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CURSO DE DIREITO
JOGO DO BICHO: CONTRAVENÇÃO OU CRIME?
IVANILO ALVES DA SILVA R.A n.º 463474/4
TURMA: 03209R Nº 13 FONE: 5979-6002 e 8502-6396 E-MAIL: [email protected]
São Paulo 2006
1
IVANILO ALVES DA SILVA
Monografia apresentada à Banca Examinadora do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, como exigência parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito sob a orientação do Professor: Emerson Penha Malheiro.
São Paulo 2006
2
BANCA EXAMINADORA:
Professor orientador: _______________
Professor argüidor: _______________
Professor argüidor: _______________
São Paulo 2006
3
Dedico este trabalho a Adriana,
Júnior e Vinícius, razão maior do meu esforço.
4
AGRADECIMENTO
Agradeço aos meus mestres do Curso de Direito pela
dedicação, e em especial, ao Prof. Dr. Emerson Penha Malheiro
pelas valiosas orientações na confecção deste trabalho.
5
SINOPSE
Discute-se neste singelo trabalho a prática do jogo do bicho na atualidade,
procurando encontrar critérios científicos que possam nos levar a conclusão se é ou
não uma contravenção penal ou um crime, além de termos a oportunidade de
discutir este tema tão visível e corriqueiro de quem vive nos centros urbanos e não
pararam para refletir metodologicamente sobre a questão.
Adotamos como metodologia o estudo específico da doutrina, da Lei, da
jurisprudência e colhemos informações diretamente da parte infratora para inferirmos
com mais precisão a situação real de quem vive desta modalidade de “trabalho”, e
saber até que ponto esta conduta tem influenciado a sociedade em geral, e quais
seriam as conseqüências de uma maior criminalização ou liberação.
Supomos ter alcançado o propósito inicial que fora proposto na elaboração
do projeto, principalmente quando analisamos a objetividade jurídica do capítulo que
trata desta infração e a interpretação da norma penal.
Os outros capítulos do trabalho e de não menos relevância, tiveram papel
fundamental no desenvolvimento do trabalho, pois sem analisarmos a história da
contravenção penal, o conceito de crime, as características do jogo do bicho, outros
crimes assemelhados, a doutrina, a jurisprudência e outras leis esparsas, não
teríamos conseguido o resultado desejado e amparado nas bases fundamentais de
qualquer pesquisa científica.
6
SUMÁRIO SINOPSE.............................................................................................................. 06 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 09 1. CONTRAVENÇÃO PENAL............................................................................... 10 1.1 História da contravenção penal no Brasil.................................................... 10 1.2 Conceito....................................................................................................... 11 2. CRIME............................................................................................................... 14 2.1 Conceito....................................................................................................... 14 2.2 Divisão das infrações................................................................................... 15 2.2.1Sistema dicotômico ou bipartido.......................................................... 15 2.2.2 Sistema tricotômico ou tripartido........................................................ 16 3. JOGO DO BICHO.............................................................................................. 18 3.1 Histórico....................................................................................................... 18 3.2 Estrutura e organização do jogo do bicho................................................... 20 3.3 Conceito....................................................................................................... 23 3.4 Objetividade jurídica.................................................................................... 24 3.5 Sujeito ativo................................................................................................. 26 3.6 Sujeito passivo............................................................................................. 27 3.7 Elementos objetivos do tipo......................................................................... 27 3.8 Elementos subjetivos do tipo....................................................................... 30 3.9 Consumação e Tentativa............................................................................. 30 4. INTERPRETAÇÃO DA NORMA PENAL ......................................................... 32 5. CRIMES ASSEMELHADOS.............................................................................. 35 5.1 Quadrilha ou bando..................................................................................... 35 5.2 Outros Crimes.............................................................................................. 36 6. OBSERVAÇÕES ESPECÍFICAS...................................................................... 38 6.1 Contravenção Penal e a Lei n.º 9.099/95.................................................... 38 6.2 Jurisprudência.............................................................................................. 43 6.3 Doutrina....................................................................................................... 46 6.4 Projetos de Lei............................................................................................. 48 CONCLUSÃO........................................................................................................ 53 APÊNDICES.......................................................................................................... 56
7
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................... 63
8
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por escopo o estudo da infração do jogo do bicho, que
foi definido pelo legislador como Contravenção Penal pelo Decreto-Lei n.º 3.688/41,
e tem com objetivo principal, estabelecer uma linha divisória que esclareça até onde
esta infração pode ser considerada uma simples contravenção penal e
secundariamente analisar outros aspectos relevantes como v.g, a evolução da
norma, evolução da prática desta infração, a possibilidade de aplicação de outros
dispositivos penais, o posicionamento da sociedade, doutrina e jurisprudência
acerca do tema, a eficácia da norma em nosso sistema jurídico, bem como as
conseqüências para a sociedade que poderão ocorrer com a liberação ou elevação
ao status de crime desta modalidade de jogo e quais são as leis vigentes aplicáveis
a quem pratíca esta infração e suas conseqüências processuais atuais.
O trabalho se justifica pelo fato de que o jogo do bicho tem se
desenvolvido de forma assustadora e permeia as mais conceituadas Instituições
Brasileiras de forma direta e indireta, como v.g, na economia, no setor trabalhista,
nas polícias, na cultura e até mesmo no campo legislativo, razão pela qual
procuramos neste singelo trabalho mostrar as duas faces do jogo do bicho, os
benefícios e os malefícios.
Para isso, procuramos trazer os ensinamentos dos mais respeitados
doutrinadores a respeito do tema apontando as divergências e convergências de
opiniões e posicionamentos, bem como a mais atual jurisprudência e legislação
pertinente.
Com o intuito de não ficarmos limitados somente às formas convencionais
de pesquisa e trazermos informações verossimilhantes, fizemos uma longa pesquisa
de campo, na qual conseguimos entrevistas e depoimentos direto da fonte infratora
e, até mesmo tivemos a oportunidade de conhecer in loco a rotina de quem vive
dessa infração tão popular que é o jogo do bicho ,que vem, contra tudo e contra
todos, completando mais de um século de prática.
9
1. CONTRAVENÇÃO PENAL
Apontado por alguns doutrinadores como verdadeira intromissão do poder
de polícia nas legislações penais, a Lei das Contravenções Penais, de um modo
geral, vem perdendo o caráter repressivo e preventivo à que se pretendia
inicialmente com sua entrada em vigor, principalmente após a vigência da Lei n.º
9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) e da Lei n.º 10.259/01 (Lei
dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal), e que
foram recentemente alteradas pela Lei n.º 11.313/06, assunto que analisaremos
mais adiante.
1.1 História da Contravenção Penal no Brasil
Desde as Ordenações do Reino até a época do Brasil Holandês,
encontramos vestígios de práticas consideradas como crime que hoje são tipificadas
na Lei das Contravenções como, v.g, jogos de azar, que numa e noutra época sua
pena variava entre multas e/ou pequenos intervalos de privação de liberdade até
penas mais severas que vigoraram no Norte do Brasil em 1630, por conseqüência
da Invasão Holandesa.1
A primeira vez que foi usado o vocábulo contravenção para determinar
espécies de delitos foi no Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, de 11 de
Outubro de 1890 (arts. 364 a 404), no qual repetia com pouquíssimos acréscimos os
delitos do Código Criminal do Império do Brasil, de 7 de Janeiro de 1831, primeiro
código genuinamente brasileiro, quando trata Dos Crimes Policiaes (sic), no Livro IV,
Capítulos I ao VIII, (arts. 276 a 307).
1 PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil, 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 45-50.
10
Com pouquíssimos acréscimos, a Consolidação das Leis Penais de 1932,
repetiu o mesmo feito.
No dia 1º de Janeiro de 1942, passam a viger simultaneamente o Código
Penal, a Lei de Introdução ao Código Penal e a Lei das Contravenções Penais, esta
última, com veemente oposição do revisor Alcântara Machado2 que queria mantê-la
disciplinada no Código Penal, porém, foi vencido3 com argumentos de não se
misturarem assuntos de menor importância com obras destinadas a durarem por
longo tempo.
1.2 Conceito
Etimologicamente a palavra contravenção deriva do latim contraventione,
no sentido de transgressão, de ir contra, contravir, outrossim, na maioria dos países
a palavra tem o mesmo sentido.
No Brasil a palavra contravenção traz a idéia de ilicitude de menor
importância que crime, assim, é comum as pessoas dizerem: “é só contravenção”,
ou seja, a população ameniza ainda mais o que a lei pretendeu amenizar, nessa
esteira, incute nas pessoas a idéia de que contravenção não tem muita importância
para nosso ordenamento jurídico.
A Lei de Introdução ao Código Penal Brasileiro4, diferencia no artigo 1º, as
infrações penais em crime e contravenção, adotando, desta forma, a teoria bipartida
dos delitos, ao contrário de outros países que adotam a teoria tripartida das
infrações penais, que analisaremos mais apuradamente em tópico próprio. Por
enquanto, preferimos ficar com a definição legal a seguir transcrita:
2 SOUZA, Carlos Fernando Mathias de. Evolução histórica do Direito brasileiro. (XXVI): o século XX, disponível em <http://www.unb.br/fd/colunasprof/carlosmathias/anterior27.html>, acesso em 4 de fevereiro de 2006. 3 Exposição de Motivos do Código Penal, item 2. 4 Decreto-Lei 3.914, de 9 de Dezembro de 1941.
11
“Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de
reclusão ou detenção, quer isoladamente, que alternativamente ou
cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a pena a que a
lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou
ambas alternativamente ou cumulativamente”.(grifo nosso)
Fica evidente, ab initio, que a única distinção legal entre crime e
contravenção é o critério qualitativo da pena, não obstante tenha a doutrina
alienígena infrutiferamente tentado diferenciá-los5.
A doutrina também tem chamado a contravenção de “crime-anão” 6,
devido a sua pouca potencialidade em lesar os interesses sociais relevantes que o
legislador quis proteger, cominando-lhe sanções menos severa que aos crimes
propriamente ditos.
É preciso não olvidar que o legislador ao sancionar a referida lei, pretendia
resguardar os interesses daquela época, sendo questionável a existência desses
valores nos dias de hoje.
Portanto, contravenção penal é todo delito que prevê cominação de prisão
simples ou multa, ou ambas alternativamente ou cumulativamente.
