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Franz Ícaro de Sá Silva
4
Jaime Pelloutier
CONTOS PROFESSORESCOS
2014.
Grupo de Estudos Anarquistas do Piauí
anarquistas-pi.blogspot.com.br
facebook.com/anarquismo.pi
5
SUMÁRIO
PREFÁCIO………………………........................................... 06
INTRODUÇÃO....................................................................... 08
PROFESSOR ............................................................................ 09
OS FATOS................................................................................ 10
A DIRETORA.......................................................................... 15
A INVESTIDA DO PODER INSTITUCIONAL................. 18
NOTAS ..................................................................................... 22
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Franz Ícaro de Sá Silva
PREFÁCIO
“A educação de mulheres e homens livres constitui o alicerce no qual pode
vir a ser uma sociedade libertária. Por isso, os espaços de formação preci-
sam estar comprometidos com a construção de um projeto emancipatório,
igualitário, autogestionário, antiautoritário e em sintonia com a diversida-
de daqueles que dele fazem parte.” (Manifesto do Núcleo Pró-Federação
Libertária de Educação).
É preciso romper o medo
Silvio Gallo, em “Pedagogia do risco”, uma das obras essenciais para
quem quer entender a Pedagogia Libertária, nos fala sobre a necessidade de
romper com as práticas pedagógicas tradicionais que ele chama de Pedago-
gia da Segurança. Em lugar dessa pedagogia baseada na delegação de po-
der, no autoritarismo, na completude do discurso que não deixa espaço para
a fala do que aprende, propõe, então, a Pedagogia do Risco.
A Pedagogia do Risco nos convida a sair do lugar confortável do
“detentor de saberes” para ocupar um outro espaço, o do mestre ignorante
(no sentido de desconhecer, ignorar) e aprender junto, numa construção
coletiva e autogestionada de saber. Esse convite é tentador, mas ao mesmo
tempo assustador para muitos de nós, porque ele nos põe a pensar nos limi-
tes que nós mesmos impomos as nossas práticas.
O quanto de nossas queixas contra o sistema não são, na verdade,
nosso mecanismo de defesa e acomodação ao sistema de “segurança”?
Quanto estamos dispostos a arriscar todos os dias na construção coletiva de
uma educação para e pela liberdade? No entanto, é preciso que comecemos
por algum lugar, porque dificilmente teremos as condições necessárias e
suficientes algum dia se não começarmos a cavá-las ainda hoje.
Nenhuma mudança acontece no mundo se não acontece primeiro nas
pessoas. Nós, educadores, ocupamos um espaço privilegiado para gestar as
mudanças, não como projetos do porvir, mas como cotidiano, como cons-
trução do caminho enquanto caminhamos. Nesse sentido, o texto a seguir -
“Contos professorescos” - nos mostra que cada espaço de questionamento
individual/coletivo reverbera e amplifica os questionamentos individu-
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Contos professorescos
ais/coletivos e nesse pensar junto podemos aos poucos transformar, en-
quanto nos transformamos.
Ninguém dirá que é fácil, nem que existe fórmula. Ninguém dirá que
não é cansativo, às vezes; nem solitário, no começo. Mas o professor desses
contos nos diz que é possível. E necessário. E requer a coragem revolucio-
nária de, acima de tudo, começar a dizer NÃO.
Katia Motta
Núcleo Pró-Federação Libertária de Educação
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
Era uma típica tarde de agosto. Céu azul, sol brilhante: um calor in-
fernal sempre presente naquela região, principalmente entre os meses de
agosto e dezembro. Era sábado e era dia letivo. O calendário contemplava
aulas de segunda a sexta, mas, naquela escola, as aulas aos sábados eram
quase uma constante. Acontece que naquela localidade a educação não era
lá muito bem tratada. O ensino público gratuito e de qualidade era algo
palpável apenas nos documentos oficiais e nos discursos políticos. A reali-
dade era que a estrutura da escola pública era precária, os professores
mal remunerados, desmotivados, explorados, acomodados e mais um sem
número de “ados” que caracterizam uma classe social e trabalhadora de-
sequilibrada. O ensino público era de má qualidade e isso levava a cons-
tantes inquietações dentro da comunidade escolar, que às vezes se manifes-
tava na forma de greves dos profissionais da educação. Os movimentos
paredistas tinham como pauta de reinvindicações assuntos de primeira ne-
cessidade como salário, jornada de trabalho, entre outros que preconiza-
vam melhorias na educação. Entendia-se que os objetivos seriam alcança-
dos partindo da conquista de melhorias nas condições de trabalho dos
educadores e das educadoras¹. O ônus imediato aos que aderiam ao movi-
mento grevista era ter que repor as aulas ao término das negociações,
após o retorno às atividades. A forma mais eficiente encontrada pelos ges-
tores e trabalhadores daquele lugar era acrescentar um dia letivo ao ca-
lendário escolar, transformando assim os sétimos dias em “sábados de re-
posição”. É numa tarde de sábado de agosto numa escola pública que en-
contramos nosso protagonista. Se mocinho ou bandido, herói ou vilão, cer-
to ou errado, coerente ou louco, deixo ao cargo do sentimento de quem ler
decidir.
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
PROFESSOR
Nosso professor era jovem, tanto em idade quanto em “tempo de ser-
viço”, duas medidas que eram eventualmente utilizadas como auxiliares no
momento de se avaliar profissional e pessoalmente o docente. Ainda não
tinha 30 anos completos e de efetivo magistério ainda não cruzara a barrei-
ra dos cinco. Nunca havia desejado essa profissão, nem sequer se imagina-
va vivendo de vender aulas (por sinal, tão baratas) para um órgão do go-
verno. Tinha chegado àquela situação por força das circunstâncias, ou tal-
vez, para dar um ar meio sobrenatural ou divino à trama, pela influência do
destino. Seja qual for o caso, estava naquele agosto, a menos de um mês de
completar seu terceiro ano naquela unidade de ensino.
