contribuições teóricas ao estudo psicopolítico da ideologia
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ideologia, naturalização, negação dos conflitos, poder, universalização.TRANSCRIPT
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Teora y Crtica de la Psicologa 6 (2015), 77-101. http://www.teocripsi.com/ojs/ (ISSN: 2116-3480)
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Contribuies Tericas ao
Estudo Psicopoltico da Ideologia
Aportes Tericos para el Estudio Psicopoltico de la Ideologa
Theoretical Contributions to the Psychopolitical Study of Ideology
Bruna Suruagy do Amaral Dantas
Universidade Presbiteriana Mackenzie (Brasil)
Resumo. A despeito da relevncia e da centralidade do conceito de
ideologia na obra de Ignacio Martn-Bar, o autor no formulou uma
definio precisa do termo nem elaborou uma teoria sistemtica e
especfica sobre a questo ideolgica. A fim de assegurar uma melhor
compreenso da concepo de ideologia desenvolvida por Martn-Bar,
o artigo aqui apresentado sistematiza e analisa os fundamentos tericos de sua obra relacionados ao conceito. Partindo dos
pressupostos do materialismo histrico dialtico, o autor concebe a
ideologia como falsa conscincia que coloniza as mentes, domestica os
corpos, neutraliza os afetos e enquadra a percepo da realidade. Os
sistemas ideolgicos tornam-se instrumentos de poder quando se enrazam nas mentalidades, fazendo parte da dimenso subjetiva e
cognitiva de cada indivduo. Alm de examinar o conceito de ideologia,
o presente texto discorre sobre os mecanismos ideolgicos universalizao de interesses particulares, negao das contradies
sociais e naturalizao do presente que proporcionam a perpetuao da ordem e do poder.
Palavras-chave: ideologia, naturalizao, negao dos conflitos,
poder, universalizao.
Resumen. A pesar de la relevancia y la centralidad del concepto de
ideologa en la obra de Ignacio Martn-Bar, el autor no formul una definicin precisa del trmino ni desarroll una teora sistemtica y
especfica sobre la cuestin ideolgica. Con el fin de garantizar una
mejor comprensin de la concepcin de ideologa desarrollada por
Martn-Bar, el artculo que aqu se presenta sistematiza y analiza los
fundamentos tericos de su trabajo relacionados con el concepto. A
partir de los supuestos del materialismo histrico dialctico, el autor concibe la ideologa como falsa conciencia que coloniza las mentes,
domestica los cuerpos, neutraliza los afectos y encuadra la percepcin
de la realidad. Los sistemas ideolgicos son instrumentos de poder
cuando arraigados en las mentalidades, como parte de la dimensin
subjetiva y cognitiva de cada individuo. Adems de examinar el concepto de ideologa, este texto discurre sobre los mecanismos
ideolgicos universalizacin de los intereses particulares, negacin
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de las contradicciones sociales y naturalizacin del presente que proporcionan la perpetuacin del orden y del poder.
Palabras clave: ideologa, naturalizacin, negacin de los conflictos,
poder, universalizacin.
Abstract. Despite the relevance and centrality of the concept of ideology in Ignacio Martn-Bars work, the author never formulated a precise definition of the term, nor developed a systematic and specific
theory about the ideological issue. In order to ensure a better
understanding of the conception of ideology developed by Martn-Bar,
the present paper systematizes and analyzes the theoretical principles of his work related to the concept. Based on the presuppositions of
dialectical and historical materialism, the author understands
ideology as a false conscience that colonizes minds, domesticates
bodies, neutralizes affections and frames the perception of reality.
Ideological systems become instruments of power when they root in
mentalities, being part of the subjective and cognitive dimension of each individual. Apart from examining the concept of ideology, the
present paper also discusses the ideological mechanisms universalization of private interests, denial of social contradictions and
naturalization of the present that enable the perpetuation of order and power.
Keywords: denial of conflicts, ideology, naturalization, power,
universalization.
Introduo
Na obra de Ignacio Martn-Bar, o mundo das representaes, dos smbolos
e das ideologias ocupa posio de destaque, porquanto indispensvel sobrevivncia e continuidade dos sistemas scio-polticos. A estabilidade das organizaes sociais e dos regimes polticos depende da interiorizao
das ideologias, processo que garante o funcionamento da ordem estabelecida por meio da distoro da realidade concreta e da dissimulao
do conhecimento. As representaes ilusrias que passam a fazer parte do psiquismo dos indivduos sob a forma de falsa conscincia contribuem para ocultar as reais intenes dos poderes dominantes, favorecendo, assim, a
manuteno do status quo. Nessa acepo, as ideologias esto a servio dos poderosos, promovendo a colonizao das mentes e a dominao dos corpos. Entretanto, apesar da importncia e da presena exaustiva da ideologia na totalidade dos escritos de Martn-Bar, o autor no desenvolveu uma definio clara e precisa do termo, dando margem a
compreenses inadequadas e equvocos conceituais (Blanco e De la Corte, 2003). Por essa razo, pretende-se nesse manuscrito articular os elementos dispersos nas obras do autor a fim de delimitar e especificar sua concepo
de ideologia, estabelecendo as bases tericas e conceituais que fundamentam essa discusso.
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Ao realizar o trabalho de anlise de um conceito, no se deve perder de
vista a existncia das tradies e correntes tericas que o definem. No caso da ideologia, desde sua gnese, foram elaboradas diversas teorias para lhe
atribuir significados e construir, assim, uma adequada compreenso do termo. Sua complexidade, no entanto, inviabilizou a formulao de uma nica definio capaz de apreend-lo em todas as suas dimenses.
Conforme Thompson (2002), em meio diversidade conceitual, possvel identificar duas concepes de ideologia que adotam pressupostos distintos: as concepes crticas e as concepes neutras. As concepes crticas, cuja
origem remonta ao materialismo histrico e dialtico, conservam o carter negativo, crtico e pejorativo do conceito, concebendo a ideologia como um
conjunto de representaes falsas e imaginrias que distorcem o real e, por isso, devem ser desveladas, contestadas e elididas da sociedade. Alm de enfatizar a questo da falsificao e dissimulao, a tradio marxista revela
a aliana e o compromisso dos sistemas ideolgicos com os interesses das classes dominantes, funcionando como suporte para a consolidao do
poder estabelecido e a manuteno da ordem social.
As concepes neutras, por sua vez, baseadas nas proposies de Karl Mannheim (1968), associam o fenmeno ideolgico totalidade dos sistemas
de pensamento e interpretao, os quais integram a vida cotidiana e se constituem em tempos e espaos distintos. A definio genrica e no-valorativa da ideologia neutraliza e generaliza o conceito, dado que
caracteriza como ideolgicos todos os tipos de conhecimento, ressaltando sua gnese social e histrica. De acordo com essa acepo terica, devem-
se examinar as razes sociais e histricas de quaisquer doutrinas e formas de pensamento, no se propondo a denunci-las, critic-las ou depreci-las. Esse enfoque elimina o carter valorativo, negativo e crtico da ideologia,
produzindo uma espcie de neutralizao e generalizao do conceito e conferindo ao termo uma significao positiva. Como advertem Chaui e
Franco (1985), a perda do sentido original da ideologia elimina sua dimenso poltica, passando a designar tanto as pretenses das classes dominantes de garantir a reproduo do sistema social quanto os projetos das classes
dominadas, relacionados eliminao das relaes de explorao-dominao e consequente transformao da sociedade. Considerar a ideologia um conjunto de ideias, independentemente de seu contedo e dos
interesses que a sustentam, significa reduzi-la psicologia cognitivista, remover-lhe seu carter poltico e ocultar sua natureza dominadora. Por
conseguinte, essa modificao conceitual gera o desaparecimento da tese da falsidade assim como o fim da negatividade sob a forma da crtica intelectual.
