no fim, para se juntar ao que vem antes e
depois. — Porque é a próxima letra do seu nome. — Ele estica o braço e
segura o graveto por cima da minha mão.
Para cima, em volta, para baixo.
A mão delicada que me guia segura na minha nos traços de descida e
solta um pouco na subida. Mordo o lábio, concentrada. Ou talvez seja
porque eu não ouso respirar até que o a esteja pronto, o que acontece
rápido demais. A letra parece perfeita. Solto o ar, um tanto trêmula.
Quero olhar para ele, mas em vez disso, baixo os olhos para ver nossas
mãos, uma bem do lado da outra.
Nesta luz, a dele não parece tão avermelhada. Parecem bronzeadas,
fortes. Decididas.
Livy desponta na clareira. Ela nunca foi a terceira a chegar e está
quase fora de si com a empolgação. Enquanto tagarela com o Funcionário,
eu e Ky nos levantamos e, casualmente, pisoteamos o que escrevemos até
que desapareça.
— Por que é que eu estou aprendendo a escrever primeiro as letras
do meu nome?
— Porque mesmo que você só aprenda a escrever isso, você já vai ter
alguma coisa — diz ele, abaixando a cabeça para me olhar, se certificando
de que eu o esteja entendendo e que saiba o que ele vai perguntar. —
Você prefere aprender outra coisa?
Faço que sim com a cabeça, e seus olhos brilham com a compreensão.
— As palavras daquele papel — ele sussurra, com o olhar voltado para
Livy e o Funcionário.
— Sim.
— Você ainda se lembra delas?
Faço mais uma vez um sim com a cabeça.
— Me conta um pouquinho todos os dias — diz ele — e eu vou
lembrar delas para você. Então vão ser duas pessoas a saberem.
Embora o tempo seja curto antes de Livy, o Oficial ou outra pessoa
virem na nossa direção, eu paro por um momento. Se disser aquelas
palavras para Ky, entro em terreno mais perigoso do que antes. Vou pôr
Ky em perigo. E vou precisar confiar nele.
Será que eu posso fazer isso? Contemplo a vista do alto da colina. O
céu não tem uma resposta para mim. A cúpula da Prefeitura, a distância,
certamente não tem. Lembro de ter pensado nos anjos das histórias no
caminho do meu Banquete do Par. Não estou vendo anjo nenhum e eles
não voam com suas asas macias como algodão para sussurrar nada no
meu ouvido. Posso confiar nesse menino que escreve na terra?
Algum lugar dentro de mim — será o meu coração? Ou talvez minha
alma, a parte mítica dos seres humanos que era cuidada pelos anjos? —
me diz que posso.
Me aproximo de Ky. Não nos olhamos. Olhamos para a frente, para
ter certeza de que ninguém vai suspeitar de nada, se nos virem. No
momento em que sussurro as palavras para ele, meu coração está tão
cheio que está quase a ponto de explodir porque eu as estou
pronunciando, dizendo-as em voz alta para outra pessoa.
— Não entre docemente naquela boa noite. Revolte-se, revolte-se
contra o apagar da luz.
Ky fecha os olhos.
Quando volta a abri-los, põe na minha mão algo áspero e parecido
com papel.
— Olha isso para praticar — diz Ky. — Destrua quando tiver acabado.
Mal posso esperar pelo fim do dia de Segunda Escola e classificação,
para que possa olhar o que Ky me entregou. Espero até estar em casa, na
cozinha, jantando sozinha, porque trabalhei até tarde esta noite. Escuto
meu pai e Bram jogando um jogo no terminal, no hall, e me sinto
suficientemente segura para pôr a mão no bolso e tirar o presente de Ky.
Um guardanapo. Minha primeira reação é de decepção. O que é isso?
E um guardanapo normal, do tipo que nós recebemos nos refeitórios da
Segunda Escola ou do Arboreto ou de qualquer outro lugar. Marrom e
grosso. Manchado e usado. Meu impulso é de incinerá-lo imediatamente.
Mas.
Quando eu o abro, há palavras lá dentro. Palavras deslumbrantes.
Palavras em letra cursiva. Eram lindas lá no alto da colina verdejante, com
o som do vento a bater nas árvores, e são lindas aqui, na cozinha cinza e
azul, com o rumor do incinerador ao fundo. Palavras escuras, enroscadas,
sinuosas, se curvam pelo papel pardo. Onde a umidade as tocou, estão
ligeiramente manchadas.
E não são só palavras. Ele também desenhou coisas. A superfície está
coberta de linhas e significado. Não é um desenho, nem um poema, nem
uma letra de canção, embora minha mente classificadora perceba que o
padrão é o mesmo de todas essas coisas. Mas não consigo classificar
aquilo. Não é nada que eu tenha visto antes.
Percebo que nem sei o que se usaria para fazer marcas desse tipo. As
palavras que eu pratico são todas escritas no ar, ou tracejadas na terra.
Havia ferramentas para a escrita no passado, mas eu não sei como eram.
Mesmo nossos pincéis, na escola, ficavam presos a telas, nossos desenhos
apagados quase imediatamente depois de terminá-los. De alguma forma,
Ky deve saber de um segredo mais antigo que o Vovô, a mãe dele, ou as
pessoas que vieram antes. Como fazer. Como criar.
Duas vidas, escreveu.
Duas vidas, sussurro para mim. As palavras se caíam e pairam no
ambiente, baixo demais para que o terminal as escute em meio aos outros
sons da casa.
Quase baixo demais para que eu as escute quando meu coração bate
tão rápido. Mais rápido do que jamais bateu no mato ou no rastreador.
Eu devia ir para o meu quarto, para a relativa privacidade daquele
lugarzinho com a minha cama, a minha janela. O armário onde as roupas
comuns estão penduradas, morto e silencioso. Mas não consigo parar de
olhar. E difícil para mim, a princípio, entender o que o desenho quer dizer,
mas finalmente percebo que é ele. Ky. Desenhado duas vezes, uma em
cada lado da dobra do guardanapo. A linha do queixo me faz identificá-lo,
a forma dos olhos, a magreza e a força de seu corpo. Os espaços vazios. As
mãos e o nada que elas seguram, apesar de estarem viradas para cima em
ambos os desenhos.
E aí que acaba a semelhança entre os desenhos. Na primeira imagem,
ele olha alguma coisa no céu, parece mais jovem, o rosto é aberto. A figura
ali parece acreditar que as mãos ainda vão se encher. Na segunda, está
mais velho, o rosto mais estreito e olha para o chão.
Embaixo, ele escreveu: Qual das duas é a verdadeira, eu não pergunto
e eles não me dizem.
Duas vidas. Acho que entendo o que ele quer dizer — a vida que ele
levava antes de vir para cá e a vida que passou a levar depois. Mas o que
ele quis dizer com aquele verso de música ou de poesia, aquele pedido no
final?
— Cássia? — meu pai me chama da entrada, logo atrás de mim.
Ponho o guardanapo no alumínio do jantar e levo tudo para o incinerador
e a lixeira de reciclagem.
— Sim?
Mesmo se ele vir, é um guardanapo, digo a mim mesma, olhando para
o quadrado pardo na bandeja. Nós os incineramos depois de todas as
refeições e é até mesmo o tipo correto de papel, não é como aquele que o
Vovô me deu. O tubo de incineração não vai registrar a diferença. Ky está
cuidando da sua segurança. Ergo os olhos para o meu pai.
— Tem uma mensagem para você, no terminal — diz meu pai. Ele não
olha o que eu tenho comigo. Se concentra no meu rosto, para ver o que
estou pensando. Talvez esteja aí o verdadeiro perigo. Sorrio e tento
parecer despreocupada.
— E da Em? — jogo as peças de alumínio compartimento de
reciclagem abaixo. Sobrou só o guardanapo.
— Não — diz meu pai. — Um Funcionário do Departamento de Pares.
— Ah. — Nesse momento, enfio o guardanapo no tubo de
incineração. — Já vou — digo para o meu pai. Sinto um mínimo de calor
do fogo lá embaixo, no que a história de Ky se queima e eu me pergunto
se um dia terei força para guardar alguma coisa. Os poemas do Vovô. A
história de Ky. Ou se vou sempre ser aquela que destrói.
Ky te disse para destruir, digo a mim mesma. O homem que escreveu o
poema se foi, mas Ky, não. Precisamos que continue assim. Mantê-lo em
segurança.
Sigo meu pai até o hall. Bram me olha com raiva ao sair, porque a
mensagem interrompeu o jogo. Esperando ocultar meu nervosismo, dou-
lhe um esbarrão brincalhão enquanto caminho para o terminal.
O Funcionário na tela não é ninguém que eu já tenha visto antes. É um
homem de aparência animada, robusta, nada parecido com os tipos
cerebrais e ascéticos que imagino que fiquem sentados diante das telas de
dados do Departamento de Pares.
— Olá, Cássia — diz ele. A gola do uniforme branco parece apertar o
pescoço e ele tem rugas de riso sob os olhos.
— Olá. — Quero olhar para baixo e ver se minhas mãos ficaram
manchadas com os desenhos e as palavras, mas mantenho os olhos no
Funcionário.
— Já se passou um mês desde que foi designado o seu Par.
— Sim, senhor.
— Outros Pares estão combinando a primeira comunicação via
terminal. Passei o dia organizando isto para os seus colegas.
Naturalmente, seria bastante ridículo que você e Xander mantivessem
uma comunicação formal via terminal. — O Funcionário ri, animado. —
Não acha?
— Concordo, senhor.
— Os outros Funcionários do Comitê de Pares e eu decidimos que faz
mais sentido, em vez disso, permitir que os dois saiam juntos.
Naturalmente, sob a supervisão de um Funcionário, como acontece com
as comunicações dos outros Pares.
— Naturalmente. — Com o canto do olho, vejo meu pai na porta do
quarto dele, me observando. Cuidando de mim. Estou feliz por ele estar
aqui. Apesar de a idéia de passar um tempo com Xander não ser nada
nova e nem assustadora, a idéia de ter um Funcionário participando do
encontro parece um pouco estranha.
Espero que não seja a Funcionária da área verde — penso
subitamente.
— Excelente. Você vai comer fora de casa amanhã à noite. Xander e o
Funcionário destacado para o seu processo de designação do Par vão
pegá-la na hora habitual da sua refeição.
— Vou estar pronta.
O Funcionário desliga e o terminal solta um bipe, indicando que há ou-
tra chamada em espera.
— Estamos populares esta noite — digo para o meu pai, feliz por não
termos que falar sobre a minha saída com Xander. Meu pai já parece
esperançoso e se apressa para ficar ao meu lado. E minha mãe.
— Cássia, posso falar com seu pai sozinho por uns minutos? — ela me
pergunta depois de nos cumprimentarmos. — Não tenho muito tempo
para conversar esta noite. Tem coisas que eu preciso dizer para ele. — Ela
parece cansada e ainda está usando o uniforme e a insígnia do trabalho.
— Claro — digo.
Há uma batida na porta e vou atender. É Xander.
— Ainda temos alguns minutos antes do toque de recolher — diz ele.
— Você quer conversar comigo nos degraus?
— Claro. — Fecho a porta atrás de mim e saio. A luz da varanda brilha
forte sobre nós e estamos visíveis para o mundo, ou pelo menos para o
mundo do Bairro Mapletree, enquanto nos sentamos nos degraus de
concreto, lado a lado. E bom estar com Xander, de uma forma diferente de
como é bom estar com Ky.
Ainda assim. Estar com Ky, estar com Xander — as duas coisas se
parecem com estar sob a luz. Diferentes tipos de luz, mas nenhuma das
duas é sombria.
— Parece que nós dois vamos sair amanhã à noite — diz Xander.
— Nós três — digo, e quando ele parece confuso, eu prossigo. — Não
esquece do Funcionário.
Xander grunhe.
— Claro. Como fui me esquecer?
— Eu queria que nós pudéssemos sair sozinhos.
— Eu também. — Não dizemos nada por um momento. O vento varre
nossa rua, agitando as folhas dos bordos. Na luz noturna, as folhas
parecem prateadas. As cores sumiram, engolidas momentaneamente pela
noite. Lembro da noite em que estive com o Vovô e pensei na mesma
coisa. Penso na antiga doença do daltonismo, eliminada há várias
gerações, e de como o mundo deveria ser para aquelas pessoas.
— Você às vezes sonha de olhos abertos? — Xander me pergunta.
— O tempo todo.
— Você sonhava com o seu Par? Antes do Banquete, eu quero dizer.
— Às vezes — digo. Paro de olhar a brincadeira do vento nas folhas do
bordo e olho para Xander. Eu devia ter olhado para Xander antes de ter
respondido. E tarde demais. Posso ver nos seus olhos que minha resposta
não era o que ele esperava, que ao dizer aquilo eu fechei uma porta em
vez de abri-la. Talvez Xander sonhasse comigo e queria saber se eu
sonhava com ele. Talvez tenha momentos de insegurança, como eu, e
precisa que eu diga que me sinto segura com o fato de sermos um Par.
Esse é o problema de sermos um Par incomum. Nos conhecemos bem
demais. Sentimos as incertezas no nosso toque, as vemos no olhar um do
outro. Não precisamos superá-las sozinhos, a quilômetros de distância um
do outro, como acontece com outros Pares. Eles não se vêem diariamente.
Nós nos vemos.
E, apesar disso, nós somos um Par e uma profunda compreensão
existe entre nós, mesmo em meio a um mal-entendido. Xander pega a
minha mão e prendo meus dedos nos dele. Isso é conhecido. E bom.
Quando penso em sentar na entrada da casa noutras noites desta vida que
nos foi dada, é algo que posso imaginar com facilidade e felicidade.
Quero que Xander me beije de novo. E tarde da noite e há até o
perfume de rosas novas no ar, do jeito que aconteceu no nosso primeiro
beijo. Quero que ele me beije de novo para que eu saiba que o que sinto
por ele é real, se é mais ou menos real do que a mão de Ky esbarrando na
minha no alto da pequena colina.
Rua abaixo, o último trem da Cidade para na estação com um suspiro.
Momentos depois, vemos as figuras dos trabalhadores que chegam tarde,
apressados pelas calçadas para estarem em casa na hora do toque de
recolher.
Xander se levanta.
— Preciso voltar. Vejo você na escola, amanhã.
— Até amanhã — digo. Ele aperta minha mão e se junta aos outros na
calçada, a caminho de casa. Não entro. Vejo as figuras e aceno para
alguns. Eu sei por quem estou esperando. No momento em que já
achaque não vou vê-lo, Ky para diante da minha casa. Praticamente antes
de ele parar, desço os degraus para falar com ele.
— Eu andava querendo fazer isso há alguns dias — diz Ky. A princípio,
acho que ele vai segurar minha mão e meu coração para, então vejo que
está segurando alguma coisa. Um dos envelopes de papel pardo que as
pessoas que trabalham em escritórios às vezes usam. Ele deve ter pego
com o pai dele. Percebo imediatamente que o compacto talvez esteja lá
dentro, por isso estico o braço para pegar o envelope. Nossas mãos não se
tocam e me pego desejando que tivessem se tocado.
O que há de errado comigo?
— Eu estou com o seu... — Paro, porque não sei qual é o nome para o
estojo que contém a agulha giratória.
— Eu sei — Ky sorri para mim. A lua, que paira baixa e pesada no céu,
perto do horizonte, é uma fatia amarela, como o melão que comemos na
Festa de Outono. A luz da lua ilumina o rosto de Ky um pouquinho, mas o
sorriso ainda ilumina mais.
— Está lá dentro — faço um gesto na direção dos degraus e da
varanda iluminada. — Se você quiser, posso entrar correndo e pegar.
— Está tudo bem — diz Ky. — Isso pode esperar. Você pode me
devolver depois. — A voz é baixa, quase tímida. — Eu quero que você
tenha a chance de dar uma olhada.
Pergunto-me qual é a cor dos olhos dele neste momento. Eles
refletem o negro da noite ou a luz da lua? Me aproximo para tentar ver,
mas quando o faço, o sino que indica que está quase na hora do toque de
recolher soa pela rua e nós dois pulamos. — Vejo você amanhã — diz Ky
ao ir embora.
— Até lá.
Tenho mais cinco minutos antes de precisar estar dentro de casa, por
isso fico do lado de fora e não me mexo. Acompanho-o no seu caminho
pela rua e depois olho para a lua no céu e fecho os olhos. Na minha
cabeça, vejo as palavras que li mais cedo:
Duas vidas.
Desde o dia do erro com meu Par, não sei mais qual é minha
verdadeira vida. Mesmo com as palavras de garantia da Funcionária
naquele dia, na área verde, sei que uma parte de mim não está em paz. E
como se eu tivesse visto pela primeira vez que a vida poderia tomar
diferentes trilhas, assumir diferentes direções.
De volta para dentro da casa, tiro meu compacto do envelope e pego
o artefato de Ky do seu esconderijo, no fundo do bolso, em um dos meus
conjuntos extras de roupas comuns. Quando os coloco lado a lado, é fácil
dizer a diferença entre os dois círculos dourados. A superfície do artefato
de Ky é simples, arranhada. O compacto brilha mais e é gravado com letras
que chamam minha atenção.
Por um capricho, pego meu artefato, giro a base e olho lá dentro. Sei
que Ky me viu lendo poemas na floresta. Será que ele também viu como
eu abria o compacto?
E se Ky deixou um recado para mim?
Nada.
Guardo o compacto na prateleira.
Decido guardar o envelope, pôr o artefato de Ky lá dentro antes de
devolvê-lo ao bolso das minhas roupas, por segurança. Mas antes, abro o
estojo e vejo a agulha giratória. Ela para em um momento, mas eu ainda
giro, me perguntando que direção seguir.
CAPÍTULO 17
A SUBIDA É QUASE FÁCIL DEMAIS.
Afasto os galhos do caminho, pulo sobre as pedras e me embrenho
nos arbustos. Meus pés abriram uma trilha nesta colina, e eu sei por onde
ir e como chegar. Queria um desafio maior, alguma coisa mais difícil de
escalar. Queria a Colina, com suas árvores caídas e o mato fechado. Neste
momento, penso eu, se me puserem na Colina, eu poderia correr até o
topo. E quando chegasse lá em cima, haveria uma nova vista e talvez, se
ele viesse comigo e ficássemos lá juntos, eu descobriria mais ainda sobre
Ky.
Mal posso esperar para vê-lo e perguntar sobre a história dele. Será
que vai ter mais para mim?
Saio das árvores e sorrio para o Oficial.
— Hoje teve concorrência pelo seu lugar — diz ele, ao registrar meu
tempo de subida no terminal de mão.
O que ele quer dizer? Me viro e vejo Ky. Uma garota está sentada ao
lado dele, os cabelos dourados caindo pelas costas. Livy.
Ky ri de alguma coisa que ela diz. Não faz qualquer movimento,
nenhum gesto para indicar que deseje que eu me sente perto dele. Nem
sequer me olha. Livy assumiu meu posto. Dou um passo para frente para
recuperá-lo.
Livy segura um graveto para Ky. Ele nem hesita. Ele o segura bem
acima da sua mão e vejo que ele a ajuda a fazer movimentos sinuosos na
terra.
Ele está ensinando ela a escrever?
Meu passo à frente se transforma em muitos passos para trás, quando
me viro e me afasto de tudo. Do brilho do sol no cabelo dela, das mãos
que quase se tocam, escrevendo letras na terra, dos olhos de Ky que se
desviam dos meus, do lugar ao sol com vento e palavras sussurradas que
deveriam ser minhas.
Como posso falar com Ky quando ela está sentada bem ali? Como
posso aprender a escrever? Como posso conseguir mais de suas palavras?
A resposta é simples: não posso.
De volta ao pé da colina, o Oficial faz um pronunciamento.
— Amanha vai ser diferente — ele nos conta. — Fiquem no ponto do
trem aéreo no Arboreto ao chegarem, e esperem por mim para que eu
possa levar vocês para um lugar novo. Acabamos com esta colina.
— Finalmente — diz Ky, atrás de mim, em voz tão baixa que só eu
escuto. — Estava começando a me sentir como Sísifo.
Não sei quem é Sísifo. Quero me virar e perguntar, mas não me mexo.
Ele ensinou Livy a escrever. Será que também está contando a história
dele para ela? Será que eu me enganei em achar que era especial para
ele? Talvez muitas garotas saibam da história de Ky e tenham caído no
truque de escrever-lhes os nomes.
Enquanto penso tais coisas, já percebo que estão erradas, mas não
consigo tirar da cabeça a visão da mão dele guiando a dela.
O Oficial apita para nos dispersar. Caminho, ligeiramente afastada do
resto. Só dei alguns passos quando escuto Ky atrás de mim.
— Você quer me dizer alguma coisa? — ele pergunta suavemente. Sei
o que quer saber. Ele quer ouvir mais do poema. Sacudo a cabeça e me
viro. Ele não tinha palavras para mim. Por que eu deveria dar as minhas
para ele?
Queria que minha mãe não estivesse fora. A época da viagem é
estranha — o verão é a estação mais movimentada no Arboreto, com
tantas plantas para cuidar — e também sinto a falta dela por motivos
egoístas. Como devo me aprontar, sem ela, para minha primeira saída
oficial com Xander?
Visto roupas comuns limpas, desejando ainda ter o vestido verde. Se
tivesse, eu o usaria de novo para lembrar a Xander e a mim de como tudo
era há menos de um mês.
Quando saio no hall, meu pai e meu irmão me esperam.
— Você está linda — diz meu pai.
— Você está direitinha — diz Bram.
— Obrigada — digo, revirando os olhos. Bram diz isso toda vez que eu
saio. Até na noite do Banquete do Par foi assim. Mas gosto de pensar que
ali foi mais sincero.
— Sua mãe vai tentar ligar mais tarde. Quer saber tudo sobre a noite
— diz Papai.
— Espero que ela consiga. — A idéia de conversar com minha mãe é
reconfortante.
A campainha do jantar soa na cozinha.
— Hora de comer — diz meu pai, pondo um braço a minha volta. —
Você quer que a gente espere aqui com você ou que suma de vista?
Bram já está quase na cozinha. Sorrio para meu pai.
— Você devia comer com Bram. Eu vou ficar bem. Meu pai me dá um
beijo no rosto.
— Vou voltar assim que a campainha tocar. — Ele também está meio
preocupado com o Funcionário. Imagino meu pai aparecendo na porta e
dizendo educadamente: "Sinto muito, senhor. Cássia não vai poder sair
esta noite." Imagino-o sorrindo para Xander, para que Xander saiba que
ele não é o motivo das preocupações do meu pai. E então visualizo meu
pai fechando a porta com delicadeza, mas com firmeza, e me mantendo
em segurança, dentro de casa. Dentro dessas paredes que me mantiveram
segura por tanto tempo.
Mas essa casa não é mais segura, lembro a mim mesma. Essa casa é
onde eu vi o rosto de Ky pela primeira vez, no microcartão. Onde
revistaram meu pai.
Existe um lugar seguro em alguma parte deste Bairro? Na Cidade,
nesta Província, neste mundo?
Resisto à vontade de repetir as palavras da história de Ky para mim,
enquanto espero. Ele já está demais na minha cabeça e não quero que nos
acompanhe esta noite.
A campainha toca. Xander. E o Funcionário.
Não acho que esteja pronta para isto e não sei o motivo. Ou sei, mas
não posso examiná-lo atentamente no momento, ou sei que tudo vai
mudar. Tudo. Do outro lado da porta, Xander me espera. Percebo que isto
simboliza o que está errado. Ninguém tem permissão para entrar e
quando é hora de deixar que entrem, não sabemos como.
Respiro fundo e abro a porta.
— Para onde vamos? — pergunto no trem aéreo. Nós três nos
sentamos lado a lado — eu, Xander e o Funcionário de ar entediado, que é
jovem e veste o uniforme mais bem passado que já vi na vida. O
Funcionário responde.
— Suas refeições foram enviadas para um refeitório particular. Vamos
jantar lá e depois vou acompanhar os dois até suas casas. — Ele raramente
nos olha nos olhos, preferindo olhar para um ponto atrás de nós, nas
janelas. Não sei se pretende nos deixar à vontade ou nos constranger. Por
ora, segunda opção.
Um refeitório particular? Olho para Xander. Ele ergue as sobrancelhas
e pronuncia "Para quê?" e faz um gesto para o Funcionário. Tento não rir.
Xander tem razão. Por que se dar ao trabalho de comer em refeitório
particular se esta saída é tudo menos particular?
Começo a sentir pena de todos os Pares recém-formados que
precisam ter as primeiras conversas acompanhadas por Funcionários, nos
terminais. Pelo menos Xander e eu já tivemos milhares de conversas
antes.
A sala de jantar é em um pequeno prédio a uma parada de distância,
um lugar onde Solteiros às vezes vão, onde nossos pais podem fazer
refeições à noite de vez em quando, se sentem vontade de sair.
— Parece ótimo — digo, numa tentativa desajeitada de puxar
conversa, quando nos aproximamos do salão. Uma pequena área verde
cerca o prédio, um caixote de tijolos vermelhos. Nessa área, reparo na
presença de um canteiro cheio das rosas novas, onipresentes, e também
uma espécie etérea de flor selvagem.
E então tenho uma lembrança tão específica e nítida, que é difícil crer
que eu não tenha pensado naquilo até aquele momento. Lembro de uma
noite quando eu era bem mais jovem e meus pais voltavam de uma saída
noturna. Vovô tinha vindo ficar com a gente e ouvi meus pais conversando
com ele antes do meu pai ir para o quarto do Bram e minha mãe vir para o
meu. Uma flor amarela e rosa caiu do cabelo dela quando se abaixou para
ajeitar minhas cobertas. Ela a colocou rapidamente atrás da orelha e fora
de vista, e eu estava sonolenta demais para perguntar como ela havia
encontrado a flor. Na época, aquilo me confundiu enquanto eu pegava no
sono: Como ela havia arranjado a flor, quando era proibido colhê-las?
Esqueci a resposta no sonho e nunca fiz a pergunta ao acordar.
Agora sei a resposta. Meu pai às vezes dribla as regras pelas pessoas
que ele ama. Pela minha mãe. Pelo Vovô. Meu pai é um pouco como
Xander, na noite em que driblou as regras para ajudar Em.
Xander pega meu braço, me trazendo de volta ao presente. Quando
ele faz isso, não consigo me conter; olho para o Funcionário. Ele não diz
nada.
O interior do salão de refeições parece mais bonito do que um
refeitório comum.
— Veja só — diz Xander. Luzes piscam no meio de cada mesa para
simular um velho sistema romântico de iluminação, velas.
As pessoas nos olham, quando passamos pelas mesas. Somos
nitidamente os freqüentadores mais jovens. A maioria tem a idade dos
nossos pais ou são jovens casais muitos anos mais velhos do que nós,
casais que acabaram de fazer o Contrato. Vejo algumas pessoas que
provavelmente são Solteiros em encontros recreativos, mas não são
muitos. Os Bairros desta área são primordialmente familiares, cheios de
pais, casais que fizeram o Contrato e jovens com menos de 21 anos.
Xander repara nos olhares e retribui, o braço ainda preso ao meu.
Baixinho, ele sussurra:
— Pelo menos, todo mundo na escola já se encheu de nós sermos um
Par, a essa altura. Detesto os olhares.
— Eu também.
Felizmente, o Funcionário não fica olhando para a gente. Ele nos
conduz por entre as mesas e encontra uma que está marcada com nossos
nomes, quase no fundo. O garçom chega com a comida quase no
momento em que nos sentamos.
A simulação de velas tremula na mesa redonda de metal diante de
mim. Não há toalha de mesa e a comida é regulada — vamos comer a
mesma coisa que comeríamos em casa. É por isso que é necessário fazer
reservas, para que a equipe de nutrição possa levar a refeição ao lugar
certo. E claro, jantar aqui não se compara de forma alguma ao Banquete
do Par, na Prefeitura Municipal, mas é o segundo lugar mais bonito onde
já comi na vida.
— A comida está boa e quente — diz Xander, enquanto o vapor
escapa do recipiente de alumínio. Ele retira a tampa e olha dentro. — Olha
a minha porção. Querem que eu ganhe corpo, e por isso me dão cada vez
mais.
Olho para a porção de Xander, de espaguete com molho. É mesmo
enorme.
— Você vai conseguir comer tudo isso?
— Tá brincando? Claro que sim — Xander parece ofendido.
Tiro a tampa e olho minha porção. Comparada à de Xander, parece
minúscula. Talvez eu esteja imaginando coisas, mas minhas porções
parecem estar diminuindo ultimamente. Não sei bem o motivo. As trilhas
e as corridas no rastreador me mantêm em forma. Eu deveria até estar
recebendo mais comida, e não menos.
Deve ser minha imaginação.
O Funcionário, parecendo menos interessado ainda do que antes, tira
o macarrão do recipiente com um garfo e olha em volta do salão, para os
outros freqüentadores. A comida é exatamente igual à nossa. Acho que
não são verdadeiros os mitos que correm sobre os Funcionários de certos
departamentos terem acesso a uma comida melhor do que a dos outros.
Ao menos, não quando comem em público.
— Como vão as trilhas? — Xander me pergunta, pondo uma garfada
de macarrão na boca.
— Eu gosto — respondo honestamente. A não ser hoje.
— Mais ainda do que de nadar? — Xander me provoca. — Não que
você gostasse muito disso, suponho. Sentada ali na beirada.
— Eu nadava — respondo, também provocando. — Às vezes. De qual-
quer maneira, gosto mais do que de ficar na piscina.
— Não é possível — diz Xander. — Nadar é a melhor coisa. Ouvi que
tudo o que você andou fazendo foi subir o mesmo morrinho várias vezes.
— Tudo o que você faz, quando nada, é ficar dando voltas na mesma
piscininha.
— E diferente. A água está sempre se mexendo. Nunca é a mesma.
O comentário de Xander me faz lembrar aquilo que Ky disse na sala de
música, sobre as canções.
— Pode ser. Mas a colina também está sempre em movimento. O
vento mexe nas coisas, as plantas crescem, se modificam também... —
Fico em silêncio. Nosso Funcionário de roupa bem passada inclina a
cabeça, ouvindo o papo. É por isso que ele está aqui, não é?
Mexo na comida e o movimento me faz pensar em escrever com Ky.
Um fio de macarrão está curvado como um C. Para. Preciso parar de
pensar em Ky.
Uma parte da comida se recusa teimosamente a se enrolar no garfo.
Giro--o de um lado para a outro e finalmente desisto e enfio uma porção
do macarrão na boca, com as pontas para fora. Preciso sugá-las para
dentro.
Constrangedor. Por alguma razão, meus olhos se enchem de lágrimas.
Baixo o garfo e Xander estica o braço para endireitá-lo. Quando faz isso,
olha direto nos meus olhos e eu consigo ver a pergunta que está ali como
se a fizesse em voz alta: O que está errado?
Sacudo a cabeça ligeiramente e sorrio para ele. Nada.
Olho para o nosso Funcionário. Está momentaneamente distraído, ou-
vindo algo em seu fone de ouvido. Naturalmente. Ele ainda está a serviço.
— Xander, por que você não... sabe?... não me beijou na outra noite?
— pergunto subitamente, pois o Funcionário não está ouvindo agora.
Deveria estar constrangida, mas não estou. Quero saber.
— Tinha gente demais olhando — Xander parece surpreso. — Eu sei
que os Funcionários não se importam, porque nós somos um Par, mas
você sabe. — Ele inclina a cabeça ligeiramente na direção do Funcionário
ao nosso lado. — Não é a mesma coisa quando estamos sendo vigiados.
— Como você sabia?
— Você não reparou em todos os Funcionários que andam pela nossa
rua ultimamente?
— Vigiando a minha casa? Xander ergue as sobrancelhas.
— Por que estariam vigiando a sua casa?
Porque eu leio coisas que não deveria e aprendo coisas que não
querem que eu saiba e talvez esteja me apaixonando por outra pessoa. O
que eu digo é:
— Meu pai... — não completo a frase. Xander cora.
— Claro. Eu devia ter imaginado... Não é isso, pelo menos acho que
não é. Esses são Funcionários de nível básico, policiais. Andam
patrulhando bem mais ultimamente e não só no nosso Bairro. Em todos os
Bairros.
Nossa rua estava cheia de Funcionários naquela noite e eu nem sabia.
Ky devia saber. Talvez fosse por isso que ele não subiu nos degraus da
varanda. Talvez seja por isso que ele nunca me toca. Tem medo de ser
pego.
Ou talvez seja mais simples que isso. Talvez ele nunca queira me
tocar. Talvez eu seja só uma amiga para Ky. Uma amiga que quer conhecer
a história dele, nada mais.
E a princípio, eu era isso mesmo. Queria saber mais sobre o garoto
que mora entre nós, mas que nunca realmente fala. Saber mais sobre o
que aconteceu antes. Queria saber mais sobre o engano relativo ao meu
Par. Mas agora sinto que descobrir mais sobre ele é uma forma de
descobrir mais sobre mim. Não esperava amar suas palavras. Não
esperava me encontrar nelas.
Será que se apaixonar pela história de uma pessoa é a mesma coisa
que se apaixonar pela própria pessoa?
CAPÍTULO 18
OUTRO CARRO AÉREO ESTÁ PARADO NA NOSSA RUA, DESTA VEZ
diante da casa de Em.
— O que está havendo? — pergunto a Xander, cujos olhos ficam
arregalados de medo. O Funcionário nos olha com interesse, mas sem
surpresa. Resisto à vontade de agarrar com força a camisa dele e amassá-
la com as mãos. Fico me segurando para não rosnar: "Por que você fica
observando a gente? O que você sabe?"
A porta para a casa de Em se abre e três Funcionários saem. Nosso
Funcionário se vira para nós e diz, quase bruscamente:
— Espero que os dois tenham tido uma noite agradável. Vou fazer um
relatório para o Comitê de Pares amanhã cedo.
— Obrigada — digo automaticamente no que ele se volta para o
ponto do trem aéreo, embora não saiba por quê. Não me sinto grata.
Os Funcionários na casa de Em caminham pelo quintal e vão para a
casa vizinha. Seguram um recipiente, algo oficial da Sociedade, e não estão
sorridentes. Na verdade, se eu fosse tentar descrever como está a cara
deles, diria que parecem tristes. Não gosto disso.
— Será que a gente devia ver se a Em está bem? — pergunto, e
quando digo isso, ela abre a porta da frente e olha para fora. Ela nos vê e
corre pelo quintal para nos encontrar.
