costa & gouvÊa, elites e historiografia (resenha)

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8/3/2019 COSTA & GOUVÊA, Elites e Historiografia (resenha) http://slidepdf.com/reader/full/costa-gouvea-elites-e-historiografia-resenha 1/5 251 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 28: 251-255 JUN. 2007 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 28, p. 251-255, jun. 2007 Luiz Domingos Costa ELITES E HISTORIOGRAFIA: QUESTÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS RESENHAS Recebida em 20 de Abril de 2007. Aprovada em 25 de Junho de 2007. Julio Cesar Gouvêa HEINZ, Flávio M. (org.). 2006. Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. Na introdução de seu trabalho sobre a elite política imperial brasileira, José Murilo de Carvalho (2003, p. 20) comentou: “Se é verdade que a historiografia tende a magnificar esse papel [das elites], seria ingênuo achar que se pode resolver o problema reformando a historiografia”. Tal afirmação refere-se a uma certa resistência, ora maior, ora menor, aos estudos de elites políticas na historiografia e nas Ciências Sociais no Brasil. De fato, a proeminência adquirida pelos estudos que creditam às elites o papel de ator político (e, em certa medida, de “ator histórico”) fundamental, ao longo do século XX, foi responsável pelo advento de inúmeros trabalhos e perspectivas críticas a esse tipo de narrativa (GRYNSZPAN, 1996; BOBBIO, 2002). A simplificação de um rico debate teórico ocorrido nas Ciências Sociais e na História 1 em torno dos mode- los de análises centrados nas elites gerou, com o passar do tempo, resistência aos novos estudos sobre elites e ao diálogo com esse tipo de trabalho. Para muitos autores, hoje em dia, o recurso às elites para investigar qualquer dimensão da nossa história muitas vezes é o indício de que algo está errado na análise. As críticas são diversas. De um lado, partem os apontamentos de que o conjunto de trabalhos situados nesse  front faz um recorte que desconsidera ou dá pouco peso à outra ponta da realidade social, ou seja, à vida sócio-política dos “de baixo”, aos movimentos sociais, ao associativismo ou a qualquer que seja a manifestação situada fora do universo das elites. De outro lado, o argumento de que o estudo das elites é uma continuação da genealogia da Teoria das Elites, fundada sobre pressupostos por vezes morais dos elitistas clássicos (Pareto, Mosca e Michels). Portanto, não raro, os estudiosos que tomam as elites como objeto são tachados de “elitistas” em um sentido pejorativo, como se tivessem uma inclinação para explicar a história, a política ou a sociedade única e exclusivamente pelos feitos dos “grandes homens”. Entretanto, críticas como essas são, via de regra, despro- vidas de conteúdo sociológico, tocando em pontos cegos ou em opções opostas de encarar a realidade, abstendo-se de um debate mais sistemático, interno e metodológico sobre questões e problemas que devem ser confrontados do ponto de vista conceitual e empírico. Talvez o ponto menos considerado pelos críticos é exatamente aquilo que mais se tem observado nas últimas décadas: o refinamento metodológico adquirido pelos estudos sobre elites desde a década de 1960. Nesse contexto, a coletânea organizada por Flávio Madureira Heinz, sob o título de Por outra história das elites, é uma importante contribuição justamente por enfatizar as dimensões metodológicas dos estudos de elites. A partir de um registro historiográfico – que não se furta a diversas alusões às Ciências Sociais – o livro oferece ao leitor um conjunto de possibilidades analíticas surgidas mediante a aplicação da metodologia das biografias coletivas a grupos de elites. Além disso, trata-se de importante contribuição para esse campo do conhecimento no Brasil, visto que até então não havia trabalhos publicados em português que dessem um tratamento mais detido aos aspectos internos a essas análises. O livro é composto por duas partes: uma primeira, com três capítulos, dedicada ao balanço dos estudos historiográficos de elites e aos seus aspectos metodológicos, e uma segunda parte, composta por seis estudos monográficos sobre diversos grupos de elites de diferentes locais e em diversos momentos históricos. Antes dessas duas partes há uma introdução geral do organizador que ilustra bem o espírito do livro: retirar a carga moral ou normativa típica do termo “elite”, procurando atribuir-lhe um significado mais sociológico, de modo a enfatizar as vantagens decorrentes de um conceito desprovido de quaisquer que sejam as valorações 1 Nas Ciências Sociais, por exemplo, os debates entre autores marxistas e elitistas e entre diversos tipos de modelos elitistas (como o “elitismo monista” versus o “elitismo pluralista”). Na História, sobretudo os debates em torno da Revolução Francesa. Para resumos desses debates, conferir Bobbio (2002) e Hunt (2007), respectivamente.

