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    Coutinho, M., (2002) Economia Social em Portugal. Emergncia do

    Terceiro Setor na Poltica Social, Tese de Doutoramento apresentada em

    provas pblicas no ISEG/Universidade Tcnica de Lisboa, a 9 de

    dezembro 2002, cap. II.

    Captulo II

    Problematizao terica em torno do eixo

    terceiro sector e poltica social na sua relao

    com a economia

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    Captulo II Problematizao terica em torno do eixo terceiro sector e poltica socialna sua relao com a economia

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    II Problematizao em torno do eixo terceiro sector e poltica

    social na sua relao com a economia

    2.1. Preliminares

    As escolhas do passado influenciaram frequentemente as opes presentes e osdesenvolvimentos sectoriais so o produto da interaco entre as condiesfundamentais da oferta e da procura, as evolues a longo prazo e os modos deorganizao que se apoiam, frequentemente, sobre poderosos modelos culturais epreferncias polticas

    6.

    Pelas mltiplas implicaes no desenvolvimento dos indivduos e das

    comunidades da sociedade actual, a anlise econmica do terceiro sector

    revela-se cada vez mais pertinente. Os dilemas e paradoxos metodolgicos

    que se nos apresentam, no que se refere compreenso dos mesmos so

    complexos. Em primeiro lugar, porque em termos estruturais e funcionais tem

    uma interdependncia profunda com o sector privado lucrativo e o sector

    pblico. Em segundo lugar, porque difcil delimitar as fronteiras do objecto de

    estudo; Porque no um sector previamente dado e invarivel da economia,

    existente fora do espao e do tempo - resulta de um longo e complexo

    processo de transformao histrica.

    Assim sendo, consideramos importante contextualiz-lo, pondo nfase

    no seu papel enquanto suporte da poltica social. Desde logo, assumimos que

    diferentes contextos o vm caracterizando em trs momentos fundamentais.

    O primeiro que decorre da emergncia histrica da revoluo industrial,

    vai at finais do sculo XIX e cuja essncia, sublinha Ferreira7 incidiu,

    basicamente, no desenvolvimento do progresso e da razo que se

    consubstanciou no aprofundamento e integrao das relaes entre a cincia,

    a tcnica e o trabalho no processo de produo, consumo e distribuio de

    mercadorias. Perodo que se caracteriza por uma economia social subterrnea.

    Surgem as prticas associativas de tipo cooperativo ou pr-mutualista, atravs,

    entre outros, da tradio socialista crist de Frdric Le Play e da tradio

    socialista de Pecqueur.

    6Anheier, 1997, p. 45.7Ferreira, 2001, p. 71.

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    A economia social contestava ento o facto das regras de

    funcionamento da actividade econmica serem concebidas independentemente

    das regras morais, religiosas e polticas.O segundo perodo inicia-se na penltima dcada do sculo XIX com a

    emergncia do modelo de produo e de consumo em massa, inspirado pelo

    taylorismo e o fordismo. Assinalam ainda este perodo, a criao de seguros

    sociais obrigatrios na doena, acidentes de trabalho, invalidez e velhice, na

    Alemanha de Bismarck (1883-1889), a colectivizao da proteco social

    decorrente da lei sovitica de 1918, a Declarao Universal dos Direitos do

    Homem em 19488,a elaborao da Carta social Europeia em 1961 e o Cdigo

    Europeu de Segurana Social de 1964. Lvesque9sublinha mesmo que a partir

    de 1930, a nebulosa primitiva do associativismo dos trabalhadores, do sculo

    XIX, faz nascer diferentes formas que se institucionalizam: sindicatos,

    cooperativas, sociedades mutualistas, associaes. um perodo que vai at

    finais da dcada de 60 e acompanha o percurso da segunda revoluo

    industrial, em que a economia social, como disciplina, se torna complementar

    da economia poltica, na medida em que integra a anlise dos subconjuntos de

    actividades e factores, cujo comportamento no pode ser explicado semcombinar diversas caractersticas sociais s regras especificamente

    econmicas.

    O terceiro perodo que se inicia na dcada de 70, decorrente das

    tendncias de integrao global e da crescente abertura e interdependncia

    das economias (devido recesso industrial e crise das polticas de

    proteco social) vem at aos nossos dias e caracteriza-se pela revalorizao

    do papel do terceiro sector, enquanto suporte da poltica social, enquadrando

    iniciativas de solidariedade e formas mercantilizadas de proviso social. Foi o

    tempo marcado pela estagflao agravada pelo primeiro choque de petrleo de

    1973 que se reflectiu nas polticas sociais, pela necessidade dos Estados, por

    um lado, racionalizarem as despesas sociais e, por outro, pressionarem no

    sentido do aumento dessas despesas para acorrer s novas necessidades

    provocadas pela deteriorao das condies sociais, o desemprego, a pobreza,

    etc.

    8Adoptada pela Assembleia Geral da ONU em 10.12.1948.9Lvesque, 1989, p. 20.

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    Captulo II Problematizao terica em torno do eixo terceiro sector e poltica socialna sua relao com a economia

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    Para os pensadores do sculo XIX10, o homem, na sua actividade

    econmica, buscava o benefcio (a remunerao) que a sua propenso

    materialista lhe levava a optar, pelo menor esforo, e deveria tender a adaptar-se a uma racionalidade econmica, j que os comportamentos contrrios a

    essa racionalidade provinham de uma interveno exterior. Daqui se deduzia

    que os mercados eram instituies naturais, susceptveis de surgir

    espontaneamente, desde que se tivesse liberdade de aco. Como resposta a

    esta atitude, surgiu a emenda da Lei dos Pobres, aprovada em 1834, que

    modificou a estratificao da sociedade inglesa:

    os antigos pobres, no aptos fisicamente para o trabalho,passavam a ser classificados como indigentes, cujo destino

    eram as workhouses e em trabalhadores independentes que

    ganhariam a sua vida, trabalhando por um salrio;

    os indigentes deveriam ser socorridos, para o bem da

    humanidade, os no activos no deveriam s-lo, para o bem da

    indstria.

    Entregues agora aos limites do mercado de trabalho, deveria ser-lhesproporcionado, pelo governo, o menor socorro, j que isso constitua por parte

    do Estado uma violao dos direitos do povo11.

    Decorrente deste posicionamento, durante muitos anos, os cuidados aos

    grupos considerados socialmente vulnerveis aos que se encontravam nas

    margens da sociedade foram assegurados por grupos de voluntrios

    inspirados na caridade crist e na solidariedade entre as pessoas.

    Mais tarde, com o estabelecimento do Estado providncia, aredistribuio passa a ser feita quer pelo Estado, quer pela colaborao

    estabelecida entre o Estado e as organizaes voluntrias, num esprito de

    complementaridade.

    10Polanyi, 1989, p. 390.11Idem, p. 353.

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    O Estado foi integrando objectivos mistos entre universalismo,

    particularismo e definio de necessidades de grupos alvo; o papel da

    organizaes do terceiro sector foi sendo de promoo do bem estar social,fornecendo servios especializados em nichos de mercado, para clientes

    particulares, ganhando um papel importante na poltica distributiva12. Neste

    domnio, as organizaes caritativas, voluntrias, no lucrativas, entre outras,

    tiveram sempre uma importncia preponderante na aco junto de grupos alvo,

    dada a especificidade do seu lugar na sociedade: de responsabilidade

    multiforme13 - ideia utilizada por Woldring (1999), em contraposio com os

    ideais individualistas e os de um Estado centralizado.Surgidas de dois iderios filosficos, que se afirmaram enquanto

    correntes de pensamento e informaram polticas econmicas e sociais, as

    ideias individualistas decorrem da ideologia liberal, que preconizava que toda a

    sociedade mudaria automaticamente, uma vez organizada a base econmica

    estruturante de mercado. Na posio marxista o Estado surge como

    centralizador e a economia considerada a estrutura de base da sociedade e

    todos os sectores sociais esto dependentes da primeira. Da que os meios de

    produo devero estar nas mos do Estado, pressupondo-se que a luta bem

    sucedida da classe trabalhadora pelo controlo sobre a sociedade civil permitiria

    a abolio do Estado14 cujos aparelhos podiam e deviam ser abolidos e

    substitudos por simples rgos administrativos. As relaes de poder das

    sociedades civis deveriam assim ser explicadas em termos de relaes de

    produo, ignorando-se, sublinha Keane (2001), o potencial democrtico das

    associaes de cidado15. Gellner (2001) contrape o ponto de vista marxista,

    salientando que a sociedade civil um conjunto de diversas instituies no

    governamentais, suficientemente fortes para contrabalanarem o Estado e que,

    embora no evitem que o Estado desempenhe o seu papel de manuteno da

    paz e da arbitragem de interesses relevantes, pode, apesar disso, evitar que

    ele domine e atomize o resto da sociedade16.

    12Perri 6, 1994.13

    Woldring, 1999, p. 3.14Keane, 2001, p. 90.15Idem, p. 89.16Ernest Gellner, citado em Keane, 2001, p. 91.

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    O conceito de poltica social surge assim num percurso cujo fio condutor

    rene orientaes normativas e econmicas e onde igualmente se cruzam

    perspectivas de desenvolvimento humano com atitudes e tomadas de decisoactivas na sociedade. Os sistemas de proteco social das sociedades

    industriais comearam por ter um marcado cunho de excepcionalidade

    (reduzido ao infortnio, doena...) de durao mais limitada (penses de

    reforma tardias e curtas), com um modelo de cobertura ocupacional (para os

    que trabalhavam), com um papel modesto do Estado e amplo envolvimento da

    famlia e do mercado. Com a generalizao, a proteco social tornou-se mais

    ordinria e permanente, mais padronizada e duradoura17

    .Paralelamente, as iniciativas do terceiro sector da economia foram

    surgindo numa atitude pr-activa poltica social e ao processo de

    desenvolvimento econmico. As suas estratgias de aco desenvolveram, em

    especial, o encorajamento de solues de investimento (atravs de

    movimentos cooperativos, mutualistas, ou de iniciativas de produo) de ajuda

    criao de rendimento, para alterar, ou reverter, a situao de desvantagem

    dos indivduos e das famlias. Abordando a luta contra a pobreza, numa ptica

    de integrao social pelo desempenho de uma actividade econmica,

    reconhecem que o investimento no capital social permite aos indivduos a sada

    da pobreza.

