critical art ensemble. vídeo e resistência - contra documentários

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Critical Art Ensemble Vídeo e resistência: contra documentários 1994 CRITICAL ART ENSEMBLE. “Vídeo e resistência: contra documentários”. In: Distúrbio eletrônico. tradução: Leila de Souza Mendes. São Paulo: Conrad, 2001. p. 41-57. 2. Vídeo e resistência: contra documentários O veículo vídeo nasceu em crise. A tecnologia pós-moderna foi mandada de volta ao útero da história com a exigência de que se desenvolvesse passando pelos mesmos estágios que seus irmãos mais velhos, o cinema e a fotografia. O documentário – o modelo supremo na produção de vídeo para a resistência – e muito menos uma testemunha das ações de guerrilhas, manifestações de rua e desastres ecológicos, que a prova da persistência dos conceitos iluministas de Verdade, Conhecimento e Realidade Empírica. A hegemonia do documentário afasta a tecnologia de vídeo da função de simulador, e significa um retrocesso à concepção da tecnologia como criadora de réplicas (testemunha). É claro que a tecnologia

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Vídeo e Resistência

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Critical Art EnsembleVdeo e resistncia: contra documentrios1994CRITICAL ART ENSEMBLE. Vdeo e resistncia: contra documentrios. In: Distrbio eletrnico. traduo: Leila de Souza Mendes. So Paulo: Conrad, 2001. p. 41-57.2.Vdeo e resistncia: contra documentriosO veculo vdeo nasceu em crise. A tecnologia ps-moderna foi mandada de volta ao tero da histria com a exigncia de que se desenvolvesse passando pelos mesmos estgios que seus irmos mais velhos, o cinema e a fotografia. O documentrio o modelo supremo na produo de vdeo para a resistncia e muito menos uma testemunha das aes de guerrilhas, manifestaes de rua e desastres ecolgicos, que a prova da persistncia dos conceitos iluministas de Verdade, Conhecimento e Realidade Emprica. A hegemonia do documentrio afasta a tecnologia de vdeo da funo de simulador, e significa um retrocesso concepo da tecnologia como criadora de rplicas (testemunha). claro que a tecnologia no vai nos salvar da condio insuportvel da eterna repetio.Lembremos o arquivo intitulado Iluminismo. Iluminismo: um momento histrico do passado, hoje visto atravs do filtro da nostalgia. A verdade era ento muito simples. Confiava-se nos sentidos, isto , que conjuntos isolados de sensaes continham conhecimento. A natureza entregaria seus segredos para quem se dispusesse a observar. [42]Cada objeto continha conjuntos teis de dados transbordando de informaes, visto que o mundo era considerado uma rede de fatos interligados. Os fatos eram o que mais interessava: tudo que fosse observvel era dotado de factualidade. Tudo que fosse concreto merecia ser observado, de um gro de areia atividade social. O conhecimento explodiu como uma supernova.A especializao foi a resposta ao problema de lidar com uma quantidade de dados que aumentava geometricamente: dividindo a tarefa de observao em tantas categorias e subcategorias quanto possvel, tenta-se impedir que a integridade da observao seja posta em risco pela proliferao de possibilidades factuais. ( sempre assombroso ver estruturas autoritrias vicejando em um momento de utopia.) A especializao funcionava na economia (processo industrial complexo) e na administrao pblica (burocracia). Por que tambm no no conhecimento? O conhecimento penetrou o domnio terreno (em oposio ao transcendental), dando humanidade controle sobre seu prprio destino e iniciando uma era de progresso, tendo a cincia como sua redentora.Em meio a este jbilo, um ceticismo mrbido assombrava fiis como os enciclopedistas, os novos pensadores sociais (como Turgot,[footnoteRef:1] Fontenelle[footnoteRef:2] e Condorcet[footnoteRef:3]) e, mais tarde, os positivistas lgicos. O problema exposto pelo ceticismo foi exemplificado pela crtica de David Hume[footnoteRef:4] ao modelo emprico, a qual colocou a epistemologia iluminista fora do domnio da certeza. Mostrou-se assim que os sentidos no eram portadores confiveis de informaes, e revelou-se tambm que associaes factuais eram na verdade inferncias convenientes. Fortalecido pela crtica romntica, desenvolvida mais tarde sob a [43] bandeira do Idealismo alemo, o argumento de que o mundo fenomnico no era uma fonte de conhecimento se tornou aceitvel, uma vez que a percepo podia ser estruturada por categorias mentais especficas que poderiam ou no ser fiis coisa-em-si. Sob este prisma, a cincia foi reduzida a um mapeamento prtico de constelaes espao-temporais. Infelizmente, os idealistas no foram capazes de escapar do ceticismo que os fez surgir. Seu prprio sistema de transcendentalismo era igualmente suscetvel aos argumentos dos cticos. [1: Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781), ministro das finanas da Frana. Sua obra abordava a economia poltica. dele o princpio do laisser-faire, laisser-passer da economia liberal. (N. do E.)] [2: Bernard de Bouvier de Fontenelle (1657-1757), escritor francs cuja obra principal Entretiens sur la pluralit des mondes. (N. do E.)] [3: Jean-Antoine-Nicolas de Caritat (1743-1794), marqus de Condorcet, filsofo, matemtico e poltico francs. Condorcet influenciou o liberalismo, principalmente na defesa da educao pblica para todos.] [4: David Hume (1711-1776), filsofo ingls. (N. do E.)]