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 28: 251-255 JUN. 2007

    Rev. Sociol. Polt., Curitiba, 28, p. 251-255, jun. 2007

    Luiz Domingos Costa

    ELITES E HISTORIOGRAFIA:

    QUESTES TERICAS E METODOLGICAS

    RESENHAS

    Recebida em 20 de Abril de 2007.Aprovada em 25 de Junho de 2007.

    Julio Cesar Gouva

    HEINZ, Flvio M. (org.). 2006.Por outra histria das elites. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas.

    Na introduo de seu trabalho sobre a elite poltica imperial brasileira, Jos Murilo de Carvalho (2003, p. 20)comentou: Se verdade que a historiografia tende a magnificar esse papel [das elites], seria ingnuo acharque se pode resolver o problema reformando a historiografia. Tal afirmao refere-se a uma certa resistncia,ora maior, ora menor, aos estudos de elites polticas na historiografia e nas Cincias Sociais no Brasil.

    De fato, a proeminncia adquirida pelos estudos que creditam s elites o papel de ator poltico (e, em certamedida, de ator histrico) fundamental, ao longo do sculo XX, foi responsvel pelo advento de inmeros

    trabalhos e perspectivas crticas a esse tipo de narrativa (GRYNSZPAN, 1996; BOBBIO, 2002).A simplificao de um rico debate terico ocorrido nas Cincias Sociais e na Histria1 em torno dos mode-

    los de anlises centrados nas elites gerou, com o passar do tempo, resistncia aos novos estudos sobre elitese ao dilogo com esse tipo de trabalho. Para muitos autores, hoje em dia, o recurso s elites para investigarqualquer dimenso da nossa histria muitas vezes o indcio de que algo est errado na anlise. As crticas sodiversas. De um lado, partem os apontamentos de que o conjunto de trabalhos situados nessefrontfaz umrecorte que desconsidera ou d pouco peso outra ponta da realidade social, ou seja, vida scio-poltica dosde baixo, aos movimentos sociais, ao associativismo ou a qualquer que seja a manifestao situada fora douniverso das elites. De outro lado, o argumento de que o estudo das elites uma continuao da genealogia daTeoria das Elites, fundada sobre pressupostos por vezes morais dos elitistas clssicos (Pareto, Mosca eMichels). Portanto, no raro, os estudiosos que tomam as elites como objeto so tachados de elitistas em umsentido pejorativo, como se tivessem uma inclinao para explicar a histria, a poltica ou a sociedade nica e

    exclusivamente pelos feitos dos grandes homens. Entretanto, crticas como essas so, via de regra, despro-vidas de contedo sociolgico, tocando em pontos cegos ou em opes opostas de encarar a realidade,abstendo-se de um debate mais sistemtico, interno e metodolgico sobre questes e problemas que devemser confrontados do ponto de vista conceitual e emprico.

    Talvez o ponto menos considerado pelos crticos exatamente aquilo que mais se tem observado nasltimas dcadas: o refinamento metodolgico adquirido pelos estudos sobre elites desde a dcada de 1960.Nesse contexto, a coletnea organizada por Flvio Madureira Heinz, sob o ttulo de Por outra histria daselites, uma importante contribuio justamente por enfatizar as dimenses metodolgicas dos estudos deelites. A partir de um registro historiogrfico que no se furta a diversas aluses s Cincias Sociais o livrooferece ao leitor um conjunto de possibilidades analticas surgidas mediante a aplicao da metodologia dasbiografias coletivas a grupos de elites. Alm disso, trata-se de importante contribuio para esse campo doconhecimento no Brasil, visto que at ento no havia trabalhos publicados em portugus que dessem um

    tratamento mais detido aos aspectos internos a essas anlises.O livro composto por duas partes: uma primeira, com trs captulos, dedicada ao balano dos estudos

    historiogrficos de elites e aos seus aspectos metodolgicos, e uma segunda parte, composta por seis estudosmonogrficos sobre diversos grupos de elites de diferentes locais e em diversos momentos histricos.