    Ainda que apresentando diferentes formas, quer na abrangncia, quer

    no tipo de programas, a poltica social foi surgindo aos nossos olhos como um

    esquema definido do topo para a base do poder central para a sociedade

    civil. O Estado foi criando condies para um bem estar scio-econmico e ao

    criar essas condies ps em marcha uma poltica social especfica. Esta

    perspectiva unilateral contraria e esbate esforos surgidos na sociedade, para

    criao de espaos de investimento num desenvolvimento sustentado

    espaos em que se observa a actuao de uma economia privada, com

    objectivos sociais e em que os interesses particulares so promovidos por

    associaes privadas, caracterizadas por uma ordem social horizontal.

    17Cruz, 1997.

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    Assim, ao analisarmos as intervenes sociais, cruzamos,

    obrigatoriamente, aces estratgicas surgidas na sociedade civil com

    esquemas de proteco social pblica. A questo chave ser definir umconceito de poltica social que suporte o nosso trajecto cientfico e

    metodolgico; que v ao encontro das prticas e produza informao sobre os

    efeitos das escolhas polticas da sociedade civil. Desta feita, para alm de

    reflectir sobre definies de poltica social e de terceiro sector, tentar-se-

    compreender as variaes histricas que alteraram o significado dos conceitos.

    2.2. Para uma anlise da interveno em poltica social

    Nesta linha de reflexo a poltica social aparece-nos como que

    integrando uma matriz especfica:

    da qual fazem parte orientaes polticas e econmicas,

    assentes em sistemas sociais;

    cuja base social de suporte refere organizaes pblicas (o

    sistema pblico administrativo) e/ou privadas (empresas

    privadas lucrativas e empresas no lucrativas e no privadas);

    que integra objectivos e medidas de carcter social, econmico,

    institucional e poltico que em cada momento tm impacto sobre

    o consumo, o investimento, a segurana, a participao, a

    liberdade e a dignidade dos povos.

    O prprio debate sobre os sistemas de proteco social dever, por isso,

    ser feito na sua relao com as recomendaes polticas, econmicas e sociais

    negociadas em cada sociedade, tendo presente as organizaes do primeiro,

    do segundo e do terceiro sector na sua heterogeneidade e na diversidade doscampos em que operam, o que o torna mais complexo. Segundo Perri (1994)18,

    os conservadores tenderiam a fazer reviver as organizaes caritativas e

    similares, em detrimento das cooperativas; os liberais tenderiam a revitalizar a

    produo e o consumo individualizado, a nvel do Estado providncia; a

    esquerda opor-se-ia individualizao e os sociais democratas defenderiam

    uma perspectiva de equidade servios do Estado e encorajamento da

    responsabilidade individual.

    18Perri 6, 1994, p. 190.

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    No , de facto, pacfico o conceito de poltica social, isto , as variveis

    a incluir ou a excluir e as relaes que lhe do corpo quando pretendemos um

    olhar a partir das intervenes sociais, dos actores e suas performancee dosvalores que implcita ou explicitamente as validam. No obstante a diversidade

    das intervenes que caracterizam estas medidas que, consoante os casos e

    os perodos histricos, so classificados ou se reclamam contra a pobreza e a

    excluso, todos tm, em termos de ideias a preocupao de estabelecer

    formas de cooperao, de articulao de recursos e de vir a gerar benefcios

    para a populao.

    A j referida Declarao Universal dos Direitos do Homem exige que se

    assegure o reconhecimento e a aplicao dos direitos nela expressos. Nestaconformidade, o desafio que se coloca s diferentes polticas sociais a

    metodologia que utilizam na operacionalizao dos seus objectivos que:

    ora valoriza aces passivas, de cariz pecunirio;

    ora reactiva, de cariz caritativo e assistencialista;

    ora activa cooperante, solidria, produtiva.

    Criando a situao de excluso social uma condio que nega o acesso

    aos direitos humanos (como veremos mais frente), a soluo poder estar

    nas alternativas de sada do ciclo vicioso de excluso, ou seja, satisfazendo as

    condies necessrias de acesso vida econmica, que, em muitos casos,

    obriga criao de suportes de cooperao e solidariedade, para satisfazer

    necessidades elementares (o grande desafio poltica social). Necessidades

    que, se no satisfeitas, pem em causa a capacidade das pessoas individual e

    mutuamente se reforarem.

    Da que, ao aprofundar o estudo cientfico das lgicas que presidem s

    orientaes da interveno social e tomada de deciso da mesma, partimosdo princpio que os critrios tm alguma validade como actos poltico

    econmicos socialmente enquadrados. Rejeita-se partida a ideia de que

    sejam decises s explicveis por puros critrios econmicos e/ou polticos, o

    que significa que a interveno social nunca se exclui da abordagem sistmica.

    Poltica social: um conceito que integra

    i. teorias extensivas de economia, de poltica e de sociedade;

    ii. espaos de solidariedade;iii. caminhos de cooperao.

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    2.3. Poltica Social: um conceito que integra teorias extensivas de

    economia, de poltica e de sociedade

    H quase trs dcadas que os direitos sade, educao, ao trabalho e liberdade em relao ao medo e fome, foram declarados fundamentais no PactoInternacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Embora o objectivo deacabar com a pobreza em todo o mundo tenha sido insistentemente sublinhado, atravsde aces e acordos internacionais, os direitos no afectam mais do que 1000 milhesde pessoas

    19.

    A citao escolhida para iniciar o percurso terico em que assentaremos

    todo o nosso trabalho de anlise da poltica social, faz parte de uma reflexo

    actual. Desde logo sobressai como primeira preocupao que nem os agentestradicionais, nem as formas clssicas de interveno do Estado na actividade

    econmica podem resolver o conjunto de problemas de hoje. Em alternativa,

    urge a criao de espaos onde possam mover-se todos os agentes

    econmicos com uma misso comum: contribuir para a resoluo dos

    problemas sociais.

    Correndo o risco de algum reducionismo, podemos dizer que remonta ao

    sculo XVIII, ao movimento genuinamente europeu que foi a Revoluo

    Industrial, o aparecimento das filosofias que deram corpo economia como

    cincia. No plano poltico, os sistemas econmicos foram-se afirmando atravs

    de duas vertentes clssicas de interveno na actividade econmica: a

    economia de mercado, individualista e com fins lucrativos e a economia

    colectivizante e planificada dos pases comunistas e das economias

    simplesmente controladas em maior ou menor grau pelo Estado20.

    Da que a poltica social, enquanto conceito que tem subjacente

    perspectivas de sociedade e de economia, que do forma ao tipo de relaes

    entre indivduos e instituies, foi igualmente informada por esse trajecto

    terico e no pode ser facilmente compreendida como resultado de um nico

    factor tal como o processo de industrializao, o desemprego, o totalitarismo de

    Estado, etc. Inter-relaes bastante mais complexas entre vises de sociedade

    e instituies sociais, espaos de fraternidade, solidariedade e movimentos

    populares, levaram criao de muitos dos organismos sociais actuais.

    19CIPQV, 1998, p. 22.20Rosendo, 1996, p. 252.

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    As misericrdias, as cooperativas e os movimentos associativos em

    geral, que atingem hoje a dimenso formal de pilares de suporte da poltica

    social, emergiram de instituies de fraternidade e de solidariedade, comobjectivos de entre-ajuda.

    Se um facto que a Lei dos Pobres, aprovada em Inglaterra, em 1601,

    por Isabel I, referenciada com algum significado no que diz respeito

    proteco legal dos necessitados, ela no comete, no entanto, ao Estado

    qualquer obrigao de proteco social. Antes, impe s parquias o dever de

    assegurar socorro aos pobres, ento considerados indigentes21. Polanyi (1944)

    sugere que a referida Lei seja denominada como a lei dos desempregados e

    dos no empregveis, uma vez que preconizava que os pobres vlidosdeveriam ser postos a trabalhar, que a mendicidade deveria ser severamente

    punida e que a vagabundagem, em caso de recidiva, deveria ser tratada como

    infraco. Caracterizando-se embora pela sua feio repressiva, a Lei do

    Pobres apelava aos actores locais uma atitude de interveno junto dos

    pobres: cada parquia unidade minscula tomava as suas prprias

    disposies para pr os indivduos vlidos a trabalhar, para organizar um asilo

    de pobres, para colocar os rfos e as crianas sem recursos de

    aprendizagem, para tratar dos velhos e dos doentes, para enterrar os

    indigentes; e cada uma tinha o seu prprio esquema de taxas22. No era, no

    entanto, sugerida qualquer preocupao de investimento nos indivduos ou nas

    comunidades, com vista ao desenvolvimento do seu potencial, individual, ou

    colectivo.

    Muitos movimentos anteciparam o que hoje se constitui como sindicatos,

    cooperativas, organismos de crdito mtuo, albergues, etc., e se constituram

    como verdadeiros suportes sociais, garantes do desenvolvimento dascomunidades, pondo em marcha espaos que se inscrevem no domnio da

    economia social. Espaos que recriam esferas da vida onde as pessoas podem

    recuperar a sua responsabilidade, sobre o ambiente fsico e social, e que

    capacitam o cidado para uma vida com dignidade H registos de

    organizaes criadas em 1082-1092, especialmente inspiradas no cristianismo,

    com prticas de solidariedade, de fraternidade e de benemerncia e auxlio (ver

    quadro 1).

    21Maia, 1990.22Polanyi, 1983, p. 126.

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    Quadro 1 Os Compagnonnages

    Um dos primeiros compromissos assumidos por grupos profissionais, tendentes criao de espaos de solidariedade, para proteco mtua e desenvolvimento, foi oCompagnonnage(surgida em 1082-1092).

    Os Compagnonnages eram fraternidades operrias, constitudas por operriosartistas que tinham por misso construir obras de arte23, em especial catedrais e edifciosreligiosos. Estas instituies que se sobrepunham s confrarias, reforavam os laos decompanheirismo e de solidariedade profissional entre os membros dos diferentes ofciosque ali trabalhavam e viviam juntos. Segundo Rosendo, o Compagnonnage foimutualista, antes da mutualidade, sindicalista, antes dos sindicatos24, cooperante, antesdas cooperativas e antecipou as agncias de emprego, os organismos de crdito mtuo,os albergues da juventude e a prpria segurana social ...ela radica... na filosofia quehoje informa o ideal mutualista e os princpios que estiveram na prpria origem daeconomia social25:

    1. criao de condies para o desenvolvimento equilibrado a nvel local:- proteco marginalidade e aos desprotegidos;- organizao de lazeres; expresso cultural;- luta contra o analfabetismo;- desenvolvimento popular.

    2. segurana na sade:- preveno contra as inadaptaes profissionais e sociais.

    Os Compagnonnages constituram, pois, espaos privilegiados de solidariedadelocal e foram centros aglutinadores de um conjunto de aces de ajuda mtua edesenvolvimento, cujo compromisso correspondia ao mais completo esquema mutualistaento praticado em qualquer parte da Europa. O Compagnonnage foi o germe daeconomia social em Frana, antecipando formas de aco mutualista e de ensinoprofissional, que se estenderam at ao sculo XIX26

    Estes movimentos proliferaram por toda a Europa, sobretudo a partir dosculo VII, e foram durante muito tempo a nica forma de solidariedade,

    mobilizada pela sociedade civil, dando corpo, ao longo dos sculos, a

    organizaes tendentes a uma prtica de interveno social, formalmente

    estruturada.

    A prpria Igreja Catlica Romana, atravs de S. Toms de Aquino

    (1224-1274), referia a este propsito: se a natureza dos homens exige que

    vivam numa sociedade plural, preciso que haja entre eles algo pelo que serejam. Pois, ao existirem muitos homens ...a multido dispersar-se-ia em

    muitos ncleos... como o corpo do homem e de qualquer animal se

    desvaneceria se no houvesse alguma fora comum entre os seus membros27.

    Esta atitude rejeita o ponto de vista liberal de sociedade, j que, de acordo com

    a sua natureza, o ser humano tem que demonstrar solidariedade e cooperao.

    23Rosendo, 1996, p. 172.24

    25Idem, p. 170.26Idem, p. 171.27Aquino, 1989, p. 7.

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    Falar de interveno poltica e social , portanto, falar de sociedade civil,

    enquanto espao que integra associaes multiformes, que tm os seus

    prprios direitos e responsabilidades e do forma s instituies do Estado eda economia. Por este motivo, recorremos com alguma frequncia ao conceito

    de sociedade civil que foi informado por esses movimentos e que, segundo

    Woldring, nos foi trazido, por Johannus Althusius (1557-1638), no sculo XVII,

    altura em que se comea a definir o conceito e o papel de Estado.

    Para Althusius, o Estado era um imprio, um reino e um espao de

    riqueza econmica e de pessoas unidas num corpo organizado, numa simbiose

    de associaes e entidades particulares e nascido sobre um direito28

    . Assim, oEstado seria organizado sobre uma lei pblica e associaes privadas que se

    regeriam por leis prprias e que difeririam entre si, de acordo com a natureza

    dos seus propsitos. Althusius caracterizava ento a sociedade civil pela

    variedade de associaes privadas e pela sua ordem social horizontal.

    Segundo o referido filsofo, tal como qualquer associao, o Estado

    tambm tinha os seus prprios direitos29. Na poltica econmica e social, por

    exemplo, o governo deveria ter o direito de regular o comrcio pblico, os

    contratos, os negcios, a terra e a gua. Deveria ter tambm o direito de

    manter o sistema monetrio, a linguagem comum e os deveres e privilgios

    pblicos. O Estado no deveria, contudo, prosseguir sozinho uma poltica de

    bem estar social, mas, antes, de criao de condies para que os cidados

    pudessem alcanar as seguintes caractersticas para as suas associaes30:

    1. os membros de cada associao produziriam um conjunto de

    bens teis e necessrios para seu benefcio individual e

    colectivo;

    2. as associaes deveriam dar assistncia, mtua entre si, atravs

    dos seus trabalhos;

    3. todas as associaes, formariam uma comunidade que

    ordenaria a vida dos participantes entre si, atravs de leis justas.

    28Woldring, 1999, p. 3.29Woldring, 1999, p. 6.30Idem, p. 4.

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    34

    A sua problemtica tinha por objecto final a ordem natural e a lei natural,

    gerais, conformes vontade de Deus e Razo33. O Estado idealmente

    incorporava a universalidade e a regra da lei; a sociedade civil tinha que gerarprincpios tico-jurdicos para criar as bases do bem estar comum, para alm

    do prosseguimento de interesses particulares34.

    O liberalismo, enquanto projecto poltico, surge numa altura em que a

    industrializao comea a fazer surtir os seus efeitos por toda a Europa,

    alterando nveis e formas de produo e, em consequncia, padres de

    consumo e de segurana dos cidados. Como analisa Polanyi, uma vez

    utilizadas mquinas e instalaes complexas, com vista produo, a ideia deum mercado auto-regulador tinha que, inevitavelmente, ganhar forma35

    arrastando consequncias sobre o sistema social.

    Se o liberalismo econmico no soube ler a histria da revoluoindustrial, foi porque, obstinadamente, julgou os acontecimentos sociaisdo ponto de vista econmico

    36.

    Tendo como precursor Smith (1723-1790) - que atribua grande

    importncia questo das polticas econmicas mais adequadas ao

    crescimento econmico - fazendo surgir dum esquema de vida humana

    aparentemente desorganizado, uma grande racionalidade que asseguraria a

    prosperidade e o bem estar social - o liberalismo informou uma teoria clssica

    de sociedade, assente na ideia de que existe uma ordem natural no mundo, na

    qual os indivduos estariam inseridos. A economia seria gerida pelos preos de

    mercado, sem qualquer interveno exterior mercado auto-regulador.

    Especificamente, o liberalismo procurava demonstrar que as aces privadasdos indivduos, prosseguindo a sua vontade pessoal, levavam competio da

    oferta de bens. Por outro lado, essa competio levava produo das

    quantidades requeridas nos nveis de preos que asseguravam a sua

    distribuio, atravs da sociedade. A disponibilidade e o preo, seriam uma

    consequncia da vontade e dos desejos de cada consumidor privado.

    33

    Eucken, 1998, p. 42.34Cox, 1999, p. 454.35Polanyi, 1983, p. 68.36Polanyi, 1983, p. 60.

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    Para os liberais o processo econmico, por si s, resultaria em aumento

    dos nveis de vida da sociedade como um todo e qualquer forma de apoiar

    (fornecendo bens) a pobreza diminuiria o incentivo para o trabalho.O Estado Mnimo, formulado por Smith37, encerrava um conceito de

    poder que consistia na definio de regras pela lei e no pelos indivduos: o

    poder e a autoridade do Estado derivariam no da grandeza, capacidade ou

    direito divino, mas da aplicao, por parte do Estado, de regras universais,

    aplicadas a todos imparcialmente. Assim, Smith opunha-se supresso ou

    restrio das trocas de mercado, o que no significava que fosse desfavorvel

    ajuda pblica em favor dos pobres (na linha das workhouses). Consideravaainda que a fome resultaria de um processo econmico ligado ao

    funcionamento do mercado e no da penria real decorrente de uma baixa de

    produo alimentar propriamente dita38.

    Para Condorcet (1743-1794)39, o liberalismo apontava para trs tipos de

    desigualdades: desigualdade de riqueza, de status e de educao. As duas

    primeiras podiam ser reduzidas atravs de reformas na lei civil e do

    fornecimento de fundos de caridade ou pblicos. A ltima desigualdade era

    ultrapassada atravs da educao: ensinar aos cidados tudo o que

    necessitavam de saber, para que fossem capazes de gerir a sua famlia, os

    seus assuntos e empregar o seu trabalho e as suas faculdades em liberdade.

    Este terico advogava a igualdade de direitos e a democracia, profetizando que

    o progresso e as excluses que fazia emergir integravam uma scio-economia:

    um sistema de direitos, estatutos e denominaes, cuja organizao e controle

    eram da responsabilidade do governo liberal40.A poltica social estava ento

    ausente das funes do Estado: a educao era assegurada por uma

    combinao de foras culturais, religiosas e filantrpicas e os cuidados de

    sade eram o campo de aco de associaes humanitrias e individuais. No

    entanto, foi a partir da educao, como resposta a uma necessidade concreta,

    que com Smith se abriu o debate sobre as falhas de mercado, da derivando a

    responsabilidade do Estado nesse domnio.

    37

    Smith, 1974.38Sen, 1993, p. 27.39OBrien, 1998, p. 18.40OBrien, 1998, p. 23.

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    Na segunda metade do sculo XIX surge uma nova fase da ideologia

    liberal, a que OBrien (1998) chama segunda vaga do liberalismo, que se

    diferencia da primeira por assentar na crena de que a aco do Estado navida social e civil um mal necessrio. Tinha subjacentes novas ideias

    cientficas, nomeadamente uma concepo orgnica da estrutura social,

    considerada como um todo orgnico que necessita de uma interveno ao

    nvel do comportamento econmico. Neste domnio referncia importante

    Durkheim (1858-1917) que em Frana, avanou com a anlise dos

    comportamentos organizados do Estado, famlia, comunidade, igreja, etc.,

    enquanto parte integrante de instituies sociais que funcionavam como rgosde uma criatura viva. Os interesses individuais, desejos e necessidades

    deveriam ser subordinados aos interesses e necessidades do grupo, no sentido

    de promover o bem estar como um todo41. Da o surgimento de organizaes

    de caridade e filantrpicas, polarizadas, que visavam reprimir e pr fim

    mendicidade e representavam uma forma de administrao social que

    suportava os princpios do individualismo econmico.

    A terceira vaga do liberalismo surge com Keynes (1883-1946) no ps

    Primeira Grande Guerra integrada nas novas teorias de progresso social e

    econmico. A revoluo keynesiana exerceu influncia, sobretudo no campo da

    poltica econmica. A interveno do Estado na economia era encarada como

    uma necessidade vital para sustentar o prprio sistema liberal poltico e

    econmico, por ser o nico meio exequvel para evitar a destruio total das

    instituies e como condio de um bem sucedido exerccio da iniciativa

    individual42. Desta feita, o governo desempenharia a sua funo apoiando a

    procura do sector privado e no a produo de bens e servios em competio

    com a iniciativa privada.

    O Estado surge ento como entidade com carcter directivo, de

    salvaguarda do mercado, num mundo de incerteza e de risco. D-se o

    alargamento da esfera pblica e de formas de governao tecnocrtica para

    promoo de objectivos eficientes de bem estar social.

    41Durkheim, 1991.42Keynes, 1936.

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    a emergncia da tecnocracia da administrao social que, de certa

    forma, vem tambm responder crescente influncia das teorias socialistas,

    focando-se muito especialmente na natureza do sistema econmico capitalista,e no da mo invisvel, como guia da vida econmica.

    Na mesma linha de Keynes, Beveridge (1879-1963) via a sociedade

    capitalista como uma grande mquina, ou organismo, que funcionava de

    acordo com as suas prprias lgicas. O papel da cincia seria guiar e

    supervisionar o governo de forma a capacit-lo na manuteno do equilbrio

    social e econmico. O sistema de segurana social que vem a ser criado por

    Beveridge, quando eleito deputado liberal, representou uma tentativa decoordenao e gesto da vida econmica; combinava a economia poltica - um

    sistema organizado de acumulao e criao de riqueza com uma economia

    liberal um sistema organizado de direitos: o objectivo da segurana social

    seria libertar o homem da necessidade, garantindo uma segurana no

    rendimento43.

    Em 1971 surge o radicalismo liberal, com Rawls (1979), que, atravs da

    sua Teoria da Justia, advoga que a distribuio desigual de bens,

    oportunidades e satisfaes s compatvel com os princpios liberais,

    enquanto a distribuio desigual actuar para igualar as desigualdades

    substantivas entre as pessoas44. O radicalismo liberal dirige a sua ateno para

    a mudana das condies estruturais que resultam em discriminaes culturais

    e sociais dentro das instituies. Rawls introduz a sua hiptese de vu de

    ignorncia, que pressupe que os indivduos sejam absolutamente

    indiferentes, desligados uns dos outros, marcando toda a nova economia do

    bem estar. necessrio procurar reduzir a visibilidade do social, diz Rawls.

    Dividir a sociedade, fragment-la numa multido de grupos de referncia no

    interior dos quais ser possvel ignorar diferenas, porque sero reduzidas e

    porque os mecanismos da justia equitativa sero visveis45.

    43Rosanvallon, 1981, p. 115.44Rawls, 1979, p. 23.45Citado em Rosanvallon, 1981, p. 81.

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    As desigualdades econmicas e sociais deveriam ser organizadas de

    forma a que se associassem s posies e s funes abertas a todos

    (princpio da igualdade de oportunidades) e fossem em benefcio dos que seencontram em situao de desvantagem (princpio da diferena). As teorias da

    justia tm como objectivo definir os princpios distributivos susceptveis de

    regular os problemas de repartio que se colocam ao nvel duma sociedade,

    para que possa ser qualificada como justa46; caracterizam-se, por um lado, pelo

    facto de reduzirem o social a um sistema de interaco mecnica dos

    indivduos. Por outro, pressupe que os indivduos possam tornar-se

    indiferentes uns aos outros.Foram, no entanto, inovadoras na definio dos mnimos sociais ao

    considerar que aqueles que se encontravam em situao de desvantagem em

    termos econmicos e sociais poderiam, legitimamente, receber um rendimento,

    prestao que funcionaria como imposto negativo.

    b) O Projecto Marxista e a Nova Ordem Social

    A interveno planeada e estruturada do Estado na sociedade como um

    todo, surge atravs do projecto marxista em que foram marcos fundamentais

    Karl Marx (1818-1883) e Friederich Engels (1820-1895). Surgindo numa altura

    ainda influenciada pela economia agrcola (baseada em relaes feudais),

    representaram um primeiro momento de viragem na teoria poltica do sculo

    XIX e foram um apelo a uma nova ordem social em que o indivduo integrado

    no colectivo47.

    Ambos partilhavam importantes crenas e concepes sobre oprogresso econmico e social e sobre a realizao de uma sociedade de

    homens livres. Abordando esta questo, Marx cita: a fora de trabalho, como

    mercadoria, s pode aparecer no mercado na medida em que e porque

    posta venda ou vendida como mercadoria pelo seu prprio possuidor (a

    pessoa de quem ele fora de trabalho).

    46Forest, 1999, p. 135.47Marx, 1991.

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    Para que o seu possuidor a venda como mercadoria, tem de poder

    dispor dela, ser portanto proprietrio livre da sua faculdade de trabalho, da sua

    pessoa. O proprietrio da fora de trabalho deve vend-la sempre e apenas porum tempo indeterminado, pois se a vende por grosso, de uma vez por todas,

    ele vende-se a si mesmo, transforma-se de homem livre em escravo, de

    possuidor de mercadorias numa mercadoria48.

    A sua teoria, que partia da anlise das condies de vida das pessoas

    que viviam os efeitos do capitalismo industrial, tinha subjacente uma

    organizao poltica da sociedade que assentava por um lado numa base

    econmica da sociedade e por outro, numa superestrutura social. A primeiraconsistia na relao entre os que possuem os meios de produo e os

    trabalhadores que nada possuam e as divises do trabalho, atravs das quais

    seria organizada a produo. A superestrutura assentava no corpo ideolgico

    onde os conflitos de interesse entre os dois grupos hostis eram mantidos.

    Desta forma, o capitalismo criava condies para que os proletrios

    alcanassem o seu verdadeiro lugar e o seu verdadeiro poder no sistema

    capitalista. O capitalismo, segundo Marx, levava a um estdio em que o

    proletariado reconhecia os seus interesses comuns, dimensionando os meios

    de produo da classe burguesa, colocando esses meios ao servio das suas

    prprias necessidades. Marx tinha como pressuposto que a liberdade consistia

    no esmagamento de barreiras entre as esferas sociais e polticas, o que

    maximizaria a unidade, a auto-realizao e a harmonia entre indivduos,

    inteiramente conscientes e autodeterminados49. O autor era cptico

    relativamente emergncia do bem comum a partir dos interesses individuais e

    considerava que a sociedade civil estava a gerar uma fora dentro de si que a

    destruiria o proletariado.

    Gramsci (1891-1937), terico marxista rejeitava a ideia da existncia de

    uma espontaneidade pura na construo da organizao social. Considerava

    sim, a existncia de uma combinao de liderana e movimento vindo de baixo.

    48Marx, 1990, p. 194.49Keane, 2001, p. 90.

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    O seu sentido de relacionamento ptimo preconizava o estmulo da

    formao de blocos sociais compactos, homogneos, que dariam origem aos

    seus prprios intelectuais, com os seus prprios comandos, a sua prpriavanguarda que reagiriam sobre esses blocos para os desenvolver50.

    neste contexto de ideias que Marx e Engels apresentam em Londres,

    em 1848, o Manifesto do Partido Comunista, o qual foi considerado um

    desafio filosofia das Luzes. Para estes filsofos era inevitvel a luta entre os

    que possuam a riqueza e os que a produziam, situando-se neste grupo a

    classe trabalhadora que vivia em situao de excluso e misria e que mais

    no possua do que um crebro para pensar e mos para trabalhar.Para Marx e Engels a produo era a base, no s da vida humana

    individual, mas tambm da vida social colectiva. Toda a sociedade tinha que

    produzir alimentos, bens, etc., em ordem a reproduzir os seus membros

    individualmente e o sistema social.

    As relaes de poder das sociedades civis, numa interpretao marxista,

    so explicadas, aponta Keane51, em termos de foras e de relaes de

    produo. O marxismo, ao abordar a actividade econmica, enquanto

    actividade integrada num modo especfico de produo, prope que a mesma

    seja fundamentalmente social: a separao entre a economia e a sociedade

    numa teoria e poltica liberal uma mistificao, uma distoro ideolgica do

    carcter real do capitalismo52.

    Condenando os conceitos liberais de direitos, liberdade e individualismo,

    a filosofia marxista afirmava que os direitos e a propriedade individual no

    garantiam as liberdades fundamentais, mas limitavam-nas porque dividiam as

    pessoas. Assim surgem os movimentos da classe trabalhadora, como um

    colectivo, que vai ganhando terreno na Europa, na dcada de 1840,

    culminando com revolues em Frana, na Alemanha, Hungria, ustria, Itlia e

    Inglaterra.

    50Cox, 1999, p. 454.51Keane, 2001, p. 89.52O Brian, 1998, p. 55.

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    Paralelamente, vo surgindo os movimentos socialistas, as Associaes

    Internacionais de Trabalhadores: em 1864-1872 cria-se uma Associao

    Internacional em Londres; em 1889 em Paris e em 1919 na Rssia, a seguir Revoluo Bolchevista de 1917.

    Para liberais e marxistas as sociedades vo-se tornando,

    progressivamente e atravs da evoluo ou da revoluo, mais avanadas e o

    bem estar individual surge como funo do nvel de sociedade como um

    todo53.

    Assentes em pressupostos tericos opostos, ambos constrem

    esquemas conceptuais de poltica social, tendo subjacente a trajectriahistrica, atravs da qual se d o progresso das sociedades.

    Quadro 2 Teorias das Luzes e do Progresso: liberalismo e marxismo

    CorrentesTericas

    Viso de SociedadeConstruir a trajectria do progresso

    Orientaes de polticasocial

    Teoria Liberal1 vaga

    1776 a 1850

    Existe uma ordemnatural no mundo

    A estratificao da sociedade dinmica,porque assegura o progresso econmico. Se

    as pessoas tm a liberdade de podertrabalhar ou no trabalhar, no trabalhando:- no haver lucro;- a actividade econmica estagna;- o progresso morre.

    A poltica social uminstrumento para manter a

    desigualdade relativa,enquanto que,simultaneamente, vaiabolindo a pobrezaabsoluta.

    2 vaga1850 a 1920

    A sociedade um todo orgnico quenecessita de uma interveno ao nvel docomportamento econmico.

    Surgem organizaespolarizadas que garantema manuteno doindividualismo.

    3 vaga1945 ...

    Criao de sistemasorganizados de direitos sistema Beveridgiano.

    Radicalismo Liberal1971 ...

    Distribuio desigual paraigualar desigualdades..

    Teoria Marxista- economia

    colectivizante eplanificada

    Cada indivduo um produto material dotodo. A abolio da desigualdade promove aemancipao de cada indivduo daexplorao e promove o seu bem estar total....A sociedade assenta, por um lado, numabase econmica, e por outro, numasuperestrutura social...

    Os meios e objectivos dapoltica social so o fim daexplorao do trabalho, aauto-satisfao de cadaindivduo e de toda asociedade, atravs dotrabalho criativo e livre.

    Fonte: Elementos adaptados de OBRIAN, 1998.

    53Idem, pp. 211-212.

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    J no sculo XX, e subsequentes ao liberalismo e ao marxismo

    avanaram novas posturas tericas, ora criticando, ora retomando os seus

    pontos de partida.As crticas neo-liberais avanadas por Hayek (1899-1992) e Friedman

    (1912-....), contrariando, embora a ideia da mo invisvel para garantir a

    expanso e coordenao do progresso social, mantiveram muitas afinidades

    com as teorias clssicas, entre as quais o olhar dicotmico mercado/Estado.

    O bem estar da sociedade, mais no era do que a realizao por cada

    indivduo dos seus prprios interesses54, dentro de um esquema de regras

    legais abstractas e s o mercado mecanismo fundamental de regulao daactividade econmica (i) alcanaria uma distribuio eficiente de bens e

    servios e (ii) garantiria a negociao entre os indivduos e (iii) uma distribuio

    e definio dos valores das mercadorias, sem referncia ao poder ou ao status

    dos seus proprietrios.

    O mercado garantiria a cada indivduo, a realizao das suas liberdades

    desiguais - definiria a liberdade de sociedade dos indivduos, devendo o Estado

    garantir a segurana nacional, o bem estar mnimo e os servio infra-

    estruturais55. Nesta perspectiva, a liberdade requereria a definio de polticas

    especiais para ser alcanada.

    Os modelos de desenvolvimento, assentes no estmulo ao crescimento

    econmico, partiram, de acordo com a presente anlise, das propostas liberais

    e marxistas. Numa atitude pr-activa s suas propostas, grupos reformistas

    criaram modelos de interveno social, dirigidos a grupos ou sectores bem

    definidos socialmente, informando os contornos da economia social.

    54Hayek, 1960.55O Brian, 1998, pp. 213-214.

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    2.4. Poltica Social: um conceito que integra espaos de

    solidariedade

    a) O associativismo mutualista e sindical

    A existncia das mutualidades decorre do esprito de solidariedade entre osassociados. O conceito de solidariedade exprime uma relao de dependncia mtuaexistente entre os indivduos de uma sociedade. Na economia social existe solidariedadeentre os indivduos de uma sociedade quando se verifica entre-ajuda, sem objectivoslucrativos entre os indivduos

    56.

    Do que at agora se referiu decorre que a Revoluo Industrial do

    sculo XVIII, foi um vector responsvel pelo aparecimento de novas filosofiaseconmicas e polticas. Originou a criao de grupos que comearam a exigir

    formas de interveno organizada para a proteco contra a incapacidade para

    o trabalho e a perda de rendimentos. Veio desafiar as organizaes operrias,

    dada a grande concentrao do proletariado industrial nas zonas urbanas, que

    se tornou capaz de uma aco colectiva, no sentido da obteno de melhores

    salrios e condies de trabalho.

    Os movimentos de associativismo voluntrios e independentes doEstado que se sabe terem surgido at ento como reaces, polarizadas,

    pobreza e incapacidade para o trabalho, com um cariz predominantemente

    caritativo e de assistncia, surgem agora organizados e procuram criar, atravs

    de mecanismos de solidariedade, meios de proteco na doena, na velhice e

    no desemprego, atravs, muito especialmente, de associaes de socorros

    mtuos. Consubstanciam o que denominamos como espaos de

    solidariedade, por serem de cariz solidrio e se basearem na reciprocidade.No entanto, merece referncia que, muitos movimentos antecederam

    estas organizaes, j que a sociedade civil sempre existiu e se caracterizou

    pelo seu estar reactivo perante a doena, a pobreza e as catstrofes.

    56Barros, 1998, p. 23.

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    Quadro 3 Origens do associativismo mutualista

    Guildas

    Sculo VII Surgidas no Norte da Europa como centros de convvioinspirados nos rituais de ODIN. Eram associaes de defesa mtua e

    religiosa que prosseguiam fins de assistncia mtua em caso de doena,incndio...Sculo XIV graas ao desenvolvimento da indstria manufactureira, aestruturao e funcionamento das Guildas obedecia j a princpiosmarcadamente democrticos e assemelhava-se, em quase tudo, scorporaes de ofcios.

    Confrarias

    Sculo VII Criadas por monges Franciscanos, dominicanos, cistercienses eclunicenses, eram associaes destinadas a incrementar o culto pblico, semexcluso das obras de caridade. Designavam-se como: irmandades,fraternidades, confraternidades, congregaes, unies ou associaes.

    - Em Portugal a primeira confraria remonta ao sculo XII: Confraria de NSenhora de Silva Porto.

    - As Misericrdias, que surgiram um pouco na sua continuidade, foraminstitudas no sculo XV pela Rainha D. Leonor.

    Corporaesde Ofcios(mesteres)

    Sculo XII Surgidas neste sculo, as corporaes tornam-se organizadascomo associao profissional no sculo XIII, com a chegada dos ofcios(mtiers) direco das cidades e a sequente criao de manufacturas. Asua histrica identifica-se profundamente com a das cidades, uma vez que osdelegados dos mesteres chegaram a deter todo o poder municipal.

    Montes dePiet

    Originrios dos Monti de Piet italianos, em 1458, surgiram em Ascoli, comouma obra de carcter estritamente religioso e social, inspirada na caridadecrist e promovida pelos franciscanos.

    Sindicalismo

    Surgido em 1845, no movimento operrio francs57, quando os trabalhadores

    se viram forados a unir-se de novo, perante a crise do trabalho que ento seregistou, e buscaram na associao um compromisso para a soluo dosseus problemas.Na sua concepo original, foi sobretudo um movimento operrio quereivindicou a abolio do capitalismo e do Estado e que pretendia aorganizao da sociedade em associaes de produtores.

    i1845 existiam em Paris 11 sindicatos.i1852-1860 criou-se a Unio do Comrcio e da Indstria.i1860-1867 Criao de Associaes de Crdito Mutualista de

    Solidariedade Mecnica.Fonte: Elementos adaptados de Rosendo, 1996.

    No quadro 3 sistematizamos alguns movimentos associativos, a que

    registos histricos aludem, a partir do sculo VII.

    Com uma quase inevitabilidade, o associativismo mutualista surge como

    resposta necessidade, cada vez mais premente, dos indivduos se

    protegerem contra os riscos e as contingncias.

    57Pela referncia de Jean Pierre Duroy (1991), sobre a origem inglesa da palavra syndics, em 1328, no podemosdeixar de referir aqui que o caso ingls ter precedido o francs.

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    Se os socialistas utpicos, pr-marxistas e marxistas, tanto abominaram

    o liberalismo como sistema que eles julgaram contrrio a qualquer ideia de

    associao, a verdade que o associativismo se implantou e cresceu em todosos pases de economia de mercado, onde o liberalismo floresceu58.

    A Revoluo Francesa, por seu lado, deixou marcas e processos de

    interveno poltica e social irreversveis. A Declarao dos Direitos do Homem

    e do Cidado59trouxe, como consequncia imediata, o triunfo do liberalismo e

    do individualismo e o fim da monarquia absoluta.

    J no sculo XVII, John Locke (1632-1704), terico liberal, construra as

    bases de suporte dos governos constitucionalistas que vieram a ter lugar no

    sculo XVIII. Baseando a sua filosofia no princpio poltico do liberalismo e da

    prpria democracia, referia o autor que o consenso dos cidados, de que se

    origina o poder civil, faz parte deste poder, um poder escolhido pelos prprios

    cidados e , portanto, ao mesmo tempo um acto de garantia da liberdade dos

    mesmos cidados...Logo, o povo conserva o supremo poder de remover ou

    alterar o legislativo de suporte que em caso algum a constituio de uma

    sociedade civil significa que os homens se fiem cegamente, na vontade

    absoluta e no domnio de um outro homem... - os bons governos so sempre

    baseados no consentimento e limitados pela lei60. O conceito de democracia

    imps-se assim pela criao de mecanismos de participao e cidadania.

    Rousseau (1712-1778) que defendera tambm a soberania absoluta das

    maiorias, reforava, atravs do seu discurso que a voz do povo a voz de

    Deus. Cabe maioria do povo o direito de falar da nao inteira, devendo

    todos os cidados ter igualdade de voto na formao dessa maioria61.

    De certa forma alimentados por este iderio filosfico e poltico, e comoreaco s contingncias do sistema industrial da economia, os movimentos

    mutualista e sindical, as trade unions, e alis o associativismo de uma forma

    geral, foram criando mecanismos de cooperao, assentes num funcionamento

    voluntrio, democrtico e independente do Estado.

    58

    Rosendo, 1996, p. 26.59Proclamada em 1793 pela Assembleia Francesa.60Rosendo, 1996, pp. 128-129.61Rousseau, 1968.

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    O prprio sindicalismo foi um movimento operrio (anarquista e com

    pontos de contacto com o socialismo) que reivindicou a abolio, no s do

    capitalismo, como do prprio Estado e pretendeu a reorganizao dasociedade em associaes de produtores.

