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REGISTRO DE CASOS CRIPTOCOCOSE DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL. REGISTRO DE UM CASO ADHERBAL TOLOSA * A. SPINA-FRANÇA ** C. DA SILVA LACAZ *** Dos fungos que têm sido descritos parasitando o sistema nervoso central (SNC), o Cryptococcus neoformans (Sanfelice), Vuillemin, 1901 tem mereci- do destaque na literatura médica, desde a monografia inicial de Stoddard e Cutler, em 1916 12 . Este destaque decorre da freqüência do acometimento secundário do SNC e da gravidade assumida por esta complicação, fatal na maioria das vezes. As múltiplas tentativas terapêuticas, quase sempre ine- ficazes, e os erros de diagnóstico, acarretando identificação tardia do agente etiológico, têm constituído as principais justificativas para o registro dos casos. Carton e Mount a , em 1951, reuniram 220 casos registrados na literatu- ra, a maioria nos Estados Unidos da América, citando 30 outros não publi- cados. Entre nós, o primeiro caso foi registrado, em 1941, por Almeida e Lacaz 1 , seguindo-se os de Almeida e col. 2 , Cortez 5 , Clausell 4 , Fialho 8 , Duar- te 6 e o de Jobim, referido por Silva 19 . A presença da levedura no liqüido cefalorraquidiano, verificada pelo exa- me direto ou em cultura, único meio para o diagnóstico em vida da afecção do sistema nervoso central pelo Cryptococcus 13 > 14 , justifica o registro des- te caso. M. S. S. (Hospital das Clínicas — R.G. n* 405.832), branco, sexo masculino, 29 anos, natural do Estado da Paraíba, onde viveu até há 5 anos, em zona rural, quan- do se transferiu para a cidade de São Paulo. Nada de importância nos anteceden- tes; tabagista até há 1 ano. Desde o início de 1955 começou a apresentar cefaléia e dores na nuca, de início esporádicas e de pequena intensidade, que se agravaram paulatinamente, associando-se queda da acuidade visual e emagrecimento. Na pre- Trabalho da Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas e do Departamento de Microbiologia e Imunologia da Fac. Med. da Univ. de São Paulo. Entregue para publicação em dezembro 1955. * Professor Catedrático de Clínica Neurológica; ** Assistente de Clínica Neuro- lógica; médico da Secção de Liqüido Cefalorraquidiano do Laboratório Central do Hospital das Clínicas; *** Professor Catedrático de Microbiologia e Imunologia.

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R E G I S T R O D E C A S O S

CRIPTOCOCOSE DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL. REGISTRO DE UM CASO

ADHERBAL TOLOSA *

A . SPINA-FRANÇA **

C. DA SILVA LACAZ * * *

Dos fungos que têm sido descritos parasitando o sistema nervoso central (SNC) , o Cryptococcus neoformans (Sanfelice), Vuillemin, 1901 tem mereci­do destaque na literatura médica, desde a monografia inicial de Stoddard e Cutler, em 1916 1 2. Este destaque decorre da freqüência do acometimento secundário do SNC e da gravidade assumida por esta complicação, fatal na maioria das vezes. As múltiplas tentativas terapêuticas, quase sempre ine­ficazes, e os erros de diagnóstico, acarretando identificação tardia do agente etiológico, têm constituído as principais justificativas para o registro dos casos.

Carton e Mount a, em 1951, reuniram 220 casos registrados na literatu­ra, a maioria nos Estados Unidos da América, citando 30 outros não publi­cados. Entre nós, o primeiro caso foi registrado, em 1941, por Almeida e Lacaz 1 , seguindo-se os de Almeida e col.2, Cortez 5 , Clausell4, Fialho 8 , Duar­te 6 e o de Jobim, referido por Silva 1 9 .

A presença da levedura no liqüido cefalorraquidiano, verificada pelo exa­me direto ou em cultura, único meio para o diagnóstico em vida da afecção do sistema nervoso central pelo Cryptococcus 13>14, justifica o registro des­te caso.

