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Coutinho, M., (2002) Economia Social em Portugal. Emergncia do
Terceiro Setor na Poltica Social, Tese de Doutoramento apresentada em
provas pblicas no ISEG/Universidade Tcnica de Lisboa, a 9 de
dezembro 2002, cap. II.
Captulo II
Problematizao terica em torno do eixo
terceiro sector e poltica social na sua relao
com a economia
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Captulo II Problematizao terica em torno do eixo terceiro sector e poltica socialna sua relao com a economia
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II Problematizao em torno do eixo terceiro sector e poltica
social na sua relao com a economia
2.1. Preliminares
As escolhas do passado influenciaram frequentemente as opes presentes e osdesenvolvimentos sectoriais so o produto da interaco entre as condiesfundamentais da oferta e da procura, as evolues a longo prazo e os modos deorganizao que se apoiam, frequentemente, sobre poderosos modelos culturais epreferncias polticas
6.
Pelas mltiplas implicaes no desenvolvimento dos indivduos e das
comunidades da sociedade actual, a anlise econmica do terceiro sector
revela-se cada vez mais pertinente. Os dilemas e paradoxos metodolgicos
que se nos apresentam, no que se refere compreenso dos mesmos so
complexos. Em primeiro lugar, porque em termos estruturais e funcionais tem
uma interdependncia profunda com o sector privado lucrativo e o sector
pblico. Em segundo lugar, porque difcil delimitar as fronteiras do objecto de
estudo; Porque no um sector previamente dado e invarivel da economia,
existente fora do espao e do tempo - resulta de um longo e complexo
processo de transformao histrica.
Assim sendo, consideramos importante contextualiz-lo, pondo nfase
no seu papel enquanto suporte da poltica social. Desde logo, assumimos que
diferentes contextos o vm caracterizando em trs momentos fundamentais.
O primeiro que decorre da emergncia histrica da revoluo industrial,
vai at finais do sculo XIX e cuja essncia, sublinha Ferreira7 incidiu,
basicamente, no desenvolvimento do progresso e da razo que se
consubstanciou no aprofundamento e integrao das relaes entre a cincia,
a tcnica e o trabalho no processo de produo, consumo e distribuio de
mercadorias. Perodo que se caracteriza por uma economia social subterrnea.
Surgem as prticas associativas de tipo cooperativo ou pr-mutualista, atravs,
entre outros, da tradio socialista crist de Frdric Le Play e da tradio
socialista de Pecqueur.
6Anheier, 1997, p. 45.7Ferreira, 2001, p. 71.
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A economia social contestava ento o facto das regras de
funcionamento da actividade econmica serem concebidas independentemente
das regras morais, religiosas e polticas.O segundo perodo inicia-se na penltima dcada do sculo XIX com a
emergncia do modelo de produo e de consumo em massa, inspirado pelo
taylorismo e o fordismo. Assinalam ainda este perodo, a criao de seguros
sociais obrigatrios na doena, acidentes de trabalho, invalidez e velhice, na
Alemanha de Bismarck (1883-1889), a colectivizao da proteco social
decorrente da lei sovitica de 1918, a Declarao Universal dos Direitos do
Homem em 19488,a elaborao da Carta social Europeia em 1961 e o Cdigo
Europeu de Segurana Social de 1964. Lvesque9sublinha mesmo que a partir
de 1930, a nebulosa primitiva do associativismo dos trabalhadores, do sculo
XIX, faz nascer diferentes formas que se institucionalizam: sindicatos,
cooperativas, sociedades mutualistas, associaes. um perodo que vai at
finais da dcada de 60 e acompanha o percurso da segunda revoluo
industrial, em que a economia social, como disciplina, se torna complementar
da economia poltica, na medida em que integra a anlise dos subconjuntos de
actividades e factores, cujo comportamento no pode ser explicado semcombinar diversas caractersticas sociais s regras especificamente
econmicas.
O terceiro perodo que se inicia na dcada de 70, decorrente das
tendncias de integrao global e da crescente abertura e interdependncia
das economias (devido recesso industrial e crise das polticas de
proteco social) vem at aos nossos dias e caracteriza-se pela revalorizao
do papel do terceiro sector, enquanto suporte da poltica social, enquadrando
iniciativas de solidariedade e formas mercantilizadas de proviso social. Foi o
tempo marcado pela estagflao agravada pelo primeiro choque de petrleo de
1973 que se reflectiu nas polticas sociais, pela necessidade dos Estados, por
um lado, racionalizarem as despesas sociais e, por outro, pressionarem no
sentido do aumento dessas despesas para acorrer s novas necessidades
provocadas pela deteriorao das condies sociais, o desemprego, a pobreza,
etc.
8Adoptada pela Assembleia Geral da ONU em 10.12.1948.9Lvesque, 1989, p. 20.
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Para os pensadores do sculo XIX10, o homem, na sua actividade
econmica, buscava o benefcio (a remunerao) que a sua propenso
materialista lhe levava a optar, pelo menor esforo, e deveria tender a adaptar-se a uma racionalidade econmica, j que os comportamentos contrrios a
essa racionalidade provinham de uma interveno exterior. Daqui se deduzia
que os mercados eram instituies naturais, susceptveis de surgir
espontaneamente, desde que se tivesse liberdade de aco. Como resposta a
esta atitude, surgiu a emenda da Lei dos Pobres, aprovada em 1834, que
modificou a estratificao da sociedade inglesa:
os antigos pobres, no aptos fisicamente para o trabalho,passavam a ser classificados como indigentes, cujo destino
eram as workhouses e em trabalhadores independentes que
ganhariam a sua vida, trabalhando por um salrio;
os indigentes deveriam ser socorridos, para o bem da
humanidade, os no activos no deveriam s-lo, para o bem da
indstria.
Entregues agora aos limites do mercado de trabalho, deveria ser-lhesproporcionado, pelo governo, o menor socorro, j que isso constitua por parte
do Estado uma violao dos direitos do povo11.
Decorrente deste posicionamento, durante muitos anos, os cuidados aos
grupos considerados socialmente vulnerveis aos que se encontravam nas
margens da sociedade foram assegurados por grupos de voluntrios
inspirados na caridade crist e na solidariedade entre as pessoas.
Mais tarde, com o estabelecimento do Estado providncia, aredistribuio passa a ser feita quer pelo Estado, quer pela colaborao
estabelecida entre o Estado e as organizaes voluntrias, num esprito de
complementaridade.
10Polanyi, 1989, p. 390.11Idem, p. 353.
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O Estado foi integrando objectivos mistos entre universalismo,
particularismo e definio de necessidades de grupos alvo; o papel da
organizaes do terceiro sector foi sendo de promoo do bem estar social,fornecendo servios especializados em nichos de mercado, para clientes
particulares, ganhando um papel importante na poltica distributiva12. Neste
domnio, as organizaes caritativas, voluntrias, no lucrativas, entre outras,
tiveram sempre uma importncia preponderante na aco junto de grupos alvo,
dada a especificidade do seu lugar na sociedade: de responsabilidade
multiforme13 - ideia utilizada por Woldring (1999), em contraposio com os
ideais individualistas e os de um Estado centralizado.Surgidas de dois iderios filosficos, que se afirmaram enquanto
correntes de pensamento e informaram polticas econmicas e sociais, as
ideias individualistas decorrem da ideologia liberal, que preconizava que toda a
sociedade mudaria automaticamente, uma vez organizada a base econmica
estruturante de mercado. Na posio marxista o Estado surge como
centralizador e a economia considerada a estrutura de base da sociedade e
todos os sectores sociais esto dependentes da primeira. Da que os meios de
produo devero estar nas mos do Estado, pressupondo-se que a luta bem
sucedida da classe trabalhadora pelo controlo sobre a sociedade civil permitiria
a abolio do Estado14 cujos aparelhos podiam e deviam ser abolidos e
substitudos por simples rgos administrativos. As relaes de poder das
sociedades civis deveriam assim ser explicadas em termos de relaes de
produo, ignorando-se, sublinha Keane (2001), o potencial democrtico das
associaes de cidado15. Gellner (2001) contrape o ponto de vista marxista,
salientando que a sociedade civil um conjunto de diversas instituies no
governamentais, suficientemente fortes para contrabalanarem o Estado e que,
embora no evitem que o Estado desempenhe o seu papel de manuteno da
paz e da arbitragem de interesses relevantes, pode, apesar disso, evitar que
ele domine e atomize o resto da sociedade16.
12Perri 6, 1994.13
Woldring, 1999, p. 3.14Keane, 2001, p. 90.15Idem, p. 89.16Ernest Gellner, citado em Keane, 2001, p. 91.
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O conceito de poltica social surge assim num percurso cujo fio condutor
rene orientaes normativas e econmicas e onde igualmente se cruzam
perspectivas de desenvolvimento humano com atitudes e tomadas de decisoactivas na sociedade. Os sistemas de proteco social das sociedades
industriais comearam por ter um marcado cunho de excepcionalidade
(reduzido ao infortnio, doena...) de durao mais limitada (penses de
reforma tardias e curtas), com um modelo de cobertura ocupacional (para os
que trabalhavam), com um papel modesto do Estado e amplo envolvimento da
famlia e do mercado. Com a generalizao, a proteco social tornou-se mais
ordinria e permanente, mais padronizada e duradoura17
.Paralelamente, as iniciativas do terceiro sector da economia foram
surgindo numa atitude pr-activa poltica social e ao processo de
desenvolvimento econmico. As suas estratgias de aco desenvolveram, em
especial, o encorajamento de solues de investimento (atravs de
movimentos cooperativos, mutualistas, ou de iniciativas de produo) de ajuda
criao de rendimento, para alterar, ou reverter, a situao de desvantagem
dos indivduos e das famlias. Abordando a luta contra a pobreza, numa ptica
de integrao social pelo desempenho de uma actividade econmica,
reconhecem que o investimento no capital social permite aos indivduos a sada
da pobreza.