    Eram inicialmente associaes, com fins de assistncia, de previdncia

    social (caixas de seguro mtuo, de desemprego e de reforma) e de promoo

    de cursos, escolas profissionais e de abertura de bibliotecas62.

    Em termos de interveno no domnio da poltica social, os movimentos

    associativos foram dos fenmenos econmico sociais mais significativos.

    Portugal no foi alheio a este processo, havendo registos da criao deSociedades Mtuas de Seguros, a partir de 1858 e de sindicatos, em 189463.

    b) A responsabilidade multiforme da sociedade civil

    A solidariedade ser assim uma pr-condio para a cooperao e o Estado sdever intervir subsidiariamente: o Estado deve criar condies para preservar aintegridade das partes, para que os cidados e as suas associaes privadas possamgarantir os seus prprios direitos e conhecer as suas responsabilidades

    64.

    Como caracterstica que identifica as organizaes que emergem da

    sociedade civil, surge a j referida responsabilidade multiforme. Segundo

    Woldring, no territrio nacional h comunidades multiformes que tm os seus

    prprios direitos e diferentes responsabilidades em relao instituio do

    Estado e da economia. Esta estrutura de sociedade faz justia dignidade da

    pessoa humana e, enquanto tal, contm uma estratgia de reforma moral para

    promover uma atitude que penetre na cultura social65.

    Nesta ptica, os movimentos da sociedade civil so diferentes de pas

    para pas, no tipo de actividades, nos padres culturais, na legislao de

    suporte, na tradio associativa, cooperante e nas formas de organizao, j

    que se focalizam nas necessidades que surgem em cada contexto social e nas

    caractersticas dessas necessidades.

    62Rosendo, 1996, p. 177.63

    Decreto de 5 de Junho de 1894 da Direco de Servios Agrcolas do Ministrio das Obras Pblicas, Comrcio eIndstria.64Aquino, 1989.65O autor apoia-se nas ideias de Johannus Althusius, in: Woldring, 1999.

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    Althusius66 define mesmo os princpios basilares que definem a

    responsabilidade multiforme das organizaes da sociedade civil:

    1. so espaos onde se cumprem os direitos fundamentais de cadaser humano vida, liberdade e segurana;

    2. cada associao faz a sua prpria lei, atravs da qual tem que

    ser regida;

    3. dada a sua autoridade prpria, o poder legal do Estado

    restringido;

    4. o papel do governo ser criar condies para um bem estar

    scio-econmico.

    Em Althusius os seres humanos no so auto-suficientesindividualmente e necessitam por isso de se associar numa entidade

    simbitica; o objectivo do Estado ser trabalhar pela justia e felicidade dos

    cidados.

    Seguindo esta linha de reflexo, pareceu-nos importante enriquecer a

    anlise com outros autores, igualmente empenhados no estudo do papel da

    sociedade civil. Christian Wolff (luterano, 1679-1754), para quem a unidade da

    anlise social no era o indivduo, mas as associaes privadas, os agregados

    que tm que cuidar dos seus prprios assuntos, j que, citando Wolff, as

    famlias no podem fornecer a si prprias tudo o que lhes necessrio, em

    ordem a satisfazer as suas necessidades bsicas, conforto, lazer e riqueza.

    Elas no podem, por si, assegurar o fruto da sua propriedade e reforar os

    seus direitos de propriedade, nem podem defender-se contra a agresso do

    exterior. Portanto, preciso um esforo social comum, uma sociedade atravs

    da qual as famlias possam atingir o mximo do seu bem estar67.

    Uma sociedade civil, enquanto comunidade de cidados livres e iguaisfoi tambm expressa na Declarao Francesa de Direitos do Homem e do

    Cidado em 1789. Nesta tradio, a sociedade civil, atravs das suas guildas,

    associaes e partidos, opunha-se ao Estado e monarquia absoluta.

    Em meados do sculo XIX Karl Marx define, como j referimos, o seu

    conceito de relao entre sociedade e Estado.

    66Idem.67Woldring, 1999, pp. 9-10.

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    O conceito de sociedade civil surge em oposio ao Estado, ento visto

    como um instrumento de luta de classes e um servo do capitalismo. Os

    pensadores socialistas tinham como objectivo a eventual abolio do Estado ea formao de uma sociedade sem Estado68. Na prtica, contudo, o socialismo

    nunca fragilizou o Estado, antes fortaleceu-o ao estender o seu controle sobre

    a vida econmica e social.

    Alexis Tocqueville69, avanou um outro olhar sobre a sociedade civil,

    enquanto dimenso social que reage quando sente que a sua liberdade est

    em perigo.

    Quando o governo quer centralizar e controlar estes interesses, surge acentralizao administrativa, atravs da qual so retiradas muitas

    responsabilidades aos cidados e muita vitalidade sociedade. Segundo

    Tocqueville, as associaes privadas comeam a fundar-se em todos os

    sectores da sociedade, precisamente, a partir do momento em que os

    indivduos vm o Estado como um perigo para a sua liberdade e tm

    conscincia, ao mesmo tempo, que associando-se podem fazer-lhe frente.

    Nesta perspectiva, os interesses particulares so promovidos pelas

    associaes privadas, as quais constituem a sociedade civil, caracterizada pela

    j referida ordem horizontal.

    Sendo a sociedade constituda por diferentes esferas de envolvimentohumano, cada uma com a sua especificidade prpria (a sua necessidade,a sua autonomia), a pluralidade funcional surge como uma forma de, deuma maneira fragmentada, se sustentar uma coerncia social, como umamais valia consubstanciada nas responsabilidades assumidas pelasociedade civil, para satisfazer necessidades de solidariedade e dedignidade individual e colectiva.

    Em suma, a responsabilidade multiforme uma caracterstica da

    sociedade civil que, atravs de associaes diferenciadas, afirma o seu lugar

    na sociedade, pelos direitos e pelas responsabilidades que lhe so prprios

    que, desde logo, a colocam em oposio ao individualismo e s ideias

    centralistas de Estado.

    68Geremek, 1992, p. 12.69Tocqueville, 1967, p. 52.

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    2.5. Poltica Social: um conceito que integra caminhos de

    cooperao

    a) Primeiros caminhos de cooperao europeia

    De acordo com o atrs referido, no decurso da Primeira Revoluo

    Industrial, como reaco aos riscos e condies de vida degradantes,

    despertaram na classe operria iniciativas onde eram postos em comum

    motivaes, competncias e repartio de riscos. Abriam-se caminhos de

    cooperao, associados a organizaes de defesa e entre-ajuda.A nvel da Europa desenvolveu-se igualmente o movimento mutualista,

    relativamente ao qual, Lobo dvila70definiu trs sistemas:

    Quadro 4 Sistemas que informaram o movimento mutualista europeu

    1. Sistema Anglo-Americano: baseado no livre associativismo associaes

    autnomas e abarcando previdncia, assistncia e cooperao. Este sistema

    imps-se no s na Europa, mas igualmente nos Estados Unidos, Canad,

    Argentina, Mxico e Chile.

    2. Sistema Latino:baseado numa execuo de programas de forma partilhada com

    o Estado no domnio legislativo e no apoio material. Os pases onde imperou foram

    a Frana Societ SaintAnne71 a Blgica, a Itlia, Portugal, Inglaterra Friendly

    Societies72e as Trade Unions e Sua.

    3. Sistema Germnico: baseado num forte intervencionismo do Estado e com a

    preocupao de instituir o Seguro Social Obrigatrio. Imps-se na ustria e, em

    especial, na Alemanha onde, com Bismarck se instituiu, em 1883, o primeiro

    sistema de Seguros Sociais obrigatrios da Europa, dirigido doena e aos

    acidentes de trabalho, estabelecendo seguros de invalidez e velhice, prevendo a

    instalao de agncias pblicas de emprego, etc. Na ustria foram institudos em

    1885 os primeiros seguros operrios contra a doena e acidentes.

    Fonte: Elementos adaptados de Rosendo, 1996, p. 236.

    70Lobo dvila Lima, 1909, Socorros Mtuos e Seguros Sociais, dissertao apresentada na Universidade de

    Coimbra, in: Rosendo, 1996, p. 236.71Fundada em Frana em 1694.72Existem registos sobre Friendly Societiescriadas, por franceses, em Inglaterra, no sculo XVI (1555), as quais sotidas como primeiras instituies de natureza vincadamente mutualista, Rosendo, 1996, p. 237.

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    Em 1911 as Friendly Societies vieram a ser associadas gesto do

    seguro Nacional de Sade, de carcter obrigatrio, prosseguindo, no entanto,

    outras actividades de mutualismo, com base no antigo regime de voluntariado.Vieram, no entanto, a ser extintas em 1948, com a entrada em vigor do regime

    de Segurana Nacional Plano Beveridge: que constituiu uma tentativa de

    colectivizao das necessidades em regime de propriedade privada.As Trade

    Unions inglesas, cujo objectivo era a luta de classes e a constituio de um

    fundo comum para acorrer s situaes de greve, prosseguiram fins

    compatveis com o ideal mutualista.

    Em Frana, outras associaes se seguiram Societ SaintAnne, vindotodas a integrar-se no movimento mais vasto da Sociedades de Seguros

    Mtuos. A Blgica, em Abril de 1851 reconhece a personalidade jurdica s

    associaes criadas no seio dos movimentos socialistas e do catolicismo social

    e a Itlia, em 1886, procedeu da mesma forma, relativamente s associaes

    de socorros mtuos.

    Em termos de reflexo poderemos referir que o terceiro sector e as suas

    propostas alternativas s orientaes de poltica econmica e social,

    emanaram assim de correntes, ora mais associativistas, ora mais

    benemerentes e dirigidas ao colectivo, que proliferaram por toda a Europa e

    que devero por isso ser circunscritos ao seu cariz solidrio e cooperante,

    como o so todas as organizaes de solidariedade social. As suas

    organizaes convergiram sempre ainda que duma forma reformista, reactiva,

    ou pr-activa, no sentido de encontrar solues para os problemas dos

    indivduos em situao de desvantagem social, afirmando-se, de forma

    complementar, ou alternativa, em reas abandonadas pelo sector privado

    lucrativo e pelo Estado.

    A segunda revoluo industrial, a que aludiremos de seguida, trouxe, no

    entanto, uma renovada conscincia da condio de pobreza, desafiando a

    definio de novas regras de poltica social, no sentido de criar instrumentos

    que revertessem a sua persistncia (e/ou aumento).

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    b) Na segunda revoluo industrial: a definio de um Estado

    providncia

    A segunda revoluo industrial trouxe contributos para uma

    reconceptualizao do Estado de bem estar social. Por um lado, a causa da

    pobreza deixou de assentar no indivduo, para se situar nas tendncias do

    sistema de mercado.

    Por outro, as razes da pobreza passaram a focalizar-se no na

    irresponsabilidade ou na incapacidade individual, mas num desajustamento

    social73. Esta nova atitude perante a pobreza nas sociedades democrticas

    tornou impraticvel a lei dos pobres do sculo XIX e ps em evidncia oprincpio da insegurana e a natureza e extenso das responsabilidades do

    Estado. Responsabilidades que arrastavam consigo, entre outros, a

    organizao de um corpo de administrao pblica forte, capaz de pr em

    marcha um mecanismo de redistribuio; representou, por isso tambm a

    ascenso de custos sociais, por forma a garantir a implementao de

    mudanas estruturais, consubstanciadas numa poltica de bem estar.

    O conceito de contingncias sociais surge assim altamente influenciado

    pelas experincias da industrializao. Com o despertar destas novas

    tendncias, o Estado organizado passa a dirigir o seu esforo para a

    modificao das foras de mercado em trs direces74:

    1. garantindo aos indivduos e famlias um rendimento mnimo;

    2. dando capacidade aos indivduos e famlias para ultrapassar as

    contingncias sociais;

    3. assegurando que a todos os indivduos e famlias, sem distino

    de classe ou de estatuto, fossem oferecidos os melhorespadres de servios.

    De acordo com Briggs (2000), a partir da I Guerra Mundial, surgira um

    novo perodo social caracterizado por novas ideias econmicas, novos pontos

    de vista polticos e novos programas sociais que haviam sido j protagonizados

    por Bismarck. O fundamento da nova economia era o Estado de bem estar e o

    Estado deveria envolver-se no financiamento e administrao de esquemas de

    segurana.

    73Briggs, 2000, p. 26.74Idem, p. 18.

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    Alis, se atentarmos no quadro 5, verificamos que foi entre finais do

    sculo XIX e meados do sculo XX, que se deu a introduo progressiva do

    seguro social obrigatrio por toda a Europa.

    Quadro 5 Introduo do Seguro Social Obrigatrio na Europa

    Pases Data

    Alemanha 1883

    ustria 1888

    Hungria 1891

    Luxemburgo 1901

    Noruega 1909

    Srvia 1910Gr-Bretanha 1911

    Rssia e Romnia 1912

    Bulgria 1918

    Checoslovquia 1919

    Portugal 1919

    Polnia 1920

    Grcia 1922

    Litunia e Frana 1930

    Espanha 1941

    Fonte: Elementos retirados de ROSENDO, 1996

    Como marcos de referncia do processo de implementao dos

    sistemas de segurana social, numa dimenso europeia, poderemos ainda

    referir:

    em 1889, na primeira Conveno Internacional de Paris, criou-se

    o Comit Permanent International des Assurances Sociales, ao

    qual aderiram a ustria, Blgica, Dinamarca, Alemanha, Frana,

    Austrlia, Sucia e Sua. A I Grande Guerra, 1914-1918, pstermo s suas actividades;

    em 1927, na 10 Sesso do Bureau International du Travail, na

    Conferncia Internacional das Federaes de Seguros Mtuos e

    das Caixas de Seguro de Doena, foram aprovadas duas

    convenes relativas ao Seguro de Doena;

    em 1936, a referida Conferncia passa a denominar-se

    Conferncia Internacional das Mutualidades e dos Seguros

    Sociais (CIMAS) e na sequncia desta iniciativa foram criadas:

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    o em 1947 a Associao Internacional de Segurana Social

    AISS;

    o em 1950 a Associao Internacional da Mutualidade AIM-que levou criao do Centro Internacional para a

    Informao da Mutualidade. Os principais pases que

    aderiram a esta iniciativa foram a Frana, Blgica, Itlia,

    Luxemburgo e Sua, onde actualmente se encontra o

    secretariado geral.

    em 1952, o Comit Permanent International des Assurances

    Sociales retoma as suas actividades, na Conveno n 102 da

    Organizao Internacional do Trabalho, em que estabelecida a

    norma mnima de segurana social. Na sua sequncia surgiram:

    a Conveno Europeia dos Direitos do Homem; a Carta Social

    Europeia; o Cdigo Europeu da Segurana Social (ratificado por

    15 pases) e a Conveno Europeia da Segurana Social.

    Mais de 100 anos passaram desde que Bismarck concebeu a poltica

    social moderna e 50 desde que as bases do Estado providncia foram

    lanadas na Europa dilacerada pela guerra75. Contudo, o Estado de bem estarna Europa assumiu, ao longo do sculo XX vrias formas assentes em regimes

    polticos diferentes de onde decorrem interfaces tambm diferentes entre

    pobreza, segurana social e poltica de pobreza. Na Escandinvia, a partir da

    primeira grande guerra, apelava-se ao direito ao trabalho para todos,

    subsidiando a entrada no mercado de trabalho. Era uma sociedade centrada no

    trabalho, pelo que o debate em torno de um rendimento mnimo era marginal,

    sendo o direito ao trabalho o principal argumento. No modelo nrdico os

    aspectos mais salientes eram precisamente o favorecimento do emprego e o

    facto de isentar as famlias de responsabilidades no que se refere ao bem estar

    social76.

    A estratgia alem, assentou na poltica bismarckiana, procurando

    subsidiar a sada do mercado de trabalho ou at a no entrada e

    prosseguindo uma poltica de desenvolvimento econmico77.

    75Esping-Andersen, 2000, p. 79.76Idem, p. 83.77Leibfried, 2000, p. 192.

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    No incorporava por isso uma tradio universalista, surgindo antes

    estratgias compensatrias a institucionalizar os esquemas de segurana

    social. Os pases anglo-saxnicos foram pondo nfase num modelo de bemestar social residual, assente em transferncias de rendimento.

    Alis, sublinha Esping-Andersen (2000), as concepes de Lorde

    Beveridge acerca do Estado previdncia surgiram da necessidade urgente de

    consolidar a democracia e novas solidariedades sociais, sendo gradualmente

    atribudo ao mercado maiores responsabilidades pelo bem estar social.

    O sistema latino que vigora nos pases do sul da Europa ocidental

    (Portugal, Espanha, Grcia, Itlia e Frana) rudimentar. Os programas de

    segurana social so medidas de rendimento mnimo e no existe uma tradio

    de apelo ao pleno emprego.

    Sobretudo na Europa mediterrnica, uma caracterstica importante o

    forte familiarismo, ou seja, a ideia de que as famlias tm uma maior quota

    parte de responsabilidade pelo bem estar social dos seus membros, quer em

    termos de partilha do rendimento, quer em termos da necessidade de

    prestao de cuidados.

    A participao activa em trabalhos associativos de mbito europeu,

    proporcionou a partilha de experincias com vista a uma melhoria das aces

    no domnio da proteco social em cada pas. Deu consistncia caminhada

    para a criao do que denominamos caminhos de cooperao: organizaes

    pblicas, ou privadas no lucrativas, que se caracterizavam pela sua forma de

    produo de bem estar e que se estruturavam de forma a satisfazer

    necessidades do colectivo (consubstanciadas de forma diferente das

    organizaes baseadas na solidariedade, na cooperao e na reciprocidade que denominamos de espaos de solidariedade).

    A problemtica da integrao europeia com a construo de uma Europa

    Social coloca, no entanto, um conjunto de problemas, quando se trata de pr

    em prtica um sistema de proteco social mais compatvel com os tipos de

    economia, emprego e famlia em cada Estado nao. Se, por um lado, no

    pode ignorar a grande diversidade existente entre sistemas de bem estar, por

    outro, no pode centrar as suas preocupaes, exclusivamente, no Estadoprovidncia.

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    Desde logo, porque se parte do pressuposto que o Estado de bem estar

    social composto por uma articulao consistente de quatro esferas: Estado

    providncia, mercado, sociedade civil e famlia.O mercado de trabalho e a famlia que no ps guerra constituram a

    principal fonte de proteco social para a maioria dos cidados, so hoje fontes

    geradoras de insegurana, de precariedade e muitas vezes de excluso social.

    Logo, urge repensar a poltica social, de maneira que os mercados de

    trabalho e as famlias se transformem, de novo, em factores de optimizao

    das alternativas econmicas, para o desenvolvimento. Colocou-se assim novos

    poltica social, para que seja capaz de conjugar as suas orientaes com asprticas j iniciadas de economia social, a que aludiremos na continuidade do

    trabalho.

    Os prprios direitos sociais, dados os imperativos econmicos

    emergentes e a configurao de novos riscos, devero ser definidos como uma

    base de garantia de oportunidades de vida78. Para combater significativamente

    o desemprego generalizado devero estimular-se tambm reas abandonadas

    pelo sector privado lucrativo, o que significa que temos que nos apoiar

    igualmente nos servios pessoais ao consumidor e nos servios sociais79.

    Teremos que avanar por duas regras fundamentais que desafiam a

    poltica social:

    a poltica social deve ser capaz de vitalizar e maximizar o

    potencial produtivo da populao, como o investimento em

    recursos humanos, capacidades e auto-suficincia;

    a poltica social deve ser capaz de minimizar as necessidades

    da populao em matria de subsdios de Estado e de

    dependncia relativamente a eles.

    78Espinge-Andersen, 2000, p. 82.79Idem, p. 102.

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    2.6. Novos rumos na poltica social

    A Economia Social uma fora nova e dinmica construda pela vontadedaqueles que nela participam, em se associarem livremente, para promoverem, demaneira solidria um projecto social relacionado com a economia

    80.

    Na continuidade do estudo at agora efectuado, podemosdizer que na

    primeira metade do sculo XIX, as ideias trazidas pelas mutualidades,

    movimentos cooperativos e associativos provocaram uma evoluo irreversvel

    ao nvel da concepo de economia.

    Os novos movimentos associativos, de cariz solidrio, os espaos de

    solidariedade (como o mutualismo, o prprio sindicalismo e todo o tipo de

    iniciativas que informam a chamada sociedade providncia81e que tm como

    caracterstica a reciprocidade) e os caminhos de cooperao, (caracterizados

    por fins no lucrativos, que acompanham a criao do Estado providncia e

    so actualmente alimentados pela aco redistributiva do Estado), promoveram

    novos projectos sociais, relacionados com a economia.

    Melo (1998) sublinha mesmo que o termo economia social passou ento

    a ser utilizado para designar uma determinada rea dos estudos econmicos,

    que criticava a omisso da dimenso social no mbito da cincia econmica

    dominante. Surge a scio-economia, enquanto disciplina cientfica e prtica

    social, em cujo percurso cronolgico se integram, entre outros: Jean Charles

    Sismondi (1773-1842), Frdric Le Play (1808-1882), Pierre Proudhon (1809-

    1865), Charles Gide (1847-1932), Lon Walras (1843-1910) Lon Dehon

    (1843-1925) e Victor Brants (1856-1917).

    80Rberioux, 1984.81Adosinda Henriques (1993) define sociedade providncia como um fenmeno de auto-organizao no interior dasociedade civil que compensatrio de insuficincias gerais reconhecidas na sociedade formal... (p. 375).

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    Quadro 6 - Economia social: iderios filosficos

    I - A recusa da noo de homo aeconomicus

    Sismondi1773-1842

    Frdric Le Play1808-1882 (Frana)

    Sismondi publica em 1819 os Nouveaux principes dconomiepolitique, onde privilegia a repartio equitativa da riqueza. Comocontraproposta s teorias da mo invisvel, ele avana comfundamentos de uma poltica econmica ao servio do bem estarcolectivo:

    1. Utilizou a expresso economia social na Exposio Universal deParis de 1985 ao analisar os fenmenos econmicos ligados aoconsumo das famlias;

    2. Lanou as bases do movimento de Reforma Social ligada doutrina social da Igreja.

    Charles Gide1847-1932 (Frana)

    1. Na exposio de Paris de 1900, apresentou um relatrio Palais delEconomie Sociale;

    2. Impulsionou o movimento cooperativista escala mundial, a partirda Escola Cooperativista de Nmes, que fundou.

    II Diviso da Economia em (i) Economia pura, (ii) economia aplicada e (iii) economiasocial

    Lon Walras1834-1910

    1. No livro tudes dconomie Sociale (1896), defende anacionalizao de todas as actividades onde possa havermonoplio;

    2. Pretendeu edificar uma doutrina capaz de conciliar o liberalismo,que assegura a expanso da produo, com o socialismo que apretende realizar na prtica.

    III Eventos de referncia

    Victor Brants1856-1917

    Enquanto professor da Universidade de Leuven, fundou em 1881 aSociedade Belga da Economia Social

    Em 1885-1886, em Leuven foi levada a cabo a Conferncia daEconomia Social

    Lon Dehon1843-1925

    Funda a Congregao dos Sacerdotes do Corao de Jesus Dehonianos

    IV A Economia Social no Direito Francs

    1. 1980 publicada em Frana a Carta de Economia Social.2. A Economia social entra no direito francs em 1981, para designar as associaes cujas

    actividades de produo se assimilam s cooperativas e s mutualidades.

    Fonte: Elementos adaptados de Rosendo, 1996.

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    Walras (1865) define a vida scio econmica como a produo dos

    rendimentos consumveis que faz viver a sociedade e leva capitalizao do

    excedente da produo sobre o consumo dos rendimentos82

    . A economiapoltica enquadraria assim no seu domnio as associaes populares que, por

    sua vez se teriam de submeter aos princpios da cincia econmica.

    A formao e o crescimento do capital social deveria ser da inteira

    responsabilidade das referidas instituies, sendo a interveno do Estado

    meramente do plano legislativo. O autor define ainda progresso econmico

    como a participao de todos os indivduos em todos os tipos de riqueza,

    nomeadamente o facto dos trabalhadores integrarem o grupo dos proprietrios

    da terra ou dos capitalistas. E avana, referindo dois factos sobre os quais roda

    toda a histria econmica da sociedade humana que so a produo agrcola,

    industrial e comercial da riqueza e a sua distribuio entre os indivduos e o

    Estado, atravs da propriedade e do imposto. A produo deveria ser

    abundante e suficiente, tendo em conta as necessidades a satisfazer e a

    distribuio deveria ser equitativa, capaz de satisfazer expectativas.

    Integrado na escola liberal, Walras defendia duas vias para a

    prossecuo do progresso econmico: a criao de associaes populares, oude sociedades de cooperao, de iniciativa individual, privadas, autnomas e

    sem qualquer interferncia do Estado e a reforma do imposto, este sim, exigia

    a interveno directa do Estado e seria de iniciativa colectiva. A iniciativa

    privada deveria integrar quer sociedades de cooperao, quer sociedades de

    garantia mtua. Estas ltimas, fundadas sobre o princpio da responsabilidade

    proporcional integral, considerava-as como uma derivante pura e simples das

    sociedades annimas, fundadas sobre o princpio da responsabilidade

    proporcional limitada. Neste domnio, foi importante o seu contributo atravs daproposta de um projecto de lei para o que denominava sociedades de

    responsabilidade proporcional. De relevar ainda a sua participao, em 1865,

    na criao das caixas para as associaes populares, cujo objectivo era fazer

    emprstimos s sociedades e grupos de associaes de crdito, de produo e

    de consumo e constitudas sobre as bases de garantia mtua, ou de

    responsabilidade solidria.

    82Walras, 1865, p. 21.

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    Esta iniciativa havia j sido experimentada por Proudhon (1809-1865)

    que preconizara encontrar uma via mediana entre capitalismo e socialismo,

    atravs da iniciativa mutualista. Na teoria proudhoniana o Estado no deveriaser centralizado (como no sistema dos pases capitalistas), nem concentrador

    (como nos pases socialistas de ditadura proletria), mas um Estado

    federalista. Metamorfoseado pela aco dum pluralismo poltico

    descentralizado graas auto-administrao das colectividades polticas de

    base e limitado pelo reconhecimento duma constituio scio-econmica que

    fixava os direitos prprios da sociedade econmica de base83. Desenvolver-se-

    ia assim uma complementaridade entre a tcnica econmica pluralista omutualismo e a tcnica poltico-pluralista o federalismo. O carcter mtuo

    seria mesmo o grande remdio da questo social, a sua soluo prtica. E foi

    este posicionamento que influenciou a sua reflexo sobre a questo do crdito

    mtuo e popular. Proudhon imaginou um banco de troca que assentasse no

    crdito mtuo e gratuito e que organizasse a circulao da riqueza, pois s um

    organismo como este poderia apoiar a associao mutualista, lutando contra os

    intermedirios.A fundao em 31 de Janeiro de 1849 da Banque du Peuple P. J.

    Proudhon et Cie foi a operacionalizao do seu projecto. Este banco,

    constitudo sem capital e sem fins lucrativos, procurava organizar entre

    produtores o crdito mtuo e a troca recproca de produtos84.

    Proudhon, afirmava, desta forma a sua teoria sobre mutualidade,

    enquanto sistema de progresso e de eficcia, no qual os indivduos

    trabalhariam uns para os outros, concorrendo para um bem comum e cujobenefcio seria partilhado entre si a economia social constitua-se assim como

    projecto de construo de instituies autnomas que assegurariam

    directamente o mundo do trabalho.

    83Proudhon, 1967, p. 18.84Vallat, 1999, p. 244.

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    Quadro 7 Correntes tericas que influenciaram a economia social enquanto disciplinacientfica e prtica social

    Escolas Autores Filosofia

    Socialista/Socialistasutpicos

    P.J. PROUDHON(1809-1865)

    Defendeu os princpios da mutualidade, no quese refere associao dos homens perante asexigncias da produo, o mercado deprodutos, as necessidades de consumo e asegurana dos trabalhadores.

    Robert OWEN(1771-1825),

    H. SAINT - SIMON(1760-1825),

    C. FOURIER(1772-1837)

    Defendem o factor trabalho, em vez do factorcapital e preconizam uma organizao socialbaseada em pequenas unidades sociaisautnomas, como as cooperativas de produo

    e de consumo. Preconizavam ainda a aboliodo lucro.

    Benot MALON,(1841-1893)

    Publicou o Tratado da Economia Social (1883),em Frana.

    Social Cristianismo Frdric LE PLAY(1806-1882)

    Cria a Sociedade de Economia Social em 1856e organiza a Exposio Universal de EconomiaSocial em 1867.

    Liberal

    John Stuart MILL(1806-1873)

    Charles DUNOYER(1786-1862)

    Frdric PASSY(1822-1912)

    Lon WALRAS(1834-1910)

    Teve uma influncia determinante napromulgao em 1852 da primeira lei mundialque regulamentava especificamente o

    fenmeno cooperativo.

    Defendem a criao de entidadesindependentes, privadas, negando qualquerinterferncia do Estado.

    Fundou em 1886 a revista Le Travail, sobre oassociativismo cooperativo. Para Walras ascooperativas tm um papel moral ao introduzira democracia nos mecanismos de produo.

    Solidria

    Charles GIDE(1847-1932)

    sector da economia social...conjunto formado

    por diversas organizaes, como cooperativas,ou outros, que incorporam critrios defuncionamento solidrio:- desenvolveram o princpio do cooperativismo.

    M. LonBOURGEOIS(1851-1925)

    Definiu os princpios da doutrina solidarista:1 a nao deve ser uma grande sociedade desocorros mtuos (segurana contra os riscos);2 a sociedade deve assegurar um mnimo deexistncia (o direito vida);3- todos devem ter acesso ao ensino gratuitoem qualquer grau (o capital intelectual deve serum bem comum.

    Fonte: Elementos adaptados de M