Opondo-se a esse processo de neutralizao e despolitizao, Martn-Bar (2001) resgata o conceito materialista de ideologia, compreendendo-a como uma rede de crenas, discursos, significados e normas sociais que
interpreta a realidade objetiva, orienta as aes cotidianas, mistifica o real e oculta as injustias sociais, promovendo a operacionalizao dos sistemas
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polticos e a justificao das relaes de dominao. Na ocasio em que
desenvolveu suas pesquisas e anlises, o estudo das ideologias no campo da psicologia social alcanou centralidade e notoriedade, sobretudo nas
seguintes vertentes: psicologia histrico-cultural, psicologia scio-histrica, psicologia comunitria, psicologia da libertao, psicologia poltica e psicologia crtica. Na Amrica Latina, destacaram-se as produes tericas
e metodolgicas de importantes pesquisadores como Martn-Bar (1995; 2001); Montero (1984; 2006), Lane (2004), Sawaia (2011), Guareschi (2000) e Bosi (2003). Os investigadores cientficos almejavam entender de que
forma as ideologias se deslocam ao nvel da conscincia e atuam nos indivduos desencadeando processos de alienao, alm de examinar as
relaes entre ideologia, linguagem, discurso, memria e identidade.
Nesse contexto, Martn-Bar (1998b) dedicou-se ao exame do processo de enraizamento das ideologias no psiquismo humano e avaliao do seu
tempo de permanncia. Como esclarecem Blanco e De la Corte (2003), o autor faz objeo tese da imutabilidade e durabilidade definitiva das
crenas. A depender das conjunturas histricas e das contingncias sociais, um sistema ideolgico pode ter dificuldade para conservar-se ad eternum, no lhe sendo possvel dar suporte permanentemente a um regime poltico.
Nesse sentido, a ideologia mais apropriadamente uma viso de mundo imposta por grupos dominantes, com durao limitada, do que uma
representao absolutamente interiorizada e integrada mentalidade dos indivduos, como se fosse um elemento inerente subjetividade humana. A despeito de sua internalizao e de seu enraizamento psquico, a ideologia
pode ser contestada por aqueles que a tomam como referncia, situao que ocorre no contexto das relaes cotidianas, o que pode gerar sua dissoluo subjetiva. Todavia, a possibilidade de manuteno das crenas se sobrepe
possibilidade de sua desintegrao. As crenas tm um poder de permanncia e conservao impressionante. Quando refutadas por
acontecimentos da realidade concreta ou por sistemas de pensamento lgicos e racionais, tendem a despertar nos sujeitos a necessidade de defend-las, o que as torna mais fortes e incontestveis, ainda que seus
argumentos sejam frgeis (Martn-Bar, 2001).
El problema es de gran importancia para la psicologa social, pues significa que la evidencia no siempre sirve para refutar las creencias ni los hechos son capaces de alterar las ilusiones. Por el contrario, no es raro que cuantas ms pruebas se presenten sobre la falsedad de ciertas creencias, con ms fuerza se aferren a ellas las personas y con ms fanatismo las defiendan y propaguen (Martn-Bar, 2001, p. 259)1.
1 Para Pascal (2004), a aquisio de crenas prescinde da formulao de uma argumentao racional,
dependendo apenas da repetio da ao e do ritual de maneira a incorpor-los, tornando-os um costume. Desse
modo, o indivduo passa a crer sem perceber e sem saber exatamente porque est crendo. Por conseguinte, a
crena no depende de nenhum procedimento de argumentao lgica e justificao racional. Somente aqueles
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Com base nos resultados e nas concluses das pesquisas de Leon
Festinger (1975), Martn-Bar (2001) afirma que, em determinadas condies, evidncias factuais que deveriam invalidar e abalar a credibilidade das crenas terminam aumentando a mobilizao dos crentes em sua defesa e animando-os a realizar uma campanha em seu favor. Em muitas circunstncias, eles realizam verdadeiros malabarismos
mentais ou lgicos, conjugando diferentes e opostas ideias para evitar a mudana de seus cdigos ideolgicos. De acordo com essa perspectiva, difcil modificar as convices importantes dos sujeitos, sobretudo aquelas
que so responsveis por definir e orientar seus comportamentos. Contudo, quando h dissonncia cognitiva entre as crenas, no sendo possvel
equilibr-las nem ajust-las mediante os malabarismos lgicos, o indivduo se v obrigado a resolver essa contradio, o que pode resultar na mudana de valores e atitudes. Logo, a transformao das crenas decorre da
incoerncia cognitiva, ou seja, das divergncias internas que caracterizam o sistema ideolgico do sujeito assim como dos conflitos entre suas convices
e suas aes.
Porm, essas incongruncias cognitivas no so facilmente apreendidas pelos indivduos, permanecendo margem da conscincia e
contribuindo para a conservao de crenas e ideologias que garantem a reproduo de sistemas sociais injustos e desumanos. Segundo Martn-Bar (1998c), a psicologia social no deve ignorar a trama de ideologias que
atravessa a vida cotidiana e promove alienao, cabendo-lhe estimular o desmascaramento da realidade objetiva, desalienar as conscincias e
denunciar a farsa ideolgica. Em sua concepo, a investigao psicossocial centra-se na compreenso do carter ideolgico da ao humana e exige que o pesquisador assuma e desempenhe uma dupla funo de anlise e crtica
da ideologia (Martn-Bar, 1998d). A pesquisa em psicologia social requer o exame da dimenso ideolgica do fenmeno estudado com o propsito de
tornar evidente seu sentido social, histrico e poltico. Investigar a dimenso ideolgica de qualquer objeto de estudo significa revelar as estruturas de significado que servem para escamotear os conflitos de interesse e as reais
intenes dos grupos dominantes. Logo, funo da psicologia social analisar as ideologias, construdas no contexto da vida social e posteriormente absorvidas por cada sujeito atravs dos vnculos
interpessoais. Em outras palavras, a psicologia social examina o ponto de articulao entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva, ou seja, o
momento em que os eventos sociais se convertem em elementos subjetivos e o indivduo se torna um ser social.
que j creem desenvolvem razes para legitimar e justificar sua obedincia s crenas. As proposies racionais,
portanto, servem to somente para confirmar crenas que o sujeito j possui e no para faz-lo crer em algo.
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Crtica psicologia latinoamericana
No decorrer de sua vida acadmica, Ignacio Martn-Bar dedicou-se anlise e crtica dos pressupostos epistemolgicos, tericos e metodolgicos
da psicologia dominante na Amrica Latina bem como elaborao de uma nova proposta de psicologia, menos alienada e mais atuante politicamente. Preocupada em adquirir reconhecimento cientfico e status social, a psicologia latinoamericana tem absorvido de forma acrtica e inadvertida tcnicas cientficas e modelos tericos, provenientes de pases com
realidades sociais e sistemas polticos muito distintos, realizando uma espcie de mimetismo intelectual e importao automtica de teorias (Martn-Bar, 1986). Ademais, para alcanar o estatuto de cientificidade,
essa psicologia empenha-se em defender as teses da assepsia ideolgica e da neutralidade da cincia, as quais contribuem mais para esconder a natureza poltica de suas proposies do que para de fato elimin-la. A
pretenso de cientificidade da psicologia a coloca distante dos reais problemas que afligem as diversas camadas da populao e alheia aos
conflitos que caracterizam a realidade. Alm do mtodo experimental, utiliza comumente teorias genricas, abstratas e absolutas, que no correspondem realidade objetiva nem possibilitam a compreenso de seus problemas
concretos. Verifica-se, pois, que a psicologia comete o equvoco de privilegiar os modelos tericos em detrimento das questes reais que emergem do
cotidiano dos indivduos.
