crise das bússolas - revista de história

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  • 16/11/2014 Crise das bssolas - Revista de Histria

    http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/crise-das-bussolas 1/5

    Crise das bssolasDesde a dcada de 1990, entrou em colapso a dicotomia direita x esquerda,que orientou por sculos a estrutura do pensamento poltico moderno. Nocenrio brasileiro, como se reorganizou essa polarizao?

    Bruno Garcia23/10/2014

    Marine Le Pen, lder de partido de extrema-direitana Frana, no parlamento, em 2012

    "Direita ou esquerda?", pergunta oreprter ao ex-jogador de futebol Jardel,ento candidato a deputado estadual(PSD/RS). "Pode ser de cabea?",desconversa, lembrando seus bons dias decentroavante. O jornalista, ento insistena pergunta. "Eu me considero de direitaporque sou um cara direito demais, bomdemais". A resposta , no mnimo,inusitada. Nada chocante, considerando aenorme reputao de frasista involuntrioque o ex-centroavante gremista teve aolongo da carreira. O leitor que quisercaoar da infeliz ingenuidade de Jardeltem razes para isso. Porm, sugiro comoexerccio que tentem (honestamente)responder mesma pergunta.

    A tarefa no fcil. Para comeo deconversa, justificar a escolha nos obriga auma definio mnima acerca doscontornos de ambos os lados, hoje. aique a coisa se complica. No hmetalinguagem, um ponto neutro estvelou sequer um consenso quanto a seussignificados. Pense na distribuiopartidria brasileira e nos temas quegeralmente so associados a ambas asorientaes.

    De um lado, o PT, que apesar deconfiante na sua identidade de esquerda e suposto estreito dilogo com os movimentos sociais,se mostrou incapaz de lidar com as demandas populares de 2013. Essencialmente, o nico braodo Estado que tocou as manifestaes foi a rea de segurana pblica. Do outro lado, o PSDB,que nominalmente tem origem na Social Democracia europeia (de esquerda), mas foi responsvelpela abertura do pas ao Neoliberalismo na dcada de 1990 e tratado por grande parte daimprensa e de seus partidrios como alternativa da direita. Contudo, polticos maisconservadores, aqueles que frequentam todo tipo de partido, insistem que no Brasil no hdireita, e proclamam a urgncia de se fundar uma. So os mesmos que, de quando em quando,gostam de lembrar que estamos a caminho de nos tornarmos uma nova Cuba ou Coria do Norte.

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    Leia tambm:

    Especial - Esquerda ou direita?

    Especial - Voto no Brasil

    Petralismo x Tucanagem

    Leia tambm:

    Politizando o inevitvel

    Cada um na sua

    Paz: estamos fazendo isso errado

    No cenrio internacional, a situao tambm no amais fcil. Pense por exemplo nas direitas nosEstados Unidos e na Europa. Os conservadores norte-americanos, fiis a uma rgida poltica de ajustefiscal, se escandalizam com qualquer atuao maisenftica do Estado. No passam muito tempo semassociar Obama e o Partido Democrata aosocialismo, especialmente depois da interveno do

    presidente nos planos de sade.

    A extrema direita europeia, por outro lado, est longe de querer abrir mo do Estado de bemestar. Muito pelo contrrio. Grande parte da retrica da Frente Nacional, na Frana, e do FP,na ustria, est fundamentada na iminncia da perda desses benefcios pelos nativos. Tudograas a um suposto abuso por parte de imigrantes.

    Aparentemente, dar sentido dicotomia hoje no to fcil quanto parece. Quando nossosconservadores autctones decidem afirmar que no existe uma direita "autntica" no Brasil,quem eles tratam como paradigma? Seria o Tea Party norte americano? Geert Wilders e suaengenhosa direita progressista na Holanda? Talvez a escola econmica austraca, com grandereputao na imprensa conservadora, mas desprezada pelos conservadores do seu pas natal?Enfim, o cenrio confuso, e a multiplicidade de alternativas e correntes contemporneascontrastam com a naturalidade com que usamos os termos. Talvez por estarmos to acostumadoscom eles. Fruto de um tempo quando no era preciso perguntar pelo seu significado.