Tinham sido tempos difíceis para ele aqueles últimos três anos.
Adentrou na educação pública munido da mais perfeita formação positivis-
ta, defendendo arduamente a disciplina na escola e o empenho incondicio-
nal do alunado como receita para uma educação de qualidade. Embora des-
de sempre tivesse orientações políticas simpáticas ao libertarismo, iniciou a
atividade docente prezando pela valorização do professor como o centro do
processo educacional. Acreditava que para resolver a situação bastava dar
mais poder ao professor, tanto financeiro como administrativamente, dando
a este um leque maior de possibilidades de punição. Estas condições gera-
riam o ambiente ideal para a aprendizagem. Não demorou muito a perceber
quão verdadeiro é aquele bordão que diz: “na prática a teoria é outra”. Ele
ainda não havia se dado conta de que forças maiores e mais nefastas atua-
vam efetivamente naquele terreno escolar, o qual havia cultuado, quase que
religiosamente, ao longo de toda sua vida.
Deparou-se com a resistência do sistema, das pessoas, dos alunos e
dele próprio. A realidade era outra. Embora não muito mais de quinze anos
separasse nosso protagonista da época em que ele próprio fora aluno, as
coisas haviam mudado drasticamente. Logo no primeiro ano de magistério
deu-se conta de que as ferramentas que julgava adequadas ao processo en-
sino-aprendizagem eram totalmente ineficazes diante das adversidades em
que a escola tinha sido afundada. Passou a perceber o quanto ele havia sido
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corrompido, o quanto o sistema já se injetava em suas veias, o transfor-
mando cada vez mais numa marionete. Percebeu isso num tempo relativa-
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mente curto, mas o processo foi complicado e doloroso, até que ele pudesse
se dar conta de que ia pelo caminho errado.
Como se uma venda lhe tivesse sido tirada, passara os últimos três
anos se descontruindo e se reconstruindo, se desencontrando e reencon-
trando. Neste momento, já era reconhecidamente um elemento que ia con-
tra a ordem social vigente. A formação libertária que iniciara ao entrar na
academia lhe servia agora de energia para cerrar fileiras junto aos compa-
nheiros e companheiras que também lutavam por melhorias. Não dava as
costas, porém, à sua fé cientifica, por isso, vinha cada vez mais buscando
relacionar suas ideias com a dos teóricos. Voltara a estudar freneticamente.
Iniciara aquele ano com duas atitudes que o levariam aos acontecimentos
desse emblemático sábado de agosto: mantinha-se firme no apoio à luta
sindical (embora em seu interior já questionasse ferrenhamente a atuação
do sindicato) e transformaria suas salas de aula em laboratórios. Iria ousar,
tentar, experimentar, escrever, produzir, incitar. Enfim, tentaria mudar as
coisas. Nem que fosse apenas as coisas que pudesse mudar. Tentaria mudar
o mundo, nem que o mundo naquele momento se reduzisse às suas salas de
aula.
Suas atitudes, seus discursos, suas roupas, sua postura, seu cabelo,
seu olhar, tudo isso o levara a um ponto sem volta. Naquele quente agosto,
nosso professor era um rebelde.
OS FATOS
Ele vinha lendo muito naqueles dias. Lia sobre revoluções, revolucionários
de armas nas mãos à frente de exércitos; sobre pedagogias, pedagogias li-
bertárias, pedagogia dos oprimidos e dos opressores; sobre filosofia, socio-
logia, biologia, meio ambiente, política, religião, ciência. Estava literal-
mente fervendo naquele início de segundo semestre letivo. Gastava horas
conversando com colegas sobre os rumos da educação, sobre os rumos da
sociedade e do planeta, e até do espírito. Escrevia, lia, fazia experimentos
nas aulas, aplicava questionários, falava aos colegas sobre suas ideias, con-
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
vidava, mesmo que discretamente para não assustar, a compartilharem de
seu entusiasmo em ver as coisas de outra forma.
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
Eis que por ocasião desse sábado de reposição, ele resolve testar algo bas-
tante simples, embora fundamentado em conceitos e discussões científicas².
Tratava-se de deixá-los livres para fazerem o que bem entendessem. Nosso
docente utilizou quatro palavras, escritas no quadro da seguinte forma:
“Ação”
1. Observar, registrar (documentar), relatar.
A primeira turma (oitavo ano) não deu muita atenção à ação, talvez por
responderem mais prontamente ao chamamento “ATIVIDADE” no lugar
de ação. O primeiro horário transcorreu de forma tranquila, principalmente
devido ao reduzido número de alunos – nos sábados geralmente iam poucos
estudantes – o que, associado a vários outros fatores, levava o professor a
pensar se os sábados de reposição eram realmente para garantir os direitos
dos alunos a uma determinada carga horária de aulas, ou uma ferramenta
para punir os rebeldes que resolveram aderir à greve. Fato interessante foi
que alguns alunos do sétimo ano (que estavam fora de sala de aula) come-
çaram a entrar e participar das conversas e discussões. Não havia nenhuma
imposição, nenhuma regra, ali estavam alunos de séries diferentes numa
mesma sala discutindo assuntos comuns relacionados a conceitos básicos
como o heliocentrismo.
O professor os incitava a provar que era a Terra que girava em torno
do Sol, e eles iam tecendo suas considerações de acordo com suas capaci-
dades, indo desde afirmar que estava nos livros, a citar filmes ou então ex-
plicar utilizando a noite e o dia. Não havia regra alguma, a vez de falar era
conquistada no consenso³, a permanência ou não na sala era por eles deci-
dida, bem como se deveriam ou não retornar. Mesmo com toda essa liber-
dade, o debate não cessou, até que terminasse o horário. Como vários alu-
nos do sétimo ano estavam na sala, resolveu-se que o docente permaneceria
em “sua sala”, ao passo que os alunos se deslocariam. O sistema não fazia
o menor sentido para todo o arcabouço educacional da época. A ideia parti-
ra dos próprios alunos, sendo apenas apoiada pelo professor. Observava-se
que o alunado fixava-se num determinado local e os professores e professo-
ras se revezavam para ir até eles, em dias horários e tempos pré-
determinados, o que excluía toda e qualquer forma de espontaneidade. A
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interação entre docentes e discentes era regida por estruturas que favoreci-
am a mecanicidade das relações.