A cincia se encontrava numa posio peculiar em relao sociologia do conhecimento do sculo XIX. Ela tornou-se um legitimador ideolgico at mesmo no nvel ordinrio da vida quotidiana, uma vez que produzia resultados prticos, segundo O desejo e a interpretao dos secularistas. No vcuo dos cticos, a cincia emprica usurpava revelia o direito de proclamar o que era real na experincia. O julgamento dos sentidos poderia ser confivel em relao ao presente, mas para julgar eventos passados era necessrio que a percepo imediata fosse reconstruda por meio da memria. A diminuio da factualidade do objeto sensvel devido aos elementos subjetivos da memria e a insuficincia da representao escrita como meio de preservar a histria fizeram com que o problema posto pela memria fosse transformado em um problema tecnolgico. Embora teoria e mtodo estivessem maduros e legitimados, uma tecnologia satisfatria ainda estava para aparecer. Este problema finalmente ficou resolvido com a inveno da fotografia. A fotografia podia fornecer um registro visual concreto (a viso sendo o mais fidedigno dos sentidos), como uma descrio do passado. Ela representava fatos em vez de subjetivamente dissolv-los na memria, ou abstrai-los como na escrita. Enfim passou a existir algo que fizesse rplicas visuais, produzindo deste modo um registro desvinculado da testemunha. A tecnologia poderia mediar a percepo, e assim impor objetividade ao registro visual. Neste sentido, a fotografia foi adotada mais como ferramenta cientfica do que como um meio para manifestar intenes estticas. Artistas de todas as linguagens comearam a incorporar na tecnologia de produo de rplicas o modelo emprico que havia sido rejuvenescido por estas inovaes. O interesse deles, por sua [44] vez, deu origem ao Realismo e ao Naturalismo literrio. Nestes novos gneros, o desejo pela rplica se tornou mais complexo. Uma nova agenda poltica se insinuara na produo cultural. Diferentemente do passado, quando a poltica geralmente servia para manter o status quo, a agenda da recm-nascida esquerda comeou a fazer aparies bem definidas na representao cultural emprica. Os proponentes deste movimento no cultuavam mais os cones culturais idealistas de seus predecessores romnticos, mas transformaram a factualidade em fetiche tendncias que reduziam o papel do artista ao da reproduo mecnica. A apresentao visual de dados factuais permitia que se testemunhasse objetivamente a injustia da histria, fornecendo aos que foram eliminados do registro histrico um modo de tornar conhecido seu lugar. O uso de mdias tradicionais combinou-se com a epistemologia iluminista na promoo de uma nova ideologia esquerdista que fracassou relativamente rpido. Mesmo os romances experimentais de Zola,[footnoteRef:5] no fim, s podiam ser percebidos como fico, e no como relatos histricos. A obra dos pintores realistas tambm no parecia confivel, uma vez que o pincel no era uma tecnologia satisfatria para assegurar a objetividade. Alm disso seu produto estava preso demais a uma tradio elitista e a suas instituies. Talvez sua nica vitria real tenha sido produzir um smbolo degradado da inteno subversiva que humildemente insistia na horizontalizao das categorias estticas tradicionais, principalmente na rea de temas. [5: mile Zola (1840-1902), romancista e crtico francs, fundador do naturalismo na literatura. Entre suas obras mais importantes esto Nana (1880), que trata da prostituio, e Germinal (1885), que retrata a explorao dos mineiros. (N. do E.)]