Vale lembrar que existem contravenções penais disciplinadas em outros
diplomas legais como, verbi gratia, na Lei n.º 8.245/91 (Lei do Inquilinato) e na Lei
n.º 4.771/65 (Código Florestal), desta forma, quando outras leis não dispuserem de
maneira diversa, serão aplicadas as disposições gerais da Lei das Contravenções
Penais e Código penal, respectivamente nesta ordem, diante do critério da
especialidade.
5 F. Antolisei, Manual de Derecho Penal, Uteha Argentina: Buenos Aires, 1960, p. 139, apud ZAFARRONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 6 JÚNIOR, Arthur Migliari. Lei das Contravenções Penais e Leis Especiais Correlatas, 1 ed., São Paulo: Interlex, 2000, p. 18.
12
Nessa esteira, é preciso não olvidar que a lei geral que beneficia o réu é
exceção ao critério da especialidade.7
7 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 137.
13
2. CRIME
2.1 Conceito
A doutrina conceitua crime ou delito sob três aspectos: material ou
substancial (conteúdo do fato punível); formal ou nominal (aspecto externo); e,
analítico ou dogmático (características).
O que nos interessa no momento é a definição legal do que seja crime
stricto sensu, para que, quando comparado à contravenção penal, a definição seja
suficiente para sabermos se estamos diante de um ou de outro delito.
Nesta ótica, e sem desprezar as conceituações doutrinárias, melhor nos
apraz que crime seja a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de
detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de
multa.
A distinção formal que nos dá o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código
Penal é bastante clara para sabermos quando estamos diante de um crime (ou
delito), ou uma contravenção, verificando-se apenas a qualidade da pena.
No entanto, a maior parte da doutrina fala em qualidade/quantidade, esta
última em relação à gravidade que o legislador quis dar ao fato e que tem
implicações no âmbito da reincidência, tentativa, local de cumprimento, regressão, e
etc.
Quanto à gravidade que o legislador quis dar ao fato, ainda restam
dúvidas. Pois, quando verificamos a quantidade de pena, não se sustenta o critério
quantitativo sob este prisma, visto que, existem crimes em que a pena máxima é de
3 meses de detenção (art. 320 do CP), enquanto que existem contravenções com
pena máxima de 2 anos de prisão simples (art. 51 da LCP).
14
Ora, se o cumprimento inicial da pena de prisão simples deve ser em
regime semi-aberto ou aberto assim como a detenção, deduz-se que o legislador
fugiu do propósito, ao menos em tese, de atribuir menor gravidade às
contravenções, contudo este não é o posicionamento majoritário8.
É verdade que a lei das contravenções penais determina que não se
misturem no mesmo local de cumprimento da pena, condenados à reclusão ou
detenção por crime, mas mesmo que se respeitasse a garantia constitucional da
individualização da pena, estar-se-ia atribuindo maior quantidade ao contraventor do
que o condenado por crime.
A questão é complexa, e talvez tenha sido algumas destas questões que
fizeram o Professor Alcântara Machado defender que as contravenções viessem
tipificadas no Código Penal, como eram antes do Código Penal de 1940.
2.2 Divisão das infrações
O fundamento da divisão das infrações é dar tratamento diferenciado as
infrações penais conforme sua gravidade num determinado momento da sociedade,
prescrevendo ao preceito secundário do tipo penal a valoração normativa do fato.
Nessa esteira, encontramos o sistema dicotômico e o tricotômico.
2.2.1 Sistema dicotômico ou bipartido
Adotado pelo Brasil, Itália, Peru, Suíça, Dinamarca, Noruega, Finlândia,
Holanda, Portugal, Alemanha e etc, este sistema divide as infrações em crimes ou
delitos (como sinônimos), e contravenções. 8 ZAFARRONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. op. cit., p. 140.
15
A doutrina é majoritária em afirmar que não encontra distinção ontológica
entre crimes ou delitos e contravenções, tanto que a distinção é meramente em
relação à qualidade da pena que o legislador quis dar ao fato, embora muitos
doutrinadores tentassem sem êxito, apresentar um critério distintivo de forma
segura.
A adoção deste sistema acarreta algumas diferenças em nosso
ordenamento jurídico em razão da especialidade da Lei das Contravenções Penais,
pois caso não existisse lei especial, seriam aplicadas na integralidade as disposições
gerais do Código Penal.
As principais diferenças são: impossibilidade de punição da tentativa;
separação dos condenados à pena de reclusão e detenção; a culpa é regra geral; a
pena pode deixar de ser aplicada por erro ou ignorância sobre a lei quando
escusáveis; a contravenção não gera reincidência quando se pratica posteriormente
um crime, e etc.
2.2.2 Sistema tricotômico ou tripartido
Em 1810 a França foi o primeiro país a implantar o sistema tricotômico das
infrações separando-as em crimes, delitos e contravenções, o que fez com que
naquela época vários países o imitassem9, pois naquele tempo não havia
preocupação em distinguir um ou outro delito senão pelo grau de punição, começa
nesta época uma maior preocupação com o tecnicismo.
A França, precursora do sistema tripartido, mantém o mesmo critério, no
entanto, exalta que a tripartição é baseada na gravidade da conduta.
9 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 4. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 1970. v. 1, t. 1. p. 197.
16
Outros países como a Bélgica, Áustria, Japão, Grécia e recentemente a
Espanha, adotam a tripartição das infrações.
Dentre as utilidades desse sistema, destacam-se principalmente, os
argumentos de melhor determinação da competência e espécie de procedimento a
ser adotado num e noutro, e traduz “de maneira mais justa a hierarquia dos
comportamentos reprováveis”10.
10 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 5. ed. rev., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 255 e 256.
17
3. JOGO DO BICHO
3.1 Histórico
Tudo começou com o visionário comerciante mineiro, João Batista Viana
Drummond, que em 1871 solicitou à Corte a instalação de uma linha Ferro Carril,
bonde movido à tração animal, ligando o centro da cidade do Rio de Janeiro a
Fazenda dos Macacos, propriedade abandonada pela Família Real desde a sua
mudança para a Europa em 1830.
Em 1872, o Barão propôs à Coroa a compra da Fazenda para nela
projetar um novo Bairro que ganhou o nome de Vila Isabel em homenagem a
Princesa Isabel.
Em 1888 ganhou do Imperador Dom Pedro II, o título de Barão de
Drummond e no mesmo ano fundou o Jardim Zoológico recebendo subvenção de 10
contos de réis por ano, visto que era franqueado ao público. Amante dos animais
dava aula de zoologia.
Com o advento da República em 1889, a subvenção foi cortada e o Barão
que tinha empregado toda a sua fortuna na compra de animais para o zoológico e
manutenção, passou a experimentar uma grande crise financeira.
Neste momento entra em cena o seu amigo mexicano Manuel Ismael
Zevada, que bancava sem muito sucesso na Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro, o
Jogo das Flores explorado no México, sua cidade natal, propõe sociedade com o
Barão.
Substituindo as flores por 25 animais, eram carimbados e escritos os
nomes de um bicho no bilhete do zoológico que custava mil réis a entrada. Como
18
prêmio, seriam repassados a quem tivesse o bilhete com o bicho sorteado, vinte mil
réis.
Atualmente, fora as variações do jogo, paga-se quando se aposta no
“bicho”, exatamente a mesma proporção, ou seja, vinte vezes o valor da aposta, só
que 25% do pagamento é feito ao “cambista” à título de comissão, ganhando o
“apostador” quinze vezes o valor apostado.
Pela manhã, na entrada do zoológico, era içado num mastro (daí a
expressão “deu no poste”), um quadro completamente coberto e tapado no qual
estava desenhado e escrito o nome do bicho do dia, pela tarde era descoberto o
quadro na presença dos visitantes.
Principalmente a população mais pobre que não tinha alternativas para
ganhar dinheiro, vislumbrou na idéia uma forma de conseguir algum dinheiro extra,
passando a não pedir mais um ingresso e sim, pedindo um macaco, uma vaca e etc.
Percebe-se que nesta época havia poucas formas de entretenimento,
razão pela qual o jogo ganhou grande espaço.
Diante do enorme sucesso o Barão saiu da crise ganhando muito dinheiro
com seu sócio Zevada, tanto que houve necessidade de colocar mais bondes extras
aos domingos por conta da superlotação para as pessoas virem ao zoológico, e não
mais com a intenção de somente ver os bichos, mas também adivinhar e ganhar o
prêmio, ou como se diz até hoje “fazer uma fezinha”.
Com a popularidade aumentando, não demorou muito para que as
apostas fossem feitas em armazéns e botequins por pessoas que aproveitavam o
resultado do zoológico criando enormes confusões, razão pela qual em 1894 o
governo proibiu o sorteio.
Mesmo assim o sorteio ocorria na clandestinidade com a ajuda da polícia
que fingia não ver em troca de algum dinheiro.
19
Em 1897 morre o Barão de Drummond. O jogo se espalha por todo país e
transforma-se no mais popular jogo do Brasil até os dias de hoje. Em 1941 é
transformado em contravenção penal.11
Como vimos, o jogo do bicho não é tradicionalmente brasileiro, a idéia foi
apenas adaptada a uma situação de crise e adquiriu características próprias.
O Ex-Senador Érico Coelho encontrou vestígios deste jogo no Cambodje,
chegando a apresentar projeto de lei para sua regularização.
3.2 Estrutura e organização do jogo do bicho
Em longa pesquisa de campo e entrevista concedida por um banqueiro do
jogo do bicho na zona sul de São Paulo, que evidentemente quis se manter no
anonimato deu-nos detalhes da organização e funcionamento da contravenção.
Segundo o entrevistado, existem aproximadamente 500 banqueiros de
jogo do bicho no Estado de São Paulo. Cada banqueiro conta com a média de 10
“recolhe” (motoqueiros ou não, incumbidos da tarefa de fazer chegar em suas mãos
os envelopes recolhidos nos pontos de aposta, mediante salário ou comissão).
Cada “recolhe”, recolhe em média 35 envelopes dos cambistas três vezes
ao dia de segunda a sábado e uma vez no domingo. Cada cambista manda em
média 40 “pules” por loteria de variados valores. Para tanto, os cambistas recebem
comissões que variam de 20% a 25% mais um aluguel de 5% a 10% que é calculado
sobre o valor bruto mensal do que ele, o cambista, fez durante o mês.
Dentro da banca, trabalham no mínimo uma pessoa para repassar o
resultado do sorteio, uma para somar o valor total das pules (envelope por
envelope), uma para retirar, conferir e anotar no anverso do envelope a quantidade 11 ALENCAR, Chico. Jogo dos Bichos. São Paulo: Moderna, 1995.