Em oposio a essa premissa epistemolgica, Martn-Bar (1998f) prope que a realidade objetiva se sobreponha s perspectivas tericas, ou
seja, que a vida prtica tenha mais relevncia e valor para a cincia do que os fundamentos tericos. As teorias devem partir da realidade concreta e das experincias cotidianas de sujeitos reais em situaes reais de
existncia. Os problemas, para os quais a cincia tentar encontrar possveis solues, no devem ser definidos por esquemas tericos,
desconectados das contingncias culturais, mas devem surgir da prpria realidade. Para que sejam sistemas apropriados de compreenso, os modelos tericos precisam ser formulados para responder s inquietaes
dos indivduos e aos problemas reais de um contexto scio-poltico especfico. (...) que no sean los conceptos los que convoquen a la realidad, sino la realidad la que busque a los conceptos; que no sean las teoras las que definan los problemas de nuestra situacin, sino que sean esos problemas los que reclamen y, por as decirlo, elijan su propia teorizacin (Martn-Bar, 1998f: 314). Ao anteceder vida cotidiana dos sujeitos reais, as teorias criam obstculo manifestao da realidade concreta, ocultando sua
dimenso ideolgica e cooperando com a preservao da ordem social.
Em vista da suposta neutralidade cientfica e da primazia dos referenciais tericos, Martn-Bar (1976; 1998c) considera a psicologia
latinoamericana uma rea ideologizada que beneficia os grupos dominantes, uma vez que seus saberes, discursos e prticas contribuem para a
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reproduo de organizaes sociais injustas, mas favorveis ao poder
estabelecido. Alm de preconizar a apolitizao do conhecimento, a psicologia transforma questes sociais em problemas individuais,
transferindo sua resoluo ao mbito do indivduo e eximindo de qualquer responsabilidade o contexto cultural e a estrutura social. Dessa forma, promovem-se a psicologizao dos conflitos sociais e a naturalizao da
ordem instituda. O reducionismo psicolgico, que analisa fenmenos sociais a partir de categorias puramente psicolgicas, um procedimento padro em boa parte das pesquisas desenvolvidas em psicologia. O
psicologismo tende absolutizao das ideias, abstrao dos processos sociais, descontextualizao do objeto estudado assim como atribuio
da causalidade social aos indivduos, funcionando, desse modo, como instrumento ideolgico a servio das classes dominantes. As teses psicologistas favorecem o apoliticismo e o a-historicismo, uma vez que
atribuem ao indivduo a razo ltima de todos os fenmenos, anulando sua dimenso social, histrica e poltica. J que o indivduo a causa dos
processos sociais, so sugeridas e prescritas solues individuais para problemas sociais, mantendo-se inalterado o sistema estabelecido.
Martn-Bar (2001) rechaa a submisso da cincia tradicional ao
poder dominante, cujas teorias so destinadas a impedir a transformao da sociedade e garantir a conservao do estado de coisas. Em sua concepo, a psicologia necessita, com urgncia, passar por um processo de
desideologizao, que lhe possibilitaria assumir uma posio poltica explcita, reconhecer sua responsabilidade histrica diante da realidade
social dos pases latinoamericanos, defender interesses coletivos e definir possibilidades de ao com vistas a promover mudanas sociais. Logo, o compromisso poltico da psicologia social crtica (Manzi, 2009) implica em
viabilizar o projeto de transformao social e suas estratgias para concretiz-lo consistem em descobrir quais so as possibilidades dos
indivduos modificarem suas condies de existncia determinadas pelo sistema estabelecido e legitimadas pela cincia tradicional e compreender de que forma podem transform-las. psicologia proposta por Martn-Bar
(2001), no interessa estudar os processos de adaptao humana nem o suposto fenmeno da harmonia social, mas os meios de subverso da ordem. De acordo com essa perspectiva, a sociedade no uma unidade
harmnica nem uma totalidade uniforme, mas uma multiplicidade catica e contraditria. Nela, as foras sociais no so harmoniosas, os interesses
no so os mesmos para todos os grupos nem as necessidades dos diferentes setores so igualmente atendidas. A sociedade, portanto, resultado de um conflito social, em que grupos representantes de interesses opostos enfrentam-se para fazer valer seus objetivos.
O objeto de estudo da psicologia social crtica a ao humana, entendida como ideologia, pois resulta dos conflitos sociais, do jogo de foras
contrrias e da rede de interesses antagnicos que perpassam a trama das relaes sociais. Conforme Martn-Bar (2001), a ao humana encontra-se
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integrada a uma cadeia de vnculos interpessoais, significados culturais,
smbolos histricos e determinaes sociais. S possvel analisar a ao humana como ideologia, se a realidade concreta e o contexto histrico forem
considerados no processo de investigao. A psicologia no deve, por consequncia, prescindir da histria, da cultura nem da sociedade. Isolado do contexto scio-histrico, o indivduo torna-se uma abstrao, uma ideia
genrica, uma irrealidade; em suma, uma iluso. Por essa razo, o sujeito da psicologia social o indivduo real, que vive em uma cultura especfica, est situado em um mundo concreto e localizado em uma poca histrica.
De igual modo, para que o carter ideolgico da ao humana seja apreendido, no se deve ignorar o emaranhado de relaes e foras sociais
que constitui e compe as formaes culturais e a realidade concreta. Partindo do pressuposto de que o objeto de estudo da psicologia social a ao ideolgica, seu objetivo primeiro fomentar processos de
conscientizao dos determinismos sociais que definem os sistemas ideolgicos e os esquemas de ao dos indivduos. O conhecimento dos
determinismos sociais e das relaes de foras antagnicas desperta a conscincia dos sujeitos para as razes de suas precrias condies de existncia, podendo estimular aes coletivas com vistas mudana social
e libertao popular. Como se pode perceber, Martn-Bar (2001; 1991) convida a psicologia social a assumir um compromisso tico com a verdade, fazer uma opo poltica e abandonar a pretenso de assepsia cientfica,
alm de explicitar as determinaes sociais, apresentar os laos ocultos que unem os indivduos aos interesses de classe e revelar as foras sociais que
esto em jogo no conflito de grupos.
A la psicologa social corresponde desenmascarar los vnculos que ligan a los actores sociales con los intereses de clase, poner de manifiesto las mediaciones a travs de las cuales las necesidades de una clase social concreta se vuelven imperativos interiorizados por las personas, desarticular el entramado de fuerzas objetivadas en un orden social que manipula a los sujetos mediante mecanismos de falsa conciencia (Martn-Bar, 2001, p. 48).
Ao humana como ideologia
A psicologia social crtica concebe a ao humana como ideologia, uma vez que a considera o ponto de articulao entre o indivduo e a sociedade, a conexo entre os processos individuais e o fenmeno social, a expresso de
sistemas de valores e significados construdos no cotidiano da vida social. De acordo com Martn-Bar (2001), a ideologia diz respeito a um conjunto de ideias, crenas e valores que penetra no psiquismo humano, acomoda
internamente seus smbolos, torna-se um sistema de referncia e orientao e conduz as aes dos indivduos conforme seus interesses. Dessa forma, a
ao dos homens, constituda por foras sociais e significados culturais, sempre mediada pela ideologia vigente na sociedade. Los hombres viven sus
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acciones (...) en la ideologa, a travs y por la ideologa. (...) la relacin vivida de los hombres con el mundo (...) pasa por la ideologa, ms an, es la ideologa misma (Martn-Bar, 2001, p. 17). Gerada nas circunstncias externas, mais especificamente no espao da cultura e da estrutura social, a ideologia constitutiva da ao humana, representando os interesses das classes dominantes que experimentam, na dinmica das relaes
cotidianas, o conflito entre suas ideias, necessidades, desejos e intenes e aquelas dos grupos socialmente desfavorecidos. Impregnada na ao dos
indivduos, a ideologia refora e defende os projetos e demandas das classes dominantes. Dessa maneira, como cenrio da correlao de foras antagnicas e como dispositivo que favorece e beneficia o poder estabelecido,
a ao humana, inerentemente ideolgica, adquire sentido social, no devendo ser concebida como um conjunto de atos individuais, mecanicamente realizados.
(...) la accin humana es, por naturaleza, ideolgica ya que est intrnsecamente configurada por las fuerzas sociales operantes en una determinada historia. La accin, cada accin concreta, simultneamente plasma y configura ambas realidades, sociedad y persona, en un hacer que es al mismo tiempo hacerse y ser hecho (Martn-Bar, 2001, p. 24).