No final do sculo, no tendo mais o que experimentar, alguns produtores culturais esquerdistas comearam a repensar a fotografia e seu novo desenvolvimento, o filme. Os primeiros documentaristas pretendiam produzir um registro visual objetivo e preciso da injustia social e da resistncia esquerdista. Guiados por estes objetivos, o documentrio comeou a tomar forma. A empolgao com as novas possibilidades de representao socialmente responsvel fez com que a produo precedesse a reflexo crtica sobre o veculo, e os equvocos que foram cometidos continuam, como instituies, at o presente. [45]

O documentrio cinematogrfico foi uma catstrofe desde seu incio. Mesmo ainda na obra dos irmos Lumire, a factualidade do filme de no-fico foi esmagada sob o peso da ideologia. Um filme como Workers Leaving the Lumire Factory[footnoteRef:6] funciona primariamente como uma propaganda da industrializao um sinal do futuro divorciado das foras histricas que o geraram. A despeito da cmera esttica e da inevitvel falta de edio, a funo de produzir uma rplica se perdeu, j que a vida apresentada no filme ainda no era vivida pela maioria das pessoas. Deste ponto em diante o documentrio cumpriu cada vez mais sua vocao inevitvel. Um filme como Elephant Processions at Phnom Penh[footnoteRef:7] se tornou o predecessor do que hoje considerada uma obra ps-moderna cnica. O documentrio mergulhou no mago da apropriao colonial. Este filme foi um entretenimento espetacular, que permitiu que o pblico penetrasse temporariamente numa cultura que nunca existiu. Acabou sendo uma maneira de se divertir com um evento simulado, isolado de qualquer espcie de contexto histrico. Nesse sentido, Lumire foi o predecessor de Disney. A Disney World a coroao do projeto de entretenimento cultural de Lumire. Apropriando-se dos destroos culturais e os reagrupando de um modo digervel para consumo espordico, a Disney faz em 3-D o que Lumire havia feito em duas dimenses: produzir uma simulao do texto cultural mundial na locao fixa da casamata. [6: Produzido pelos irmos Lumire em 1895. Assim como seus outros filmes, foi feito a partir de cenas da vida cotidiana. (N. do E.)] [7: Dos irmos Lumire. (N. do E.)]

A situao continuou a piorar. Robert Flaherty introduziu no documentrio a narrativa complexa, em seu filme Nanook Of the North.[footnoteRef:8] Este filme era marcado por uma gramtica cinematogrfica ultracodificada, que abstrusamente gerava uma histria a partir de pretensos fatos brutos. Os abismos entre as discrepantes imagens reapresentadas tinham de ser juntados pela cola da ideologia romntica, a preferida pelo cineasta. Isto era inevitvel, uma vez que no havia fatos para comeo de conversa, mas apenas lembranas reconstitudas. O desejo de Flaherty de produzir o [46] extico levou-o a simular um passado que nunca existiu. Na sequncia mais famosa do filme, Flaherty recria uma caada morsa. Nanook nunca tinha estado em uma caada sem armas de fogo, mas Flaherty insistiu que ele usasse arpes. Nanook se lembrava do que seu pai tinha lhe contado sobre a tradio da caa, e tinha visto antigos desenhos esquims destas caadas. A partir dessas lembranas, mescladas com os conceitos romnticos de Flaherty, a caada morsa foi reencenada. O resultado foi uma representao de uma representao sob o pretexto de uma originalidade inalcanvel. O filme deu uma histria excitante e foi um bom entretenimento, mas tinha tanta integridade factual quanto o O Nascimento de uma Nao,[footnoteRef:9] de D. W. Griffith. [8: No Brasil, o filme levou o nome de Nanook, o esquim. Considerado um clssico, foi produzido em 1921. (N. do E.)] [9: De 1915, [The] Birth of a Nation um clssico do cinema norte-americano. Sua mensagem racista e de exaltao Ku Klux Klan faz com que seja utilizado at hoje como meio de recrutamento da KKK. (N. do E.)]

No necessrio repetir a histria cnica do documentrio oscilando ao longo do espectro poltico de Vertov[footnoteRef:10] a Riefenstahl.[footnoteRef:11] Em todos os casos, ela tem sido fundamentalmente cnica uma mercadoria poltica fadada pela prpria natureza da tecnologia a sempre se repetir dentro da economia do desejo. O filme no hoje, nem jamais foi, a tecnologia da verdade. Mente a uma velocidade de vinte e quatro quadros por segundo. Seu valor no est em registrar a histria, mas apenas em ser um meio de comunicao, um meio pelo qual gerado significado. O aspecto assustador do documentrio sua capacidade de gerar uma histria rgida no presente do mesmo modo que a Disney pode gerar o significado colonial da cultura do Outro. Sempre que existirem filmes implodidos[footnoteRef:12] simultaneamente como fico e no-fico, eles sero uma prova de que a histria feita em Hollywood. [10: Dziga Vertov, polons, viveu na Rssia ps-1917, influenciou escolas de cinema no mundo todo.] [11: Leni Riefenstahl produziu, entre outros, O triunfo da vontade, um dos primeiros filmes do partido nazista alemo, hbrido de documentrio e propaganda do nazismo. (N. do E.)] [12: Por filmes implodidos, os autores se referem a filmes nos quais estruturas binrias (tais como fico / no-fico) perdem sentido, entram em colapso. (N. do E.)]