20
de dinheiro ou cheque que o cambista mandou para banca, e uma para conferir pule
por pule, quais pules contém o número sorteado.
Após terem somado as pules, apurado os prêmios e subtraída a comissão
dos cambistas, é tudo anotado no anverso do envelope. O próximo passo é digitar
no computador (que tem programa feito por encomenda) todas aquelas informações,
sendo que cada envelope é identificado por um número previamente estabelecido,
um código.
Feito tudo isto é impressa uma folha que sai tudo especificado e no final,
se o cambista tem dinheiro para receber ou esta devendo. Se tiver dinheiro a
receber, seja porque deu prêmio ou mandou dinheiro sobrando, é grampeado em
um saquinho plástico o referido valor em espécie, caso o prêmio seja de valor
elevado convoca-se o apostador para receber pessoalmente ou manda cheque
cruzado.
O banqueiro estabelece aos seus cambistas um limite de valor para as
apostas, quando ultrapassa o valor estipulado o cambista liga para a banca
descrevendo a pule, em seguida o banqueiro repassa o excesso para outro
banqueiro para no caso de ser sorteada a referida aposta, não ter que suportar
sozinho o prejuízo.
Esclarece que existe um banqueiro famoso em São Paulo que só banca
este tipo de aposta, é o banqueiro dos banqueiros.
Para que aconteça tudo o que acabamos de apontar é necessário que
ocorra alguns fatores externos.
Primeiramente que não haja repressão da polícia, pois nestas épocas os
cambistas ficam assustados e param de fazer o jogo. Para que isso não ocorra
fazem um pagamento mensal aos chefes dos investigadores das delegacias onde
tem ponto de jogo e, ainda ao chefe da seccional das referidas delegacias cujo valor
não quis revelar.
21
Segundo, que o resultado do sorteio seja confiável, para isso, em quase
todo Brasil o sorteio do Rio de Janeiro é adotado, desta forma, o apostador poderá
conferir sua aposta em qualquer lugar que o resultado será o mesmo, isto faz com
que exista maior confiabilidade e não sofra manipulações.
Terceiro e fundamental é que as apostas cheguem na banca
pontualmente, pois cinco minutos após o horário determinado, sai o resultado do
sorteio para todo Brasil, e o jogo que não estiver em suas mãos neste horário será
suspeito.
É verdade que pode acontecer algum imprevisto que atrase a chegada do
recolhe, mas neste caso vale o bom senso e a confiança que tem em seu pessoal,
pois apesar de não ser obrigado a pagar os prêmios que chegarem fora do horário é
o seu nome que está em jogo.
Os sorteios são os seguintes: PT (Paratodos, que é realizado de segunda
a sábado e sorteado às 14:00 hs da tarde); PTN (Paratodos Noturno, que é
realizado de segunda a sábado e sorteado às 18:00 hs da tarde, exceto nos dias de
quarta-feira e sábado em que se acolhe o resultado da Loteria Federal aproveitando
somente até a casa da milhar); CJ (Corujinha, realizado de segunda-feira a sábado e
sorteado as 21:00 hs); e, PTD (Paratodos Domingueira, realizado no Domingo as
14:00 hs).
Existem outros sorteios Estaduais que são bancados conjuntamente com
outros sorteios, mas devem ser especificados nas pules quais sorteios estarão
concorrendo.
Há uma enorme quantidade de opções para se jogar podendo variar da
unidade até a milhar e valendo do primeiro ao sétimo prêmio.
22
3.3 Conceito
A definição legal de jogo do bicho encontra-se no artigo 58 do Decreto-Lei
n.º 3.688 de 1941, que foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 6.259 de 1944, e traz a
seguinte redação:
“Art. 58. Realizar o denominado “jogo do Bicho”, em que um dos
participantes, considerado comprador ou ponto, entrega certa
quantia com a indicação de combinações de algarismos ou nome
de animais, a que correspondem números, ao outro participante,
considerado o vendedor ou banqueiro, que se obriga mediante
qualquer sorteio ao pagamento de prêmios em dinheiro. Penas de
6 (seis) meses a 1 (um) ano de prisão simples e multa de dez mil
cruzeiros, a cinqüenta mil cruzeiros ao vendedor ou banqueiro, e de 40
(quarenta) a 30 (trinta) dias de prisão celular ou multa de duzentos
cruzeiros a quinhentos cruzeiros ao comprador ou ponto.
§ 1º Incorrerão nas penas estabelecidas para vendedores ou
banqueiros:
a) os que servirem de intermediários na efetuação do jogo;
b) os que transportarem, conduzirem, possuírem, tiverem sob sua
guarda ou poder, fabricarem, derem, cederem, trocarem, guardarem
em qualquer parte, listas com indicações do jogo ou material próprio
para a contravenção, bem como de qualquer forma contribuírem
para a sua confecção, utilização, curso ou emprego, seja qual for a
sua espécie ou quantidade;
c) os que procederem à apuração de listas ou à organização de
mapas relativos ao movimento do jogo;
d) os que por qualquer modo promoverem ou facilitarem a realização
do jogo.
§ 2º Consideram-se idôneos para a prova do ato contravencional
quaisquer listas com indicações claras ou disfarçadas, uma vez que a
23
perícia revele se destinarem à perpetração do jogo do bicho.” (grifo
nosso).
A maioria dos dicionários define o jogo do bicho como sendo o “tipo de
loteria na qual se joga sobre os finais 0000 a 9999, cujas dezenas correspondem a
25 grupos, cada um com o nome de um animal, a saber: avestruz, águia, burro,
borboleta, cachorro, cabra, carneiro, camelo, cobra, coelho, cavalo, elefante, galo,
gato, jacaré, leão, macaco, porco, pavão, peru, touro, tigre, urso, veado, vaca.”12
É também criticado por ser o jogo dos ignorantes por não obedecer à
ordem alfabética.
3.4 Objetividade jurídica
Entende-se por objetividade jurídica o que a lei quer proteger, no caso,
são os bons costumes, que por sua vez é uma regra de conduta praticada de modo
geral, constante e uniforme, com a consciência de sua obrigatoriedade13.
A doutrina é inflexível em não admitir o costume para criar ou revogar a lei
penal, admitido-o somente, para interpretação de alguns elementos do tipo como,
v.g, honra, ato obsceno e etc, e na elaboração da lei.
Se o costume é fonte na elaboração das leis, seria uma incoerência
acreditar que o mesmo costume não seria capaz de ser fonte para revogar uma lei,
até mesmo por uma regra de silogismo jurídico em que a revogação nada mais é
que a criação de uma norma que a revogue.
12 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 785. 13 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 46.
24
O fato de nosso poder legiferante não acompanhar o dinamismo das
relações sociais faz com que nosso ordenamento jurídico esteja a mercê de se
deparar com situações em que a norma já não tenha todos os requisitos de validade,
no caso da prática do jogo do bicho, percebemos que não há eficácia social ou
efetividade da norma14.
Não defendemos, no momento, se o jogo do bicho é ou não um bom
costume que o legislador deveria revogar formalmente, já que socialmente foi
revogado, o que questionamos é que nosso ordenamento, numa interpretação
sistemática, desvirtuou-se do propósito inicial de coibir o jogo como forma de
repudiar o lucro fácil, a ociosidade, imoralidade e etc, logo, a objetividade jurídica
colimada quanto a este fato não faz mais sentido, visto que o único fundamento para
aplicação deste tipo contravencional é que há lei e deve ser aplicada até que outra
lei a revogue.
Não foram poucas as tentativas de negar vigência ao tipo contravencional
do jogo do bicho com base no costume, na exploração de jogos de azar pelo
governo e etc, no entanto, apesar de tudo o que foi exposto sobre o costume contra
legem, vivemos sob o império da legalidade e devemos a ela nos curvar sob pena de
instituirmos o arbítrio.
Sabia é a lição de Montesquieu que diz: “... O juiz é a boca da lei. Ao
legislador compete derrogar ou revogá-la, ao exercício de seu poder”.15
Cabe agora saber qual é a verdadeira objetividade jurídica do delito em
exame já que o legislador ao instituir loterias nos leva a crer que o jogo legal é
moralmente correto e o jogo ilegal é imoral. Entendemos não haver diferença
ontológica entre jogo legal e ilegal, portanto, só podemos concluir que a única
objetividade jurídica é o monopólio na exploração dos jogos de azar.
14 JÚNIOR, Paulo Hamilton Siqueira. Lições de Introdução ao Direito. 4. ed. rev., aum. e atual. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 188. 15 JUNIOR, Arthur Migliari. op. cit., p. 160.
25
3.5 Sujeito ativo
Podem praticar a conduta ilícita qualquer pessoa, no entanto, quando
analisamos sua estrutura observamos que o tipo exige plurissubjetividade ativa, ou
seja, que haja um sujeito bancando e outro apostando ou participando de qualquer
maneira.
Assim, temos a figura do vendedor ou banqueiro, apostador ou comprador
e os intermediários que são equiparados aos primeiros para fins de aplicação da
pena.
A Súmula 51 do STJ pôs fim à minoritária divergência jurisprudencial que
entendia ser necessária a identificação do banqueiro ou apostador para punição do
intermediário, visto que o tipo em comento apesar de ser plurissubjetivo não exige a
identificação ou punição do banqueiro ou vendedor para punir o intermediário, pois
“a responsabilidade penal é individual, de modo que no caso de co-autoria ou
participação não se exige a punição de todas”.16
Com fulcro nas afirmações feitas no final do item anterior podemos chegar
a seguinte conclusão: se não é imoral jogar nas loterias exploradas pelo governo,
também não seria ilegal jogar, ou seja, o apostador ao jogar não comete delito
algum, visto que o ato de jogar não é imoral; ocorre o mesmo com as pessoas que
trabalham direta ou indiretamente para o banqueiro, pois visam somente uma
oportunidade de trabalho e não podemos considerar o trabalho como imoral, contra
os bons costumes.
O que queremos dizer é que, se afastarmos o costume como objetividade
jurídica da norma em estudo, afastaremos também a tipicidade de quem não seja o
“banqueiro”, este sim, se considerarmos a objetividade jurídica realidade, seria o
verdadeiro transgressor da norma pelo fato de realizar a exploração do jogo não 16 JESUS, Damásio Evangelista de. Lei das Contravenções Penais Anotada. 5.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 201.
26
permitido pelo legislador, visto que, o que a norma visa proteger é a exploração
clandestina e não o ato de apostar nos jogos de azar.