    Antes dessas duas partes h uma introduo geral do organizador que ilustra bem o esprito do livro: retirara carga moral ou normativa tpica do termo elite, procurando atribuir-lhe um significado mais sociolgico, demodo a enfatizar as vantagens decorrentes de um conceito desprovido de quaisquer que sejam as valoraes

    1 Nas Cincias Sociais, por exemplo, os debates entre autores marxistas e elitistas e entre diversos tipos de modeloselitistas (como o elitismo monista versus o elitismo pluralista). Na Histria, sobretudo os debates em torno daRevoluo Francesa. Para resumos desses debates, conferir Bobbio (2002) e Hunt (2007), respectivamente.

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    normativas: as elites so definidas pela deteno de um certo poder ou ento como produto de uma seleosocial ou intelectual, e o estudo das elites seria um meio para determinar quais os espaos e mecanismos dopoder nos diferentes tipos de sociedade ou os princpios empregados para o acesso s posies dominantes(HEINZ, 2006, p. 8). Tal perspectiva, somada ao recurso metodolgico das biografias coletivas, foram osresponsveis pelo grande sucesso desse tipo de pesquisa entre os historiadores. Essa combinao possibili-

    taria, segundo o autor, realizar uma anlise mais fina dos atores situados no topo da hierarquia social,[permitindo compreender] a complexidade de suas relaes e de seus laos objetivos com o conjunto ou comsetores da sociedade. Assim, os historiadores fazem sociologia no passado (idem, p. 8-9). Portanto, aoretirar a carga normativa presente no termo elite e ao somar a metodologia das biografias coletivas, o estudodas elites pode oferecer umponto de partida muito profcuo para a pesquisa histrica.

    Essa perspectiva familiar quela adotada nos dois captulos de Christophe Charle que abrem o livro e aprimeira parte (Histria das elites e mtodo prosopogrfico), um dedicado ao inventrio da historiografiadesde meados da dcada de 1960 e outro dedicado aos aspectos metodolgicos da prosopografia. No primeirodeles, bastante informativo da evoluo dessa literatura (sobretudo francesa), interessante perceber como apassagem de uma etapa outra marca mudanas metodolgicas importantes: mudam os tipos de recortesespaciais (em termos de tamanho dos universos e dos grupos sociais entendidos como elites) e temporais,havendo uma reduo dos perodos analisados. Mas entre as diferentes etapas tambm se verificam distintas

    nfases nas questes tratadas, ora mais polticas, preocupadas com os regimes polticos, ora mais sociolgi-cas, preocupadas com problemas de mobilidade social ou reconverso de grupos sociais.

    O que se destaca, entretanto, como essa perspectiva de estudos de elites pretende-se ao mesmo tempoprecisa (dotada de consistncia cientfica) e suficientemente aberta para ser utilizada em diversos tipos deinvestigaes. Vale dizer, uma definio genrica de elite (conforme apresentada acima) o que lhe confereutilidade, no sentido de ser consideravelmente aberta para o estudo de diversos tipos de elites (sociais,polticas, culturais, sindicais). Paralelamente, pode ser empregada mediante critrios claros, levando a recortesbem definidos que acabam conferindo consistncia emprica anlise. Tal abordagem permite um tratamentosociolgico das elites, enfocando os condicionantes sociais e polticos de sua constituio. Seria uma aborda-gem que no deixa perder de vista o contexto scio-histrico nas quais se inserem, por um lado, e que se afastea viso elitista que enfatiza o seu papel enquanto ator histrico primordial, por outro2.

    A elaborao e o aprimoramento da metodologia das biografias coletivas ou prosopografia3 fez que a

    abordagem se tornasse mais sistemtica e padronizada. A definio de Christophe Charle demonstra bem isSo:Seu princpio consiste em definir uma populao a partir de um ou vrios critrios e estabelecer, a partir dela,um questionrio biogrfico cujos diferentes critrios e variveis serviro descrio de sua dinmica social,privada, pblica, ou mesmo cultural, ideolgica ou poltica, segundo a populao e o questionrio em anlise(CHARLE, 2006, p. 41).

    Alm disso, com o advento da computao estatstica foi possvel um avano considervel no tratamentodos dados, ampliando o cruzamento de dados e as comparaes com outras anlises. Esses fatos tiveram comodesdobramento um acmulo maior de conhecimento sobre os grupos histricos na segunda metade do sculoXX.