    Guerra Fria

    At outro dia, tudo parecia ter seu lugar. Por quase cinquenta anos a diviso entre esquerda edireita funcionou com enorme clareza. Russos praguejavam contra a imoralidade do imperialismonorte americano, jovens idealistas sonhavam com a revoluo internacional nos pases deterceiro mundo enquanto seus pares conservadores, volta e meia, alertavam para os perigos doscomunistas, que de to perversos, comiam at criancinhas. A Guerra Fria marcou uma espcie depoca de ouro desse embate.

    Socialistas, defensores ou no dos regimes em vigor, membros da social democracia europeia epartidos de orientao marxista na Amrica Latina no tinham nenhuma dvida quanto suaorientao. verdade que depois da dcada de 60, quando boa parte dos intelectuais marxistasocidentais perderam o encanto com as notcias vindas da Unio Sovitica, a Nova Esquerda sefragmentou em mltiplas abordagens. Ainda assim, essa falsa dispora no fez com que suaorientao fosse, em nada, confundida com "o outro lado".

    Algo equivalente parece ter ocorrido com a direita.Nunca houve uma grande unidade entre as diversasvariantes no Ocidente. Mas, de um modo geral, adefesa de um certo tipo de liberdade individual e umconjunto de direitos fundamentais serviram, pormuito tempo, como tempero para aquilo que, defato, os definia: o confronto com os soviticos eseus pases satlites.

    Isso at 1989. A inesperada avalanche, que teve como pontos centrais o fim do comunismoeuropeu, a reunificao alem e o decisivo colapso da Unio Sovitica legou orfandade boaparte da esquerda internacional. Sem a referencia do seu duplo, a direita tambm naufragouembriagada com o que julgava ser sua vitria decisiva. Nos Estados Unidos, um lendrioprofessor da Universidade de Stanford decretou a vitria decisiva da democracia liberal sobrequalquer outro regime poltico. Francis Fukuyama e seu polmico argumento do Fim da Histria

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    Deputado Jair Bolsonaro / Agncia Brasil

    viraram sinnimo de um triunfalismo liberal que se estenderia at meados da dcada de 1990. Otrmino anunciado pelo professor dizia respeito ao ponto final no enfrentamento entrecomunismo e capitalismo, Hegel e Marx, ou, como muitos preferiram, Direita e Esquerda.

    Depois do fim da histria

    No fundo, por mais exagerado ou precipitado que Fukuyama possa ter sido, parece inegvel queseu argumento catalisava um conjunto de vises que, naquele momento, esperavam ou temiamque ele tivesse razo. No foram poucos os que reagiram ao argumento. Os ataques de JacquesDerrida, na Frana, ou Perter Sloterdijk, na Alemanha (para ficar entre os pensadores maisrelevantes), demonstravam que o fundamento por trs do triunfo final da democracia liberalganhou relevncia e adeptos a ponto de merecer ser respondido.

    No que diz respeito velha rivalidade, o ponto fixo que fundamentava sua estabilidade se perdeudefinitivamente. A esquerda, tal como entendida anteriormente, estava desacreditada, e adireita, na ausncia do seu duplo, apaziguada.

    No lugar de um conflito ideolgico global, a comunidade internacional criada pelo otimismo dosanos 90 criou uma enorme obsesso por consenso. Os Direitos Humanos, largamente utilizadospor dissidentes anticomunistas no Leste Europeu durante seus processos de transio na dcadade 1980, se lanaram como argamassa existencial conferindo unidade comunidadeinternacional, depois de meio sculo de mundo bipartido. O Neoliberalismo, que galgou seucaminho no final dos anos 70 e 80, com Ronald Reagan e Margaret Thatcher, recebeu a alcunhade consenso, em 1994, como uma cartilha de orientao para economias em desenvolvimento.

    Para onde migrara a esquerda nesse mundo? Na falta de grandes argumentos que fizessem frente coerncia ideolgica do progresso liberal, e com o fardo das injustificveis atrocidades dasexperincias comunistas, a oposio ao mundo que parecia dar certo se revelava, no mnimo, umcontrassenso. Em outras palavras, direita e esquerda j no eram mais rivais. Surgiram osprimeiros gritos que anunciavam a derrota da esquerda. Os mais entusiastas diziam que, vivamoso fim das ideologias.