Por intermdio de suas aes cotidianas, o indivduo constri a si
mesmo e ao mundo social, mas tambm construdo por esse mundo, que possui uma histria, uma cultura e uma multiplicidade de smbolos,
significados e valores. A ao significada e valorada pela ideologia, que refora os cdigos sociais e os smbolos culturais em vigor na sociedade. Alm de ser considerada um mecanismo de justificao da ordem social e
de orientao das prticas cotidianas, a ideologia tambm pode ser compreendida como esquemas cognitivos e valorativos que dotam de sentido
a ao pessoal. Operados pelos indivduos, os sistemas cognitivos so pessoais, mas suas redes de explicao e interpretao derivam das formaes sociais. Ento, a ideologia e, por consequncia, a ao dos
homens possuem uma dimenso social e pessoal, objetiva e subjetiva, no sendo meramente fenmenos scio-histricos, provenientes do exterior, nem unicamente formas de pensamento, esquemas cognitivos ou atitudes
pessoais, desenvolvidos internamente.
Segundo Martn-Bar (2001), as circunstncias sociais e os sistemas
culturais tm mais poder de determinar a ao humana do que o modo como as pessoas pensam, julgam, avaliam e sentem. Porm, embora os fatores objetivos sejam decisivos e at preponderantes na determinao do comportamento dos indivduos, os fatores subjetivos tambm desempenham um papel fundamental, sendo indispensvel articular o que
exigido pela realidade social e o que fixado pelo sistema de crenas e atitudes de cada sujeito. Ainda que no sejam o nico nem o mais importante determinante da ao humana, as atitudes cumprem uma
funo relevante na orientao do comportamento e da percepo dos
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indivduos. Na concepo de Martn-Bar (2001), as atitudes designam a
interiorizao dos esquemas sociais de significao e interpretao, que contribuem para estruturar o mundo social e so absorvidos pelos sujeitos
no decorrer do processo de socializao. Elas so sistemas ideolgicos que orientam a forma do sujeito agir, perceber e avaliar a realidade, reforando e apoiando determinados interesses sociais. Em suma, um esquema
atitudinal a expresso individual de ideologias sociais que canalizam e legitimam as demandas, exigncias e intenes dos grupos dominantes. Em outras palavras, as estruturas ideolgicas, articuladas sob a forma de
atitudes pessoais, apresentam importantes contradies, que ocultam as verdades sociais e justificam o sistema estabelecido, propiciando sua
perpetuao.
Como se pode constatar, so mltiplas as funes desempenhadas pela ideologia e, dentre elas, destacamos as seguintes: fornecer aos indivduos
sistemas de referncia para interpretar a realidade, desenvolver esquemas de ao em conformidade com as necessidades da vida cotidiana, justificar
a estrutura social consolidada, apresentar os processos sociais como se fossem categorias naturais, encobrir o carter histrico da vida em sociedade, dissimular as relaes de dominao social e reproduzir o status quo. A anlise da ideologia, proposta por Martn-Bar (2001), requer o exame meticuloso da funo ideolgica da ao humana, ou seja, dos interesses e
valores sociais dominantes, subjacentes ao dos indivduos, que selecionam os comportamentos adequados ao propsito da dominao social e da legitimao da ordem estabelecida. A descoberta da funo
ideolgica da ao humana tambm inclui (...) la necesidad de ubicar cada proceso psicolgico en la totalidad de los procesos sociales (Martn-Bar, 2001, p. 20).
Para Martn-Bar (2001), muito mais que a execuo de movimentos observveis externamente, a ao dos homens refere-se interioridade dos
sujeitos que interfere na realidade objetiva e exterioridade das ideologias sociais. Logo, a ao humana implica a relao dialtica entre interioridade e exterioridade, subjetividade e objetividade, indivduo e sociedade. Como
expresso dos esquemas ideolgicos, dos significados sociais e das atitudes pessoais, a ao de cada indivduo sofre a influncia de outros concretos que vivem em um contexto histrico-cultural especfico, e atende a interesses e valores dominantes socialmente. Nesse sentido, a ao no mera realizao de movimentos externos, mas modos de atuao, de
natureza simblica, que certamente geram impactos e efeitos polticos. A depender de uma srie de fatores objetivos e subjetivos, o sujeito pode
assumir posies e aes polticas muito distintas no que tange sua relao com a ideologia social: ou se submete a suas determinaes ou se dispe a question-la de sorte a abandon-la como sistema de referncia e
orientao. No se deve, pois, consider-lo mero fantoche da mquina ideolgica. Embora sua ao seja determinada pela ideologia, ele tem condies, por meio do processo de conscientizao, de romper com ela e
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transcend-la. Conclui-se, portanto, que o indivduo no se reduz
ideologia, podendo criar novos esquemas de ao que se oponham estrutura ideolgica dos grupos dominantes.
Caractersticas e mecanismos da ideologia
Apoiando-se nas premissas do materialismo histrico e dialtico, Martn-
Bar (2004) defende a ideia de que a mquina ideolgica no constitui o fundamento da estrutura social, mas um apoio importante para sua manuteno, ou melhor, um instrumento de sustentao do sistema
institudo. Cabe s ideologias tornar as organizaes sociais atrativas e razoveis de modo a justificar sua existncia e preservao. Os sistemas
ideolgicos realizam esse trabalho de justificao do poder constitudo, reproduo da ordem social e legitimao das demandas dos grupos dominantes por intermdio de trs mecanismos, quais sejam a
universalizao de interesses particulares, a negao das contradies sociais e a naturalizao do presente.
No caso da universalizao de interesses particulares, verifica-se que os valores e princpios das classes dominantes so transformados em valores universais e princpios coletivos. Interesses particulares assumem a
forma de interesses coletivos e necessidades universais, como se representassem a coletividade e atuassem em benefcio de todos os setores sociais. Esse procedimento de dissimulao do carter particular das
necessidades e projetos dos grupos dominantes torna legtimos seus interesses especficos, produzindo, assim, um efeito de aceitao. J que a
ideologia e os interesses vigentes representam a sociedade em sua totalidade, ento no h razo para contest-los ou p-los em questo. Outro mecanismo ideolgico extremamente eficaz a negao das
contradies sociais, que se apoia na construo simblica de um mundo imaginrio e ilusrio, marcado pela harmonia social, pela comunidade de
valores e pela ausncia de conflitos sociais e divergncias polticas. A fim de esconder os antagonismos sociais, normalmente promove-se a separao das esferas econmicas e polticas, dando a impresso de que se trata de
fenmenos independentes e distintos. As decises polticas so, muitas vezes, mascaradas e assumem o status de decises tcnicas e asspticas, desprovidas de intenes polticas. As contradies sociais tambm so escamoteadas quando se adota, como sistema de interpretao da realidade, a psicologizao de problemas de natureza scio-poltica e econmica. Nesse
caso, atribui-se aos indivduos problemas cuja origem resulta do funcionamento da estrutura social e da dinmica dos processos econmicos.
A naturalizao do presente outro mecanismo ideolgico que
transforma as organizaes sociais e as conjunturas histricas em entidades naturais, apresentando-as como realidades que sempre existiram,
independentes do homem e a despeito dele, no estando, portanto, sujeitas a qualquer tipo de modificao. De acordo com essa perspectiva, a histria,
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a sociedade e a cultura decorrem de uma exigncia da natureza e de um
pressuposto da existncia, que no devem ser questionados, dada sua condio de imutabilidade. A naturalizao de processos histricos causa a
perpetuao do presente, beneficiando queles que detm o poder e que evidentemente no esto interessados em nenhuma espcie de mudana social. Ademais, esse mecanismo ideolgico propicia a reificao e
coisificao do sistema social. Como salienta Martn-Bar (2003), o processo de ideologizao da realidade depende da naturalizao do mundo, da sacralizao da vida e da negao da histria. Em forte oposio a essa tese,
Zizek (1992) sustenta que o procedimento ideolgico por excelncia a historicizao, que converte eventos universais em histricos e, dessa forma,
esconde o permanente ncleo do real, cuja caracterstica essencial reaparecer sempre, independentemente do sistema poltico, da formao social e da poca histrica. O real a expresso do desejo inconsciente, a
falta fundamental constitutiva do ser humano, a dimenso no-simbolizvel da realidade, que sempre retorna ao mesmo lugar, tornando evidente seu
carter universal e eterno.