    Pode-se dizer, ento, que o primeiro ponto interessante do livro associar de uma forma muito sugestiva edidtica uma conceituao mais ou menos ampla ou aberta de elite e a metodologia das biografias coletivas.Cabe observar, antes de entrarmos nesse ponto, que tal associao, proposta nos termos do fornecimento deum caminho, de proposies para pesquisadores que venham a trilhar uma pesquisa sobre elites, adquireespecial importncia no contexto acadmico brasileiro, no qual h uma lacuna flagrante em i) material documen-tado e abundante sobre as elites polticas, econmicas ou intelectuais; ii) uma tradio ou uma lista razovel deestudos sobre as elites nacionais; e, como conseqncia da segunda, iii) um debate mais refinado sobre o

    2 uma perspectiva muito parecida com alguns estudos de elites que ficaram conhecidos no Brasil, tais como Miceli (1986)e Carvalho (2003).

    3 Que teve a formulao de referncia feita por Lawrence Stone: investigao das caractersticas comuns do passado deum grupo de atores na histria atravs do estudo coletivo de suas vidas (Stone apudHEINZ, 2006, p. 9). O mtodoempregado consiste em definir um universo a ser estudado e ento a ele formular uma srie de questes padronizadas.

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    rendimento e os limites deste tipo de estudo para as Cincias Sociais e a Histria.

    Outras idias interessantes ainda so dignas de observao. Uma delas um eventual vis presente emalgumas fontes biogrficas (oficiais, memoriais ou afins), que poderia expressar-se nas concluses sobre osgrupos analisados. Entretanto, Charle afirma que o mtodo no pode ser usado sem medida e ser o fim ltimo

    da anlise histrica, devendo haver um esforo de cotejo com outras fontes e de uma contextualizao dessesdados dentro de processos histricos mais amplos4. Alm disso, como nesse tipo de pesquisa o pesquisadortem um controle muito elevado sobre a formulao do universo e das questes utilizadas, deve ter igualcapacidade de controlar e testar as fontes disponveis.

    H tambm um argumento em favor das prosopografias comparadas, procurando testar modelos de anli-ses feitas em lugares distintos e permitindo que se inicie alguma generalizao em torno das questes obser-vadas sobre as elites de diversos locais.

    Pesquisas empricas que colocam em prtica essa metodologia so os objetos dos captulos presentes nasegunda parte do livro (Ensaios prosopogrficos), a comear pelo artigo de Joseph Love e Bert Barickman(Elites regionais), que realiza uma juno de trs trabalhos sobre as elites polticas regionais dos estados deSo Paulo, Minas Gerais e Pernambuco no perodo 1889-19375. Em um esforo de incorporar novas questesaos dados coletados nos fins da dcada de 1960 e comeo da de 1970, aparece um interessante exerccio de

    comparao entre as elites polticas dos trs estados, por um lado, e de anlise conjunta dos trs grupos (queos autores denominam de elite ampliada), por outro lado. Tal procedimento permite, ao final do texto, algumascomparaes com dados a respeito de elites polticas nacionais de diversos pases, que apontam para arealizao da sugesto de Charle a respeito da prosopografia comparada.

    O trabalho seguinte, A elite nacional, da autoria de Michael L. Conniff, uma tentativa de realizar umaanlise longitudinal dos ocupantes de cargos executivos no Brasil no perodo 1930-1983, mediante uma amos-tra de 5% de verbetes doDicionrio histrico-biogrfico brasileiro . Em que pese certa ausncia de detalhessobre os procedimentos adotados para a composio da amostra, o texto demonstra algumas mudanasocorridas no perfil de parcela da elite poltica brasileira com o passar dos regimes polticos e com o aumento doeleitorado ao longo do perodo. Atesta, por exemplo, que essa elite passou a ter sua base de recrutamento maisdiversificada, abrindo espao para os estratos scio-econmicos mdios, indicando uma lenta diversificaoda base social da elite e tambm uma profissionalizao maior da atividade poltica.

    O captulo de Heinz j se destina a analisar um outro tipo de elite: os dirigentes sindicais da ConfederaoRural Brasileira e da Sociedade Rural Brasileira entre 1930 e 1960. um captulo que lana luz sobre as identida-des profissionais, os vnculos regionais e os laos sociais entre os seus membros, bem como essas dimensesconectam-se com a organizao e com a representao poltica de interesses privados.