Ainda que apresentando diferentes formas, quer na abrangncia, quer
no tipo de programas, a poltica social foi surgindo aos nossos olhos como um
esquema definido do topo para a base do poder central para a sociedade
civil. O Estado foi criando condies para um bem estar scio-econmico e ao
criar essas condies ps em marcha uma poltica social especfica. Esta
perspectiva unilateral contraria e esbate esforos surgidos na sociedade, para
criao de espaos de investimento num desenvolvimento sustentado
espaos em que se observa a actuao de uma economia privada, com
objectivos sociais e em que os interesses particulares so promovidos por
associaes privadas, caracterizadas por uma ordem social horizontal.
17Cruz, 1997.
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Assim, ao analisarmos as intervenes sociais, cruzamos,
obrigatoriamente, aces estratgicas surgidas na sociedade civil com
esquemas de proteco social pblica. A questo chave ser definir umconceito de poltica social que suporte o nosso trajecto cientfico e
metodolgico; que v ao encontro das prticas e produza informao sobre os
efeitos das escolhas polticas da sociedade civil. Desta feita, para alm de
reflectir sobre definies de poltica social e de terceiro sector, tentar-se-
compreender as variaes histricas que alteraram o significado dos conceitos.
2.2. Para uma anlise da interveno em poltica social
Nesta linha de reflexo a poltica social aparece-nos como que
integrando uma matriz especfica:
da qual fazem parte orientaes polticas e econmicas,
assentes em sistemas sociais;
cuja base social de suporte refere organizaes pblicas (o
sistema pblico administrativo) e/ou privadas (empresas
privadas lucrativas e empresas no lucrativas e no privadas);
que integra objectivos e medidas de carcter social, econmico,
institucional e poltico que em cada momento tm impacto sobre
o consumo, o investimento, a segurana, a participao, a
liberdade e a dignidade dos povos.
O prprio debate sobre os sistemas de proteco social dever, por isso,
ser feito na sua relao com as recomendaes polticas, econmicas e sociais
negociadas em cada sociedade, tendo presente as organizaes do primeiro,
do segundo e do terceiro sector na sua heterogeneidade e na diversidade doscampos em que operam, o que o torna mais complexo. Segundo Perri (1994)18,
os conservadores tenderiam a fazer reviver as organizaes caritativas e
similares, em detrimento das cooperativas; os liberais tenderiam a revitalizar a
produo e o consumo individualizado, a nvel do Estado providncia; a
esquerda opor-se-ia individualizao e os sociais democratas defenderiam
uma perspectiva de equidade servios do Estado e encorajamento da
responsabilidade individual.
18Perri 6, 1994, p. 190.
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No , de facto, pacfico o conceito de poltica social, isto , as variveis
a incluir ou a excluir e as relaes que lhe do corpo quando pretendemos um
olhar a partir das intervenes sociais, dos actores e suas performancee dosvalores que implcita ou explicitamente as validam. No obstante a diversidade
das intervenes que caracterizam estas medidas que, consoante os casos e
os perodos histricos, so classificados ou se reclamam contra a pobreza e a
excluso, todos tm, em termos de ideias a preocupao de estabelecer
formas de cooperao, de articulao de recursos e de vir a gerar benefcios
para a populao.
A j referida Declarao Universal dos Direitos do Homem exige que se
assegure o reconhecimento e a aplicao dos direitos nela expressos. Nestaconformidade, o desafio que se coloca s diferentes polticas sociais a
metodologia que utilizam na operacionalizao dos seus objectivos que:
ora valoriza aces passivas, de cariz pecunirio;
ora reactiva, de cariz caritativo e assistencialista;
ora activa cooperante, solidria, produtiva.
Criando a situao de excluso social uma condio que nega o acesso
aos direitos humanos (como veremos mais frente), a soluo poder estar
nas alternativas de sada do ciclo vicioso de excluso, ou seja, satisfazendo as
condies necessrias de acesso vida econmica, que, em muitos casos,
obriga criao de suportes de cooperao e solidariedade, para satisfazer
necessidades elementares (o grande desafio poltica social). Necessidades
que, se no satisfeitas, pem em causa a capacidade das pessoas individual e
mutuamente se reforarem.
Da que, ao aprofundar o estudo cientfico das lgicas que presidem s
orientaes da interveno social e tomada de deciso da mesma, partimosdo princpio que os critrios tm alguma validade como actos poltico
econmicos socialmente enquadrados. Rejeita-se partida a ideia de que
sejam decises s explicveis por puros critrios econmicos e/ou polticos, o
que significa que a interveno social nunca se exclui da abordagem sistmica.
Poltica social: um conceito que integra
i. teorias extensivas de economia, de poltica e de sociedade;
ii. espaos de solidariedade;iii. caminhos de cooperao.
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2.3. Poltica Social: um conceito que integra teorias extensivas de
economia, de poltica e de sociedade
H quase trs dcadas que os direitos sade, educao, ao trabalho e liberdade em relao ao medo e fome, foram declarados fundamentais no PactoInternacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Embora o objectivo deacabar com a pobreza em todo o mundo tenha sido insistentemente sublinhado, atravsde aces e acordos internacionais, os direitos no afectam mais do que 1000 milhesde pessoas
19.
A citao escolhida para iniciar o percurso terico em que assentaremos
todo o nosso trabalho de anlise da poltica social, faz parte de uma reflexo
actual. Desde logo sobressai como primeira preocupao que nem os agentestradicionais, nem as formas clssicas de interveno do Estado na actividade
econmica podem resolver o conjunto de problemas de hoje. Em alternativa,
urge a criao de espaos onde possam mover-se todos os agentes
econmicos com uma misso comum: contribuir para a resoluo dos
problemas sociais.
Correndo o risco de algum reducionismo, podemos dizer que remonta ao
sculo XVIII, ao movimento genuinamente europeu que foi a Revoluo
Industrial, o aparecimento das filosofias que deram corpo economia como
cincia. No plano poltico, os sistemas econmicos foram-se afirmando atravs
de duas vertentes clssicas de interveno na actividade econmica: a
economia de mercado, individualista e com fins lucrativos e a economia
colectivizante e planificada dos pases comunistas e das economias
simplesmente controladas em maior ou menor grau pelo Estado20.
Da que a poltica social, enquanto conceito que tem subjacente
perspectivas de sociedade e de economia, que do forma ao tipo de relaes
entre indivduos e instituies, foi igualmente informada por esse trajecto
terico e no pode ser facilmente compreendida como resultado de um nico
factor tal como o processo de industrializao, o desemprego, o totalitarismo de
Estado, etc. Inter-relaes bastante mais complexas entre vises de sociedade
e instituies sociais, espaos de fraternidade, solidariedade e movimentos
populares, levaram criao de muitos dos organismos sociais actuais.
19CIPQV, 1998, p. 22.20Rosendo, 1996, p. 252.
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As misericrdias, as cooperativas e os movimentos associativos em
geral, que atingem hoje a dimenso formal de pilares de suporte da poltica
social, emergiram de instituies de fraternidade e de solidariedade, comobjectivos de entre-ajuda.
Se um facto que a Lei dos Pobres, aprovada em Inglaterra, em 1601,
por Isabel I, referenciada com algum significado no que diz respeito
proteco legal dos necessitados, ela no comete, no entanto, ao Estado
qualquer obrigao de proteco social. Antes, impe s parquias o dever de
assegurar socorro aos pobres, ento considerados indigentes21. Polanyi (1944)
sugere que a referida Lei seja denominada como a lei dos desempregados e
dos no empregveis, uma vez que preconizava que os pobres vlidosdeveriam ser postos a trabalhar, que a mendicidade deveria ser severamente
punida e que a vagabundagem, em caso de recidiva, deveria ser tratada como
infraco. Caracterizando-se embora pela sua feio repressiva, a Lei do
Pobres apelava aos actores locais uma atitude de interveno junto dos
pobres: cada parquia unidade minscula tomava as suas prprias
disposies para pr os indivduos vlidos a trabalhar, para organizar um asilo
de pobres, para colocar os rfos e as crianas sem recursos de
aprendizagem, para tratar dos velhos e dos doentes, para enterrar os
indigentes; e cada uma tinha o seu prprio esquema de taxas22. No era, no
entanto, sugerida qualquer preocupao de investimento nos indivduos ou nas
comunidades, com vista ao desenvolvimento do seu potencial, individual, ou
colectivo.
Muitos movimentos anteciparam o que hoje se constitui como sindicatos,
cooperativas, organismos de crdito mtuo, albergues, etc., e se constituram
como verdadeiros suportes sociais, garantes do desenvolvimento dascomunidades, pondo em marcha espaos que se inscrevem no domnio da
economia social. Espaos que recriam esferas da vida onde as pessoas podem
recuperar a sua responsabilidade, sobre o ambiente fsico e social, e que
capacitam o cidado para uma vida com dignidade H registos de
organizaes criadas em 1082-1092, especialmente inspiradas no cristianismo,
com prticas de solidariedade, de fraternidade e de benemerncia e auxlio (ver
quadro 1).
21Maia, 1990.22Polanyi, 1983, p. 126.
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Quadro 1 Os Compagnonnages
Um dos primeiros compromissos assumidos por grupos profissionais, tendentes criao de espaos de solidariedade, para proteco mtua e desenvolvimento, foi oCompagnonnage(surgida em 1082-1092).