3.6 Sujeito Passivo
É o Estado. Poderíamos destacar uma enormidade de prejuízos que o
Estado sofre com a realização clandestina do denominado jogo do bicho, como v.g,
sonegação de impostos, corrupção passiva de seus funcionários e etc, só não
podemos concordar com fundamento de proteger os bons costumes (ver item 3.4),
como ainda insistem alguns autores17, pois do nosso ponto de vista o bem
juridicamente tutelado não mais se sustenta diante da exploração pelo próprio
Estado das mais variadas formas de jogo.
Cabe ressaltar que nosso ponto de vista é extremamente jurídico, isto
significa que, assim como o Estado, a coletividade também é atingida violentamente
com a propagação de jogos, sejam eles legais ou ilegais, o que a torna também
sujeito passivo material da conduta quando a exploração não for feita pelo Estado.
3.7 Elementos Objetivos do Tipo
No caput do artigo em estudo a conduta descrita é realizar, ou seja, tornar
real, efetivo, existente o denominado jogo do bicho, que é o objeto da conduta ilícita,
seja bancando, montando, instalando, fazendo, administrando e etc, pois o tipo não
exige conduta específica do agente.18
Em seguida, o caput do artigo 58 define o jogo do bicho como sendo a
atividade em que um dos participantes, considerado comprador ou ponto (aponta um
17 JÚNIOR, Arthur Migliari. op. cit., p. 165. 18 Ibidem, mesma página.
27
dos sujeitos ativos, o apostador), entrega certa quantia (não precisa ser
necessariamente moeda corrente, podendo ser qualquer objeto que tenha valor
econômico) com a indicação de combinações de algarismos ou nome de animais, a
que correspondem números, ao outro participante, considerado o vendedor ou
banqueiro (segundo sujeito ativo conhecido como “banqueiro”), que se obriga
(obrigação natural 19) mediante qualquer sorteio ao pagamento de prêmios em
dinheiro (como foi dito, basta o valor econômico).
O parágrafo primeiro prescreve as mesmas penas estabelecidas ao
banqueiro ou vendedor aos que praticarem as condutas das alíneas “a”, “b”, “c” e “d”,
ou seja, aquele que não for “apostador” terá pena mais grave.
A alínea “a” do § 1º fala em: “os que servirem (auxiliam, ajudam) de
intermediários (entre o banqueiro e o apostador) na efetuação (realização) do jogo.”
(grifo nosso).
Esta conduta é dirigida ao intermediário que normalmente é o que aparece
no negócio, é o “cambista” (vide item 3.2).
A alínea “b” do § 1º aponta as condutas de transportar (levar de um local
para outro), conduzir (guiar, orientar), possuírem (ter em seu poder com “animus
domini”), tiverem sob sua guarda ou poder (sem, contudo, serem proprietários),
fabricarem (manufaturar, construir, cunhar), derem (presentear, doar), cederem
(transferir a posse ou propriedade), trocarem (dar uma coisa por outra), guardarem
em qualquer parte (conservar, manter), material próprio para a contravenção.
Na segunda parte deste dispositivo o legislador abarca os que “de
qualquer forma” (expressão vaga que engloba outras condutas não descritas
destinadas a realizar o jogo do bicho), contribuem (cooperar, concorrer, colaborar),
para a confecção (preparar, executar), utilização (tornar útil, fazer uso de) curso
19 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2. p. 63 a 77.
28
(rumo, direção) ou emprego (aplicação, uso), seja qual for a sua espécie (gênero,
natureza) ou quantidade (medida).
A alínea “c” do § 1º abrange os que procederem (levar a efeito, fazer,
executar) à apuração ou à organização de mapas, ou seja, visa punir as condutas de
quem sorteia e auxilia na contabilidade do “jogo do bicho”.
Por fim, a alínea “d” do § 1º ao usar a expressão “qualquer modo”, amplia
o rol das condutas que, embora não descritas, promovem (dar impulso a, trabalhar a
favor de, favorecer o progresso de, fazer avançar, fomentar) facilitam (tornar ou fazer
fácil) a realização do jogo do bicho.
O objetivo do exame dos elementos objetivos do tipo é de essencial
relevância para sabermos se a conduta é típica ou atípica, ou seja, se a conduta
praticada pelo agente não estiver descrita no tipo penal não poderá ser considerada
ilícita diante do princípio da legalidade.
Porém, as condutas mencionadas no dispositivo em estudo são apenas
exemplificativas, visto que usa termos vagos como v.g, “qualquer modo”, logo,
qualquer que seja a conduta destinada à realização do jogo do bicho, será
penalmente punível.
Diante do exposto, conclui-se que todos os esforços em analisar cada
conduta em separado só têm relevância científica, visto que, do ponto de vista
prático, qualquer conduta que não seja a de apostar, será equiparada a do
“banqueiro” conforme preceitua o § 1º do artigo 58 da Lei n.º 6.259/44, para fins de
aplicação da pena.
É uma verdadeira válvula de escape do legislador para punir qualquer
conduta que contribua na realização do “jogo do bicho”.20
20 NETO, Olavo de Oliveira. Comentários à Lei das Contravenções Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 194.
29
3.8 Elementos Subjetivos do Tipo
É o dolo. Exige uma conduta comissiva, visto que todas as condutas
analisadas no item anterior são praticadas por ação e sempre no intuito de realizar o
jogo do bicho. Logo, inexiste a prática do delito por culpa.
Havia enormes discussões acerca da voluntariedade (vontade sem
finalidade), querendo alguns autores separar a voluntariedade do campo do dolo e
da culpa, o que daria azo à responsabilidade penal objetiva.
Com o advento da lei reformadora da parte geral do código penal de 1984,
acabou-se a discussão acerca do assunto ao adotar a teoria finalista da ação e
conseqüentemente, vedando a responsabilidade objetiva que decorria da adoção da
teoria psicológico-normativa em que o dolo e a culpa eram formas de
culpabilidade.21
3.9 Consumação e Tentativa
A infração se consuma com a simples realização da conduta descrita, que
por sua vez, deve ser praticada com o dolo do agente.
O momento consumativo é de extrema importância para que seja possível
a punição do agente, já que o artigo 4º da Lei das Contravenções Penais dispõe que
a tentativa não é punível, portanto é possível a aplicação da lei quando o agente se
encontrar em estado de flagrante.
O maior fundamento que se atribui a não punição da tentativa da
contravenção é o fato de que a própria infração é de menor potencial ofensivo ao
21 JESUS, Damásio Evangelista de. op. cit., p. 25 e 26.
30
bem juridicamente tutelado, desta forma, a tentativa nestes casos não é relevante
para que mereça uma punição, assim quis o legislador.22
22 JESUS, Damásio Evangelista de. op. cit., p. 33.
31
4- INTERPRETAÇÃO DA NORMA PENAL
Interpretação é “o processo lógico que procura estabelecer a vontade
contida na norma jurídica”23, o que pode ser alcançado por vários meios de
interpretação: gramatical, lógico, histórica, sociológica e teleológica.
Não fosse o emaranhado de normas existentes, não haveria necessidade
de interpretar o alcance de uma norma em relação a determinados fatos.
Vejamos alguns exemplos colhidos na legislação que pode levar ao leitor
precipitado a uma interpretação errônea do verdadeiro alcance e sentido da norma.
O artigo 288 do Código Penal diz que: “Associarem-se mais de três
pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes:” (grifo nosso)
A palavra crimes deve ser entendida no sentido da própria definição legal
que traz o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, qual seja, a de que, se a
associação for para a prática de contravenção penal estaria configurada a
atipicidade da conduta 24, pois a doutrina é pacifica em afirmar que as normas
incriminadoras não podem ser ampliadas para prejudicar o réu.
Da mesma forma, em outras oportunidades a lei fala em crime e que dizer
crime mesmo e não contravenção, como v.g, nos artigos 138 caput e 180 caput do
Código Penal, outrossim, devemos usar o mesmo fundamento do parágrafo anterior.
No exemplo a seguir podemos observar que o legislador quando fala em
crime, quer dizer crime e contravenção:
“Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou
superior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério
23 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal.15. ed. São Paulo: Saraiva, 1978. v. 1, p. 80. 24 NUCCI, Guilherme de Souza. op. cit., p. 870.
32
Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do
processo, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não
esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro
crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão
condicional da pena (art.77 do CP).” (grifo nosso)
Veja, que o legislador usou o termo crime duas vezes, na primeira ele
quer dizer crime e contravenção, na segunda quer dizer só crime e não
contravenção.
Primeiramente, atentemos para o fato de que esta norma não é
incriminadora, o que nos leva a possibilidade de aplicar este dispositivo de forma
analógica em beneficio do réu, pois se for feita uma interpretação teleológica
(finalidade da norma), logicamente chegaremos à conclusão de que, quando o
legislador previu a possibilidade de aplicar a suspensão condicional do processo aos
infratores de crime, ou seja, de gravidade maior, não poderia deixar de fora o menos
(contravenção penal), sob pena de violar o principio da igualdade.25
De forma semelhante, o uso da palavra crime na segunda parte do
dispositivo, poderia prejudicar o infrator condenado a uma contravenção se fosse
dada interpretação literal, porém, a interpretação que deve ser feita (teleológica) é a
de que a condenação anterior por contravenção não pode impedir a concessão da
suspensão diante do fato de que o legislador só quis impedir o beneficio em
situações de maior gravidade, o que decorre da mesma interpretação que fazemos
quando interpretamos os critérios para consideração da reincidência.
Diante do exposto, não fica difícil compreender os motivos pelos quais as
normas incriminadoras devem ser interpretadas em sentido estrito e não ampliadas
ao sabor de quem as aplica, às não incriminadoras poderão socorrer-se até mesmo
da analogia (in bonam partem), diante da necessidade de se perquirir o sentido da
25 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais: Comentários à lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 199.
33
norma em nosso plexo jurídico e as vezes, a imprecisão do legislador na elaboração
das normas.
34
5- CRIMES ASSEMELHADOS
Explicamos no capítulo anterior a correta interpretação da norma que o
interprete do direito deve fazer para se chegar ao verdadeiro sentido da norma,
ampliando ou restringindo seu alcance quando da análise de seu conteúdo.
Deixando de lado por um momento o critério da especialidade, princípio da
legalidade e a forma de interpretação da norma incriminadora, pretendemos
esclarecer porque não podem ser imputados outros crimes na infração do jogo do
bicho.
5.1 Quadrilha ou Bando
O artigo 288 do Código Penal prescreve que: “Associarem-se mais de três
pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes: Pena – reclusão , de
1 (um) a 3 (três) anos. Parágrafo único. A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha
ou bando é armado.”