Iniciado o segundo horário, a turma ficou mais populosa, entretanto
com um número reduzido de alunos. Chegava a vinte e poucos, o máximo.
Nos dias normais eram trinta e tantos. A postura do professor continuou a
mesma do primeiro horário. Vestia a camisa de um encontro nacional de
estudantes do qual participara cinco anos antes. A calça jeans era a mais
nova. Era daquele ano mesmo. Sua mãe havia lhe comprado por ter notado
que ele possuía apenas duas. Tinha guardado a calça sem usar. Quando a
que vinha usando rasgou, ele começou a usar a nova, voltando a possuir
duas calças usáveis para dar aula normalmente. O tênis não era dos mais
velhos, mas era surrado, sujo, e não era de marca. Ele estava sentado sobre
a mesa de ferro, em posição de lótus. Tinha um livro nas mãos: um roman-
ce histórico sobre uma revolução ocorrida num tempo e num espaço distan-
tes dele por menos de um século. Lia com empolgação.
O primeiro disparo não demora: “Professor, o que é que é pra fazer?”
Ele queria ter respondido cantando: “faz o que tu queres pois é tudo da lei”.
Mas se limitou a apontar para o quadro que ainda continha as palavras da
aula anterior. Aí se inicia o bombardeio: “Professor, num entendi não, é pra
fazer o quê?” E ele calmamente lê as palavras escritas no quadro. O que
leva ao seguinte diálogo:
Turma: “Observar o que professor?”
Professor: “Não sei, o que você quiser”.
T: “Documentar como professor?”
P: “Não sei, como você quiser”.
T: “Mas como é que faz isso aí professor?”
P: “Simples: vocês observam, registram e relatam o que quiserem, como
quiserem e da forma que quiserem”.
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
Eis então que, diferentemente da propriedade privada que é um fruto
da sociedade4, um sabido ergue a mão e faz a pergunta decisiva, com um
sorriso nos lábios por ter quase certeza de que a resposta ia ser negativa.
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
Pergunta feita como uma afronta ou como uma brincadeira: “Posso ir ob-
servar lá fora, no resto da escola?” Ao que nosso “Professor Anarquista
Epistemológico” de Feyerabend, responde categoricamente: “Se você qui-
ser!” Não demora muito para que a turma inteira tenha a mesma ideia. Em
poucos minutos, a sala conta apenas com uma única presença, com as per-
nas cruzadas sobre a mesa, lendo.
A atividade tinha por objetivo estimular a criatividade dos discentes,
ao passo que também se prestava a dar uma “folga”, uma pausa no ensino
tradicional praticado durante toda a semana. Em termos práticos, o profes-
sor acreditava que não seria feito nenhum tipo de observação que pudesse
vir a ser registrada e muito menos relatada, mas sabia estar ali plantando
uma semente de liberdade, um breve momento de alegria e descontração
naquele ambiente que era tão hostil.
– “Talvez, a partir da terceira vez que eu proponha essa atividade,
eles comecem a se cansar de não fazer nada nesse horário e resolvam pro-
duzir alguma coisa”, pensava o reflexivo docente.
Mas qual não foi sua surpresa quando um grupo de garotos pergun-
tou se podia fotografar ou filmar com o celular. “Se quiserem”. Foi a res-
posta que tiveram, e de repente já iniciavam uma filmagem na sala mesmo,
com um dos alunos mais displicente da turma fazendo às vezes de apresen-
tador. Espontaneamente e sem nenhum planejamento ou imposição ou di-
recionamento, se decidiram por filmar as coisas erradas da escola. E saí-
ram, um grupo de sabe-se lá quantos, organizados sabe-se lá de que forma.
Mas foram. Algum tempo depois chega um grupo de meninas, cada uma
com uma página ou duas de caderno, escrito alguma coisa, organizado em
tópicos, haviam realizado uma vistoria e agora se preparavam para também
irem filmar.
O professor começa a se emocionar. Alguns alunos estão apenas pas-
seando pela escola, mas a grande maioria está empenhada em fazer um le-
vantamento das necessidades do espaço físico, um documentário, uma de-
núncia, seja lá o que for. Um grupo chega com uma prévia de um vídeo.
Entrevistaram uma professora, uma trabalhadora da escola, uma aluna. Es-
tavam agindo, tentavam aprender alguma coisa sozinhos. Naquele momen-
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to o professor pouco interferia, pouco interessava, nada tinha a ensinar, mas
aprendia muito com as atitudes e pontos de vista daquelas crianças.
Resolve ir tomar água e no caminho vê uma professora de inglês uti-
lizando uma parte da escola onde existem algumas plantas. O solo não é
dos mais agradáveis, não há uma grama verdinha, ou uma areia macia e
gostosa de pisar, é simplesmente uma parte do terreno que não tem cimen-
to, mas tem mangueiras. As maiores, embora ainda não muito altas e fron-
dosas, já produzem uma sombra relativamente boa. A professora estava
utilizando a sombra de duas mangueiras. Ela, uma afrodescendente belís-
sima que ostentava uma cabeleira cacheada, organizou as crianças em cír-
culo e estava conversando com eles. Naquele instante palavras como Aya-
bás, Griôs, Axé, percorreram o pensamento do professor e ele pensou na
África, na floresta, nos xamãs... Era uma cena bonita de se ver... Lembrou-
se das histórias que ouvira na infância, de professoras que davam aulas
“embaixo de um pé de árvore”. Sentiu-se bem. Seus alunos haviam “atrapa-
lhado” a aula da professora, conseguindo arrancar dela um breve depoi-
mento sobre a situação da escola. Depoimento quase politicamente incor-
reto por ela afirmar que “tá tudo errado, tem que mudar tudo pra melhorar”.