Os Compagnonnages eram fraternidades operrias, constitudas por operriosartistas que tinham por misso construir obras de arte23, em especial catedrais e edifciosreligiosos. Estas instituies que se sobrepunham s confrarias, reforavam os laos decompanheirismo e de solidariedade profissional entre os membros dos diferentes ofciosque ali trabalhavam e viviam juntos. Segundo Rosendo, o Compagnonnage foimutualista, antes da mutualidade, sindicalista, antes dos sindicatos24, cooperante, antesdas cooperativas e antecipou as agncias de emprego, os organismos de crdito mtuo,os albergues da juventude e a prpria segurana social ...ela radica... na filosofia quehoje informa o ideal mutualista e os princpios que estiveram na prpria origem daeconomia social25:
1. criao de condies para o desenvolvimento equilibrado a nvel local:- proteco marginalidade e aos desprotegidos;- organizao de lazeres; expresso cultural;- luta contra o analfabetismo;- desenvolvimento popular.
2. segurana na sade:- preveno contra as inadaptaes profissionais e sociais.
Os Compagnonnages constituram, pois, espaos privilegiados de solidariedadelocal e foram centros aglutinadores de um conjunto de aces de ajuda mtua edesenvolvimento, cujo compromisso correspondia ao mais completo esquema mutualistaento praticado em qualquer parte da Europa. O Compagnonnage foi o germe daeconomia social em Frana, antecipando formas de aco mutualista e de ensinoprofissional, que se estenderam at ao sculo XIX26
Estes movimentos proliferaram por toda a Europa, sobretudo a partir dosculo VII, e foram durante muito tempo a nica forma de solidariedade,
mobilizada pela sociedade civil, dando corpo, ao longo dos sculos, a
organizaes tendentes a uma prtica de interveno social, formalmente
estruturada.
A prpria Igreja Catlica Romana, atravs de S. Toms de Aquino
(1224-1274), referia a este propsito: se a natureza dos homens exige que
vivam numa sociedade plural, preciso que haja entre eles algo pelo que serejam. Pois, ao existirem muitos homens ...a multido dispersar-se-ia em
muitos ncleos... como o corpo do homem e de qualquer animal se
desvaneceria se no houvesse alguma fora comum entre os seus membros27.
Esta atitude rejeita o ponto de vista liberal de sociedade, j que, de acordo com
a sua natureza, o ser humano tem que demonstrar solidariedade e cooperao.
23Rosendo, 1996, p. 172.24
25Idem, p. 170.26Idem, p. 171.27Aquino, 1989, p. 7.
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Falar de interveno poltica e social , portanto, falar de sociedade civil,
enquanto espao que integra associaes multiformes, que tm os seus
prprios direitos e responsabilidades e do forma s instituies do Estado eda economia. Por este motivo, recorremos com alguma frequncia ao conceito
de sociedade civil que foi informado por esses movimentos e que, segundo
Woldring, nos foi trazido, por Johannus Althusius (1557-1638), no sculo XVII,
altura em que se comea a definir o conceito e o papel de Estado.
Para Althusius, o Estado era um imprio, um reino e um espao de
riqueza econmica e de pessoas unidas num corpo organizado, numa simbiose
de associaes e entidades particulares e nascido sobre um direito28
. Assim, oEstado seria organizado sobre uma lei pblica e associaes privadas que se
regeriam por leis prprias e que difeririam entre si, de acordo com a natureza
dos seus propsitos. Althusius caracterizava ento a sociedade civil pela
variedade de associaes privadas e pela sua ordem social horizontal.
Segundo o referido filsofo, tal como qualquer associao, o Estado
tambm tinha os seus prprios direitos29. Na poltica econmica e social, por
exemplo, o governo deveria ter o direito de regular o comrcio pblico, os
contratos, os negcios, a terra e a gua. Deveria ter tambm o direito de
manter o sistema monetrio, a linguagem comum e os deveres e privilgios
pblicos. O Estado no deveria, contudo, prosseguir sozinho uma poltica de
bem estar social, mas, antes, de criao de condies para que os cidados
pudessem alcanar as seguintes caractersticas para as suas associaes30:
1. os membros de cada associao produziriam um conjunto de
bens teis e necessrios para seu benefcio individual e
colectivo;
2. as associaes deveriam dar assistncia, mtua entre si, atravs
dos seus trabalhos;
3. todas as associaes, formariam uma comunidade que
ordenaria a vida dos participantes entre si, atravs de leis justas.
28Woldring, 1999, p. 3.29Woldring, 1999, p. 6.30Idem, p. 4.
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A sua problemtica tinha por objecto final a ordem natural e a lei natural,
gerais, conformes vontade de Deus e Razo33. O Estado idealmente
incorporava a universalidade e a regra da lei; a sociedade civil tinha que gerarprincpios tico-jurdicos para criar as bases do bem estar comum, para alm
do prosseguimento de interesses particulares34.
O liberalismo, enquanto projecto poltico, surge numa altura em que a
industrializao comea a fazer surtir os seus efeitos por toda a Europa,
alterando nveis e formas de produo e, em consequncia, padres de
consumo e de segurana dos cidados. Como analisa Polanyi, uma vez
utilizadas mquinas e instalaes complexas, com vista produo, a ideia deum mercado auto-regulador tinha que, inevitavelmente, ganhar forma35
arrastando consequncias sobre o sistema social.
Se o liberalismo econmico no soube ler a histria da revoluoindustrial, foi porque, obstinadamente, julgou os acontecimentos sociaisdo ponto de vista econmico
36.
Tendo como precursor Smith (1723-1790) - que atribua grande
importncia questo das polticas econmicas mais adequadas ao
crescimento econmico - fazendo surgir dum esquema de vida humana
aparentemente desorganizado, uma grande racionalidade que asseguraria a
prosperidade e o bem estar social - o liberalismo informou uma teoria clssica
de sociedade, assente na ideia de que existe uma ordem natural no mundo, na
qual os indivduos estariam inseridos. A economia seria gerida pelos preos de
mercado, sem qualquer interveno exterior mercado auto-regulador.
Especificamente, o liberalismo procurava demonstrar que as aces privadasdos indivduos, prosseguindo a sua vontade pessoal, levavam competio da
oferta de bens. Por outro lado, essa competio levava produo das
quantidades requeridas nos nveis de preos que asseguravam a sua
distribuio, atravs da sociedade. A disponibilidade e o preo, seriam uma
consequncia da vontade e dos desejos de cada consumidor privado.
33
Eucken, 1998, p. 42.34Cox, 1999, p. 454.35Polanyi, 1983, p. 68.36Polanyi, 1983, p. 60.
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Para os liberais o processo econmico, por si s, resultaria em aumento
dos nveis de vida da sociedade como um todo e qualquer forma de apoiar
(fornecendo bens) a pobreza diminuiria o incentivo para o trabalho.O Estado Mnimo, formulado por Smith37, encerrava um conceito de
poder que consistia na definio de regras pela lei e no pelos indivduos: o
poder e a autoridade do Estado derivariam no da grandeza, capacidade ou
direito divino, mas da aplicao, por parte do Estado, de regras universais,
aplicadas a todos imparcialmente. Assim, Smith opunha-se supresso ou
restrio das trocas de mercado, o que no significava que fosse desfavorvel
ajuda pblica em favor dos pobres (na linha das workhouses). Consideravaainda que a fome resultaria de um processo econmico ligado ao
funcionamento do mercado e no da penria real decorrente de uma baixa de
produo alimentar propriamente dita38.
Para Condorcet (1743-1794)39, o liberalismo apontava para trs tipos de
desigualdades: desigualdade de riqueza, de status e de educao. As duas
primeiras podiam ser reduzidas atravs de reformas na lei civil e do
fornecimento de fundos de caridade ou pblicos. A ltima desigualdade era
ultrapassada atravs da educao: ensinar aos cidados tudo o que
necessitavam de saber, para que fossem capazes de gerir a sua famlia, os
seus assuntos e empregar o seu trabalho e as suas faculdades em liberdade.
Este terico advogava a igualdade de direitos e a democracia, profetizando que
o progresso e as excluses que fazia emergir integravam uma scio-economia:
um sistema de direitos, estatutos e denominaes, cuja organizao e controle
eram da responsabilidade do governo liberal40.A poltica social estava ento
ausente das funes do Estado: a educao era assegurada por uma
combinao de foras culturais, religiosas e filantrpicas e os cuidados de
sade eram o campo de aco de associaes humanitrias e individuais. No
entanto, foi a partir da educao, como resposta a uma necessidade concreta,
que com Smith se abriu o debate sobre as falhas de mercado, da derivando a
responsabilidade do Estado nesse domnio.
37
Smith, 1974.38Sen, 1993, p. 27.39OBrien, 1998, p. 18.40OBrien, 1998, p. 23.
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Na segunda metade do sculo XIX surge uma nova fase da ideologia
liberal, a que OBrien (1998) chama segunda vaga do liberalismo, que se
diferencia da primeira por assentar na crena de que a aco do Estado navida social e civil um mal necessrio. Tinha subjacentes novas ideias
cientficas, nomeadamente uma concepo orgnica da estrutura social,
considerada como um todo orgnico que necessita de uma interveno ao
nvel do comportamento econmico. Neste domnio referncia importante
Durkheim (1858-1917) que em Frana, avanou com a anlise dos
comportamentos organizados do Estado, famlia, comunidade, igreja, etc.,
enquanto parte integrante de instituies sociais que funcionavam como rgosde uma criatura viva. Os interesses individuais, desejos e necessidades
deveriam ser subordinados aos interesses e necessidades do grupo, no sentido
de promover o bem estar como um todo41. Da o surgimento de organizaes
de caridade e filantrpicas, polarizadas, que visavam reprimir e pr fim
mendicidade e representavam uma forma de administrao social que
suportava os princpios do individualismo econmico.