A problemtica aliana do documentrio com a metodologia cientfica tenta explorar o aparente poder da cincia de parar o [47] fluxo de interpretaes multifacetadas. Justificadamente ou no, a prova cientfica incontestvel: ela repousa confortavelmente sob o signo da certeza. Esta a autoridade que o documentrio tenta reclamar para si. Consequentemente, os documentaristas tm sempre usado sistemas de cdigos autoritrios para estruturar a narrativa de seus filmes.Essa estratgia depende, em primeiro lugar, do total esgotamento da imagem no momento da apreenso imediata. A estrutura narrativa deve envolver o espectador como uma rede e deixar de fora todas as outras interpretaes possveis. A narrativa que guia a interpretao das imagens deve fluir ao longo de um caminho unilinear, a tal velocidade que o espectador no tenha tempo para qualquer reflexo. Nessa ao, O essencial produzir a impresso de que cada imagem ligada por uma relao causal s imagens precedentes. O estabelecimento da relao causal entre as imagens produz uma unidade e mantm o fluxo interpretativo dos espectadores em um caminho predeterminado. O caminho termina com a concluso que foi preparada pelo documentarista ao construir a cadeia causal de imagens, oferecendo assim o que parece ser uma concluso incontestvel. Afinal, quem pode desafiar a causalidade reproduzida? Sua legitimao pela autoridade tradicional da razo grande demais. Um documentrio fracassa quando a cadeia causal se quebra, mostrando as descontinuidades e permitindo que um momento de descrena cause uma ruptura na matriz interpretativa predeterminada. Sem o principio cientfico da causalidade estruturando rigorosamente a narrativa, a autoridade do documentrio rapidamente se dissipa, revelando sua verdadeira natureza de propaganda ficcional. Quando ocorre uma crise de legitimao no filme, a imagem fica transparente ao invs de se exaurir, e a ideologia da narrativa exposta em toda a sua horrenda glria. O documentrio de qualidade no se revela, e essa trapaa ilusionista aperfeioada pela primeira vez pelo realismo hollywoodiano que infelizmente guia a grande maioria dos documentrios e obras testemunhais em vdeo que trabalhadores culturais da esquerda produzem hoje em torrentes infindveis. Esta exibio deplorvel particularmente insidiosa porque transforma os trabalhadores culturais da esquerda naquilo que [48] eles mais temem: legitimadores da matriz interpretativa conservadora. Se o princpio fundamental da poltica conservadora manter a ordem em prol da economia, complementar as necessidades e os desejos da elite econmica e desencorajar a heterogeneidade social, ento o documentrio, em sua forma atual, cmplice desta ordem, mesmo se levanta a bandeira da justia social sobre sua fortaleza ideolgica. isto assim porque o documentrio no cria uma oportunidade para o livre-pensamento, mas instila autocensura no espectador, que deve absorver suas imagens dentro da estrutura de uma narrativa totalizante. Ao se examinar o prprio sinal de censura, como foi corporificado, por exemplo, nas crticas de Jesse Helms[footnoteRef:13] a Piss Christ[footnoteRef:14] de Andre Serrano,[footnoteRef:15] podem-se observar os mtodos de interpretao totalizante em funcionamento. Helms argumentou que uma figura de Cristo submersa em urina leva a uma nica concluso, a de que a obra um sacrilgio obsceno. A interpretao de Helms justa. No entanto, no a nica. Helms usou seu desempenho espalhafatoso no Senado como autoridade para legitimar e totalizar sua interpretao. Sob sua matriz interpretativa privilegiada, a imagem imediatamente esgotada. No entanto, qualquer um que reflita na imagem de Serrano por apenas um instante pode ver que vrios outros significados esto contidos nela. H significados que so tanto crticos quanto estticos (formais). A estratgia global de Helms no foi tanto usar o poder pessoal como um meio de censura, mas sim criar as precondies para que o pblico prossiga cegamente at a autocensura, concordando dessa forma com a ordem homognea desejada pela classe dominante. O documentrio da resistncia depende desse mesmo conjunto de condies para ter sucesso. A consequncia a longo prazo da utilizao de tais mtodos, mesmo que com boas intenes, deixar o espectador cada vez mais suscetvel estrutura narrativa ilusionista, enquanto que o modelo fica cada vez mais sofisticado por ser constantemente revisto. Para qualquer ponto do espectro poltico [49] que o consumidor se volta, ele tratado como rebanho pela mdia. Para parar com essa manipulao, os documentaristas devem se recusar a sacrificar a subjetividade do espectador. O filme de no-fico precisa percorrer outros caminhos que no aqueles herdados da tradio. [13: Senador republicano ultraconservador do estado da Carolina do Norte. (N. do E.)] [14: Piss Christ uma foto que mostra um crucifico num penico. (N. do E.)] [15: Andre Serrano, fotgrafo que ganhou notoriedade na metade dos anos 1980. Seu trabalho gerou controvrsia nos Estados Unidos e grande furor nos conservadores. (N. do E.)]