No primeiro horário havia sido a interação de duas turmas suas, agora as
turmas saíam das salas e se encontravam em outro espaço, e interagiam de
forma diferente, pois as sensações e as noções se apresentavam de outras
maneiras, sobre outros pontos de vista.
O professor decide que irá aguardar e acompanhar o retorno das cri-
anças também do lado de fora da sala. Posiciona uma cadeira na porta e
retoma a leitura, que logo é interrompida pela chegada de um grupo de me-
ninas com um vídeo já pronto. O professor passa a assistir o vídeo com o
celular nas mãos. As alunas o cercam. Há risos, comentários. O clima é
bom. Nosso professor está feliz, orgulhoso daquelas crianças que às vezes
até ele mesmo subestimava. Mostram-lhe, de forma espontânea, que a elas
não faltava nada. Continuavam sendo curiosas, ativas, rebeldes, alegres,
debochadas, voláteis, inteligentes, criativas, como devem ser todas as cri-
anças. Não faltava nada à essência daquelas crianças, o que faltava era uma
escola (uma sociedade) que as acolhesse com respeito, com solidariedade,
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
com liberdade. Os erros de nossas crianças são os erros de nossa geração,
de nosso modo de vida, de nossas religiões, de nossas famílias. Atribuir às
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crianças a culpa por suas faltas é no mínimo hipocrisia, visto que ao longo
dos tempos sempre coube aos adultos cuidar e educar as crias. Logo, se elas
estão sendo mal-educadas, a culpa não pode em hipótese alguma ser atribu-
ída a elas, ao desinteresse, a falta de criatividade ou de inteligência ou nada
do tipo. Por outro lado, a culpa pode ser dividida por toda a sociedade, pois
cabe a ela cuidar e educar as crianças. Assim devaneia nosso ilustre aluno
docente. Mal sabe ele que, este é apenas “o silêncio que precede o espor-
ro”. O mal vem a galope, vem vestido de negro, vem com a voz baixa,
mansa. Talvez dizer que ele vinha a galope seja um insulto aos seres que
galopam, melhor pensar que vinha como uma nuvem virulenta carregada de
energia negativa.
A Senhora Diretora se aproxima.
A DIRETORA
A diretora também era jovem. Rondava os 30 anos, não chegava a
ser uma bela mulher, mas também não era nada absurdamente desagradável
de olhar. Tinha uma estatura boa em comparação com as mulheres da regi-
ão, e quase sempre valorizava essa estatura com a utilização de calçados de
salto alto, geralmente com solados de madeira que faziam um barulho ca-
racterístico quando passava. Com um pouco de perícia ou paciência, pen-
sava o professor, seria possível associar o seu humor ao barulho de seus
saltos.
Era pedagoga, cristã, provavelmente católica; casada, talvez tivesse
filhos. Tinha voz mansa, sonsa, com um timbre mesclado de um agudo mé-
dio com uma certa rouquidão, que desafinava quando tentava elevar o tom
com os alunos. Era fraca na oratória, com uma presença e carisma sofríveis.
Em contrapartida, esbanjava soberba, cinismo e inveja, talvez oriunda de
uma incompetência aguda. Tentava ser autoritária sem, no entanto, de-
monstrar qualquer autoridade. Era uma figura vingativa, perseguidora e ba-
juladora. Era assim que ela era vista pelo professor naqueles dias, mas nem
sempre as coisas tinham sido assim.
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A Diretora começou na escola como professora de bloco5
e já no ano
anterior ao nosso ocorrido, tornara-se pedagoga, passando então a outro
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status dentro da instituição escolar. Foi nessa época que ela se apresentou a
nosso professor. Chegou com um discurso bonito a princípio, de que iria
trabalhar junto com os docentes, que apoiava suas bandeiras de luta, entre
outras coisas. No segundo semestre desse ano, o movimento sindical apre-
sentava uma “vitória” no campo das negociações, conquistavam o direito
de realizar eleições para a direção das escolas6. Esta questão ainda se re-
construía de um movimento paredista que dividira de forma drástica o qua-
dro dos docentes, e agravou os conflitos entre a direção e ala mais radical
dos grevistas, ala a qual logicamente nosso professor não só fazia parte
como militava ativamente no enfrentamento direto em seu local de traba-
lho. O grupo rebelde viu nas eleições uma maneira legalista de tomada do
poder da escola, elegeriam gestores que pudessem fazer frente às atrocida-
des implicadas pelo órgão público responsável pela educação, o qual era
conhecido pela alcunha de A Secretaria.
Acontece que a vitória não tinha sido completa. Todos poderiam se
candidatar à direção da escola, desde que preenchessem certos requisitos,
como tempo de serviço. Dessa forma, as opções do grupo rebelde se reduzi-
ram bastante, pois, nenhum dos mais interessados em se tornar gestor aten-
dia aos requisitos. Começaram então a pesquisar entre aqueles que, embora
não se mostrassem totalmente adeptos aos rebeldes, fossem pelo menos
simpáticos ao movimento. Acreditavam que nenhuma gestão poderia ser
pior que a atual e propunham uma forma alternativa de administrar o esta-
belecimento de ensino. Fariam uma gestão participativa, na qual todos os
professores e professoras se reuniriam em conselho para administrar junta-
mente com quem estivesse ocupando a cadeira de diretor e de diretor ad-
junto.