A terceira vaga do liberalismo surge com Keynes (1883-1946) no ps
Primeira Grande Guerra integrada nas novas teorias de progresso social e
econmico. A revoluo keynesiana exerceu influncia, sobretudo no campo da
poltica econmica. A interveno do Estado na economia era encarada como
uma necessidade vital para sustentar o prprio sistema liberal poltico e
econmico, por ser o nico meio exequvel para evitar a destruio total das
instituies e como condio de um bem sucedido exerccio da iniciativa
individual42. Desta feita, o governo desempenharia a sua funo apoiando a
procura do sector privado e no a produo de bens e servios em competio
com a iniciativa privada.
O Estado surge ento como entidade com carcter directivo, de
salvaguarda do mercado, num mundo de incerteza e de risco. D-se o
alargamento da esfera pblica e de formas de governao tecnocrtica para
promoo de objectivos eficientes de bem estar social.
41Durkheim, 1991.42Keynes, 1936.
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a emergncia da tecnocracia da administrao social que, de certa
forma, vem tambm responder crescente influncia das teorias socialistas,
focando-se muito especialmente na natureza do sistema econmico capitalista,e no da mo invisvel, como guia da vida econmica.
Na mesma linha de Keynes, Beveridge (1879-1963) via a sociedade
capitalista como uma grande mquina, ou organismo, que funcionava de
acordo com as suas prprias lgicas. O papel da cincia seria guiar e
supervisionar o governo de forma a capacit-lo na manuteno do equilbrio
social e econmico. O sistema de segurana social que vem a ser criado por
Beveridge, quando eleito deputado liberal, representou uma tentativa decoordenao e gesto da vida econmica; combinava a economia poltica - um
sistema organizado de acumulao e criao de riqueza com uma economia
liberal um sistema organizado de direitos: o objectivo da segurana social
seria libertar o homem da necessidade, garantindo uma segurana no
rendimento43.
Em 1971 surge o radicalismo liberal, com Rawls (1979), que, atravs da
sua Teoria da Justia, advoga que a distribuio desigual de bens,
oportunidades e satisfaes s compatvel com os princpios liberais,
enquanto a distribuio desigual actuar para igualar as desigualdades
substantivas entre as pessoas44. O radicalismo liberal dirige a sua ateno para
a mudana das condies estruturais que resultam em discriminaes culturais
e sociais dentro das instituies. Rawls introduz a sua hiptese de vu de
ignorncia, que pressupe que os indivduos sejam absolutamente
indiferentes, desligados uns dos outros, marcando toda a nova economia do
bem estar. necessrio procurar reduzir a visibilidade do social, diz Rawls.
Dividir a sociedade, fragment-la numa multido de grupos de referncia no
interior dos quais ser possvel ignorar diferenas, porque sero reduzidas e
porque os mecanismos da justia equitativa sero visveis45.
43Rosanvallon, 1981, p. 115.44Rawls, 1979, p. 23.45Citado em Rosanvallon, 1981, p. 81.
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As desigualdades econmicas e sociais deveriam ser organizadas de
forma a que se associassem s posies e s funes abertas a todos
(princpio da igualdade de oportunidades) e fossem em benefcio dos que seencontram em situao de desvantagem (princpio da diferena). As teorias da
justia tm como objectivo definir os princpios distributivos susceptveis de
regular os problemas de repartio que se colocam ao nvel duma sociedade,
para que possa ser qualificada como justa46; caracterizam-se, por um lado, pelo
facto de reduzirem o social a um sistema de interaco mecnica dos
indivduos. Por outro, pressupe que os indivduos possam tornar-se
indiferentes uns aos outros.Foram, no entanto, inovadoras na definio dos mnimos sociais ao
considerar que aqueles que se encontravam em situao de desvantagem em
termos econmicos e sociais poderiam, legitimamente, receber um rendimento,
prestao que funcionaria como imposto negativo.
b) O Projecto Marxista e a Nova Ordem Social
A interveno planeada e estruturada do Estado na sociedade como um
todo, surge atravs do projecto marxista em que foram marcos fundamentais
Karl Marx (1818-1883) e Friederich Engels (1820-1895). Surgindo numa altura
ainda influenciada pela economia agrcola (baseada em relaes feudais),
representaram um primeiro momento de viragem na teoria poltica do sculo
XIX e foram um apelo a uma nova ordem social em que o indivduo integrado
no colectivo47.
Ambos partilhavam importantes crenas e concepes sobre oprogresso econmico e social e sobre a realizao de uma sociedade de
homens livres. Abordando esta questo, Marx cita: a fora de trabalho, como
mercadoria, s pode aparecer no mercado na medida em que e porque
posta venda ou vendida como mercadoria pelo seu prprio possuidor (a
pessoa de quem ele fora de trabalho).
46Forest, 1999, p. 135.47Marx, 1991.
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Para que o seu possuidor a venda como mercadoria, tem de poder
dispor dela, ser portanto proprietrio livre da sua faculdade de trabalho, da sua
pessoa. O proprietrio da fora de trabalho deve vend-la sempre e apenas porum tempo indeterminado, pois se a vende por grosso, de uma vez por todas,
ele vende-se a si mesmo, transforma-se de homem livre em escravo, de
possuidor de mercadorias numa mercadoria48.
A sua teoria, que partia da anlise das condies de vida das pessoas
que viviam os efeitos do capitalismo industrial, tinha subjacente uma
organizao poltica da sociedade que assentava por um lado numa base
econmica da sociedade e por outro, numa superestrutura social. A primeiraconsistia na relao entre os que possuem os meios de produo e os
trabalhadores que nada possuam e as divises do trabalho, atravs das quais
seria organizada a produo. A superestrutura assentava no corpo ideolgico
onde os conflitos de interesse entre os dois grupos hostis eram mantidos.
Desta forma, o capitalismo criava condies para que os proletrios
alcanassem o seu verdadeiro lugar e o seu verdadeiro poder no sistema
capitalista. O capitalismo, segundo Marx, levava a um estdio em que o
proletariado reconhecia os seus interesses comuns, dimensionando os meios
de produo da classe burguesa, colocando esses meios ao servio das suas
prprias necessidades. Marx tinha como pressuposto que a liberdade consistia
no esmagamento de barreiras entre as esferas sociais e polticas, o que
maximizaria a unidade, a auto-realizao e a harmonia entre indivduos,
inteiramente conscientes e autodeterminados49. O autor era cptico
relativamente emergncia do bem comum a partir dos interesses individuais e
considerava que a sociedade civil estava a gerar uma fora dentro de si que a
destruiria o proletariado.
Gramsci (1891-1937), terico marxista rejeitava a ideia da existncia de
uma espontaneidade pura na construo da organizao social. Considerava
sim, a existncia de uma combinao de liderana e movimento vindo de baixo.
48Marx, 1990, p. 194.49Keane, 2001, p. 90.
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O seu sentido de relacionamento ptimo preconizava o estmulo da
formao de blocos sociais compactos, homogneos, que dariam origem aos
seus prprios intelectuais, com os seus prprios comandos, a sua prpriavanguarda que reagiriam sobre esses blocos para os desenvolver50.
neste contexto de ideias que Marx e Engels apresentam em Londres,
em 1848, o Manifesto do Partido Comunista, o qual foi considerado um
desafio filosofia das Luzes. Para estes filsofos era inevitvel a luta entre os
que possuam a riqueza e os que a produziam, situando-se neste grupo a
classe trabalhadora que vivia em situao de excluso e misria e que mais
no possua do que um crebro para pensar e mos para trabalhar.Para Marx e Engels a produo era a base, no s da vida humana
individual, mas tambm da vida social colectiva. Toda a sociedade tinha que
produzir alimentos, bens, etc., em ordem a reproduzir os seus membros
individualmente e o sistema social.
As relaes de poder das sociedades civis, numa interpretao marxista,
so explicadas, aponta Keane51, em termos de foras e de relaes de
produo. O marxismo, ao abordar a actividade econmica, enquanto
actividade integrada num modo especfico de produo, prope que a mesma
seja fundamentalmente social: a separao entre a economia e a sociedade
numa teoria e poltica liberal uma mistificao, uma distoro ideolgica do
carcter real do capitalismo52.
Condenando os conceitos liberais de direitos, liberdade e individualismo,
a filosofia marxista afirmava que os direitos e a propriedade individual no
garantiam as liberdades fundamentais, mas limitavam-nas porque dividiam as
pessoas. Assim surgem os movimentos da classe trabalhadora, como um
colectivo, que vai ganhando terreno na Europa, na dcada de 1840,
culminando com revolues em Frana, na Alemanha, Hungria, ustria, Itlia e
Inglaterra.
50Cox, 1999, p. 454.51Keane, 2001, p. 89.52O Brian, 1998, p. 55.
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Paralelamente, vo surgindo os movimentos socialistas, as Associaes
Internacionais de Trabalhadores: em 1864-1872 cria-se uma Associao
Internacional em Londres; em 1889 em Paris e em 1919 na Rssia, a seguir Revoluo Bolchevista de 1917.
Para liberais e marxistas as sociedades vo-se tornando,
progressivamente e atravs da evoluo ou da revoluo, mais avanadas e o
bem estar individual surge como funo do nvel de sociedade como um
todo53.
Assentes em pressupostos tericos opostos, ambos constrem
esquemas conceptuais de poltica social, tendo subjacente a trajectriahistrica, atravs da qual se d o progresso das sociedades.
Quadro 2 Teorias das Luzes e do Progresso: liberalismo e marxismo
CorrentesTericas
Viso de SociedadeConstruir a trajectria do progresso
Orientaes de polticasocial
Teoria Liberal1 vaga
1776 a 1850
Existe uma ordemnatural no mundo
A estratificao da sociedade dinmica,porque assegura o progresso econmico. Se
as pessoas tm a liberdade de podertrabalhar ou no trabalhar, no trabalhando:- no haver lucro;- a actividade econmica estagna;- o progresso morre.