— Cássia, é culpa minha. E culpa minha! — a voz de Em está trêmula,
e lágrimas marcam seu rosto.
— O que é culpa sua, Em? O que houve? — Olho para a casa ao lado
para ter certeza de que os Funcionários não estão nos vigiando, mas eles
já entraram. Os vizinhos de Em abriram a porta antes que os Funcionários
precisassem bater, como se já estivessem esperando.
— O que está acontecendo? — a voz de Xander soa áspera e eu olho
sutilmente para ele, tentando dizer que tenha paciência.
O rosto de Em fica ainda mais pálido e ela segura o meu braço. A voz é
um fiapo.
— Os Funcionários estão coletando todos os artefatos.
— O quê?
Os lábios de Em tremem.
— Disseram que eu fui vista com um artefato no Banquete do Par e
vieram pegar ele. Eu disse que não era meu, que tinha pegado emprestado
com você e devolvido. — Ela engole em seco e eu lembro da noite do
comprimido verde. Ponho o braço em volta dela e olho para Xander. Em
continua a falar, a voz vacilante. — Eu não devia ter dito para eles. Mas
fiquei tão assustada! Agora vão tirar de você. Estão indo de casa em casa.
De casa em casa. Logo vão estar na minha. Quero reconfortar Em, mas
preciso tentar salvar meu artefato, por mais fútil que seja este esforço.
Preciso ir para casa. Dou um abraço em Em.
— Em, não é culpa sua. Mesmo se você não tivesse contado, eles
sabiam que eu tinha um artefato. Está registrado e eu levei ao Banquete.
Então me lembro de uma coisa e o medo toma conta de mim. O
artefato de Ky. Ainda está escondido no meu armário. Os Funcionários
talvez saibam do meu artefato, mas não sabem sobre o de Ky. Isso poderia
causar encrenca para nós dois.
Como é que eu posso escondê-lo?
— Preciso ir para casa — digo, desta vez em voz alta. Afasto o braço
dos ombros de Em e me viro na direção da minha casa. Quanto tempo eu
tenho antes de os Funcionários chegarem lá? Cinco minutos? Dez?
Em começa a chorar com mais intensidade, mas eu não tenho tempo
para voltar a confortá-la. Caminho o mais rápido que posso sem chamar
atenção. Alguns passos depois, Xander está ao meu lado, de braços dados,
como se tivéssemos tido um passeio normal e estivéssemos voltando para
casa.
— Cássia — diz ele. Não me viro na direção dele. Não consigo parar de
pensar em tudo o que pode se perder dentro de poucos instantes. Ky já é
uma Aberração. Se ficarem sabendo que ele tem um artefato, será que
corre o risco de se tornar uma Anomalia?
Eu podia protegê-lo. Podia dizer que é meu e que o achei quando
caminhávamos pelo mato. Será que acreditariam em mim?
— Cássia — Xander diz de novo. — Eu posso esconder para você. Diz
que perdeu. Inventa uma história convincente.
— Não posso deixar você fazer isso por mim.
— Pode sim. Vou te esperar lá fora, enquanto você pega o compacto.
É pequeno o bastante para caber na sua mão, não é? — Faço que sim. —
Quando você sair, aja como se estivesse louca por mim, como se
detestasse se despedir. Joga os braços em volta de mim. Joga dentro da
minha camisa. Eu cuido de tudo depois.
Eu nunca tinha visto aquele lado de Xander antes, penso, mas
imediatamente me dou conta de que já tinha visto, sim. Quando joga, ele
é assim. Tranqüilo, calmo, cheio de estratégia e ousadia. E nos jogos, pelo
menos, os riscos sempre valem à pena.
— Xander, isso náo é um jogo.
— Eu sei. — Seu rosto parece sombrio. — Vou tomar cuidado.
— Tem certeza? — Eu náo devia deixar ele fazer isso. É covardia
considerar essa possibilidade. Mas ainda assim: ele pode levar o compacto
pra mim. Ele o salvaria pra mim. Ele se arriscaria por mim.
— Tenho.
Assim que fecho a porta da frente, corro pelo corredor até o meu
quarto o mais rápido que posso. Ninguém da família me vê, e fico grata
por isso. Com as máos trêmulas, abro a porta do armário e empurro os
cabides até encontrar o jogo de roupas comuns onde escondi o artefato
de Ky num bolso. Abro o envelope de papel pardo e o inclino para que a
agulha no estojo escorregue para fora. Enfio o envelope no bolso. Tiro o
compacto da prateleira e olho os dois itens nas minhas mãos.
Dourados e belos. Contra minha consciência, me sinto tentada a dar
meu compacto a Xander, em vez de entregar a agulha giratória de Ky, mas
ponho o compacto na cama e seguro o artefato de Ky na mão. Salvar o
compacto seria um ato de egoísmo. Salvaria só uma coisa. Mas salvar o
artefato de Ky nos poupa de questionamentos e impede que ele se torne
uma Anomalia. E como posso deixar que levem o último pedaço da sua
antiga vida?
E também é mais seguro para Xander. Eles não sabem que o artefato
de Ky existe. Possivelmente, não vão sentir falta. Meu compacto vai ser
computado e tomado, como se espera, de forma que náo vão procurá-lo
nem imaginar se eu o teria entregue a alguém.
Volto correndo pelo corredor e abro a porta da frente.
— Xander, espera! — eu o chamo, tentando manter a leveza na voz.
— Você não vai me dar um beijo de boa-noite?
Xander se vira, o rosto franco e natural. Não creio que outra pessoa
possa perceber o brilho de astúcia no seu olhar, mas eu o conheço muito
bem.
Salto os degraus e ele me abre os braços. Nos abraçamos, as máos
dele na minha cintura e meus braços no pescoço dele. Coloco a mão sob a
gola das suas roupas comuns e abro os dedos. O artefato escorrega pelas
costas, e a palma da minha mão sente a sua pele morna. Olhamos um para
o outro bem nos olhos por um momento, depois eu me aproximo da sua
orelha.
— Não abre — sussurro para Xander. — Não guarda na sua casa.
Enterra ou então esconde em algum lugar. Não é o que você tá pensando.
Xander assente.
— Obrigada — digo e então o beijo nos lábios e me entrego àquele
beijo. Apesar de saber que estou me apaixonando por Ky, é impossível não
amar Xander por tudo o que ele é e por tudo o que ele faz.
— Cássia! — Bram grita dos degraus da entrada.
Bram. Ele também vai perder alguma coisa hoje. Penso no relógio do
Vovô e a raiva cresce dentro de mim. Eles precisam mesmo levar tudo?
Xander se afasta de mim. Precisa se apressar em esconder o artefato
antes que cheguem à sua casa.
— Tchau — diz ele, com um sorriso.
— Tchau — respondo.
— Cássia! — Bram volta a me chamar, com medo na voz. Olho para a
rua, mas não vejo Funcionários. Ainda devem estar em alguma casa entre
a minha e a de Em.
— Oi, Bram — digo, tentando parecer casual. E melhor para nós se ele
não suspeitar do que Xander e eu fizemos. — Cadê...
— Estão recolhendo os artefatos — diz Bram, com a voz trêmula. —
Chamaram o Papai para ajudar na coleta.
Claro. Eu devia ter imaginado. Precisam de alguém como ele para
ajudar a determinar se os artefatos são verdadeiros ou falsos. Outro medo
me abala. Seria ele o encarregado de recolher os nossos artefatos? Será
que ele fingiu que o meu estava perdido? Será que ele mentiria por Bram
e por mim? Quantos erros estúpidos ele está disposto a cometer por quem
ele ama?
— Ah, não! — digo, tentando agir como se tudo fosse novidade para
mim. Com sorte, Bram não vai descobrir que Em me falou disso antes.
— Ele levou os nossos com ele?
— Não — diz Bram. — Eles não deixam ninguém recolher da própria
família.
— Ele sabia que isso ia acontecer?
— Não. Quando a chamada no terminal acabou, ele tava chocado.
Mas precisou se apresentar na mesma hora. Disse para eu obedecer aos
Funcionários e não me preocupar.
Quero pôr meu braço em volta de Bram e reconfortá-lo, porque ele
vai perder uma coisa, uma coisa importante. É o que eu faço. Abraço meu
irmão e, pela primeira vez em anos, ele me segura com força, do jeito que
fazia quando era um menininho, e eu, a irmã mais velha que ele admirava
mais do que qualquer outra pessoa no mundo. Queria poder ter salvo seu
relógio, mas era da cor errada, prateado e não dourado. E os Funcionários
sabem sobre ele. Não havia nada que eu pudesse fazer, digo a mim
mesma, tentando acreditar.
Ficamos abraçados por alguns segundos e aí me afasto e olho nos
olhos de Bram.
— Vai pegar — digo a ele. — Olha para a ele pelos últimos minutos,
que é para você se lembrar. Lembra.
Bram agora já não finge esconder as lágrimas nos olhos.
— Bram — digo, e volto a abraçá-lo. — Bram. Alguma coisa ruim podia
acontecer com o relógio mesmo sem isso. Você podia perder, quebrar...
Mas desse jeito, você pode dar uma última olhada nele. Enquanto você
lembrar, não vai estar perdido.
— Não posso tentar esconder? — pergunta Bram. Ele pisca e uma
lágrima escapa. Ele a afasta com raiva. — Você me ajuda?
— Não, Bram — digo delicadamente. — Gostaria que a gente pudesse
fazer isso, mas é perigoso demais. — Há um limite para os riscos que
corro. Não vou arriscar Bram.
Quando os Funcionários chegam à nossa casa e vão até a porta,
encontram Bram e eu sentados no diva, lado a lado. Bram segura prata. Eu
seguro ouro. Nós dois erguemos o olhar. Mas então o olhar de Bram volta
para superfície de prata polida nas suas mãos, e eu olho para dourada, nas
minhas.
Meu rosto me contempla, distorcido pela curva da superfície do
compacto, do jeito que aconteceu no Banquete do Par. Na ocasião, eu me
perguntava: Eu estou bonita?
Agora a pergunta que faço é: Eu pareço forte7.
No que olho para os meus próprios olhos e para a posição do queixo,
me parece que a resposta é sim.
Um Funcionário baixo, que está ficando careca, fala primeiro:
— O Governo decidiu que os artefatos promovem a desigualdade
entre membros da Sociedade — diz ele. — Solicitamos que todos
entreguem seus artefatos para serem catalogados e exibidos no Museu de
cada Cidade.
— Nossos registros indicam que existem dois artefatos legais nesta
residência — acrescenta um Funcionário alto. Ele enfatizou a palavra legal
ou é minha imaginação? — Um relógio de prata e um compacto de ouro.
Não digo nada, e Bram também não.
— São esses os artefatos? — pergunta o Funcionário calvo, olhando
para as coisas que nós seguramos. Ele parece cansado. Deve ser um
trabalho horrível. Imagino meu pai tirando artefatos das pessoas — gente
velha como o Vovô, crianças como Bram — e me sinto doente. Faço que
sim com a cabeça.
— Vocês querem levar agora?
— Podem ficar com eles por mais alguns minutos. Nos pediram para
fazer uma rápida busca na casa.
Bram e eu nos sentamos em silêncio enquanto revistam a casa. Não
demora muito.
— Nada de valioso aqui — um deles diz para o outro, em voz baixa, no
corredor.
Meu coração está em chamas e tenho que fazer força para manter a
boca fechada, para não tentar queimar esses Funcionários com tal fogo. È
o que você pensa, digo a mim mesma. Você acha que não tem nada aqui
porque nós não tentamos resistir. Mas têm palavras nas nossas cabeças
que ninguém mais conhece. E o meu avô morreu nos próprios termos dele,
não nos seus. Nós temos coisas de valor, mas vocês nunca vão conseguir
encontrar porque nem sabem como procurar.
Voltam ao aposento e eu me levanto. Bram também se levanta. Os
Funcionários sacodem instrumentos de detecção à nossa volta para
garantirem que não escondemos nada nos corpos. Não encontram nada,
naturalmente.
A Funcionária avança e vejo uma marca pálida em volta do seu dedo,
onde devia haver um anel. Ela também perdeu algo hoje. Seguro o
compacto, pensando em como meu artefato viajou de uma época anterior
à Sociedade, de um parente a outro, até chegar a mim. E agora eu preciso
deixar que ele se vá.
A Funcionária pega meu compacto. Ela toma o relógio de Bram.
— Vocês podem vê-los no Museu. Sempre que quiserem.
— Não é a mesma coisa — diz ele e ergue os ombros. E nossa, eu vejo
o Vovô, vejo mesmo. Meu coração transborda com a idéia de que ele,
afinal de contas, não partiu por completo. — Você pode levar — diz Bram
—, mas ele sempre vai ser meu.
Bram vai para o quarto. O peso do seu passo e o jeito com que fecha a
porta me dizem que ele quer ficar sozinho.
Sinto vontade de dar um soco em alguma coisa, mas em vez disso,
enfio as mãos nos bolsos. Ali, acho o envelope de papel pardo: uma casca
amassada que já guardou algo valioso e belo. E só um envelope, não um
artefato. Nem foi registrado pelos instrumentos de detecção dos
Funcionários. Tiro-o do bolso e rasgo ao meio, furiosamente. Quero rasgá-
lo, picá-lo em mil pedaços. A linha irregular no envelope me agrada. Me
sinto bem em destruir, me apronto para fazer outra ferida. Procuro outro
lugar para rasgar.
Minha respiração fica presa na garganta quando vejo o que quase
arruinei.
Outra parte da história de Ky. Há outra coisa que os Funcionários não
viram.
Afogando, bebendo, dizem as palavras no alto, letras fortes e belas,
como ele é. Penso na mão dele escrevendo-as, a pele esbarrando no
guardanapo. Mordo o lábio e olho o desenho embaixo.
De novo dois Kys, o mais jovem e o de agora, os dois com as mãos
para cima. O fundo do primeiro desenho é uma paisagem árida, nua, a
silhueta das rochas se erguendo atrás de Ky. No segundo desenho, ele está
aqui no Bairro. Vejo um bordo por trás dele. A chuva cai nos dois
desenhos, mas no primeiro a boca está aberta, a cabeça inclinada para
trás, ele bebe do céu. No segundo, a cabeça está abaixada, os olhos em
pânico, a chuva grossa o envolve, caindo sobre ele como uma cachoeira.
Tem chuva demais aqui. Ele poderia se afogar. Quando chove, eu me
lembro são as palavras escritas no pé da página.
Tiro os olhos das palavras e olho pela janela onde o sol se põe,
flamejante, em um céu límpido. Não há vestígios de nuvens, mas prometo
a mim mesma que quando chover, também vou me lembrar. Deste papel,
destes desenhos e destas palavras. Deste pedaço dele.
CAPÍTULO 19
O TREM AÉREO QUE SEGUE PARA A CIDADE NA MANHÃ SEGUINTE
está quase silencioso. Ninguém quer falar sobre o que houve no Bairro na
noite passada. Aqueles que entregaram os artefatos estão calados pela
dor. Aqueles que nunca os tiveram estão em silêncio, em sinal de respeito.
Ou talvez por estarem satisfeitos, porque agora tudo ficou igual.
Antes de saltar no seu ponto para nadar, Xander se inclina, beija meu
rosto e diz baixinho.
— Sob as rosas novas em frente à casa do Ky.
Ele salta do trem aéreo e desaparece junto com outros alunos
enquanto eu sigo na direção do Arboreto. Perguntas enchem minha
cabeça. Como Xander escondeu o artefato no canteiro de flores dos
Markham sem ser visto? Ele sabe que pertence a Ky ou é uma coincidência
ele ter escolhido a casa dos Markham como esconderijo?
Ele sabe o que eu estou começando a sentir por Ky?
Seja lá o que for que Xander sabe ou supõe, uma coisa é certa: ele não
poderia ter escolhido um esconderijo melhor. Somos todos encarregados
de manter os nossos jardins bem cuidados e limpos. Se Ky cavar seu
próprio jardim, ninguém vai suspeitar de nada. Só preciso dizer a ele onde
deve procurar.
Como todo mundo, Ky olha pela janela enquanto seguimos rumo ao
Arboreto. Será que ele viu o beijo de Xander? Será que se importou? Ele
não olha nos meus olhos.
— Vamos fazer duplas para a próxima trilha — diz o Oficial assim que
chegamos ao pé da Colina. — Cada um recebeu como parceiro alguém
com a capacidade determinada pela análise dos dados que recolhi das
trilhas anteriores. Isto quer dizer que Ky está com Cássia. Livy está com
Tay...
O rosto de Livy mostra decepção e tento manter o meu sem
expressão. O Funcionário termina de ler a lista.
— Vocês têm um objetivo distinto na Colina. — diz ele. — Vocês não
vão subir até o alto. A Sociedade nos pediu para usar o tempo de
caminhada para sinalizar obstáculos na Colina. — Ele aponta alguns sacos
empilhados ao seu lado. Eles guardam faixas de pano vermelho. — Cada
dupla pega um saco. Amarrem os marcadores em ramos próximos de
árvores caídas, diante de moitas particularmente densas etc. Mais tarde
uma equipe de inspeção vai passar por aqui. Vão limpar o caminho e
pavimentar uma trilha na Colina.
Vão pavimentar a Colina. Pelo menos o Vovô não precisou ver isto.
— E se os panos acabarem? — choraminga Lon. — Não limpam a Co-
lina há anos. Vai ter obstáculos em toda parte! A gente podia bem marcar
todas as árvores do caminho.
— Se os panos acabarem, usem rochas para fazer marcadores — diz o
Oficial. Ele se vira para Ky. — Você sabe como fazer um marcador?
Há uma mínima hesitação antes que Ky responda.
— Sei.
— Mostre a eles.
Ky junta algumas pedras do chão à nossa volta e as amontoa, primeiro
as maiores, formando uma pequena pilha. As mãos são rápidas e seguras,
do jeito que são quando ele está me ensinando a escrever. A torre parece
precária, mas não cai.
— Estão vendo? É simples — diz o Oficial. — Vou apitar mais tarde e
isto quer dizer que vocês precisam começar a voltar. Vocês apitam se se
perderem. — Ele entrega a cada um de nós um apito de metal, tamanho
padrão. — Não deve ser difícil. Só precisam descer a montanha por onde
vieram.
Eu costumava achar graça do desprezo mal disfarçado que o Oficial
sente por nós. Hoje, eu o entendo. Sinto desprezo quando penso em como
subimos nossas pequenas colinas quando os Oficiais mandam. Em como
entregamos os nossos bens mais preciosos quando pedem. Em como
jamais, jamais, protestamos.
Mal saímos de perto dos outros quando Ky se vira para mim e eu me
viro para ele e, por um momento, acho que ele vai me tocar. Sinto, mais
do que vejo, sua mão se mover ligeiramente e depois voltar a se abaixar.
Sinto uma decepção mais profunda do que a que senti esta manhã,
quando abri o armário e não vi mais o compacto lá dentro.
— Você tá bem? — pergunta ele. — Na noite passada, quando revista-
ram todas as casas... eu só soube quando cheguei em casa.
— Estou bem.
— Meu artefato...
Isso é tudo com que ele se importa? Sussurro ferozmente:
— Está no canteiro de flores do seu jardim. Enterrado sob as rosas
novas. É só cavar e você vai ter de volta.
— Eu não me importo com o artefato — diz ele, e apesar de ainda não
me tocar, sinto o calor do fogo nos seus olhos. — Não consegui dormir a
noite inteira, achando que eu tinha te trazido problemas. Eu me importo
com você.
Aquelas palavras são silenciosas aqui sob as árvores, mas cantam alto
no meu coração, mais alto do que todas as Cem Canções desfiadas ao
mesmo tempo. E seus olhos têm olheiras por pensar em mim. Quero me
aproximar e tocar a pele sob os seus olhos, único lugar onde vi qualquer
fraqueza nele, fazê--lo se sentir melhor. E depois eu poderia passar os
dedos ali, no seu rosto, até os lábios, até o lugar onde o queixo se
encontra com o pescoço, onde o pescoço encontra com os ombros. Gosto
dos lugares onde uma parte se encontra com a outra, penso eu, olhos e
rosto, pulsos e mão. Um tanto chocada pelos meus próprios pensamentos,
dou um passo para trás.
— Como você...
— Alguém me ajudou.
— Xander — diz ele. Como ele sabe?
— Xander — admito.
Nenhum de nós fala por um momento. Me afasto, olhando para ele
inteiro. Depois ele se vira e começa a caminhar entre as árvores mais uma
vez. Avançamos lentamente. O mato cresce tão emaranhado que é mais
uma escalada do que uma trilha. Árvores que caíram e não foram retiradas
jazem como ossos gigantes no chão da floresta.
— Ontem... — começo. Preciso perguntar, por mais irrelevante que a
pergunta possa parecer agora. — Você estava ensinando Livy a escrever?
Ky para mais uma vez e me olha. Os olhos parecem quase verdes sob
a cobertura das árvores.
— Claro que não — diz ele. — Ela queria saber o que nós estávamos
fazendo. Ela nos viu escrevendo. Não fomos suficientemente cuidadosos.
Sinto-me estúpida e aliviada.
— Ah.
— Eu disse a ela que eu estava mostrando como desenhar árvores.
Ele pega um ramo do meu lado e começa a mexê-lo, fazendo
movimentos que se parecem muito como folhas. Depois, baixa o ramo,
que assume o papel de tronco da árvore. Continuo a olhar suas mãos
depois que ele terminou, sem saber o que mais poderia fazer.
— Ninguém desenha depois de sair da Primeira Escola.
— Eu sei — diz ele. — Mas pelo menos não é expressamente proibido.
Procuro um trapo vermelho na sacola que carrego e o amarro junto a uma
árvore caída, perto de Ky. Mantenho os olhos baixos, olhando para os
meus dedos enquanto eles torcem o pano e fazem um nó.
— Sinto muito. Por ter agido como eu agi ontem. Quando me levanto,
Ky já saiu do lugar.
— Não sinta — diz Ky, afastando um emaranhado de trepadeiras de
um arbusto, para que nós possamos atravessar. Ele joga as plantas sobre
mim e eu as pego, surpresa. — E bom ver você com ciúmes, de vez em
quando. — Ele sorri, como o sol no bosque.
Tento não devolver o sorriso.
— Quem disse que eu estava com ciúmes?
— Ninguém — diz ele. — Eu percebi. Observo as pessoas há muito
tempo.
— Por que você me deixou ficar com ele, aliás? — pergunto. — O
estojo com a agulha. É lindo. Mas eu não sei bem...
— Ninguém sabe que eu tenho aquilo, além dos meus pais — diz ele.
— Quando a Em me deu o compacto para eu te devolver, reparei em
como eram parecidos. Queria que você visse.
Sua voz parece solitária, de repente, e posso quase ouvir outra frase,
uma que o instinto o impede de dizer: Queria que você me visse. Porque
não é isso o que está por trás de tudo, do estojo dourado com a agulha, os
pedacinhos de história aqui e ali? Ky quer que alguém o veja. quer ser
visto por mim.
Minhas mãos anseiam por procurá-lo. Mas não consigo trair Xander
desta forma depois de tudo o que ele fez. Depois de ter salvado nós dois
— Ky e eu — na noite passada.
Mas há uma coisa que posso continuar a dar para Ky, e que é só
minha, que não pertence a Xander. O poema.
Queria dizer só mais alguns versos para ele, mas assim que começo é
difícil me segurar e digo tudo. As palavras saem juntas. Algumas coisas são
criadas para ficarem juntas.
— As palavras não são tranqüilas — diz Ky.
— Eu sei.
— Então por que elas fazem eu me sentir calmo? — pergunta Ky,
espantado. — Não compreendo.
Em silêncio avançamos pelo mato, o poema pesado nas nossas
mentes. Finalmente, eu sei o que quero dizer.
— Acho que é porque quando nós ouvimos elas, sabemos que não
somos as únicas pessoas a se sentirem assim.
— Me fala de novo — pede Ky, suavemente. Ele prende a respiração,
a voz está rouca.
Pelo resto do tempo, até ouvirmos o apito do Oficial, subimos a Colina
repetindo o poema um para o outro, como uma canção. Uma canção que
só nós dois sabemos.
Antes de sairmos da floresta, Ky termina de me ensinar a escrever
meu nome na terra mole, sob uma das árvores caídas. Nos agachamos,
panos vermelhos na mão, agindo como se os estivéssemos amarrando,
caso alguém se aproxime e nos veja. Levo algum tempo para aprender o s,
mas gosto do seu jeito — como algo que resiste ao vento. A linha límpida e
o pingo do i são fáceis de aprender, e já sei como escrever o a.
Escrevo cada letra do meu nome e as junto, com a mão de Ky perto da
minha a me guiar. Não chegamos a nos tocar, mas sinto o calor da sua
mão, a extensão do seu corpo agachado atrás do meu enquanto escrevo.
Cássia.
— Meu nome — digo, me afastando para trás e olhando as letras.
Elas são vacilantes, menos seguras do que as que Ky escreve. Alguém
que passasse talvez não as percebesse sequer como letras. Mas eu sei o
que querem dizer.
— E agora?
— Agora — diz Ky —, vamos voltar ao início. Você conhece o a. Ama-
nhã, vamos fazer o b. Assim que você conhecer todas, vai poder escrever
os seus próprios poemas.
— Mas quem leria isso? — pergunto, rindo.
— Eu leria — diz ele. Me entrega outro guardanapo dobrado. Ali,
entre marcas engorduradas de dedos e restos de comida, há mais de Ky
para eu ver.
Ponho o guardanapo no bolso e penso em Ky escrevendo sua história
com as mãos vermelhas, queimadas pelo calor do seu trabalho. Penso nele
arriscando tudo cada vez que coloca um guardanapo no bolso. Em todos
esses anos, ele foi tão cuidadoso, mas agora está disposto a se arriscar.
Porque encontrou alguém que quer saber. Alguém para quem ele quer
contar.
— Obrigada — digo. — Por me ensinar a escrever.
— Obrigado a você — responde ele. Há luz nos seus olhos e fui eu que
a acendeu. — Por salvar meu artefato e pelo poema.
Há mais coisas a serem ditas, mas estamos aprendendo a falar. Saímos
juntos das árvores. Sem nos tocar. Por enquanto.
CAPÍTULO 20
CAMINHO DO PONTO DO TREM AÉREO PARA CASA COM EM, DEPOIS
da escola e da classificação. Assim que os outros que vieram conosco
seguem adiante ou ficam para trás, Em poe a mão no meu braço.
— Sinto muito — diz em voz baixa.
— Em, não se preocupa mais com isso. Eu não estou zangada. — Olho-
a nos olhos para que saiba que falo a verdade, mas seus olhos continuam
tristes. Tantas vezes na minha vida senti que olhar para Em era ver uma
variação de mim mesma, mas não me sinto mais assim. Coisas demais
mudaram recentemente. Mas Em ainda é minha melhor amiga. O
afastamento não altera o fato de que, por muito tempo, crescemos lado a
lado. Nossas raízes ficarão para sempre emaranhadas. Fico feliz por isso.
— Você não precisa ficar me pedindo desculpas — digo. — Estou feliz
por ter te emprestado. Pelo menos, nós duas pudemos aproveitar antes
que levassem ele embora.
— Eu ainda não entendi — diz Em, suavemente. — Eles têm muita
coisa para exibir no Museu. Não faz sentido.
Nunca ouvi nada tão próximo da insubordinação sair da boca de Em e
sorrio para ela. Talvez não estejamos ficando tão diferentes assim, afinal
de contas.
— O que é que a gente vai fazer hoje à noite? — pergunto, mudando
de assunto.
Em parece aliviada com a mudança.
— Falei com Xander hoje e ele quer ir para o centro de jogos. O que
você acha?
O que eu acho de verdade é que gostaria de voltar ao topo daquela
pequena colina. A idéia de estar no centro abafado e cheio de gente,
quando poderíamos estar conversando sob o céu límpido da noite, parece
um pouco demais para mim. Mas eu posso ir. Eu posso fazer tudo o que
for preciso fazer para manter as coisas dentro da normalidade. Tenho as
palavras de Ky para ler. E talvez, se tiver sorte, verei ele próprio mais
tarde. Espero que ele venha conosco. Em interrompe meus pensamentos
ao dizer:
— Olha, sua mãe está esperando por você.
Em tem razão. Minha mãe está sentada nos degraus da casa com o
rosto voltado para nós. Quando me vê olhando para ela, se levanta, acena
e começa a caminhar na nossa direção. Devolvo o aceno e Em e eu
aumentamos o ritmo um pouquinho.
— Ela voltou — digo em voz alta, e ao ouvir o tom de surpresa na
minha voz é que me dou conta de que parte de mim temia que ela fosse
ficar longe para sempre.
— Ela tinha viajado? — pergunta Em, e percebo que a ausência da
minha mãe é provavelmente uma daquelas coisas que nós não devemos
mencionar para quem não é da família. Não que os Funcionários tenham
dito isto explicitamente. E só o tipo de coisa que aprendemos a guardar
para nós mesmos.
— Voltou cedo do trabalho — esclareço. Nem chega a ser mentira. Em
se despede e entra em casa. Seu bordo não vai sobreviver, eu penso,
reparando que, mesmo no auge do verão, a árvore só deve ter umas
dez folhas verdes e cansadas. Olho para minha casa onde a árvore está
cheia, as flores são lindas e Mamãe vem falar comigo.
Isso me lembra de quando eu era pequena, na Primeira Escola, e as
horas de trabalho da minha mãe terminavam antes que eu voltasse para
casa. Ela e Bram às vezes caminhavam pela rua para encontrar o meu trem
no caminho. Nunca iam longe, porque Bram parava para olhar tudo o que
via.
— Esse tipo de atenção aos detalhes talvez seja um sinal de que ele
nasceu para ser um classificador — meu pai dizia, até que Bram cresceu
um pouco mais e ficou aparente que ele perdera a capacidade de prestar
atenção aos detalhes junto com os dentes de leite.
Quando alcanço minha mãe, ela me abraça bem ali na calçada.
— Ah, Cássia — diz ela. O rosto parece pálido e cansado. — Sinto mui-
to. Perdi sua primeira saída oficial com Xander.
— Você perdeu outra coisa também, na noite passada — digo, o rosto
apoiado no seu ombro. Ela é mais alta do que eu e não acredito que eu vá
crescer mais. Sou esguia e baixa, como a família do Papai. Como o Vovô.
Sinto na minha mãe os perfumes habituais de flores e de pano limpo e
respiro profundamente. Estou feliz por ela estar de volta.
— Eu sei. — Minha mãe nunca diz nada contra o governo. O mais de-
safiadora que já a vi foi quando os Funcionários revistaram o meu pai. Não
espero que ela resmungue e reclame da injustiça dos Funcionários levando
os artefatos, e ela não diz nada mesmo. Me ocorre que, se fizesse aquilo,
estaria resmungando e reclamando do seu próprio marido. Ele também é,
afinal de contas, um Funcionário.
Embora não tenha sido ele quem estendeu a mão e nos pediu para
entregar nossos bens queridos, ele fez isso com outras pessoas.
Quando meu pai voltou para casa na noite passada, ele deu um
abraço demorado em Bram e em mim e depois foi direto para o quarto,
sem dizer nada. Talvez porque não pudesse suportar a dor que encontrou
nos nossos rostos e se lembrar de que havia causado a mesma dor a
outras pessoas.
— Sinto muito, Cássia — diz minha mãe, enquanto caminhamos para
casa. — Eu sei o quanto aquele compacto significava para você.
— Fiquei com pena do Bram.
— Eu sei. Eu também.
Quando entramos pela porta da frente, ouço a campainha que
informa que nossa comida chegou. Mas quando entro na cozinha, só há
duas porções na área de entrega.
— E Papai e Bram?
— Papai pediu jantar mais cedo para que ele e Bram pudessem dar
uma caminhada antes das horas de recreação livre do Bram.
— Verdade? — pergunto. Não é comum se fazer esse tipo de
solicitação.
— Verdade. Seu pai achou que Bram precisava de alguma coisa
especial, depois de tudo o que aconteceu nos últimos tempos.
Estou feliz, principalmente por Bram, que os Funcionários de nutrição
tenham acatado o pedido do Papai.
— Por que você não foi com eles?
— Eu queria ver você. — Ela sorri para mim e olha a cozinha. — Não
comemos juntas há muito tempo. E, é claro, quero ouvir sobre a sua saída
com Xander.
Sentamos na mesa, uma em frente da outra, e reparo em como ela
parece cansada.
— Me conta da sua viagem — digo, antes que ela pergunte de novo
sobre a noite passada. — O que você viu?
— Não tenho muita certeza — diz ela em voz baixa, quase que para si
mesma. Então ela se endireita. — Fomos para outro Arboreto olhar
algumas safras. Depois disso, precisamos ir para os Campos. Tudo isso
levou algum tempo.
— Mas agora está tudo de volta ao normal, não é?
— Quase tudo. Preciso escrever um relatório formal e submeter aos
Funcionários encarregados do outro Arboreto.
— Sobre o que é o relatório?
— Desculpa, é informação confidencial — diz minha mãe, pesarosa.
Nós duas ficamos em silêncio, mas é um bom silêncio, um silêncio de
mãe e filha. Seus pensamentos estão distantes, talvez de volta ao
Arboreto. Talvez ela esteja escrevendo o relatório na sua cabeça. Não tem
problema. Relaxo e deixo meus pensamentos irem para onde querem, ou
melhor, na direção de Ky.
— Pensando em Xander? — diz minha mãe, dando um sorriso sabido.
— Sempre sonhei com seu pai.
Devolvo o sorriso. Não há motivo para eu contar que estou pensando
no garoto errado. Não, não no garoto errado. Ky talvez seja uma
Aberração, mas não há nada de errado nele. Nosso Governo e seus
sistemas de classificação e todos os seus sistemas é que estão errados.
Inclusive o Sistema de Pares.
Mas se o sistema é errado, falso e irreal, então como fica o amor entre
os meus pais? Se esse amor nasceu por causa da Sociedade, ainda pode
ser real, bom e correto? É a pergunta que não consigo tirar da cabeça.
Quero que a resposta seja sim. Que o amor deles seja verdadeiro. Quero
que tenha beleza e realidade, independente de qualquer coisa.
— É melhor eu me arrumar para ir para o centro de jogos — digo a
ela, que boceja. —Você devia dormir. A gente conversa mais amanhã.