Vale salientar aqui que nosso destacado professor ativista não alme-
java ser diretor. Pelo contrário, abominava esta divisão social que colocava
um profissional acima do outro, um ser humano acima de outro. Acreditava
que as decisões deveriam ser tomadas em consenso, com a participação ati-
va de todos e todas. Em tempo, entendia que naquela situação seria preciso
se render um pouco ao legalismo, pensava em primeiro adotar a linha re-
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formista para em seguida progredir para a revolução, de forma gradativa,
de acordo com que fossem evoluindo suas formas de organização bem co-
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
mo seus próprios espíritos e consciências. Aprenderiam a gerir uma escola
gerindo uma escola7.
As opções se reduziram às atuais diretora e adjunta. Graças a uma
proeza do destino, nosso rebelde não carrega nos dias do acontecido a culpa
ou o remorso de, mesmo sendo defensor de uma política libertaria, ter dado
seu voto e contribuição para colocá-la no local onde se encontravam. Não
votou a favor dos créditos de guerra como a personagem de nome Rosa, do
romance que estava lendo8. As duas se negaram a participar das eleições
como representantes do partido docente. Deram como motivos, problemas
pessoais, falta de tempo e de interesse na administração, falta de conheci-
mento para desempenhar as tarefas administrativas, falta de preparo e in-
disposição para assumir tantas responsabilidades, entre outras coisas menos
relevantes.
O prazo para inscrições de chapas se encerra sem que os rebeldes
consigam lançar uma candidatura. Isso se deu no mês de novembro. Já em
fevereiro as duas assumiam os cargos após “indicação” da Secretaria. Ao
final de abril já era quase unânime entre os rebeldes, o sentimento de que
eles haviam cometido um erro colossal ao afirmarem que nenhuma gestão
poderia ser pior que a do ano anterior. A atual havia transformado a escola
num pandemônio. O caos reinava e as coisas iam de mal a pior.
A diretora se aproxima. Passo firme e cadenciado: toc-toc. Ela vem
de preto, elegante. Bem maquiada, com joias. Um semblante sereno, um
leve sorriso nos lábios, mas não daqueles que nos faz querer correr pra ci-
ma da pessoa e rir junto com ela. É um leve sorriso que assustava um pou-
co ou pelo menos causava algum desconforto. Uma das alunas pergunta
quase num sussurro: “Professor, lá vem a diretora, ela num vai brigar não?”
O professor ri: – “Brigar?! E por que ela brigaria? Vocês estão no meio de
uma atividade e estão indo muito bem, por sinal”, foi o que ele disse, mas
seu coração sentia outra coisa. Sabia que a tormenta se aproximava. Sabia
que aquela seria uma batalha que ele não poderia evitar.
Pois que fosse, pensou. “VIVA A REVOLUÇÃO!”, bradou pra si
mesmo em seu consciente mais positivo.
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A INVESTIDA DO PODER INSTITUCIONAL
O professor viu a senhora diretora gentilmente conduzir seus alunos
e alunas sala adentro. Houve um ou outro levante de resistência dos discen-
tes, que foram prontamente repelidos com um leve acréscimo de quase uma
oitava no tom de voz, reforçando o imperativo autoritário. Ela simplesmen-
te havia interrompido uma atividade que se realizava de forma esplêndida.
A autonomia na formação dos grupos, as decisões sobre o que observar (no
caso os problemas estruturais da escola), a forma como estavam adminis-
trando os conflitos, o empenho. O grupo das meninas já havia retornado
com várias páginas escritas, numa época em que era consenso entre todos e
todas em todas as séries e turmas, que o alunado odiava escrever. E real-
mente eles deviam odiar, mas não o ato de escrever em si, talvez eles e elas
odiassem escrever coisas que não lhes interessavam. Pergunta frequente
nas rodinhas de conversa dos educadores, na sala dos professores, era: “O
que podemos fazer para essas crianças se interessarem pelos estudos? O
que fazer pra que eles se dediquem?” O professor começava a ter um vis-
lumbre da resposta. Deixem que eles e elas decidam o que querem estudar,
como querem estudar, quando querem estudar. Deixem-nos livres! Deixem
que eles entendam por si próprios suas necessidades, suas potencialidades,
deixem que eles reconheçam seus erros, suas deficiências, suas falhas. E
acima de tudo, pensava mais profundamente o professor, estejam com eles.
Sintam, reflitam, se importem realmente, não somente com uma falta ou
uma atividade ou um décimo ou uma prova. Importem-se com suas vidas,
com seus sonhos, com seus desejos, com suas famílias. Façam parte da vida
deles. Colaborem com todas as forças para que se emancipem, como seres
humanos, para que se tornem pessoas boas e felizes.
Mas o professor já estava sozinho sentado em sua cadeira, na porta
da sala de aula, com seu romance nas mãos. Seus alunos tinham sido tran-
cados numa sala pelo poder coercitivo de uma força que usava uma voz,
suave, mansa, com um leve sorriso nos lábios e um ódio cego no olhar.
Seus alunos e suas alunas foram conduzidos para dentro da sala, retirados
bruscamente de seu sonho de escola como lugar interessante, onde se podia
fazer várias coisas, inclusive aprender, e inclusive ensinar. O professor es-
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tava só. A doce melodia das crianças rindo a sua volta, acompanhada sin-
fonicamente pelas vozes infantis que explicavam as cenas que se passavam
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no celular, havia sumido. Reinava o silêncio (coisa rara de acontecer na-
quela escola). Parecia que até mesmo as paredes e as plantas e os animais
haviam se chocado com tamanha truculência. E a “violência simbólica”9
tinha apenas começado.
Tentarei transcrever o diálogo entre nossa personagem rebelde e sua
adversária institucional, sem maiores explicações ou comentários, visando
com isso portar-me como imparcial (sem querer ser hipócrita), para que
todas que leiam possam fazer seus próprios julgamentos.
Após se certificar que todos os alunos estavam sentados, em fila,
comportados, calados, dóceis, ela sai da sala e se dirige suavemente para o
professor:
Diretora: – “Professor, que atividade o senhor esta fazendo?”
Professor: – “A que esta escrita no quadro”, respondido também com tom
suave e jovial.