M . S. S. (Hosp i t a l das Clínicas — R.G. n* 405.832), branco, sexo masculino, 29 anos, natural do Estado da Para íba , onde v i v e u a té há 5 anos, e m zona rural, quan­do se transferiu para a cidade de São P a u l o . N a d a de impor tânc ia nos anteceden­tes; tabagis ta a t é há 1 ano. Desde o iníc io de 1955 começou a apresentar cefalé ia e dores na nuca, de início esporádicas e de pequena intensidade, que se a g r a v a r a m paula t inamente , associando-se queda da acuidade v isual e emagrec imen to . N a pre-

T r a b a l h o da Clínica N e u r o l ó g i c a do Hosp i ta l das Clínicas e do Depar t amen to de Mic rob io log i a e I m u n o l o g i a da Fac . Med . da Un iv . de São P a u l o . En t regue para publ icação e m dezembro 1955.

* Professor Catedrá t ico de Clínica N e u r o l ó g i c a ; ** Assis tente de Clínica N e u r o ­lóg ica ; médico da Secção de L i q ü i d o Cefa lor raquid iano do L a b o r a t ó r i o Central do Hospi ta l das Clínicas; *** Professor Catedrá t ico de Mic rob io log i a e Imuno log ia .

sença de sinais de i r r i tação meníngea, ve r i f i cada 3 meses após o início da molést ia , foi submetido a e x a m e do l íquido cefa lor raquid iano ( L C R 1) que evidenciou o cr ipto-coco na pesquisa direta. In te rnado na enfermar ia da Clínica N e u r o l ó g i c a (31-3-1955), o e x a m e cl ínico não mostrou lesões cutâneas ou mucosas, nem enfar tamentos gan­gl ionares ; o e x a m e físico e rad io lóg ico do tó rax não evidenciou foco pulmonar .

Exame neurológico — At i t ude e m decúbito la teral preferencial , com hiperexten-são da cabeça e semi f l exão dos membros ; na posição ereta e na marcha, base au­mentada e oscilações sem direção predominante , não inf luenciáveis pela v isão . M o ­v imen tos vo lun tá r ios conservados. R e f l e x o s profundos v i v o s nos membros inferiores; re f lexos cutâneos presentes. Como sinais de i r r i tação men íngea : discreta r ig idez de nuca, sinais de Brudzinski e de Ke rn ig . A s a l terações subjet ivas da sensibilidade p redominavam no quadro, caracter izando-se por cefaléia intensa, mais acentuada na reg ião occipi tal , dores oculares e re t ro-oculares e raquia lg ia , maior na reg ião ce rv i ­cal ; todas apresen tavam períodos de exace rbação e acalmia , sucedendo-se os episó­dios com in terva los pequenos; ob je t ivamen te foi ve r i f i cada apenas hiperestesia do lo­rosa profunda e sinal de Lasègue b i la te ra lmente . Mioedema nos músculos grandes pei torais e biceps braquiais . Pr iapr ismo. N e r v o s cranianos: hiposmia bi lateral , am-bliopia, fundos oculares com estase venosa, borramento dos contornos papilares e manchas escurecidas na retina jus ta -macular esquerda.

Evolução e terapêutica — Durante o per íodo de in ternação (14 d ias ) a piora foi rápida, com queda do estado gera l , acentuação das dores, desaparecimento dos re f lexos musculares profundos, crises de ag i t ação psicomotora intercaladas com pe­ríodos de torpor p rogress ivamente maiores ; na fase final instalaram-se h iper termia ( e v o l u ç ã o afebri l a té e n t ã o ) v a r i á v e l , não ultrapassando 38,5"C e distúrbios do ri t­mo respiratório e cardíaco. F o r a m efetuadas t repanações occipi tais com f inal idade descompressiva; mor t e súbita em apnéia no dia ul terior . N o ú l t imo período da e v o ­lução apareceu secreção brônquica pouco abundante, não examinada , pelo compro­met imen to do re f l exo de tosse ocorr ido por essa época. É desse período o segundo e x a m e do l iquor ( L C R 2 ) .