Conforme Martn-Bar (2004), os mecanismos ideolgicos de universalizao dos princpios particulares, negao das polarizaes,
destruio da histria e naturalizao dos processos sociais s se realizam plena e satisfatoriamente em situaes de rotinizao da vida. A rotina corresponde execuo quase automtica de uma srie de atos repetidos
que, na imediaticidade da vida cotidiana, se cristalizam e se estabilizam de sorte que no so submetidos anlise crtica nem passam por processos
permanentes de reinveno. Esses atos dirios costumam institucionalizar-se e acomodar-se de tal maneira realidade subjetiva e objetiva de cada indivduo que no so nem percebidos, muito menos contestados. A
rotinizao das atividades ocorre em uma cultura comum, na qual as aes so pressupostas e naturalizadas, contexto adequado propagao e
consolidao das ideologias. O senso comum , pois, o espao privilegiado dos saberes, discursos e enunciados ideolgicos, no qual sucedem experincias cotidianas imediatas, cuja repetio torna o mundo to bvio
que parece naturalmente constitudo, ocultando, dessa forma, o processo histrico de construo do sistema social e das aes humanas. A ideologia se sustenta nas ideias de pressuposio da vida, naturalizao das coisas,
imutabilidade da existncia e negao da histria.
As teses da pressuposio da realidade e da naturalizao das coisas
so um terreno frtil para reforar valores e normas primordiais reproduo da dinmica social. Na rotina, em meio s interaes e dilogos, os indivduos reafirmam e reproduzem as crenas do sistema estabelecido,
articulando e atendendo aos interesses das classes dominantes. Os smbolos, normas, crenas e ideologias de uma sociedade, em sua maioria, encontram-se slidos e consistentes, sendo difcil romp-los, visto que
respondem s demandas daqueles que esto no poder. Normalmente, os sujeitos, em suas atividades cotidianas, agem de modo a confirm-los,
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reforando a estrutura e o funcionamento da organizao social. Via de
regra, o sistema estabelecido oferece aos indivduos uma margem de negociao e de possibilidade de ao a fim de viabilizar mudanas
elementares que no atinjam seus fundamentos nem abalem suas estruturas, criando uma falsa sensao de transformao social. No entanto, alguns valores, interesses e ideologias, que constituem a base do
sistema social, so inegociveis, o que lhes garante permanecer intactos ao longo do tempo. Enquanto tudo estiver encoberto por esquemas ideolgicos que promovam racionalizaes e justificaes bem como disseminem mitos
e iluses, a realidade continuar inalterada, reproduzindo-se segundo as aspiraes da elite dominante.
Ideologia como interiorizao de elementos externos
Antes de tornar-se um sistema subjetivo, interno e individual, a ideologia
constitui-se nas relaes sociais cotidianas como um fenmeno externo e objetivo, integrando-se posteriormente ao psiquismo dos sujeitos mediante
o processo de interiorizao (Martn-Bar, 1998b). Como estrutura scio-poltica e elemento da realidade externa, a ideologia internaliza-se e passa a fazer parte da subjetividade dos indivduos, convertendo-se em estrutura de
carter e componente psquico. A mquina ideolgica, pois, se configura nas situaes sociais, nos processos histricos e no contexto das relaes entre os homens, partindo da realidade objetiva e inserindo-se na realidade
subjetiva, acomodando-se mentalidade dos sujeitos por meio de um processo que se costuma denominar de psicologizao ideolgica (Martn-
Bar, 1998a). Desse modo, a internalizao transforma esquemas sociais em contedos psquicos, fazendo com que os cdigos simblicos e as regras de comportamento da sociedade sejam parte integrante da interioridade de
cada indivduo. Ao por em prtica a ideologia, o sujeito se coloca na condio de representante da realidade social, agindo em nome de uma sociedade,
uma cultura e uma histria especficas. Como componente do psiquismo humano, a estrutura ideolgica determina os sistemas de pensamento, as modalidades de sentimento e as formas de ao das pessoas em suas
relaes cotidianas. (...) en la ideologa las fuerzas sociales se convierten en formas concretas de vivir, pensar y sentir de las personas, es decir, la objetividad social se convierte en subjetividad individual y, al actuarla, la
persona se realiza como sujeto social (Martn-Bar, 2001, p. 18).
De acordo com Zizek (1992), a natureza externa dos sistemas
simblicos fica evidente em sua capacidade de objetivar-se e materializar-se nas coisas do mundo social. Nossas crenas, pois, no esto dentro de ns, esto nos objetos externos. Aderimos inconscientemente a crenas que no
nos pertencem nem esto localizadas em ns, mas encontram-se materializadas nas coisas externas. Na acepo zizekiana, a mquina ideolgica, proveniente do exterior, internalizada quando o sujeito, de
forma inconsciente, a experimenta como uma ordem sem sentido,
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totalmente irracional e fracionada. Pascal (2004) refuta a ideia de que a
internalizao total e absoluta. Em sua concepo, nesse processo, sempre h uma fresta, um resduo, um resto de irracionalidade que, em vez de
impedir a submisso do sujeito ao sistema ideolgico, a condio para que isso acontea. precisamente a irracionalidade, o elemento sem sentido, a falta de lgica que garante a adeso inconsciente mquina simblica,
produzida externamente. Entre o sistema ideolgico externo e as crenas que foram internalizadas, h uma fresta, uma brecha, um resduo irracional que mantm em curto-circuito as convices subjetivas e os postulados
sociais.
Um exemplo tpico do processo de interiorizao da ideologia social so
as atitudes que, como estruturas subjetivas e pessoais, correspondem aos fenmenos sociais e aos sistemas ideolgicos, articulados no psiquismo dos indivduos. No contexto das relaes sociais, os homens absorvem a
mquina ideolgica da sociedade, apropriando-se dela e convertendo-a em contedo psquico e esquema atitudinal, que lhes orienta em sua avaliao
da realidade e na realizao de aes cotidianas. (...) el conjunto de actitudes fundamentales de las personas puede concebirse como la estructura que, en cada individuo, articula psquicamente la ideologa
social. (...) las personas incorporan psquicamente la ideologa social en forma de actitudes, como un conjunto psico-lgico de creencias y evaluaciones sobre el mundo (Martn-Bar, 2001, p. 294). A ideologia social, por conseguinte, possui um correlato psquico, uma verso psicolgica, um enraizamento subjetivo, que lhe confere consistncia e fora
em sua funo de conservao da ordem scio-poltica. Uma organizao social adquire solidez e durabilidade quando as determinaes objetivas, por intermdio do processo de interiorizao, passam a ser determinaes
subjetivas, tornando-se parte integrante do sujeito, elemento de sua subjetividade (Martn-Bar, 1995; 1998c).
A consolidao das formaes sociais, a estabilidade dos regimes polticos e a reproduo da dominao dependem unicamente da internalizao da ideologia social, designada por Martn-Bar (1995; 1998b)
de colonizao ideolgica, processo por meio do qual a ideologia cria razes na mentalidade dos indivduos, transformando todo fenmeno histrico em um evento natural de modo a legitimar e preservar o estado de coisas da
sociedade. Como dispositivo social e externo, a dominao no atinge resultados satisfatrios, uma vez que depende dos mecanismos de coero,
violncia, represso e vigilncia, utilizados e coordenados por agentes externos. No entanto, ao internalizar-se e integrar-se mentalidade das pessoas, a dominao ideolgica no necessita de controle externo, pois
atua como uma exigncia interna ou uma determinao subjetiva, conduzindo mentes e corpos e produzindo efeitos de submisso e obedincia.