A poltica social uminstrumento para manter a
desigualdade relativa,enquanto que,simultaneamente, vaiabolindo a pobrezaabsoluta.
2 vaga1850 a 1920
A sociedade um todo orgnico quenecessita de uma interveno ao nvel docomportamento econmico.
Surgem organizaespolarizadas que garantema manuteno doindividualismo.
3 vaga1945 ...
Criao de sistemasorganizados de direitos sistema Beveridgiano.
Radicalismo Liberal1971 ...
Distribuio desigual paraigualar desigualdades..
Teoria Marxista- economia
colectivizante eplanificada
Cada indivduo um produto material dotodo. A abolio da desigualdade promove aemancipao de cada indivduo daexplorao e promove o seu bem estar total....A sociedade assenta, por um lado, numabase econmica, e por outro, numasuperestrutura social...
Os meios e objectivos dapoltica social so o fim daexplorao do trabalho, aauto-satisfao de cadaindivduo e de toda asociedade, atravs dotrabalho criativo e livre.
Fonte: Elementos adaptados de OBRIAN, 1998.
53Idem, pp. 211-212.
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J no sculo XX, e subsequentes ao liberalismo e ao marxismo
avanaram novas posturas tericas, ora criticando, ora retomando os seus
pontos de partida.As crticas neo-liberais avanadas por Hayek (1899-1992) e Friedman
(1912-....), contrariando, embora a ideia da mo invisvel para garantir a
expanso e coordenao do progresso social, mantiveram muitas afinidades
com as teorias clssicas, entre as quais o olhar dicotmico mercado/Estado.
O bem estar da sociedade, mais no era do que a realizao por cada
indivduo dos seus prprios interesses54, dentro de um esquema de regras
legais abstractas e s o mercado mecanismo fundamental de regulao daactividade econmica (i) alcanaria uma distribuio eficiente de bens e
servios e (ii) garantiria a negociao entre os indivduos e (iii) uma distribuio
e definio dos valores das mercadorias, sem referncia ao poder ou ao status
dos seus proprietrios.
O mercado garantiria a cada indivduo, a realizao das suas liberdades
desiguais - definiria a liberdade de sociedade dos indivduos, devendo o Estado
garantir a segurana nacional, o bem estar mnimo e os servio infra-
estruturais55. Nesta perspectiva, a liberdade requereria a definio de polticas
especiais para ser alcanada.
Os modelos de desenvolvimento, assentes no estmulo ao crescimento
econmico, partiram, de acordo com a presente anlise, das propostas liberais
e marxistas. Numa atitude pr-activa s suas propostas, grupos reformistas
criaram modelos de interveno social, dirigidos a grupos ou sectores bem
definidos socialmente, informando os contornos da economia social.
54Hayek, 1960.55O Brian, 1998, pp. 213-214.
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2.4. Poltica Social: um conceito que integra espaos de
solidariedade
a) O associativismo mutualista e sindical
A existncia das mutualidades decorre do esprito de solidariedade entre osassociados. O conceito de solidariedade exprime uma relao de dependncia mtuaexistente entre os indivduos de uma sociedade. Na economia social existe solidariedadeentre os indivduos de uma sociedade quando se verifica entre-ajuda, sem objectivoslucrativos entre os indivduos
56.
Do que at agora se referiu decorre que a Revoluo Industrial do
sculo XVIII, foi um vector responsvel pelo aparecimento de novas filosofiaseconmicas e polticas. Originou a criao de grupos que comearam a exigir
formas de interveno organizada para a proteco contra a incapacidade para
o trabalho e a perda de rendimentos. Veio desafiar as organizaes operrias,
dada a grande concentrao do proletariado industrial nas zonas urbanas, que
se tornou capaz de uma aco colectiva, no sentido da obteno de melhores
salrios e condies de trabalho.
Os movimentos de associativismo voluntrios e independentes doEstado que se sabe terem surgido at ento como reaces, polarizadas,
pobreza e incapacidade para o trabalho, com um cariz predominantemente
caritativo e de assistncia, surgem agora organizados e procuram criar, atravs
de mecanismos de solidariedade, meios de proteco na doena, na velhice e
no desemprego, atravs, muito especialmente, de associaes de socorros
mtuos. Consubstanciam o que denominamos como espaos de
solidariedade, por serem de cariz solidrio e se basearem na reciprocidade.No entanto, merece referncia que, muitos movimentos antecederam
estas organizaes, j que a sociedade civil sempre existiu e se caracterizou
pelo seu estar reactivo perante a doena, a pobreza e as catstrofes.
56Barros, 1998, p. 23.
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Quadro 3 Origens do associativismo mutualista
Guildas
Sculo VII Surgidas no Norte da Europa como centros de convvioinspirados nos rituais de ODIN. Eram associaes de defesa mtua e
religiosa que prosseguiam fins de assistncia mtua em caso de doena,incndio...Sculo XIV graas ao desenvolvimento da indstria manufactureira, aestruturao e funcionamento das Guildas obedecia j a princpiosmarcadamente democrticos e assemelhava-se, em quase tudo, scorporaes de ofcios.
Confrarias
Sculo VII Criadas por monges Franciscanos, dominicanos, cistercienses eclunicenses, eram associaes destinadas a incrementar o culto pblico, semexcluso das obras de caridade. Designavam-se como: irmandades,fraternidades, confraternidades, congregaes, unies ou associaes.
- Em Portugal a primeira confraria remonta ao sculo XII: Confraria de NSenhora de Silva Porto.
- As Misericrdias, que surgiram um pouco na sua continuidade, foraminstitudas no sculo XV pela Rainha D. Leonor.
Corporaesde Ofcios(mesteres)
Sculo XII Surgidas neste sculo, as corporaes tornam-se organizadascomo associao profissional no sculo XIII, com a chegada dos ofcios(mtiers) direco das cidades e a sequente criao de manufacturas. Asua histrica identifica-se profundamente com a das cidades, uma vez que osdelegados dos mesteres chegaram a deter todo o poder municipal.
Montes dePiet
Originrios dos Monti de Piet italianos, em 1458, surgiram em Ascoli, comouma obra de carcter estritamente religioso e social, inspirada na caridadecrist e promovida pelos franciscanos.
Sindicalismo
Surgido em 1845, no movimento operrio francs57, quando os trabalhadores
se viram forados a unir-se de novo, perante a crise do trabalho que ento seregistou, e buscaram na associao um compromisso para a soluo dosseus problemas.Na sua concepo original, foi sobretudo um movimento operrio quereivindicou a abolio do capitalismo e do Estado e que pretendia aorganizao da sociedade em associaes de produtores.
i1845 existiam em Paris 11 sindicatos.i1852-1860 criou-se a Unio do Comrcio e da Indstria.i1860-1867 Criao de Associaes de Crdito Mutualista de
Solidariedade Mecnica.Fonte: Elementos adaptados de Rosendo, 1996.
No quadro 3 sistematizamos alguns movimentos associativos, a que
registos histricos aludem, a partir do sculo VII.
Com uma quase inevitabilidade, o associativismo mutualista surge como
resposta necessidade, cada vez mais premente, dos indivduos se
protegerem contra os riscos e as contingncias.
57Pela referncia de Jean Pierre Duroy (1991), sobre a origem inglesa da palavra syndics, em 1328, no podemosdeixar de referir aqui que o caso ingls ter precedido o francs.
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Se os socialistas utpicos, pr-marxistas e marxistas, tanto abominaram
o liberalismo como sistema que eles julgaram contrrio a qualquer ideia de
associao, a verdade que o associativismo se implantou e cresceu em todosos pases de economia de mercado, onde o liberalismo floresceu58.
A Revoluo Francesa, por seu lado, deixou marcas e processos de
interveno poltica e social irreversveis. A Declarao dos Direitos do Homem
e do Cidado59trouxe, como consequncia imediata, o triunfo do liberalismo e
do individualismo e o fim da monarquia absoluta.
J no sculo XVII, John Locke (1632-1704), terico liberal, construra as
bases de suporte dos governos constitucionalistas que vieram a ter lugar no
sculo XVIII. Baseando a sua filosofia no princpio poltico do liberalismo e da
prpria democracia, referia o autor que o consenso dos cidados, de que se
origina o poder civil, faz parte deste poder, um poder escolhido pelos prprios
cidados e , portanto, ao mesmo tempo um acto de garantia da liberdade dos
mesmos cidados...Logo, o povo conserva o supremo poder de remover ou
alterar o legislativo de suporte que em caso algum a constituio de uma
sociedade civil significa que os homens se fiem cegamente, na vontade
absoluta e no domnio de um outro homem... - os bons governos so sempre
baseados no consentimento e limitados pela lei60. O conceito de democracia
imps-se assim pela criao de mecanismos de participao e cidadania.
Rousseau (1712-1778) que defendera tambm a soberania absoluta das
maiorias, reforava, atravs do seu discurso que a voz do povo a voz de
Deus. Cabe maioria do povo o direito de falar da nao inteira, devendo
todos os cidados ter igualdade de voto na formao dessa maioria61.
De certa forma alimentados por este iderio filosfico e poltico, e comoreaco s contingncias do sistema industrial da economia, os movimentos
mutualista e sindical, as trade unions, e alis o associativismo de uma forma
geral, foram criando mecanismos de cooperao, assentes num funcionamento
voluntrio, democrtico e independente do Estado.
58
Rosendo, 1996, p. 26.59Proclamada em 1793 pela Assembleia Francesa.60Rosendo, 1996, pp. 128-129.61Rousseau, 1968.
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O prprio sindicalismo foi um movimento operrio (anarquista e com
pontos de contacto com o socialismo) que reivindicou a abolio, no s do
capitalismo, como do prprio Estado e pretendeu a reorganizao dasociedade em associaes de produtores.
Eram inicialmente associaes, com fins de assistncia, de previdncia
social (caixas de seguro mtuo, de desemprego e de reforma) e de promoo
de cursos, escolas profissionais e de abertura de bibliotecas62.
Em termos de interveno no domnio da poltica social, os movimentos
associativos foram dos fenmenos econmico sociais mais significativos.
Portugal no foi alheio a este processo, havendo registos da criao deSociedades Mtuas de Seguros, a partir de 1858 e de sindicatos, em 189463.
b) A responsabilidade multiforme da sociedade civil
A solidariedade ser assim uma pr-condio para a cooperao e o Estado sdever intervir subsidiariamente: o Estado deve criar condies para preservar aintegridade das partes, para que os cidados e as suas associaes privadas possamgarantir os seus prprios direitos e conhecer as suas responsabilidades
64.
Como caracterstica que identifica as organizaes que emergem da
sociedade civil, surge a j referida responsabilidade multiforme. Segundo
Woldring, no territrio nacional h comunidades multiformes que tm os seus
prprios direitos e diferentes responsabilidades em relao instituio do
Estado e da economia. Esta estrutura de sociedade faz justia dignidade da
pessoa humana e, enquanto tal, contm uma estratgia de reforma moral para
promover uma atitude que penetre na cultura social65.
Nesta ptica, os movimentos da sociedade civil so diferentes de pas
para pas, no tipo de actividades, nos padres culturais, na legislao de
suporte, na tradio associativa, cooperante e nas formas de organizao, j
que se focalizam nas necessidades que surgem em cada contexto social e nas
caractersticas dessas necessidades.
62Rosendo, 1996, p. 177.63
Decreto de 5 de Junho de 1894 da Direco de Servios Agrcolas do Ministrio das Obras Pblicas, Comrcio eIndstria.64Aquino, 1989.65O autor apoia-se nas ideias de Johannus Althusius, in: Woldring, 1999.
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Althusius66 define mesmo os princpios basilares que definem a
responsabilidade multiforme das organizaes da sociedade civil:
1. so espaos onde se cumprem os direitos fundamentais de cadaser humano vida, liberdade e segurana;
2. cada associao faz a sua prpria lei, atravs da qual tem que
ser regida;
3. dada a sua autoridade prpria, o poder legal do Estado
restringido;
4. o papel do governo ser criar condies para um bem estar
scio-econmico.
Em Althusius os seres humanos no so auto-suficientesindividualmente e necessitam por isso de se associar numa entidade
simbitica; o objectivo do Estado ser trabalhar pela justia e felicidade dos
cidados.
Seguindo esta linha de reflexo, pareceu-nos importante enriquecer a
anlise com outros autores, igualmente empenhados no estudo do papel da
sociedade civil. Christian Wolff (luterano, 1679-1754), para quem a unidade da
anlise social no era o indivduo, mas as associaes privadas, os agregados
que tm que cuidar dos seus prprios assuntos, j que, citando Wolff, as
famlias no podem fornecer a si prprias tudo o que lhes necessrio, em
ordem a satisfazer as suas necessidades bsicas, conforto, lazer e riqueza.
Elas no podem, por si, assegurar o fruto da sua propriedade e reforar os
seus direitos de propriedade, nem podem defender-se contra a agresso do
exterior. Portanto, preciso um esforo social comum, uma sociedade atravs
da qual as famlias possam atingir o mximo do seu bem estar67.
Uma sociedade civil, enquanto comunidade de cidados livres e iguaisfoi tambm expressa na Declarao Francesa de Direitos do Homem e do
Cidado em 1789. Nesta tradio, a sociedade civil, atravs das suas guildas,
associaes e partidos, opunha-se ao Estado e monarquia absoluta.
Em meados do sculo XIX Karl Marx define, como j referimos, o seu
conceito de relao entre sociedade e Estado.
66Idem.67Woldring, 1999, pp. 9-10.
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O conceito de sociedade civil surge em oposio ao Estado, ento visto
como um instrumento de luta de classes e um servo do capitalismo. Os
pensadores socialistas tinham como objectivo a eventual abolio do Estado ea formao de uma sociedade sem Estado68. Na prtica, contudo, o socialismo
nunca fragilizou o Estado, antes fortaleceu-o ao estender o seu controle sobre
a vida econmica e social.
Alexis Tocqueville69, avanou um outro olhar sobre a sociedade civil,
enquanto dimenso social que reage quando sente que a sua liberdade est
em perigo.
Quando o governo quer centralizar e controlar estes interesses, surge acentralizao administrativa, atravs da qual so retiradas muitas
responsabilidades aos cidados e muita vitalidade sociedade. Segundo
Tocqueville, as associaes privadas comeam a fundar-se em todos os
sectores da sociedade, precisamente, a partir do momento em que os
indivduos vm o Estado como um perigo para a sua liberdade e tm
conscincia, ao mesmo tempo, que associando-se podem fazer-lhe frente.
Nesta perspectiva, os interesses particulares so promovidos pelas
associaes privadas, as quais constituem a sociedade civil, caracterizada pela
j referida ordem horizontal.
Sendo a sociedade constituda por diferentes esferas de envolvimentohumano, cada uma com a sua especificidade prpria (a sua necessidade,a sua autonomia), a pluralidade funcional surge como uma forma de, deuma maneira fragmentada, se sustentar uma coerncia social, como umamais valia consubstanciada nas responsabilidades assumidas pelasociedade civil, para satisfazer necessidades de solidariedade e dedignidade individual e colectiva.
Em suma, a responsabilidade multiforme uma caracterstica da
sociedade civil que, atravs de associaes diferenciadas, afirma o seu lugar
na sociedade, pelos direitos e pelas responsabilidades que lhe so prprios
que, desde logo, a colocam em oposio ao individualismo e s ideias
centralistas de Estado.
68Geremek, 1992, p. 12.69Tocqueville, 1967, p. 52.
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2.5. Poltica Social: um conceito que integra caminhos de
cooperao
a) Primeiros caminhos de cooperao europeia
De acordo com o atrs referido, no decurso da Primeira Revoluo
Industrial, como reaco aos riscos e condies de vida degradantes,
despertaram na classe operria iniciativas onde eram postos em comum
motivaes, competncias e repartio de riscos. Abriam-se caminhos de
cooperao, associados a organizaes de defesa e entre-ajuda.A nvel da Europa desenvolveu-se igualmente o movimento mutualista,
relativamente ao qual, Lobo dvila70definiu trs sistemas:
Quadro 4 Sistemas que informaram o movimento mutualista europeu
1. Sistema Anglo-Americano: baseado no livre associativismo associaes
autnomas e abarcando previdncia, assistncia e cooperao. Este sistema
imps-se no s na Europa, mas igualmente nos Estados Unidos, Canad,
Argentina, Mxico e Chile.
2. Sistema Latino:baseado numa execuo de programas de forma partilhada com
o Estado no domnio legislativo e no apoio material. Os pases onde imperou foram
a Frana Societ SaintAnne71 a Blgica, a Itlia, Portugal, Inglaterra Friendly
Societies72e as Trade Unions e Sua.
3. Sistema Germnico: baseado num forte intervencionismo do Estado e com a
preocupao de instituir o Seguro Social Obrigatrio. Imps-se na ustria e, em
especial, na Alemanha onde, com Bismarck se instituiu, em 1883, o primeiro
sistema de Seguros Sociais obrigatrios da Europa, dirigido doena e aos
acidentes de trabalho, estabelecendo seguros de invalidez e velhice, prevendo a
instalao de agncias pblicas de emprego, etc. Na ustria foram institudos em
1885 os primeiros seguros operrios contra a doena e acidentes.
Fonte: Elementos adaptados de Rosendo, 1996, p. 236.
70Lobo dvila Lima, 1909, Socorros Mtuos e Seguros Sociais, dissertao apresentada na Universidade de
Coimbra, in: Rosendo, 1996, p. 236.71Fundada em Frana em 1694.72Existem registos sobre Friendly Societiescriadas, por franceses, em Inglaterra, no sculo XVI (1555), as quais sotidas como primeiras instituies de natureza vincadamente mutualista, Rosendo, 1996, p. 237.
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Em 1911 as Friendly Societies vieram a ser associadas gesto do
seguro Nacional de Sade, de carcter obrigatrio, prosseguindo, no entanto,
outras actividades de mutualismo, com base no antigo regime de voluntariado.Vieram, no entanto, a ser extintas em 1948, com a entrada em vigor do regime
de Segurana Nacional Plano Beveridge: que constituiu uma tentativa de
colectivizao das necessidades em regime de propriedade privada.As Trade
Unions inglesas, cujo objectivo era a luta de classes e a constituio de um
fundo comum para acorrer s situaes de greve, prosseguiram fins
compatveis com o ideal mutualista.
Em Frana, outras associaes se seguiram Societ SaintAnne, vindotodas a integrar-se no movimento mais vasto da Sociedades de Seguros
Mtuos. A Blgica, em Abril de 1851 reconhece a personalidade jurdica s
associaes criadas no seio dos movimentos socialistas e do catolicismo social
e a Itlia, em 1886, procedeu da mesma forma, relativamente s associaes
de socorros mtuos.
Em termos de reflexo poderemos referir que o terceiro sector e as suas
propostas alternativas s orientaes de poltica econmica e social,
emanaram assim de correntes, ora mais associativistas, ora mais
benemerentes e dirigidas ao colectivo, que proliferaram por toda a Europa e
que devero por isso ser circunscritos ao seu cariz solidrio e cooperante,
como o so todas as organizaes de solidariedade social. As suas
organizaes convergiram sempre ainda que duma forma reformista, reactiva,
ou pr-activa, no sentido de encontrar solues para os problemas dos
indivduos em situao de desvantagem social, afirmando-se, de forma
complementar, ou alternativa, em reas abandonadas pelo sector privado
lucrativo e pelo Estado.