    Marcela P. Ferrari traz um perfil das elites polticas da provncia de Crdoba durante o perodo de 1916-1930.Ao traar, de maneira muito integrada e inteligvel, o perfil educacional, profissional e de trajetria polticadesse grupo, a autora demonstra que, por mais que o recrutamento d-se em determinados nichos dasociedade, isso no o suficiente para entender o surgimento desses atores no universo poltico-institucional.Assim, argumenta, na corrente de uma vasta literatura da Sociologia Poltica6, que a insero poltica prvia (amilitncia partidria e a influncia regional) so momentos de fundamental importncia para o acesso e otrfego em meio s instituies polticas mais disputadas.

    O trabalho seguinte reporta-se a uma elite poltica em nvel municipal. Trata-se do estudo de Paul-AndrLinteau a respeito da representao poltica em Montreal. O autor destaca a confluncia dos fatores que

    4 Nesse sentido, Miceli sustenta que uma utilizao crtica desses vieses presentes nas fontes biogrficas deve servir parauma anlise da expresso de poder de determinados grupos no interior do Estado e da sociedade (MICELI, 2001, p. 346).

    5 Cabe notar que as pesquisas originais que embasam esse trabalho (WIRTH, 1977; LEVINE, 1978; LOVE, 1982) figuramcomo trs trabalhos consagrados dos estudos regionalistas, que procuram interpretar os problemas da federao median-te os estudos das dimenses sociais, econmicas e polticas dos estados. As descries das elites nesses contextos ocupampapel central nas anlises. Esses trs trabalhos partilham de questes comuns e uma metodologia muito prxima (quaseidntica). Ademais, os trs brasilianistas fizeram as pesquisas praticamente de maneira conjunta, durante o mesmo perodoe com um esforo de coordenao integrada (cf. HEINZ, 2003, p. 181).

    6 Sobretudo autores como Giddens (1974), Putnam (1976) e Norris (1997).

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    levaram a graduais mudanas no perfil dos polticos dessa cidade, analisando as variveis tnicas e lingsti-cas, ao lado de transformaes ocorridas com o advento da industrializao e da formao do sindicalismooperrio.

    Por fim, o captulo que fecha a coletnea uma anlise dos redatores-chefes de jornais de Quebeque entre

    1850 e 1920. Fernande Roy e Jocelyn Saint-Pierre demonstram como as mudanas ocorridas no interior dosorganismos de imprensa a inteno de retirar o carter poltico dos rgos de imprensa, transformando-os emprodutores de notcias para a sociedade como um todo foi responsvel pela profissionalizao das cpulasdas redaes, as quais passaram a ser ocupadas no por seus proprietrios, mas por jornalistas com experin-cia. Mostra tambm que, ainda que essa reorganizao tivesse como foco a profissionalizao e a diferenciaoda esfera da imprensa em relao s demais esferas sociais, as conexes com o mundo poltico no deixaram deexistir, visto que esses dirigentes no raro passavam a ocupar cargos pblicos.

    Olhando os trabalhos em perspectiva comparada, dois aspectos chamam a ateno. Em primeiro lugar, ostipos e os recortes de universos estudados variam entre os autores, o que se coaduna com uma viso maisgenrica de elite, abrindo possibilidades para o estudo de grupos situados mesmo fora das esferas do poderformal. Em segundo lugar, a convergncia nos repertrios de questes utilizados para traar os perfis daselites. Aqui, vemos que praticamente todos os artigos, mesmo tratando de universos muito diferentes, lidamcom variveis e indicadores muito parecidos e, em alguns casos, iguais. Variveis como origem social, carreirapoltica e carreira profissional esto presentes em todos os ensaios prosopogrficos. Essas variveis socompostas por indicadores muito variados (local de nascimento, nvel de escolaridade, formao escolar,ocupao e atividade poltica), que dependem do tipo de universo e do escopo de questes levantadas.Quando o caso, aparecem origem tnica, mobilidade geogrfica, filiao partidria e cargos polticos ocupa-dos7.