Sem necessidade de fazer longas elucubrações, a doutrina é unânime em
afirmar que esta infração é direcionada aos que têm por objetivo o cometimento de
crimes (contravenção não)26.
É praticamente impossível que o jogo do bicho se desenvolva
regularmente sem que participe no mínimo quatro pessoas como vimos no item 3.2,
assim, e se considerarmos que além da finalidade destes autores em praticar a
infração do jogo do bicho eles são no mínimo co-autores ou partícipes nos crimes
que se desencadeiam a partir da prática de seus atos, seria possível a punição por
outra infração.
26 TOURINHO, Jose Lafaieti Barbosa. Crime de quadrilha ou bando & Associações criminosas. Curitiba: Juruá, 2004. p. 48.
35
Ora, o Brasil adota a teoria finalista da ação, o que significa dizer que
devemos vislumbrar a conduta do agente no momento do cometimento do crime,
pois se sua finalidade, mesmo que seja lícita cause um dano, deve responder pelo
crime a título de dolo ou culpa se a lei assim o especificar.
Para melhor se entender o que foi dito acima, veja que o autor de uma
infração raramente comete uma infração só por cometer, ele busca a felicidade
material ou moral e para isso comete os mais variados tipos de infração; no jogo do
bicho sua finalidade também é buscar esta felicidade material ou moral através da
prática de jogo do bicho e, para isso comete vários crimes, portanto, acreditar que a
sua finalidade é só cometer a contravenção e não puni-los pelos outros crimes de
que se vale para cometer um menor, não é justificativa plausível para deixar de
punir.
Da mesma forma, acreditamos que o que impede o enquadramento do
artigo 288 do Código Penal nos infratores do jogo do bicho é meramente uma
questão de prova, pois para a consumação do delito in examine exige-se requisitos
que acreditamos serem preenchidos, senão vejamos: o mínimo de 4 pessoas (item
3.2), organização mínima (item 3.2), permanência e estabilidade (não é meramente
esporádico), e finalidade do tipo (não se diga que há mera presunção27 de que
poderão ocorrer os crimes de corrupção ativa e passiva, prevaricação, lavagem de
dinheiro e etc, pois do contrário, onde se encaixa o dolo eventual?).
5.2 Outros crimes
Muito criticada pela doutrina, a Lei n.º 9.034/95 – Lei de Combate ao
Crime Organizado – encontra obstáculo principalmente no conceito do que seria
“organização criminosa”, desta forma, a caracterização desta conduta depende
diretamente da existência de uma organização decorrente da formação de quadrilha
27 TOURINHO, Jose Lafaieti Barbosa. op. cit. p. 131.
36
ou bando, o que seria praticamente impossível provar se já não se consegue, nem
mesmo, provar a formação de quadrilha na prática do jogo do bicho.
A Lei n.º 9.613/98 dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de
bens, dinheiro ou valores.
A objetividade jurídica desta lei é evitar que os bens, dinheiro ou valores,
sejam ocultados ou dissimulados a sua origem (produto de crime), quando estes
decorrem dos crimes especificados nos incisos e parágrafos do artigo 1º.
Assim como os outros crimes de que falamos neste capitulo, falta
disposição específica para que se possam punir os que ocultam ou dissimulam a
origem destes bens se decorrentes da prática da contravenção penal do jogo do
bicho, pois devemos aceitar a orientação de que não podem ser dadas
interpretações extensivas às normas incriminadoras, mesmo que saibamos que o
volume é muito maior do que nos outros crimes que a lei tipifica.
O legislador, quando da elaboração desta lei, tinha condições e
informações seguras para que pudesse acrescentar ao rol das práticas ilícitas, os
organizadores do jogo do bicho, que movimentam milhões de reais por dia e não
podem ser punidos por uma omissão do legislador.
Consciente ou não esta decisão de deixar os organizadores do jogo do
bicho impunes, nos dá mais uma razão para que se faça severas criticas e duvide de
sua imparcialidade.
37
6- OBSERVAÇÕES ESPECÍFICAS
6.1 Contravenção Penal e a Lei n.º 9.099/95
Antes de analisarmos os reflexos que a Lei n.º 9.099/95 trouxe para o
delito em exame, se faz necessário, ainda que breve, algumas considerações a
respeito das conseqüências jurídicas trazidas por esta lei no âmbito processual-
penal brasileiro.
Decorrente de uma série de estudos, a Lei n.º 9.099/95 implantou em
nosso sistema normativo uma verdadeira revolução no tratamento das infrações de
menor potencial ofensivo, trazendo um novo modelo de Justiça criminal baseada no
consenso28, ou seja, na vontade das partes em aceitar ou não tal procedimento.
Tanto a sociedade como o nosso sistema judiciário, há muito reclamava
uma alternativa para que desafogasse o judiciário e respondesse efetivamente aos
anseios da sociedade na solução das infrações, pois aos olhos da sociedade a
condenação nas infrações de menor potencial ofensivo raramente dava “cadeia”, o
que de um lado representava injustiça e, de outro incentivava a proliferação de
infrações, visto que o não encarceramento era tido como sinônimo de impunidade.
Dentre as principais inovações em nosso sistema jurídico-penal trazidos
pela lei in examine, podemos destacar algumas que são de extrema importância
para o desenvolvimento de nosso trabalho, a saber:
1- Descarcerização e Despenalização, ou seja, a primeira, evita a prisão
imediata quando há encaminhamento do autor ao Juizado ou quando o autor do fato
assume o compromisso de a ele comparecer; no segundo, procura evitar a
imposição de pena de prisão por outras medidas penais ou processuais alternativas,
28 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. op. cit., p. 16.
38
a saber, a composição civil, representação, pena restritiva de direitos ou multa e
suspensão condicional do processo.
Estas duas últimas são as que têm aplicabilidade na infração do jogo do
bicho, desde que, sejam obedecidos alguns requisitos para concessão do beneficio
para a não privação da liberdade.
Quanto a transação penal, reza o artigo 76 § 1º da Lei n.º 9.099/95, na
possibilidade de o juiz reduzir até a metade quando a pena de multa for a única
aplicável, situação que se acha o mero apostador; quando, porém, o preceito
secundário cominar pena de privação de liberdade isolada ou cumulativamente com
pena de multa é preciso que antes da proposta do Ministério Público sejam
observados os requisitos do artigo 76 § 2º, que subordina a proposta da transação
ao fato de o autor:
a- não ter sido condenado por sentença definitiva à pena privativa de
liberdade por crime;
b- não ter sido beneficiado pela transação penal no período anterior de 5
anos ;e
c- não ser indicada a proposta em razão dos antecedentes, da conduta
social, personalidade do agente, motivos e circunstancias, fatos estes que devem
ser provados pelo Ministério Público e não pelo autor do fato.29
Vale lembrar que só é possível a proposta de transação penal caso não
seja hipótese de arquivamento, diante da disposição do artigo 76, caput, pois caso o
Ministério Público se convença de que seja caso de arquivamento deve arquivá-lo
antes de tudo.
A suspensão condicional do processo que também é uma transação com
a peculiaridade de ser proposta somente após o oferecimento da denúncia (artigo 29 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. op. cit., p. 129.
39
77), poderá ser aplicada quando estiver ausente o autor do fato ou não tiver sido
possível a medida do artigo 76, pelo período de 2 a 4 anos.
Este benefício também exige requisitos específicos para sua concessão, a
saber:
a) não esteja sendo processado (em andamento, o que fere o princípio
constitucional da presunção de inocência30); ou
b) que não tenha sido condenado por outro crime (contravenção não);
c) que estejam presentes os demais requisitos que autorizariam a
suspensão condicional da pena (artigo 77 do Código Penal) que são:
(I) que o condenado não seja reincidente em crime doloso;
(II) a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do
agente, bem como os motivos e as circunstancias autorizem a concessão do
benefício.
Em suma, observamos que o legislador buscou a todo custo evitar a
aplicação de pena privativa de liberdade, podendo o autor do fato obter num primeiro
momento a substituição da pena privativa de liberdade por pena alternativa como
v.g, restritiva de direitos ou multa (artigo 76 da Lei n.º 9.099/95).
Caso não seja possível a substituição da pena, poderá se valer da
suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei 9.099/95).
E por fim, caso não se enquadre nos requisitos para obtenção do beneficio
do parágrafo anterior, poderá obter a suspensão condicional da pena (artigo 77 do
Código Penal).
30 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. op. cit., p. 214.
40
2- O Desafogamento do judiciário, também foi um dos objetivos da Lei
9.099/95, tornando mais célere, rápido, eficiente e com melhores resultados
preventivos e punitivos os efeitos nas infrações de menor potencial ofensivo, o que
faz com que sobre mais tempo para o judiciário resolver as questões de maior
importância.
Apesar das poucas estatísticas, foi visível a queda no número de
denúncias e processos nos primeiros anos da introdução da Lei n.º 9.099/95 na
Justiça criminal31, com isso, tornou menos oneroso para o Estado o custo de
processos que antes se arrastava na burocracia processual chegando a inevitável
prescrição, ou seja, custava caro, não respondia aos anseios da sociedade e
tampouco punia de forma exemplar o autor da infração, levando a sociedade a
desacreditar na justiça, os infratores a terem certeza na impunidade por
incapacidade do Estado, do judiciário e de policiais desmotivados, por saberem que
o que estavam fazendo ia chegar a lugar nenhum.
É inquestionável o benefício que a Lei n.º 9.099/95 trouxe para o judiciário,
mas no que tange ao jogo do bicho, a prática da infração ganhou dois novos
instrumentos para distanciar o agente da infração da ameaça da pena privativa de
liberdade: a transação penal e a suspensão condicional do processo.
3- Em que pese a vítima ter sido a grade valorizada com a Lei n.º
9.099/95, pela possibilidade de ver seu dano reparado de forma mais simples, o
autor da infração foi o maior beneficiado, principalmente aquele que eventualmente
comete um erro na vida e se vê na iminência de ser privado de sua liberdade e ter
seu nome lançado no rol dos culpados, mácula indelével.
É preciso não olvidar que os que mais se beneficiam da lei são os
delinqüentes reiterados, aqueles que passam a vida cometendo o mesmo erro, veja-
se v.g, o jogo do bicho, em que a prática dificilmente é esporádica, pois geralmente
31 GOMES, Luis Flávio. Juizados criminais federais, seus reflexos nos juizados estaduais e outros estudos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 83. (Série as ciências criminais no século XXI, v. 8).