A segunda revoluo industrial, a que aludiremos de seguida, trouxe, no
entanto, uma renovada conscincia da condio de pobreza, desafiando a
definio de novas regras de poltica social, no sentido de criar instrumentos
que revertessem a sua persistncia (e/ou aumento).
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b) Na segunda revoluo industrial: a definio de um Estado
providncia
A segunda revoluo industrial trouxe contributos para uma
reconceptualizao do Estado de bem estar social. Por um lado, a causa da
pobreza deixou de assentar no indivduo, para se situar nas tendncias do
sistema de mercado.
Por outro, as razes da pobreza passaram a focalizar-se no na
irresponsabilidade ou na incapacidade individual, mas num desajustamento
social73. Esta nova atitude perante a pobreza nas sociedades democrticas
tornou impraticvel a lei dos pobres do sculo XIX e ps em evidncia oprincpio da insegurana e a natureza e extenso das responsabilidades do
Estado. Responsabilidades que arrastavam consigo, entre outros, a
organizao de um corpo de administrao pblica forte, capaz de pr em
marcha um mecanismo de redistribuio; representou, por isso tambm a
ascenso de custos sociais, por forma a garantir a implementao de
mudanas estruturais, consubstanciadas numa poltica de bem estar.
O conceito de contingncias sociais surge assim altamente influenciado
pelas experincias da industrializao. Com o despertar destas novas
tendncias, o Estado organizado passa a dirigir o seu esforo para a
modificao das foras de mercado em trs direces74:
1. garantindo aos indivduos e famlias um rendimento mnimo;
2. dando capacidade aos indivduos e famlias para ultrapassar as
contingncias sociais;
3. assegurando que a todos os indivduos e famlias, sem distino
de classe ou de estatuto, fossem oferecidos os melhorespadres de servios.
De acordo com Briggs (2000), a partir da I Guerra Mundial, surgira um
novo perodo social caracterizado por novas ideias econmicas, novos pontos
de vista polticos e novos programas sociais que haviam sido j protagonizados
por Bismarck. O fundamento da nova economia era o Estado de bem estar e o
Estado deveria envolver-se no financiamento e administrao de esquemas de
segurana.
73Briggs, 2000, p. 26.74Idem, p. 18.
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Alis, se atentarmos no quadro 5, verificamos que foi entre finais do
sculo XIX e meados do sculo XX, que se deu a introduo progressiva do
seguro social obrigatrio por toda a Europa.
Quadro 5 Introduo do Seguro Social Obrigatrio na Europa
Pases Data
Alemanha 1883
ustria 1888
Hungria 1891
Luxemburgo 1901
Noruega 1909
Srvia 1910Gr-Bretanha 1911
Rssia e Romnia 1912
Bulgria 1918
Checoslovquia 1919
Portugal 1919
Polnia 1920
Grcia 1922
Litunia e Frana 1930
Espanha 1941
Fonte: Elementos retirados de ROSENDO, 1996
Como marcos de referncia do processo de implementao dos
sistemas de segurana social, numa dimenso europeia, poderemos ainda
referir:
em 1889, na primeira Conveno Internacional de Paris, criou-se
o Comit Permanent International des Assurances Sociales, ao
qual aderiram a ustria, Blgica, Dinamarca, Alemanha, Frana,
Austrlia, Sucia e Sua. A I Grande Guerra, 1914-1918, pstermo s suas actividades;
em 1927, na 10 Sesso do Bureau International du Travail, na
Conferncia Internacional das Federaes de Seguros Mtuos e
das Caixas de Seguro de Doena, foram aprovadas duas
convenes relativas ao Seguro de Doena;
em 1936, a referida Conferncia passa a denominar-se
Conferncia Internacional das Mutualidades e dos Seguros
Sociais (CIMAS) e na sequncia desta iniciativa foram criadas:
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o em 1947 a Associao Internacional de Segurana Social
AISS;
o em 1950 a Associao Internacional da Mutualidade AIM-que levou criao do Centro Internacional para a
Informao da Mutualidade. Os principais pases que
aderiram a esta iniciativa foram a Frana, Blgica, Itlia,
Luxemburgo e Sua, onde actualmente se encontra o
secretariado geral.
em 1952, o Comit Permanent International des Assurances
Sociales retoma as suas actividades, na Conveno n 102 da
Organizao Internacional do Trabalho, em que estabelecida a
norma mnima de segurana social. Na sua sequncia surgiram:
a Conveno Europeia dos Direitos do Homem; a Carta Social
Europeia; o Cdigo Europeu da Segurana Social (ratificado por
15 pases) e a Conveno Europeia da Segurana Social.
Mais de 100 anos passaram desde que Bismarck concebeu a poltica
social moderna e 50 desde que as bases do Estado providncia foram
lanadas na Europa dilacerada pela guerra75. Contudo, o Estado de bem estarna Europa assumiu, ao longo do sculo XX vrias formas assentes em regimes
polticos diferentes de onde decorrem interfaces tambm diferentes entre
pobreza, segurana social e poltica de pobreza. Na Escandinvia, a partir da
primeira grande guerra, apelava-se ao direito ao trabalho para todos,
subsidiando a entrada no mercado de trabalho. Era uma sociedade centrada no
trabalho, pelo que o debate em torno de um rendimento mnimo era marginal,
sendo o direito ao trabalho o principal argumento. No modelo nrdico os
aspectos mais salientes eram precisamente o favorecimento do emprego e o
facto de isentar as famlias de responsabilidades no que se refere ao bem estar
social76.
A estratgia alem, assentou na poltica bismarckiana, procurando
subsidiar a sada do mercado de trabalho ou at a no entrada e
prosseguindo uma poltica de desenvolvimento econmico77.
75Esping-Andersen, 2000, p. 79.76Idem, p. 83.77Leibfried, 2000, p. 192.
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No incorporava por isso uma tradio universalista, surgindo antes
estratgias compensatrias a institucionalizar os esquemas de segurana
social. Os pases anglo-saxnicos foram pondo nfase num modelo de bemestar social residual, assente em transferncias de rendimento.
Alis, sublinha Esping-Andersen (2000), as concepes de Lorde
Beveridge acerca do Estado previdncia surgiram da necessidade urgente de
consolidar a democracia e novas solidariedades sociais, sendo gradualmente
atribudo ao mercado maiores responsabilidades pelo bem estar social.
O sistema latino que vigora nos pases do sul da Europa ocidental
(Portugal, Espanha, Grcia, Itlia e Frana) rudimentar. Os programas de
segurana social so medidas de rendimento mnimo e no existe uma tradio
de apelo ao pleno emprego.
Sobretudo na Europa mediterrnica, uma caracterstica importante o
forte familiarismo, ou seja, a ideia de que as famlias tm uma maior quota
parte de responsabilidade pelo bem estar social dos seus membros, quer em
termos de partilha do rendimento, quer em termos da necessidade de
prestao de cuidados.
A participao activa em trabalhos associativos de mbito europeu,
proporcionou a partilha de experincias com vista a uma melhoria das aces
no domnio da proteco social em cada pas. Deu consistncia caminhada
para a criao do que denominamos caminhos de cooperao: organizaes
pblicas, ou privadas no lucrativas, que se caracterizavam pela sua forma de
produo de bem estar e que se estruturavam de forma a satisfazer
necessidades do colectivo (consubstanciadas de forma diferente das
organizaes baseadas na solidariedade, na cooperao e na reciprocidade que denominamos de espaos de solidariedade).
A problemtica da integrao europeia com a construo de uma Europa
Social coloca, no entanto, um conjunto de problemas, quando se trata de pr
em prtica um sistema de proteco social mais compatvel com os tipos de
economia, emprego e famlia em cada Estado nao. Se, por um lado, no
pode ignorar a grande diversidade existente entre sistemas de bem estar, por
outro, no pode centrar as suas preocupaes, exclusivamente, no Estadoprovidncia.
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Desde logo, porque se parte do pressuposto que o Estado de bem estar
social composto por uma articulao consistente de quatro esferas: Estado
providncia, mercado, sociedade civil e famlia.O mercado de trabalho e a famlia que no ps guerra constituram a
principal fonte de proteco social para a maioria dos cidados, so hoje fontes
geradoras de insegurana, de precariedade e muitas vezes de excluso social.
Logo, urge repensar a poltica social, de maneira que os mercados de
trabalho e as famlias se transformem, de novo, em factores de optimizao
das alternativas econmicas, para o desenvolvimento. Colocou-se assim novos
poltica social, para que seja capaz de conjugar as suas orientaes com asprticas j iniciadas de economia social, a que aludiremos na continuidade do
trabalho.
Os prprios direitos sociais, dados os imperativos econmicos
emergentes e a configurao de novos riscos, devero ser definidos como uma
base de garantia de oportunidades de vida78. Para combater significativamente
o desemprego generalizado devero estimular-se tambm reas abandonadas
pelo sector privado lucrativo, o que significa que temos que nos apoiar
igualmente nos servios pessoais ao consumidor e nos servios sociais79.
Teremos que avanar por duas regras fundamentais que desafiam a
poltica social:
a poltica social deve ser capaz de vitalizar e maximizar o
potencial produtivo da populao, como o investimento em
recursos humanos, capacidades e auto-suficincia;
a poltica social deve ser capaz de minimizar as necessidades
da populao em matria de subsdios de Estado e de
dependncia relativamente a eles.
78Espinge-Andersen, 2000, p. 82.79Idem, p. 102.
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2.6. Novos rumos na poltica social
A Economia Social uma fora nova e dinmica construda pela vontadedaqueles que nela participam, em se associarem livremente, para promoverem, demaneira solidria um projecto social relacionado com a economia
80.