Planejando um documentrio esquerdista genrico para a PBS.[footnoteRef:16] Assunto: a guerrilha em ............ (escolha um pas do Terceiro Mundo). [16: Public Broadcasting Service. Trata-se de uma rede de TV e mdia no-comercial dos Estados Unidos. (N. do E.)]

1. Escolha um ttulo cuidadosamente, j que este um dos principais elementos na construo. Ele deve se apresentar meramente como uma descrio das imagens contidas na obra, mas deve tambm funcionar como um marcador ideolgico privilegiado. Por exemplo, A Luta pela Liberdade em ............ Lembre-se de no mencionar guerrilha no ttulo. Palavras como essa tm uma conotao de causa subversiva ou perdida que poderia levar a aes irracionais violentas, e isso assusta os liberais.2. Se seu oramento for grande o suficiente (o que deve ser o caso se voc est fazendo um segundo filme sobre disputas polticas), faa uma abertura com uma lrica tomada area da paisagem natural do pas em questo. Geralmente o interior dominado pela guerrilha. Isso bom. Agora voc tem a autoridade tradicional da natureza (e a moralidade da distino cidade / campo) do seu lado. Estes so dois cdigos bsicos da arte didtica ocidental. Eles raramente so questionados, e criaro um canal que levar o espectador crena de que voc est filmando um levante popular. 3. Enfoque gradualmente O grupo particular de guerrilheiros que voc vai filmar. No mostre grandes exrcitos. E mostre apenas armas leves, no armamento pesado. Lembre-se de que os guerrilheiros devem ter a aparncia de verdadeiras vtimas da injustia social. Os americanos adoram esse cdigo. Se voc tiver de falar sobre o tamanho das foras rebeldes (por exemplo, para mostrar o tamanho do apoio popular resistncia), seja [50] abstrato. S d estatsticas. Grandes formaes militares fazem lembrar Nuremberg. Se possvel, escolha um grupo composto de famlias: uma grande famlia inteira lutando demonstra bem o desespero. Lembre-se de que uma de suas misses mais importantes humanizar os rebeldes ao mesmo tempo em que faz do grupo dominante um mal abstrato. Termine essa sequncia apresentando de modo estilizado cada um dos rebeldes enquanto indivduos.4. Para a prxima sequncia, escolha uma famlia para representar o grupo. Entreviste cada membro. Fale de suas motivaes para fazerem parte da resistncia. Siga-os o dia inteiro. Filme as agruras da atividade rebelde. Certifique-se de mostrar onde dormem e a m qualidade da comida, e concentre-se no que a luta est fazendo pela famlia. Termine a sequncia mostrando a famlia envolvida em uma atividade recreativa. Isto vai demonstrar a capacidade dos rebeldes de resistirem, e de serem humanos em meio catstrofe. tambm a ponte perfeita para a prxima sequncia: Neste momento de brincadeiras, quem teria imaginado a tragdia que lhes aconteceria...5. Depois de estabelecer os rebeldes como indivduos reais e sensveis, est na hora de voltar-se para O inimigo, mostrando, por exemplo, uma atrocidade atribuda a eles. (Nunca mostre os inimigos de fato: eles devem permanecer como abstraes aliengenas, uma incgnita a ser temida.) Seria prefervel que um parente distante da famlia em foco fosse morto ou ferido na ao do inimigo que est sendo apresentada. Documente o luto dos companheiros rebeldes. 6. Depois de estabelecer as identidades tanto dos rebeldes quanto do inimigo, voc deve mostrar uma ao guerrilheira de verdade. Ela deve ser entendida como uma manobra defensiva sem nenhuma conotao de vingana. Certifique-se de que seja um ataque noturno ou de madrugada para diminuir a simpatia pelos inimigos enquanto indivduos. A pouca luz vai mant-los ocultos e permitir que as fascas do fogo inimigo representem-nos de forma impessoal. No mostre guerrilheiros fazendo prisioneiros: difcil preservar a simpatia dos espectadores pelos rebeldes se eles forem vistos enfiando armamento automtico [51] nas costas dos inimigos e fazendo-os andar. Finalmente, mostre a ao apenas se os rebeldes parecerem vencer o combate. 7. Na sequncia da vitria importante mostrar a ligao entre os rebeldes e os civis do campo. Com o inimigo tendo sofrido recentemente uma derrota, Seguro ir cidadezinha e celebrar com a classe agrria. Voc pode incluir discursos e celebraes nessa sequncia. Mostre os camponeses alimentando os rebeldes, ao mesmo tempo que os rebeldes do aos civis materiais no militares capturados durante o ataque. Mas o mais importante assegurar-se de que a sequncia tenha um esprito festivo. Isto aumentar o contraste emocional com a sequncia final. 8. Sequncia final: focalize o grupo rebelde expressando seus sonhos de vitria e jurando nunca se entregarem. Isto deve dar o remate: voc agora tem a garantia de uma resposta solidria da plateia. A solidariedade ir anular qualquer reflexo critica, fazendo a plateia curtir a viagem na onda de sua subjetividade radical. Passe os crditos na tela. Acrescente talvez um ps-escrito do cineasta sobre como ele ficou emocionado e estupefato com a experincia.

Ao criar um documentrio, um pequeno ajuste poderia ser feito com uma perturbao mnima no modelo tradicional informar que, para uma dada obra, o conjunto de imagens apresentado foi digerido dentro de uma determinada perspectiva cultural. Assegure-se de que os espectadores saibam que esto vendo uma verso do tema, no a coisa em si. Isso no vai curar grande parte dos males do filme ou vdeo-documentrio, j que as prprias verses so preparadas de antemo, tendo pouco a ver em relao a outras verses. No entanto, deixaria o modelo de documentrio um pouco menos repugnante, uma vez que este aviso evitaria a afirmao de que o que foi mostrado era a verdade sobre o assunto. Isso permitiria que o sistema continuasse fechado, mas ainda geraria a compreenso de que o que est sendo documentado no uma histria concreta, mas sim um enquadramento semitico independente por meio do qual a sensao foi filtrada e interpretada. Vejamos, por exemplo, documentrios sobre um assunto encarado quase universalmente como agradvel e incuo, como [52] a natureza. Percebe-se rapidamente que a natureza em si no o assunto, nem o poderia ser. Pelo contrrio, a simulao da natureza na verdade um depsito de perspectivas culturais especializadas e de mitos que so antteses dos sinais de civilizao. Considere as seguintes verses: 1. A natureza idealizada: esse e um ponto de vista comum maioria dos documentrios da National Geographic. Nessa formulao, a natureza apresentada como a fonte original da beleza, da grandeza e da graa. Mesmo os acontecimentos mais violentos se tornam preciosos processos estticos que devem ser preservados. Isso ocorre at na apresentao de grupos raciais / tnicos exticos! O mundo reduzido a um museu de arte que serve de testemunho da perfeio cosmolgica e teleolgica da natureza. A mais elevada funo da natureza existir para a apreciao esttica. Tanto a esttica quanto a ideologia que conjuram esta viso beatfica da natureza vm de um romantismo nostlgico bem embalado que determina tanto as expectativas do documentarista quanto o mtodo de filmagem e edio. 2. A natureza darwiniana: essa concepo da natureza mais bem representada pela srie A Vida Prova.[footnoteRef:17] Nesse tratamento, o universo hobbesiano[footnoteRef:18] ganha vida, e a guerra de todos contra todos descrita vividamente. Esta verso violenta da natureza rene os smbolos da ideologia da sobrevivncia para reapresentar as apalpadelas s cegas de um universo frio e indiferente. uma lembrana da fatalidade do mundo anterior ordem da civilizao. Uma obra como essa age como uma casamata ideolgica defendendo o fausto da ordem produzida pelo Estado policial. [17: Srie de documentrios de David Attenborough produzida pela BBC.] [18: De Thomas Hobbes (1588-1679). No universo a que se referem os autores o instinto de conservao determinaria uma luta de todos contra todos. Segundo Hobbes, o Estado seria a instituio que evitaria tal destruio, protegendo os indivduos uns dos outros. (N. do E.)]

3. A natureza antropomrfica: essa interpretao gira em torno da questo: Em que os animais so como as pessoas? Tpica dos documentrios da Disney ou de programas de televiso como o Reino Animal, esses filmes so insuportavelmente engraadinhos, [53] e apresentam a ordem natural como a da inocncia. isso no de surpreender, j que esses programas tm por alvo as crianas, e dessa forma a fuso de seres humanos (particularmente crianas) e animais encarada como uma boa norma para a socializao sadia. Esses filmes se concentram no cuidado dos animais com suas crias e em suas modestas aventuras, interpretando a natureza como uma entidade burguesa.Em todas essas leituras, ao espectador apresentado um pastiche artificialmente construdo de imagens que oferece apenas possibilidades limitadas a uma viso mtica da natureza. A natureza existe apenas como uma construo semitica usada para justificar alguma estrutura ideolgica. A natureza enquanto cdigo reafirmada mostrando-se animais e paisagens panormicas que so ento revestidos com arcabouos interpretativos ideolgicos. Filmes sobre a natureza nunca documentaram nada seno o artificial ou seja, sistemas de valores elaborados institucionalmente. Quase a mesma coisa pode ser dita do documentrio poltico, j que apenas os aspectos contingentes so diferentes. O cineasta nesse caso nos mostra pessoas e cidades em vez de animais e paisagens.As vrias verses do presente que o documentrio impe a seus espectadores so remodeladas pelo formato filme / vdeo em monumentos eletrnicos que tm vrias caractersticas em comum com suas contrapartes arquitetnicas. Tipicamente, documentrios da esquerda se equiparam funo dos monumentos e participam do espetculo de obscenidade na seguinte medida: 1. Monumentos funcionam como smbolos concretos de uma memria reconstituda e imposta. 2. O monumentalismo uma tentativa concreta de deter a proliferao de significados relacionados a interpretao de acontecimentos convulsivos. Os monumentos no so os smbolos de liberdade que aparentam ser, mas exatamente o oposto. So sinais de aprisionamento, sufocando a liberdade de expresso, a liberdade de pensamento e a liberdade de recordar. Como supervisores na priso panptica da ideologia, gente demais obedece de forma masoquista a sua exigncia de submisso. [54]3. o retorno da continuidade cultural que exalta o monumento aos olhos do cmplice. Em seu manto de silncio, o monumento pode facilmente reprimir contestaes. Para aqueles cujos valores eles representam, os monumentos oferecem um espao tranquilo por meio da familiaridade da tradio cnica. No monumento, os cmplices no so sobrecarregados com a alienao que se origina na diversidade de opinies, nem com a ansiedade das contradies morais. Esto a salvo da perturbao causada pela reflexo. Os monumentos so as casamatas ideolgicas definitivas as manifestaes concretas da mentalidade de fortificao. De fato, h diferenas entre os monumentos arquitetnicos da cultura dominante e os monumentos cultura da resistncia, como os documentrios. Os da cultura da resistncia no aspiram a manter o status quo, nem projetam uma falsa continuidade na ferida da histria. O problema que muitos desses monumentos aspiram a alcanar um eventual domnio. Aspiram a produzir um cone que esteja acima da anlise critica. At agora nenhum cone sagrado foi produzido intencionalmente por meio da produo de documentrios, mas alguns foram produzidos acidentalmente pelos espetculos da mdia. Os exemplos mais notveis so as audincias de Hill / Thomas[footnoteRef:19] e o espancamento de Rodney King.[footnoteRef:20] Certas imagens extradas dessas fitas transcenderam o mundano e se tornaram imagens sagradas para um amplo espectro da sociedade. Como qualquer imagem sagrada, esses cones se esgotam no impacto que causam, e qualquer um que insinue a existncia de outros significados que no aquele que percebido primeira vista ser assolado por uma avalanche de castigos. Essas imagens so to emocionalmente carregadas que provocam pnico, motivando um ataque cego e violento a qualquer heresia interpretativa. So para a esquerda [55] quase o mesmo que a imagem de um feto abortado para a extrema direita. Se a autonomia o objetivo da produo de imagem da resistncia, o carter monumental do sagrado deve ser eliminado dela. [19: Anita Hill e Clarence Thomas protagonizaram, em 1991, um espetculo criado pela mdia norte-americana a partir da audincia judicial que transformou em moda a discusso sobre assdio sexual no local de trabalho. (N. do E.)] [20: King foi filmado em maro de 1991 sendo espancado por policiais em Los Angeles. Apesar do registro, os agressores no foram condenados no primeiro julgamento, o que gerou uma gigantesca revolta popular em abril de 1992. Os policiais eram brancos, e King, negro. (N. do E.)]