41
quem joga, joga todo dia, quem faz, faz todo dia, e finalmente quem banca, banca
todo dia, ou seja, a lei não intimida este tipo de infrator, ao contrário, como foi dito
linhas acima, distancia ainda mais da já remota possibilidade de aplicação de pena
privativa de liberdade.
Em suma, da análise da lei das contravenções penais em confronto com
as Leis n.º 9.099/95 e 10.259/01, alteradas recentemente pela Lei n.º 11.313/06,
podemos observar de imediato que o legislador adotou a moderna teoria da
despenalização, ou seja, cominando pena privativa de liberdade somente para os
delitos mais graves, desta forma, procura resolver os conflitos, tanto no âmbito cível
como no penal, de forma mais rápida, eficiente e menos prejudicial à sociedade –
que tem a possibilidade de ver seu dano reparado com a composição civil, quando
possível, e ao delinqüente de menor potencial ofensivo livrando-lhe do irrecuperável
e defasado sistema prisional brasileiro que traz efeitos indesejáveis para o autor da
infração e para sociedade.
Num primeiro momento é preciso não olvidar que dentre todas as
contravenções penais existentes no Decreto-Lei n.º 3.688/41, não há cominação
maior que 2 anos de pena privativa de liberdade, o que em tese, enseja no
enquadramento do primeiro requisito objetivo para o beneficio que traz as Leis n.º
9.099/95 e 10.259/01, sendo que esta última, estendia o benefício para penas
máximas de até 2 anos, consoante doutrina e jurisprudência majoritária até a edição
da nova Lei n.º 11.313/06.
Apesar de a doutrina e jurisprudência majoritária entenderem que o
parágrafo único do artigo 2º da Lei n.º 10.259/01 dava nova definição do que seria
infração de menor potencial ofensivo revogando tacitamente o artigo 61 da Lei n.º
9.099/95, e destarte, elevando o critério cominatório para o máximo de 2 anos, a Lei
n.º 11.313/06, pôs fim à pequena divergência alterando expressamente estes dois
artigos, pondo fim à existência de dois conceitos sobre o que é infração de menor
potencial ofensivo e igualando o referido critério cominatório para a Justiça Estadual
e Federal, o que era veementemente criticado e ofensivo ao princípio da igualdade.
42
6.2 Jurisprudência
Jurisprudência é o conjunto de decisões uniformes dos tribunais, em que
estes, através do exercício da jurisdição, nos revelam seu posicionamento acerca da
aplicação do direito em determinada matéria, podendo esta jurisprudência ser
uniforme (sentido lato) ou não (sentido estrito).32
O perfil do infrator do jogo do bicho, geralmente é o de pessoa simples,
trabalhador, com pouca instrução, bons antecedentes e não reincidente.
O fato de não ter se envolvido com algum tipo de delito, a pouca repressão
da polícia e, em conjunto com a edição da Lei n.º 9.099/95, que proporciona a
transação penal e a suspensão condicional do processo, faz com que se tenha
poucos julgados a partir do ano de 1995, desta forma, as jurisprudências que
conseguimos não é a mais atual em virtude das poucas chances que se tem de levar
a julgamento este tipo de infração.
No que diz respeito à confirmação da vigência da norma em detrimento do
costume a jurisprudência é farta:
“CONTRAVENÇÃO PENAL - "Jogo do bicho" - Tolerância do Poder
Público e do costume reinante - Irrelevância - Absolvição inadmissível
- Apelação provida - Aplicação do art. 58, § 1º, "b", do Dec.-lei
6.259/44 - Inteligência do art. 2º da LICC (TACrimSP - Ement.) RT
613/346.”
“CONTRAVENÇÃO PENAL - Jogo do bicho - Princípio da legalidade
-Costume como fonte do Direito Penal - Requisitos - Validade da
existência da contravenção no sistema normativo (TACrimSP) RT
728/557.”
32 JÚNIOR, Paulo Hamilton Siqueira. op. cit., p. 189.
43
“CONTRAVENÇÃO PENAL - "Jogo do bicho" - Absolvição do agente
em razão do costume - Inadmissibilidade (STJ) RT 715/539.”
Embora antigos, encontramos duas decisões em que nega vigência a
aplicação artigo 58 da Lei das Contravenções Penais, é o que segue:
“CONTRAVENÇÃO PENAL -- "Jogo do bicho" -- Repressão que não se
coaduna com a realidade -- Modalidade contravencional incorporada à
consciência popular - Existência de vários tipos de jogos permitidos
pelo Poder Público, gerando a crença da licitude daquela -- Absolvição
mantida -- inteligência do art. 58 da Lei das Contravenções Penais.
TaCrimSP (RT 606/338).”
“CONTRAVENÇÃO PENAL -- "Jogo do bicho" -- Reprovabilidade não
inserida na consciência popular -- Efeito repressivo que não atende à
necessidade social -- Absolvição decretada - Inteligência dos arts. 58
da Lei das Contravenções Penais e 386, VI, do CPP. TaCrimSP
(RT606/334)”
Os tribunais não negam vigência à norma em razão da exploração de
loterias pelo Estado:
“CONTRAVENÇÃO PENAL - "Jogo do bicho" - Promoção pelo Estado
de várias loterias - Alegação que não pode ser aceita, vez que aquelas
estão amparadas por lei, enquanto que tal jogo é punido por lei em
plena vigência - Condenação mantida (TACrimSP) RT 718/417.”
Na justiça trabalho já se reconheceu o vínculo trabalhista em razão do
contrato realidade:
“CONTRATO DE TRABALHO - JOGO DO BICHO
RECONHECIMENTO - Por ser o contrato de trabalho do tipo realidade,
deve ser reconhecida a relação de emprego, mesmo que seu objeto
44
seja o jogo do bicho. Preliminares rejeitadas. Recurso desprovido.
(TRT - 13ª Região; Rec. Ord. nº 4.703/97-João Pessoa-PB; Rel. Juiz
Gilvan Monteiro da Silva; j. 31.03.1998; maioria de votos; ementa)”
Na ementa que segue, não se reconhece o vínculo, mas não
descaracteriza o direito ao recebimento pelos serviços prestados:
JOGO DO BICHO - AUSÊNCIA DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO- Não
obstante não se deva reconhecer a existência do contrato de trabalho,
tendo em vista o objeto ilícito, devem ser pagos os "salários" do
período. É que houve a prestação do trabalho e as forças despendidas
pelo empregado não podem ser desenvolvidas. Assim evita-se o
enriquecimento sem causa do tomador dos serviços. (TST - 1ª T.; Rec.
de Rev. nº 73.373-93-5 - 3ª Região; Rel. Min. Ursulino Santos; v.u.;
DJU, Seção I, 22.04.1994, p. 9.059, ementa).”
Em sentido contrário, esta decisão nega qualquer amparo legal:
“CONTRATO DE TRABALHO - OBJETO ILÍCITO – NULIDADE JOGO
DO BICHO - O arrecadador de apostas do denominado "jogo do bicho"
exerce atividade ilícita, definida por lei como contravenção penal. Falar
não há, em assim sendo, em contrato de trabalho, porque ilícito o
objeto e ilícitas as atividades do tomador e do prestador dos serviços.
Inexistência de relação de emprego e de qualquer conseqüência
jurídica cuja apreciação caiba à Justiça do Trabalho, eis que o
reconhecimento de qualquer direito implicaria a "legalização" de um
ajuste celebrado em afronta à ordem jurídica, que proibiu o exercício
da atividade. (TST - 3ªT.; Rec. Rev. nº 25.265/91.1-8ª Região; rel. Min.
Manoel Mendes de Freitas; v.u.; DJU, Seção I, 07.08.1992; p. 11.876,
ementa.)”
45
De um modo geral, a jurisprudência majoritária se manteve fiel no
cumprimento de julgar conforme os preceitos normativos fazendo valer o que
determina a lei, já que não foi revogada.
Embora algumas decisões tenham tomado rumo diametralmente oposto,
percebe-se que estas decisões buscam chamar a atenção do legislador para um fato
que ele sempre ignorou, qual seja, a realidade em que vivemos.
Sabemos que o processo legislativo é lento e seria praticamente
impossível o legislador acompanhar em tempo real a multiplicidade de relações que
se desenvolvem na sociedade, mas chegar a ponto de descriminar o que ele mesmo
pratica, só poderia ocorrer o que ocorreu, o magistrado num ímpeto de revolta se
vestir de legislador, legislando ou revogando leis.
Contudo, o saldo é positivo e serve de alerta para que o legislador,
acompanhando a eficácia das leis, possa corrigir estes absurdos, que mais
prejudicam e confundem a sociedade que contribuem para o fim colimado, a tão
necessária paz social.
6.3 Doutrina
A doutrina exerce papel fundamental na atividade de interpretar a lei, na
elaboração de conceitos jurídicos e principalmente, na atividade de realizar estudos
que contribuam com o aperfeiçoamento do pensamento jurídico sobre determinado
assunto.
Orlando Gomes define bem o conceito de que a doutrina: “é o pensamento
dos estudiosos do Direito reduzido a escrito em tratados, compêndios, manuais,
monografias, teses ou comentários à legislação”.33
33 GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 14 ed. atual. Por Humberto Theodoro Júnior, Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 47.
46
A doutrina se mostra dividida quanto a legalização do jogo em nosso país,
os que são a favor usam comumente os argumentos de que o próprio Estado
explora esta atividade e a sociedade não o recrimina, de outro lado, os que são
contra apontam os enormes prejuízos sociais que a conduta pode causar no
patrimônio, no erário, na moralidade, no incentivo ao ganho fácil, nas instituições e
etc, também é uma questão de ideologia, assim como a igreja sempre pregou e
condenou qualquer forma de jogo.
Chamou-nos a atenção no farto material coletado para o desenvolvimento
deste trabalho, um artigo publicado pela Revista dos Tribunais da Assessora do
Ministério Público do Estado do Sergipe, especialista em direito penal e processual
penal e advogada Maria Luiza Foz Mendonça que nos mostra um outro aspecto dos
reflexos que o jogo traz para a saúde do indivíduo, preocupação esta que até então
não havíamos encontrado em outros doutrinadores.34
Em síntese, a citada autora mostra os riscos patológicos que o jogo causa
em suas vitimas passando por três fases: fase da vitória, fase da perda e por fim, a
fase do desespero.
Na primeira fase o jogador experimenta uma excitação indescritível no
momento do ganho, levando-o a jogar cada vez mais e tendo o falso pensamento de
que a sorte se deve a suas habilidades.
Na segunda fase, a perda (que é inevitável, tendo em vista o fator sorte da
maioria dos jogos), leva-o a um excesso de otimismo de que irá recuperar sua perda
(nesta fase já se considera um estado patológico).
Na terceira fase, do desespero, a situação se complica ao ponto de se
afastar da família, atrasar suas contas, dedicação do maior tempo possível com o
jogo, gastos excessivos, e etc, em seguida os reflexos são previsíveis, pois ao se
34 MENDONÇA, Maria Luiza Foz. Legalização do Jogo: Uma Aposta Arriscada. Revista dos Tribunais, v. 837. São Paulo: RT/ Fasc. Pen. Ano 94. jul. 2005, p. 389-397.
47
dar conta da realidade em que se encontra começa a utilizar de meios ilegais
(roubos, furtos, e etc) para pagar suas dividas que não param de crescer.
Explica ainda, que é nesta ultima fase que é comum a exaustão física e
psicológica, chegando ao extremo de não raras vezes tentar o suicídio, compara-se
até mesmo com a dependência alcoólica e de drogas.
Do exposto, torna-se evidente o esforço da doutrina em contribuir para
uma melhor elaboração de leis que busquem antes de qualquer coisa proteger os
interesses da sociedade nos vários seguimentos em que ela possa influenciar, seja
protegendo o patrimônio, as instituições, a moralidade, a saúde, o trabalho e etc,
analisando-os de maneira geral, e não restrita aos interesses de uma só classe de
aproveitadores das fraquezas humanas em detrimento da desenfreada onda de
capitalismo em que vivemos.
Portanto, seja proibindo ou legalizando o jogo devemos, antes de qualquer
coisa, se desvencilharmos do sofisma de que a sociedade é auto-reguladora dos
seus próprios princípios e que o Estado é reflexo seu povo, pois do contrário não
haveria necessidade de instituirmos o contrato social que deu origem ao Estado.
6.4 Projetos de Lei
Não foram poucos os Projetos de Lei apresentados no Congresso
Nacional nos últimos anos, ao todo são mais de 60 projetos de lei desde o ano de
1951 até 2004, buscando, na maioria das proposições, a legalização do jogo do
bicho35.
Vejamos algumas Ementas de Projetos de Lei defendendo a legalização:
35 Dados disponíveis em <http://www.camara.gov.br>, acesso em 29 de julho de 2006.
48
“PL-383/1999. Ementa: Institui a Loteria Municipal de prognósticos
sobre o resultado de sorteio de números, organizada nos moldes da
loteria denominada jogo do bicho e revoga dispositivos legais
referentes a sua prática e determina outras providências.”
“PL-1074/1995. Ementa: DISPÕE SOBRE A INSTITUIÇÃO DE
CONTRIBUIÇÃO SOCIAL INCIDENTE SOBRE O CHAMADO JOGO
DO BICHO.”
“PL-1212/1991. Ementa: Dispõe sobre a concessão para a exploração
da loteria denominada Jogo do Bicho e dá outras providências.”
“PL-1176/1991. Ementa: Revoga dispositivo do Decreto-lei nº 3.688,
de 3 de outubro de 1941 - Lei das Contravenções Penais. Explicação: (DESCARACTERIZANDO O JOGO DO BICHO COMO
CONTRAVENÇÃO PENAL).”
“PL-5/1951. Ementa: EXCLUI OS ESTABELECIMENTOS
LICENCIADOS PARA A EXPLORAÇÃO DOS JOGOS DE AZAR E DO
DENOMINADO JOGO DO BICHO, DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 50
E 58 DA LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS.”
Como não poderia ficar fora deste trabalho, destacamos algumas Ementas
de Projetos de Lei, em que se busca uma maior repressão ao jogo do bicho:
“PL-1986/2003. Ementa: Proíbe a prática e a exploração do jogo de
bingo, de caça-níqueis, do jogo do bicho e de outros jogos de azar.”
“PL-4902/1995. Ementa: DA NOVA REDAÇÃO AO ARTIGO 288 E
ACRESCENTA PARAGRAFO AO ARTIGO 159 DO DECRETO-LEI
2848, DE 07 DE DEZEMBRO DE 1940, CODIGO PENAL, PREVER
NAS INFRAÇÕES QUE DISCRIMINA, A ATENUAÇÃO DA PENA
PARA AQUELES QUE, COMO MEMBRO DE QUADRILHA OU
49
BANDO, COLABORAREM NA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DE
SEUS DEMAIS INTEGRANTES, E ELEVA A CONDIÇÃO DE CRIME A
ORGANIZAÇÃO DO 'JOGO DO BICHO'.”
“PL-1413/1983. Ementa: DEFINE O JOGO DE AZAR COMO CRIME,
PUNIVEL COM RECLUSÃO, EXCLUINDO-O DA LEI DAS
CONTRAVENÇÕES PENAIS E DANDO OUTRAS PROVIDÊNCIAS.”
“PL-950/1968. Ementa: ALTERA O ARTIGO 174 DO DECRETO-LEI
2848, DE 07 DE DEZEMBRO DE 1940 (CODIGO PENAL).
Explicação: JOGO DO BICHO - PENA RECLUSÃO DE 01 A 03 ANOS
E MULTA DE UM A CINCO MIL CRUZEIROS)”
Hoje, a maioria dos projetos encontra-se em estado de inatividade, ou
seja, sem possibilidade de votação por arquivamento dos projetos em face de
normas do Regimento Interno da Câmara que burocratizam o andamento,
apreciação, discussão, votação e etc.
Num primeiro momento, fica evidente que nosso poder legiferante não
teve vontade e força política de por fim a uma questão que vem se arrastando desde
a metade do século passado, oportunidade não faltou como acabamos de ver.
Num segundo momento, nos permitimos a uma reflexão sobre a atuação
do Estado em relação aos jogos de azar como um todo e não somente em relação
ao jogo do bicho.
O Estado, guardião dos preceitos norteadores que nos guiam no caminho
de alcançarmos o mais elevado estado de civilização e desenvolvimento da nação,
descaradamente usa dois pesos e duas medidas para tratar um mesmo tema, pois
sob o manto da legalidade se conforma com a simples proibição ou não proibição da
norma para aceitar um fato que, apesar de regulamentado, há muito exige uma
solução legal que resolva a questão, pois apesar das leis existentes o jogo continua
50
crescendo na clandestinidade causando, quiçá, mais malefícios do que se fosse
liberado.
O primeiro fato que podemos observar sem grande esforço mental é de
que o Estado é o maior banqueiro oficial de jogos de azar, ou seja, aqueles em que
o resultado depende exclusivamente da sorte.
Deixando de lado a imoralidade que o governo diz coibir (questão já
discutida no item 3.4), citemos apenas alguns jogos disponíveis no mercado que tem
a mesma natureza do jogo do bicho, qual seja, o fator sorte: Loto, Loto-Mania, Sena,
Mega-Sena, Raspadinha, Loteria Esportiva, Quina e etc.
Não fosse o rótulo que o Estado atribui a quem joga ou banca sem o
amparo da lei, não seria necessária toda esta discussão, pois o que se discute é a
insensibilidade do Estado em continuar se furtando em regulamentar de vez a
questão do jogo no país elevando-o à condição de crime (se é tão maléfico a
sociedade) ou descaracterizando-o da categoria de contravenção, regulamentando
este fato que é inerente ao ser humano, como podemos observar ao longo da
história.
O que não podemos concordar é com a hipocrisia do Estado em deixar
que a arcaica e estática letra da lei apontem quando é maléfico e quando não é,
simplesmente voltado para quem se beneficia da jogatina.
Contudo, vimos que a grade maioria dos Projetos é a favor da
regulamentação, descaracterizando os jogos em geral da condição de proibição e
revertendo para a sociedade todos os benefícios que se espera que eles tragam
com a legalização.
Num primeiro momento as vantagens diretas são visíveis, já que o Estado
reverte a maior parte arrecadada em projetos sociais como v.g, Fundo Nacional da
Cultura (3,0%), Ministério do Esporte (4,5%), Comitê Olímpico Brasileiro (1,7%),
Comitê Paraolímpico Brasileiro (0,3%), Seguridade Social (18,1%), Fundo de
51
Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (7,76%), Fundo Penitenciário
Nacional (3,14%) e Imposto de Renda (13,8%).36
Num segundo momento, e talvez a mais importante, seria a oportunidade
do Estado em disseminar com a corrupção que se instaurou nas mais respeitadas
instituições onde são cometidos os mais variados tipos de crimes para que possam
fazer “vistas grossas” na fiscalização e aplicação da lei em vigor.
É preciso não olvidar que este mercado emprega milhares de pessoas
trabalhadoras e honestas que necessitam de uma oportunidade neste país onde o
índice de desemprego é enorme, e estes trabalhadores ficam relegados ao destino e
sem nenhuma proteção pelas leis trabalhistas e benefícios de que resultam de uma
carteira assinada, outrossim, é preciso ressaltar que este mercado informal não dá a
estas pessoas cidadania, dignidade da pessoa humana e os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa, fundamentos estes insculpidos na nossa Constituição
Federal de 1988, no artigo 1º, incisos II, III e IV, respectivamente.
36 Dados obtidos no verso de um volante para apostas na Mega-Sena.
52
CONCLUSÃO
A contravenção penal no Brasil, não só a do jogo do bicho, é considerada
uma espécie de infração penal pela Lei, o que deriva da adoção da teoria bipartida
das infrações e traz reflexos diretos no âmbito procedimental, visto que é regulada
separadamente do Código Penal Pátrio sendo aplicado o critério da especialidade.
Diferença ontológica, como vimos, não há, portanto, adotamos
simplesmente a distinção formal que a lei nos dá para podermos diferenciá-la de
crime, bastando simplesmente através dos meios de interpretação da norma penal
apontados pela doutrina, adotarmos a regra geral de que à norma incriminadora não
pode ser dada interpretação extensiva, com isso, fica afastada a possibilidade de se
aplicar outros dispositivos incriminadores como v.g, o crime de quadrilha ou bando, a
Lei das Organizações Criminosas, lavagem de dinheiro e etc, sob pena de ferir o
princípio da legalidade.
O jogo do bicho não é genuinamente brasileiro, é claro que sofreu muitas
alterações ao longo do tempo e transformou-se nesta enorme organização em que a
honestidade, a falta de punição efetiva, a não repressão das polícias, o apoio tácito
da sociedade e até mesmo o poder legiferante, vêem contribuindo para que esta
infração se perdure por mais tempo.