(...) esta dominacin [social] no logra su estabilizacin mientras no encuentra acogida en el mismo psiquismo de las personas,
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mientras no se vuelve concepcin de la vida y, lo que es ms, sentido comn. La colonizacin social slo logra echar races cuando se articula ideolgicamente en la mentalidad de las personas y grupos, quedando as justificada con el sello de lo que aparece como una realidad no histrica sino natural (Martn-Bar, 1998b, p. 95).
Polarizao social, mentira institucional e desideologizao
Decorrente do conflito de interesses, a polarizao, como observa Martn-Bar (2003), um processo psicossocial caracterstico das sociedades de
classes, que promove o acirramento da oposio e a excluso do outro, concebido como rival e inimigo. Esse fenmeno resulta de uma correlao de foras sociais, opostas e excludentes, que origina sentimentos de averso
e rechao em relao ao opositor. A identificao com um dos polos acarreta repulsa e dio ao polo contrrio, sentimentos decorrentes da caracterizao negativa e estereotipada do adversrio, baseada em esquemas perceptivos
simplistas, rgidos e distorcidos. Os indivduos atribuem a seu grupo caractersticas exclusivamente positivas, ao passo que retratam o grupo
oposto de forma absolutamente negativa. No contexto da polarizao social, comum os grupos elaborarem uma imagem estereotipada do inimigo, o qual passa a concentrar toda a maldade do mundo, justificando a violncia,
as ameaas e os ataques dirigidos contra ele, procedimentos que em outras circunstncias seriam socialmente condenveis.
Alm de representar a encarnao do mal, o inimigo serve ainda para intensificar os laos de solidariedade e confiana entre os membros do grupo. A polarizao social proporciona a dicotomia maniquesta do mundo,
ou seja, a diviso moral e ideolgica dos indivduos em bons e maus, amigos e inimigos, certos e errados bem como produz um fenmeno conhecido pelo nome de imagem especular, de acordo com o qual grupos caracterizam seus adversrios mediante categorias sociais semelhantes, porm invertidas. Os regimes polticos, muitas vezes, utilizam os mecanismos da
imagem especular e do esteretipo do inimigo, porque legitimam aes violentas contra aqueles que representam uma ameaa constante estabilidade do sistema; fortalecem a identidade do grupo e os laos de
confiana entre seus membros e promovem a mobilizao social em prol da conservao do status quo.
A polarizao um trao caracterstico das relaes que estabelecem entre si as distintas classes sociais. De modo geral, os grupos dominantes elaboram categorias ideolgicas que caracterizam negativamente as
camadas marginalizadas da populao, conferindo-lhe uma identidade estereotipada e ideologizada. Essa falsa identidade negativa desempenha a
funo ideolgica de mistificao da realidade e encobrimento dos reais projetos, interesses e intenes da elite dominante. Segundo Martn-Bar (2000), a polarizao social mantm os grupos em posies absolutamente
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opostas, produzindo mecanismos de afirmao dos antagonismos e de
incitao de sentimentos de hostilidade e dio em relao ao opositor. As classes dominantes utilizam sistemas ideolgicos rgidos e simplificados que
estigmatizam os grupos dominados, convertendo-os em inimigos do sistema, o que contribui para justificar os abusos de violncia e os desejos de destruio daqueles que supostamente ameaam o regime poltico. Logo, a
polarizao um processo de construo ideolgica do inimigo, que gera ideologizao da percepo, distoro do mundo assim como legitimao de prticas de opresso e excluso, em outras ocasies reprovveis do ponto de
vista tico e social.
Alm da polarizao social, Martn-Bar (1998c) destaca outra
estratgia ideolgica empregada pelos grupos dominantes, a mentira institucionalizada, cuja funo consiste em falsificar a realidade concreta, apresentar novas verses para os acontecimentos e elaborar um sistema de
interpretao ilusrio com vistas a satisfazer as aspiraes dos poderes estabelecidos. Para gerar efeitos de engano e iluso, a mentira social mescla
fantasia com realidade, obscurece aspectos importantes do real, lana luz sobre a fico e trata a imaginao como se fosse realidade, evitando tudo que se aproxime da verdade. Entretanto, conforme Martn-Bar (1998c), os
indivduos no acreditam piamente nos discursos oficiais nem nas mentiras publicamente pronunciadas, visto que percebem a falta de correspondncia entre o que se anuncia e o que se vive, entre a realidade difundida pelo
discurso ideolgico e a realidade vivida no contexto das relaes cotidianas. Contudo, suas precrias condies de existncia e, muitas vezes, suas
urgentes necessidades fsicas lhes impedem de refletir criticamente sobre si mesmos e sobre as circunstncias reais de sua vida. Nesse contexto, a psicologia social pode representar uma relevante ferramenta de reflexo
crtica e anlise da realidade social, criando condies que propiciem a desideologizao do discurso oficial e o desmascaramento da mentira
institucional, o que desencadear o aparecimento da verdade e a revelao dos interesses sociais subjacentes s proposies ideolgicas.
A anlise da mentira institucionalizada, proposta e desenvolvida por
Martn-Bar (2003), mostra-se superficial, apresentando pontos de incongruncia e contradio. Se por um lado afirma que as pessoas no acreditam cegamente nas mentiras que acompanham os pronunciamentos
pblicos; por outro, sustenta que esse fenmeno adquiriu tamanha generalidade nas sociedades latino-americanas e se encontra to integrado
ao tecido social que inclusive seus autores passaram a acreditar em sua veracidade. As mentiras so to reiteradas e propagadas no contexto das relaes cotidianas que se convertem em verdades, inclusive para aqueles
que as produziram. La mentira ha llegado a impregnar de tal manera nuestra existencia, que terminamos por forjarnos un mundo imaginario cuya nica verdad es que precisamente se trata de un mundo falso y cuyo
nico sostn es el temor a la realidad, demasiado subversiva para soportarla (Martn-Bar, 1984, p. 182). Os meios de comunicao de
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massa, atrelados ao poder estabelecido, normalmente so responsveis pela
veiculao e validao do discurso oficial que, sob a mscara da neutralidade, formalidade e oficialidade, esconde a mentira institucional, a
qual constri verses e interpretaes dos fatos favorveis s demandas e projetos dos grupos dominantes.
Logo, Martn-Bar desenvolve uma imagem ambivalente do homem,
concebendo-o ora como um sujeito astuto e sagaz que percebe o mundo sua volta ora como um ser ingnuo e alienado, que ignora as artimanhas ideolgicas (Dantas, 2011). A nosso ver, Zizek (1992) resolve, com categoria,
essa contradio ao abordar a questo do cinismo e da ironia nas sociedades contemporneas. Suas reflexes reforam a tese de que atualmente as
pessoas captam e apreendem o que acontece ao seu redor, no se deixando ludibriar por mentiras ideolgicas, mas agem como se nada soubessem2. Um trao tpico da razo cnica fingir que nada percebe e agir sob a
interferncia da ideologia, mesmo quando se reconhece perfeitamente suas fraudes, enganos e adulteraes. Para Zizek (1992), nas sociedades
contemporneas, a falsa conscincia ilustrada e esclarecida. Os homens vivem de acordo com valores falsos e contraditrios, no porque esto sendo enganados ou manipulados, mas porque o cinismo lhes permite seguir
parmetros sociais distorcidos e agir como se no conhecessem sua natureza dissimuladora. A contradio entre os discursos sociais e as prticas cotidianas de conhecimento dos indivduos que, ironicamente,
aceitam essa situao sem constrangimento. Conforme Zizek (2003), os sujeitos respondem s interpelaes subjetivas e executam seus mandatos
simblicos, apesar de no lev-los a srio. O poder dominante e totalitrio no se preocupa mais em escamotear todos os seus interesses nem espera que os indivduos levem a srio suas construes ideolgico-
argumentativas. Sua nica inteno garantir que eles ajam segundo suas orientaes, mesmo no concordando racionalmente com elas, de sorte que
seus objetivos sejam alcanados e as relaes de dominao sejam mantidas. No devemos, pois, atribuir ingenuidade, ignorncia ou estupidez, determinadas decises e aes dos indivduos. O sujeito cnico,
muitas vezes, finge que no conhece a ideologia dominante para a qual presta servio, escondendo-se atrs da suposta ignorncia.