A terapêut ica se baseou na adminis t ração de sulfadiazina por v i a oral (2 g cada 4 horas nos dois pr imeiros dias, seguindo 1,5 e 1 g cada 4 horas por 3 e 4 dias, r e spec t ivamen te ) , tendo-se passado depois ao emprego do Albuc id , l g cada 8 horas, por v i a int ravenosa (4 d i a s ) ; durante este ú l t imo per íodo fo ram feitas duas apl ica­ções cisternais de 0,1 g da mesma medicação .

Exames de liqüido cefalorraquidiano — LCR 1 (24-3-1955): punção suboccipital , paciente ca lmo e em decúbi to la tera l ; pressão inicial 35 cm de água ( m a n ô m e t r o de C l a u d e ) , pressão final 10; l iquor l evemen te turvo , tendo-se fo rmado re t ículo de f i -brina; 405 leucóci tos por m m 3 ( l in fóc i tos 79%, médio mononucleares 12%, polinu-cleares neutróf i los 9 % ) ; 50 m g de proteínas totais , 680 m g de cloretos, 21 mg de gl icose por 100 ml ; reações de Pandy e Nonne fo r temente posi t ivas; reação do ben-j o i m coloidal 00110.12222.22210.0; reação de T a k a t a - A r a posi t iva, t ipo v e r m e l h o ; rea­ções de Wassermann, Steinfeld e W e i n b e r g nega t ivas ; reações de E a g l e e de f loeula-ção com an t ígeno de cardiol ipina ( V . D . R . L . ) , nega t ivas ; no e x a m e microscópico do sedimento ( m é t o d o de L e i s h m a n ) fo ram ver i f icadas formações arredondadas, de ta­manho pouco ma io r que o de hemácias, cercadas de ha lo não corado, de proporções va r i áve i s ( f i g . 1 ) , com mor fo log i a semelhante à do Cryptococcus, aspecto conf i rma­do pelo e x a m e com a t inta da China ( f i g . 1 ) ; a cultura em meio de Sabouraud foi encaminhada ao Depa r t amen to de Mic rob io log i a da Fac . Med. da Univ . de São P a u l o para reconhecimento ( e x a m e m i c o l ó g i c o ) . LCR 2 (11-4-1955): punção suboccipital , paciente ca lmo, e m decúbito la te ra l ; pressão inicial 70 cm de água, pressão f inal 60; l iquor t u rvo ; 1.065 e lementos por mm 3 , representados quase exc lus ivamente por Cryp­

tococcus ( f i g . 1 ) , entre os quais ex i s t i am alguns leucócitos da série l infomononuclear ; 80 m g de proteínas totais e 20 m g de g l icose por 100 ml ; reações de Pandy e Nonne fo r temente posi t ivas; reação do benjoim 01210.12222.22100.0; reação de T a k a t a - A r a posi t iva, t ipo ve rme lho .

Outros exames complementares — Hemograma (4-4-1955): hemoglob ina 12,6 g por 100 ml ( 7 8 % ) ; leucócitos 16.000 por mnV; polinucleares neutróf i los 8 1 % (bas to-netes 11; segmentados 7 0 ) ; pol inucleares basófüos 1%; l infóci tos 10% ( t í p i c o s ) ; m o -nócitos 8%; anaesinofi l ia . (11-4-1955): hemoglob ina 13,6 g por 100 ml ( 8 5 % ) ; leucó­citos 9.900; pol inucleares neutrófi los 85% (bastonetes 10; segmentados 7 5 ) ; polinu­cleares eosinófi los 1%; l infóci tos 13% ( t í p i c o s ) ; monóci tos 1%. Reações sorológicas

para sífilis, nega t ivas . Dosagem de sulfa no sangue (4-4-1955): 4,1 m g por 100 ml ; (11-4-1955): 5,9 m g por 100 ml . Provas de função hepática: reação de H a nge r ( + ) ; reação de W e l t m a n n : coagu lação até o tubo 1. Radiografia do tórax (1-4-1955) : t ransparência pulmonar normal . Eletrencefalograma (5-4-1955): t raçado sem anor­malidades na v ig í l i a , hiperpnéia e sono espontâneo. Exame micológico: as culturas, e m ágar-Sabouraud, mant idas à tempera tura ambiente , são cremosas, lisas, fac i l ­mente destacáveis do meio, apresentando ao e x a m e microscópico mor fo log i a própria do Cryptococcus neoformans ( f i g . 2 ) .

Exame necroscópico ( e fe tuado 21 horas após a mor te , pelo Dr. O. A . Behmer, no Depar tamento de P a t o l o g i a Geral e A n a t o m i a Pa to lóg i ca da Fac . Med. da Univ . de São Pau lo , Prof . L . da Cunha M o t t a ) , autópsia 38.931-55 — Descrição macroscópica: ca lo ta craniana e dura-madre sem anormal idades ; anemia da far inge, lar inge, tra-quéia e brônquiosi amigda l i t e lacunar; extensas aderências pleurals à direita, fac i l ­mente destacáveis ; pulmões de v o l u m e e consistência aumentados, crepi tação dimi­nuída, superfície de secção vermelho-escura , salpicada de pequenas áreas de côr es-branquiçada, havendo, pela pressão, saída de abundante l iqüido sangüinolento tu rvo ; dos brônquios, por espressão, mater ia l de aspecto purulento; hepa tomega l ia ( incha -ção t u r v a ) ; encéfa lo de v o l u m e bastante aumentado, sulcos de compressão ao redor das tonsilas cerebelares fo rmando cone de compressão bulbar, sulco de compressão dos giros retos de encont ro com a pequena asa do esfenóide, vasos congestos; lepto-meninge pouco translúcida, de modo genera l izado , especia lmente em correspondência com os sulcos cort icais e fossa interpeduncular; discreta quant idade de exsudato, de aspecto gela t inoso, deposi tado no espaço subaracnóideo, par t icu larmente nos sulcos cerebrais; c i rcunvoluções cerebrais a la rgadas e achatadas ( e d e m a ) aos cortes fron­tais, pequeninas formações císticas, medindo menos de meio mi l íme t ro de d iâmet ro cada, disseminadas pelo cór tex cerebral ; rombencéfa lo , sem al terações macroscópicas; medula espinhal e dura-mater espinhal sem al terações ; l ep tomeninge espinhal pouco translúcida, com áreas de aspecto le i toso na r eg i ão torácica. Diagnósticos histopato-lógicos: meningo-encefa l i t e por tórula; men ing i t e raquidiana por tórula; torulose pulmonar .

C O M E N T Á R I O S

O caráter secundário assumido, como regra, pelo acometimento micótico do S N C 1 2 é evidenciado em 5 dos casos referidos na literatura nac iona l 1 , 2 , 5 ,

6 , 8 , onde ocorreu na evolução de processos pulmonares. No caso de Clau¬ sell 4 e no de Jobim, citado por Silva 1 9 , o sofrimento do SNC assinalou o início da sintomatologia; no caso presente, fato semelhante se registrou, não

tendo sido verificado outros focos, clinicamente; necroscòpicamente foi en­contrado foco pulmonar. A pesquisa deste, em vida, foi negativa, mesmo pelo exame radiológico, sendo levantada a suspeita apenas no final da evo­lução; a natureza do processo demonstrado necroscòpicamente sugere desen­volvimento ulterior à exploração clínica.

As sucessivas revisões da literatura têm reunido predominantemente qua­dros meningíticos ou meningo-encefalíticos, conforme se verifica nas de La­caz e col. 1 3, Mosberg e Arnold Jr.16, Carton e Mount 3 e Evans e Harrell Jr.7; o desenvolvimento de granulomas criptocócicos, especialmente a partir da lo­calização embólica de leveduras em vasos do SNC, referida com mais fre­qüência para o encéfalo 3 , tem sido registrada com certa raridade em outras localizações, como a mielorradicular3, medular 1 8 e nos plexos corióides 1 5 ; granuloma meníngeo em contigüidade a processo orbitário foi verificado por Krainer e col. 1 1. Todos os casos analisados, referentes ao nosso meio, se ca­racterizavam por sintomatologia meningítica ou meningo-encefalítica, com exceção do de Fialho 8 , no qual o acometimento do SNC constituiu achado necroscópico. O presente registro se refere também a caso com sintomato­logia inicialmente meníngea, à qual se associaram sofrimento encefálico di­fuso e hipertensão intracraniana. O sofrimento encefálico se caracterizou por crises de agitação psicomotora e torpor progressivo; pelo exame anátomo-patológico foram verificados micro-abscessos disseminados em toda a corti-calidade, provavelmente decorrentes de infiltração perivascular a partir do processo meningítico 1 3 . O papiledema incipiente que assinalava a existência de hipertensão intracraniana, comprovada pela hipertensão liquórica, evoluiu de modo a constituir o fator que desencadeou a morte por comprometimento de centros de regulação vital, conforme foi demonstrado na necrópsia pela existência de sulcos de compressão ao redor das tonsilas cerebelares, deter­minando a formação de cone de compressão bulbar.

A sobrevida, raramente assinalada para esta forma, associada talvez a sucesso terapêutico 1 7, levou a tentar terapêutica maciça pelas sulfas, como propõem Marshall e Teed, em 1942, citados por Lacaz 1 2 . A concentração sangüínea considerada útil por êsses autores (10-12 mg por 100 ml de san­gue) não foi atingida, não se conseguindo ultrapassar o nível de 6 mg; a com-plementação, pela introdução intratecal do medicamento também se mostrou ineficaz.

O diagnóstico de criptococose do SNC em vida, excetuando os casos sub­metidos à cirurgia que permite a biópsia, é firmado pela demonstração da levedura no liqüido cefalorraquidiano 1 4 , especialmente em preparações do se­dimento com tinta da China, mediante cultura do material em meios espe­ciais para fungos (Sabouraud) ou pela inoculação em animais sensíveis, es­pecialmente o camundongo 1 2 . Em meio de Sabouraud o crescimento se pro­cessa facilmente, em geral em tempo curto, mas sendo necessária observa­ção durante 20 ou 30 dias, como assinala Manganiello 1 5 , para ser conside­rada estéril, em vista do crescimento tardio verificado em certos casos, como no registrado por este autor (18 dias). Com base especialmente no exame direto e na cultura, o diagnóstico pôde ser estabelecido em 9 dos 18 casos,

com estudo adequado do liqüido cefalorraquidiano, revistos por Lacaz e col. 1 3, em 4 dos 5 registrados por Mosberg e Arnold 16, em um dos dois de Globus e col.9 e também em um dos dois de Carton e Mount 3 . Complemento ao diagnóstico cirúrgico foi dado pela cultura no segundo caso registrado por estes autores e no de Manganiello 1 4 . Com exceção dos casos de Fialho 8 e de Duarte 6, onde não constam exames do liqüido cefalorraquidiano, nos de­mais da literatura nacional o diagnóstico pôde ser estabelecido em vida, in­clusive no presente.

Embora seja a micóse mais comumente registrada no SNC, não deixa a criptococose de ser afecção rara e este é um dos principais óbices para o es­tabelecimento do diagnóstico em vida, pois as alterações liquóricas que cos­tuma determinar, especialmente nas formas difusas, não são específicas, po­dendo caracterizar outras afecções do SNC. Assim, liquor hipertenso, com ou sem formação de retículo de fibrina, por vêzes xantocrômico, com turva¬ ção relacionada à hipercitose pEedominantemente linfomononuclear, acompa­nhada de hiperproteinorraquia, alterações do tipo de globulinas, queda das taxas de cloretos e glicose, esta por vezes muito acentuada, constitui o qua­dro comumente produzido pelo criptococo 3 , 9 , 1 3 . Na neurotuberculose, o qua­dro liquórico é semelhante e, embora o exame bacterioscópico possa dar o diagnóstico, a negatividade freqüente do exame direto e o longo tempo de observação requerido pelas culturas para serem consideradas negativas, não são suficiente para infirmar a hipótese; assim, casos de criptococose com alterações liquóricas acentuadas podem, pela raridade, ser tomados por pro­cessos de outra etiologia. Além deste fator de erro, a probabilidade de con­fusão entre Cryptococcus e linfócitos é grande e decorre da morfologia do parasita, em especial quando não se acham envolvidos pela cápsula caracte­rística. O registro dos dois casos de Globus, Gang e Bergman ÍJ foi feito com o especial sentido de chamar a atenção para este fato; no primeiro, a ob­servação de formas em brotamento entre células consideradas como linfóci­tos, sugeriu o diagnóstico que foi confirmado pela cultura; no segundo, fo­ram verificadas células semelhantes a linfócitos no liqüido cefalorraquidiano ventricular, cuja verdadeira etiologia não foi elucidada, e só no exame histo-patológico do material de necrópsia é que, com a atenção despertada pelo primeiro caso, foi a levedura reconhecida.

Assim deve ser adotada, como rotina pelos liquorologistas, a conduta de proceder sistematicamente ao exame direto e à semeadura em meios adequa­dos em relação a liqüido cefalorraquidiano com hipercitose, especialmente linfomononuclear, sem causa aparente, associada ou não a hipoglicorraquia, especialmente quando presentes lesões ósseas, pulmonares ou cutâneas e en¬ fartamentos ganglionares, ou doenças linfomatosas, como a linfogranuloma¬ tose maligna, linfossarcomatose e leucemias, como recomendam Carton e Mount 3.

O sedimento do material colhido na primeira punção raquidiana, corado pelo método de Leishman, demonstrou, no presente caso, em área onde o co­rante se depositara de modo mais intenso, halos não corados envolvendo ele­mentos mononucleados (fig. 1A e B ) ; sua observação mais acurada e o

exame de material preparado com a tinta da China (fig. 1C) levaram ao reconhecimento do criptococo, identificado ulteriormente pela cultura.

A diminuição da reação citológica liquórica observada na fase final da criptococose, com desenvolvimento abundante de leveduras, que chegam a constituir a quase totalidade dos elementos referidos na contagem celular, como ocorreu no caso de Almeida e col.2 e no atual, faz supor diminuição ou desaparecimento da reação meníngea frente ao agente etiológico. Êste fato poderia estar correlacionado à inexistência de reação tissular frente a parasitas isolados, conforme as observações histopatológicas de Hassin 1 0 .

R E S U M O

Registro de caso de criptococose do sistema nervoso central, cujo diag­nóstico foi estabelecido pelo exame do liqüido cefalorraquidiano. A presen­ça do criptococo, verificada no exame direto, foi confirmada por culturas. O paciente apresentava quadro irritativo meníngeo, ao qual se associaram, ulteriormente, distúrbios encefálicos difusos e síndrome de hipertensão intra­craniana. Evolução fatal após 4 meses de doença; foi tentada a sulfamido-terapia, sem resultado. O exame necroscópico confirmou a existência de leptomeningite difusa e micro-abscessos disseminados no córtex cerebral; o óbito foi relacionado à compressão bulbar por hérnia das tonsilas cerebe¬ lares.

S U M M A R Y

Cryptococcosis of central nervous system (torula infection).

Report of a case of cryptococcosis of central nervous system the diagnosis being established by cerebrospinal fluid examination. Direct evidence of Cryptococcus was comproved by cultures. The patient, a white man, 29 years old, presented meningeal symptoms with late association of diffuse encephalic disturbances and intracranial hypertension. The course (4 months) was fatal; sulphamidic therapy was tried with no results. Necroscopic find­ings confirmed diffuse leptomeningitis, disseminated microabscesses of ce­rebral cortex; death was related to the presence of medullar compression by herniation of cerebellar tonsyles.

B I B L I O G R A F I A

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Clínica Neurológica. Hospital das Clínicas da Fac. Med. da Univ. de São Paulo —

Caixa Postal 3461 — São Paulo, Brasil.