— Bom, talvez eu vá descansar um pouco — diz ela. Nós duas nos
levantamos. Pego a embalagem de alumínio dela e a levo para o recipiente
de reciclagem e ela leva minha garrafa de água até o esterilizador.
— Vem se despedir antes de sair, tá bem?
— Claro.
Minha mãe entra no quarto e eu vou para o meu. Tenho alguns
minutos antes de precisar me encontrar com todo mundo. Será que vou
ter tempo para ler um pouco mais da história de Ky? Decido que sim. Tiro
o guardanapo amassado do bolso.
Quero saber mais sobre Ky antes de vê-lo esta noite. Sinto como se
nós dois fôssemos mais autênticos quando caminhamos pelas árvores nas
colinas. Quando estamos com todo mundo nas noites de sábado, tudo fica
difícil. Nós atravessamos uma floresta complicada e cheia de obstáculos,
onde não há marcos de pedra para nos guiar além dos que nós mesmos
construímos.
Sentada na cama para ler, olho de novo o lugar do armário onde eu
guardava o compacto. Sinto a dor aguda da perda e volto para a história
de Ky. Mas enquanto leio e as lágrimas descem pelo meu rosto, percebo
que não sei nada sobre perda.
No meio da dobra, Ky desenhou uma aldeia, casinhas, pessoazinhas.
Mas todas as pessoas estão deitadas de barriga para cima. Ninguém está
de pé, a não ser os dois Kys. As mãos do mais jovem não estão mais vazias,
seguram algo. Uma mão segura a palavra Mamãe, que escorrega pela
beira da mão, na forma de um corpo. A parte de cima do segundo M
despenca como se fossem braços abertos. A outra mão segura a palavra
Papai e a palavra também está caída. E os ombros do jovem Ky se curvam
com o peso dessas duas palavrinhas e seu rosto continua voltado para o
céu, onde vejo que a chuva se transformou em algo sombrio, algo mortal e
sólido. Munição, penso eu. Eu vi aquilo na exibição.
O Ky mais velho afastou o rosto da aldeia no meio, desviou-se do
outro garoto. As mãos não estão mais abertas. Estão cerradas. Atrás,
pessoas com uniformes de Funcionários o observam. Os lábios fazem um
sorriso que nunca toca seus olhos. Ele usa roupas comuns, uma linha
indica a dobra que demonstra que ele as passou com muito cuidado.
A princípio quando a chuva caiu
Do céu tão grande e profunda
Tinha cheiro de sálvia, meu cheiro preferido.
Fui até o alto do morro para vê-la chegar
Ver os presentes que ela sempre trazia
Mas esta chuva mudou de azul para negro
E não deixou
Nada.
Há uma falta de Funcionários no centro de recreação, apesar de o
lugar estar repleto de gente que joga, ganha, perde. Vejo três Funcionários
tomando conta da maior mesa de jogo. Parecem atentos, inquietos, nos
uniformes brancos, com rostos que apresentam mais tensão do que o
habitual. E estranho. Normalmente, temos 12 ou mais Funcionários de
baixa patente no centro, mantendo a ordem, registrando os resultados.
Cadê o resto hoje? Em algum lugar, as coisas não vão muito bem.
Mas aqui, até onde me interessa, pelo menos uma coisa está bem. Ky
está conosco. No que abrimos caminho pela massa de gente, seguindo
Xander, eu me viro para ele uma vez, esperando que o olhar faça Ky
compreender que eu li a história dele e que me importo. Ele está logo
atrás de mim e quero me virar e pegar sua mão, mas há gente demais. A
única coisa que posso fazer por Ky é ajudá-lo a permanecer em segurança,
guardar o que desejo dizer até que seja um bom momento. E lembrar das
palavras que escreveu, dos desenhos que fez, apesar de desejar que
aquela parte da história nunca tivesse acontecido a ele.
Os pais morreram. Ele viu aquilo acontecer. A morte veio do céu, é o
que ele se lembra. Toda vez que chove.
Xander para, e o resto de nós faz a mesma coisa. Para minha surpresa,
ele aponta uma mesa onde os jogos são um a um. Jogos que Xander
normalmente não joga. Ele gosta de estar num grupo, de ganhar quando
os riscos são maiores e há mais jogadores participando. E um teste mais
difícil para suas habilidades — mais desafiador, mais variáveis. Menos
pessoal.
— Você quer jogar? — Xander pergunta. Me viro para ver com quem
ele está falando. Ky.
— Tudo bem — diz Ky sem hesitar, sem revelar nada na voz. Ele man-
tém os olhos em Xander, esperando o próximo movimento.
— Que tipo de jogo você quer jogar? Habilidade ou sorte?
Haveria um traço de desafio na voz de Xander? O rosto permanece
perfeitamente controlado, como o de Ky.
— Tanto faz — responde Ky.
— Que tal um jogo de sorte? — diz Xander, me surpreendendo de
novo. Xander detesta jogos de sorte. Ele prefere aqueles que envolvem
alguma habilidade.
Em, Piper e eu ficamos observando enquanto Xander e Ky se sentam e
passam os cartões na máquina sobre a mesa. Xander distribui as cartas,
vermelhas com marcas pretas no centro, depois de juntá-las com duas
fortes batidas do baralho contra o metal.
— Quer começar? — Xander pergunta a Ky, que assente e vai pegar as
cartas.
— Que jogo eles estão jogando? — alguém pergunta ao meu lado.
Livy. Ela está aqui por causa de Ky, tenho certeza, olhando as mãos dele
nas cartas com olhos de cobiça.
As mãos dele não são para você ficar olhando, penso e lembro que
também não são minhas. Eu devia estar observando Xander. Devia estar
torcendo por Xander.
— Dilema do prisioneiro — diz Em, ao meu lado. — Estão jogando
dilema do prisioneiro.
— O que é isso? — pergunta Livy.
Ela não conhece o jogo? Viro para ela, surpresa. É um dos jogos mais
simples, mais comuns. Em tenta explicar para Livy em voz baixa, para não
incomodar os jogadores.
— Os dois baixam uma carta ao mesmo tempo. Se os dois tiverem
uma carta par, ambos ganham dois pontos. Se tiverem ímpares, ganham
um ponto.
Livy interrompe Em.
— E se um tiver uma carta par e o outro, uma ímpar?
— Se uma é par e a outra é ímpar, a pessoa que baixa a carta ímpar
ganha três pontos. A que baixa a carta par ganha zero.
Os olhos de Livy se fixam no rosto de Ky. Ciumenta, penso que mesmo
se ela enxergar a mesma quantidade de detalhes que eu encontro — coisa
que duvido — ela não sabe nada sobre ele. Será que se interessaria por Ky
se soubesse que ele é uma Aberração?
Penso numa coisa que me deixa gelada: será que eu ficaria tão
interessada se não soubesse que ele é uma Aberração? Nunca prestei
muita atenção em Ky antes de saber da sua classificação. E antes de ver o
rosto dele no microcartão, lembro a mim mesma. Aquilo naturalmente
aumentou o seu interesse. Além do mais... você não devia se interessar por
ninguém até conhecer seu Par.
Me sinto meio mal de pensar que Livy talvez veja o verdadeiro valor
de Ky de uma forma mais pura. Ela está interessada só nele. Não tem
razões secretas. Nenhuma confusão. Nada escondido sob a básica atração
que sente por ele.
Mas ao mesmo tempo, percebo, eu não tenho como saber. Ela
poderia estar escondendo algo, como eu. Nós todos poderíamos estar
escondendo algo.
Volto a atenção ao jogo e observo os rostos de Ky e Xander com
cuidado. Nenhum dos dois pisca, para antes de uma jogada ou mostra
suas cartas.
No final, não importa. Ky e Xander terminam a rodada com um
número idêntico de pontos. Cada um deles ganhou e perdeu o mesmo
número de vezes.
— Vamos dar uma volta — diz Xander, me procurando. Quero olhar
para Ky antes de entrelaçar meus dedos com os de Xander, mas não faço
isso. Também preciso jogar esse jogo. Com certeza, Ky vai compreender.
Mas será que Xander compreenderia? Se ele soubesse sobre Ky e eu, e
sobre as palavras que trocamos na Colina?
Afasto o pensamento enquanto saio da mesa com Xander. Livy
imediatamente ocupa o lugar e começa uma conversa com Ky.
Xander e eu saímos sozinhos para o corredor. Me pergunto se ele está
a ponto de me beijar e o que vou fazer se isso acontecer, mas em vez disso
ele me sussurra, palavras suaves e próximas.
— Ky entrega os jogos.
— O quê?
— Ele perde os jogos de propósito.
— Vocês empataram. Ele não perdeu — não sei aonde Xander quer
chegar.
— Hoje não. Porque não era um jogo de habilidade. Esses são os jogos
que ele costuma entregar. Ando observando há algum tempo. Ele é
cuidadoso, mas eu tenho certeza de que ele faz isso.
Olho fixamente para Xander, sem saber muito bem o que dizer.
— E fácil entregar um jogo de habilidade, especialmente quando se
está em um grupo grande. Ou um jogo como Marca, quando você pode
colocar as suas peças no lugar errado e fazer com que pareça natural. Mas
hoje, em um jogo de sorte, cara a cara, ele não perdeu. Ele não é bobo.
Sabia que eu estava observando. — Xander sorri. Então seu tosto
demonstra confusão. — O que eu não consigo entender é por quê.
— Por que o quê?
— Por que ele entrega tantos jogos? Ele sabe que os Funcionários nos
observam. Ele sabe que estão procurando pessoas que sabem jogar bem.
Ele sabe que os nossos jogos provavelmente influenciam as vocações que
nos são designadas. Não faz sentido. Por que ele não quer que saibam
como ele é inteligente? Porque ele / inteligente.
— Você não vai contar nada disso para ninguém, não é? — De
repente, fico muito preocupada com Ky.
— Claro que não — diz Xander, pensativo. — Deve ter as razões dele,
eu respeito.
Xander está certo. Ky tem suas razões e são boas. Eu as li no último
guardanapo, aquele com as manchas que eu sei que devem ser de molho
de tomate, mas que se parecem com sangue. Sangue seco.
— Vamos jogar de novo — diz Ky, quando voltamos, os olhos fixos em
Xander. Eles reluzem uma vez e acho que ele viu minha mão na de Xander,
mas não tenho certeza. O rosto não demonstra nada.
— Tudo bem — diz Xander. — Sorte ou habilidade?
— Habilidade — sugere Ky. E algo na expressão dele sugere que talvez
não entregue o jogo desta vez. Talvez esteja entrando para ganhar.
Em revira os olhos para mim e gesticula para os meninos, como se qui-
sesse dizer "Dá para acreditar como isso é primitivo?" Mas nós duas os
seguimos para outra mesa. Livy vem junto.
Eu me sento entre Ky e Xander, à mesma distância dos dois. É como se
eu fosse um pedaço de metal e os dois, ímãs, e sinto um puxão de cada
lado. Ambos correram riscos por mim — Xander com o artefato, Ky com o
poema e com a escrita.
Xander é meu Par e meu amigo mais antigo, uma das melhores
pessoas que conheço. Quando eu o beijei, foi bom. Me sinto atraída por
ele, e presa a ele pelos cordões de milhares de lembranças diferentes.
Ky não é meu Par, mas talvez pudesse ter sido. Ele é aquele que me
ensinou a escrever meu nome, a guardar poemas, a construir uma torre de
rochas que parece que vai desabar mas não desaba. Nunca o beijei e não
sei se um dia beijarei, mas acho que talvez fosse mais do que bom.
É quase desconfortável estar tão consciente da presença dele. Cada
pausa, cada movimento quando ele coloca uma peça no tabuleiro preto e
cinza. Quero estender a mão, segurar a dele, prendê-la bem no meu
coração, bem no lugar onde dói mais. Não sei se me curaria ou se partiria
completamente meu coração, mas pelo menos essa espera faminta e
constante terminaria.
Xander joga com ousadia e inteligência; Ky, com um tipo de intuição
profunda e calculada. Os dois são fortes. E uma partida bem equilibrada.
É a vez de Ky jogar. No momento de calma que antecede sua jogada,
Xander o observa cuidadosamente. A mão de Ky paira sobre o tabuleiro.
Por um momento, enquanto segura a peça no ar, vejo onde ele poderia
colocá-la para ganhar e sei que ele percebe também, que planejou o jogo
inteiro para aquela última jogada. Olha para Xander e Xander olha para
ele, ambos presos em algum tipo de desafio que parece mais profundo e
mais antigo do que o que se passa no tabuleiro.
Então Ky mexe a mão e baixa a peça num lugar onde Xander vai poder
se sobrepor e ganhar. Ky não hesita ao colocar a peça. Ele a baixa de forma
ruidosa e se encosta na cadeira, olhando para o teto. Acho que vejo uma
mínima sombra de um sorriso nos seus lábios, mas não posso ter certeza.
Desaparece mais rápido do que um floco de neve no trilho do trem aéreo.
A jogada de Ky talvez não seja aquela brilhante, aquela que eu sei que
ele poderia ter feito, mas tampouco é estúpida. Ele fez a jogada de um
jogador mediano. Quando baixa os olhos do teto, encontra meu olhar e o
prende, assim como prendeu a peça do jogo antes de baixá-la. Naquela
pausa silenciosa, me diz algo que não poderia me dizer em voz alta.
Ky pode jogar este jogo. Pode jogar todos os jogos deles, inclusive o
que está na sua frente e que acaba de perder. Sabe exatamente como
jogar, e por isso ele perde sempre.
CAPÍTULO 21
TENHO MUITA DIFICULDADE DE ME CONCENTRAR NA
classificação, no dia seguinte. Os domingos são dias de trabalho. Não há
atividades de lazer, por isso provavelmente não vou ver Ky até segunda.
Não posso conversar com ele sobre a história até lá. Não posso dizer
"lamento pelos seus pais". Eu disse essas palavras antes, quando ele
chegou para morar com os Markham e demos as boas-vindas e
manifestamos nossas condolências.
Mas é diferente agora, quando eu realmente sei o que aconteceu.
Antes, eu sabia que estavam mortos, mas não sabia do quê. Não sabia que
ele havia visto a morte cair do céu enquanto assistia a tudo, impotente.
Queimar o guardanapo com aquela parte da história foi uma das coisas
mais difíceis que já fiz. Como os livros no local da Restauração, como o
poema do Vovô, a história de Ky pouco a pouco vira cinzas e nada.
A não ser. Porque ele se lembra, e agora eu também.
Uma mensagem de Norah interrompe minha classificação. Por favor,
apresente-se ao posto do supervisor. Ergo a cabeça sobre as baias de
classificação na direção de Norah, e então me levanto, surpresa.
Os Funcionários voltaram para me procurar.
Eles me observam enquanto caminho por outras filas de
trabalhadores e acho que vejo aprovação nos olhos deles. Fico aliviada.
— Parabéns — diz o Funcionário grisalho, quando eu os alcanço. —
Você teve uma nota muito boa na sua prova.
— Obrigada — digo, como sempre faço com os Funcionários. Mas
desta vez é sincero.
— O próximo passo é uma classificação de verdade — diz o
Funcionário. — Em algum momento, no futuro próximo, nós viremos aqui
para te acompanhar ao local do teste.
Mostro que entendi. Já ouvi falar disso também. Levam a gente para
classificar algo real — dados verdadeiros como notícias, ou gente de
verdade ou um pequeno grupo de uma turma de escola — para ver se
você consegue aplicar os conhecimentos ao mundo real. Se você se sai
bem, pode passar para o próximo passo, que provavelmente vai ser seu
posto de trabalho definitivo.
Tudo está acontecendo rápido. Na verdade, nos últimos tempos tudo
parece ter se apressado: a retirada súbita dos artefatos das residências
particulares, a viagem súbita da minha mãe e agora isso, cada vez mais de
nós deixando a escola mais cedo este ano.
Os Funcionários esperam minha resposta.
— Obrigada — digo.
De tarde, minha mãe recebe uma mensagem no trabalho: vá para
casa e faça as malas. Ela precisa fazer outra viagem. Talvez mais longa do
que a última. Percebo que meu pai não gosta disso, nem Bram. Nem eu,
aliás. Sento na cama e olho enquanto ela arruma as coisas. Dobra o
pijama, roupa de baixo, meias. Abre o recipiente de comprimidos e checa.
Está faltando um, o comprimido verde. Ela olha para mim e eu desvio
o olhar.
Aquilo me faz pensar que talvez essas viagens sejam mais difíceis do
que parecem e percebo que, ao ver que falta um comprimido, não vi um
exemplo de fraqueza, mas de força. Ela está lidando com algo que é difícil
a ponto de fazê-la tomar o comprimido verde, portanto também deve ser
algo difícil de guardar, de não dividir conosco. Mas ela é forte, guarda
segredos, porque aquilo nos protege.
— Cássia? Molly? — Meu pai entra no quarto, e eu levanto para sair.
Vou rapidamente até minha mãe para abraçá-la. Quando recuo, nossos
olhares se encontram e eu sorrio para ela. Quero que saiba que eu sei que
não devia ter desviado o olhar antes. Não tenho vergonha dela. Sei como
deve ser difícil guardar um segredo. Posso ser uma classificadora, como
meu pai e meu avô antes de mim, mas também sou filha da minha mãe.
Segunda de manhã, Ky c eu caminhamos por entre as árvores até
encontrar o lugar onde paramos da última vez. Recomeçamos a marcar o
caminho com bandeiras vermelhas. Gostaria que fosse fácil assim retomar
o que interrompemos noutros assuntos. A princípio hesito, sem querer
perturbar a paz destas matas com o horror das Províncias Exteriores, mas
ele sofreu sozinho por tanto tempo que não consigo fazer com que precise
esperar nem mais um minuto.
— Ky. Sinto muito. Sinto muito que eles se foram.
Ele não diz nada, mas se abaixa para amarrar um pedaço de pano
vermelho em torno de um arbusto particularmente espinhoso. As mãos
tremem um pouco. Sei o que aquele breve momento de perda de controle
significa para alguém como Ky, e quero reconfortá-lo. Ponho a mão nas
suas costas, delicada e suavemente, só o bastante para que ele saiba que
estou ali. Quando minha mão se encontra com o tecido da camisa, ele se
vira, e eu recuo ao ver a dor nos seus olhos. Seu olhar me implora para
não dizer mais nada. Já basta que eu saiba. Talvez seja demais.
— Quem é Sísifo? — pergunto, tentando pensar em algo que o
distraia. — Você mencionou esse nome uma vez. Quando o Oficial disse
que a gente ia passar a vir à Colina.
— Alguém que tem a sua história contada há muito tempo — Ky se le-
vanta e começa a caminhar de novo. Percebo que ele precisa se
movimentar hoje. — Era uma das histórias favoritas do meu pai. Acho que
ele queria ser como Sísifo, porque Sísifo era astuto, sorrateiro e sempre
dava problemas para a Sociedade e os Funcionários.
Ky nunca tinha falado do pai. Sua voz parece indiferente. Não percebo
pelo tom o que ele sente pelo homem que morreu anos antes, o homem
cujo nome Ky segurava na mão no desenho.
— Tem uma história sobre como Sísifo pediu uma vez para um Funcio-
nário mostrar como uma arma funcionava e depois usou essa arma contra
o Funcionário.
Devo parecer chocada, mas Ky parece ter antecipado minha surpresa.
Seus olhos são gentis quando ele explica.
— História velha, da época em que Funcionários usavam armas. Não
usam mais.
O que ele não diz, mas nós dois sabemos, é que eles não precisam. A
ameaça de Reclassificação é suficiente para manter quase todo mundo na
linha.
Ky se vira e avança. Eu vejo como ele se movimenta, os músculos das
costas a centímetros de distância de mim. Sigo de perto, para poder passar
pelos galhos que ele segura para mim. O cheiro da floresta parece, por um
momento, ser só o cheiro dele. Me pergunto como deve ser o cheiro de
sálvia, o cheiro que ele disse ser o favorito da sua vida antiga. Espero que
o cheiro da floresta seja o seu favorito agora. Eu sei que é o meu.
— A Sociedade decidiu que precisava dar um castigo a Sísifo, um
castigo especial, por ele ter ousado achar que podia ser tão esperto
quanto eles não sendo um Funcionário e nem mesmo um cidadão. Não era
nada. Uma Aberração das Províncias Exteriores.
— O que fizeram com ele?
— Deram a ele uma tarefa. Ele tinha que rolar uma pedra enorme até
o alto da montanha.
— Não parece tão horrível. — Há alívio em minha voz. Se a história
termina bem para Sísifo, talvez possa terminar bem para Ky.
— Não era tão fácil quanto parecia. Quando ele estava a ponto de
chegar ao topo, a pedra escorregava até lá embaixo e ele precisava
recomeçar. Acontecia todas as vezes. Ele nunca conseguiu levar a pedra
até o alto. Ele ficou empurrando ela para sempre.
— Entendo — digo, percebendo por que nossas caminhadas pela
pequena colina lembravam Sísifo para Ky. Dia após dia, fazíamos a mesma
coisa: subíamos e descíamos. — Mas nós chegamos ao alto daquela
pequena colina.
— Nunca tivemos permissão de ficar ali por muito tempo — assinala
Ky.
— Ele era da sua província? — Paro por um momento, achando ter
ouvido o apito do Funcionário, mas não passa do canto estridente de um
pássaro sobre a copa das árvores.
— Não sei. Não sei se ele é de verdade — diz Ky. — Se chegou a
existir.
— Então por que contar essa história? — Não compreendo e, por um
segundo, me sinto traída. Por que Ky me falou dessa pessoa e me fez
sentir simpatia por ele, quando não existem sequer provas de que tenha
existido?
Ky faz uma pausa breve antes de responder, seus olhos grandes e
fundos como os oceanos em outras histórias, ou como o céu na sua.
— Mesmo se ele nunca viveu essa história, muitos de nós viveram
vidas exatamente assim. Então é verdade de uma forma ou de outra.
Penso no que Ky disse enquanto nos movimentamos de novo, rápido,
amarrando áreas e ajudando um ao outro a atravessar as partes mais
emaranhadas da floresta. Há um cheiro aqui que já senti antes: cheiro de
decomposição, mas não parece podre. E um cheiro quase intenso, o cheiro
de plantas voltando para a terra, de madeira que dá lugar ao pó.
Mas a Colina poderia estar escondendo algo. Lembro das palavras e
dos desenhos de Ky e percebo que nenhum lugar é completamente bom.
Nenhum lugar é completamente mau. Andei pensando em termos
absolutos. Primeiro, acreditava que nossa Sociedade era perfeita. Na noite
em que vieram buscar nossos artefatos, acreditei que era perversa. Agora
simplesmente não sei o que dizer.
Ky borra as linhas para mim. Também me ajuda a ver com clareza. E
espero que eu faça o mesmo por ele.
— Por que você entrega os jogos? — pergunto quando paramos numa
clareira.
Seu rosto fica tenso.
— Eu preciso.
— Todas as vezes? Você nem se permite pensar em vencer?
— Sempre penso em vencer — Ky me diz. Há fogo nos seus olhos
novamente, e ele quebra um galho de uma árvore para permitir a nossa
passagem. Ele joga o primeiro galho para o lado e segura um outro para
trás, esperando que eu passe, mas fico bem ali, do lado dele. Ele baixa os
olhos para mim, as sombras das folhas cobrindo seu rosto, assim como o
sol. Está olhando para os meus lábios, o que torna difícil para mim falar,
mesmo quando sei o que quero dizer.
— Xander sabe que você perde de propósito.
— Eu sei que ele sabe — diz Ky. Um sorriso repuxa os cantos da sua
boca, como aquele que achei ter visto na noite passada. — Mais alguma
pergunta?
— Só uma — digo. — Qual é a cor dos seus olhos? — Quero saber o
que ele pensa, como se vê — o verdadeiro Ky — quando ele ousa olhar.
— Azul — diz ele, parecendo surpreso. — Sempre foram azuis.
— Não para mim.
— Como se parecem para você? — diz ele, confuso, com um ar
divertido. Não olha mais para a minha boca, e sim para os meus olhos.
— De muitas cores — digo. — No início, achei que eram castanhos.
Uma vez, achei que fossem verdes. Em outra ocasião, cinza. Mas são azuis
a maior parte do tempo.
— Como são agora? — pergunta. Arregala os olhos um pouquinho, se
aproxima um pouco, deixa que eu olhe pelo tempo que quiser, com a
intensidade que quiser. E há tanto para se ver. São azuis e negros e
também de outras cores, e sei de um pouco do que viram e do que espero
que vejam agora. A mim. Cássia. O que eu sinto, quem eu sou.
— E aí? — pergunta Ky.
— Tudo — digo a ele. — Eles são tudo.
Nenhum de nós se move por um momento, presos nos olhos do outro
e nos galhos desta Colina que talvez nunca terminemos de escalar. Sou a
primeira a me mexer. Passo por ele e avanço entre algumas folhas
emaranhadas, subo em uma pequena árvore caída.
Atrás de mim, ouço Ky fazendo a mesma coisa.
Estou me apaixonando. Estou apaixonada. E não é por Xander,
embora eu o ame. Tenho certeza disso, assim como tenho certeza de que
sinto algo diferente por Ky.
Enquanto prendo outra bandeira vermelha nas árvores e desejo a
queda da nossa Sociedade e dos seus sistemas, inclusive do Sistema de
Pares, para poder ficar com Ky, percebo que se trata de um desejo egoísta.
Mesmo se a queda da nossa Sociedade pudesse melhorar a vida de alguns,
tornaria pior a vida de outros. Quem sou eu para tentar mudar as coisas,
para ficar gananciosa e querer mais? Se nossa Sociedade mudar e as coisas
forem diferentes, quem sou eu para dizer à garota que teria apreciado
uma vida protegida e segura que ela precisa fazer escolhas e correr perigo
por minha causa?
A resposta é: não sou ninguém. Sou só uma das pessoas que calham
de estar com a maioria. A minha vida inteira, as probabilidades estiveram
do meu lado.
— Cássia — diz Ky. Ele quebra outro galho e se abaixa em um
movimento rápido para escrever sobre a terra grossa no chão da floresta.
Ele precisa afastar uma camada de folhas e uma aranha foge. — Olha —
diz ele, me mostrando outra letra. K.
Agradecida pela distração, me agacho ao lado dele. Essa letra é mais
difícil e exige que eu tente várias vezes para poder chegar perto. Apesar da
prática com as outras letras, minhas mãos não estão acostumadas a isso.
Escrever de uma forma que não seja digitar. Quando finalmente acerto e
levanto o olhar, vejo que Ky está sorrindo para mim.
— Então eu aprendi a fazer o K — digo, devolvendo o sorriso. — Estra-
nho. Achei que a gente estava seguindo a ordem alfabética.
— Estávamos — diz Ky. — Mas acho que K é uma boa letra para se
conhecer.
— Qual minha próxima letra então? — pergunto fingindo inocência.
— Y, talvez?
— Talvez — concorda Ky. Ele não está mais sorrindo, mas tem malícia
nos olhos.
O apito soa atrás de nós, aos pés da colina. Ao ouvi-lo, me pergunto
como pude achar que o grito do pássaro se parecia de alguma forma com
o apito do Oficial. Um som é metálico e artificial, o outro é alto, claro e
belo.
Suspiro e passo a mão na terra, devolvendo as letras ao solo. Então,
procuro uma rocha para fazer um marco. Ky faz o mesmo. Juntos,
construímos uma torre, pedra a pedra.
Quando coloco a última pedra no alto da pilha, Ky põe a mão sobre a
minha. Não a afasto. Não quero que nada caia e sinto a sensação da mão
áspera e quente sobre a minha, com a superfície fresca e lisa das pedras
embaixo. Então, viro minha mão lentamente para que a palma fique para
cima e nossos dedos se entrelacem.
— Eu nunca vou ganhar um Par — diz ele, olhando primeiro para
nossas mãos e depois nos meus olhos. — Sou uma Aberração. — Ele
aguarda minha reação.
— Mas não é uma Anomalia — digo, tentando tratar do assunto com
leveza e vendo imediatamente que é um erro. Não há nada de leve nele.
— Ainda não — diz ele, mas o humor na voz parece forçado.
Uma coisa é fazer uma escolha, outra é nunca ter a chance. Sinto uma
solidão fria e aguda dentro de mim. Como seria ser só? Saber que nunca
poderia ter outra escolha?
E quando percebo que as estatísticas que os Funcionários nos dão não
importam. Sei que existem muitas pessoas que são felizes, e fico alegre
por elas. Mas este é Ky. Se ele é a única pessoa que fica marginalizada
quando as outras 99 são felizes e realizadas, não está bem para mim.
Percebo que não me importo com o fato de o Oficial estar andando de um
lado para o outro lá embaixo, ou com os outros caminhantes entre as
árvores, ou com mais nada, e é nesse momento que percebo como isto é
verdadeiramente perigoso.
— Mas se pudesse ter um Par — digo suavemente —, como acha que
ela
seria?
— Você — diz ele, quase antes de eu terminar a frase. — Você.
Não nos beijamos. Não fazemos nada além de nos segurarmos e
respirar, mas eu sei. Não posso entrar docemente agora. Nem mesmo
pelos meus pais, pela minha família.
Nem mesmo por Xander.
CAPÍTULO 22
ALGUNS DIAS DEPOIS ESTOU NA AULA DE LINGUAGEM E
alfabetização, olhando para a instrutora enquanto ela fala da importância
de se compor mensagens sucintas na comunicação via terminal. Em
seguida, como se fosse para ilustrar a lição, uma dessas mensagens chega
ao principal terminal da sala de aula.
— Cássia Reyes. Protocolo. Infração. Um Funcionário vai chegar em
breve para acompanhá-la.
Todos se viram para mim. A sala fica em silêncio: os alunos param de
digitar nos escrevinhadores, seus dedos tensos. Até a instrutora se
permite uma expressão de pura surpresa no rosto. Ela não tenta continuar
a aula. Já se passou muito tempo desde que alguém daqui cometeu uma
Infração. Ainda mais anunciada publicamente.
Eu me levanto.
De certa forma, estou pronta para isso. Eu espero por isso. Ninguém
pode infringir tantas regras quanto eu e não acabar sendo pego de alguma
forma, em algum momento.
Recolho o leitor e o escrevinhador, jogando-os na bolsa com meu reci-
piente de comprimidos. De repente, parece muito importante estar pronta
para a Funcionária. Pois não tenho dúvidas sobre quem será a Funcionária
a aparecer desta vez. A primeira, aquela da área verde próxima ao centro
de recreação, aquela que me disse que tudo ficaria bem e que nada
mudaria com relação ao meu Par.
Será que ela mentiu para mim? Ou disse a verdade e foram as minhas
escolhas que transformaram as suas palavras em mentiras?
A professora acena para mim quando saio da sala e eu aprecio aquele
gesto simples de cortesia.
O corredor está vazio, é comprido, e o piso, polido por uma limpeza
recente. Mais um lugar onde não posso correr. Não quero esperar que
cheguem para me encontrar. Caminho pelo corredor, colocando os pés
nos ladrilhos com precisão, com cuidado, com cuidado, para não
escorregar, para não cair, para não correr enquanto eles observam.
Ela está lá, na área verde ao lado da escola. Tenho que cortar
caminhos para me sentar em outro banco, sob seu olhar. Ela espera. Eu
ando.
Ela não se levanta para me cumprimentar. Quando me aproximo dela,
não sento. Está claro aqui fora e eu aperto os olhos diante do branco de
seu uniforme e do metal do banco, ambos atordoantes, agressivos,
reluzentes ao sol. Me pergunto se eu e ela vemos as coisas de forma
diferente, agora que simplesmente não vemos o que esperamos ver.
— Olá, Cássia — diz ela.
— Olá.
— Seu nome foi mencionado ultimamente em vários departamentos
da Sociedade. — Ela gesticula para que eu me sente. — Por que você acha
que isso aconteceu?
Pode ser por muitas razões, penso com meus botões. Por onde
começar? Escondi artefatos, li poemas roubados, aprendi a escrever. Me
apaixonei por alguém que não é meu Par e estou escondendo este fato do
meu Par.
— Não tenho idéia — digo. Ela ri.
— Ah, Cássia. Você foi tão sincera comigo da última vez em que
conversamos. Eu devia ter imaginado que isso não ia durar.
Ela aponta para o lugar ao lado dela, no banco.
— Sente-se.
Obedeço. O sol reluz quase diretamente sobre nós, uma luz
desfavorável. A pele dela parece ter a textura de papel, e está coberta de
suor. Seus contornos parecem borrados, o uniforme e a insígnia,
pequenos, menos poderosos do que da última vez em que falamos. Digo
isto a mim mesma para não entrar em pânico, não entregar ninguém,
muito menos Ky.
— Não é preciso ser modesta — diz ela. — Com toda certeza você tem
alguma idéia de como foi bem no teste de classificação.
Graças aos céus. É por isso que ela está aqui? Mas e a tal infração?
— Você obteve o melhor resultado do ano. Naturalmente, todos os
departamentos estão brigando para que você seja designada para lá como
vocação. Nós, do Departamento de Pares, estamos sempre à procura de
um bom classificador. — Ela sorri. Como da última vez, ela oferece alívio e
conforto, me tranqüiliza sobre a minha posição na Sociedade. Me
pergunto por que será que eu a odeio tanto.
Logo na seqüência eu entendo.
— Naturalmente — diz ela em um tom que agora parece ser pesaroso
—, precisei contar para os Funcionários da testagem que, a menos que
vejamos mudanças em alguns dos seus relacionamentos pessoais, nós
seríamos contrários à sua contratação. E precisei mencionar a eles que
você talvez não seja adequada para outros trabalhos relacionados com
classificação, se as coisas continuarem como estão.
Ela não me olha ao dizer isto. Ela observa o chafariz no meio da área
verde que, eu percebo subitamente, está seco. Então, volta o olhar para
mim e sinto meu coração disparar, meu pulso batendo com força até a
ponta dos dedos.
Ela sabe. Alguma coisa, pelo menos, se é que não sabe de tudo.
— Cássia — diz ela com delicadeza. — Os adolescentes têm o sangue
quente. São rebeldes. É parte do processo de crescimento. Na verdade,
quando verifiquei seus dados, vi que havia previsões de que você
apresentasse alguns desses sentimentos.
— Eu não sei do que você está falando.
— Claro que sabe, Cássia. Mas não há nada com que se preocupar.