A tese do cinismo, no entanto, no nega totalmente a premissa da
mentira institucional, sendo possvel articul-las, ainda que sejam paradoxais. O presente trabalho ope-se pressuposio de que os sujeitos
ignoram os estratagemas ideolgicos, acreditando em postulados absurdos e mentiras descabidas, aderindo-lhes de forma ingnua e acrtica. Mltiplas ideologias sociais so detectadas e reconhecidas, mesmo que essa
2 Segundo Sloterdijk (2004), na sociedade atual, a ideologia funciona predominantemente como expresso do
cinismo, que reconhece as mentiras ideolgicas, mas ainda assim refora comportamentos ditados por elas.
Enquanto Marx expressa seu conceito de ideologia por meio da frase: eles no sabem o que fazem, mas fazem, Sloterdijk (2004) define o cinismo ideolgico mediante a expresso: eles sabem muito bem o que fazem, mas mesmo assim o fazem.
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identificao no interfira no modo como os sujeitos agem nem produza
modificaes significativas na sua forma de proceder. Entretanto, h proposies ideolgicas que foram to propaladas e circularam tanto pela
sociedade que ganharam status de verdade. Mesmo que os indivduos desconfiem de sua veracidade, elas esto to fortemente enraizadas em seu psiquismo que fica difcil desmenti-las. Martn-Bar defende que a mentira
institucionalizada impe uma viso de mundo e uma representao deturpada da realidade, alienando as conscincias e obscurecendo as
percepes. Nesse sentido, o autor atribui ao psiclogo social o papel de desconstruir as mentiras que se escondem atrs da formalidade do discurso oficial, revelando sua natureza ideolgica e denunciando os interesses
sociais que as sustentam. Para Martn-Bar (1998c), cabe psicologia social investigar as dimenses ideolgicas do comportamento humano, ou seja, a maneira como a ao do indivduo articula e operacionaliza os interesses
especficos das classes dominantes. A principal funo dessa rea do conhecimento denunciar todo tipo de ideologia a fim de anular seus efeitos
de sustentao, justificao e legitimao da ordem estabelecida e das relaes de dominao. Dito de outra forma, a psicologia social crtica deve favorecer a desideologizao da vida cotidiana de maneira a desmontar a
mentira social e desmascarar os discursos ideolgicos que justificam a dominao, naturalizam a violncia, restabelecem a normalidade e a ordem
das coisas, neutralizam as possveis rupturas e encobrem os interesses de classe sob o manto dos pronunciamentos pblicos e das mentiras oficiais.
Um caso tpico de ideologia: o fatalismo na Amrica Latina
Na Amrica Latina, a ideologia racionaliza a violncia e a excluso alm de naturalizar as precrias condies de existncia de boa parte da populao,
garantindo, dessa forma, a preservao do sistema social e o favorecimento dos grupos dominantes (Martn-Bar, 1998b). Os enunciados ideolgicos
propalam a paralisao do tempo histrico, a estagnao da sociedade e a inevitabilidade do destino. Em funo do processo de ideologizao, os povos latino-americanos acreditam que vivem margem da prpria histria
porque so incapazes de conduzir a prpria vida e controlar o prprio destino, restando-lhes a aceitao das determinaes externas. Como
estrutura ideolgica, o fatalismo anuncia um destino deplorvel e irrevogvel de sorte que os sujeitos rejeitam o passado e o futuro, fixando-se ao presente e s suas urgncias. Os indivduos, sob o poder da ideologia
fatalista e do cotidiano miservel, vivem a desesperana, a impotncia e a resignao, acreditando na impossibilidade de modificao da prpria existncia. A fora da ideologia fatalista aumenta consideravelmente com o
apoio das crenas religiosas, cuja tese central corresponde ideia de que o destino dos homens determinado e controlado por Deus, no sendo
possvel transform-lo, uma vez que a vontade divina definitiva e imutvel.
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Uma estratgia ideolgica comumente utilizada para explicar e
justificar as pssimas condies de vida dos povos latino-americanos a psicologizao do fatalismo, que converte a estrutura fatalista em trao de
carter e forma de pensamento, responsabilizando os prprios indivduos pela situao de segregao social e desintegrao cultural. Nesse sentido, os sujeitos marginalizados, em virtude de suas crenas e condutas
fatalistas, gerariam a prpria excluso e pobreza. O fatalismo, portanto, resultaria do psiquismo dos indivduos e no do funcionamento das estruturas sociais, econmicas e polticas. (...) lo psquico sera el fundamento de la estructuracin social y no viceversa (Martn-Bar, 1998b, p. 86). Contrapondo-se s teses psicologizantes, Martn-Bar (1998b) enuncia que a atitude fatalista desencadeada e, continuamente, reforada pelo funcionamento dos sistemas scio-polticos. O fatalismo no um
atributo individual nem uma estrutura de origem psquica, mas a ideologia social que os indivduos absorvem e internalizam em suas experincias dirias. Logo, as formaes sociais e os regimes polticos condenam as
pessoas ao imobilismo e inrcia, quando lhes demonstram por meio de suas vivncias cotidianas que seus esforos so inteis, sendo
absolutamente improvvel que produzam transformaes efetivas no sistema social vigente.
O fatalismo, por conseguinte, origina-se das estruturas scio-polticas,
passando posteriormente por um processo de interiorizao que o converte em componente do psiquismo humano. Cabe indagar por que o comportamento fatalista no internalizado por todos os membros da
sociedade, sendo uma caracterstica especfica dos segmentos populares. Segundo Martn-Bar (1998b), as organizaes sociais definem traos de
carter, tendncias de comportamento e construes ideolgicas com vistas a garantir sua manuteno. Como as sociedades latino-americanas so divididas em classes, os regimes sociais reforam diferentes esquemas
comportamentais, sistemas de pensamento e conjunto de crenas para cada classe social. Em outras palavras, podemos afirmar que as sociedades de classes estimulam e reforam diferencialmente padres comportamentais e
formas de pensamento em cada grupo social. Logo, os sistemas de conhecimento e interpretao da vida cotidiana so diferenciados e
especficos de cada classe. O fatalismo consiste em esquemas de comportamento e redes de significado, reforados pelas estruturas sociais apenas nas camadas marginalizadas dos pases latinoamericanos,
favorecendo, desse modo, as relaes de dominao-submisso e a estabilidade da ordem social.
Como observa Martn-Bar (1998b), o fatalismo um importante instrumento ideolgico utilizado pelas classes dominantes para gerar comportamentos de resignao e subservincia, dispensando o uso de
tcnicas de coero, represso e violncia, o que torna mais eficaz o processo de dominao social. Ao conceber o mundo como produto de foras externas, a ideologia fatalista oculta a verdade e cria a falsa impresso de
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que nada pode ser feito para modific-lo, gerando, assim, desesperana,
passividade e submisso. De acordo com sua tese central, o destino dos homens foi traado pela natureza ou por Deus desde o nascimento, no lhes
restando nenhuma alternativa seno aceitar sua sorte, renunciar aos sonhos e enfrentar a vida com pacincia e tolerncia. Com o auxlio das crenas religiosas, o fatalismo transforma os processos histricos em
eventos naturais ou desgnios divinos, confirma a impotncia humana frente s foras externas, pe em evidncia a inevitabilidade do destino e a imutabilidade da sociedade, alm de utilizar em seu sistema ideolgico
smbolos absolutos e abstratos. A religio, portanto, contribui significativamente para fortalecer as atitudes fatalistas, servindo como um
dos instrumentos mais importantes e eficazes dos poderes dominantes para a perpetuao do sistema estabelecido, a justificao da dominao social e a condenao de qualquer tipo de reivindicao que almeje mudanas
estruturais na organizao da sociedade.