D: – “Eu não estou perguntando o que está escrito. Estou querendo que me
diga qual é a atividade”.
P: – “A atividade é aquela que esta escrita no quadro”.
D: – “E o que é que isso tem a ver com sua matéria? Isso está no seu plane-
jamento? O que você planejou pra essa atividade?”
P: – “Você quer realmente que eu te explique uma metodologia minha pra
uma aula diferenciada? Solicite formalmente através de documento que eu
produzo um texto te explicando”.
D: – “Não, professor, eu quero é saber o que você está fazendo, porque
seus alunos estão todos fora da sala, você acha mesmo que essa é a postura
de um professor? Você acha mesmo certo o que você esta fazendo?”
O professor se levanta.
P: – “Ah!, então, você não está querendo saber o que eu estou fazendo, vo-
cê já está de antemão criticando o que eu estou fazendo. Está questionando
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a objetividade de uma atividade proposta por mim. Pois bem, vamos dialo-
gar sobre a importância da atividade com os maiores interessados”.
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O professor entra na sala.
P: – “Venha diretora, vamos discutir sobre a importância dessa atividade
com eles. Vamos ouvir a avaliação deles para construirmos as nossas...”
O professor é interrompido pela quase cômica figura da diretora, parada no
limite da porta, mas do lado de fora, se dirigindo a ele com dedo em riste, e
mais que uma oitava de prepotência na voz. No mesmo instante, risinhos
abafados e gestos de animação surgiam entre os alunos.
D: – “Professor, tenha mais respeito! Aja como um profissional! Se você
quer debater vamos até minha sala, que lá nós podemos fazer isso, mas eu
não vou ser antiética e bater boca com você na frente dos alunos...”
P: – “E dialogar com eles você pode? Ou você só sabe mesmo bater boca?”
A diretora vira as costas dizendo palavras desconexas.
P: – “Volte diretora! Não vire as costas para os alunos! Você acabou de
atrapalhar uma atividade deles, venha explicar o porquê! Eles merecem!”
Ela retorna e dessa vez entra na sala. O tom de voz soa descompassado,
alterado, nervoso.
D: – “Olhe aqui, professor, tenha mais respeito. Seja ético. Você não deve-
ria estar constrangendo seus alunos dessa maneira....”
Subitamente, a diretora é interrompida pelo professor que aumenta o tom
de voz. Pensando estar fazendo um discurso para um pequeno exército que
enfrenta seu inimigo poderoso.
P: – “Constrangendo?! Eu?! Você chega no meio de uma atividade que eles
estão fazendo e gostando. Você interrompe e usa de todo o seu autoritaris-
mo para primeiro colocar eles pra dentro e depois vir falar comigo. Ou seja,
você interrompe uma aula e vem falar de respeito e constrangimento?”
D: – “Professor não venha colocar problemas pessoais seus pra ser discuti-
do na frente dos alunos. Eu lhe chamei pra irmos conversar na minha sala
ou em outro local, porque essa discussão não tem nada a ver com eles...”
29 29
Jaime Pelloutier Contos professorescos
P: – “Ora deixe que eles decidam se tem a ver ou não. Você já interrompeu
mesmo e entrou na atividade mesmo sem convite. Agora permita pelo me-
nos que eles participem também!”
D: – “Professor, eu já disse o que tinha pra dizer. Quando o senhor começar
a tratar a escola e as pessoas com respeito, venha conversar comigo!”
Nem bem a Diretora dá às costas e sai da sala, surge uma vibrante salva de
palmas, tanto na sua sala como na sala ao lado, que tinha parado para
acompanhar a discussão.
P: – “Pessoal, quem ainda quiser, pode continuar a atividade. Podem termi-
nar o que estavam fazendo”.
E lá se foi a turma toda fazendo algazarra. Alguns pegaram seus ma-
teriais e escapuliram. Outros trouxeram mais vídeos e mais relatos orais. O
professor conferiu. Solicitou que, na aula seguinte, todos os alunos trouxes-
sem o material produzido. Tinha acabado de planejar seu próximo conteú-
do. Iria, juntamente com a criançada, editar os vídeos para fazer um docu-
mentário, uma chamada, uma campanha, divulgar. Convidaria algum cole-
ga seu que trabalha com produção e edição de materiais audiovisuais pra
dar uma palestra, talvez uma oficina... Tanta coisa. Ele estava feliz. Tinha
certeza de que não estava mais no caminho errado.
Dedicava-se à profissão lendo, pesquisando, experimentando. Acre-
ditava no potencial de seus alunos enquanto seres humanos dotados de to-
das as faculdades necessárias para se apropriar de qualquer tipo de conhe-
cimento. E, acima de tudo, tinha fé que a revolução na educação poderia
levar à uma revolução social de uma magnitude que apenas o tempo pode-
ria determinar. Contra ele pesavam, além da cara barbuda e do cabelo assa-
nhado, as acusações de irresponsável, negligente, desrespeitoso e por aí ia.
Naquela mesma tarde, durante o intervalo, nossa estimada diretora invadiu
uma reunião do grêmio estudantil, da qual participava, entre outras pessoas,
nosso professor em questão. Uma das atividades a que ele estava se dedi-
cando, era a de auxiliar na reativação do grêmio estudantil da escola. Isso,
no entanto, é material talvez para um novo conto10
.
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
NOTAS
¹Entendo a importância de desconstruir certos discursos, como no caso do
uso machista que nosso idioma faz para certas generalizações. Façamos o
seguinte teste, durante uma atividade qualquer, peça para que um casal de
pessoas faça alguma coisa dirigindo-se a eles, da seguinte forma, por
exemplo: “Vocês dois, se levantem!” Pouco depois, peça a outro (ou ao
mesmo) casal se dirigindo a elas (pessoas), “As duas aí, se levantem!”. Ve-
jam o resultado e entendam.