Você talvez tenha determinados sentimentos por Ky Markham neste
momento, mas quando você chegar aos 21 anos, há uma chance de 95%
de que já esteja superado.
— Ky e eu somos amigos. Somos parceiros de trilha.
— Você acha que isso não ocorre com freqüência? — diz a
Funcionária, soando como se estivesse achando graça. — Quase 78% dos
adolescentes que recebem um Par têm algum tipo de romance juvenil. E a
maioria acontece no primeiro ano após a designação do Par. Não é
inesperado.
A hora em que mais odeio os Funcionários é quando fazem isso.
Quando agem como se já tivessem visto tudo antes, como se tivessem me
visto antes. Quando nunca me viram de fato. Viram só os meus dados
numa tela.
— Geralmente, tudo o que fazemos em tais situações é sorrir e deixar
que as coisas se resolvam sozinhas. Mas os riscos são maiores para você
pelo status de Aberração de Ky. Ter um romance com alguém bem
colocado na Sociedade é uma coisa. Para vocês dois, é diferente. Se a coisa
continuar, você pode também vir a ser considerada uma Aberração. Ky
Markham, naturalmente, seria enviado de volta para as Províncias
Exteriores. — Sinto meu sangue gelar, mas ela ainda não acabou comigo.
Umedece os lábios, que estão tão secos quanto a fonte atrás dela. — Você
compreende?
— Não posso deixar de falar com ele. E meu parceiro de trilha.
Moramos no mesmo bairro...
Ela me interrompe.
— É claro que você pode conversar com ele. Há outras linhas que não
podem ser ultrapassadas. Beijar, por exemplo. — Ela sorri. — Você não ia
querer que Xander soubesse disso, não é? Não ia querer perdê-lo, não é?
Estou com raiva e meu rosto deve demonstrar isso. E o que ela diz é
verdade. Não quero perder Xander.
— Cássia. Você está arrependida da sua decisão de ter um Par? Queria
ter escolhido ser uma Solteira?
— Não é isso.
— Então o que é?
— Acho que as pessoas deviam poder escolher quem vai ser seu Par
— digo de forma desajeitada.
— E onde isso ia acabar, Cássia? — diz ela, a voz paciente. — Você
diria em seguida que as pessoas deveriam escolher quantos filhos vão ter
e onde vão morar? Ou quando querem morrer?
Fico em silêncio, mas não porque eu concordo. Estou pensando no
Vovô. Não entre docemente.
— Qual foi a Infração que eu cometi? — pergunto.
— Perdão?
— Quando fui chamada na escola, pelo terminal, a mensagem dizia
que eu tinha cometido uma Infração.
A Funcionária ri. A risada parece tranqüila e cálida, o que faz com que
meu couro cabeludo se arrepie.
— Ah, isso foi um erro. Outro, pelo jeito. Eles parecem acontecer com
freqüência quando você está envolvida. — Ela se inclina para perto. —
Você ainda não cometeu uma Infração, Cássia. Por enquanto.
Ela se levanta. Mantenho o olhar no chafariz seco, querendo que a
água volte a ele.
— É uma advertência, Cássia. Você compreende.
— Compreendo — digo para a Funcionária. As palavras não são
completamente mentirosas. Eu compreendo, de alguma forma. Sei que ela
precisa manter as coisas seguras e estáveis e uma parte de mim respeita
isso. Odeio isso mais do que tudo.
Quando finalmente a encaro, ela tem um ar satisfeito. Sabe que
ganhou. Ela vê nos meus olhos que não vou me arriscar a piorar as coisas
para Ky.
—Tem uma entrega pra você — diz Bram, com o rosto ansioso,
quando chego em casa. — Alguém deixou aqui. Deve ser coisa boa. Tive
que deixar minha impressão digital no terminal portátil deles quando
recebi.
Ele me segue até a cozinha, onde um pequeno embrulho descansa
sobre a mesa. Ao olhar para o papel pardo grosseiro que o envolve, penso
em como Ky poderia ocupar aquelas paginas com sua história. Mas ele não
pode mais. E perigoso demais.
Ainda assim, não consigo deixar de abrir o papel com cuidado. Aliso-o
até ficar impecável, me demorando. Aquilo quase deixa Bram maluco.
— Vai! Anda logo! — Entregas não acontecem todos os dias. Quando
Bram e eu finalmente vemos o que está dentro do embrulho,
suspiramos. Bram suspira decepcionado. O meu é um suspiro de
alguma coisa que não consigo definir muito bem. Saudade? Nostalgia?
E o retalho do vestido do Banquete do Par. Mantendo a tradição,
colocaram a seda entre dois pedaços de vidro transparente com uma
pequena moldura de prata em volta. O vidro e o tecido refletem a luz,
cegando-me por um momento e fazendo lembrar o espelho dentro do
meu compacto perdido. Olho para o pano, tentando lembrar da noite do
Banquete do Par, quando estávamos todos em rosa e vermelho e dourado
e verde e violeta e azul.
Bram geme.
— E isso? Um pedaço do seu vestido?
— O que você esperava, Bram? — digo, e a acidez do meu tom me
surpreende. — Você achou que iam devolver nossos artefatos? Achou que
era seu relógio? Pois não é. Não vamos recuperar nada. Nem o compacto.
Nem o relógio. Nem o Vovô.
Choque e mágoa aparecem no rosto do meu irmão e antes que eu
possa dizer mais alguma coisa, ele sai.
— Bram — eu o chamo. — Bram... Escuto o barulho da porta se
fechando.
Seguro a caixa onde veio a amostra emoldurada. Quando o faço,
percebo que tem o tamanho perfeito para se guardar um relógio. Meu
irmão ousou ter esperanças e zombei dele por causa disso.
Quero pegar esta moldura e caminhar até o meio da área verde. Vou
ficar ao lado daquela fonte seca e esperar até que a Funcionária me
encontre. E quando me encontrar e perguntar o que estou fazendo, vou
dizer a ela e a todo mundo o que eu sei: estão nos dando pedaços da vida
real em vez da coisa inteira. E vou dizer a ela que não quero minha vida
em amostras e retalhos. Uma provinha de tudo, mas uma refeição de
nada.
Aperfeiçoaram a arte de nos dar só a liberdade suficiente. Suficiente
para que, quando estamos a ponto de morder, nos ofereçam um ossinho e
então rolemos, de barriga para cima, à vontade e saciados, como um cão
que vi uma vez, ao visitar meus avós nos Campos. Tiveram décadas para
aperfeiçoar isto: por que estou surpresa quando acontece comigo
seguidas vezes?
Embora sinta vergonha de mim mesma, aceito o osso. Me preocupo
com ele entre os dentes. Ky precisa ficar em segurança. E o que importa.
Não tomo o comprimido verde. Ainda sou mais forte do que eles. Mas
não sou suficientemente forte para queimar a última parte da história de
Ky antes de lê-la, o pedaço que ele apertou na minha mão mais cedo,
enquanto descíamos pela floresta. Depois disso, mais nada, digo a mim
mesma. Só isso, mais nada.
O desenho é o primeiro com cor. Um sol vermelho, baixo no céu,
novamente na dobra do guardanapo para servir aos dois garotos, às duas
vidas. O Ky mais jovem soltou as palavras papai e mamãe; elas sumiram
do desenho. Esquecidas, abandonadas ou parte tão profunda dele que não
precisam mais ser escritas. Ele olha para o Ky mais velho, procura alcançá-
lo.
Era demais para carregar
Por isso os deixei para trás
Para ganhar uma vida nova, em um lugar novo
Mas ninguém se esqueceu de quem eu era
Eu não me esqueci
Nem as pessoas que vigiam
Elas vigiaram por anos
Elas vigiam agora
As mãos do Ky mais velho, atual, estão algemadas diante dele, um
Funcionário de cada lado. Ele pintou as mãos de vermelho — não sei se ele
deseja representar a aparência delas depois do trabalho ou se quer dizer
outra coisa. O sangue dos pais ainda em suas mãos, depois de todos esses
anos, apesar de não ter sido ele quem os matou.
As mãos dos Funcionários também estão vermelhas. E reconheço um
deles. Ele captou o rosto dela com algumas linhas, alguns traços
marcantes.
Minha Funcionária. Ela também foi procurá-lo.
CAPÍTULO 23
NA MANHÃ SEGUINTE, ACORDO COM UM GRITO TÃO ESTRIDENTE E
dolorido que pulo da cama, arrancando os sensores de sono da pele. — Bram! — berro. Ele não está no quarto. Corro pelo corredor até o quarto dos meus pais. Minha mãe voltou de
viagem na noite passada. Os dois devem estar lá. Mas o quarto também está vazio e dá para ver que saíram apressados. Vejo os lençóis retorcidos e um cobertor no chão. Recuo. Faz muito tempo que não vejo a cama deles desfeita e, mesmo com o medo que sinto, a intimidade das cobertas desarrumadas chama minha atenção.
— Cássia? — A voz de minha mãe. — Cadê você? — respondo em pânico, me virando. Ela corre pelo corredor na minha direção, ainda com roupa de dormir.
O cabelo louro e comprido escorre solto pelas costas e ela quase parece de outro mundo, até me envolver com braços cujo toque é forte e real.
— O que aconteceu? — ela me pergunta. — Você está bem? — O grito... — digo, olhando ao redor em busca da origem. Nesse momento, ouço outro som além do grito: o som de metal sobre
madeira. — Não são gritos — diz minha mãe, com voz triste. — Você está
ouvindo as serras. Estão cortando os bordos. Corro para fora, até os degraus da frente de casa onde Bram e meu
pai também estão. Outras famílias também estão do lado de fora, muitos com roupas de dormir, como nós. E outra forma de intimidade tão chocante e rara que me desnorteia. Não consigo me lembrar de outra ocasião em que eu tenha visto meus vizinhos desse jeito.
Ou talvez me lembre. Quando Patrick Markham saiu e andou para cima e para baixo com roupas de dormir, depois que o filho morreu, e o pai de Xander o encontrou e o levou para casa.
A serra morde o tronco do nosso bordo e o atravessa tão rápido, com tanta facilidade, que a princípio eu penso que nada aconteceu, a não ser o grito. A árvore parece bem por um breve momento, mas, mesmo ainda de pé, está morta. E então desaba.
— Por quê? — pergunto para minha mãe. Como ela não responde de imediato, meu pai põe o braço em volta
dela e me diz. — Os bordos se tornaram um grande problema. As folhas fazem muita
sujeira no outono. Não estão crescendo com uniformidade. Por exemplo, o nosso cresceu demais. O da Em é pequeno demais. E alguns têm doenças, por isso todos precisam ser cortados.
Contemplo nossa árvore, suas folhas ainda buscando o sol, ainda trabalhando na tarefa de transformar luz em alimento. Não sabem ainda que morreram. Nosso jardim parece diferente sem a árvore alta diante da nossa casa. Tudo parece menor.
Olho pra casa de Em. Seu jardim, por sua vez, não parece tão diferente agora que a pobre árvore deles se foi, aquela que nunca cresceu muito. Nunca foi muito mais do que um caule fino com um tufo de folhas no alto.
— Não é tão ruim para Em — digo. — A árvore dela não é uma grande perda.
— E triste para todos nós — diz minha mãe energicamente. Na noite passada, quando não consegui dormir, me agachei perto da
parede para ouvir a conversa dela com meu pai. Falavam tão baixo que eu não conseguia distinguir as palavras, mas ela parecia triste e cansada. Acabei desistindo e voltei para cama. Agora ela parece zangada, diante da casa, com os braços cruzados sobre o peito.
Os trabalhadores com as serras já passaram para outra casa, agora que nossa árvore tombou. Esta foi a parte fácil. Arrancar as raízes será a difícil.
Meu pai aperta minha mãe. Ele não ama as árvores do jeito que ela ama, mas ama outras coisas que foram destruídas e compreende. Minha
mãe ama as plantas. Meu pai ama a história das coisas. Eles se amam. E eu amo os dois.
Não vou ferir só a mim mesma, a Ky e a Xander se cometer uma Infração. Vou ferir a todas as pessoas que eu amo.
— É um aviso — diz minha mãe, quase para si mesma. — Eu não fiz nada! — exclama Bram. — Não me atraso para escola há
semanas! — O aviso não é para você — diz minha mãe. — É para outra pessoa.
Meu pai põe as mãos nos ombros da minha mãe, e o jeito com que olha para ela, é como se estivessem a sós.
— Molly, eu juro. Eu não... E eu, ao mesmo tempo, abro a boca para dizer alguma coisa — não sei
o quê — alguma coisa sobre o que eu fiz, e por que tudo isso é culpa minha. Mas antes que meu pai possa terminar e eu possa começar, minha mãe fala.
— E um aviso para mim. Ela se vira e volta para dentro de casa, passando uma mão nos olhos.
Enquanto a observo entrar, a culpa me atravessa velozmente, como os cortes na árvore.
Não acho que o aviso seja para minha mãe. Se os Funcionários puderem mesmo ver os meus sonhos, devem ter
ficado felizes com o que sonhei na noite passada. Queimei a história de Ky no incinerador, mas depois fiquei pensando no que ela me dissera: o sol estava vermelho e baixo no horizonte quando os Funcionários vieram pegá-lo.
Então, quando sonhei, vi cena após cena de Ky cercado por Funcionários de uniforme branco, com um céu avermelhado por trás deles, um reflexo do sol esperando no horizonte. Não dava para dizer se o sol se erguia ou se punha. Não percebia direções no sonho. Em cada sonho, ele não demonstrava qualquer medo. As mãos não tremiam. A expressão permanecia calma. Mas eu sabia que ele tinha medo e quando a luz vermelha do sol atingiu seu rosto, ela se parecia com sangue.
Eu não quero ver essa cena acontecer na vida real. Mas preciso saber mais. Como ele escapou da última vez? O que aconteceu?
Os dois desejos se enfrentam dentro de mim: o desejo de ficar em segurança e o desejo de saber. Não sei dizer qual dos dois vai ganhar.
Minha mãe mal fala comigo no trem para o Arboreto que pegamos juntas. Ela me olha e sorri de vez em quando, mas percebo que está perdida em pensamentos. Quando faço perguntas sobre a viagem dela, responde com cautela, e eu acabo parando.
Ky está no mesmo trem aéreo que nós duas, e ele e eu caminhamos juntos até a Colina. Tento agir de forma amistosa, mas reservada — do jeito que costumávamos agir quando estávamos juntos —, apesar de querer tocar a mão dele de novo, olhar nos olhos dele e perguntar sobre a história. Sobre o que aconteceu depois.
Passam-se só alguns segundos na floresta antes que eu perca o controle e precise perguntar. Ponho a mão no seu braço enquanto seguimos até o último lugar que marcamos. Quando o toco, ele sorri e aquilo aquece meu coração e torna difícil tirar a mão, soltá-lo. Não sei se vou conseguir, apesar de querê-lo em segurança mais ainda do que quero a ele.
— Ky. Uma Funcionária me procurou ontem. Ela sabe de nós. Eles sa-bem de nós.
Ky faz que sim com a cabeça. — Claro que sabem. — Também falaram com você? — Falaram. Para alguém que passou a vida inteira evitando chamar a atenção de
Funcionários, ele parece incrivelmente tranqüilo nesta situação. Os olhos são profundos como sempre, mas há uma calma neles que eu nunca tinha visto antes.
— Você não está preocupado? Ky não responde. Em vez disso, põe a mão no bolso da camisa e tira
um papel. Ele me entrega. E diferente do papel pardo dos guardanapos e dos embrulhos que andou usando — é mais branco, mais liso. A escrita ali não é a dele. É de algum tipo de terminal ou escrevinhador, mas algo nela parece estranho.
— O que é isso? — pergunto. — Um presente de aniversário atrasado para você. Um poema.
Meu queixo cai — um poema? Como? — e Ky se apressa em me reconfortar.
— Não se preocupa. Vamos destruir o papel logo, para não arranjar encrenca. Não vamos precisar de muito tempo pra decorar. — O rosto está iluminado de felicidade e eu subitamente percebo que Ky se parece um pouquinho com Xander, com o rosto aberto e alegre desse jeito. Lembro dos rostos que se alternaram na tela do terminal no dia seguinte ao anúncio do meu Par, quando vi Xander e depois Ky. Mas agora, vejo só Ky. Só Ky, mais ninguém.
Um poema.
— Você escreveu? — Não — diz ele —, mas é do mesmo homem que escreveu o outro.
Não entre docemente. — Como? — pergunto. Não havia outros poemas de Dyían Thomas no
terminal, na escola. Ky sacode a cabeça, fugindo da pergunta. — Não é o poema inteiro. Só pude pagar por parte de uma estrofe.
Antes que eu possa perguntar como pagou pelo poema, ele pigarreia um pouco nervosamente e olha para as mãos.
— Gostei dele porque menciona um aniversário e porque me lembrou você. Como eu me senti quando vi você naquele primeiro dia, na água da piscina. — Ele parece confuso e vejo traços de tristeza no seu rosto. — Você não gostou?
Seguro o papei branco, mas meus olhos estão tão cheios de lágrimas que não consigo ler.
— Aqui — digo, entregando-lhe o poema. — Você lê para mim? — Me afasto e começo a caminhar pelas árvores, quase cambaleante, tão ofusca-da pela beleza da sua surpresa e tão avassalada pela possibilidade e pela impossibilidade.
Atrás de mim, ouço a voz de Ky. Paro e escuto. Meu aniversário começou com as aves aquáticas e aves das árvores
aladas levando meu nome por sobre as fazendas e cavalos brancos E eu
me levantei no outono chuvoso
e caminhei para fora num aguaceiro de todos os meus dias.
Volto a caminhar, sem me importar com marcos, trapos ou com qual-quer coisa que pudesse me fazer andar mais devagar. Sou descuidada e incomodo um grupo de aves que saem voando e se afastam de nós, subindo ao céu. Brancas no azul, como as cores da Prefeitura Municipal. Como as cores dos anjos.
— Elas estão levando o seu nome — diz Ky, atrás de mim. Me viro e o vejo parado em meio à floresta, com o poema branco na
mão. Os gritos dos pássaros voam com eles. No silêncio que se segue, não
sei quem se move primeiro, se é Ky ou eu, mas logo estamos próximos, sem nos tocar, respirando, mas não nos beijando.
Ky se inclina para mim, os olhos presos aos meus, perto o bastante para que eu possa ouvir o ligeiro farfalhar do poema quando se mexe.
Fecho os olhos quando seus lábios tocam meu rosto com calor. Penso nas sementes de choupo esbarrando em mim naquele dia, no trem aéreo. Macias, leves, cheias de promessas.
CAPÍTULO 24
KY ME DÁ TRÊS PRESENTES DE ANIVERSÁRIO. UM POEMA, UM BEIJO
e a crença bela e desesperada de que as coisas podem dar certo. Quando abro meus olhos, ao pôr a mão no lugar do rosto que foi tocado pelos lábios dele, eu digo.
— Não te dei nada de aniversário. Nem sei quando é. E ele diz: — Não se preocupa. Digo: — O que eu posso fazer? Ele responde: — Me deixa acreditar nisso, em tudo isso, e acredita você, também. E
eu acredito. Por um dia inteiro, deixo que seu beijo queime meu rosto e meu
sangue, e não afasto a lembrança. Já beijei, já fui beijada antes. É diferente. Hoje, mais do que o meu aniversário de verdade, no dia do Banquete do Par, parece um marco, um dia a partir do qual se contar o tempo. Este beijo, estas palavras, parecem o começo.
Me permito imaginar futuros que nunca poderão acontecer, nós dois juntos. Mesmo quando faço classificações, mais tarde, mantenho a mente na tarefa fingindo que cada número classificado é um código, uma mensagem para Ky que vou manter como nosso segredo. Vou nos manter em segurança. Não vou revelar nada. Cada classificação que executo corretamente tira a atenção de nós.
Como não é minha vez de usar os sensores de sono esta noite, deixo que meus sonhos me levem para onde quiserem. Para minha surpresa, não sonho com Ky na Colina. Sonho com ele sentado nos degraus diante
da minha casa, vendo o vento brincar com as folhas do bordo. Sonho com ele me levando para o refeitório particular e puxando a cadeira para mim, curvando-se tão perto de mim que até as velas falsas estremecem diante da sua presença. Sonho que nós dois estamos plantando rosas novas no jardim dele e que Ky me ensina a usar o artefato. Tudo o que eu sonho é simples, corriqueiro, cotidiano.
E por isso que eu sei que são sonhos. Porque as coisas simples, corriqueiras e cotidianas são aquelas que nós nunca poderemos ter.
— Como? — pergunto a ele no dia seguinte, na Colina, assim que estamos suficientemente embrenhados na floresta para que ninguém nos ouça. — Como é que a gente pode acreditar que isso vai dar certo? A Funcionária ameaçou te mandar para as Províncias Exteriores, Ky!
Ky não responde por um momento e sinto como se tivesse gritado com ele, apesar de ter mantido minha voz o mais baixa possível. Depois caminhamos pelo marco que deixamos na última caminhada e ele olha direto para mim, e eu juro sentir aquele beijo de novo. Mas, desta vez, eu o sinto nos meus lábios.
— Você já ouviu falar do dilema do prisioneiro? — Ky me pergunta. — Claro. — Ele está zombando de mim? — E o jogo que você jogou
com Xander. Todo mundo já jogou. — Não, não é o jogo. A Sociedade mudou o jogo. Eu estou falando da
teoria por trás do jogo. Não sei do que ele está falando. — Acho que não. — Se duas pessoas cometem um crime juntas, são pegas e depois
separadas e interrogadas, o que acontece? Ainda estou perdida. — Não sei. O quê? — O dilema é esse. Elas denunciam uma à outra na esperança de que
os Funcionários peguem leve com elas, tipo um acordo? Se recusam a dizer algo que possa trair o parceiro? A melhor hipótese é que nenhum dos dois diga nada. Assim, os dois podem ficar em segurança.
Paramos perto de um grupo de árvores caídas. — Segurança — digo. Ky assente. — Mas isso nunca acontece.
— Por que não? — Porque um dos prisioneiros quase sempre trai o outro. Eles acabam
abrindo a boca para ter uma chance. Acho que sei o que ele está me pedindo. Estou aprendendo cada vez
mais a ler seus olhos, a saber seus pensamentos. Talvez seja por saber sua história, por finalmente saber mais sobre ele. Eu lhe entrego um pano vermelho. Não tentamos mais impedir nossos dedos de se tocarem, de se juntarem antes de se soltarem. Ky prossegue.
— Mas na melhor das hipóteses, ninguém diria nada. — E você acha que nós podemos fazer isso? — Nunca vamos estar em segurança — diz Ky, passando a mão no
meu rosto. — Eu finalmente entendi isso. Mas confio em você. Vamos nos manter em segurança o quanto pudermos.
O que significa que nossos beijos terão de se manter como promessas, promessas deixadas como aquele seu primeiro beijo, suave, no meu rosto. Nossos lábios não se encontram. Por enquanto. Pois assim que o fizermos, a Infração terá sido cometida. A Sociedade terá sido traída. Xander terá sido traído. Nós dois sabemos disso. Por quanto tempo podemos escapar deles? De nós mesmos? Porque posso ver nos olhos dele que ele deseja esse beijo tanto quanto eu.
Nossas vidas têm outras partes: muitas horas de trabalho para Ky. Classificação e Segunda Escola para mim. Mas quando olho para trás, sei que aqueles momentos não serão lembrados com todos os detalhes de que me lembro dos dias com Ky, andando pela Colina.
A não ser pela lembrança de uma tensa noite de sábado na sala de exibição, onde Xander segura minha mão e Ky age como se nada estivesse diferente. Há um momento terrível no final, quando as luzes se acendem e vejo a Funcionária da área verde olhando ao redor. Quando me localiza e vê minha mão na de Xander, ela me olha, dá um pequeno sorriso e desaparece. Olho para Xander depois que ela vai embora, e a dor da saudade me atravessa, uma dor tão profunda e real que ainda posso senti-la mais tarde, ao pensar nela, naquela noite. A saudade não é de Xander. E do jeito que as coisas costumavam ser entre nós. Sem segredos, sem complicações.
Ainda assim. Por mais que me sinta culpada em relação a Xander e me preocupe com ele, esses dias pertencem a Ky, a mim. A aprender mais histórias, escrever mais letras.
Às vezes Ky me pergunta se eu me lembro das coisas. — Lembra do primeiro dia de Bram na escola? — ele pergunta um
dia, enquanto andamos rápido pela floresta, para compensar pelo tempo que passamos escrevendo antes.
— Claro — respondo, sem fôlego, pela pressa e por ficar pensando nas mãos dele nas minhas. — Bram queria ficar em casa. Fez a maior cena no ponto do trem aéreo. Todo mundo se lembra disso.
As crianças começam a Primeira Escola no outono após completarem 6 anos. É supostamente um importante rito de passagem, uma antecipação dos Banquetes por vir. No final de um primeiro dia bem-sucedido, as crianças trazem um bolinho para casa, para comerem depois do jantar, junto com um monte de balões coloridos. Não sei o que deixava Bram mais animado — o bolo, que temos tão poucas oportunidades de comer, ou os balões, que são exclusivos dessa ocasião do Primeiro Dia. Também seria o dia em que ele ganharia o leitor e o escrevinhador, mas Bram não estava muito interessado nesta parte.
Quando chegou a hora de entrar no trem, Bram não quis. — Não quero ir — disse ele. — Prefiro ficar aqui. Era de manhã e a estação transbordava de gente que ia pro trabalho e
para as escolas. Cabeças se viravam para nos olhar, enquanto Bram se recusava a embarcar no trem aéreo com meus pais. Meu pai parecia preocupado, mas minha mãe lidou bem com aquilo.
— Fica tranqüila — ela cochichou para mim. — Os Funcionários encarregados do centro Pré-Escolar me avisaram que isso podia acontecer. Previram que ele teria alguma dificuldade com esse marco.
Depois ela se ajoelhou ao lado dele e falou: — Vamos entrar no trem, Bram. Lembra dos balões. Lembra do bolo. — Não quero. — E para surpresa de todos, começou a chorar. Bram
nunca chorava, nem mesmo quando era bem pequeno. Toda a confiança abandonou o rosto da minha mãe e ela pôs os braços em volta dele e o apertou com força. Bram é o segundo filho que ela achou que talvez nunca tivesse. Depois de me ter rápida e facilmente, ela levou anos para
engravidar de novo e ele nasceu semanas antes de ela completar 31 anos, que é a idade-limite para se ter filhos. Todos nos sentimos sortudos por termos o Bram, mas minha mãe mais do que todos.
Eu sabia que se o choro continuasse por muito mais tempo, nós estaríamos encrencados. Naquela época, havia um Funcionário designado para cuidar de problemas morando em cada rua.
Eu disse em voz alta para ele. — Pior para você. Não vai ganhar leitor, nem escrevinhador. Não vai
aprender a escrever. Não vai aprender a ler. — Mentira! — berrou Bram. — Eu posso aprender. — Como? — perguntei. Ele apertou os olhos, mas pelo menos parou de chorar. — Eu não ligo se não aprender a ler nem a escrever. — Está bem — disse eu, e com o canto dos olhos vi alguém batendo
na porta do Funcionário, na casa ao lado da parada do trem aéreo. Não. Bram já recebeu anotações demais da creche.
O trem parou com um chiado e naquele momento eu soube o que precisava fazer. Peguei a bolsa dele e a entreguei para ele.
— E com você — disse, olhando bem nos olhos dele, sem piscar. — Você pode crescer ou continuar um bebê.
Bram parecia magoado. Joguei a bolsa nos braços dele e cochichei no seu ouvido.
— Eu sei de um jeito de jogar no escrevinhador. — Sério? Fiz que sim. O rosto de Bram se iluminou. Ele pegou a bolsa e atravessou as portas
do trem aéreo sem olhar para trás. Meus pais e eu embarcamos a seguir e minha mãe me abraçou com força lá dentro.
— Obrigada — disse ela. Naturalmente, não havia jogo nenhum no escrevinhador. Precisei
inventar alguns, mas não é à toa que sou uma classificadora nata. Bram levou meses para descobrir que nenhuma das outras crianças tinha irmãos mais velhos que escondiam padrões e imagens em telas cheias de letras e que depois marcavam o tempo para ver com que rapidez eles conseguiam encontrar todas elas.
Foi como eu soube antes de qualquer um que Bram nunca seria um classificador. Mas continuei a inventar níveis, recordes a serem conquistados, e passava todo o meu tempo livre naqueles meses pensando em jogos que achasse que ele poderia gostar. E mesmo depois, quando ele descobriu tudo, não ficou com raiva. Nós tínhamos nos divertido tanto, e, afinal de contas, eu não tinha mentido. Eu sabia de um jeito de jogar no escrevinhador.
— O dia foi aquele — Ky fala e para. — O quê? — O dia em que eu te conheci. — Por quê? — digo, sentindo-me um tanto magoada. — Porque você
viu que eu seguia as regras? E fiz com que meu irmão também seguisse? — Não — diz ele, como se fosse óbvio. — Porque eu vi que você se
importava com seu irmão e vi que você era suficientemente esperta para ajudar ele. — E ele sorri. — Eu já sabia como você era, mas aquele foi o dia em que eu te conheci de verdade.
— Ah — digo. — E eu? — ele me pergunta. — O que você quer dizer? — Quando foi que você prestou atenção em mim pela primeira vez?
Por alguma razão, não posso dizer a ele. Não posso dizer que foi o rosto na tela, na manhã seguinte ao meu Banquete do Par — o erro — que me levou a pensar nele desse jeito. Não posso dizer que eu não o via até que me mandaram olhar.
— No alto da primeira colina — é o que respondo. Queria não ter pre-cisado contar esta mentira, quando ele conhece mais da minha verdade do que qualquer um no mundo.
Naquela noite, mais tarde, percebo que Ky não me disse mais nada da sua história e eu não pedi. Talvez seja porque agora eu viva na história dele. Agora sou parte dela, e ele, da minha, e a parte que escrevemos juntos às vezes parece ser a única que importa.
Mas a pergunta ainda me persegue: O que aconteceu quando os Funcionários levaram ele embora e o sol estava vermelho e baixo no céu?
CAPÍTULO 25
A CHUVA PARECE ALGO GRANDE DEMAIS PARA SER CONTROLADO, mas poderoso demais para escapar. Sopra à minha volta e desarruma meu cabelo, molha meu rosto, me faz saber que estou viva, viva, viva. Há momentos de calma e de pausa, como em todas as tempestades, e momentos em que nossas palavras provocam relâmpagos, pelo menos um para o outro.
Subimos a Colina, correndo juntos, tocando as mãos, tocando as árvores. Conversando. Ky tem coisas para contar e eu tenho coisas para contar a ele e não há tempo suficiente, não há tempo suficiente, nunca há tempo suficiente.
— Existem pessoas que se chamam de Arquivistas — diz Ky. — Na época em que o Comitê dos Cem fez as seleções, os Arquivistas sabiam que as obras que não fossem escolhidas iam se transformar em mercadorias valiosas. Por isso, salvaram algumas. Os Arquivistas têm terminais ilegais, que eles construíram para eles mesmos, para armazenar coisas. Salvaram o poema de Thomas que eu trouxe para você.
— Não tinha idéia — digo, comovida. Nunca pensei que alguém pudesse pensar tão à frente a ponto de salvar alguns dos poemas. Vovô sabia disso? Não me parece que ele soubesse. Ele nunca deu a eles o seu poema para ser salvo.
Ky põe a mão no meu braço. — Cássia. Os Arquivistas não são altruístas. Eles viram uma
mercadoria e fizeram o que podiam para que fosse preservada. Qualquer
pessoa pode ter acesso, se estiver disposta a pagar, mas os preços são altos. — Ele parou como se já tivesse revelado demais, como o fato de que este poema lhe custou algo.
— O que você usou para conseguir o poema? — pergunto, subitamente com medo. Até onde sei, Ky tem duas coisas de valor: o artefato e as palavras do poema Não entre docemente. Não quero que abra mão do artefato, o último vínculo com a família dele. E por alguma razão, a idéia de ter o nosso poema negociado me repugna. De forma egoísta, não quero que qualquer um o tenha. Percebo que não sou muito melhor do que os Funcionários neste aspecto.
— Uma coisa — diz ele, e seus olhos têm um ar divertido. — Não se preocupa com o preço.
— O seu artefato... — Não se preocupa. Não foi isso que eu usei. Também não usei o
nosso poema. Mas, Cássia, se você um dia precisar, eles não sabem do poema. Perguntei quantos escritos de Dylan Thomas eles tinham e não era muita coisa. O poema do aniversário, uma história, e era só.
— Se eu precisar do quê? — Negociar — diz ele, cauteloso. — Negociar por alguma coisa. Os
Arquivistas têm informações, contatos. Você podia falar para eles de um dos poemas que seu avô te deu. — Ele franze a testa. — Embora talvez seja difícil provar a autenticidade, porque você não tem mais o papel original... de qualquer forma, tenho certeza que valeria alguma coisa.
— Eu teria medo de negociar com gente assim — digo e logo lamento ter falado aquilo. Não quero que Ky pense que fico assustada à toa.
— Eles não são completamente maus — diz ele. — Estou tentando fazer com que você veja que não são melhores ou piores do que ninguém. Nem melhores nem piores do que os Funcionários. Você precisa ter cuidado com os Arquivistas do mesmo jeito que precisa ter cuidado com todo mundo.
— Onde eu posso encontrar eles? — pergunto, assustada pela necessidade dele de me dizer isso. O que ele acha que vai acontecer? Por que acha que eu precisaria saber como vender nosso poema?
— O Museu — diz ele. — Vai até o subsolo e fica parada em frente à exposição sobre a Gloriosa História da Província de Oria. Ninguém vai lá.
Se ficar tempo o bastante, alguém vai perguntar se você quer ouvir mais sobre a história. Você diz que sim. Eles vão saber que você quer entrar em contato com um Arquivista.
— Como é que você sabe disso? — pergunto, novamente surpresa com as formas de sobreviver que ele conhece.
Ele sacode a cabeça. — E melhor eu não contar. — E se alguém um dia for lá querendo mesmo saber um pouco mais
sobre a história? Ky r i . — Ninguém faz isso, Cássia. Ninguém aqui quer nada com o passado. Avançamos apressados, as mãos ainda se tocando em meio aos
galhos. Escuto Ky cantarolando uma parte de uma das Cem Canções, aquela que ouvimos juntos.
— Adoro essa — eu digo, e ele assente. — A mulher que canta tem uma voz tão bonita.
— Pena que não é real — diz ele. — O que você quer dizer? — pergunto. Ele me olha, surpreso. — A voz dela. Ela não é real. E gerada. A voz perfeita. Que nem a de
todos os cantores em todas as canções. Você não sabia disso? Sacudo a cabeça, descrente. — Isso não pode ser verdade. Quando ela canta, eu consigo ouvir a
respiração. — Isso faz parte — Ky diz, com olhar distante, lembrando-se de
alguma coisa. — Ele sabem que nós gostamos de ter a sensação de que as coisas são autênticas. Gostamos de ouvir eles respirarem.
— Como você sabe? — Eu já ouvi gente de verdade cantando — diz ele. — Eu também, na escola. E o meu pai cantava para mim. — Não — diz ele. — Tou falando de cantar forte, o mais alto que você
consegue. Quando sente vontade. Ouvi gente cantando assim, mas não aqui. E mesmo a voz mais bonita do mundo não soaria tão perfeita quanto aquela na sala de música.
Por uma fração de segundo, imagino ele em casa, na paisagem que desenhou para mim, ouvindo outros cantarem. Ky olha para o céu que pisca por trás das árvores sobre nós. Está calculando o tempo. Confia no sol mais do que no relógio. Já notei isso. Enquanto ele protege os olhos com uma mão, outro verso do poema de Thomas me vêm à mente:
Homens selvagens que abraçaram e cantaram o sol na altura Eu gostaria de ouvir Ky cantar. Ky põe a mão no bolso, tira o poema de aniversário. — Você já lembra bem dele? Sei o que ele está dizendo. Está na hora de destruir o poema. E
perigoso guardá-lo por muito tempo. — Sei — digo. — Mas deixa eu dar mais uma olhada nele. — Leio de
novo e olho para Ky. — Destruir esse não é tão triste — digo, contando para ele e lembrando a mim mesma. — Outras pessoas conhecem. Ainda existe em algum lugar.
Ele assente. — Você quer que eu leve para casa e jogue no incinerador? —
pergunto. — Achei que a gente podia deixar aqui — diz ele. — Enterrar. No chão. Estou lembrada de plantar com Xander. Mas este poema não tem
qualquer vínculo. Está completamente separado de onde veio. Sabemos o nome do autor. Não sabemos nada sobre ele, não sabemos o que ele queria dizer com o poema, o que pensava ao dar forma às palavras, como o escreveu. Tanto tempo atrás, já havia escrevinhadores? Não consigo me lembrar do que ouvi nas Cem Lições de História. Ou será que ele escreveu como Ky, com as mãos? Será que o poeta sabia como tinha sorte, por ter palavras tão lindas e ter um lugar para colocá-las e guardá-las?
Ky estende a mão para pegar o poema. — Espera — digo. — Não vamos enterrar tudo. — Estendo a mão para
receber o papel e ele me entrega, alisando-o sobre a palma da minha mão. Não é muita coisa, o poema. E pequeno, um verso. Vamos enterrá-lo facilmente. Rasgo cuidadosamente a linha que fala sobre os pássaros.
Aves e aves das árvores aladas levando meu nome Rasgo cada vez mais, até que os pedaços estejam minúsculos e leves.
São tão pequenos que não vejo onde a maior parte deles vai parar, mas
um pousa suavemente sobre um galho, perto de mim. Talvez uma ave de verdade vá usá-lo para fazer um ninho, vá guardá-lo de todo mundo, assim como eu fiz com o poema de Thomas.
Conhecemos o autor, percebo, enquanto Ky e eu enterramos o resto do papel. Nós o conhecemos através das suas palavras. E um dia vou ter que compartilhar os poemas. Eu sei disso. E um dia vou ter que contar para Xander o que está acontecendo aqui na Colina.
Mas ainda não é a hora. Antes, eu queimei poesia para ficar em segurança. Não posso fazer a mesma coisa agora. Seguro com força a poesia dos nossos momentos juntos, protegendo-os, protegendo-nos. A todos nós.
— Conta para mim sobre o seu Banquete do Par — diz Ky em outra ocasião. Ele quer que eu conte a ele sobre Xander?
— Não é para falar sobre Xander — diz ele, lendo meus pensamentos e sorrindo o sorriso que eu amo. Até agora, quando ele já sorri com mais freqüência, eu ainda continuo faminta por esse sorriso. Às vezes, estendo a mão e toco seus lábios quando ele faz aquilo. É o que faço agora, e sinto eles se moverem quando ele diz.
— É para falar sobre você. — Eu fiquei nervosa, empolgada... — paro. — No que você pensou? Queria poder dizer que estava pensando nele, mas já menti para ele
uma vez e não vou fazer isso de novo. Além do mais, eu também não estava pensando em Xander.
— Pensei em anjos — digo. — Anjos? — Você sabe. Aqueles das velhas histórias. Como conseguiam voar
para o céu. — Você acha que alguém ainda acredita neles? — pergunta. — Não sei. Não. E você? — Eu acredito em você — diz ele, a voz baixa e quase reverente. — E
isso é mais fé do que eu jamais imaginei que fosse ter. Avançamos rapidamente em meio às árvores. Sinto, mesmo sem ver
muito, que devemos estar chegando ao topo da colina. Em algum momento, nosso trabalho aqui vai ser concluído e isto tudo vai acabar. Já
não se leva mais muito tempo para percorrer a primeira parte da Colina. Tudo está aberto e bem marcado e sabemos para onde vamos, pelo menos a princípio. Mas ainda há território inexplorado. Ainda há coisas a se descobrir. E eu me sinto grata por isso. Me sinto tão grata que queria acreditar em anjos para poder expressar minha gratidão para alguém ou alguma coisa.
— Me conta mais — diz Ky. — Eu usei um vestido verde. — Verde — diz ele, olhando para mim. — Eu nunca vi você vestida de
verde. — Você nunca me viu vestida com nada que não fosse marrom ou
preto — digo a ele. — Roupas comuns marrons. Roupa de nadar preta — disparo.
— Retiro o que disse — diz ele depois, quando ouvimos o apito. — Já te vi de verde, sim. Vejo você de verde todos os dias, aqui nas árvores.
No dia seguinte, pergunto a ele: — Você pode me contar por que chorou na exibição outro dia? — Você viu? Faço que sim com a cabeça. — Não consegui me segurar. — O olhar está distante, endurecido. —
Não sabia que eles tinham cenas como aquela. Podia ter sido na minha aldeia. Certamente era em alguma das Províncias Exteriores.
— Espera aí — penso nas pessoas, as sombras negras correndo. — Você está dizendo que aquilo era...
— Real — conclui ele. — Sim. Não são atores. Não é um estúdio. Acontece em todas as Províncias Exteriores, Cássia. Quando eu fui embora, acontecia cada vez com mais freqüência.
O apito vai soar logo, eu sei. Ele também sabe. Mas eu o alcanço e o abraço aqui na floresta, onde as árvores nos escondem e os chamados dos pássaros disfarçam nossas vozes. A Colina inteira é cúmplice do nosso abraço.
Sou a primeira a se afastar, porque tenho uma coisa para escrever antes que nosso tempo termine. Andei praticando no ar, mas quero gravar na terra.
— Fecha os olhos — digo a Ky e me abaixo, a respiração dele sobre mim, enquanto ele aguarda. — Ali — digo e ele olha o que escrevi.
Amo você. Fico constrangida como se fosse uma criança que acaba de digitar as
primeiras palavras no escrevinhador e as mostra para serem lidas por um garoto da sua turma da Primeira Escola. Minha letra é deselegante, desordenada, não tão fluida quanto a de Ky.
Por que algumas coisas são mais fáceis de escrever do que de dizer? De qualquer maneira, sinto-me inegavelmente corajosa e vulnerável
ali na floresta, com palavras que não posso desdizer. As primeiras palavras que eu escrevi, afora os nossos nomes. Não é exatamente um poema, mas acho que o Vovô compreenderia.
Ky me olha. Pela primeira vez desde a exibição, vejo lágrimas nos seus olhos.
— Você não precisa escrever nada — digo, me sentindo constrangida. — Eu só queria que você soubesse.
— Não quero escrever nada — ele fala. E ele me diz, bem ali na Colina, e de todas as palavras que escondi, guardei e prezei, essas são as que nunca vou me esquecer, as mais importantes de todas.
— Amo você. Relâmpago. Quando ele rasga o céu, branco e causticante, e se dirige
à terra, não pode voltar atrás. Está na hora. Eu sinto. Eu sei. Meus olhos estão nele, os dele em mim,
e nós dois estamos ofegantes, nos olhando, cansados de esperar. Ky fecha os olhos, mas os meus ainda estão abertos. Como vai ser, os lábios dele nos meus? Como um segredo revelado, uma promessa mantida? Como um verso do poema — uma chuva dos meus dias — chuva prateada despencando à minha volta, onde o relâmpago se encontra com a terra?
O apito é soprado lá embaixo e o momento é interrompido. Estamos a salvo.
Por enquanto.
CAPÍTULO 26
DESCEMOS DEPRESSA A COLINA. VISLUMBRAMOS BRANCO POR
entre as árvores e eu sei que não são os pássaros que vimos antes. Estas
figuras brancas não foram feitas para voar.
— Funcionários — digo para Ky, que assente.
Nos apresentamos ao Oficial, que parece um pouco preocupado com
os visitantes que nos aguardam. Volto a me perguntar como foi que ele
arranjou este trabalho. Supervisionar a marcação da grande Colina parece
um desperdício de tempo para alguém do nível dele. Quando me viro, vejo
todas as marcas que a disciplina gravou no seu rosto e percebo, mais uma
vez, que ele não é muito jovem.
Os Funcionários, descubro ao me aproximar, são aqueles que vi antes.
Aqueles que testaram minha capacidade de classificação. A Funcionária
loura assume o comando desta vez. É ela, aparentemente, quem cuida
desta parte do teste.
— Olá, Cássia — diz ela. — Hoje vamos te levar para o local do seu
teste prático de classificação. Você poderia vir conosco agora? — Ela lança
um olhar para o Oficial com um toque de deferência.
— Vá em frente — diz o Oficial, vendo os outros que voltam da Colina.
— Podem ir. Nos encontramos aqui amanhã.
Alguns dos outros caminhantes me olham com interesse, mas sem
preocupação. Muitos de nós aguardam por postos de trabalho definitivos,
e Funcionários sempre parecem ser parte do processo.
— Vamos pegar o trem aéreo — diz a Funcionária loura. — O teste vai
durar apenas algumas horas. Você já deve estar em casa a tempo da sua
refeição noturna.
Caminhamos até a parada do trem aéreo, dois Funcionários à minha
direita e um à minha esquerda. Não há como fugir deles. Não ouso olhar
para Ky. Nem mesmo quando embarcamos no trem que o leva para
Cidade. Quando ele passa
por mim, sua saudação parece perfeita: amistosa, despreocupada. Ele
continua a seguir pelo carro e se senta perto de uma janela. Qualquer
pessoa que observasse ficaria convencida de que ele não sente nada por
mim. Ele quase me convenceu.
Não saltamos do trem aéreo na parada da Prefeitura Municipal, nem
em outras paradas da Cidade. Vamos em frente. Mais e mais
trabalhadores de azul entram, rindo e conversando. Um deles segura Ky
pelos ombros e Ky ri. Não vejo outros Funcionários nem ninguém que use
roupas de estudante, como eu. Nós quatro ficamos sentados juntos, num
mar de azul, o trem se jogando e virando como um rio que corre. Sei que é
difícil lutar contra uma correnteza tão forte quanto a da Sociedade.
Olho pela janela e espero, de todo o coração, que isto não seja o que
eu acho que é. Que não estejamos indo para o mesmo lugar. Que eu não
vá classificar Ky.
Isso é um truque? Estão nos vigiando? E uma pergunta estúpida,
penso com meus botões. Claro que estão nos vigiando.
Prédios cinzentos e volumosos se aglomeram nesta parte da cidade.
Vejo placas, mas o trem aéreo anda rápido demais para me deixar lê-las.
Mas é óbvio onde estamos: no Distrito Industrial.
A frente, vejo Ky se mexer, se levantar. Ele não precisa segurar nas
alças que estão penduradas no teto. Ele se mantém equilibrado enquanto
o trem desliza até parar. Por um momento penso que tudo vai ficar bem.
Os Funcionários e eu vamos continuar, passar por esses prédios cinzentos,
ir além do aeroporto com sua pista de aterrissagem e as bandeiras
vermelhas de trânsito que se sacodem no vento como pipas, como os
sinalizadores na Colina. Vamos prosseguir até os Campos, onde vão
mandar que eu classifique nada mais importante do que uma plantação ou
algumas ovelhas.
Então os Funcionários que estão junto comigo se levantam e não
tenho escolha senão segui-los. Não entra em pânico, digo a mim mesma.
Olha esses prédios. Olha todos esses trabalhadores. Você pode ter que
classificar qualquer coisa, qualquer pessoa. Não vai tirar conclusões
apressadas.
Ky não olha para saber se eu também saltei. Examino suas costas e
suas mãos para ver se consigo encontrar nele traços da mesma tensão que
me atravessa. Mas seus músculos estão relaxados e ele dá passos
uniformes ao caminhar para a lateral do prédio por onde os trabalhadores
entram. Muitos dos outros trabalhadores vestidos com roupas comuns
azuis atravessam a mesma porta. As mãos de Ky estão soltas ao lado do
corpo, abertas. Vazias.
Quando Ky entra no prédio, a Funcionária loura me leva para a frente,
até uma espécie de recepção. Os demais Funcionários lhe entregam
sensores e ela os coloca atrás da minha orelha, nos meus pulsos, sob a
gola da minha camisa. Ela é rápida e eficiente na tarefa. Agora que estou
sendo monitorada, tento relaxar ainda mais. Não quero parecer mais
nervosa do que o normal. Respiro fundo e mudo as palavras do poema.
Digo a mim mesma para entrar docemente, só desta vez.
— Esta é a área de distribuição de alimentos da Cidade — me informa
a Funcionária. — Como mencionamos antes, o objetivo de uma
classificação na vida real é ver se você é capaz de classificar pessoas e
situações reais dentro de certos parâmetros. Queremos ver se você pode
ajudar o Governo a melhorar em funcionalidade e eficiência.
— Entendo — digo, embora não esteja bem certa disso.
— Vamos começar. — Ela empurra as portas e outro Funcionário vem
nos cumprimentar. Ele é, aparentemente, o encarregado do prédio, e as
barras amarelas e laranjas na sua camisa indicam que trabalha num dos
mais importantes Departamentos, o Departamento de Nutrição.
— Quantos você tem hoje? — ele pergunta e percebo que não sou a
única a fazer o teste e a completar classificações reais aqui. A idéia me faz
relaxar um pouco.
— Uma — diz ela —, mas é quem teve a maior nota de todos.
— Excelente — diz ele. — Me avise quando terminar. — Ele se afasta
e fico parada, avassalada pelas visões e pelos cheiros. E pelo calor.
Estamos em uma área aberta, um aposento maior do que o ginásio da
Segunda Escola. Este cômodo parece uma caixa metálica: pisos de metal
salpicados por ralos, parede de concreto pintada de cinza e aparelhos de
aço inoxidável enfileirados nas laterais e dividindo o meio do salão em
fileiras. O vapor se ergue e se agita por toda parte. Existem aberturas no
alto, nas laterais do prédio que se comunicam com a parte de fora, mas
não há janelas. Os aparelhos, as bandejas de alumínio, a água quente
causticante que sai das torneiras: tudo é cinzento.
A não ser pelos trabalhadores vestidos de azul-escuro e suas mãos
queimadas e avermelhadas.
Um apito soa e uma nova leva de trabalhadores entra pela esquerda,
enquanto os outros saem pela direita. Os corpos se afundam, cansados,
pesados. Todos secam a testa e saem do trabalho sem olhar para trás.
— Os novos trabalhadores passaram pela câmera de esterilização para
remover todas as substâncias contaminadoras externas — diz a
Funcionária, em tom casual. — E lá que eles pegam os números e põem
nos uniformes. E deste novo turno que você vai se ocupar.
Ela faz um gesto para o alto e reparo em vários pontos de observação
espalhados pela câmara: pequenas torres de metal com Funcionários no
alto, de pé. Há três torres. A do meio está vazia.
— Vamos lá para cima.
Sigo-a ao subir a escada metálica, do tipo que temos nas paradas do
trem aéreo. Mas esta termina em uma pequena plataforma, onde mal
existe espaço para que nós quatro fiquemos de pé. O Funcionário de
cabelos grisalhos já sua muito, seu rosto está vermelho. Meu cabelo gruda
na nuca. E tudo o que precisamos fazer é ficar ali e observar. Não temos
sequer que trabalhar.
Sabia que o trabalho de Ky era difícil, mas não fazia idéia disso.
Baldes e baldes cheios de recipientes sujos estão junto a pequenos
postos de trabalho com pias e tubos de reciclagem. Os artigos de alumínio
chegam em um fluxo infindável, através de uma grande abertura do outro
lado do prédio, vindos das lixeiras de reciclagem nas nossas residências e
refeitórios. Os trabalhadores usam luvas de proteção transparentes, mas
não compreendo como o plástico ou o látex não derrete na pele deles
enquanto borrifam os recipientes de alumínio com água quente. Então
colocam as peças limpas dentro dos tubos de reciclagem.
Aquilo continua sem parar, um fluxo constante de vapor, água
escaldante e alumínio. Minha mente ameaça travar, se fechar, como
acontece quando estou às voltas com uma classificação particularmente
difícil na tela e me sinto confusa. Mas não são números numa tela. São
pessoas. E Ky.
Por isso, me obrigo a permanecer atenta e concentrada. Me obrigo a
observar aquelas costas curvas, aquelas mãos que queimam e a vastidão
de todos os restos que deslizam, prateados, por trilhos.
Um dos trabalhadores levanta a mão e um Funcionário desce do seu
posto para ir ter com ele. Ele entrega um recipiente de alumínio para o
Funcionário, que faz a leitura do código de barras na lateral, com seu
computador de mão. Depois de um momento, leva o recipiente consigo e
entra num escritório na beirada do grande galpão. Nisso, o trabalhador já
voltou ao trabalho.
A Funcionária me olha como esperasse alguma coisa.
— O que você acha? — pergunta.
Não sei bem o que ela quer, por isso tento contornar.
— Naturalmente, o mais eficiente seria empregar máquinas.
— Não é uma opção — diz a Funcionária, de forma simpática. — A
preparação e distribuição de alimentos precisa ser cuidada por
empregados. Empregados de carne e osso. E regra. Mas gostaríamos de
liberar mais trabalhadores para outros projetos e vocações.
— Não vejo como tornar o trabalho mais eficiente — digo. — Há a
outra resposta óbvia... fazê-los trabalhar mais horas... mas eles já parecem
exaustos... — Minha voz desaparece, uma nuvenzinha de vapor, pequena
demais para fazer diferença.
— Não estamos pedindo para você achar uma solução. — A
Funcionária parece se divertir. — Aqueles que estão em posições mais
elevadas do que a sua já fizeram isso. As horas de trabalho vão aumentar.
As horas de lazer vão acabar. Assim, alguns empregados desta área vão
poder ser usados em outra vocação.
Estou começando a entender e gostaria de não estar.
— Se você não quer que eu classifique as outras variáveis da situação
de trabalho, você quer que eu...
— Classifique as pessoas — diz ela. Sinto um enjôo tomar conta de
mim. Ela me entrega um terminal de mão.
— Você tem três horas para observar. Registre os números dos
trabalhadores que você acha que são mais eficientes, aqueles que
deveriam ser enviados para trabalhar em um projeto alternativo.
Olho os números atrás das camisas dos trabalhadores. E exatamente
como classificar na tela. Devo procurar os padrões mais velozes. Eles
querem ver se a minha mente registra automaticamente aqueles que se
movimentam mais rápido. Este trabalho podia ser feito por computadores,
e provavelmente isso já aconteceu. Mas agora querem ver se eu também
consigo fazê-lo.
— E Cássia — diz a Funcionária, já descendo a escada de metal. Olho
para ela. — Sua classificação vai valer. Isso é parte do teste. Querem ver se
você consegue tomar boas decisões sabendo que elas terão conseqüências
reais.
Ela vê o choque no meu rosto e prossegue. Percebo que está tentando
ser gentil.
— E só um turno de um grupo de trabalhadores braçais, Cássia. Não
se preocupe. E só fazer o melhor que puder.
— Mas qual é o outro projeto? Eles vão ter que sair da cidade? A
Funcionária parece surpresa.
— Não podemos responder. Não é relevante para a classificação.
O Funcionário grisalho, ainda respirando com dificuldade, se vira para
ver o que está acontecendo. Ela faz um sinal para ele de que está
descendo, e me diz com delicadeza.
— Os melhores trabalhadores conseguem postos de trabalho
melhores, Cássia. E tudo o que você precisa saber.
Não quero fazer isso. Por um momento, penso em jogar o terminal de
mão em uma das pias, deixar que se afogue.
O que Ky faria se ele estivesse aqui em cima?
Não jogo o terminal. Respiro fundo. O suor desce pelas minhas costas
e parte do meu cabelo cai sobre os meus olhos. Afasto o cabelo com uma
mão, endireito o corpo e olho para os trabalhadores. Meus olhos voam de
um lugar para o outro. Tento não ver os rostos, só os números. Procuro
pelos padrões rápidos e pelos lentos. Começo a classificar.
A parte mais perturbadora da situação é que eu sou boa, muito boa,
nisso. Assim que digo a mim mesma para fazer o que Ky teria feito, não
olho para trás. Durante a classificação, observo ritmo, padrões, e procuro
por resistência. Vejo os mais lentos e mais constantes, que fazem mais do
que se poderia imaginar. Vejo os rápidos, ágeis, que são os melhores de
todos. Vejo os que não conseguem manter o ritmo. Vejo as mãos
avermelhadas se mexerem em meio ao vapor e vejo a pilha de peças de
alumínio avançando em seu fluxo prateado, deixando de ser suja e
passando a ser limpa. Mas não vejo gente. Não vejo rostos.
Quando às três horas estão quase no fim, concluo a classificação e sei
que fiz um bom trabalho. Sei que classifiquei os melhores deste grupo, de
acordo com os números.
Mas não consigo resistir. Olho para o número daquele que está bem
no meio, aquele que está exatamente entre os melhores e os piores do
grupo. Levanto os olhos. E o número nas costas de Ky.
Quero rir e chorar. E como se ele estivesse me enviando uma
mensagem. Ninguém se encaixa tão bem quanto ele. Ninguém mais
domina tão bem a arte de ser exatamente mediano. Por alguns segundos,
permito-me observar o garoto de cabelos escuros, com roupas comuns
azuis. Meu instinto me diz para colocá-lo no grupo dos mais eficientes. Sei
que é lá que ele deveria estar. E o grupo que ganha uma nova vocação.
Talvez precisem sair da Cidade, mas pelo menos ele não ficaria
encurralado aqui para sempre. Ao mesmo tempo, não sei se consigo fazer
uma coisa dessas. Como seria minha vida se ele fosse embora?
Me permito imaginar que desço aquela escada e que abraço Ky no
meio de todo o calor e barulho. Depois, imagino algo ainda melhor.
Imagino que caminho até ele, pego sua mão e o levo para fora, para a luz e
o ar. Eu posso fazer isso. Se classificá-lo no grupo dos melhores, ele não vai
mais precisar fazer este trabalho. A vida dele vai melhorar. Eu posso ser a
pessoa que vai mudar tudo para ele. E subitamente aquele desejo, o
desejo de ajudá-lo, é ainda maior do que o desejo egoísta de mantê-lo por
perto.
Mas penso no garoto da história que ele me entregou. O garoto que
fez tudo o que podia pra sobreviver. O que diriam os instintos do garoto?
Ele ia querer que eu o colocasse no grupo inferior.
— Está quase terminando? — pergunta a Funcionária. Ela espera nos
degraus de metal, alguns metros abaixo. Eu faço que sim. Ela sobe na
minha direção, e eu separo outro número de alguém que está perto do
meio, para que não saibam que estou olhando pra Ky.
Ela fica ao meu lado, olhando os números e as pessoas.
— Os trabalhadores intermediários são os mais difíceis de se
classificar
— diz ela, com simpatia na voz. — É sempre difícil saber o que fazer.
Faço um sinal positivo com a cabeça, mas ela não acabou.
— Trabalhadores braçais como esses geralmente não chegam aos 80
anos
— diz ela. A voz baixa de tom. — Muitos têm condição de Aberração,
você sabe. A Sociedade não se preocupa tanto com que cheguem à idade
ideal. Muitos morrem cedo. Não terrivelmente cedo, é claro. Não como
era na época anterior à Sociedade, nem como é nas Províncias Exteriores.
Mas aos 60, 70. As vocações de nível mais baixo no descarte de nutrição
são particularmente perigosas, apesar de todas as precauções que nós
tomamos.
— Mas... — O espanto no meu rosto não a surpreende, e percebo que
isto também é parte do teste. Encontrar um fator desconhecido no meio
de uma classificação até então clara, bem no momento em que você acha
que acabou. E me pergunto: O que está havendo aqui? Por que os riscos
são tão grandes para um teste de classificação?
Alguma coisa está acontecendo, maior do que eu, maior do que Ky.
— Tudo isso é informação confidencial, naturalmente — diz a Funcio-
nária. Depois olha para o seu terminal de mão. — Você tem dois minutos.
Preciso me concentrar, mas minha mente está envolvida em uma clas-
sificação própria, fazendo perguntas e organizando-as para encontrar uma
resposta:
Por que os trabalhadores morrem cedo?
Por que o Vovô não podia compartilhar a comida do prato no
Banquete
Final?
Por que tantas Aberrações trabalham na limpeza da comida? Eles
envenenam a comida dos idosos.
Está tudo claro agora. Nossa Sociedade se orgulha de nunca matar
ninguém, de ter eliminado a pena de morte, mas o que vejo aqui e o que
ouvi sobre as Províncias Exteriores me diz que encontraram outra forma
de cuidar das coisas. Os fortes sobrevivem. Seleção natural. Com a ajuda
dos nossos Deuses, é claro — os Funcionários.
Se eu tenho que bancar Deus ou anjo, então tenho que fazer o melhor
que posso por Ky. Não posso deixar que morra cedo e não posso deixá-lo
passar a vida neste lugar. Tem que haver algo melhor para ele. Ainda
tenho suficiente fé na minha Sociedade para pensar assim. Vejo muita
gente levar vidas boas e quero uma dessas vidas para ele. Mesmo que eu
não possa ser parte dela.
Classifico Ky no grupo superior e fecho o terminal de mão como se a
decisão não tivesse me custado nada.
Por dentro, eu grito.
Espero ter tomado a decisão correta.
— Me conta mais sobre o lugar de onde você veio — digo a Ky na
Colina, no dia seguinte, esperando que ele não ouça o desespero na minha
voz, esperando que ele não me pergunte sobre a classificação. Preciso
saber mais da sua história. Preciso saber se fiz a coisa certa. A classificação
mudou as coisas entre nós. Nos sentimos vigiados, até aqui, no meio das
árvores. Falamos baixo. Não olhamos para o outro por tempo demais.
— Lá é vermelho e laranja. Cores que você não vê muito por aqui.
— E verdade — digo e tento pensar em coisas que são vermelhas.
Alguns dos vestidos no Banquete do Par. O fogo nos incineradores.
Sangue.
— Por que é que há tanto verde, marrom e azul aqui? — pergunta ele.
— Talvez por serem cores de crescimento e boa parte da nossa
Província é rural — digo. — Você sabe. Azul é a cor da água, marrom, do
outono e da colheita. E verde é a cor da primavera.
— As pessoas sempre dizem isso — diz Ky. — Mas o vermelho é a pri-
meira cor da primavera. E a verdadeira cor do renascimento. Do começo.
Ele tem razão, eu percebo. Penso na cor avermelhada dos pequenos
brotos fechados nas árvores. No vermelho das mãos dele na véspera, no
centro de descarte de nutrição, e no novo começo que espero ter dado
para ele.
CAPÍTULO 27
AVISO.AVISO. A LUZ NO RASTREADOR PISCA E AS PALAVRAS
aparecem na tela. Você chegou à velocidade máxima recomendada para esta sessão de exercícios.
Aperto os números para ir ainda mais rápido. Aviso. Aviso. Você excedeu sua freqüência cardíaca ideal. Geralmente, quando me esforço demais no rastreador, eu paro a
tempo. Levo tudo ao limite, mas nunca salto. Mas se chegar ao limite muitas vezes, vou ser empurrada ou despencar.
Talvez esteja na hora de saltar. Mas não posso fazer isso sem arrastar todas as pessoas que amo junto comigo.
Aviso. Aviso. Estou indo rápido demais. Estou cansada demais. Sei disso. Mas a
queda ainda me surpreende. Meu pé escorrega e antes que me dê conta, caí, caí do rastreador e a
esteira ainda continua ligada e queima, queima, queima minha pele. Fico ali por um momento, chocada, queimando e então rolo para fora o mais rápido que consigo. O rastreador continua, mas vai reparar minha ausência num instante. Vai parar e então vão saber que não consegui manter o ritmo. Mas se eu voltar bem rápido, ninguém precisa saber do que aconteceu. Dou uma olhada na minha pele, arranhada e vermelha por causa do rolamento da esteira. Vermelha.
Me levanto rápido. Tensiono os músculos, dou um salto no momento exato e subo no rastreador já correndo. Corro. Corro. Corro corro corro.
Sai sangue dos meus joelhos e cotovelos e tenho lágrimas nos olhos, mas vou em frente. As roupas comuns vão esconder os machucados
amanhã e ninguém vai saber que eu caí. Ninguém vai saber do que aconteceu antes que seja tarde demais.
Quando volto para cima depois da corrida, meu pai gesticula para o terminal.
— Bem a tempo — diz ele. — Tem comunicação para você. Os Funcionários da classificação aguardam na tela.
Os Funcionários da classificação aguardam na tela. — Sua classificação parece excelente — diz a Funcionária loura. —
Parabéns por ter passado no teste. Tenho certeza de que, em breve, você vai ter notícias relativas ao seu posto de trabalho.
Faço um sinal com a cabeça, o suor pingando e o sangue dos cortes descendo por meus joelhos e braços. Ela só consegue ver o suor, digo a mim mesma. Puxo as mangas um pouco para ter certeza de que cobrem tudo, para que ninguém saiba que estou machucada e ensangüentada.
— Obrigada. Estou ansiosa. — Me afasto, certa de que a comunicação via terminal está encerrada, mas a Funcionária tem uma última pergunta para mim.
— Você tem certeza de que não gostaria de fazer nenhuma alteração antes da classificação ser implementada?
Minha última chance para voltar atrás. Eu quase falo. Memorizei o nú-mero dele. Seria tão fácil. Então me lembro do que ela disse a respeito da expectativa de vida e as palavras se transformam em pedras na minha boca e não consigo pronunciá-las.
— Cássia? — Tenho certeza. Me afasto do terminal e quase atropelo meu pai. — Parabéns — diz ele. — Desculpa. Espero que você não se incomode
por eu ter ouvido. Não disseram que era uma comunicação particular. — Tudo bem — digo. E então pergunto: — Você já pensou... — Faço
uma pausa, sem saber como dizer isso. Como perguntar a ele se teve dúvidas em relação a minha mãe. Se já desejou outra pessoa.
— Se eu já pensei no quê? — ele me pergunta. — Deixa para lá — digo, porque acho que já sei a resposta. É claro que
ele nunca teve dúvidas. Eles se apaixonaram imediatamente e nunca olharam para trás.
Entro no quarto e abro o armário. O compacto e o poema já estiveram aqui. Agora o armário está vazio, a não ser pelas roupas, sapatos e o pequeno retalho emoldurado do meu vestido. Não sei onde está a caixa de prata e entro em pânico. Será que eles levaram, acidentalmente, quando recolheram os artefatos? Não, claro que não. Eles sabem o que são as caixas de prata. Nunca as confundiriam com algo do passado. As caixas do Banquete do Par pertencem claramente ao futuro.
Estou revirando meus poucos bens, quando minha mãe entra no quarto. Ela voltou ontem, tarde da noite, da terceira viagem para fora de Oria.
— Está procurando alguma coisa? — pergunta ela. Eu me endireito. — Já achei — digo, segurando o fragmento de verde sob o vidro. Não
quero dizer a ela que não consigo encontrar a caixa do Banquete do Par. Ela pega o quadrado de mim e o segura, o tecido verde do vestido
refletindo a luz. — Você sabia que existiam janelas de vidro colorido? — pergunta ela.
— As pessoas colocavam em lugares sagrados. Ou nas próprias casas em que moravam.
— Vitrais — digo. — Papai me falou disso. — Soa realmente lindo, a luz atravessando a cor, janelas como forma de arte ou tributo.
— E verdade, claro — diz ela, rindo de si mesma. — Finalmente entre-guei o relatório e agora estou tão cansada que não consigo pensar muito bem.
— Está tudo bem? — pergunto. Quero perguntar o que ela quis dizer em relação às árvores naquele dia, porque achou que o corte era um aviso para ela, mas acho que não quero saber. Depois da classificação real, sinto que não suporto mais qualquer pressão. Já me sinto como se soubesse demais. Além do mais, minha mãe parece mais feliz agora do que em várias semanas, e não quero que isso mude.
— Acho que tudo vai ficar bem — diz ela. — Que bom — digo. Ficamos as duas em silêncio por um momento,
olhando para o vestido sob o vidro. — Você vai precisar viajar de novo?
— Não, acho que não — diz ela. — Acho que acabou. Espero. — Ela ainda parece exausta, mas percebo que a entrega do relatório tirou um peso dos seus ombros.
Tiro o quadro dela, e quando faço isso, tenho uma idéia. — Posso ver o pedaço do seu vestido? — A última vez em que olhei
para ele foi na noite anterior ao meu Banquete do Par. Eu estava um pouco nervosa e ela me trouxe o fragmento do vestido e contou mais uma vez a história deles e o final feliz. Mas tanta coisa mudou desde então.
— Claro — diz ela, e eu a sigo até o quarto. O pedacinho de tecido emoldurado fica dentro de uma prateleira no armário que ela divide com meu pai, junto com duas caixas de prata — a dela e a do papai — que guardaram os microcartões e, depois, os anéis para o Contrato. Os anéis são só parte do cerimonial, naturalmente — ninguém fica com eles —, e os microcartões são devolvidos para os Funcionários na celebração do Contrato. Portanto, as caixinhas de prata dos meus pais estão vazias.
Pego o fragmento do vestido dela e seguro. O vestido era azul e graças às técnicas de preservação, o cetim continua vivo e belo na moldura.
Eu o coloco junto ao meu, no peitoril da janela. Juntos, lado a lado. Imagino que se pareçam um pouco com um vitral. A luz por trás os enche de vida, e posso quase imaginar que poderia olhar através das cores e ver um mundo que se tornou belo e diferente.
Minha mãe compreende. — E — diz ela. — Imagino que as janelas fossem mais ou menos assim.
Quero contar tudo para ela, mas não consigo. Agora não. Estou frágil demais. Estou aprisionada em vidro e quero me libertar e respirar fundo, mas tenho muito medo de que vá doer.
Minha mãe põe o braço em volta de mim. — Você pode me dizer o que está errado? — pergunta com
delicadeza. — E alguma coisa relativa ao seu Par? Pego o fragmento do meu vestido e tiro da janela, e minha mãe fica ali
sozinha. Não confio nas minhas palavras, por isso sacudo a cabeça. Como poderia explicar para minha mãe, tão feliz com o Par dela, tudo o que aconteceu? Tudo o que eu arrisquei? Como posso explicar que eu faria tudo isso de novo? Como posso dizer que odeio o sistema que criou a vida dela, o amor dela, a família dela? Que me criou?
Em vez disso, eu pergunto. — Como é que você sabe? Ela alcança a moldura dela e também a retira. — A princípio, eu via que você estava se apaixonando cada vez mais,
mas não me preocupei porque achei que o seu Par era perfeito para você. Xander é maravilhoso. E você talvez pudesse permanecer em Oria, ou aqui perto, pois as duas famílias moram aqui. Como mãe, eu não poderia imaginar uma situação mais perfeita.
Ela faz uma pausa, olhando para mim. — Depois, fiquei ocupada demais com o trabalho. Só hoje percebi que
eu estava errada. Você não estava pensando em Xander. Não diz isso, imploro a ela com. o olhar. Não diz que você sabe que eu
estou apaixonada por outra pessoa. Por favor. — Cássia — ela me diz, e o amor nos seus olhos é tão puro e
verdadeiro que é o que faz com que suas palavras me firam profundamente, porque sei que ela quer o melhor para mim, no fundo do seu coração. — Eu sou casada com uma pessoa maravilhosa. Tenho dois filhos lindos e um trabalho que eu adoro. E uma vida boa. — Ela estica para mim o pedaço de cetim azul. — Você sabe o que aconteceria se eu quebrasse esse vidro? Faço um sinal com a cabeça.
— O tecido se desintegraria. Ficaria arruinado. — E — diz ela, e então, parece que está falando para si mesma. —
Ficaria arruinado. Tudo seria arruinado. — Ela põe a mão sobre o meu braço. — Você se lembra do que eu disse no dia em que cortaram as árvores?
Claro que sim. — Que era um aviso para você? — Sim. — Ela cora. — Não era verdade. Eu estava tão preocupada que
não agi racionalmente. Claro que não era um aviso para mim. Não era um aviso para ninguém. As árvores simplesmente precisavam ser cortadas.
Percebo na sua voz o quanto ela quer acreditar na verdade do que está dizendo, em como ela quase acredita. Querendo ouvir mais, mas sem querer pressioná-la, eu pergunto.
— O que havia de tão importante no relatório? Qual a diferença para os outros relatórios que você já fez?
Minha mãe suspira. Não me responde diretamente. Em vez disso, fala: — Eu não sei como os trabalhadores do centro médico agüentam
quando estão cuidando de pessoas ou ajudando bebês a nascerem. É difícil demais ter a vida de outras pessoas nas mãos.
Minha pergunta silenciosa paira no ar: Como assim? Ela faz uma pausa. Parece estar decidindo se vai ou não me responder, e fico completamente imóvel até que ela fale de novo. Distraidamente, ela pega o fragmento do vestido e começa a limpar o vidro.
— Alguém lá de Grandia e depois noutra Província relatou que umas plantas estranhas estavam aparecendo. Em Grandia, foi no Arboreto, num campo experimental, desocupado há muito tempo. O outro caso era nos Campos da segunda província. O governo pediu que eu e outros dois viajássemos aos terrenos para fazer relatórios sobre as plantas. Queriam saber duas coisas: se eram plantas adequadas para a alimentação. E se os cultivadores estariam planejando uma rebelião.
Prendi a respiração. E proibido cultivar alimentos a menos que o Governo tenha especificamente ordenado. Eles controlam a comida. Eles nos controlam. Algumas pessoas sabem como plantar alimentos, algumas sabem como colhê-los. Algumas sabem processá-los. Outras, cozinhá-los. Mas ninguém sabe fazer tudo. Não sobreviveríamos sozinhos.
— Nós três concordamos que as plantas podiam ser usadas como alimento. O cultivador do Arboreto tinha uma plantação inteira de Renda da Rainha Anne. — O rosto da minha mãe muda de repente, se ilumina. — Ah, Cássia, era tão lindo. Só tinha visto um raminho aqui e ali. Lá tinha um terreno todo coberto, sacudindo ao vento.
— Cenoura selvagem — digo, lembrando. — Cenoura selvagem — concorda ela com a voz triste. — O segundo
agricultor tinha uma plantação de uma coisa que eu nunca tinha visto antes, flores brancas mais bonitas ainda do que as primeiras. Lírios de Sego era o nome que eles davam. Um dos outros que estavam comigo sabia o que eram. O bulbo é comestível. Os dois plantadores negaram saber que era possível usar as plantas como alimento: os dois afirmavam que estavam interessados nas flores. Insistiam que as plantas eram novidade para eles e que tinham sido cultivadas a fim de pesquisa, por causa da floração.
A voz, que estava suave e triste desde que ela mencionara o campo de Renda da Rainha Anne, ficou mais forte.
— Nós três discutimos durante todo o percurso de volta, depois daquela segunda viagem. Um especialista estava convencido que os agricultores estavam falando a verdade. O outro achava que estavam mentindo. Apresentaram relatórios conflitantes. Todo mundo ficou esperando pelo meu. Pedi para fazer uma última viagem, para ter certeza. Afinal de contas, os agricultores vão ser Transferidos ou Reclassificados com base nos nossos relatórios. O meu é que definiria o que iria acontecer.
Ela para de limpar o vidro e olha para o pedaço de pano azul, como se houvesse alguma coisa escrita ali para ser lida. E percebo que, para ela, existe. Aquele pano azul representa a noite em que ela recebeu meu pai como Par. Ela lê a vida dela, a vida que ela adora, naquele quadrado de cetim azul.
— Eu sabia o tempo todo — sussurra. — Sabia quando vi o medo nos olhos deles, quando nós chegamos da primeira vez. Eles sabiam o que estavam fazendo. E uma coisa que o cultivador de Renda da Rainha Anne me disse na segunda visita ainda me deixou mais convencida da verdade. Ele agia como se nunca tivesse visto a planta fora da tela do terminal até semear, mas ele cresceu numa cidade perto da minha e eu sabia que eu já tinha visto a flor por lá, crescendo no mato.
"Mas eu ainda hesitava. E depois, quando voltei para casa e vi todos vocês, percebi que eu tinha que contar a verdade. Tinha que cumprir meu dever com a Sociedade e garantir a nossa felicidade. E manter todos nós em segurança."
A última palavra, segurança, é tão suave e baixa quanto o rufar de seda.
— Eu entendo — digo a ela, e é verdade. E o poder que ela tem sobre mim é bem maior do que o dos Funcionários, porque eu a amo e admiro.
De volta ao quarto, encontro a caixa de prata no lugar onde ela caiu, dentro de uma das minhas botas de inverno. Abro e tiro de dentro o microcartão com todas as informações de Xander e as orientações sobre o namoro. Se não tivesse havido um erro, eu só teria visto o rosto dele e tudo teria sido normal, nada disso teria ocorrido. Eu não teria me
apaixonado por Ky e a escolha, na classificação, não teria sido tão difícil. Tudo teria ficado bem.
Ainda dá para ficar tudo bem. Se a classificação for o que eu suspeito, se Ky partir para uma vida melhor, será que eu vou conseguir juntar os pedaços da minha vida aqui? O maior deles, o Par com Xander, não seria difícil de servir E por amá-lo, preciso contar a ele sobre Ky. Não me importo de roubar da Sociedade, mas não vou roubar mais nada de Xander. Mesmo se doer, preciso contar. Pois de um jeito ou de outro, não importa a vida que eu construir, ela precisa ser erguida sobre a verdade.
Pensar em contar para Xander dói quase tanto quanto pensar em perder Ky. Rolo para um lado e seguro com força o recipiente de comprimidos na palma da minha mão,de base para uma vida inteira. Eu poderia amá-lo. Eu amo.
Pensa em alguma outra coisa. Lembro da primeira vez em que vi Ky no alto daquela pequena colina,
recostado, com o sol no rosto, e percebo que foi ali que me apaixonei por ele. No fundo, eu não menti para ele. Eu não o vi de forma diferente por ter visto o rosto dele na tela do terminal, na manhã seguinte ao Banquete do Par. Eu o vi de forma diferente porque o vi ao sol, com a guarda baixa por um momento, olhos da cor do céu à noite, antes de escurecer. Eu o vi me vendo.
Deitada na cama, com o corpo e a alma machucados e cansados, percebo que os Funcionários têm razão. Assim que você deseja alguma coisa, tudo muda. Agora eu quero tudo. Mais e mais e mais. Quero escolher meu trabalho. Casar com quem eu escolher. Comer torta no café da manhã e correr numa rua de verdade, não num rastreador. Ir rápido quando quiser, e devagar quando quiser. Decidir quais são os poemas que eu quero ler e quais as palavras que quero escrever. Há tanta coisa que eu quero. Sinto isso com tanta intensidade que sou água, um rio de quereres, recolhido na forma de uma garota chamada Cássia.
Mais do que tudo, eu quero Ky. — Nosso tempo está acabando — diz Ky. — Eu sei. — Também ando contando os dias. Mesmo se o novo posto
de trabalho de Ky for aqui na Cidade, as atividades de lazer de verão estão quase encerradas. Não vou mais vê-lo com tanta freqüência. Me permito
sonhar por alguns segundos... e se esse novo posto lhe permitir ter mais tempo? Ele poderia aparecer em todas as atividades de sábado à noite.
— Só temos mais algumas semanas de trilha. — Não é isso que eu quero dizer — responde ele, chegando perto.
—Você não sente? Alguma coisa está mudando. Alguma coisa está acontecendo.
―Claro que sinto. Para mim, tudo está mudando. Os olhos dele são cautelosos, como se ainda se sentisse vigiado. Alguma coisa grande, Cássia— diz ele, que então cochicha baixinho.
— Acho que a Sociedade está tendo problemas com a guerra na fronteira.
O que faz você achar isso? ― Tenho uma sensação — diz ele. — Pelo que você me contou sobre
a sua mãe. Pela falta de Funcionários nas horas de recreação livre. E vai ter mudanças no trabalho. Eu percebo.
Ele dá uma olhada para mim e eu abaixo a cabeça. — Você quer me contar por que esteve lá? — pergunta
delicadamente. Engulo em seco. Andei me perguntando quando ele faria essa pergunta.
— Era uma classificação em condições reais. Precisei classificar trabalha dores em dois grupos.
— Entendo — diz ele, e espera para saber se vou dizer mais alguma coisa. E eu gostaria de poder dizer. Mas não consigo botar as palavras para fora.
Em vez disso digo: — Você não me deu mais nada da sua história. O que aconteceu
depois que os Funcionários vieram te pegar? Quando isso aconteceu? Eu sei que não faz muito tempo porque... — Minha voz vacila.
Ky amarra um pano vermelho na árvore, lenta e metodicamente, e então levanta o olhar. Depois de anos vendo apenas emoções superficiais nele, as novas e mais profundas às vezes me assustam. A expressão no rosto dele não é uma que eu já tenha visto antes.
O que houve? — pergunto,
― Eu estou com medo — ele diz com simplicidade, — Do que você vai pensar.
Sobre o quê? O que houve? — Depois de tudo pelo que ele passou, Ky tem medo do que eu possa vir a achar?
Foi na primavera. Vieram falar comigo no trabalho, me levaram para uma sala. Perguntaram se eu já tinha imaginado como seria a minha vida se eu não fosse uma Aberração. — O queixo de Ky fica tenso e sinto pena dele. Ele ergue os olhos, vê aquela expressão no meu rosto, e seu queixo fica ainda mais determinado. Ele não quer minha piedade, por isso viro o rosto para o outro lado, para continuar a ouvir.
— Eu disse que nunca tinha pensado muito no assunto. Que não me preocupava com coisas que eu não podia mudar. Então eles me disseram que tinha havido um engano. Os meus dados tinham sido incluídos na seleção de Pares.
— Seus dados? — pergunto, surpresa. Mas a Funcionária me disse que era um erro no microcartão, o retrato de Ky estava onde não deveria estar. Ela me disse que ele não tinha sido incluído na seleção.
Ela mentiu. O erro foi bem maior do que ela admitiu. Ky continua a falar.
— Eu não sou sequer um cidadão com todos os direitos. Disseram que todo o incidente foi completamente irregular. — Ele sorri, um amargo movimento da boca que dói de ver. — Me mostraram um retrato. A garota que teria sido meu Par se eu não fosse o que eu sou. — Ky engole em seco.
— Quem era? — pergunto. Minha voz parece áspera, rude. Não diz que era eu. Não diz que era eu, porque eu vou saber que você me viu porque te mandaram olhar.
— Você — diz ele. E agora eu vejo. O amor de Ky por mim, que achei que era puro e into-
cado por qualquer Funcionário, dados ou seleção de Pares, não é assim. Eles mexeram até nisso.
Sinto como se alguma coisa estivesse à beira da morte, arruinada, sem esperança de conserto. Se os Funcionários orquestraram todo o nosso romance, a única coisa na minha vida que eu achei que tinha acontecido apesar deles... Não consigo terminar o pensamento.
A floresta em volta se transforma em borróes de verde e, sem as bandeiras vermelhas que marcam o caminho, eu não saberia como descer. Do jeito que estou, eu as rasgo com selvageria, arrancando-as dos galhos.
— Cássia — ele diz atrás de mim. — Cássia. O que isso importa? Sacudo a cabeça
— Cássia — ele me chama. — Você também está escondendo algo de mim.
Um apito agudo e nítido vem de algum ponto abaixo. Chegamos tão longe, mas não conseguimos alcançar o topo.
— Achei que você ia almoçar no Arboreto — diz Xander. Estamos sentados juntos no refeitório da Segunda Escola.
— Mudei de idéia — digo a ele. — Queria comer aqui hoje. — Os em-pregados de nutrição franziram a testa para mim quando pedi uma das refeições extras que eles mantêm à mão, mas depois de verificar meus dados, me entregaram a refeição sem fazer mais comentários. Devem ter visto que eu raramente faço isso. Ou talvez haja outro aviso nos meus dados que eu não consigo me lembrar agora. Não depois da revelação de Ky.
Percebo quanta comida há no meu recipiente desta vez, em se tratando de uma porção genérica, que não havia sido destinada especificamente para mim. Minhas porções estão diminuindo. Qual o objetivo disso? Estou gorda demais? Olho meus braços e pernas, fortalecidos por tantas trilhas. Acho que não. E percebo agora como meus pais devem andar distraídos. Sob circunstâncias normais, teriam percebido minhas porções menores e teriam muito a dizer para o pessoal da nutrição sobre este assunto.
As coisas andam erradas por toda parte. Eu levanto da cadeira. — Você vem comigo? Xander dá uma olhada no relógio. — Para onde? As aulas já vão começar. — Eu sei — digo. — Não vamos longe. Por favor. — Tudo bem — diz Xander, me olhando com um ar intrigado.
Eu o conduzo pelo corredor até a área das salas de aula e abro a porta no final. Lá, numa pequena área que se parece um pátio, fica o lago de botânica de Ciências Aplicáveis. Xander e eu estamos a sós.
Eu preciso contar para ele. E Xander. Ele merece saber sobre Ky e merece ouvir isso de mim. Não de um Funcionário numa área verde, hoje ou em qualquer outro dia.
Respiro fundo e olho para o lago. Não é azul como a piscina onde nadamos. A água tem um tom verde amarronzado sob a superfície prateada, desordenada pela vida.
— Xander — digo, com a voz tão baixa como se estivéssemos escondidos nas árvores na Colina. — Eu tenho uma coisa para te contar.
— Estou ouvindo — diz ele, à espera, me olhando. Sempre firme. Sempre Xander.
É melhor falar rápido, antes que eu descubra ser incapaz de falar. — Eu acho que estou me apaixonando por outra pessoa. — Falo tão
baixo, mal consigo ouvir minha voz. Mas Xander entende. Quase antes de eu ter terminado, ele sacode a cabeça e diz "Não",
levantando a mão para me impedir de dizer mais. Mas não é nenhum desses gestos ou aquela palavra que me faz ficar em silêncio. É a dor nos seus olhos. E o que eles estão dizendo não é Não, mas sim Por quê?
— Não — Xander repete, se afastando de mim. Não posso suportar aquilo, por isso vou para a frente dele, tento vê-lo
também. Ele não me olha por um longo intervalo. Não sei o que dizer. Não ouso tocá-lo. Tudo o que consigo fazer é ficar ali, esperando que ele me olhe.
Quando ele me olha, a dor ainda está ali. E há algo mais, também. Algo que não parece surpresa. Parece
reconhecimento. Será que uma parte dele sabia o que estava acontecendo? Foi por isso que ele desafiou Ky nos jogos?
— Sinto muito — digo, apressada. — Você é meu amigo. Também te amo. — E a primeira vez que digo aquelas palavras para ele e elas saem completamente erradas. O som, apressado e tenso, faz com que pareçam menos do que são.
— Você também me ama? — diz Xander, a voz fria. — Que jogo é esse que você está jogando?
— Eu não estou jogando — sussurro. — Amo você. Mas é diferente. Xander não diz nada. Uma risada histérica aflora dentro de mim. E
exatamente igual à última vez em que tivemos uma briga e ele se recusou a falar comigo. Anos antes, quando decidi que não gostava mais de jogar como antes. Xander ficou furioso.
— Mas ninguém joga como você — disse ele. E depois, quando eu não cedi, ele parou de falar comigo. Eu continuei sem jogar.
Levou duas semanas para que nossa paz fosse negociada, naquele dia em que ele me viu pular na piscina do trampolim, depois que o Vovô pulou. Cheguei à superfície amedrontada e animada e Xander nadou para me parabenizar. Na emoção do momento, tudo foi esquecido.
O que o Vovô pensaria deste salto que eu estou dando? Seria agora que ele me mandaria segurar a borda com toda a força? Diria para eu me agarrar às beiradas da tábua até meus dedos ficarem ensangüentados e arranhados? Ou diria que eu podia me soltar?
— Xander. Os Funcionários fizeram um jogo comigo. Na manhã seguinte ao Banquete do Par, eu pus o microcartão no terminal. O seu rosto apareceu na tela e aí desapareceu — engulo em seco. — E outro rosto apareceu no lugar. O do Ky.
— Ky Markham? — Xander pergunta, sem acreditar. — Sim. — Mas Ky não é o seu Par — diz ele. — Não pode ser, porque... — Por que não? — pergunto. Será que Xander sabe da condição de
Ky, afinal de contas? Como? — Porque eu sou seu Par — Xander diz. Por um longo momento, nenhum de nós fala. Xander não desvia o
olhar e acho que não consigo suportar. Se tivesse um comprimido verde na boca neste momento, eu o morderia, experimentaria o amargor antes da calma. Penso naquele dia no refeitório, quando ele me disse que Ky era digno de confiança. Xander acreditava naquilo. E acreditava que podia confiar em mim.
O que ele pensa de nós dois agora? Xander se inclina para frente. Olhos azuis que prendem os meus, mão
que paira perto da minha. Fecho os olhos, para afastar a dor do seu olhar e para me impedir de levantar a mão e entrelaçar os dedos nos dele, me
aproximar e encontrar seus lábios. Abro os olhos e olho de novo para Xander.
— Eu também apareci na tela, Cássia — diz ele, em voz baixa. — Mas foi ele que você escolheu ver. — E depois, rápido como um jogador que faz a última jogada, se afasta e passa pelas portas. Me deixa para trás.
Não no início! Quero dizer para ele. E eu ainda vejo você! Uma a uma, as pessoas com quem eu posso conversar se foram. Vovô. Minha mãe. E agora, Xander.
Você é suficientemente forte para não precisar disso, o Vovô me disse, se referindo ao comprimido verde.
Mas, Vovô, será que eu sou suficientemente forte para ir em frente sem você? Sem Xander?
O sol brilha baixo sobre mim no lugar onde escolhi ficar. Não há árvores, nem sombra, nem altura que me permita olhar para o que eu fiz. E mesmo se houvesse, as lágrimas não me deixariam enxergar.
CAPÍTULO 28
EM CASA, NAQUELA NOITE, TIRO O COMPRIMIDO VERDE DO
recipiente de novo. Eu sei o que ele pode fazer por mim. Eu vi o que fez por Em. Vai me deixar calma. Aquela palavra, calma., soa impossivelmente bela, gloriosamente descomplicada. Uma palavra suave como água, uma palavra que pode tirar a força do medo, envernizá-lo, torná-lo reluzente. Calma. Doçura.
Devolvo o comprimido ao recipiente e o fecho, aproximando de mim outro tipo de verde. O pedaço emoldurado do vestido por trás do vidro. Enrolo minha mão numa das minhas meias e aperto com força. Um estalo discreto. Levanto a mão.
Quebrar algo é mais difícil do que se imagina. Me pergunto se a Sociedade está pensando a mesma coisa de mim. Baixo novamente a mão, empurro com mais força.
Seria mais fácil se ninguém me observasse, se ninguém pudesse me ouvir. Se estas paredes não fossem tão finas e minha vida tão transparente, eu poderia jogar o vidro contra a parede, esmigalhá-lo com uma pedra, destruí-lo com descaso e barulho. Acho que faria um som cintilante ao se quebrar. Gostaria de vê-lo se partir num milhão de pedaços e reluzir ao cair. Mas preciso ser cautelosa.
Outra rachadura comprida e prateada corta a superfície do vidro. Sob ela, o tecido verde e liso permanece intocado. Cuidadosamente, separo os cacos, levanto o maior deles e retiro o tecido.
Eu tiro a meia e levanto a mão. Não me cortei, não estou sequer sangrando.
Depois do toque áspero da meia de lã, a sensação da seda na minha mão é suave, exuberante, como água. Meu aniversário começou com as aves aquáticas, penso ao dobrar o pano e sorrio.
Depois de colocar o tecido e o recipiente de comprimidos no bolso das roupas comuns que vou usar amanhã, vou para a cama com aquela imagem na mente. Água. Esta noite, eu vou flutuar para longe nos meus sonhos. Assim, os sensores não vão registrar nada na minha mente além de mim, Cássia, flutuando sobre as ondas, deixando que carreguem meu peso por algum tempo.
O Oficial não apareceu hoje na trilha. No lugar dele, temos um Funcionário mais jovem que dá instruções
com palavras curtas e grossas, como se achasse que é assim que um Funcionário deve falar. Seus olhos nos varrem, felizes com o poder de supervisionar, de dirigir.
— Foi decidido que as atividades de lazer serão encurtadas neste verão. Hoje é seu último dia de trilha. Recolham o máximo de bandeiras vermelhas que puderem e derrubem os marcos.
Olho para Ky, que não parece surpreso. Tento não deixar que meu olhar se demore no seu rosto, tento não procurar por respostas nos seus olhos. Fomos educados e normais durante a viagem de trem aéreo até o Arboreto, esta manhã. Nós dois sabemos como nos portar quando observados. Todo o tempo, me perguntei o que ele teria pensado da minha fuga de ontem, na Colina. O que ele vai pensar de mim quando souber da classificação, e se vai aceitar o presente que eu quero lhe dar hoje.
Ou se vai fazer comigo o mesmo que fiz com Xander e se afastar de mim.
— Por quê? — Lon pergunta quase choramingando. — Passamos metade do verão sinalizando esses caminhos!
Tenho a impressão de ver um discreto sorriso no rosto de Ky. Noto que ele gosta de Lon. Aquele que faz as perguntas que ninguém mais faz, mesmo sem nunca receber uma resposta. Percebo que isso é uma forma de coragem. Uma cansativa forma de coragem, mas não deixa de ser coragem.
— Não faça perguntas — retruca o Funcionário. — Comecem logo. E assim, pela última vez, Ky e eu começamos a subir a Colina.
Quando estamos suficientemente embrenhados no caminho para que ninguém consiga nos ver, Ky segura minha mão enquanto vou até um dos arbustos, para desamarrar o pano vermelho.
— Esquece — diz ele. — Vamos até o alto. Nossos olhos se encontram. Nunca o vi parecer tão imprudente. Abro
a boca para dizer alguma coisa, mas ele me interrompe. — A menos que você não queira tentar. Há um tom de desafio na sua voz que eu nunca encontrei antes. A voz
não é cruel, mas ele não está só curioso. Ele precisa saber a resposta: o que eu fizer agora vai lhe dizer alguma coisa sobre mim. Ele não fala nada sobre ontem. O rosto está aberto, os olhos iluminados, o corpo tenso, todos os músculos dizem, Está na hora. Agora.
— Eu quero — digo. Para provar, vou na frente pelo caminho que sinalizamos juntos. Não demora muito tempo para que eu sinta sua mão esbarrar na minha, e quando nossos dedos se entrelaçam, sinto a mesma premência que ele. Precisamos chegar ao topo.
Não me viro, mas eu o prendo com força. Quando chegamos à última parte da floresta, aquela que não
mapeamos, eu paro. — Espera — digo. Se vamos mesmo vencer esta Colina, quero afastar
os últimos obstáculos e embaraços, para chegarmos ao alto desimpedidos e sinceros.
Por trás da paciência no rosto de Ky, vejo preocupação, preocupação de que não consigamos chegar lá a tempo. Agora mesmo, o apito poderia estar soando lá embaixo e eu não ouviria por causa das batidas dos nossos corações e do som das nossas respirações, que dividem o mesmo ar.
— Fiquei com medo ontem. — De quê? — Que a gente tivesse se apaixonado por causa dos Funcionários —
digo. — Eles é que contaram de mim para você. Eles contaram de você para mim, na manhã seguinte ao meu Banquete do Par, quando o seu rosto apareceu no microcartão, por engano. Eu e você nos conhecemos há
muito tempo, mas nunca tínhamos pensado nada até que... — Não consigo terminar a frase, mas Ky sabe o que eu quero dizer.
— A gente não pode jogar algo fora só porque eles previram — ele protesta.
— Mas eu não quero ser definida pelas escolhas deles — digo. — Você não é — diz ele. — Nunca precisa ser. — Sísifo e a pedra — digo, lembrando. Vovô teria compreendido a
história. Ele empurrava a pedra, vivia a vida que a Sociedade planejou para ele, mas seus pensamentos continuavam só dele.
Ky sorri. — Exatamente. Mas nós — ele puxa minha mão, delicadamente —
vamos chegar ao alto. E talvez até ficar ali por um minuto. Vamos. — Eu tenho mais uma coisa para te contar — digo. — E sobre a classificação? — ele pergunta. — É... Ky me interrompe. — Eles nos avisaram. Eu faço parte do grupo que vai receber um novo
posto de trabalho. Já sei. Ele sabe?? Sabe que sua vida será mais curta se continuar a trabalhar
no centro de descarte? Sabe que estava bem no limite entre aqueles que ficariam e aqueles que iriam para outro lugar? Sabe o que eu fiz?
Ele vê as perguntas nos meus olhos. — Eu sei que você teve que nos classificar em dois grupos. Eu sei que
devo ter ficado bem no meio. — Você quer saber o que eu fiz? — Eu posso imaginar — diz ele. — Te falaram sobre a expectativa de
vida e os venenos, não foi? Foi por isso que você me colocou ali. — Sim — digo. — Você sabe também sobre os venenos? — Claro. A maioria de nós chega a essa conclusão. Mas nenhum de
nós está em posição de reclamar. As nossas vidas ainda são mais longas aqui do que seriam nas Províncias Exteriores.
— Ky. — É difícil fazer esta pergunta, mas preciso saber. — Você vai embora?
Ele levanta os olhos. Acima de nós, feroz e dourado, o sol se eleva no céu.
— Ainda não sei bem. Não nos disseram ainda. Mas eu sei que nós não temos muito tempo.
Quando chegamos ao alto da Colina, tudo parece completamente diferente em alguns aspectos, mas não em outros. Ele ainda é Ky. Eu ainda sou Cássia. Mas estamos juntos em um lugar onde nenhum de nós esteve antes.
É o mesmo mundo, cinza, azul, verde e dourado, que eu vi a vida inteira. O mesmo mundo que eu vi da janela do Vovô e do alto da pequena colina. Mas agora eu estou mais alta. Se tivesse asas, poderia abri-las. Poderia voar.
— Quero que você fique com isso — diz Ky, me entregando o artefato.
— Eu não sei como usar — digo, sem querer revelar o quanto eu quero aceitar o presente. O quanto eu anseio profundamente por segurar e ter algo que é uma parte da sua história e uma parte dele.
— Acho que o Xander pode te ensinar — diz ele, delicadamente, e respiro fundo. Será que ele está se despedindo? Está me dizendo para confiar em Xander? Para ficar com Xander?
Antes que eu possa perguntar, Ky me puxa para perto e suas palavras estão no meu ouvido, calorosas e sussurradas.
— Vai te ajudar a me encontrar — diz ele. — Se eu for mesmo para algum lugar.
Meu rosto cabe perfeitamente no canto do seu ombro, perto do pescoço, onde eu ouço seu coração e sinto o cheiro da sua pele. Também me sinto segura aqui. Alguma parte essencial da minha pessoa está mais segura com Ky do que em qualquer outro lugar.
Ky aperta outro pedaço de papel na minha mão. — A última parte da minha história — diz ele. — Você vai guardar?
Não olha ainda. — Por quê? — Só espera — diz ele, com a voz baixa e forte. — Só espera um
pouquinho. — Eu também tenho uma coisa para você — digo, me afastando um
pouquinho, pondo a mão no bolso. Dou a ele o retalho de tecido, de seda verde, do meu vestido.
Ele o segura contra o meu rosto para ver como eu estava naquela noite, no Banquete do Par.
— Linda — diz ele, delicadamente. Ele põe os braços à minha volta, no alto da Colina. De onde estamos,
vejo nuvens, árvores, a cúpula da Prefeitura Municipal e as casinhas dos Bairros, a distância. Por um breve momento, vejo tudo, este mundo que é meu, e olho de volta para ele.
Ky diz: — Cássia. E fecha os olhos, e eu fecho os meus também para poder me
encontrar com ele no escuro. Sinto seus braços em volta de mim, a maciez da seda verde quando ele aperta a mão contra as minhas costas e me puxa cada vez mais para perto.
— Cássia — ele diz mais uma vez, suavemente, tão perto que os lábios dele se encontram com os meus, finalmente. Finalmente.
Acho que talvez ele quisesse dizer mais alguma coisa, mas quando nossos lábios se encontram não há mais necessidade, uma vez na vida, de qualquer palavra.
CAPÍTULO 29
HÁ GRITARIA NO BAIRRO MAIS UMA VEZ, E DESTA VEZ, SÃO GRITOS humanos.
Abro os olhos. E tão cedo que o céu ainda está mais preto do que azul, a fatia de alvorecer na linha do horizonte é mais uma promessa do que uma realidade.
Minha porta se abre com força e em um retângulo de luz, vejo minha mãe.
— Cássia — diz ela com alívio, e depois se vira para chamar meu pai. — Ela está bem!
— Bram também — responde ele, e então estamos todos no corredor, a caminho da porta da frente, porque alguém da nossa rua está gritando e o som é tão incomum que nos fere fundo. Talvez não ouçamos com muita freqüência o som da dor no Bairro de Mapletree, mas o instinto de tentar ajudar ainda não foi eliminado de nós.
Meu pai abre a porta e olhamos para fora. A iluminação pública parece mais fraca. Os casacos dos Funcionários,
cinzentos e sombrios. Eles caminham rápido, uma figura no meio deles. Atrás, mais algumas pessoas. Oficiais.
E mais alguém, gritando. Mesmo sob o brilho amortecido das luzes, eu a reconheço. Aida Markham. Alguém que já sentiu dor e que volta a senti-la ao correr atrás do vulto cercado por Funcionários e Oficiais.
Ky. — Ky!
Pela primeira vez na vida, corro o mais rápido que posso em público. Nenhum rastreador para me segurar, nenhum galho para me barrar. Meus pés voam sobre a grama, sobre o concreto. Atravesso os gramados dos vizinhos e suas flores, tentando alcançar o grupo da frente que se dirige à parada do trem aéreo. Um Oficial se separa deles e corre para Aida. Ela está chamando atenção demais. Abriram-se as portas em outras casas e as pessoas estão nos degraus, observando.
Corro mais rápido. Meus pés tocam a grama pontuda e fresca do gramado de Em. Mais algumas casas.
— Cássia? — Em chama da entrada. — Onde você vai? Ky não me ouviu sob os gritos de Aida. Estão quase chegando na
escada que sobe até a plataforma do trem aéreo. Quando caminham sob a luz na parte de baixo, vejo que prenderam as mãos de Ky.
Como fizeram no desenho. — Ky! — grito de novo, e sua cabeça se vira. Ele volta o rosto para
mim, mas não estou perto o bastante para ver seus olhos. Preciso ver seus olhos.
Outro Oficial se afasta do grupo e vem na minha direção. Eu devia ter esperado até estar mais peito para chamá-lo, mas ainda sou rápida. Estou quase lá.
Parte da minha mente tenta processar o que está acontecendo. Estão levando ele para o novo posto de trabalho? Se é isso, por que tão cedo assim? Por que Aida está tão perturbada? Ela não ficaria feliz de saber que ele tem uma nova chance, algo melhor do que lavar peças de alumínio? Por que ele está algemado? Será que tentou brigar com eles?
Eles viram o beijo? E por isso que está acontecendo? Vejo o trem aéreo deslizando pelos trilhos, rumo à estação, mas não é
o trem aéreo que costumamos tomar, o branco e prateado. E o trem cinzento, de longa distância, o tipo que só sai do Centro da Cidade. Eu o ouço chegando. E mais pesado, mais barulhento do que o branco.
Alguma coisa está errada. E se eu já não soubesse disso, a palavra que Ky grita para mim quando
o empurram pelos degraus confirma tudo. Porque ali, diante de todo mundo, todos os instintos de sobrevivência o abandonam, substituídos por outro instinto.
Ele grita meu nome. — Cássia! Naquela palavra, eu ouço tudo: que ele me ama. Que está com medo.
E ouço o adeus que ele estava tentando me dizer ontem, na Colina. Ele sabia. Não está indo para um novo posto de trabalho. Está partindo para algum lugar e acha que não vai voltar.
Ouço passos atrás de mim, macios na grama, e passos à minha frente, duros, no metal. Olho para trás e vejo um Oficial correndo na minha direção. Olho adiante, e um Funcionário desce correndo as escadas de metal. Aida não está mais gritando; querem me fazer parar da mesma maneira que a fizeram.
Não posso alcançá-lo. Não assim. Não agora. Não posso passar pelo Oficial na escada. Não sou forte o bastante para brigar com eles, nem rápida o bastante para fugir...
Não entre docemente. Não sei se Ky fala as palavras na minha cabeça, de alguma forma, ou
se eu penso nelas sozinha, ou se o Vovô talvez esteja por ali em algum lugar desta quase noite, dizendo as palavras para o vento, palavras com asas como anjos.
Desvio para a lateral da plataforma, pés rápidos no concreto. Ky vê o que estou fazendo e se desvia, um movimento brusco que dá a ele um segundo de liberdade antes que as mãos se agarrem a ele novamente.
E o suficiente. Por um momento, ele se debruça na beira da plataforma iluminada e
eu vejo o que preciso ver. Vejo seus olhos, brilhantes com vida e fogo, e sei que ele não vai parar de lutar. Mesmo se for o tipo de luta interna que nem sempre se vê. E eu não vou parar também.
Os gritos dos Funcionários e o som do trem aéreo freando vão esconder minhas palavras. Ky não vai ser capaz de ouvir nada do que eu digo.
Por isso, em meio a todo o barulho, eu aponto para o céu. Espero que ele entenda o que eu quero dizer, porque quero dizer tantas coisas: meu coração vai sempre voar com o nome dele. Não vou entrar docemente. Vou encontrar uma forma de alçar voo como os anjos das histórias e vou encontrá-lo.
E eu sei que ele entende, quando me olha diretamente, profundamente, nos olhos. Seus lábios se movimentam em silêncio, e eu sei o que ele diz: as palavras de um poema que só duas pessoas do mundo conhecem.
Meus olhos se enchem de lágrimas, mas eu as afasto. Porque se há um momento na vida que eu quero ver com clareza, é este.
O Oficial me alcança, agarrando meu braço e puxando-me para trás. — Deixa ela em paz— diz meu pai. Não tinha idéia de que ele
conseguia correr tanto. — Ela não fez nada. Minha mãe e Bram avançam pelo gramado, na nossa direção. Xander
e a família dele seguem atrás. — Ela está causando distúrbios — diz o Oficial, sombrio. — Claro que sim — retruca meu pai. — Levaram embora o amigo de
infância dela nas primeiras horas da manhã enquanto a mãe dele grita. O que está acontecendo?
Ouço o quão alto meu pai fala quando ousa fazer a pergunta e olho de relance para minha mãe para ver o que ela acha disso. Fixado nele, o rosto dela mostra nada menos do que orgulho.
Para minha surpresa, o pai de Xander fala. — Para onde estão levando o garoto? Um Funcionário de casaco branco assume a situação, a voz alta para
que todos reunidos ali consigam escutar. As palavras são sincopadas e formais.
— Sinto muito que sua manhã tenha sido perturbada. Este jovem recebeu um novo posto de trabalho e estamos simplesmente passando para pegá-lo e transportá-lo. Como o posto é fora da Província de Oria, a mãe ficou agitada e transtornada.
Mas por que tantos Funcionários? Por que tantos Oficiais? Por que as algemas? A explicação do Funcionário não faz sentido, mas depois de uma breve pausa, todo mundo sacode a cabeça, aceitando-a. A não ser por Xander. Ele abre a boca, como se fosse dizer alguma coisa, mas depois olha para mim e a fecha.
Toda a adrenalina vinda da tentativa de alcançar Ky me abandona e uma terrível percepção começa a tomar conta de mim. Seja lá para onde
Kyfoi, é por minha culpa. Por causa da minha classificação ou do beijo. De uma forma ou de outra, é minha culpa.
— Mentira — diz Patrick Markham. Todos se viram pra olhá-lo. Mesmo usando roupa de dormir, o rosto abatido e magro por tudo o que sofreu, ele mantém uma dignidade serena. Uma qualidade que ninguém pode tocar. É algo que eu só vi numa outra pessoa. Apesar de Patrick e Ky não terem parentesco de sangue, possuem o mesmo tipo de força.
— Os Funcionários disseram para Ky e os outros trabalhadores — diz ele, olhando para mim — que eles receberam um novo posto de trabalho. Um posto melhor. Mas na verdade estão enviando eles para lutar nas Províncias Exteriores.
Dou um passo para trás, como se tivesse sido atingida, e minha mãe estende a mão para me apoiar. Patrick continua a falar.
— A guerra com o Inimigo não vai bem. Precisam de mais gente para lutar. Todos os antigos aldeões morreram. Todos eles. — Ele faz uma pausa e fala como se estivesse se dirigindo a si mesmo. — Eu devia saber que eles pegariam as Aberrações primeiro. Devia saber que Ky estaria na lista... Pensei que como já tínhamos passado por tanta coisa... — A voz vacila.
Aida se vira para ele, furiosa, clemente. — Nós esquecíamos às vezes, mas ele não. Ele sabia que isso ia
acontecer. Viu ele lutar? Viu os olhos dele quando levaram ele? — Ela joga os braços no pescoço de Patrick e ele a abraça, os soluços dela ecoando na manhã fresca. — Ele vai morrer. Aquilo lá é uma sentença de morte. — Ela se afasta e grita para os Funcionários. — Ele vai morrer.
Dois dos funcionários se movem rapidamente, prendendo as mãos de Aida e de Patrick pelas costas e levando os Markham embora. A cabeça de Patrick se volta para trás quando um deles o amordaça para impedi-lo de continuar a falar e fazem o mesmo com Aida, para abafar seus gritos. Nunca tinha visto nem ouvido falar de Funcionários usando tal força. Não percebem que ao fazê-lo só dão mais verdade às palavras de Patrick e Aida?
Um carro aéreo desce perto de nós e dele saem mais Funcionários. Os Oficiais empurram os Markham na direção do veículo, e Aida busca a mão
do marido. Seus dedos estão separados por centímetros e aquele toque, a única coisa do mundo que poderia reconfortá-la agora, é negado a ela.
Fecho os olhos. Quero não ouvir mais os gritos dela ecoando nos meus ouvidos e as palavras que eu sei que nunca vou esquecer. Ele vai morrer. Queria que a minha mãe pudesse me levar de volta para casa, me pôr na cama, como fazia quando eu era criança. Quando eu olhava a noite cair do outro lado da minha janela sem preocupações, quando não sabia como era desejar a liberdade.
— Com licença. Conheço aquela voz. E a minha Funcionária, aquela da área verde. Ao
seu lado está um Funcionário com a insígnia do mais alto nível do governo: três estrelas douradas que reluzem visivelmente sob a iluminação da rua. Um silêncio cai sobre nós.
— Todos, por favor, peguem os seus recipientes de comprimidos — diz ele, com simpatia. — Retirem o comprimido vermelho.
Nós obedecemos. Minha mão se fecha em volta do pequeno recipiente com os três comprimidos, dentro do meu bolso. Azul, vermelho e verde. Vida, morte e esquecimento sempre na ponta dos meus dedos.
— Agora, fiquem com os comprimidos vermelhos e entreguem os re-cipientes à Funcionária Standler — ele gesticula para minha Funcionária que segura um receptáculo quadrado, de plástico. — Assim que tivermos terminado aqui, vocês vão receber novos recipientes e um novo conjunto de comprimidos.
Mais uma vez obedecemos. Deixo cair o pequeno cilindro de metal junto aos outros, mas não olho nos olhos da minha Funcionária.
— Vamos precisar que vocês tomem os comprimidos vermelhos. A Funcionária Standler e eu vamos garantir que vocês façam isso. Não há motivo para preocupação.
Os Funcionários parecem se multiplicar. Caminham pela rua, mantendo a distância todos que permaneceram nas suas casas e isolando o nosso grupo de dez ou 12, próximo à parada do trem aéreo — o punhado de gente que sabe o que aconteceu hoje no Bairro de Mapletree e em todo o país. Imagino que os contratempos em outras cenas tenham sido bem mais suaves. Provavelmente, nenhuma das outras Aberrações tinha país ou família em posição de saber o que realmente estava
acontecendo. E mesmo Patrick Markham não pôde fazer nada para salvar seu filho.
E é tudo culpa minha. Não brinquei de Deus ou de anjo. Brinquei de Funcionária. Quis acreditar que sabia o que era melhor e mudei a vida de alguém em função disso. Não importa se os dados me apoiavam ou não. A decisão foi minha. E o beijo...
Não consigo deixar de pensar no beijo. Olho para o comprimido vermelho, tão pequeno na minha mão.
Mesmo se ele significar a morte, acho que seria bem-vinda agora. Mas espera aí. Eu fiz uma promessa para Ky. Apontei o céu e prometi
a ele. E agora, momentos depois, vou desistir? Deixo o comprimido cair no chão, tentando ser discreta. Por um
segundo eu o vejo pequeno e vermelho na grama e me lembro do que Ky disse sobre o vermelho ser a cor do nascimento e da renovação. A um novo começo, digo para mim mesma, e mudo a posição dos pés só um pouquinho, para esmagar o comprimido. Ele sangra sob os meus pés. Aquilo me lembra de quando vi o rosto de Ky do outro lado da sala lotada no centro de recreação, no instante em que meus pés esmagavam os comprimidos perdidos no chão.
Só que agora, quando levanto os olhos, ele não está mais por perto. Ninguém ainda obedeceu as ordens. Apesar de o Funcionário ter a
mais alta patente que já vimos por aqui e ter nos dado uma ordem, nós ouvimos boatos há anos sobre o comprimido vermelho.
— Alguém gostaria de ser o primeiro? — Eu vou — diz minha mãe, dando um passo a frente. — Não — digo, mas o olhar do meu pai me detém. Sei que ele está
tentando me dizer: ela. está fazendo isso por nós. Por você. E de alguma forma, ele sabe que tudo vai ficar bem.
— Eu também — diz ele, indo para o lado dela. Juntos, enquanto todos nós observamos, eles engolem os comprimidos.
O Funcionário verifica as bocas dos meus pais e faz um rápido sinal com a cabeça.
— Vão se dissolver em segundos — ele nos diz. — Rápido demais para que vocês tentem cuspi-los, mas é desnecessário, de qualquer forma. Não vai fazer mal a vocês. Tudo o que ele vai fazer é limpar a sua mente.
Tudo o que ele vai fazer é limpar a sua mente. Claro. Agora eu sei por que vamos tomá-los. Para esquecer o que houve com Ky, para esquecer que o Inimigo está ganhando a guerra nas Províncias Exteriores, que os aldeões estão todos mortos. E eu percebo por que não nos fizeram tomar os comprimidos quando algo aconteceu ao primeiro filho dos Markham: porque precisávamos nos lembrar de como as Anomalias podem ser perigosas. De como seríamos vulneráveis sem a Sociedade para mantê-las a distância.
Será que deixaram aquela Anomalia à solta de propósito? Para nos lembrar?
O que vão nos dizer que aconteceu com Ky, mais tarde? Em que história vamos todos acreditar, no lugar da verdadeira? Vamos tomar o comprimido verde em seguida, a calma depois do esquecimento?
Não quero mais ficar calma. Não quero me esquecer. Por mais que doa, eu preciso me agarrar a toda a história dele, às
partes dolorosas também. Minha mãe se volta para me olhar e me preocupo se vou ver olhos
vazios ou uma expressão ausente, frouxa. Mas ela parece ótima. Assim como meu pai.
Logo, todos formam uma fila, os comprimidos vermelhos nas mãos, prontos para acabar com tudo isso e continuar com suas vidas. O que vou fazer quando descobrirem que eu me livrei do meu? Olho para a grama sob meus pés, quase esperando ver um pedacinho dele queimado, destruído, limpo. Mas parece a mesma coisa de antes. Nem consigo ver os fragmentos vermelhos na grama. Devo ter esmagado tudo completamente.
Bram parece assustado, mas agitado. Ainda não tem idade suficiente para carregar o próprio comprimido vermelho, por isso meu pai lhe entrega o seu comprimido extra.
Minha Funcionária também começa a verificar as pessoas. Ela se aproxima cada vez mais de mim, mas não consigo tirar os olhos de Bram e, depois de Em, quando ela toma o comprimido. Por um momento, me lembro do sonho e sinto horror ao observá-la. Mas nada acontece. Pelo menos, nada que eu possa ver.
E chega a vez de Xander. Ele olha na minha direção e me vê observando, e uma expressão que é pura dor passa pelo seu rosto. Quero desviar o olhar, mas não faço isso. Observo Xander fazendo um sinal para mim e erguendo o comprimido na minha direção, quase como se estivesse brindando.
Antes de vê-lo tomar, alguém me impede de ver os outros e impede os outros de me verem. E a minha funcionária.
— Deixe eu ver seu comprimido, por favor — diz ela. — Eu estou com ele — estendo a mão, mas não abro a palma. Acho
que quase a vejo sorrir. Apesar de saber que ela leva comprimidos a mais — eu os vi — ela ainda não me oferece um deles.
Ela olha de relance a grama aos meus pés e se volta pro meu rosto. Ergo o braço, finjo pôr alguma coisa na boca e engulo com força. Ela passa para a próxima pessoa.
Embora fosse o que eu queria, eu a odeio por isso. Ela quer que eu me lembre do que aconteceu aqui. Do que eu fiz.
CAPÍTULO 30
QUANDO A ESCURIDÃO FINALMENTE SE DISSOLVE, É UMA MANHÃ
quente, sem graça, acinzentada, uma manhã sem dimensão ou
profundidade. As casas à minha volta poderiam estar prontas para uma
exposição. Poderiam ser imagens em uma grande tela. Tenho a sensação
de que, se caminhar longe demais, vou esbarrar na tela, ou numa parede
de papel e sair na escuridão do nada, no fim de tudo.
De alguma forma, meu medo acabou. Em vez dele, sinto uma letargia,
o que é quase pior. Por que me importar com um planeta sem graça,
habitado por gente sem graça? Quem se importa com um lugar onde não
existe Ky?
E uma das razões por que preciso de Ky, percebo. Quando estou com
ele, eu sinto.
Mas ele se foi. Eu vi acontecer.
Eu fiz acontecer.
Será que Sísifo também teve que fazer isso?, me pergunto. Parar por um minuto e se concentrar em segurar firme, em empurrar a pedra o suficiente para impedi-la de descer e esmagá-lo, antes que ele pudesse sequer pensar em tentar voltar a subir?
O comprimido vermelho teve efeito quase imediato depois que os
Funcionários e os Oficiais nos acompanharam até em casa. Os
acontecimentos das últimas 12 horas foram apagados das mentes da
minha família. Menos de uma hora depois, uma entrega de novos
recipientes e comprimidos chegou, com uma carta explicando que os
nossos estavam com defeito e foram removidos naquela manhã, mais
cedo. Todos da minha família aceitam a explicação sem fazer perguntas.
Têm outras coisas com que se preocupar.
Minha mãe está confusa; onde largou o terminal de mão do trabalho?
— Bom, é ligar e verificar, querido — diz minha mãe, aturdida. Meu
pai também parece um pouco perdido, mas não tão confuso. Acho que já
passou por isto antes, talvez muitas vezes, por força do seu trabalho.
Embora o comprimido ainda funcione, ele parece se sentir menos
desnorteado pela sensação de desorientação.
O que é bom, porque os Funcionários ainda não acabaram com a
nossa família.
— Mensagem particular para Molly Reyes — exclama a voz genérica
do terminal.
Minha mãe ergue os olhos, surpresa.
— Vou me atrasar para o trabalho — protesta mansamente, mas
quem mandou a mensagem não pode ouvi-la. Também não podem vê-la
erguer as costas antes de caminhar para o terminal e colocar os fones de
ouvido. A tela escurece, a imagem nela é visível só do lugar onde ela está.
— E agora? — diz Bram. — Espero?
— Não, vai para a escola — meu pai diz a ele. — Não queremos que
você se atrase.
Na saída, Bram reclama.
— Sempre perco tudo. — Eu queria poder lhe dizer que isso não era
verdade. Mas será que eu realmente ia querer que ele se lembrasse do
que aconteceu hoje de manhã?
Alguma coisa acontece comigo quando olho Bram saindo de casa, e as
coisas voltam a parecer reais. Bram é real. Eu sou real. Ky é real e eu
preciso encontrá-lo. Agora.
— Vou passar a manhã na Cidade — digo para o meu pai.
— Você não tem trilha? — pergunta ele, e então sacode a cabeça
como se quisesse clarear as idéias. — Desculpa. Me lembrei. As atividades
de lazer de verão acabaram mais cedo esse ano, não é? É por isso que
Bram já está a caminho da escola, em vez de ter ido para a natação. Minha
mente está confusa hoje.
Ele não parece surpreso e penso de novo que isso já deve ter lhe
acontecido antes. Lembro de como ele permitiu que minha mãe tomasse o
comprimido vermelho primeiro. De alguma forma, ele sabia que não ia
fazer mal a ela.
— Não nos deram nada para a fazer no lugar da trilha — digo ao meu
pai. — Dá tempo de eu ir até a Cidade antes da Segunda Escola. — Isto por
si só é um descuido, outra pequena falha na bem azeitada máquina da
nossa Sociedade, o que prova que alguma coisa está errada em algum
lugar.
Meu pai não responde. Olha fixo para a minha mãe, cujo rosto, pálido,
fita a tela do terminal.
— Molly?
Não se deve interromper uma mensagem particular, mas ele se
aproxima um pouco. E mais um pouco.
Finalmente, põe a mão no ombro dela, que se vira da tela.
— É culpa minha — diz minha mãe, e pela primeira vez na vida, a vejo
olhar através do meu pai e não para ele, o olhar fixo em algum ponto
distante.
— Fomos Transferidos para os Campos, efetivo imediato.
— O quê? — pergunta meu pai. Sacode a cabeça, olha por trás dela no
terminal. — E impossível. Você entregou o relatório. Contou a verdade.
— Imagino que não queiram que aqueles de nós que viram as safras
rebeldes continuem a trabalhar em posições de autoridade — minha mãe
diz. — Nós sabemos demais. Podíamos nos sentir tentados a fazer o
mesmo. Vão nos mandar para os Campos, onde nós não vamos estar no
comando. Onde podem nos observar e nos exaurir, nos fazendo plantar só
o que nos mandarem plantar.
— Mas pelo menos vamos estar mais próximos do Vovô e da Vovó —
digo, tentando reconfortá-la.
— Não são os Campos de Oria — diz minha mãe. — Campos de uma
província diferente. Nós partimos amanhã.
Então aquele olhar vazio, atordoado, se dirige ao meu pai e eu a vejo
começar a sentir novamente. Vejo a percepção e a emoção voltarem ao
seu rosto. E enquanto vejo aquilo acontecer a ela, sinto uma sensação tão
forte de urgência que não sei se serei capaz de suportar. Preciso descobrir
para onde levaram Ky. Antes de irmos embora.
— Eu sempre quis morar nos Campos — diz Papai, e Mamãe encosta a
cabeça no ombro dele, cansada demais para chorar e vencida demais para
fingir que tudo está bem.
— Mas eu fiz o que era para fazer — sussurra. — Fiz exatamente o
que pediram.
— Vai ficar tudo bem — ele cochicha, para ela e para mim. Talvez, se
eu tivesse tomado o comprimido vermelho, eu pudesse acreditar nele.
Na rua, há um carro aéreo de Funcionários diante da casa dos
Markham. Nosso Bairro recebeu atenção demais dos Funcionários nas
últimas semanas. Em saltita porta afora da casa sem árvores em que mora.
— Você soube? — pergunta, animada. — Os Funcionários estão
juntando as coisas dos Markham. Patrick foi transferido e vai trabalhar
para o Governo Central! E uma grande honra. E ele é do nosso Bairro! —
Ela franze a testa.
— É uma pena que a gente não pôde se despedir do Ky. Vou sentir
falta dele.
— Eu sei — digo, e sinto uma dor no coração, e paro de novo sob a
minha pedra, empurrando o peso de ser a única que sabe o que realmente
aconteceu hoje de manhã.
A não ser por alguns Funcionários bem escolhidos. E mesmo eles não
sabem que eu sei. Só duas pessoas sabem de fato o que aconteceu, que eu
não tomei o comprimido vermelho. Eu. E a minha Funcionária.
— Preciso ir — digo para Em e volto a caminhar na direção da parada
do trem aéreo. Não olho mais para a casa dos Markham. Patrick e Aida
também se foram. Será que receberam a condição de Aberrações ou
foram levados para um Retiro quieto em algum lugar longe daqui? Será
que também tomaram o comprimido vermelho? Será que estão
vasculhando a casa nova, perplexos, se perguntando onde estaria o seu
segundo filho? Também vou precisar tentar encontrá-los, em nome de Ky,
mas no momento, eu preciso encontrar Ky. Só consigo pensar num lugar
que possa ter informações sobre para onde ele teria sido levado.
A caminho da Prefeitura Municipal, mantenho a cabeça baixa. Há
lugares demais que eu não consigo olhar: os assentos onde Ky costumava
sentar, o piso do vagão do trem aéreo onde ele costumava pisar e manter
o equilíbrio, sempre fazendo aquilo parecer fácil, natural. Não consigo
olhar pelas janelas de forma alguma, sabendo que talvez vislumbre a
Colina onde Ky e eu estivemos ontem. Juntos. Quando o trem para e mais
gente entra e a brisa sopra, eu me pergunto se as faixas de tecido
vermelho que Ky e eu deixamos por lá estariam voando ao vento.
Sinalizadores de um novo começo, apesar de não aquele que nós
desejávamos.
Finalmente ouço a voz que anuncia meu destino.
Prefeitura Municipal.
Minha idéia não vai funcionar. Sei disso no minuto em que paro nos
degraus da Prefeitura pela segunda vez na vida. Este não é o lugar de
portas abertas e luzes cintilantes que me recebeu, que me convidou a
vislumbrar o meu futuro. À luz do dia, este é um lugat de guardas
armados, um lugar de negócios, um lugar onde o passado e o presente
estão trancados em segurança lá dentro. Não vão me deixar entrar, e
mesmo se deixassem, não me diriam nada.
Talvez nem saibam que há alguma coisa a se dizer. Funcionários
também usam comprimidos vermelhos.
Me viro e, do outro lado da rua, vejo uma possibilidade e meu coração
se agita. Claro. Por que não pensei nisso antes? O Museu.
O Museu é comprido, baixo, branco, fechado. Até as janelas são
cobertas com vidros foscos para proteger os artefatos da luz. A Prefeitura
Municipal, do outro lado da rua, tem janelas grandes e abertas. A
Prefeitura Municipal vê tudo. Porém, o Museu talvez guarde alguma coisa
para mim por trás dos seus olhos bem fechados. A esperança faz meu
passo se apressar ao cruzar a rua, me dá força quando empurro as
enormes portas brancas.
— Bem-vinda — diz um curador, sentado numa mesa branca e
redonda. — Posso lhe ajudar a encontrar alguma coisa?
— Estou só olhando — digo, tentando parecer descontraída. — Tenho
algum tempo livre hoje.
— E você veio até aqui — diz o curador, feliz e curioso. —
Maravilhoso. Você talvez queira dar uma olhada no segundo nível.
Algumas das nossas peças mais populares estão ali.
Não quero chamar atenção demais para mim, por isso concordo e
subo os degraus, o eco metálico me lembrando dolorosamente dos pés de
Ky na escada da estação. Não perna nisso agora. Fica calma. Lembra
daquela vez em que a Primeira Escola nos trouxe aqui, antes de Ky chegar
ao Bairro? Quando tínhamos tempo de pensar no passado, antes de
seguirmos para a Segunda Escola, onde tudo o que importa é o futuro?
Lembra de entrar no refeitório do subsolo do Museu com outras crianças,
todas empolgadas por comer em um lugar novo e diferente? Lembra da
cabeça loura de Xander entre o resto, do jeito que ele fingiu ouvir o
discurso do curador, mas não parava de fazer piadinhas que ninguém mais
conseguia ouvir?
Xander. Se eu deixá-lo aqui, também vou perder outro pedaço do meu
coração?
Claro que sim.
Uma placa indica a Sala dos Artefatos e dobro à direita, subitamente,
querendo ver a exposição. Querendo ver onde puseram todas aquelas
coisas que eles levaram. Talvez eu veja meu compacto, as abotoaduras de
Xander, o relógio de Bram. Eu poderia trazê-lo aqui uma última vez, antes
de partirmos para os Campos.
Paro no meio da sala, percebendo que nenhuma dessas coisas está
aqui.
As outras vitrines continuam lotadas de artefatos, mas a nova
exposição não é nada além de uma comprida vitrine de vidro, imensa e
vazia. Há um letreiro no meio, impresso com letras que parecem tão
diferentes da escrita cursiva de Ky, onde se lê: em breve mais artefatos.
Uma luz que vem de cima ilumina a placa dentro da vitrine vazia e
cavernosa. Aquele letreiro poderia ficar ali para sempre naquele ambiente
lacrado e imaculado. Como o retalho do meu vestido do Banquete do Par.
Mas já quebrei o vidro. Já dei o verde de presente. Fiz minha escolha.
Já estou morrendo sem Ky aqui e preciso agora garantir que vou viver para
encontrá-lo.
Percebo que nossos artefatos provavelmente nunca vão chegar
àquela vitrine. O letreiro talvez seja a única coisa a ficar exposta. Não sei o
que fizeram com nossas coisas.
Agora sei por mim mesma que não sobrou nada.
Desço as escadas até o subsolo. Onde é mantida a Gloriosa História da
Província de Oria, onde eu pretendia ir antes de a chance de vislumbrar o
que se perdeu me distrair da necessidade de procurar o que deve ser
encontrado.
Fico perto do vidro e olho o mapa da nossa Província com a cidade,
campos e rios, ouvindo passos no chão de mármore atrás de mim. Um
homem pequeno, de uniforme, vem ficar ao meu lado.
— Gostaria que eu lhe contasse mais sobre a história de Oria? —
pergunta ele.
Nossos olhares se encontram. Os meus, que procuram; os dele,
penetrantes e brilhantes. Olho para ele e percebo: eu não vou vender
nosso poema. Sou egoísta. Além do retalho de tecido, ele é tudo o que
tenho para dar a Ky, e somos as duas últimas pessoas do mundo que o
conhecem por inteiro. Até isso é um beco sem saída, até essa minha
última idéia não vai funcionar. Eu poderia traçar o poema, mas não
ganharia nada com isso. Não é algo que eu possa negociar. E algo que eu
preciso fazer.
— Não, obrigada — digo ao homem, apesar de querer saber a
verdadeira história do lugar onde eu moro. Mas não acho que ninguém
mais saiba.
Antes de partir, olho mais uma vez para o mapa geográfico da nossa
Sociedade. Ali, no meio do mapa, gordas e felizes, estão as formas
rechonchudas das Províncias. E à sua volta, as Províncias Exteriores, com
linhas que as dividem em partes, mas nenhuma delas com nome.
— Espera — eu chamo o homem. Ele se volta e me olha com
expectativa.
— Sim?
— Alguém sabe os nomes das Províncias Exteriores?
Ele sacode a mão, desinteressado, agora que sabe que não vai
conseguir de mim algo digno de ser negociado.
— O nome é esse. Províncias Exteriores.
Aquelas Províncias Exteriores, vazias e divididas no mapa, prendem o
meu olhar. O mapa está cheio de letras e informações e é difícil perceber
todos os nomes. Eu os examino, sem realmente lê-los, sem saber
exatamente o que estou procurando.
E aí. Alguma coisa chama minha atenção, uma informação se
acomoda no meu cérebro classificador: rio Sísifo. Atravessa algumas das
Províncias Ocidentais, segue por duas das Províncias Exteriores e sai no
vazio dos Outros Países.
Ky deve ser de uma dessas duas Províncias Exteriores. E como foi ali
que o ataque ocorreu, quando ele era jovem, pode ser ali que estejam os
problemas de hoje. Chego perto do mapa para memorizar a localização
dos dois lugares que talvez sejam dele.
Ouço passos se aproximarem novamente e me viro.
— Tem certeza de que eu não posso ajudar em nada? — o
homenzinho me pergunta.
Não quero negociar nada! Quase exclamo e então percebo que ele
parece sincero.
Aponto o rio Sísifo, no mapa, um minúsculo fio de esperança que
cruza o papel.
— Você sabe alguma coisa sobre esse rio? Ele baixa a voz.
— Ouvi uma história, certa vez, quando eu era mais jovem. Há muito
tempo, uma parte do rio foi envenenada e ninguém podia viver nas
margens. Mas é tudo o que eu ouvi.
— Obrigada — digo a ele, pois agora tenho uma idéia, graças ao que
aprendi sobre a forma com que nossos idosos morrem. Será que a
Sociedade seria capaz de envenenar as águas a caminho do país inimigo?
Mas Ky e sua família não foram envenenados. Talvez vivessem rio acima,
na mais alta das duas Províncias às margens daquele rio.
— É só uma história — o homem ressalva. Ele deve ter visto a
esperança brilhar no meu rosto.
— E tudo não é só uma história? — digo. Saio do Museu e não olho
para trás.
Minha Funcionária me aguarda na área verde fora do Museu. Vestida
de branco, sentada num banco branco, com um sol branco e amarelado ao
fundo. É demais. Eu pisco.
Se fechar os olhos um pouco, posso fingir que esta é a área verde
perto do centro de recreação, onde vou encontrar minha Funcionária pela
primeira vez. Posso fingir que ela vai me contar que houve um erro com
meu Par. Mas desta vez, as coisas vão ser diferentes, vão seguir um rumo
diferente, um rumo em que Ky e eu podemos ficar juntos e felizes.
Mas não existe tal rumo, não aqui em Oria.
Ela gesticula para que eu me aproxime e me sente ao lado dela no
banco. Me parece que ela escolheu um lugar estranho para me encontrar,
bem ao lado das portas do Museu. Então lembro que é um lugar perfeito,
silencioso e vazio. Ky tinha razão. Ninguém aqui está interessado no
passado.
O banco é esculpido na pedra, parece sólido e fresco das horas que
passa sob a sombra do Museu. Ponho minha mão contra a pedra, depois
que me sento, me perguntando de onde teria vindo a pedra. Me
perguntando quem precisou movimentar as pedras.
Desta vez, eu sou a primeira a falar.
— Eu cometi um erro. Você precisa trazer ele de volta.
— Já abriram uma exceção para Ky Markham. A maioria das
Aberrações não tem sequer essa oportunidade — diz ela. — Foi você
quem mandou ele embora. Provou o que nós queríamos demonstrar.
Pessoas que deixam os dados de lado, que são envolvidas pelas emoções,
criam uma confusão para si mesmas.
— Você fez isso — digo. — Você arranjou aquela classificação.
— Mas você a executou — diz ela. — Com perfeição, devo
acrescentar. Você talvez esteja perturbada; a família dele, devastada; mas
é a decisão correta, no que diz respeito à habilidade dele. Você sabia que
ele era mais do que fingia ser.
— Ele é que deve escolher se vai ou fica. Eu não. Nem você. Deixa ele
escolher.
— Se fizéssemos isso, tudo desmoronaria — diz ela, com paciência. —
Como você acha que conseguimos garantir vidas tão longas? Como você
acha que erradicamos o câncer? Formamos Pares para tudo. Inclusive para
os Genes.
— Vocês garantem vidas longas, mas acabam nos matando no final.
Eu sei do veneno na comida de gente como o Vovô.
— Também podemos garantir uma excelente qualidade de vida até o
último suspiro. Você sabe quantas pessoas infelizes em quantas
sociedades miseráveis pelos anos afora teriam dado qualquer coisa para
conseguir isso? E o método de administrar o...
— Veneno.
— Veneno — diz ela, sem hesitar. — E inacreditavelmente humano.
Doses pequenas, nos alimentos favoritos do paciente.
— Ou seja, a gente come para morrer. Ela desdenha da minha
preocupação.
— Todos comem para morrer, independente do que a gente faça. Seu
problema é que você não respeita o sistema e o que ele te oferece,
mesmo agora.
Aquilo quase me dá vontade de rir. A Funcionária vê a tensão nos
meus lábios e dispara uma série de exemplos, de formas com que infringi
as leis da Sociedade nos últimos dois meses — e ela nem sabe das piores
—, mas não cita um exemplo sequer dos anos anteriores. Se tivesse uma
forma de rastrear todas as minhas memórias, veria que são puras. Que eu
queria me encaixar de verdade, receber um Par, fazer tudo certo. Que eu
acreditava de verdade.
Que uma parte de mim ainda acredita.
— Estava na hora dessa pequena experiência chegar ao fim, de
qualquer maneira — diz a Funcionária, parecendo lamentar um pouco. —
Não temos mais força de trabalho para nos concentrar nela. E,
naturalmente, com as situações do jeito que estão...
— Que experiência?
— Aquela com você e Ky.
— Eu sei — digo. — Eu sei que você falou para ele. Eu sei que foi um
erro maior do que você me levou a crer, da primeira vez em que nós
falamos. O Ky chegou mesmo a entrar na seleção dos Pares.
— Não foi um erro — diz ela.
E eu volto a cair, no momento em que achava já ter chegado ao
fundo.
— Nós decidimos incluir Ky na seleção dos Pares — diz ela. — De vez
em quando, nós fazemos isso com uma Aberração, só para reunir dados
adicionais e observar variações. O público em geral não sabe disso. Não há
razão para que saiba. O importante é que você saiba que nós tínhamos o
controle da experiência o tempo todo.
— Mas as chances de ele ser o meu Par...
— São praticamente nulas — concorda a Funcionária. — Então você
percebe por que nós ficamos intrigados. Por que nós deixamos que você
visse o retrato de Ky, para que ficasse curiosa. Por que garantimos que
vocês fossem designados para o mesmo grupo de trilha e depois
formassem uma dupla. Por que nós tínhamos que acompanhar tudo, pelo
menos por algum tempo. — Ela sorri.
"Foi tão intrigante: podíamos controlar tantas variáveis. Chegamos a
reduzir suas porções de alimentos para ver se você ficaria mais estressada,
a ponto de desistir. Mas você não desistiu. Naturalmente, nós nunca
fomos cruéis. Você sempre recebeu calorias em quantidade suficiente. E
você é forte. Nunca tomou o comprimido verde."
— Por que isso importa?
— Torna você mais interessante — diz ela. — Uma cobaia muito intri-
gante, de fato. Previsível, em última instância, mas ainda suficientemente
incomum para se observar. Teria sido interessante ver a situação chegar
ao final previsto. — Ela suspira, um suspiro de tristeza genuína.
"Eu planejava escrever um artigo sobre o tema, disponível só para
Funcionários seletos, naturalmente. Seria uma prova sem paralelos da
validade do Sistema de Pares. Foi por isso que não quis que você se
esquecesse do que aconteceu hoje na estação do trem aéreo. Todo o meu
trabalho teria sido em vão. Agora, pelo menos, posso ver você tomar sua
decisão final enquanto ainda sabe do que aconteceu."
A raiva toma conta de mim com tanta força, que não há espaço para
pensar ou falar. Teria sido interessante ver a situação chegar ao final
previsto.
Tudo foi planejado desde o início. Tudo. — Infelizmente, as minhas habilidades são necessárias agora em outro
lugar. — Ela passa a mão no pequeno terminal diante dela. — Nós simples-
mente não temos tempo de continuar a monitorar a situação, por isso não
podemos prolongá-la.
— Por que me contar tudo isso? — pergunto. — Por que você quer
que eu saiba os detalhes?
Ela parece surpresa.
— Porque nos importamos com você, Cássia. Da mesma forma que
com todos os cidadãos. Como cobaia de uma experiência, você tem o
direito de saber o que aconteceu. O direito de fazer já a escolha que nós
sabemos que você fará, em vez de ter que esperar.
E tão engraçado o uso que ela faz da palavra escolha, tão involuntaria-
mente hilariante, que eu riria se não achasse que soaria mais como um
choro.
— Você contou para Xander? Ela parece ofendida.
— Claro que não. Ele ainda é seu Par. Para a experiência permanecer
sob controle, tudo tinha que ser escondido dele. Ele não sabe de nada.
A não ser pelo que eu contei, penso, e percebo que ela não sabe disso. Há coisas que ela não sabe. Ao perceber isso, parece que alguma
coisa me foi devolvida. O conhecimento se mistura à raiva e a transforma em algo puro e límpido. E uma das coisas que ela desconhece completamente é o amor.
— Mas o Ky era outra história — diz ela. — Nós contamos para ele.
Fingimos que estávamos lhe dando uma advertência, mas naturalmente
esperávamos dar o ímpeto para que ele tentasse ficar com você. O que
funcionou muito bem. — Ela sorri, presunçosa, porque também acha que
eu não sei dessa parte da história. Mas é claro que eu sei.
— Então você nos observou o tempo todo — digo.
— Não o tempo todo — responde. — Observamos vocês o bastante
para obtermos uma amostra válida de como eram as suas interações. Não
dava para observar todas as interações na Colina, por exemplo, nem
mesmo na colina menor. O Oficial Carter ainda tinha jurisdição sobre
aquela área e não via com bons olhos a nossa presença ali.
Espero que ela pergunte. De alguma forma, eu sei que vai perguntar.
Apesar de ela achar que tem uma amostra precisa, há uma parte dela que
precisa saber mais.
— Então, o que aconteceu entre você e Ky? — pergunta.
Ela não sabe do beijo. Não foi isso o que o mandou embora. Aquele
momento na Colina ainda é nosso, meu e de Ky. Nosso. Ninguém o tocou,
além de nós dois.
Vai ser o que eu terei para me agarrar enquanto sigo adiante. O beijo,
o poema, as declarações de amor que nós escrevemos e dissemos.
— Se me contar, eu posso te ajudar. Posso recomendar você para um
posto de trabalho na Cidade. Você poderia ficar aqui. Não precisaria partir
para os Campos com sua família. — Ela se aproxima mais. — Me diz o que
aconteceu.
Desvio os olhos. Apesar de tudo, a oferta é tentadora. Estou com um
certo medo de sair de Oria. Não quero deixar Xander e Em. Não quero
deixar os lugares que guardam tantas lembranças do Vovô. E
principalmente, não quero deixar esta Cidade e meu Bairro, porque foi
aqui que eu me encontrei e me apaixonei por Ky.
Mas ele não está mais aqui. Eu preciso encontrá-lo em outro lugar.
O dilema do prisioneiro. Em algum lugar, Ky continua a confiar em
mim e eu posso fazer o mesmo por ele. Não vou desistir.
— Não — digo em alto e bom som.
— Eu achei que você diria isso — ela afirma, mas ouço a decepção no
seu tom e, subitamente, me dá vontade de rir. Quero perguntar se ela
nunca fica entediada por estar certa o tempo inteiro. Mas acho que sei
qual seria a resposta.
— E qual é então o desfecho previsto? — pergunto.
— E isso importa? — ela sorri. — E o que vai acontecer. O que você vai
fazer. Mas eu te digo, se você quiser.
Percebo que não preciso ouvir. Não preciso ouvir nada que ela tenha
a dizer ou nenhuma previsão que ela acha que possa fazer. Eles não sabem
que Xander escondeu o artefato, que Ky sabe escrever, que o Vovô me
deu a poesia.
O que mais ela não sabe?
— Você disse que planejou tudo — digo» subitamente, por instinto,
agindo como se quisesse ter certeza. — Disse que vocês mesmos puseram
Ky na seleção dos Pares.
— Isso — responde. — Fizemos isso.
Desta vez, olho direto para ela quando fala e é então que vejo. Um
discretíssimo estremecimento do músculo do seu queixo, um leve desvio
no olhar, um minúsculo toque de representação na voz. Ela não precisa
mentir com freqüência. Nunca foi uma Aberração, de forma que aquilo
não é natural para ela. Não teve muita prática. Não consegue manter o
rosto totalmente imóvel como Ky, quando ele joga um jogo e sabe o que
fazer e se é melhor ganhar ou perder.
Embora tenham lhe explicado como jogar, ela não sabe exatamente
que cartas tem na mão.
Ela não sabe quem incluiu Ky na seleção dos Pares. Se não foram os
Funcionários, quem foi?
Olho para ela de novo. Ela não sabe, não está ouvindo as próprias
palavras. Se o quase impossível aconteceu antes — eu receber como Pares
dois garotos que conhecia — então pode acontecer de novo.
Eu posso encontrá-lo.
Me levanto para ir embora. Acho que sinto cheiro de chuva no ar,
apesar de não haver uma nuvem no céu, e aí me lembro. Ainda me sobrou
uma parte da história de Ky.
CAPÍTULO 31
XANDER ESTÁ SENTADO NOS DEGRAUS DA MINHA CASA. É um lugar onde o encontro com freqüência no verão, e a posição
também parece familiar. Pernas estendidas, cotovelos pousados no degrau de trás. A sombra que ele lança sob o sol de verão é menor do que ele, uma versão mais escura e compacta do Xander verdadeiro.
Ele me olha enquanto percorro o caminho, e quando me aproximo vejo a dor ainda nos seus olhos, uma sombra por trás do azul.
Quase desejei que o comprimido vermelho tivesse apagado mais do que as últimas 12 horas, para Xander. Que ele não se lembrasse do que eu lhe contei, de quanto aquilo doeu. Quase. Mas não desejei de fato. Apesar de a verdade ter magoado a nós dois, não vejo como poderia ter feito nada diferente com Xander. Era tudo o que eu tinha para dar a ele, e ele merecia receber.
— Estava esperando por você — diz ele. — Soube da sua família. — Eu fui até a Cidade — digo.
— Senta aqui do meu lado — diz Xander. Hesito. Ele está ralando sério? Quer mesmo que eu sente do lado dele ou está me ajudando a manter as aparências para quem estiver olhando? Xander continua olhando para mim, à espera. — Por favor.
— Tem certeza? — pergunto. —Tenho — diz ele, e ai percebo que tem mesmo. Está sentindo dor.
Eu também. Percebo que talvez isso seja parte do que estamos lutando para escolher. Qual dor vamos sentir.
Não faz muito tempo desde o Banquete do Par, mas estamos diferentes agora, sem nossas roupas de festa, nossos artefatos, nossa
crença no Sistema de Pares. Fico pensando a respeito. Quanta coisa mudou. Quão pouco nós sabíamos.
— Você sempre precisa me obrigar a falar primeiro, né? — pergunta Xander, com a sombra de um sorriso no rosto. — No final você sempre ganha as nossas discussões.
— Xander — digo, e sento ao lado dele e me encosto nele. Seu braço me envolve e ponho a cabeça no seu ombro e ele inclina a cabeça para que ela fique pousada sobre a minha. Meu suspiro é tão profundo que é quase um calafrio, pelo alívio que sinto. Como isso é bom, ficar abraçada desse jeito. Nada disso é para a Sociedade, que está sempre à espreita. Para mim é tudo de verdade.
Vou sentir muito a falta dele. Nenhum de nós diz nada por um momento, enquanto contemplamos
juntos nossa rua pela última vez. Talvez eu volte, mas não vou mais morar aqui. Depois que se é Transferido, você não volta, a não ser para visitar. Completos rompimentos são a melhor opção. E eu farei o rompimento mais radical de todos, quando for em busca de Ky. Esse é o tipo de Infração que ninguém pode ignorar.
— Fiquei sabendo que você vai embora amanhã — diz Xander, e eu faço um sinal com a cabeça, que roça no seu rosto. — Preciso te dizer uma coisa.
— O quê? — pergunto. Olho para frente, sentindo o ombro dele se mexer sob a camisa das suas roupas comuns, enquanto ele muda ligeiramente de posição, mas não me mexo. O que ele vai dizer? Que não consegue acreditar que eu o traí? Que queria que o Par dele fosse qualquer uma, menos eu? O que eu mereço ouvir é isso, mas acho que ele não diria. Não o Xander.
— Eu lembro do que aconteceu hoje — sussurra Xander. — Eu sei o que houve de verdade com o Ky.
— Como? — Ergo as costas e olho para ele. — Os comprimidos vermelhos não fazem efeito em mim — ele
sussurra, baixinho no meu ouvido, para que ninguém possa ouvir. Ele olha para rua, na direção da casa dos Markham. — Também não funcionavam com Ky.
— O quê? — Como é que esses dois garotos tão diferentes estão
ligados de formas inesperadas e profundas? Talvez todos nós estejamos, penso, e não sabemos mais como ver. — Me conta.
Xander continua a olhar para a casinha com as janelas amarelas, onde Ky morava até horas atrás. Onde Ky observava e aprendia a sobreviver. Xander lhe ensinou um pouco, sem saber. E talvez Xander tenha também aprendido com Ky.
— Eu desafiei ele a tomar um comprimido desses, muito tempo atrás — diz Xander, baixinho. — Foi logo quando ele chegou aqui. Eu fui amigável, mas no fundo sentia ciúmes. Eu via como você olhava para ele.
— Mesmo? — Não me lembro disso, mas de repente, espero que Xander esteja certo. Espero que parte de mim tenha se apaixonado por Ky antes de terem me mandado fazer isso.
— Não é uma lembrança de que eu me orgulhe — diz Xander. — Chamei ele para nadar comigo um dia, e no caminho, falei que sabia do artefato.
— Sabia porque uma vez, em outro Bairro, eu estava voltando para casa depois de levar algo para um amigo, e peguei o Ky usando, tentando encontrar o caminho de casa. Ele era tão cauteloso. Acho que foi a única vez em que ele o tirou do bolso, mas foi na hora errada. Eu vi.
A imagem quase parte meu coração. É um outro lado de Ky que eu não havia visto antes — perdido. Correndo riscos. Por mais que eu o conheça, por mais que eu o ame, há partes dele que eu não conheço. É assim com todo mundo, até com Xander, a quem eu nunca havia imaginado agindo com tanta crueldade.
— Desafiei ele a achar e roubar dois comprimidos vermelhos. Achei que seria impossível. Disse que, se ele não trouxesse para a natação no dia seguinte, para mostrar que conseguia, eu ia contar para todo mundo sobre a bússola — o artefato — e Patrick ia arranjar encrenca.
— O que ele fez? — Você conhece o Ky. Ele não ia deixar o tio correr riscos. — Xander
começa a rir. Chocada, fecho os punhos, com raiva. Ele acha isso engraçado? O que pode haver para rir nessa história?
— Ky arranjou os comprimidos. E adivinha de quem ele roubou? — Xander diz, ainda rindo. — Tenta adivinhar.
— Não sei. Me conta.
— Dos meus pais — Xander para de rir. — Naturalmente, não teve graça nenhuma na época. Aquela noite, meus pais ficaram transtornados porque os comprimidos vermelhos tinham sumido. Eu soube imediatamente o que tinha acontecido, mas naturalmente não pude dizer nada. Não podia contar sobre o desafio. — Xander baixa os olhos e reparo que ele segura um grande envelope de papel pardo. Aquilo me faz pensar na história de Ky. Estou ouvindo outra parte agora. — Foi uma confusão dos diabos. Os Funcionários vieram e tudo mais. Não sei se você se lembra disso.
Sacudo a cabeça. Não lembro. — Eles quiseram ter certeza de que nós não tínhamos tomado os
comprimidos e viram, de alguma forma, que não tínhamos mesmo. Meus pais foram bem convincentes, dizendo que não sabiam de nada. Estavam totalmente em pânico. No fim, os Funcionários decidiram que meus pais deviam ter perdido os comprimidos quando eles foram nadar, no início da semana, e que foram negligentes por não terem percebido antes. Nunca tinham causado problemas, por isso saíram da situação sem uma Infração. Só uma anotação.
— O Ky fez isso? Pegou os comprimidos dos seus pais? — Fez, — Xander respira fundo. — Fui para a casa dele no dia
seguinte, pronto para acabar com ele. Ele estava na escada da frente, esperando por mim.
Quando cheguei lá, ele mostrou os dois comprimidos vermelhos, para todo mundo ver.
"Claro, eu fiquei tão assustado que tirei da mão dele e perguntei o que ele estava tentando fazer. Foi quando ele me disse que a gente não joga com a vida de outras pessoas. — Xander parece envergonhado, ao se lembrar. — E então ele me disse que nós podíamos recomeçar do zero, se eu quisesse. Só o que precisávamos fazer era tomar os comprimidos vermelhos, um para cada um. Ele me garantiu que não fariam mal."
— Foi cruel também — digo, chocada, mas para minha surpresa, Xander discorda.
— Ele sabia que os comprimidos não funcionavam com ele. Não sei como, mas sabia. Achou que iam funcionar comigo. Achou que se eu não me lembrasse de como havia agido, nós podíamos recomeçar.
— Quantas pessoas você acha que estão por aí fingindo que os comprimidos fizeram efeito, quando não fizeram? — pergunto intrigada.
— Todas aquelas que não querem encrenca — diz Xander. Ele me olha. — Aparentemente, também não funcionam com você.
— Não é bem assim — digo, mas não quero contar toda a história. Ele já carrega muitos dos meus segredos.
Xander me examina por um momento, mas quando não digo mais nada, ele volta a falar. — Como estamos falando de comprimidos — diz ele — tenho um presente para você. Um presente de despedida. — Ele me entrega o envelope e sussurra: — Não abre agora. Eu pus algumas coisas aí dentro para você se lembrar do Bairro, mas o verdadeiro presente é alguns comprimidos azuis. Caso você precise fazer outra viagem longa ou coisa parecida.
Ele sabe que eu vou tentar achar Ky. E está me ajudando. Apesar de tudo, Xander não me traiu. E me dou conta também de que, ao descer a rua correndo atrás de Ky, eu nunca imaginei se poderia ter sido Xander a pessoa a ter deflagrado todos aqueles acontecimentos. Eu sabia que não era. Ele confiava em mim. E o dilema do prisioneiro. Este jogo perigoso que eu devo jogar com Ky e com Xander. Mas o que eu seí e que a Funcionária não sabe é que nós vamos fazer o melhor para garantir a segurança um do outro.
—Ah, Xander. Como você conseguiu isso? — Guardam comprimidos extras na farmácia, no centro médico — diz
Xander. — Esses iam ser descartados. A validade está vencendo, mas acho que ainda funcionam alguns meses depois do vencimento.
— Ainda assim, os Funcionários vão sentir a falta deles. Ele dá de ombros.
― Vão. Eu vou ser cuidadoso e você também tem que ser. Eu lamento não poder trazer comida de verdade.
Não posso acreditar que você está fazendo tudo isso por mim — digo a Xander.
Ele engole em seco. — Não é só por você. Por todos nós.
Agora tudo faz sentido. Se pudéssemos mudar as coisas, com o tempo, talvez... talvez todos nós pudéssemos escolher.
― Obrigada, Xander — digo. Penso que agora posso ter uma chance de encontrar Ky, graças à bússola de Ky e aos comprimidos de Xander e percebo que, de muitas formas, Xander foi quem tornou possível para mim amar Ky.
Ky achava que você podia me ajudar a aprender a usar o artefato — digo. — Agora eu sei por quê. Você reconheceu naquele dia, quando eu te dei?
Achei que tinha reconhecido. Mas já fazia muito tempo e eu mantive a minha promessa. Não abri.
Mas você sabe usar. Imaginei os princípios básicos do que se tratava, depois de ver. Eu
fazia perguntas para ele de vez em quando. Isso pode me ajudar a encontrar ele. — Mesmo se eu pudesse te ensinar, ia fazer isso por quê? — E Xander
já não consegue esconder. A amargura e a raiva se misturam à dor. — Para você ir embora e ser feliz com ele? E onde é que eu fico? O que sobra para mim?
— Não diz isso — falo. — Você me deu os comprimidos azuis para que eu pudesse encontrar ele, não é? Se eu for e nós pudermos mudar as coisas, talvez você também possa escolher alguém.
— Eu escolhi — diz ele, olhando para mim. Não sei o que dizer.
— Então eu tenho que desejar o fim do mundo que nós conhecemos? — Xander pergunta, com mais um traço do seu antigo humor na voz.
— O fim do mundo, não. O começo de um mundo melhor — digo, e eu também estou com medo. É isso que nós queremos de fato? — Um mundo onde a gente possa ter o Ky de volta.
— Ky — diz Xander, e há tristeza na voz dele. —As vezes, parece que tudo o que eu fiz foi te ajudar a estar pronta para outra pessoa.
Não sei o que dizer, como dizer a ele que está errado, como eu estava errada momentos antes, ao pensar a mesma coisa. Porque, sim, Xander ajudou a Ky e a mim inúmeras vezes. Mas como explicar para Xander que ele é também uma das razoes que me leva a querer um mundo novo? Que ele é importante? Que eu o amo?
— Eu posso te ensinar — diz Xander, finalmente. — Vou enviar instru-
ções através de uma mensagem pelo terminal. — Mas qualquer um pode ler.
— Vou fazer com que pareça uma carta de amor. Nós ainda somos um Par, afinal de contas. E fingimos bem. — Então ele sussurra. — Cássia... se nós pudéssemos escolher, você teria me escolhido?
Fico surpresa que ele tenha que perguntar. Então percebo que ele não sabe que, a certa altura, eu escolhi ele. Quando vi o seu rosto na tela e depois o de Ky, eu queria a segurança, o conhecido, o esperado. Queria o bom, o gentil, o belo. Queria Xander.
— E claro — digo.
Olhamos um para o outro e começamos a rir. Não conseguimos mais parar. Estamos rindo tanto que lágrimas descem pelos nossos rostos e Xander se afasta de mim, se dobrando e lutando para respirar.
— Nós ainda podemos acabar juntos — diz ele. — Depois de tudo isso.
— Podemos — concordo. — Então por que fazer isso?
Agora fico séria. Levou todo este tempo para eu entender o que o Vovô queria dizer. Por que ele não quis que guardassem a amostra de tecido. Por que não quis ter a chance de viver para sempre, em condições impostas por outros.
— Por que se trata de tomarmos as nossas próprias decisões — explico.
— É essa a questão, não é? Isso agora é maior do que nós. Ele ergue os olhos. — Eu sei.
Talvez para Xander tenha sido sempre maior do que nós. Porque, por muitos anos, ele viu mais, soube de mais coisas. Assim como Ky.
— Quantas vezes? — sussurro para Xander. Ele sacode a cabeça, confuso,
— Quantas vezes o resto de nós tomou o comprimido e não consegue se lembrar? — pergunto.
— Pelo que eu sei, uma vez — diz Xander. — Não usam muito com os cidadãos. Eu tinha certeza que iam nos dar depois que o filho dos Markham morreu, mas não deram. Mas teve um dia em que eu acho que
todo mundo no Bairro tomou. — Eu tomei? — Não tenho certeza — diz ele. — Não cheguei a ver você tomar.
Não sei. O que aconteceu? Xander sacode a cabeça. ― Não vou contar — ele sussurra. Não insisto mais. Eu não contei tudo para ele — o beijo na Colina, o
poema — e não posso pedir que ele faça o que eu não fiz. É um equilíbrio delicado, dizer a verdade: o quanto dividir, o quanto guardar, que verdades ferem mas não arruinam, quais aquelas que criam feridas profundas demais para sarar.
Em vez disso, eu faço um gesto para o envelope. — O que mais você colocou aí dentro? Além dos comprimidos.
Ele dá de ombros. Não tem muita coisa. Eu queria acima de tudo esconder os compri-
midos. Alguns botões de rosas novas, parecidas com as que nós plantamos. Não vão durar muito. Imprimi uma cópia de uma das Cem Pinturas no terminal, aquela que você estudou muito tempo atrás. Também não vai durar. — Ele tem razão. O papel dos terminais sempre deteriora rapidamente. Xander olha para mim, triste. — Você vai precisar usar tudo nos próximos meses.
Obrigada — digo. — Eu não tenho nada para você... tudo aconteceu tão rápido essa manhã... — Fico em silêncio de novo. Porque usei todo o meu tempo disponível com Ky. Mais uma vez, dei preferência a ele, em detrimento de Xander.
Tá tudo bem — diz ele. — Mas talvez... você pudesse... Ele olha profundamente nos meus olhos e eu sei o que quer. Um
beijo. Apesar de saber de Ky. Xander e eu ainda estamos ligados. Isso ainda é uma despedida. Eu já sei que aquele beijo seria doce. Seria o que ele teria para se agarrar, como eu me agarro ao de Ky.
Mas é algo que não acho que posso dar. — Xander... —Tudo bem — diz ele e se levanta. Eu também me levanto e ele
estende os braços e me aperta. Os braços de Xander são quentes, seguros e bons como sempre foram. Nos abraçamos com força.
Depois ele me solta e sai pelo caminho, sem mais nenhuma palavra. Não olha para trás. Mas eu o observo enquanto ele se vai. Observo-o pelo caminho todo, até a sua casa.
A viagem até nossa nova casa é bastante simples: pegar o trem aéreo até o Centro da Cidade, trocar para o trem aéreo de longa distância rumo aos Campos da Província Keya. A maior parte dos nossos bens cabe numa maleta carregada por cada um de nós. As poucas coisas que não cabem vão ser enviadas depois.Enquanto nós quatro caminhamos até a parada do trem aéreo, vizinhos e amigos aparecem para se despedir e nos desejar boa sorte. Sabem que estamos sendo Transferidos, mas não sabem a razão. Não é considerado educado perguntar. Quando chegamos ao final da rua, vemos que uma nova placa foi colocada no lugar: Bairro Jardim. Sem as árvores e sem o nome, o Bairro de Mapletree se foi. É como se nunca tivesse existido. Os Markham foram embora. Nós fomos embora. Todo mundo vai continuar a viver no Bairro Jardim. Já acrescentaram mais rosas novas em todos os canteiros.
A rapidez com que Ky desapareceu, com que os Markham desaparece-ram, com que nós vamos desaparecer me deixa gelada. É como se nunca tivéssemos existido. E de repente, lembro de um tempo, quando eu era pequena e costumava esperar o trem aéreo de volta para o Bairro de Pedra, e nós tínhamos caminhos feitos com pedras achatadas que conduziam às nossas portas.
Isto já aconteceu antes. Este Bairro vive mudando de nome. Que outras coisas ruins se escondem sob a superfície do nosso Bairro? Que coisas ruins enterramos sob as pedras, as árvores, as flores e as casas? Naquela vez, aquela que Xander não quis contar, quando todos nós tomamos o comprimido vermelho — o que aconteceu? Que outras pessoas partiram, e para onde elas realmente foram?
Elas não podiam escrever seus nomes, mas eu posso escrever o meu e vou escrevê-lo de novo, em algum lugar onde ele possa durar por muito, muito tempo. Vou encontrar o Ky e então descobrir que lugar é esse.Assim que chegamos ao trem aéreo de longa distância, minha mãe e Bram caem no sono, exauridos pela emoção e pelo esforço da viagem.
Acho estranho, com tudo o que aconteceu, que a obediência da minha mãe tenha determinado a necessidade da nossa Transferência. Ela sabia
demais e admitiu aquilo no relatório. Não poderia ter agido de forma diferente.
A viagem é longa e há outros viajantes. Nenhum soldado como Ky. Sol-dados viajam nos seus próprios trens. Mas há famílias cansadas que se parecem muito com a nossa, um grupo de Solteiros, que riem e conversam animadamente sobre seus trabalhos e, no último carro, algumas fileiras de moças mais ou menos da minha idade, que saem em missão de trabalho por alguns meses. Vejo essas moças com interesse. São garotas que náo obtiveram postos de trabalho e por isso vão vagar para onde forem necessárias, por algum tempo. Algumas parecem tristes, envelhecidas, decepcionadas. Outras olham pelas janelas com olhos cheios de interesse. Fico olhando para elas mais do que deveria. Devemos nos comportar com discrição. E eu devo me concentrar em encontrar Ky. Tenho equipamentos agora: comprimidos azuis, o artefato chamado bússola, conhecimentos sobre o rio Sísifo e lembranças de um avô que não se foi docemente.
Meu pai repara que estou olhando para as garotas. Enquanto minha mãe e Bram dormem, ele diz suavemente:
— Não me lembro do que aconteceu ontem. Mas eu sei que os Markham saíram do Bairro e acho que isso magoou você.
Tento mudar de assunto. Olho para minha mãe adormecida. — Por que não usaram o comprimido vermelho nela? Assim a gente
não precisaria ir embora. — O comprimido vermelho? — pergunta meu pai, surpreso. — Eles
são só para circunstâncias extremas. Não é esse o caso. — Então para minha surpresa, ele diz mais. Se dirige a mim como a um adulto. Mais do que isso, como a um igual.
— Eu sou um classificador nato, Cássia— diz ele. — Todas as informações me levam a crer que alguma coisa está errada. A forma com que levaram os artefatos. As viagens da sua mãe aos outros Arboretos. A lacuna na minha memória sobre o dia de ontem. Algo está errado. Estamos perdendo uma guerra e não sei dizer contra quem... pessoas de dentro ou pessoas de fora. Mas há sinais de rachaduras.
Faço que sim com a cabeça. Ky me disse quase a mesma coisa. Mas meu pai prossegue.
—E eu percebi outras coisas também. Eu acho que você está apaixonada por Ky Markham; Acho que quer encontrá-lo onde ele estiver — ele engole em seco.
Olho para minha mãe. Seus olhos agora estão abertos. Ela me olha com amor e compreensão e eu percebo: ela sabe o que meu pai fez. Ela sabe o que eu quero. Ela sabe, e apesar de ela não ser capaz de destruir uma amostra de tecido nem de amar alguém que não seja o Par dela, ela ainda nos ama, apesar de a gente ter feito essas coisas.
Meu pai sempre driblou as regras por aqueles que ele ama, assim como minha mãe sempre as cumpriu pela mesma razão. Talvez este seja mais um dos motivos que fazem deles um Par perfeito. Eu posso confiar no amor dos meus pais. E percebo que é uma coisa importante confiar, uma coisa importante de se ter,não importa o que possa vir a acontecer.
— Não podemos te dar a vida que você quer — diz meu pai, com os olhos úmidos. Ele olha para minha mãe, que faz um sinal para que ele prossiga.
— Eu queria que fosse diferente. Mas nós podemos te ajudar a ter a oportunidade de decidir que vida você deseja.
Fecho os olhos e peço aos anjos, a Ky e ao Vovô para ter forças. Depois eu os abro e olho direto para o meu pai.
— Como?
CAPÍTULO 32
MINHAS MÃOS ESTÃO NO SOLO. MEU CORPO ESTÁ CANSADO, MAS
não vou deixar que este trabalho leve embora os meus pensamentos.
Porque é o que os Funcionários daqui desejam: trabalhadores que
trabalhem, mas não pensem.
Não entre docemente.
Por isso eu luto. Luto da única forma que eu sei, pensando em Ky,
apesar de a dor da sua ausência ser tão forte que mal consigo suportá-la.
Ponho sementes no chão e as cubro com terra. Será que vão crescer na
direção do sol? Será que alguma coisa de errado vai acontecer para que
elas nunca brotem, nunca se transformem em nada, simplesmente
continuem aqui, apodrecendo? Eu penso nele, penso nele, penso nele.
Penso na minha família. Em Bram. Nos meus país. Aprendi algo sobre
o amor em meio a tudo isso — sobre o amor que tenho por Ky e o amor
que tenho por Xander e o amor que meus pais, Bram e eu temos uns pelos
outros. Quando chegamos à nossa nova casa, meus pais solicitaram que eu
fosse enviada numa missão de trabalho por três meses, por manifestar
sinais de rebeldia. Os Funcionários da nossa nova aldeia verificaram meus
dados, e eles batiam com a declaração dos meus país. Meu pai mencionou
uma missão em particular que tinha em mente: trabalho duro na fazenda,
plantando uma safra experimental de inverno em uma Província Ocidental
cortada pelo rio Sísifo. Ele, Xander e minha mãe me mantêm informada
sobre tudo o que ficam sabendo sobre onde Ky possa estar. Estou mais
próxima dele aqui. Eu sinto.
Eu penso em Xander. Poderíamos ter sido felizes, eu sei disso, e talvez
seja a coisa mais difícil de se saber. Eu poderia ter segurado sua mão,
quente e forte, e nós poderíamos ter tido o que meus pais têm e teria sido
lindo. Teria sido lindo.
Nós não somos acorrentados. Não temos para onde fugir. É com o
trabalho que eles nos esgotam. Não batem nem machucam a gente. Só
querem nos deixar cansados.
E eu estou cansada.
Quando penso em desistir, me lembro da última parte da história que
Ky me entregou, a parte que eu finalmente li antes de sairmos da nossa
casa pela última vez:
Cássia, ele escreveu no alto da página em letras que eram grandes,
claras e sem medo, que davam voltas, se moviam e rodopiavam
transformando o meu nome em algo belo, algo mais do que uma palavra.
Uma declaração, uma parte de uma canção, um pouco de arte,
emoldurada pelas mãos dele.
Só havia um Ky desenhado no guardanapo. Sorridente. Um sorriso em
que eu podia ver tanto quem ele havia sido e quem ele se tornara. As
mãos estavam vazias de novo, abertas e um pouco estendidas. Para mim.
Cássia.
Eu sei qual é a minha vida real agora, não importa o que aconteça. Ea
vida com você.
Pôr alguma razão, saber que pelo menos uma pessoa sabe da minha
história faz com que as coisas fiquem diferentes. Talvez seja como diz o
poema. Talvez esta seja a minha forma de não entrar docemente.
Amo você.
Também tive que queimar aquela parte da história, mas mantive o
calor daquele amo você bem perto de mim, como o vermelho, como um
novo começo.
Se não soubesse de partes da história de Ky e das palavras dos meus
poemas, eu talvez desistisse. Mas penso nas palavras e nos comprimidos e
na bússola escondidos, na minha família e em Xander que me enviam
mensagens pela tela do terminal do campo de trabalho que me informam
que ainda estão procurando. Ainda estão me ajudando.
Ás vezes, quando olho para as sementes pálidas que espalho na terra
negra, aquilo me lembra a noite do meu Banquete do Par, quando eu
imaginei que pudesse voar. A escuridão atrás de mim não me preocupa,
nem as estrelas adiante. Penso em como a melhor maneira de voar talvez
seja com as mãos cheias de terra, para que a gente nunca se esqueça de
onde veio, e de como pode ser difícil caminhar, às vezes.
E olho também para as minhas mãos, que se movem no formato das
minhas próprias invenções, das minhas próprias palavras. É difícil e eu
ainda não sou boa nisso. Eu as escrevo no solo onde planto e piso nelas,
cavo buracos, derramo as sementes para ver se vão crescer. Roubo um
pedaço de madeira queimada, enegrecida, de uma das fogueiras e
escrevo num guardanapo. Depois, em outra fogueira, minhas mãos
esbarram nas chamas com o guardanapo e as palavras morrem. Cinzas e
nada.
Minhas palavras nunca duram muito. Preciso destruí-las antes que al-
guém as veja.
Mas. Eu me lembro de todas elas. Por alguma razão, escrevê-las faz com
que eu me lembre. Cada palavra que escrevo me aproxima mais de
encontrar as palavras certas. E quando eu vir Kv de novo, o que eu sei que vai
acontecer, eu vou sussurrar as palavras que escrevi no seu ouvido, contra os
seus lábios. E, de cinzas e nada, elas vão se transformar em carne e osso.
Fim.
A trilogia “Matched” continua em “Crossed”.
Esta obra foi digitalizada/traduzida pela Comunidade Traduções e Digitalizações para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício da leitura àqueles que não podem pagar, ou ler em outras línguas. Dessa forma, a venda deste e‐book ou até mesmo a sua troca é totalmente
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Digitalização/Formatação: Leo