A objetividade jurídica do capítulo que trata do jogo do bicho não se condiz
mais com a realidade em que vivemos e é preciso que o legislador busque outras
formas de por um ponto final na questão, pois de um lado ele reprime e de outro usa
nosso sistema legalista para explorar sozinho o que ele mesmo condena, se é moral
ou não este posicionamento é certo que é legal, mas por outro lado cria uma
insegurança nos princípios básicos que norteiam toda estrutura do sistema jurídico-
penal prejudicando todo esforço da doutrina em dar sistemática e coerência ao
estudo dogmático da Lei.
53
Em que pese a Lei n.º 9.099/95 ter trazido para nosso sistema jurídico
uma série de inovações para se evitar o encarceramento, a penalização, o
afogamento do judiciário, é certo que por via oblíqua também favorece o autor de
uma infração que não se exemplifica e dá valor a oportunidade que advém de uma
transação penal ou suspensão condicional do processo, o que dá para estas
pessoas a falsa idéia de impunidade e incentiva-os a cometerem outras infrações.
Lembrado os ensinamentos do ilustre Professor Adriano Conceição Abílio, temos a
certeza de que a sociedade pode conviver pacificamente com um pouco de
impunidade, mas com injustiça, jamais.
Vimos que a doutrina e a jurisprudência é dividida quanto aos seus
posicionamentos sobre a legalização ou não do jogo do bicho, mas quando se utiliza
critérios científicos para dar ou negar vigência à norma, é majoritária a conclusão de
que a norma está em vigor e deve ser aplicada, sobretudo pelo fato de adotarmos a
legalidade como base de nossas limitações de deveres e obrigações para com o
Estado, pois do contrário instaurar-se-ia o caos.
Em suma, podemos concluir que o jogo do bicho é uma contravenção
penal diante da expressa denominação, ainda que formal, lhe deu a Lei de
Introdução ao Código Penal, porém, se para que seja praticado o jogo do bicho os
seus organizadores pratiquem outros crimes, cabe as policias e o judiciário provar
estes outros crimes para que possam ser responsabilizados, não pelo fato de
praticar uma simples contravenção, mas pelo fato de praticarem outros crimes com a
finalidade de se alcançar um determinado objetivo, seja ele lícito ou ilícito, pois a
evolução foi dos meios de se alcançar estes objetivos e não da norma que incrimina
esta conduta.
A sociedade não tem se manifestado contra a prática do jogo do bicho,
este posicionamento se deve ao fato de o Estado bancar outros jogos de azar, o que
gera a consciência coletiva de um desvalor da conduta e não de sua ilicitude, pois
esta sabe que é proibido e mesmo assim não deixa de jogar.
54
O costume não tem o condão de afastar a ilicitude desta conduta, pois a
doutrina é majoritária em negar este tipo de revogação das normas, principalmente
as penais.
Os projetos de lei que prevêem sua elevação ao status de crime e sua
regulamentação estão tendenciosos a assumirem o papel que o próprio Estado já
assumiu, qual seja, a liberação. É verdade que uma possível liberação ou uma maior
repressão pode prejudicar outros setores como, v.g, a economia, o trabalho e uma
série de outros, portando, se faz necessário um longo e sério estudo a respeito do
tema para não se tomar decisões precipitas e deixar de alcançar seus verdadeiros
objetivos que são a paz social e a valoração do ser humano com membro de um
Estado, que lhe deve ao menos um pouco de respeito quanto aos seus anseios e
lhes acompanhem na normal evolução e mudança de costumes da sociedade.
55
APÊNDICE A
“Entrevista”
Segue abaixo a transcrição das perguntas e respostas feitas ao banqueiro
de jogo de bicho da zona sul da Capital de São Paulo, em meados de janeiro de
2006, lembrando que algumas informações não transcritas foram obtidas sem
qualquer formalismo, pois foram vários dias de conversa em que as informações
eram dadas de forma espontânea e, as vezes, sem que se fizesse nenhuma
indagação. É preciso não olvidar que pouco sabíamos a respeito do funcionamento
do jogo do bicho, desta forma, não teríamos condições de elaborar um questionário
completo em que tivesse todas as perguntas que só conseguimos elaborá-las após
algum tempo de sucessivas entrevistas.
“— Como o senhor entrou no jogo do bicho?
— Eu trabalhava numa fábrica e ganhava bem. Juntava o meu dinheiro e
emprestava para os colegas a juros até o dia do pagamento. Chegou uma hora em
que todo mundo me pedia dinheiro emprestado, então eu pedi para me mandarem
embora e passei a viver só de emprestar dinheiro a juros. Fiquei bastante conhecido
como agiota. Não demorou muito, talvez uns dois anos e me propuseram a compra
de uma linha de jogo do bicho com alguns cambistas, como eu não entendia nada,
só de jogar, me associei a um amigo de confiança que já havia trabalhado com o
jogo e comecei a bancar, pois sabia que dava dinheiro.
— O senhor ainda é agiota?
— Não. Um ano depois eu continuei emprestando só para os conhecidos que
precisavam de verdade, estavam em dificuldades, eu já estava ganhando muito
dinheiro sem ter a dor de cabeça de ir cobrar as pessoas com quem trabalhei. Parei
56
logo. Na maioria das vezes eu emprestava sem cobrar juros ou cobrava só um
pouquinho para não sair de graça.
— Quantos banqueiros tem em São Paulo?
— Não sei te dizer, mas a associação dos banqueiros diz que tem mais ou
menos uns 500.
— Que associação é esta? Pra que serve?
— Há um cadastro recente em que, devido a invasão de uns nos setores dos
outros e alguns aventureiros que querem brincar de banqueiro dando calote nos
apostadores, resolvemos os nossos problemas em conjunto e impedimos a entrada
de quem não é cadastrado na associação como banqueiro. Não há mais briga como
antigamente, pois a policia prende quem não é conhecido e é combinado que elas
não aceitem dinheiro de quem não é cadastrado.
— A policia sabe quem é cadastrado?
— Ela conhece todos os banqueiros da sua região e quando são transferidos
para outros setores, logo, logo ficam sabendo quem são os banqueiros que acertam
aquela delegacia. O que sai deixa a lista. Quando chega o dia 5 eles nos procuram.
— Então toda delegacia recebe?
— A maioria sim. Eu desconheço uma que não recebe, as vezes começam a
prender os cambistas, a gente pensa que não tem acerto, mas o que eles querem é
aumento.
— Quanto eles recebem?
57
— Não é muito, mas seria muito melhor se pagássemos para o governo. A
gente paga e não recebe nada em troca. Mas já que o governo não quer legalizar,
agente vai levando.
— Quantas pessoas trabalham para o senhor?
— Acho que é mais de 500 pessoas, é por ai.
— O senhor conhece todas?
—Não, só alguns. Tem gente que vem aqui dizendo que trabalha pra mim,
pedir alguma coisa, remédio, empréstimo, ai eu tenho que confirmar.
— E o senhor dá?
— Sempre dou, são eles que me sustentam!
— Quanto eles ganham?
— O pessoal do escritório ganha salário fixo semanal, os recolhes ganham
comissão de 5% do que eles trazem e os cambistas ganham 25 % de comissão e
mais 10% de aluguel por mês.
— E quanto você ganha?
— A media é de 7 a 10 % do total, tem muita despesa e as vezes ficamos sem
ganhar, não se perde, deixa de ganhar, tem hora que só dá bicho bom na cabeça.
— O senhor joga?
— Todo dia.
— Já ganhou?
58
— Já. Mais é difícil eu tenho o palpite muito ruim.
— Quanto se pode apostar? Tem uma cota mínima ou máxima?
— Não, pode jogar quanto você quiser, se for além do limite que nos
estabelecemos ao cambista liga para a banca e a gente descarrega com os outros
banqueiros.
— Porque tem este limite?
— A gente tem uma margem de lucro, o que ameaçar essa margem agente
divide o prejuízo com os outros. Não é todo dia que alguém joga para ganhar 100 mil
reais, mas quando jogam eu não arrisco perder tudo isso sozinho. Tem um
banqueiro que só banca este tipo de jogo.
— Quantas loterias tem por dia?
— Três, no domingo só tem uma.
— Como é feita a apuração? É informatizado?
— O trabalho é todo manual, você vai ver, a gente só usa o computador para
imprimir a folha.
— De onde vem o resultado?
— É do Rio de Janeiro, eu nem sei direito onde ele ocorre, mas é confiável e
nunca deu problema, todo mundo adota ele.
—O que acontece se os seus recolhes chegarem atrasados? O senhor paga os
prêmios?
59
— O pessoal é de confiança, mas de vez em quando tem investigar para saber
se é verdadeiro. Dinheiro é dinheiro, e a gente não pode confiar cegamente.”
Esta foi uma das muitas conversas que tivemos, pois a todo o momento
chegava alguém para resolver um problema e interrompia a espontaneidade da
conversa, estava ficando difícil seguir um roteiro de conversa e a partir daí foi melhor
conversar com outras pessoas que tinham muito a falar sem interferência de
ninguém, e colher informações esporádicas nas varias oportunidades em que tive de
conhecer um pouco do funcionamento contábil, apuração, e ate mesmo saindo com
os recolhes para fazer a coleta dos envelopes. Não foi fácil e parecia que a qualquer
momento a polícia iria nos abordar.
60
APÊNDICE B
“ABREVIAÇÕES”
atual: atualizada.
aum: aumentada.
CJ: Corujinha.
CP: Código Penal.
CPP: Código de Processo Penal.
Dec-lei: Decreto-Lei.
DJU: Diário de Justiça da União.
ed: edição.
et al: e outros.
Fasc: Fascículo.
jul: Julho.
LCP: Lei das Contravenções Penais.
LICC: Lei de Introdução ao Código Civil.
Min: Ministro.
Op. cit: opus citatum
Ord: Ordinário.
p: página.
Pen: Penal.
PL: Projeto de Lei.
PT: Paratodos.
PTD: Paratodos Domingueira.
PTN: Paratodos Noturna.
Rec: Recurso.
Rec. Rev: Recurso de Revista.
Rel: Relator.
rev:revisada.
Rev: Revisor.
RT: Revista dos Tribunais.
STJ: Superior Tribunal de Justiça.
61
t: Tomo.
TACrimSP: Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo.
T: Turma.
TRT: Tribunal Regional do Trabalho.
TST: Tribunal Superior do Trabalho.
v.g : verbi gratia.
v: volume.
v. u: votação unânime.
62
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFCAS
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