    Redefinindo parmetros

    Diante desse cenrio, a perguntasobre as runas da velhadicotomia dividiu pensadores emduas correntes. A primeira,protagonizada pelo socilogobritnico Anthony Giddens,considerava que, diante dascircunstncias, no fazia maissentido se perguntar pelasdistines entre direita eesquerda, ou melhor, que taiscategorias no mais operavamnum sentido paradigmtico ascomplexas relaes polticas doinicio dos anos 1990. Socialismo,Conservadorismo eNeoliberalismo j no maisrepresentavam pontos fixosestveis o suficiente para compreender o mundo contemporneo. Em Para alm da esquerda e dadireita, publicado em 1994, Giddens procurava fundamentar uma forma para escapar da divisotradicional. Sua sada era unir o que chamou de pensamento conservador, representado

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    sobretudo pelo respeito solidariedade que d liga sociedade, a demandas particularmenteassociadas ao socialismo. O resultado receberia alguns anos depois o nome de Terceira Via, eseria experimentada por Tony Blair.

    Do lado oposto, o jurista italiano Norberto Bobbio, no mesmo ano, publica Direita e Esquerda:Razes e significados de uma distino poltica, no qual defende a relevncia da dicotomiatradicional, oferecendo, a partir do novo cenrio, um argumento mnimo para situar seu debatecontemporneo. De acordo com Bobbio, ambos os lados podem ser definidos pela sua relaocom o que chamou de paradigma da igualdade. De um lado, a direita afirma que a igualdade nos se trata de uma utopia perigosa, como afirma que, o progresso depende, em grande parte, deuma certa assimetria social, algo que inspira, por si s, a competitividade e inovao. Em outraspalavras, o progresso se deve, at certo ponto, ao mpeto e o esprito criativo e empreendedorresultantes de desafios sociais a serem enfrentados. Do lado contrrio, a esquerda trabalha como paradigma da igualdade como propsito. No se trata, entretanto, de igualar todos emabsolutamente tudo, mas, simplesmente, de acreditar que a poltica tem como objetivo areduo das desigualdades sociais.

    Mesmo discordando do argumento central do pensador italiano, Giddens reconhece a associaoda esquerda ao paradigma da igualdade. Embora seu caminho seja consideravelmente distinto, aprincipal discordncia no exatamente de ordem metodolgica. Giddens apenas no enxerga noconflito entre esquerda e direta a vitalidade de outrora. Sua sada no passa de uma snteseentre os opostos, e a igualdade, um entre muitos desafios.

    Brasil

    Levando a srio os argumentos propostos acima, duas observaes sobre o debate do tema noBrasil merecem ser feitas. A primeira diz respeito particular distribuio de renda do pas.Desigualdade social uma expresso relativamente nova para polticos, imprensa e mercadoeditorial norte-americanos; raramente passa de um jargo acadmico em solo Europeu, masparece ser chave na descrio do Brasil. Uma das maiores economias do mundo que frequentatodos os rankings de pior distribuio de renda est em segundo colocado, segundo pesquisarealizada pela OCDE, em 2013.

    No que seja impossvel existir uma direita no pas, mas diante desse cenrio abjeto, como nodefender o combate desigualdade como prioridade?

    O desafio da direita no Brasil passa necessariamente pelo confronto com esse tipo de dilema.Ainda que se reconhea a desigualdade como condio natural, no defender sua reduo no passugere um problema mais moral do que poltico. E, ao contrrio do que dizem os tericosconservadores nacionais - aqueles que reclamam da inexistncia de um pensamento de direitaautctone - superar esse dilema implica em argumentos mais sofisticados do que vomitar a escolaeconmica austraca como plataforma de um liberalismo que nunca existiu no pas.

    Ao contrrio das experincias europeias, onde a ascenso da burguesia correspondeu umamudana estrutural no Estado, com um novo conjunto de regras e regimes derepresentatividade, o estado brasileiro forja o industrial nacional. Em outras palavras, o burgusbrasileiro foi vertebrado pelo prprio Estado, e, desde ento, permanece numa relaopromscua de clientelismo e dependncia mtua. Vargas foi s o primeiro, o pai de umdesenvolvimentismo levado a cabo pela enftica participao do Estado. Seus herdeiros no sforam incapazes de desfazer a teia varguista, como a enfatizaram, conforme mostrou o Frum Vargas do Alm, que saiu na Revista de Histria de outubro.

    Na lgica desenvolvimentista, o combate desigualdade o subproduto do crescimentoeconmico. Ou melhor, s se reduz desigualdade social, com crescimento econmico. Aqui residea segunda observao. Aqui, direita e esquerda do as mos. evidente que h uma enorme

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    variao entre os diferentes projetos polticos do pas no sculo XX, mas, de um modo ou deoutro, todos giraram em torno daquela velha ideia de crescer o bolo para depois repartir.

    Por mais que escutemos isso diariamente, na atual conjuntura isso parece ser um grandeproblema. Como lembra o antroplogo Eduardo Viveiros de Castro, a lgica de que para retirarpessoas da pobreza preciso crescer economicamente dependente da ideia de que crescimentoeconmico infinito. O ponto aqui, alm do esgotamento dos recursos naturais (algo bvio osuficiente para no precisar ser discutido aqui), o projeto, seja da esquerda, seja da direita,de incluso social (exclusivamente) pelo consumo. Viveiros de Castro lembra que h um imensocontingente de pessoas cuja vida no passa necessariamente pela transformao em consumidorativo. Entre eles, lembra o antroplogo, esto os ndios. Depois de que perdem a terra, a lnguae a religio, lhes sobram a mo-de-obra, e, de ndios viram pobres.

    Seringueiros, populaes ribeirinhas e comunidades indgenas na Amaznia podem receber algumbenefcio social aps perderem seu lugar para barragens, imensas plantaes de soja e fazendasde pecuria. O sudeste precisa de eletricidade e o pas de exportao. O meio ambiente no temqualquer relevncia. Curiosamente, lembra Viveiros de Castro, quando mais se redistribui, menosprecisa crescer. Frente a economistas e banqueiros vestidos de bem sucedidos, isso tudo podeparecer um discurso utpico ou fora da realidade. A cidade de So Paulo sem gua, talvez, noseja suficiente para convencer o leitor da seriedade desse argumento, portanto descrevo aqui umexemplo distante.

    H poucos meses, uma capa da Spiegel, uma das principais revistas na Alemanha, me chamouateno. A reportagem destacava que, como resultado da crise econmica de 2008, os jovensalemes estavam criando hbitos menos dependentes do consumo. Em outras palavras, ao invsde iniciarem um processo de hiper-especializao ou de submisso ao subemprego, uma novagerao abriu mo da febre de consumo. Se por um lado a crise por l no chegou a atingir osnveis descomunais de pases como Espanha, por outro a Alemanha um pas com menores nveisde desigualdade e, portanto, menor dependncia de um constante crescimento econmico. Oresultado a possibilidade de mltiplas formas de vida, que no a de um consumidor radical.Berlim j havia assistido s ocupaes ao longo das dcadas de 1980 e 90. Hoje, j se vcooperativas fundadas por grupos de indivduos que no se percebem parte da vida trabalho-consumo e tem suas residncias como parte da paisagem urbana da cidade (e dos guias deturismo), sem que tenham que abrir mo do seu projeto de vida.

    Em que pese suas diferenas, esquerda e direita se abraam no que Viveiros de Castro chamoude "crescimentismo". Significa dizer que o modelo de desenvolvimento est acima da dicotomia. Adificuldade em determinar o que cada lado representa, significa e defende hoje no livra nossoestimado Jardel do constrangimento por sua resposta, mas nos coloca numa instvel e delicadaposio ao nos definirmos como direita ou esquerda. Afinal, ainda que a formulao proposta porNorberto Bobbio para diferenciar as duas orientaes faa sentido, possvel que, num futuroprximo, elas voltem a ter sua relevncia disputada.

    Bruno Garcia pesquisador da Revista de Histria da Biblioteca Nacional e autor da dissertao Cuba andHuman Rights: Between US and EU support and pressure (Masarykova Univerzita, Repblica Tcheca, 2009).