Dada la religiosidad de los pueblos latinoamericanos, la confluencia de fatalismo y creencias religiosas constituye uno de los elementos que ms contribuye a garantizar la estabilidad del orden opresor. Cuando la definicin del propio destino se asume casi como un artculo de fe, la sumisin frente las condiciones de la vida se interpreta como obediencia a la voluntad de Dios y la docilidad social se convierte en una virtud religiosa, todo aquello que podra afectar los ncleos fundamentales del ordenamiento social es excluido como objeto de cambio. De este modo, el fatalismo proporciona a las clases dominantes una eficaz punta de lanza para la defensa de sus intereses de clase (Martn-Bar, 1998b, p. 98).
Religio, ideologia e poltica
Ao discorrer sobre as questes sociais que caracterizam as mltiplas
realidades da Amrica Latina, Martn-Bar no se furta difcil tarefa de analisar as relaes entre religio e poltica. O autor aproxima essas duas esferas aparentemente distintas e separadas por intermdio do fenmeno da ideologia. O carter poltico da religio, mais precisamente da converso religiosa, pode ser apreendido mediante o exame das dimenses ideolgicas do comportamento humano, ou seja, das foras sociais e dos interesses
polticos enraizados no psiquismo dos indivduos e articulados nas aes cotidianas. Segundo Martn-Bar (1989), a psicologia social possui
ferramentas adequadas compreenso dos aspectos polticos da experincia religiosa, porquanto sua especificidade reside na anlise dos elementos ideolgicos da ao humana, ou melhor, na correlao de foras
polticas e sociais que o comportamento dos indivduos representa, refora e favorece. Como j foi dito anteriormente, Martn-Bar (1989) entende a ideologia como a interiorizao de foras polticas, interesses sociais e
aspiraes da classe dominante de maneira que passam a integrar o
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psiquismo dos sujeitos, determinando e orientando suas aes na esfera das
relaes cotidianas.
La ideologa no puede reducirse a un conjunto de ideas y valores, ms o menos orientadores de la existencia de las personas, sino que debe verse como la materializacin y articulacin psquica (en los esquemas cognoscitivos, en el marco de referencia valorativo, en los hbitos comportamentales y, por tanto, en el estilo de vida) de las fuerzas sociales que se hacen presentes en cada persona (Martn-Bar, 1998d, p. 229).
A psicologia social crtica no concebe as foras sociais nem os comportamentos humanos como entidades naturais e absolutas, mas como
fenmenos histricos. Apenas considerando e analisando a historicidade desses fenmenos, possvel compreend-los verdadeiramente e apreender
seus componentes ideolgicos. A psicologia hegemnica ignora e nega o carter histrico, poltico e ideolgico da converso religiosa, tratando-a unicamente como um ato individual, fruto de vontade pessoal. Conforme
Martn-Bar (1989; 1998e), o psiclogo social deve examinar as dimenses ideolgicas da converso religiosa, ou seja, as foras sociais concretas mobilizadas nesse processo, os grupos sociais favorecidos, os interesses de
classe atendidos e os efeitos polticos de alienao ou conscientizao produzidos pela converso. Nesse sentido, a converso religiosa no pode
ser considerada unicamente uma deciso individual nem uma prtica interpessoal, mas especialmente um processo social e poltico, visto que a adeso a um segmento religioso interfere nos conflitos sociais, nas disputas
polticas e nos jogos de poder. Presente nos interstcios do tecido social, o poder, uma vez internalizado pelos indivduos, torna-se um valioso instrumento da ideologia religiosa, que legitima e justifica a dominao
social. Para Martn-Bar (1989), o crescimento vertiginoso da converso religiosa na Amrica Latina, sobretudo nos segmentos pentecostais, tem
favorecido os grupos que esto no poder, servindo como instrumento poltico de alienao e contribuindo para a conservao da ordem vigente.
Nos pases latinoamericanos, a disputa religiosa representa um dos
maiores conflitos ideolgicos de que os sistemas sociais e os regimes polticos se utilizam estrategicamente para evitar a instabilidade da
sociedade constituda e assegurar a perpetuao dos grupos dominantes no poder. H, pois, forte relao entre prticas religiosas e comportamentos polticos. Como sugere Martn-Bar (1989), os posicionamentos polticos dos
sujeitos dependem do tipo de religiosidade que possuem. As religies no produzem comportamentos polticos uniformes, podendo dar origem a posies conservadoras ou progressistas, dependendo do sistema simblico,
do conjunto de crenas, dos preceitos morais e dos cdigos de conduta que apresentam. Seja quando produz comportamentos conservadores seja
quando produz comportamentos progressistas, a converso religiosa possui uma funcionalidade poltica, gerando mltiplos e diferentes impactos na
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esfera da vida pblica. A dimenso ideolgica da religio refere-se ao
impacto poltico da converso religiosa, que envolve os conflitos de interesse entre as diferentes foras sociais que compem as sociedades de classe. As
religies verticalizadas do origem alienao e ao conformismo, ao passo que as religies horizontalizadas estimulam a conscientizao e a mobilizao poltica em nome de mudanas estruturais. Embora no negue
sua importncia na vida individual, a anlise ideolgica compreende a converso religiosa como um fenmeno social e poltico, investigando seus impactos scio-polticos na realidade histrica e na disputa de poder entre
as foras sociais. A depender das premissas ideolgicas que defende, a religio pode servir aos grupos dominantes como importante instrumento
poltico, funcionando como uma espcie de dominao silenciosa que exige a resignao dos indivduos frente s adversidades da vida e s intempries do destino.
Consideraes finais
No obstante considere impossvel a eliminao total das ideologias, Martn-Bar (1998c) argumenta que a principal tarefa da psicologia social crtica consiste em mediar o processo de desideologizao do cotidiano, desvelando
a realidade e despertando conscincias alienadas. Em sua concepo, antes de realizar essa funo, a psicologia dominante na Amrica Latina - tradicionalmente individualista, elitista, ideolgica, despolitizada,
abstracionista e universalizante deve desideologizar-se, o que significa assumir sua responsabilidade histrica com as camadas populares e
comprometer-se com o projeto tico-poltico de transformao social. A desideologizao da psicologia implica em afirmar seu compromisso com os grupos economicamente desfavorecidos e desenvolver uma prxis que altere
significativamente suas formas de viver, pensar, sentir e agir. Desconstruir ideologias e fomentar conscientizao so finalidades dessa nova psicologia,
consciente e desideologizada. Segundo Chaui (2007), a desconstruo do discurso ideolgico decorre das contradies que lhe so constitutivas e se manifestam por intermdio do discurso crtico, o qual no externo ao
sujeito que fala. Trata-se, pois, de um discurso que se realiza no interior da prpria ideologia como contradiscurso. A crtica ideologia deve se realizar dentro dela mesma, pela elaborao de um discurso negativo em seu
interior.
Isso significa afirmar que a conscientizao no ocorre de forma passiva
e exterior ao sujeito, mas tambm no se d individualmente. Ningum consegue alcanar algum nvel de conscincia da realidade em estado de isolamento e inrcia. A mediao do outro indispensvel desde que no
seja impositiva, vertical e assimtrica, como sustenta Freire (1994). Conforme Martn-Bar (1998g), a conscientizao um processo psicossocial, que sempre envolve a participao do outro. No se trata de
doutrinao nem assimilao automtica de novos saberes e atitudes; mas
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Estudo Psicopoltico da Ideologia 99
de uma produo coletiva de novas formas de perceber o mundo e agir sobre
ele. No um processo meramente cognitivo, que modifica apenas as ideias que o indivduo possui; mas um processo de transformao de si e do
mundo, que altera sua relao com a realidade concreta. Por meio da desideologizao, o sujeito adquire liberdade para agir, pensar e sentir, libertando-se da dominao que lhe impossibilitava enxergar o cotidiano,
coberto pelo vu obscuro da ideologia.
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Fecha de recepcin: 17 de junio 2014
Fecha de aceptacin: 22 de noviembre 2015