Na continuidade do estudo at agora efectuado, podemosdizer que na
primeira metade do sculo XIX, as ideias trazidas pelas mutualidades,
movimentos cooperativos e associativos provocaram uma evoluo irreversvel
ao nvel da concepo de economia.
Os novos movimentos associativos, de cariz solidrio, os espaos de
solidariedade (como o mutualismo, o prprio sindicalismo e todo o tipo de
iniciativas que informam a chamada sociedade providncia81e que tm como
caracterstica a reciprocidade) e os caminhos de cooperao, (caracterizados
por fins no lucrativos, que acompanham a criao do Estado providncia e
so actualmente alimentados pela aco redistributiva do Estado), promoveram
novos projectos sociais, relacionados com a economia.
Melo (1998) sublinha mesmo que o termo economia social passou ento
a ser utilizado para designar uma determinada rea dos estudos econmicos,
que criticava a omisso da dimenso social no mbito da cincia econmica
dominante. Surge a scio-economia, enquanto disciplina cientfica e prtica
social, em cujo percurso cronolgico se integram, entre outros: Jean Charles
Sismondi (1773-1842), Frdric Le Play (1808-1882), Pierre Proudhon (1809-
1865), Charles Gide (1847-1932), Lon Walras (1843-1910) Lon Dehon
(1843-1925) e Victor Brants (1856-1917).
80Rberioux, 1984.81Adosinda Henriques (1993) define sociedade providncia como um fenmeno de auto-organizao no interior dasociedade civil que compensatrio de insuficincias gerais reconhecidas na sociedade formal... (p. 375).
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Quadro 6 - Economia social: iderios filosficos
I - A recusa da noo de homo aeconomicus
Sismondi1773-1842
Frdric Le Play1808-1882 (Frana)
Sismondi publica em 1819 os Nouveaux principes dconomiepolitique, onde privilegia a repartio equitativa da riqueza. Comocontraproposta s teorias da mo invisvel, ele avana comfundamentos de uma poltica econmica ao servio do bem estarcolectivo:
1. Utilizou a expresso economia social na Exposio Universal deParis de 1985 ao analisar os fenmenos econmicos ligados aoconsumo das famlias;
2. Lanou as bases do movimento de Reforma Social ligada doutrina social da Igreja.
Charles Gide1847-1932 (Frana)
1. Na exposio de Paris de 1900, apresentou um relatrio Palais delEconomie Sociale;
2. Impulsionou o movimento cooperativista escala mundial, a partirda Escola Cooperativista de Nmes, que fundou.
II Diviso da Economia em (i) Economia pura, (ii) economia aplicada e (iii) economiasocial
Lon Walras1834-1910
1. No livro tudes dconomie Sociale (1896), defende anacionalizao de todas as actividades onde possa havermonoplio;
2. Pretendeu edificar uma doutrina capaz de conciliar o liberalismo,que assegura a expanso da produo, com o socialismo que apretende realizar na prtica.
III Eventos de referncia
Victor Brants1856-1917
Enquanto professor da Universidade de Leuven, fundou em 1881 aSociedade Belga da Economia Social
Em 1885-1886, em Leuven foi levada a cabo a Conferncia daEconomia Social
Lon Dehon1843-1925
Funda a Congregao dos Sacerdotes do Corao de Jesus Dehonianos
IV A Economia Social no Direito Francs
1. 1980 publicada em Frana a Carta de Economia Social.2. A Economia social entra no direito francs em 1981, para designar as associaes cujas
actividades de produo se assimilam s cooperativas e s mutualidades.
Fonte: Elementos adaptados de Rosendo, 1996.
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Walras (1865) define a vida scio econmica como a produo dos
rendimentos consumveis que faz viver a sociedade e leva capitalizao do
excedente da produo sobre o consumo dos rendimentos82
. A economiapoltica enquadraria assim no seu domnio as associaes populares que, por
sua vez se teriam de submeter aos princpios da cincia econmica.
A formao e o crescimento do capital social deveria ser da inteira
responsabilidade das referidas instituies, sendo a interveno do Estado
meramente do plano legislativo. O autor define ainda progresso econmico
como a participao de todos os indivduos em todos os tipos de riqueza,
nomeadamente o facto dos trabalhadores integrarem o grupo dos proprietrios
da terra ou dos capitalistas. E avana, referindo dois factos sobre os quais roda
toda a histria econmica da sociedade humana que so a produo agrcola,
industrial e comercial da riqueza e a sua distribuio entre os indivduos e o
Estado, atravs da propriedade e do imposto. A produo deveria ser
abundante e suficiente, tendo em conta as necessidades a satisfazer e a
distribuio deveria ser equitativa, capaz de satisfazer expectativas.
Integrado na escola liberal, Walras defendia duas vias para a
prossecuo do progresso econmico: a criao de associaes populares, oude sociedades de cooperao, de iniciativa individual, privadas, autnomas e
sem qualquer interferncia do Estado e a reforma do imposto, este sim, exigia
a interveno directa do Estado e seria de iniciativa colectiva. A iniciativa
privada deveria integrar quer sociedades de cooperao, quer sociedades de
garantia mtua. Estas ltimas, fundadas sobre o princpio da responsabilidade
proporcional integral, considerava-as como uma derivante pura e simples das
sociedades annimas, fundadas sobre o princpio da responsabilidade
proporcional limitada. Neste domnio, foi importante o seu contributo atravs daproposta de um projecto de lei para o que denominava sociedades de
responsabilidade proporcional. De relevar ainda a sua participao, em 1865,
na criao das caixas para as associaes populares, cujo objectivo era fazer
emprstimos s sociedades e grupos de associaes de crdito, de produo e
de consumo e constitudas sobre as bases de garantia mtua, ou de
responsabilidade solidria.
82Walras, 1865, p. 21.
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Esta iniciativa havia j sido experimentada por Proudhon (1809-1865)
que preconizara encontrar uma via mediana entre capitalismo e socialismo,
atravs da iniciativa mutualista. Na teoria proudhoniana o Estado no deveriaser centralizado (como no sistema dos pases capitalistas), nem concentrador
(como nos pases socialistas de ditadura proletria), mas um Estado
federalista. Metamorfoseado pela aco dum pluralismo poltico
descentralizado graas auto-administrao das colectividades polticas de
base e limitado pelo reconhecimento duma constituio scio-econmica que
fixava os direitos prprios da sociedade econmica de base83. Desenvolver-se-
ia assim uma complementaridade entre a tcnica econmica pluralista omutualismo e a tcnica poltico-pluralista o federalismo. O carcter mtuo
seria mesmo o grande remdio da questo social, a sua soluo prtica. E foi
este posicionamento que influenciou a sua reflexo sobre a questo do crdito
mtuo e popular. Proudhon imaginou um banco de troca que assentasse no
crdito mtuo e gratuito e que organizasse a circulao da riqueza, pois s um
organismo como este poderia apoiar a associao mutualista, lutando contra os
intermedirios.A fundao em 31 de Janeiro de 1849 da Banque du Peuple P. J.
Proudhon et Cie foi a operacionalizao do seu projecto. Este banco,
constitudo sem capital e sem fins lucrativos, procurava organizar entre
produtores o crdito mtuo e a troca recproca de produtos84.
Proudhon, afirmava, desta forma a sua teoria sobre mutualidade,
enquanto sistema de progresso e de eficcia, no qual os indivduos
trabalhariam uns para os outros, concorrendo para um bem comum e cujobenefcio seria partilhado entre si a economia social constitua-se assim como
projecto de construo de instituies autnomas que assegurariam
directamente o mundo do trabalho.
83Proudhon, 1967, p. 18.84Vallat, 1999, p. 244.
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Quadro 7 Correntes tericas que influenciaram a economia social enquanto disciplinacientfica e prtica social
Escolas Autores Filosofia
Socialista/Socialistasutpicos
P.J. PROUDHON(1809-1865)
Defendeu os princpios da mutualidade, no quese refere associao dos homens perante asexigncias da produo, o mercado deprodutos, as necessidades de consumo e asegurana dos trabalhadores.
Robert OWEN(1771-1825),
H. SAINT - SIMON(1760-1825),
C. FOURIER(1772-1837)
Defendem o factor trabalho, em vez do factorcapital e preconizam uma organizao socialbaseada em pequenas unidades sociaisautnomas, como as cooperativas de produo
e de consumo. Preconizavam ainda a aboliodo lucro.
Benot MALON,(1841-1893)
Publicou o Tratado da Economia Social (1883),em Frana.
Social Cristianismo Frdric LE PLAY(1806-1882)
Cria a Sociedade de Economia Social em 1856e organiza a Exposio Universal de EconomiaSocial em 1867.
Liberal
John Stuart MILL(1806-1873)
Charles DUNOYER(1786-1862)
Frdric PASSY(1822-1912)
Lon WALRAS(1834-1910)
Teve uma influncia determinante napromulgao em 1852 da primeira lei mundialque regulamentava especificamente o
fenmeno cooperativo.
Defendem a criao de entidadesindependentes, privadas, negando qualquerinterferncia do Estado.
Fundou em 1886 a revista Le Travail, sobre oassociativismo cooperativo. Para Walras ascooperativas tm um papel moral ao introduzira democracia nos mecanismos de produo.
Solidria
Charles GIDE(1847-1932)
sector da economia social...conjunto formado
por diversas organizaes, como cooperativas,ou outros, que incorporam critrios defuncionamento solidrio:- desenvolveram o princpio do cooperativismo.
M. LonBOURGEOIS(1851-1925)
Definiu os princpios da doutrina solidarista:1 a nao deve ser uma grande sociedade desocorros mtuos (segurana contra os riscos);2 a sociedade deve assegurar um mnimo deexistncia (o direito vida);3- todos devem ter acesso ao ensino gratuitoem qualquer grau (o capital intelectual deve serum bem comum.
Fonte: Elementos adaptados de M