Apesar disso, explicamos aqui que, quando não nos referirmos a eles e elas
em separado, optando por generalizar no masculino, não é por nenhum mo-
tivo de cunho machista, é apenas por uma ainda latente incapacidade deste
falho ser humano que produz esse texto. Da mesma forma, quando causar
confusão generalizações femininas, procurem sempre tentar associar à pa-
lavras femininas coletivas, como pessoas, criaturas, etc.
²A saber, dentre outros, podemos citar, desprezando a ABNT, nomes e títu-
los como:
FOUCAULT no seu Vigiar e punir (1975) abordando a questão da docili-
zação dos corpos, da escola como local não só de reprodução e/ou criação
de conhecimento, mas também de instituição que tem como objetivo man-
ter a ordem social existente; as relações entre poder e saber, etc.
BOURDIER, que dialoga sobre o habitus, como forma de manutenção e
reprodução de ordens sociais, insere o termo violência simbólica, sobre o
que poderia ser entendido com as formas sutis de dominação, etc e tal, o
cara publicou mais de 300 livros, entre eles O poder simbólico (1992).
PERRENOUD, com seu currículo oculto e suas competências, atribui não
só ao ambiente escolar as causas do sucesso ou fracasso; sugere atitudes do
tipo: rompimento com o currículo fechado, estático, rígido; desenvolvimen-
to de outras formas de avaliação, e por aí vai. Citaria o Escola e Cidadania.
O papel da escola na formação para a democracia. (2002).
FREIRE. No Pedagogia do oprimido (1968), livro bastante divulgado e
lido, porém, pouco utilizado efetivamente. Esse barbudo meio louco defen-
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
dia uma educação emancipadora; revolucionária até, sugerindo a inter-
relação entre professor, aluno e sociedade.
PROUDHON, BAKUNIN, esses europeus do século XIX, são classificados
como anarquistas ou socialistas revolucionários ou comunistas utópicos ou
de forma mais generalizada, libertários. Por isso mesmo, defendem que a
educação deve ser construída sobre “o princípio da autoridade”. Incoeren-
te? Será que há uma diferença entre princípio de autoridade e autoritaris-
mo? Pra esses dois que são clássicos antigões eu vou furtar umas bibliogra-
fias a la ANBT:
BAKUNIN, Mikhail. (2000) Deus e o Estado. São Paulo, Imaginário.
(1989) in MORYIÓN. Educação Libertária. Porto Ale-
gre, Artes Médicas.
PROUDHON. Pierre Joseph (1986). In, PASSETTI, Edson, RESENDE,
Paulo Edgar. Proudon São Paulo, Ática. 149.
(1989) in MORIYÓN, F.G. (org) Educação
Libertária. Porto Alegre, Artes Médicas.
(Retiradas da dissertação de mestrado da Cristina S Queiroz - A EDUCA-
ÇÃO COMO ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA: UMA CRÍTICA ANARQUISTA
AO CONSTRUTIVISMO. Apresentada em 2002 como trabalho final para o
Mestrado em História e Filosofia da Educação da Universidade Estadual
de Campinas. Disponível em
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000248385
acesso em: 19/08/13)
Francisco Ferrer y Guardia e Ricardo Mella. Com a pedagogia libertária
levada a cabo em escolas experimentais de tendências anarquistas. FEYE-
RABEND com o anarquismo epistemológico.
GARCÍA MORIYÓN, F. Os pedagogos anarquistas. In: GARCÍA MORI-
YÓN, F. (org.). Educação libertária. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989b.
p.68 - 82.
FEYERABEND, Paul. Contra o método. 3.ed. São Paulo: Francisco Alves,
33 33
Jaime Pelloutier Contos professorescos
(Estas aqui habilmente furtadas do artigo O ENSINO DE CIÊNCIAS E O
PROFESSOR ANARQUISTA EPISTEMOLÓGICO do Paulo S. Terra, pu-
blicado no Cad. Brás. Ens. Fís., v. 19, n.2: p.208-218, ago. 2002. Disponí-
vel em https://150.162.1.115/index.php/fisica/article/viewFile/6622/6120
acesso em 22/08/13)
3 Talvez infelizmente seja necessário informar que nosso querido professor,
vez por outra, se utilizava de recursos sórdidos como: uma dicção mais
acostumada a falar em público ou uma capacidade de organização e expo-
sição de ideias um pouco maior que a de seus alunos, além, é claro, dos
atributos de poder que são inerentes a sua posição de mestre, para impor o
mínimo de ordem nas falas; ou então para reavivar um ponto fazendo um
novo questionamento que levava a novas especulações e manifestações e
assim por diante. Por mais que queiramos aqui ressaltar que a atividade
pretendia o exercício da criatividade e da liberdade, de forma alguma nos
esquecemos que os modelos impostos nas escolas atuam de forma automá-
tica no inconsciente das crianças (e de toda a comunidade). Sendo assim,
queremos explicitar que, embora o professor diga: “Façam o que quise-
rem!”. Elas (as crianças) sabem que a qualquer momento esse mesmo pro-
fessor pode revogar sua ordem e punir. A figura da autoridade e das regras
penetram no inconsciente, no subconsciente, na pele e no espírito.
4 Para Gilvan Rocha no livro Comunistas “filhos-da-pátria” (2009), a soci-
edade privada não foi criada por um sabido que de repente disse “isso agora
é meu”, segundo o ex-comunista, a propriedade privada foi fruto da própria
sociedade para suprir as carências existenciais do comunismo primitivo.
5 Neste mundo a educação básica é dividida basicamente em Educação In-
fantil (para crianças de 0 a 5 anos); Ensino fundamental (para crianças a
partir dos 6 anos, compreendendo um total de 9 anos, sendo que, os cinco
primeiros são tratados como bloco – fundamental menor – e os restantes
como área – fundamental maior.); Ensino médio (de 3 anos). Alguns estu-
dos e indicadores apontam para um notório fato: há uma hierarquia na edu-
cação, onde os professores e professoras da educação infantil são a base e
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
os professores universitários são o topo. Essa divisão se dá, principalmente
em virtude de duas coisas, a primeira sendo a remuneração. Via de regra,
35 35
Jaime Pelloutier Contos professorescos
os da educação infantil são os que ganham menos. A outra é o fator titula-
ção, onde logicamente, os professores universitários se destacam com seus
doutorados e PhD´s ao passo que um grande contingente da educação bási-
ca não possui nem mesmo uma graduação. Nesse assunto acredito que não
tenha tanto material publicado, mas há estudos sobre isso. Por ora vou citar
apenas o “Relações Raciais e Educação: novos desafios” (2003) organiza-
do pela Iolanda de Oliveira. Neste livro, a professora MULLER assina o
texto Professoras negras do Rio de Janeiro: história de um branqueamen-
to. A análise que ela faz das professoras negras do Rio na Primeira Repú-
blica dá algumas dicas sobre os motivos da educação nos dias de hoje estar
da forma que esta.
6 Naqueles idos, a educação pública era mais ou menos assim. Havia no
topo um prefeito, senhor absoluto daquela região, eleito democraticamente
pelo voto da população. O prefeito então nomeia um Secretário de Educa-
ção, utilizando-se de todo o poder que lhe fora conferido pelo voto da pró-
pria população, constituindo-se assim, da mais perfeita forma de democra-
cia e participação popular, atende aos anseios e clamores do povo ao seu
bel prazer. É. Na escolha de quem comandaria a Secretaria de Educação a
população não opinava, nem os alunos, nem os professores, nem ninguém
identificável. O Secretário era apenas nomeado pelo prefeito. Seguindo a
mesma ordem, a Secretaria escolhia quem trabalhava nela, ou seja, quem
trabalhava na administração da educação e, ampliava seu poder, nomeando
arbitrariamente quem seriam os gestores em nível local, ou seja, os direto-
res e diretoras de escola. Esse processo gerava um sem número de implica-
ções negativas, pois os gestores indicados, via de regra, “rezavam na carti-
lha da Secretaria”. Dessa forma, as batalhas dos docentes iniciavam dentro
das próprias escolas, pois os gestores tratavam de executar todas as ordens
coercitivas e de perseguição enviadas pelo secretario como envio de faltas,
descontos em salários, assédios verbais, e mais ainda. Isso enfraquecia so-
bremaneira os movimentos reivindicatórios. A vitória sindical consistiu
então em legalizar a eleição de diretores dentro da própria escola. A comu-
nidade escolar é que deveria escolher seus administradores. O ponto chave
é que o documento legal trazia algumas restrições, por exemplo: somente
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
poderiam se candidatar ao cargo de diretor, os professores e/ou pedagogos
que tivessem um mínimo de 3 anos de efetivo magistério comprovado. Al-
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
guns tinham bem mais de três anos, mas não tinham como comprovar de
acordo com o que o documento exigia (carteira de trabalho ou contrache-
que). Outros funcionários só poderiam se candidatar se tivessem algum
curso de gestão pública. Somente os jovens com 14 anos ou mais estariam
aptos a votar, para as demais, os responsáveis se encarregariam de repre-
sentá-los. Os votos também não teriam o mesmo peso, sendo que quem
conseguisse a maioria entre os professores raramente seria derrotado, mes-
mo que a grande maioria dos alunos votassem em outro candidato.
7 Frase descaradamente adaptada e baseada nessa aqui:
“A massa precisa
aprender a exercer o poder, exercendo o poder. Não há nenhum outro meio
de lhe ensinar isso.” (Rosa Luxemburgo, em discurso proferido no Primeiro
Congresso Nacional de Conselhos Operários e Soldados em Berlim no mês
de dezembro de 1918. Essa frase desse discurso está presente numa porrada
de livros, por isso eu me limito a citar a professora Isabel Loureiro, pelo
fato dos dois livros sobre Rosa que eu tenho na mesa agora, serem dela.)
8 Rosa Luxemburg – assumidamente contrária a primeira guerra mundial,
em 1914 se contradiz (e supostamente se arrepende amargamente pelo resto
de sua curta vida) ao votar a favor dos créditos de guerra, acompanhando a
bancada social-democrata do Reichstag. Daí viria a contradição de nosso
personagem, um anarquista votando num processo democrático?
9 BOURDIER, de novo. Reforço o uso do termo violência simbólica, como
algo que às vezes é praticado, tanto por opressores como por oprimidos, de
forma inconsciente, ou automática. Nesta passagem nós vemos como a
simples presença da diretora, já afeta a percepção e o comportamento das
crianças. Isso é uma violência simbólica. O formato da escola, as fardas, as
aulas em locais pré-determinados, o posicionamento do professor na sala,
tudo isso faz parte da violência simbólica. Tudo isso colabora não para
manter a paz e a ordem, não para favorecer a aprendizagem, mas sim, para
manter as hierarquias sociais dentro daquele espaço. BOURDIEU, Pierre;
PASSERON, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do
sistema de ensino. 3. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. (Aqui eu
me lembro de citar o velho DURKHEIM também, por entender se tratar de
uma leitura que não seria perda de tempo.)
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Jaime Pelloutier Contos professorescos
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Não tenho formação literária nem tampouco sou escritor, por isso, per-
doem os erros grosseiros que certamente intelectos mais bem treinados nas
artes literárias encontrarão aos montes. Pretendo com essas linhas basica-
mente apenas duas coisas, sendo a primeira, desabafar (para não explodir) e
a outra, compartilhar o desabafo (para quem sabe evitar que alguém explo-
da). Em anexo a essas pretensões, podemos colocar o desejo de divulgar
teóricos que julgo ser importantes na batalha diária dos ambientes escolares
além de dialogar e trocar ideias, sentimentos, experiências e o que quer que
seja com a sociedade em geral.
*Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a vida real é a mais
pura e simples coincidência.