Uma vantagem prtica do vdeo realista (vdeo que parece ser uma rplica da histria) deve ser reconhecida sua funo como uma forma democrtica de contra-vigilncia. No importa a simplicidade da tecnologia de vdeo, ele facilmente passa a ser visto como uma ameaa. visto como um receptculo da culpa, que pode reproduzir instantaneamente atos de transgresso. Como uma testemunha jurdica perfeita, sua objetividade no pode ser questionada legalmente. No entanto, enquanto instrumento de intimidao contra as transgresses do poder, o vdeo funciona apenas dentro de parmetros limitados. Seu poder racional-legal opera apenas dentro do contexto do significado esgotado. uma defesa til no sistema legal e no espetculo da mdia, mas prejudicial para a compreenso da prpria mdia, j que promove a esttica autoritria da exausto. A supremacia do vdeo realista como modelo para a produo cultural da resistncia deve ser desafiada por quem quiser ver o veiculo vdeo ir alm de sua funo tradicional como propaganda, ao mesmo tempo em que retm suas caractersticas politicas de resistncia. No necessrio erradicar o vdeo realista, mas essencial restringir sua autoridade. Esse objetivo pode ser melhor alcanado desenvolvendo-se uma estrutura conceitual ps-moderna que se funda com a tecnoestrutura ps-moderna do vdeo. A contradio fundamental de se empregar a epistemologia do sculo XVIII com tcnicas de produo do sculo XIX que essa juno nunca ir dar conta adequadamente do problema contemporneo da representao na sociedade da simulao, da mesma forma que a teologia medieval no foi capaz de dar conta dos desafios da filosofia dos sculos XVII e XVIII. Para solucionar essa contradio, necessrio abandonar a suposio de que a imagem contm e revela uma fidelidade em relao a seu referente. Isso por sua vez significa que no se pode mais usar o cdigo da causalidade como instrumento para construir a continuidade da imagem. De preferncia, deve-se [56] usar estruturas associativas fluidas que convidem a varias interpretaes. De fato, todos os sistemas de gerao de imagens so mediados pelo espectador: a questo a que grau. Poucos sistemas so um convite interpretao, e por conseguinte o significado mais frequentemente imposto do que criado. Muitos produtores, por medo de permitirem que a interpretao fugisse ao controle, evitaram o uso de estruturas associativas na gerao eletrnica de imagens de carter poltico. Alm disso, filmes associativos tendem abstrao, e portanto ficam confusos, o que os tornam ineficazes entre os desinteressados. Esses problemas inspiram o eterno retorno a modelos mais autoritrios. A resposta a tal comentrio que o espectador merece O direito ao desinteresse, e a liberdade de divagar. A confuso deve ser vista como uma esttica aceitvel. O momento de confuso a precondio para o ceticismo necessrio ao surgimento do pensamento radical. Portanto, os objetivos do vdeo de no-fico de resistncia so dois: chamar a ateno para a construo simblica da simulao e documenta-la; e estabelecer a confuso e o ceticismo para que as simulaes no possam funcionar.

O vdeo associativo , por sua prpria natureza, recombinante.[footnoteRef:21] Ele agrupa e reagrupa imagens culturais fragmentadas, permitindo que os significados gerados vagueiem sem limites pela grade de possibilidades culturais. essa caracterstica nmade que os distingue dos filmes recombinantes rigidamente limitados de Hollywood. No entanto, assim como aqueles, so melhor situados fora das categorias de fico e no-fico. Para os propsitos de resistncia, o vdeo recombinante no oferece nenhuma soluo. Pelo contrrio, atua como base de dados para que o espectador tire suas prprias concluses. Esse aspecto do filme recombinante pressupe um desejo por parte do espectador de assumir o controle da matriz interpretativa e de construir seus prprios significados. Tal obra interativa na medida em que o [57] espectador no pode ser um participante passivo. No se deve forar um ponto de vista particular com propsitos pedaggicos. Na maioria das vezes esse modo de agir frequentemente trabalha contra a interao popular, visto que estratgias para quebrar o habitual consumo passivo do espetculo no tm recebido muita ateno. O que mais lamentvel que obras como essas so frequentemente vistas como elitistas, porque o uso que fazem da esttica da confuso no presente no atrai o apoio popular. Deve-se notar que tais comentrios geralmente vem de uma intelligentsia bem posicionada, cena da correio de sua ideologia. Sua misso no libertar seus proslitos, mas mant-los presos e defendendo a casamata da ideologia solidificada. o distrbio por meio da liquidao dessas estruturas o que a mdia nmade da resistncia tenta conseguir. Isso no pode ser feito produzindo-se mais monumentos eletrnicos, mas, pelo contrrio, por uma interveno imaginativa e uma reflexo crtica libertadas em um momento eletrnico incerto e no resolvido. [21: O termo recombinante usado especialmente na biologia molecular, em que significa: uma clula com nova combinao gentica, no herdada dos pais. Em ingls, recombinant tambm tem um sentido mais usual: produzido a partir de mais de uma fonte. neste sentido que a palavra empregada ao longo deste livro pelos autores. (N. do E.)]

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