    De um ngulo mais geral, o livro organizado por Heinz bastante ilustrativo das dificuldades tcnicas e dosdetalhes inerentes aos estudos prosopogrficos de elites. Tambm apresenta uma grande quantidade deinformaes catalogadas e sistematizadas sobre diversos tipos de elites (nacional, regional, municipal, profis-sional, sindical) situadas em pontos distintos no tempo e espao. Isso no pouco, principalmente paraaqueles que se defrontam com a ausncia de dados sistemticos sobre os agentes sociais em seus estudos.

    No obstante, essas vantagens no so utilizadas de maneira satisfatria para uma abordagem mais abstra-

    ta, que seja capaz de enfrentar questes tericas mais sofisticadas e que sabemos permear esse tipo detrabalho. Assim, ao surgir como uma abordagem alternativa a conceitos e explicaes baseados em grandescontingentes (operariado, camponeses, burguesia) (CHARLE, 2006, p. 43), os estudos de elites devem incor-porar as questes tericas que seus resultados ensejam. H passagens que indicam tais questes, mas queforam apenas enunciadas de modo sumrio. Com algumas excees muito pontuais, os artigos desconsideramproblemas tericos fundamentais, tais como a relao entre elite poltica e classe economicamente dominante.

    Christophe Charle aponta em uma nota de rodap (idem, p. 22) que tem outros trabalhos em que sustentauma utilizao pragmtica do conceito de elite, sem que isso descarte as anlises em termos das classessociais. Essa uma dificuldade conceitual e terica que ainda no foi muito bem debatida: como unificar demaneira correta duas perspectivas to distintas do ponto de vista de suas matrizes tericas?

    Isso particularmente evidente em anlises que procuram relacionar transformaes na estrutura social emudanas de regime poltico. A perspectiva classista por vezes tem dificuldades para explicar problemas de

    natureza mais conjuntural, creditando as causas ltimas de eventos polticos s posies das classes noprocesso de produo, obscurecendo os nexos histricos entre as classes (elemento terico) e os fatospolticos concretos. De outro lado, explicar as mudanas polticas a partir somente do voluntarismo daselites seria uma ingenuidade e uma recusa de considerar-se os traos estruturais da sociedade. Esse tipo deproblematizao passa ao largo da maioria dos captulos do livro.

    Por exemplo, em seu captulo, Love e Barickman argumentam em favor da tese da homologia das elitespolticas e da classe economicamente dominante, sustentando que a maioria da elite poltica brasileira era

    7 Aqui, os trabalhos enquadram-se perfeitamente na tradio dos estudos de elites: traar um perfil bsico dos seusmembros, como origem regional, de estratos sociais e progresso profissional, combinado com questes mais particulares,dependentes das especificidades dos objetos e das questes de cada estudo.

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    CHARLE, C. 2006. Histria das elites e mtodo prosopogrfico.In: HEINZ, F. M. (org.).Por outra histria daselites.Rio de Janeiro : Fundao Getlio Vargas.

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    GRYNSZPAN, M. 1996. A Teoria das Elites e sua genealogia consagrada.BIB, Rio de Janeiro, n. 41, p. 35-84.HEINZ, F. M. 2003. Entrevista com Joseph L. Love.Estudos Histricos , Rio de Janeiro, n. 32, p. 165-177.

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    WIRTH, J. D. 1977.Minas Gerais in the Brazilian Federation, 1889-1937. Stanford : Stanford University.

    recrutada entre famlias proprietrias ou mantinham com elas fortes laos sociais. Tal argumento tem implica-es tericas de tamanha grandeza que talvez merecesse uma apresentao menos sinttica.

    De qualquer forma, o livro convida-nos para o estudo sistemtico das elites nas sociedades do passado edo presente. Como se viu, tal perspectiva tem a vantagem de ser extremamente rigorosa do ponto de vista

    metodolgico. Entretanto, ao sugerir mais ateno para os problemas de constituio e morfologia dos grupos,tal abordagem corre o risco de ser refm de uma sociografia dos grupos sociais, fechada em uma anlise queno se permite o exerccio sociolgico do teste de teorias luz de pesquisas empricas. No se pode perder devista que uma Sociologia emprica dos grupos sociais deve servir de base justamente para uma problematizaoconceitual e terica geral na qual est inserida.

    Luiz Domingos Costa ([email protected]) mestrando do Programa de Ps-Graduao em CinciaPoltica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

    Julio Cesar Gouva ([email protected]) mestrando do Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica daUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS