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CONSELHO EDITORIALOtávio Velho – PPGAS-MN/UFRJ, Brasil

Dina Picotti – Universidade Nacional de General Sarmiento, ArgentinaHenri Acserald – IPPUR – UFRJ, Brasil

Charles Hale – University of Texas at Austin, Estados UnidosJoão Pacheco de Oliveira – PPGAS-MN/UFRJ, BrasilRosa Elizabeth Acevedo Marin – NAEA/UFPA, BrasilJosé Sérgio Leite Lopes – PPGA-MNU/UFRJ, Brasil

Aurélio Vianna – Fundação Ford, BrasilSérgio Costa – LAI FU, Berlim, Alemanha

Alfredo Wagner Berno de Almeida – CESTU/UEA, Brasil

CONSELHO CIENTÍFICOAna Pizarro – Professora do Doutorado em Estudos Americanos Instituto

de Estudios Avanzados – Universidad de Santiago de ChileClaudia Patricia Puerta Silva – Professora Associada – Departamento de

Antropologia – Faculdad de Ciências Sociales y Humanas – UniversidaddeAntioquia

Zulay Poggi – Professora do Centro de Estudios de Desarrollo – CENDES–Universidad Central de Venezuela

Maria Backhouse – Professora de Sociologia – Institut für Soziologie –FriedrichSchiller-Universitätjena

Germán Palacios – Professor Titular – Universidad Nacional de Colombia,Sede Amazonia – Honorary fellow, University of Wisconsin-Madison

Roberto Malighetti – Professor de Antropologia Cultural – Departamentode Ciências Humanas e Educação “R. Massa” – Università degli Studi de

Milano-Bicocca

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Aline Radaelli

VEVEVEVEVERMERMERMERMERMELHO QLHO QLHO QLHO QLHO QUE UE UE UE UE TE CTE CTE CTE CTE COBROBROBROBROBRE,E,E,E,E, AMAR AMAR AMAR AMAR AMAREEEEELLLLLO NOBRO NOBRO NOBRO NOBRO NOBREEEEEPovo Kambeba, garimpo e Estado espectral

Manaus - Amazonas2020

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Copyright © Aline Radaelli, 2020

UEA - Edifício ProfessorSamuel BenchimolRua Leonardo Malcher, 1728Centro - Manaus, AMCep.: 69010-170

E-mails:[email protected]@yahoo.com.brwww.novacartografiasocial.comFone: (92) 3878-4412 (92) 3232-8423

UEMA- Endereço: LargoCidade Universitária PauloVI, 3801 - Tirirical, SãoLuís - MA, 65055-000Fone:(98) 3244-0915

Radaelli, Aline. VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE -Povo Kambeba, garimpo e Estado espectral / Aline Radaelli. -1. ed. - Manaus: UEA Edições/ PNCSA, 2020.

172 p.: il.

ISBN 978-85-7883-530-9

1. Amazônia. 2. Kambeba. 3. Garimpo. 4. Conflitossocioambientais. I.Título.1. Conflito 2. Mineração 3. Estado

CDU 316+622.2

(Bibliotecária Responsável: Rosiane Pereira Lima - CRB 11/963)

R124v

Ficha catalográfica

EditorAlfredo Wagner Berno de AlmeidaUEA, pesquisador CNPq

CapaAna Claudia Lunguinho Medeiros

Projeto Gráfico (diagramação)Marcela Costa de Souza

Apoio técnicoJoelma Gonçalves da Silva

Copyright © Aline Radaelli, 2020

UEA - Edifício ProfessorSamuel BenchimolRua Leonardo Malcher, 1728Centro - Manaus, AMCep.: 69010-170

E-mails:[email protected]@yahoo.com.brwww.novacartografiasocial.comFone: (92) 3878-4412 (92) 3232-8423

UEMA- Endereço: LargoCidade Universitária PauloVI, 3801 - Tirirical, SãoLuís - MA, 65055-000Fone:(98) 3244-0915

Radaelli, Aline. VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE -Povo Kambeba, garimpo e Estado espectral / Aline Radaelli. -1. ed. - Manaus: UEA Edições/ PNCSA, 2020.

172 p.: il.

ISBN 978-85-7883-530-9

1. Amazônia. 2. Kambeba. 3. Garimpo. 4. Conflitossocioambientais. I.Título.1. Conflito 2. Mineração 3. Estado

CDU 316+622.2

(Bibliotecária Responsável: Rosiane Pereira Lima - CRB 11/963)

R124v

Ficha catalográfica

EditorAlfredo Wagner Berno de AlmeidaUEA, pesquisador CNPq

CapaAna Claudia Lunguinho Medeiros

Projeto Gráfico (diagramação)Marcela Costa de Souza

Apoio técnicoJoelma Gonçalves da Silva

Philipe Rodrigo da Silva Teixeira

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À Ivete, Adélia, Vanderleia e ZicaRadaelli, os alicerces que me construíram

como pessoa.

A todas as mulheres que são a fibra, aforça e a ternura dos movimentos

sociais, na luta por um mundo maisjusto e de equidade, na pessoa da

amiga cacique-geral do povoKambeba do Alto Solimões Eronilde

Fermin Kambeba.

À Ivete, Adélia, Vanderleia e Zica Radaelli, os alicerces que me construíram como pessoa.

A todas as mulheres que são a fibra, a força e a ternura dos movimentos sociais, na luta por um mundo mais justo e de equidade, na pessoa da amiga cacique-geral do povo Kambeba do Alto Solimões Eronilde Fermin Kambeba.

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NOTA DA EDIÇÃO

Este livro é fruto de reflexões que compuseram parte da dissertação demestrado defendida por mim no Programa de Pós-Graduação em Sociologiada Universidade Federal do Amazonas, que contou com apoio financeiro debolsa da CAPES1. Por meio de apoio do Projeto Nova Cartografia Social daAmazônia e de seu Grupo de Trabalho “Mineração em Terras Tradicional-mente Ocupadas”, senti-me impelida a transformá-lo em livro considerando aatual conjuntura de intensificação dos projetos de extração mineral e garimpeira– muito influenciados pela elevação geral dos preços dos recursos minerais edando continuidade à implementação de políticas neoextrativistas dos últi-mos anos –, as flexibilizações legais para viabilizá-los e, sobretudo, as crescen-tes investidas contra os direitos de povos indígenas e populações tradicionais.

Segundo dados recentes do estudo da Rede Amazônica de InformaçãoSocioambiental Georreferenciada (Raisg)2, cerca de 22% dos territórios ofici-almente protegidos do bioma amazônico, ou da Pan-Amazônia, estão sujeitosa ameaça ou pressão por projetos de exploração mineral e petrolífera. Isto en-volve territórios de áreas protegidas como unidades de conservação e territóriosindígenas. Com relação ao garimpo ilegal, a mesma Rede organizou um levan-tamento feito por organizações de seis países da Pan-Amazônia e confirmou aexistência de 2312 pontos e 245 áreas de exploração de garimpo ilegal deouro, diamantes e outros minérios.

Em se tratando do estado do Amazonas, ao passo que os discursosgovernamentais vangloriam os 57% de seu território protegidos por unidades

1 Agradeço a parceria de orientação do Prof. Antônio Carlos Witkoski e de pesquisa de campo dos membros do Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia.

2 https://www.amazoniasocioambiental.org/pt-br/; https://garimpoilegal.amazoniasocioambiental.org/.

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de conservação e terras indígenas e 97% de sua cobertura florestal preservada(Amazonas, 2018), ampliam-se as investidas de projetos de megamineração eos garimpos ilegais no estado, e reduz-se os repasses orçamentários à pastaambiental e à órgãos de fiscalização e proteção ambiental, evidenciando umarcabouço institucional fragilizado de defesa ambiental. Segundo dados dodemonstrativo de despesas empenhadas por órgão (Amazonas, 2018)3, a Se-cretaria de Estado do Meio Ambiente – SEMA teve participação orçamentá-ria de 0,15% em 2017 e 0,10% em 2018, redução de 25% do valor do orça-mento público formalmente reservado para os compromissos assumidos peloórgão em uma conjuntura de crescentes avanços do desmatamento, conflitossocioambientais e degradação ambiental de áreas protegidas. O Instituto deProteção Ambiental do Amazonas – IPAAM, órgão responsável pela políticade controle e fiscalização ambiental, tem participação de menos de 1% nasdespesas empenhadas pelo estado.

Ou seja, transcendendo a esta questão econômica e jurídica, tem-seuma situação política favorável e de tolerância por parte dos governos estaduale federal à ação garimpeira, como se os dispositivos legais estivessem momen-taneamente suspensos. Assiste-se a um quadro de relativa permissividade paraa extração mineral ilegal em terras indígenas, violando os dispositivos de pro-teção constantes no art. 231 da Constituição. Aponto a relativa permissividadeconsiderando as ações de fiscalização e desarticulação dos garimpos que vemocorrendo desde o ano dessa pesquisa até o presente momento, sobretudo nointerior da TI Vale do Javari – local de nascente do rio Jandiatuba. Isto denotao conceito de Estado espectral a que me refiro ao longo deste livro.

No caso da região do Alto Solimões e especificamente na situação es-tudada dos Kambeba em São Paulo de Olivença, assiste-se a constantes retor-nos das dragas e balsas em “temporadas” de exploração do ouro no rio Jandiatuba.As autorizações de lavra nesta localidade ocorreram com validade determina-da, porém sem qualquer orientação técnica e fiscalização quanto aos limites do

3 Disponível em http://www.transparencia.am.gov.br/balanco-geral/, 2018, quadro 02 - Demonstrativo da Despesa Empenhadapor Órgão.

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uso de mercúrio e das áreas de operação da atividade por parte do órgão deproteção ambiental. Ainda assim, e como se não bastasse ferir as legislações econvenções que asseguram os direitos dos povos indígenas, as atividades degarimpo permaneceram ainda que com o vencimento do prazo desta licença,tornando-se, portanto, ilegais inclusive aos órgãos licenciadores.

Os acontecimentos que se agravam inegavelmente me mobilizarampara esta publicação. Contudo, a maior motivação se deu pelo enorme desejode fazer chegar às mãos dos Kambeba o produto de minha estada com eles edas amizades que ganhei, sobretudo da cacique geral do povo e intelectualEronilde Fermin, cujo trabalho de pesquisa junto aos anciãos Kambeba,revitalizando a memória e a língua do povo, foi fundamental para meu traba-lho. Mobilizou-me ainda a oportunidade de poder externar minha admiraçãoe solidariedade à luta do povo Kambeba por seu território, seus direitos, suaidentidade e seu reconhecimento étnico frente aos intrusamentos e expropri-ação de seus bens naturais, possibilidades de existência e resistência. AosKambeba agradeço e me disponho. Sempre.

Por último, mas jamais menos importante, ressalto a importância depoder contar com mulheres exemplos de poderosa intelectualidade, força egenerosidade como Rosa Acevedo, Eronilde Fermin e Marilene Correa contri-buindo com suas reflexões nos escritos que circundam o miolo deste livro. Otrabalho feminino também se fez presente em diversas outras importantesetapas de produção deste material, como a arte da capa criada pela amiga AnaMedeiros, em nome de quem as agradeço. Na caminhada do fortalecimentoda luta pela equidade de oportunidades, valor e visibilidade do trabalho inte-lectual de mulheres, sinto-me orgulhosa e muito agradecida por este encontro.

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1RACIONALIDADES RIVAIS: ENCONTROS DO “VELHO”E DO “NOVO MUNDO” .............................................................1.1 Mumuri sekwe: os relatos sobre e dos Omágua-Kambeba doAlto Solimões ...................................................................................1.2 A presença-ausente do Estado no (não-)reconhecimento dasoutridades ..........................................................................................

CAPÍTULO 2NAS TERRAS E ÁGUAS DO BEM-VIRÁ: OS CONFLITOSSOCIOAMBIENTAIS NO RIO JANDIATUBA ........................2.1 A draga que arrasta, lava e lavra: os impactos do garimpo nasfamílias Omágua-Kambeba e nas águas do Jandiatuba .....................2.2 A ausência-presente do Estado: os conflitos socioambientaisna expropriação dos bens naturais ...................................................

CAPÍTULO 3CONHECER PARA RECONHECER: TERRITÓRIO EDIREITOS GARANTIDOS COMO VIA PARA OECODESENVOLVIMENTO .......................................................3.1 O interesse na demarcação de terras e a fragilidade das terrasdemarcadas .........................................................................................3.2 A presença-presente do Estado: elementos para a superação dasausências ...........................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................REFERÊNCIAS ................................................................................CADERNO FOTOGRÁFICO ...................................................

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PREFÁCIO ................................................................................... 13

SUMÁRIO

CAPÍTULO 1RACIONALIDADES RIVAIS: ENCONTROS DO “VELHO”E DO “NOVO MUNDO” .............................................................1.1 Mumuri sekwe: os relatos sobre e dos Omágua-Kambeba doAlto Solimões ...................................................................................1.2 A presença-ausente do Estado no (não-)reconhecimento dasoutridades ..........................................................................................

CAPÍTULO 2NAS TERRAS E ÁGUAS DO BEM-VIRÁ: OS CONFLITOSSOCIOAMBIENTAIS NO RIO JANDIATUBA ........................2.1 A draga que arrasta, lava e lavra: os impactos do garimpo nasfamílias Omágua-Kambeba e nas águas do Jandiatuba .....................2.2 A ausência-presente do Estado: os conflitos socioambientaisna expropriação dos bens naturais ...................................................

CAPÍTULO 3CONHECER PARA RECONHECER: TERRITÓRIO EDIREITOS GARANTIDOS COMO VIA PARA OECODESENVOLVIMENTO .......................................................3.1 O interesse na demarcação de terras e a fragilidade das terrasdemarcadas .........................................................................................3.2 A presença-presente do Estado: elementos para a superação dasausências ...........................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................REFERÊNCIAS ................................................................................CADERNO FOTOGRÁFICO ...................................................

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PREFÁCIO ................................................................................... 13INTRODUÇÃO ..................................................................................... I

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Aline Radaelli12

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13VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

PREFÁCIO

1 Jorge Luís Borges. Poesia Completa. Delbolsillo, 3ª Edición, 2016. Poema O oro de los Tigres, p. 380.

“Vermelho que te cobre, amarelo nobre. Povo Kambeba, Garimpo eEstado espectral” é o título do livro de Aline Radaelli que apresenta de chofreuma metáfora com o significante ouro. Incontáveis são as expressões quelapidam na história passada e recente dos povos indígenas das Américas aviolência física, a expropriação e a destruição associadas à extração e retiradadesse metal nos seus territórios. Idênticas situações sociais envolvem povostradicionais em África, Ásia e Oceania. O ouro possui significados polares –maldição para muitos; riqueza, prosperidade, afã de acumular, colecionar objetos(joias de luxo) para alguns poucos – temas que a literatura, religião, história,sociologia e jornalismo tornaram exemplar na abordagem das contradições edos antagonismos de economias condenadas pela mineração. Sinaliza, ao mesmotempo, a ambição humana de posse e o distanciamento da mítica idade deouro da humanidade.

Narrativas de situações sociais e históricas que apresentam as vidashumanas e os ambientes transformados pela mineração de ouro parecemindecifráveis. Jorge Luís Borges no poema O ouro do Tigre escreve versoseloquentes – Después vendrían otros oros. El metal amoroso que era Zeus. El anilloque cada nueve noches engendra nueve anillos y éstos nueve y no hay un fin1. É ideia,imagem diferente do desejo de prender as coisas, de colecionar e acumular?Sim, para o poeta não é possível prender o ouro cuja cor está na hora do ocasoamarelo, do poente, dos cabelos amados, algo incalculável, precioso, outra magiasempre.

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Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

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15VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

A situação etnográfica converge para a análise reflexiva que é enunciadano próprio movimento, decisões e imponderáveis da vida real e da etnografia.É dito pela autora o quanto lhe foram prazerosas as relações sociais de pesquisaque pesaram mais na balança que as dificuldades e nessa experiência reconheceter se educado, questionado, “ampliando, assim, os horizontes de umainterpretação crítica acerca da vida social e da realidade localizada que pretendiinvestigar”. O tempo de permanência em campo da pesquisadora teveinterrupção e implicou algumas alterações do escopo da pesquisa, o que foicompensado pela intensidade do trabalho de maneira a dimensionar elementoscentrais da identidade étnica, das relações de subalternização/estigmatização,dos conflitos com garimpeiros e tensões face ao Estado. Berreman3 observaraque o trabalho de campo está carregado das sutilezas da experiência humana;nela desperta-se uma nova sensibilidade frente à própria experiência do campo,seja passada, presente ou futura. São essas as marcas que Aline Radaelli guardadesse primeiro tempo entre os Kambeba, no rio Jandiatuba.

A pesquisadora mobilizou noções operacionais e conceitos, valeu-se detipologia e de fórmulas, sujeitas a críticas, preencheu formulários, realizouentrevistas e participou de oficinas de mapeamento, coligiu documentos diversose fontes historiográficas de maneira a responder ao objetivo precípuo de“evidenciar os conflitos sociais ocorridos ao longo das etapas históricas de invisibilizaçãodos povos indígenas pela ausência e/ou presença do Estado, tendo como pano defundo, inicialmente, os processos de conquista e colonização do território amazônicoe, mais atualmente, as políticas desenvolvimentistas impostas para a Amazôniabrasileira”.

A apresentação dos Omágua-Kambeba na sua autodefinição e aquelaa partir de todos os nomes que receberam são relevados no exercício critico deformulação da micro história desse povo. Nesse exercício a autora realiza umacrítica radical dos classificadores, intérpretes dos colonialismos e das “novasexpressões de colonialidade”. Cronistas, comentadores regionais, naturalistas e

3 BERREMAN, Gerald. "Etnografia e controle de impressões em uma aldeia do Himalaia". In: ZALUAR, Alba (org.).Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980, pp. 123-174.

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viajantes encarnaram uma racionalidade rival ao povo Omágua-Kambeba, quefoi “invisibilizado pelos acontecimentos históricos de ocupação territorial e subjugaçãopor parte do Estado no âmbito do processo de colonização”. Ainda, acrescenta que“invisibilizações fundadas nas novas colonialidades e no não reconhecimentode suas outridades” têm sido recorrentes. Ao faze-lo recupera as perguntas:quem são os Omágua Kambeba e quais as limitações da literatura que ospretende identificar?

Os registros de viajantes, cronistas e mesmo pesquisadores que tiveramcurta passagem consistiram em descrições que precisam ser lidas com suspeição,indagando se as observações são suficientes e relevantes para caracterizar comprecisão estes povos transfronteiriços, suas territorialidades (vida insular e deterra firme) e deslocamentos, observação que estabelece em sintonia com oantropólogo Pacheco de Oliveira, cada um em momento diferente. Sobretudo,o que ressalta é a memória viva dos anciãos referida no trabalho acadêmico deEronildes de Souza Fermin4, Cacique geral do povo e intelectual que suscitainterpretações etnohistóricas sobre a densidade do povo Omágua-Kambeba,suas práticas e rituais corporais, saberes diferenciados e práticas de cooperaçãono trabalho (Ajuri) na agricultura, pesca, caça; no artesanato; nas vestimentase pinturas, observações detidas que contrastam com as de naturalistas-viajantese seus comentadores.

A cartografia como instrumento de pesquisa apoia a análise da ocupaçãotradicional do Alto Rio Solimões e seu afluente o rio Jandiatuba. Esse territóriode alta densidade de povos e territórios indígenas, sofreu intensos processos dedesocupação como parte das estratégias de apropriação urdidas pelos “patrõesda seringa”. Os Kambeba-pescadores e os Kambeba-agricultores, entrevistadosno decorrer da pesquisa, relatam pormenorizadamente as ocorrências de conflitona década de 1970. As racionalidades antagônicas destes patrões e a presença

4 FERMIN, E. Memórias vivas do povo Omágua Kambeba de São Paulo de OlivençaMemórias vivas do povo Omágua Kambeba de São Paulo de OlivençaMemórias vivas do povo Omágua Kambeba de São Paulo de OlivençaMemórias vivas do povo Omágua Kambeba de São Paulo de OlivençaMemórias vivas do povo Omágua Kambeba de São Paulo de Olivença / Mumuri sekwe awáuawa kanga pewa tawau - Monografia apresentada para obtenção do título de bacharela em Pedagogia Intercultural.São Paulo de Olivença: UEA, 2016. Esse trabalho é tomado como referência central ao longo do texto disser tativo,destacando as contribuições aos debates sobre a identidade Omágua-Kambeba, sua mitologia, etnohistoria eorganização política.

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de madeireiros são abordadas, de forma contextualizada, destacando ointrusamento dos garimpeiros e de dragas, como ameaça mais recente eavassaladora.

As dinâmicas socioeconômicas dos Kambeba ao longo do rio Jandiatubasão examinadas nas denominadas “comunidades” de Bacaba, Mata Cachorro ePinã focalizando o labor/ trabalho nessas unidades sociais, que por efeitos dadevastação dos bens naturais apresenta-se com menos fartura de pesca e caça.É produzido um efeito desarticulador dos sistemas de uso comum e depreservação (exemplo dos lagos de uso comum e de preservação) que estãoapresentados brevemente. Os invasores exploram indiscriminadamente essesbens. Os pescadores Kambeba identificam os peixes que desapareceram dorio Jandiatuba por efeito da dragagem. Também indicam as frequentes agressõesde pescadores externos.

A racionalidade antagônica dos agentes exógenos está à prova pela suaconcepção de recursos naturais que devem ser sumaria e celeremente explorados;visão essa que dominou no período colonial e confere-se como colonialidade.Essa noção que adquire certa padronização analítica é adotada a partir deQuijano, que a interpreta como arma extremamente eficaz dos dominantespara perpetuar sua dominação, e atua como ferramenta de controle de poder.

Na análise do processo histórico de apropriação e (re)ocupação daAmazônia brasileira, a autora conduz uma linha de debate teórico comelementos de originalidade quando aborda a presença-ausente do Estado no(não-)reconhecimento das outridades o que marca a atualidade concreta daspráticas colonialistas, afirmando que “a colonialidade, materializa esta noçãode Estado caracterizado pela presença-ausente, que resulta na indiferença einvisibilização das potencialidades e especificidades dos povos indígenas”. Odiscurso do gestor local relativo ao sítio arqueológico Santa Terezinha é trazidocomo leitmotiv desse posicionamento de invisibilização e negação pelo sensocomum dos Kambeba.

A adoção do título “Nas terras e águas do Bem-Virá: os conflitossocioambientais no rio Jandiatuba” para o capitulo segundo é justificado pelaautora como paráfrase do documentário homônimo cujo conteúdo reflete em

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parte realidades empíricas do Estado do Pará e o contexto político do Brasildas quatro últimas décadas. De forma geral, encontram-se situações sociaisdiversas que permitem cotejar os processos devastadores da mineração legal eilegal5, tal como a autora indica na Nota à Edição no qual cita dados recentesdo estudo da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada(Raisg)6. Observações desse tipo são procedentes e muito necessárias, poiscontribuem para dimensionar o trágico dessas intervenções em Peru7, Bolívia,Brasil, Equador, Colômbia, Suriname, Venezuela e Guiana Francesa, domíniocolonial francês na América do Sul. Em cada um deles registram-se açõesviolentas e conflitos socioambientais de povos indígenas e comunidadestradicionais com os empreendimento mineradores legais e as atividades deextração ilegal organizadas por garimpeiros, “mineros ilegales”, “barequeros”como são conhecidos em Colômbia. O tráfico ilegal (contrabando de ouro) naAmazônia inscreve-se em domínios de mercado organizados, sem aparentepoder de controle pelos Estados.

Os garimpeiros classificados como os outsiders que dragam, queexpoliam o rio Jandiatuba são apresentados do ponto de vista dos Kambebacomo subjugados, dominados por um dono de dragas e a autora descreve osmecanismos de influência política que “inibem algumas iniciativas de interlocuçãopor parte dos Kambeba com os garimpeiros”. Essa rede de extratores ilegais temparticularidades que são objeto de diferenciação pelos próprios Kambeba: osgarimpeiros articulam-se com grandes empresas de mineração diferentementedos ribeirinhos do rio Madeira organizados em cooperativas. Os que atuam norio Jandiatuba estão próximos de comerciantes e gestores públicos locais, bemcomo de donos de dragas.

5 O debate sobre mineração legal e ilegal frequentemente aludido pelos Estados supõe principalmente controlesfinanceiros e de arrecadação, enquanto o controle social e ambiental de danos é negligenciado, e ocorre a flexibilizaçãodo licenciamento ambiental, especialmente de megaempreendimento. A política e legislação ambiental tem perdidoefetividade no tocante a critérios de instalação e monitoramento nos países latino-americanos.

6 https://www.amazoniasocioambiental.org/pt-br/; https://garimpoilegal.amazoniasocioambiental.org/.7 Ver o documentário Las Rutas del Oro (2016). https://infoamazonia.org/pt/2016/01/peruvian-documentary-the-

routes-of-gold-is-now-online/#!/story=post-14402&loc=-12.99851285000002,-70.67387716107602,7

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A instalação e movimento das dragas8 há mais de 15 anos no rioJandiatuba é descrita pelos Kambeba, que acompanham sua ampliação e formasde legitimação, tal como assinalaram em oficinas de mapeamentos ao elaboraremos croquis, indicando os lugares e os efeitos observados no leito do rio:sedimentação de areia que impede a navegação, a contaminação das águas comos produtos tóxicos nelas despejados. Em que pese as denuncias que foramrealizadas sobre os efeitos ambientais da exploração de ouro aluvial a autoracritica os projetos de governos atuais para flexibilizar a legislação de licenciamentoambiental, facilitando a exploração mineral e garimpeira, são inúmeros nas esferasnacional e estadual.

O movimento Kambeba por meio da Organização dos Kambeba doAlto Solimões - OKAS, desde 2013 tem protocolado denúncias junto aosórgãos competentes de justiça e defesa de direitos, sobretudo Funai e MPFlocalizados em Tabatinga. Todavia a força política dos garimpeiros na região,aliados aos gestores municipais produzem efeitos perversos, pois quando asdenúncias resultam em "operações de desmantelamento" do garimpo9, deimediato, os indígenas Kambeba e suas lideranças são tomados como bodes

8 No ar tigo "La Maldición del Oro" (de 04/02/2010) informa-se sobre a celeridade de instalação de 220 dragas e 276retroexcavadeiras ao longo de 22 Km do rio Dagua para extração de ouro aluvial, que corta o corregimento deZaragoza, depar tamento de Buenaventura. Em poucos meses, entre 2009 e 2010 esta entrada de "barequeros",calculada em mais de 3.000 colocou em risco comunidades afrocolombianas. https://www.semana.com/nacion/articulo/la-maldicion-del-oro/115074-3.O Observatorio de los conflictos mineros para la América Latina público em abril de 2010 a denuncia ante a opiniãopública realizada pela Red Nacional en Democracia y Paz, organizaciones de Derechos Humanos y de promoción dela paz as violações de direitos étnico-territoriales das comunidades afrocolombianas. Entre as exigências ao governonacional, autoridades judiciais e solicitação de solidariedade e pronunciamento da Comunidade Internacional citavamque fosse investigado por ação ou omissão as autoridades competentes publicas e par ticulares por não levar emconsideração o Codigo de Minas, Lei 685 de 2001 no qual se precisa que "En los terrenos aluviales como zonasmineras de comunidades negras, sólo podrán practicar el barequeo los vecinos del lugar autorizados por el alcalde,que per tenezca a la ciudad en cuyo beneficio se hubiere constituido dicha zona".Visita, pronunciamiento y seguimiento de la OIT en torno a la violación del convenio 169 donde se establecen lascondiciones para la consulta previa en territorio de comunidades tribales.Que la Procuraduría General de la Nación, investigue al Alcalde José Félix Ocoró Minotta, al Secretario de GobiernoDistrital, al Secretario de Desarrollo Económico y Rural, al Mayor de la Política Juan Carlos Osorio García, por su faltade competencia, negligencia y silencio, además solicitar rendición pública de sus ingresos económicos. Suspender deinmediato la extracción de oro por medios técnicos hasta que no se asegure la par ticipación y consulta previa de lascomunidades afectadas; a través de sus Consejos Comunitarios, en un clima de pleno respeto y confianza, en aplicaciónde los ar tículos 6, 7 y 15 del Convenio 169. https://www.ocmal.org/la-mina-de-zaragosa-en-buenaventura/ acesso em04/01/2020.

9 A operação foi realizada pelo IBAMA em parceria com o exército, em agosto e novembro de 2017.

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expiatórios e sofrem violências físicas, ameaças, perseguições, constrangimentose a tentativa de imobilização pelo medo. A autora descreve o genocídio dosíndios isolados, chamados índios flecheiros, e as cerimonias comemorativas damorte de indígenas.

Sob esse ângulo a pesquisadora propõe-se ampliar a compreensão da"presença-ausente" do Estado, que caracteriza por desinteresses interessadosdos agentes sociais, materializados nas forças políticas do poder público daregião. Não é segredo que as "operações de desmantelamento" apresentambaixa eficácia, portanto, mal sucedidas e destituídas do planejamento, conformeobservam os Kambeba.

Temos assistido a uma persistente repetição da ausência do Estado naAmazônia. Aline Radaelli problematiza instigantemente as duas noçõespresença-ausente e ausência presente que no seu entendimento foram forjadasconsiderando as faces de um mesmo Estado, e que ora está presente, ora ausente, ora osdois ao mesmo tempo, a depender dos (des)interesses e conjunturas. A definição deambas as noções converge para o significado do conceito de Estado espectral. Mas,assinala que a condição espectral do Estado não é uníssona ou cristalizada, esim configuracional e com uma dinâmica própria. Esse caráter fantasmagóricoé sintetizado pela autora na relação entre colonialidade e Estado e revela-setendo como pano de fundo conflitos sociais.

É presente na imposição de um modo de vida, deorganização sociopolítica, língua, crença e símbolo à imageme semelhança do colonizador, e ausente no reconhecimentodos modos de vida, sociabilidades, línguas, cosmologiasindígenas. Em síntese, um Estado que é presente comooperador da morte física, espiritual e cultural dos indígenas,e ausente no diálogo e na audição das outridades.

A noção de Estado Espectral que é presente como operador da mortefísica, espiritual e cultural dos indígenas facilita ele próprio o genocídio depovos indígenas, também produz uma tutela complexa.

No segundo capítulo a descrição e a discutível tipologia dos conflitosresultam de uma reflexão criteriosa que busca romper com os enquadramentos

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de situações teóricas pré-definidas e mecanicamente aplicadas. A autora seempenha em explicar que a tipologia é mais um ordenador da descrição derealidades complexas, indicando estágios, tipos elencados ao mesmo tempo. Ocentral seriam as expressões de conflitos que não fechadas e uníssonas. Elasexigem a relativização e, admite a autora, que podem explicar uma parcela dosconflitos sociais, sejam eles ambientais ou não. Os conflitos socioambientaisdescritos são interpretados como reflexos da ausência-presença do estado,marcado por (des) interesses.

A leitura deste livro e de forma especial do seu terceiro capítulo obtémamplo entendimento das ações de resistência do povo Omagua Kambeba,que quando consultado produz o Protocolo do Povo Omagua/KambebaAwa+Kanga= Povo Cabeça resultado do Movimento Uawa/Omagua/Kambeba organizando a Resistencia do longo dos tempos. Municipio de/São Paulo de Olivença - Alto Solimões, Amazonas. Este documento de86 páginas possui uma construção diferenciada de Protocolos de povosindígenas e quilombolas, que obedecem a um padrão discursivo, informativoe gráfico, em consonância com instruções de assessorias jurídica e políticascom tendência à manualizaçao e formalização. O Protocolo de Consulta eReconhecimento Etnico Omagua Kambeba define a identidade do povoOmagua Kambeba e indica posicionamentos. Um deles é contra o MARCOTEMPORAL, e explicita "não concordamos", pois tira nossos direitos.Insiste em pautas reivindicatórias fundamentais: "pedimos a demarcação denossas Terras Omáguas Kambebas Tuyuka I e Tuyuka II. Os mapasapresentam o território etnicamente configurado Esses pontos da demarcaçãosão enfáticos nas cartas direcionadas às autoridades com o exemplar doProtocolo. No corpo do texto são numerados 18 Direitos e Deveres, quepodem ser lidos como o discurso da antropologia moral do grupo. Tambémda autonomia e confronto a instituições, tal como a UFAM que é contestadapor ter sido conivente com processos de outorgamento de bolsas a pessoasque falsearam a identidade Kambeba. As fotografias estão legendadas ereforçam a autonomia, a valorização da cultura e organização política. Outrasfotos trazem a contestação do mundo colonial, em especial a igreja católica e

de situações teóricas pré-definidas e mecanicamente aplicadas. A autora se empenha em explicar criticamente a noção de que a tipologia é mais um ordenador da descrição de realidades complexas, indicando estágios, tipos elencados ao mesmo tempo. O central seriam as expressões de conflitos que não fechadas e uníssonas. Elas exigem a relativização e, admite a autora, que podem explicar uma parcela dos conflitos sociais, sejam eles ambientais ou não. Os conflitos socioambientais descritos são interpretados como reflexos da ausência-presença do estado, marcado por (des) interesses.

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seus agentes. Por último, o Protocolo sinaliza as estratégias e táticas defortalecimento dos Kambeba.

A reivindicação territorial e a autogestão dos bens naturais e do territóriosão vitais para os Kambeba. No quadro político atual, Aline Radaelli interpretacomo de "baixa densidade" os processos burocráticos de titulação, o que facilitao aumento do garimpo ilegal. Utiliza a imagem de uma "dança dos espelhosdas demarcações" o que condena os Kambeba a ser um povo sem território,enquanto se manifesta com toda gravidade o caráter cíclico e vicioso dadegradação ambiental.

Nesse nível de análise do Estado em ação é cabível pensar uma viaalternativa. A noção política de presença-presente do Estado é aduzida comomais facilmente viabilizada por meio de incrementos as capacidades de autogestãodas comunidades ribeirinhas ou indígenas, descentralizando efetivamente o poder doEstado. Contudo, é justamente sua capacidade de se tornar menos espectral quegarante sua presença-presente, à medida que deixa de ser via de mão única aosinteresses estritamente econômicos e passa a valorizar o saber local, a autonomia degestão e a fomentar a convergência das forças políticas locais.

O Protocolo do Povo Omagua/Kambeba Awa+Kanga= PovoCabeça apresenta-se como força da escrita, da palavra e da ação do MovimentoUawa - Omagua Organizado, que se posiciona face ao Estado Espectral,decifrado e desafiado em jogo de forças pelo movimento indígena queimperativamente luta para ver a cor do ouro. Este livro inspira essa condiçãode possibilidade.

Rosa Acevedo Marin10

10 Doutora em História e Civilização pela École des Hautes Études em Sciences Sociales- Paris. Pós-Doutorado pelaUniversité de Quebec à Montreal-Canadá. Socióloga pela Universidade Central da Venezuela. Professora Titular(PPGDSTU/NAEA/PPGA/UFPA).

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13VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

PREFÁCIO

1 Jorge Luís Borges. Poesia Completa. Delbolsillo, 3ª Edición, 2016. Poema O oro de los Tigres, p. 380.

“Vermelho que te cobre, amarelo nobre. Povo Kambeba, Garimpo eEstado espectral” é o título do livro de Aline Radaelli que apresenta de chofreuma metáfora com o significante ouro. Incontáveis são as expressões quelapidam na história passada e recente dos povos indígenas das Américas aviolência física, a expropriação e a destruição associadas à extração e retiradadesse metal nos seus territórios. Idênticas situações sociais envolvem povostradicionais em África, Ásia e Oceania. O ouro possui significados polares –maldição para muitos; riqueza, prosperidade, afã de acumular, colecionar objetos(joias de luxo) para alguns poucos – temas que a literatura, religião, história,sociologia e jornalismo tornaram exemplar na abordagem das contradições edos antagonismos de economias condenadas pela mineração. Sinaliza, ao mesmotempo, a ambição humana de posse e o distanciamento da mítica idade deouro da humanidade.

Narrativas de situações sociais e históricas que apresentam as vidashumanas e os ambientes transformados pela mineração de ouro parecemindecifráveis. Jorge Luís Borges no poema O ouro do Tigre escreve versoseloquentes – Después vendrían otros oros. El metal amoroso que era Zeus. El anilloque cada nueve noches engendra nueve anillos y éstos nueve y no hay un fin1. É ideia,imagem diferente do desejo de prender as coisas, de colecionar e acumular?Sim, para o poeta não é possível prender o ouro cuja cor está na hora do ocasoamarelo, do poente, dos cabelos amados, algo incalculável, precioso, outra magiasempre.

Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

I

INTRODUÇÃO

-- “Cadê ela? Cadê?!! Em que quarto ela tá?”.

Em meu quarto, prestes a dormir depois de um dia cansativo de pesquisa em São Paulo de Olivença, escutei estes dizeres, em alto tom, vindos da recepção do pequeno hotel no qual estava hospedada, em 07 de outubro de 2016, uma sexta-feira agitada na cidade. A semana tinha me rendido diversas conversas institucionais com gestores públicos e conversas informais com alguns munícipes. Em se tratando de uma cidade pequena onde todos se conhecem, e os visitantes são facilmente identificados, eu já devia ter sido notada andando pela cidade nos três dias anteriores à noite do dia 07. Para tornarmos esta suposição ainda mais plausível, considere-se o fato de que se trata de uma pesquisadora loira, branca e alta que, nem que quisesse – e quereria muito! – ela não conseguiria passar despercebida. Sou vista como “a gringa” neste interior do Amazonas. Esta alcunha me desconforta e adotei uma estratégia para ruir com a pressuposição: usar a entonação, o sotaque e algumas gírias manauaras afirmando que “sou de Manaus”, de maneira leve e descontraída como forma de aproximação do outro. Ainda que moradora de Manaus por seis anos, certamente é uma ilusão essa de estabelecer relações de pesquisa através da simulação de igualdade.

Tendo este contexto de que a cidade, como uma onça na mata, viu-me antes mesmo de que eu pudesse vê-la e, em se tratando de uma mulher fazendo pesquisa, sozinha, no interior da região tratando de um tema tão delicado e conflituoso, por vezes tabu, e permeado por interesses econômicos – que caracteriza a garimpagem ilegal na Amazônia –, não demorou nem uma fração de segundo para que eu de imediato associasse esta minha posição de pesquisadora aos gritos do homem na recepção à minha procura. O fato de eu estar ali hospedada para realizar minha

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Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

II

pesquisa acerca dos impactos do garimpo aos olhos das comunidades Kambeba1 do rio Jandiatuba é o principal desta apreensão.

O resultado disto foi um tremendo receio de que a procura por mim pudesse ser verdade, e nos segundos subsequentes, enquanto o sujeito na recepção seguia com seus gritos questionando a localização da tal mulher hospedada, fiz um rastreio do quarto, à penumbra da luz da rua, buscando por meios e esquemas de fuga caso o receio se fizesse fundado. Detectei que poderia escapar pela janela, embora com dificuldade, pois ela ficava em desnível negativo com relação à rua. Atenta e de ouvidos bem abertos, acompanhei os passos daquele homem entre o momento em que obteve a resposta do funcionário do hotel de onde estaria a tal mulher que procurava e seu caminhar pelo ecoante corredor do pequeno hotel que, devido ao medo, pareceu-me mais longo que a própria extensão do terreno. De maneira que meu quarto correspondia à segunda porta do corredor, percebi que os passos de pisada firme e apressada, aparentemente imbuídos de indignação ou raiva, seguiram corredor adentro para além do umbral da minha porta. E então pude rir daquela situação desconcertante depois de respirar aliviada, embora não deixando de ficar receosa pela outra mulher mediante os prováveis efeitos daquela ação de violência masculina.

Esse aspecto tabu do tema de pesquisa, aliado as condições do sujeito do conhecimento refletido na mulher viajando sozinha para execução da pesquisas de campo, levou-me a fazer a opção metodológica cuidadosa de me restringir à coleta e problematização das questões, tais como levantadas pelo olhar dos Kambeba do Jandiatuba quanto à presença do garimpo e de seus efeitos e conflitos sociais. Ou seja, não me preocupei em coletar impressões ou realizar entrevistas com garimpeiros e os chamados “donos de balsas” como contraponto, porque vi isso como uma impossibilidade de implementação da pesquisa considerando os possíveis riscos à minha integridade como pesquisadora. Assim, em se tratando de questões e informações concernentes à atividade econômica da garimpagem

1. Conhecidos historicamente como Omágua e denominados como Kambeba ou Cambeba por obra dos colonizadores portugueses, os Omágua-Kambeba assim se autodefinem no contexto do Protocolo de Re-conhecimento Étnico, datado de 18 de agosto de 2017. Nos demais contextos da vida social prevalece tão somente a designação Kambeba.

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PREFÁCIO

1 Jorge Luís Borges. Poesia Completa. Delbolsillo, 3ª Edición, 2016. Poema O oro de los Tigres, p. 380.

“Vermelho que te cobre, amarelo nobre. Povo Kambeba, Garimpo eEstado espectral” é o título do livro de Aline Radaelli que apresenta de chofreuma metáfora com o significante ouro. Incontáveis são as expressões quelapidam na história passada e recente dos povos indígenas das Américas aviolência física, a expropriação e a destruição associadas à extração e retiradadesse metal nos seus territórios. Idênticas situações sociais envolvem povostradicionais em África, Ásia e Oceania. O ouro possui significados polares –maldição para muitos; riqueza, prosperidade, afã de acumular, colecionar objetos(joias de luxo) para alguns poucos – temas que a literatura, religião, história,sociologia e jornalismo tornaram exemplar na abordagem das contradições edos antagonismos de economias condenadas pela mineração. Sinaliza, ao mesmotempo, a ambição humana de posse e o distanciamento da mítica idade deouro da humanidade.

Narrativas de situações sociais e históricas que apresentam as vidashumanas e os ambientes transformados pela mineração de ouro parecemindecifráveis. Jorge Luís Borges no poema O ouro do Tigre escreve versoseloquentes – Después vendrían otros oros. El metal amoroso que era Zeus. El anilloque cada nueve noches engendra nueve anillos y éstos nueve y no hay un fin1. É ideia,imagem diferente do desejo de prender as coisas, de colecionar e acumular?Sim, para o poeta não é possível prender o ouro cuja cor está na hora do ocasoamarelo, do poente, dos cabelos amados, algo incalculável, precioso, outra magiasempre.

Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

III

como um todo, trabalhei fundamentalmente com dados secundários e transcrição de depoimentos de servidores públicos em reuniões técnicas que tratavam de operações de garimpo no Amazonas, tais como técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA.

No que diz respeito ao garimpo ilegal do rio Jandiatuba, vali-me de duas fontes: primeiramente, diferentes gêneros textuais, quais sejam correspondências, cartas abaixo-assinado e ofícios-denúncia endereçadas pelo movimento Kambeba para órgãos oficiais, tais como a Coordenação Regional do Alto Solimões da FUNAI e o Ministério Público Federal de Tabatinga. Quando me refiro à movimento Kambeba e suas formas organizativas diversas, quero ressaltar as mobilizações étnicas realizadas pela Organização dos Kambeba do Alto Solimões – OKAS e pelos caciques das comunidades estudadas, como será explicado adiante. A segunda fonte acessada se refere às entrevistas que fiz com os Kambeba contendo relatos de interações cotidianas entre eles e os próprios garimpeiros do Jandiatuba.

Embora a pesquisa nas ciências sociais não deva ser hierarquizada como menos ou mais difícil conforme o tema escolhido, pois qualquer tema é passível de ser pesquisado desde que tenha em sua execução respeitado o rigor e o método exigido do cientista – e, segundo Bourdieu (2007), o sociólogo deve “pintar bem o medíocre” –, a referida pesquisa não foi de todo simples de ser realizada. As escolhas envolvidas, as opções metodológicas feitas de maneira cuidadosa e estratégica, e o desafio teórico para uma cientista econômica se aventurar – e se apaixonar – pelas belas paisagens das ciências sociais foram questões minimamente esperadas, que exigiram de mim de antemão um preparo psicológico e de leituras teóricas para amadurecimento das ideias no desenvolver da pesquisa, incluindo os preparares das viagens de campo.

Contudo, na condição de pesquisadora que é dotada de subjetividades, não foram previstos em cronogramas de pesquisa os problemas pessoais surgidos no decorrer do estudo, que me impediram de dar continuidade a determinadas atividades de pesquisa previamente planejadas. Vivi tortuosidades que, por vezes, exigiram mais energia de minha saúde emocional do que da intelectual. E para este

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O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

IV

lado da balança, é preciso dispender muita atenção, cuidado e autocuidado. Faço estas afirmações em convergência com Bourdieu, para quem a análise reflexiva não é um relato autobiográfico, pelo simples fato de que o conteúdo reflexivo tem, quer queira ou quer não, impacto no conteúdo objetivo da pesquisa.

Como resultado destas inflexões, uma última viagem de campo prevista tornou-se impossibilitada devido a alterações da vida cotidiana representadas pela operação de desarticulação do garimpo ilegal, realizada pelo IBAMA em parceria com o Exército, contando com o apoio do MPF e FUNAI. Este fato implicou uma segunda inflexão no percurso metodológico, que aqui deve ser ressaltada: a mudança de um dos objetivos específicos que, direta ou indiretamente, dependia desta última viagem de campo para que o concreto empírico pudesse ser transmutado em concreto pensado.

Inicialmente, uma das perguntas de partida da pesquisa era de compreender as estratégias de identidades político-territoriais adotadas pelo movimento Kambeba, em virtude dos impactos e conflitos socioambientais provocados pela atividade garimpeira no rio Jandiatuba. A alteração do rumo de estudo caminhou para uma discussão mais teórica das questões relativas à demarcação territorial indígena, suas implicações, garantias e contradições, e como superá-las diante das rígidas medidas políticas atuais de subtração de direitos e negação de reconhecimento étnico.

Ao passo que tive dificuldades das mais diversas ordens, não é demais sublinhar que a pesquisa etnográfica é prazerosa por nos permitir interação com pessoas e diálogo sobre diversas vidas, histórias, percepções, visões de mundo, das mais diferentes e diferenciadas. Este tipo de pesquisa se torna mais leve, inclusive, por tomarmos aquele agente social estudado não como mero objeto de pesquisa do qual extraímos informações de maneira mecânica e plástica, e sim considerando a convivência e a audição sensível que este processo exige por parte da cientista, permeadas pelo respeito a outras visões, percepções e lugares sociais de fala de maneira não colonizadora e não hierárquica. O trabalho de produção de conhecimento pressupõe reflexividade. Neste caso, coloco-me como simples

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13VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

PREFÁCIO

1 Jorge Luís Borges. Poesia Completa. Delbolsillo, 3ª Edición, 2016. Poema O oro de los Tigres, p. 380.

“Vermelho que te cobre, amarelo nobre. Povo Kambeba, Garimpo eEstado espectral” é o título do livro de Aline Radaelli que apresenta de chofreuma metáfora com o significante ouro. Incontáveis são as expressões quelapidam na história passada e recente dos povos indígenas das Américas aviolência física, a expropriação e a destruição associadas à extração e retiradadesse metal nos seus territórios. Idênticas situações sociais envolvem povostradicionais em África, Ásia e Oceania. O ouro possui significados polares –maldição para muitos; riqueza, prosperidade, afã de acumular, colecionar objetos(joias de luxo) para alguns poucos – temas que a literatura, religião, história,sociologia e jornalismo tornaram exemplar na abordagem das contradições edos antagonismos de economias condenadas pela mineração. Sinaliza, ao mesmotempo, a ambição humana de posse e o distanciamento da mítica idade deouro da humanidade.

Narrativas de situações sociais e históricas que apresentam as vidashumanas e os ambientes transformados pela mineração de ouro parecemindecifráveis. Jorge Luís Borges no poema O ouro do Tigre escreve versoseloquentes – Después vendrían otros oros. El metal amoroso que era Zeus. El anilloque cada nueve noches engendra nueve anillos y éstos nueve y no hay un fin1. É ideia,imagem diferente do desejo de prender as coisas, de colecionar e acumular?Sim, para o poeta não é possível prender o ouro cuja cor está na hora do ocasoamarelo, do poente, dos cabelos amados, algo incalculável, precioso, outra magiasempre.

Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

V

partícipe de uma experiência que me educa e leva a questionar a mim mesma e a meus atos, ampliando, assim, os horizontes de uma interpretação crítica acerca da vida social e da realidade localizada que pretendi investigar.

Como resultado da demanda dos Kambeba do rio Jandiatuba ao grupo de pesquisa no qual eu estava referida2, fui levada a delimitar meu estudo a esta realidade localizada. Minha inserção no projeto e a participação em atividades na região do Alto Solimões me tornaram conhecedora de realidades locais de conflitos envolvendo atividades garimpeiras nas calhas dos rios da região, e influenciaram a escolha do tema de estudo focado na calha do rio Jandiatuba, em São Paulo de Olivença. Contribuiu decisivamente para a execução da pesquisa o fato de ter conhecido a professora indígena Kambeba Eronilde, na minha primeira viagem de campo no final de março de 2016, que me aproximou da definição mais precisa sobre as comunidades3 a serem trabalhadas, nas quais realizei as entrevistas e participei da versão inicial dos croquis e mapas situacionais propostos pela equipe do projeto.

Na segunda viagem de campo, durante a primeira quinzena de outubro do mesmo ano, completei o trabalho de entrevistas e realizamos a validação do trabalho cartográfico. Posteriormente, em dezembro de 2017, na impossibilidade da minha presença em São Paulo de Olivença, elaborei um roteiro orientador de entrevista e contei com o apoio de um colega de projeto para sua realização. Finalizei esta atividade efetuando uma entrevista prolongada com a principal liderança Kambeba, em junho de 2018, aproveitando uma de suas idas à Manaus para realizar atividades de mediação política junto a órgãos públicos da capital. Nesta ocasião, a interlocutora ficou hospedada em minha residência, fato que colaborou com o aprofundamento dos laços de confiança mútua, e representou tempo suficiente para trabalharmos diversas informações adicionais acerca do Jandiatuba.

2. A pesquisa de mestrado foi parte integrante do projeto “Mapeamento participativo e identificação de conflitos socioambientais na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru: elementos para políticas públicas na resolução e gestão dos recursos naturais de uso comum”, do Núcleo de Estudos Socioambientais da Ama-zônia – NESAM/CNPq/UEA, que contou com auxílio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.3. Os Kambeba definem “comunidade” como sua unidade social básica, composta por famílias com laços de parentesco por consanguinidade.

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Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

VI

O rio Jandiatuba tem suas cabeceiras no interior da Terra Indígena Vale do Javari e percorre cerca de 500 km, ao longo da área correspondente ao município de São Paulo de Olivença, até se tornar afluente da margem direita do rio Solimões. No percurso, banha três Terras Indígenas demarcadas, sendo duas do povo Tikuna e uma ocupada tradicionalmente pelos povos Tikuna e Kokama. Além disso, abriga diversas comunidades Kambeba, Kokama e Kaixana, e é utilizado por indígenas em situação de isolamento, oficialmente reconhecidos pela Funai como “flecheiros”. A história de ocupação da terra firme ao longo do Jandiatuba está intrinsecamente ligada à exploração do látex da borracha, tal como ocorreu em outros rios do interior do estado do Amazonas.

Acerca dos instrumentos de obtenção de dados e informações, utilizei como principal ferramenta entrevistas abertas com agentes sociais das comunidades estudadas. Por meio desta relação de entrevista, obtive descrições pormenorizadas de vários aspectos da vida social Kambeba, sobretudo da chegada e operação das dragas. Num segundo momento, servi-me de um formulário semiestruturado, composto por perguntas abertas e fechadas, que foi aplicado com quatro famílias para subsidiar o que hoje considero como o equivocamente chamado de “diagnóstico socioeconômico” das três comunidades Kambeba do Jandiatuba: Bacaba, Mata Cachorro e Pinã. Pelo fato da família da comunidade Pinã se encontrar na sede municipal quando da minha primeira subida ao Jandiatuba, o formulário só foi aplicado com a família na própria sede municipal na segunda viagem de campo.

Outros instrumentos e procedimentos metodológicos adotados se referem ao mapeamento situacional proposto por Acselrad e Coli (2008) e inspirado ainda nos trabalhos do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia - PNCSA. O propósito foi o de compreender as percepções ambientais dos Kambeba acerca da preservação e da conservação do que consideram como ameaça não somente à integridade dos bens naturais da região do Jandiatuba de que fazem uso, mas também à garantia de manutenção de seu acesso. Importa sublinhar suas percepções quanto a probabilidade de conflitos vindouros com a série de

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13VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

PREFÁCIO

1 Jorge Luís Borges. Poesia Completa. Delbolsillo, 3ª Edición, 2016. Poema O oro de los Tigres, p. 380.

“Vermelho que te cobre, amarelo nobre. Povo Kambeba, Garimpo eEstado espectral” é o título do livro de Aline Radaelli que apresenta de chofreuma metáfora com o significante ouro. Incontáveis são as expressões quelapidam na história passada e recente dos povos indígenas das Américas aviolência física, a expropriação e a destruição associadas à extração e retiradadesse metal nos seus territórios. Idênticas situações sociais envolvem povostradicionais em África, Ásia e Oceania. O ouro possui significados polares –maldição para muitos; riqueza, prosperidade, afã de acumular, colecionar objetos(joias de luxo) para alguns poucos – temas que a literatura, religião, história,sociologia e jornalismo tornaram exemplar na abordagem das contradições edos antagonismos de economias condenadas pela mineração. Sinaliza, ao mesmotempo, a ambição humana de posse e o distanciamento da mítica idade deouro da humanidade.

Narrativas de situações sociais e históricas que apresentam as vidashumanas e os ambientes transformados pela mineração de ouro parecemindecifráveis. Jorge Luís Borges no poema O ouro do Tigre escreve versoseloquentes – Después vendrían otros oros. El metal amoroso que era Zeus. El anilloque cada nueve noches engendra nueve anillos y éstos nueve y no hay un fin1. É ideia,imagem diferente do desejo de prender as coisas, de colecionar e acumular?Sim, para o poeta não é possível prender o ouro cuja cor está na hora do ocasoamarelo, do poente, dos cabelos amados, algo incalculável, precioso, outra magiasempre.

Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

VII

sucessivos intrusamentos de garimpeiros, madeireiros, pescadores comerciais e outros agentes econômicos externos interessados na expropriação dos bens naturais.

Conforme instrumento de consulta à livre disposição a participar da pesquisa, foi acordado que seriam respeitados o sigilo e o anonimato dos interlocutores, de informações capazes de localizar com exatidão suas localidades de referência, e de suas identidades e privacidades decorrentes.

Ressalto que por procedimento metodológico entendo o caminho e o instrumental próprios para viabilizar a abordagem da realidade empiricamente observada. Deste modo, a importância dos procedimentos e das escolhas teóricas remete às práticas de pesquisa e à elaboração de dados de maneira sistemática e acurada, não obstante às limitações encontradas neste trabalho.

Neste sentido, e considerando as dores e delícias do caminho da pesquisa aqui brevemente expostos, Bourdieu (2007) nos lembra que a pesquisa é uma atividade intelectual relevante e dotada de percalços que nos exige misturar a inteligência e a criatividade de maneira desordenada, mas com o rigor que não deve ser deixado de lado. Nesta construção desordenada, porém lógica, lançamos mão de outras disciplinas correlatas, que eventualmente podem contribuir com o fortalecimento das teorias sociológicas, como antropologia, economia, história, a abordagem ecológica, dentre tantas outras.

O experimentalismo de procedimentos de pesquisa proposto por Bourdieu (2007) ao criticar o “monoteísmo metodológico” dos pesquisadores que se fecham hermeticamente num método específico, visando somente definir filiação a determinada escola de pensamento – o que o autor denomina de “cães de guarda metodológicos” –, leva-nos a considerar que é extremamente custoso e arriscado sujeitar a pesquisa a somente uma ótica metodológica nas mais diversas fases em que ela toma forma. Contudo, a liberdade metodológica que o autor defende em função do trabalho intelectual inventivo, exige uma cuidadosa vigilância epistemológica sobre as condições em que são utilizadas as diversas

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O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

VIII

técnicas de coleta de dados, face aos problemas que a sociologia se propõe investigar. Seria a análise reflexiva que toma por objeto os próprios meios de se delimitar o objeto de pesquisa.

Em se tratando de povos indígenas da Amazônia, que possuem um acúmulo de experiências vividas e de saberes, para além de serem tomados como objetos de conhecimento, são considerados e percebidos como agentes de sua própria história e colaboradores da investigação sobre sua própria realidade.

Dito isto, este trabalho teve como objetivo e esforço evidenciar os conflitos sociais ocorridos ao longo das etapas históricas de invisibilização dos povos indígenas pela ausência e/ou presença do Estado, tendo como pano de fundo, inicialmente, os processos de conquista e colonização do território amazônico e, mais atualmente, as políticas desenvolvimentistas impostas para a Amazônia brasileira. Está em jogo aqui a (ir)racionalidade de exploração de seus bens naturais.

Desta maneira, busquei no primeiro capítulo problematizar as diferentes racionalidades, que chamo de “rivais”, e proceder a uma leitura crítica delas enfatizando o conflito entre o chamado “Velho” e “Novo Mundo”, estes correspondendo idealmente aos povos indígenas e ao projeto colonial ibérico. Busquei também analisar de que forma este choque expressou acentuados antagonismos sociais que culminaram em massacres e historicamente representaram o que foi designado como etnoepistemicídio e, atualmente, são interpretadas como novas expressões de colonialidades4 que perduram por meio de uma presença-ausente5 do Estado. Indago, então, em que medida este processo pode influenciar o não-reconhecimento dos direitos constitucionalmente firmados (Art.231/88) dos povos indígenas.

Esta reflexão é feita com base nos relatos sobre os Omágua-Kambeba, utilizando as descrições de cronistas e naturalistas viajantes, e também dos Omágua-Kambeba, com base na pesquisa da principal liderança Kambeba que

4. Quijano (1997; 2005; 2010).5. No decorrer desse trabalho, utilizarei termos em itálico para assinalar noções operacionais que criei a partir do trabalho com conceitos teóricos e leituras apreendidas.

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PREFÁCIO

1 Jorge Luís Borges. Poesia Completa. Delbolsillo, 3ª Edición, 2016. Poema O oro de los Tigres, p. 380.

“Vermelho que te cobre, amarelo nobre. Povo Kambeba, Garimpo eEstado espectral” é o título do livro de Aline Radaelli que apresenta de chofreuma metáfora com o significante ouro. Incontáveis são as expressões quelapidam na história passada e recente dos povos indígenas das Américas aviolência física, a expropriação e a destruição associadas à extração e retiradadesse metal nos seus territórios. Idênticas situações sociais envolvem povostradicionais em África, Ásia e Oceania. O ouro possui significados polares –maldição para muitos; riqueza, prosperidade, afã de acumular, colecionar objetos(joias de luxo) para alguns poucos – temas que a literatura, religião, história,sociologia e jornalismo tornaram exemplar na abordagem das contradições edos antagonismos de economias condenadas pela mineração. Sinaliza, ao mesmotempo, a ambição humana de posse e o distanciamento da mítica idade deouro da humanidade.

Narrativas de situações sociais e históricas que apresentam as vidashumanas e os ambientes transformados pela mineração de ouro parecemindecifráveis. Jorge Luís Borges no poema O ouro do Tigre escreve versoseloquentes – Después vendrían otros oros. El metal amoroso que era Zeus. El anilloque cada nueve noches engendra nueve anillos y éstos nueve y no hay un fin1. É ideia,imagem diferente do desejo de prender as coisas, de colecionar e acumular?Sim, para o poeta não é possível prender o ouro cuja cor está na hora do ocasoamarelo, do poente, dos cabelos amados, algo incalculável, precioso, outra magiasempre.

Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

IX

entrevistou anciãos deste povo no intuito de construir sua história social. O material produzido pelos Kambeba, para os Kambeba, a partir dos Kambeba, referenciado neste trabalho, consiste em argumentos e reflexões elaborados em publicação de autoria da cacique-geral Kambeba do Alto Solimões, Eronilde Fermin. O material foi construído a partir de entrevistas realizadas com os anciãos do povo Kambeba, moradores do município de São Paulo de Olivença, e foram reunidas em um trabalho de conclusão de curso de graduação em pedagogia intercultural cursado pela referida autora6.

A motivação para a produção do trabalho, segundo ela, nasceu da necessidade de conhecimento etno-histórico do povo Kambeba, e o uso de entrevistas com anciãos se deu “com o intuito de revelar a verdadeira história desse povo, depois de anos no anonimato”7. Segundo Fermin (2016), havia expectativa de que a produção deste material pudesse “dar autonomia e segurança ao índio Kambeba quanto a suas raízes e quanto a sua autoidentificação como povo Omágua Kambeba”.

A história oral produzida com base nas memórias destes agentes sociais não significa de maneira alguma “dar voz” às insurgências, como se estas não tivessem voz anteriormente e desde sempre. Nenhuma voz é insuficiente que não possa falar por si mesma. Agir e pensar desta forma significa reproduzir a hierarquização de relações por meio do egoísmo travestido de altruísmo militante. Neste sentido, julgamos fundamental a utilização destes dados não com a pretensão de que aqui eles serão publicizados, como se eles por si só não fossem suficientes para tanto, mas sim por convergir com contribuições teóricas como aquelas de Clifford (2014).

Este autor categoriza os denominados modos etnográficos, sendo dois deles postos de maneira paradigmática: o modo dialógico e o modo polifônico

6. Este trabalho, intitulado “Memórias vivas do povo Omágua Kambeba de São Paulo de Olivença / Mumuri sekwe awá uawa kanga pewa tawau” se encontra no prelo para ser publicado como livro.7. Fermin (2016) faz uma ressalva acerca das versões e datas citadas pelos anciãos, as quais não necessaria-mente convergem com as versões da história já presente em outros materiais. Diante disto, ela faz a opção de assumir os fatos, datas e versões contadas por eles não somente por ser suas versões, como também a fim de registrar de que forma o povo Kambeba tem contado e recontado sua própria história.

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Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

X

da etnografia. Estes se dão à medida que diversas interpretações e concepções de mundo acerca de uma mesma realidade são justapostas ou mesmo, em certos momentos, contrapostas. No que tange à polifonia, Clifford ressalta que os antes pautados como objetos de estudo, agora e cada vez mais são os próprios protagonistas de sua história pensada, falada, escrita e problematizada intelectualmente. É nesta posição que se encontra a contribuição de Fermin quanto à história narrada pelos Kambeba acerca de si mesmos.

Com respeito à caracterização dos conflitos socioambientais decorrentes do garimpo no rio Jandiatuba, objetivo do segundo capítulo, pretendo expor a percepção dos indígenas quanto aos impactos das dragas que extraem o ouro do leito do rio e de seus igarapés, e quanto às formas de violência, veladas ou não, praticadas por tal exploração garimpeira. Além de uma etnografia do impacto do garimpo sobre os Kambeba na bacia do Jandiatuba e toda diversidade de vida que ela comporta, procurei focalizar a ação coletiva dos Kambeba tentando delinear os conflitos socioambientais. Procurei viabilizar, assim, uma maior compreensão das escaladas de violência embutidas nos conflitos e sua relação com as realidades empiricamente observadas, apoiada nas abordagens descritivas. De forma inseparável, discute-se acerca do grau de influência que o Estado possui na expressão destes conflitos por meio do que chamamos de uma ausência-presente dele.

No terceiro capítulo, problematizei o paradoxo entre o interesse dos povos indígenas pela demarcação de suas terras e a fragilidade institucional quanto a manutenção destes territórios, agravada diante dos constantes desmontes políticos e orçamentários da agência governamental competente, a FUNAI. Considero este paradoxo metaforicamente como sendo uma dança de espelhos. Os Kambeba se encontram em processo de resistência e luta pelo direito à demarcação dos territórios tradicionalmente ocupados. Por convicção afirmam a segurança étnica e socioambiental que o território juridicamente lhes confere diante do intrusamento de seus domínios tradicionais e das invasões de dragas do garimpo instalado no rio Jandiatuba.

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PREFÁCIO

1 Jorge Luís Borges. Poesia Completa. Delbolsillo, 3ª Edición, 2016. Poema O oro de los Tigres, p. 380.

“Vermelho que te cobre, amarelo nobre. Povo Kambeba, Garimpo eEstado espectral” é o título do livro de Aline Radaelli que apresenta de chofreuma metáfora com o significante ouro. Incontáveis são as expressões quelapidam na história passada e recente dos povos indígenas das Américas aviolência física, a expropriação e a destruição associadas à extração e retiradadesse metal nos seus territórios. Idênticas situações sociais envolvem povostradicionais em África, Ásia e Oceania. O ouro possui significados polares –maldição para muitos; riqueza, prosperidade, afã de acumular, colecionar objetos(joias de luxo) para alguns poucos – temas que a literatura, religião, história,sociologia e jornalismo tornaram exemplar na abordagem das contradições edos antagonismos de economias condenadas pela mineração. Sinaliza, ao mesmotempo, a ambição humana de posse e o distanciamento da mítica idade deouro da humanidade.

Narrativas de situações sociais e históricas que apresentam as vidashumanas e os ambientes transformados pela mineração de ouro parecemindecifráveis. Jorge Luís Borges no poema O ouro do Tigre escreve versoseloquentes – Después vendrían otros oros. El metal amoroso que era Zeus. El anilloque cada nueve noches engendra nueve anillos y éstos nueve y no hay un fin1. É ideia,imagem diferente do desejo de prender as coisas, de colecionar e acumular?Sim, para o poeta não é possível prender o ouro cuja cor está na hora do ocasoamarelo, do poente, dos cabelos amados, algo incalculável, precioso, outra magiasempre.

Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

XI

Ainda no capítulo terceiro, de modo a refletir sobre os possíveis caminhos para a superação das ausências do Estado, realizei um esforço analítico acerca dos elementos que poderiam promover uma presença-presente do Estado a partir, sobretudo, do reconhecimento étnico, territorial e dos direitos originários dos povos indígenas.

Em processo de conclusão, reconheço que possa ter havido uma série de situações históricas de insivisibilização cultural e étnica dos povos indígenas, e que, pela resistência indígena frente aos conflitos de interesse e processos de dominação de forças sociais hegemônicas, acabaram culminando em conflitos socioambientais. Estes, por sua vez, agravados pelo Estado e sua configuração de um Estado espectral, ou seja, um Estado de caráter fantasmagórico, que ora se faz presente, ora ausente, conforme demandas e interesses das classes dominantes.

São casos de análise do Estado espectral com relação a povos e comunidades tradicionais: a invisibilização da luta indígena Kambeba pela demarcação de suas terras invadidas, no “berço” de nascimento da etnia, que concerne as regiões do rio Alto Solimões (Brasil), baixo rio Amazonas (Peru) e baixo rio Napo (Equador); a expropriação e exploração de bens naturais; e as dragas e balsas do garimpo operadas no rio Jandiatuba, que também intrusam demais localidades do Amazonas, e ganham força diante da conivência e incentivo do governo estadual para esta prática econômica.

Esta noção de espectro como um fantasma que paira sobre a pesquisa consistiu num fator constante no decorrer de todo o trabalho de campo, permeando inclusive a posição da própria pesquisadora. Haja vista que após o susto e o medo mediante a sonoridade da voz estridente que vociferava na portaria do pequeno hotel, logo que iniciei o trabalho de campo, pude prosseguir com minhas reflexões mesmo que, por vez ou outra, com os olhos na fechadura da porta bem cerrada e com ouvidos bem abertos. Esta condição de olhos atentos e ouvidos bem abertos também me valeu para a construção da confiabilidade mútua que estabeleci com os Kambeba interlocutores da pesquisa, o que me levou à crescente certeza de que seriam superadas as inúmeras dificuldades e impasses que marcaram o trabalho de campo.

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Aline Radaelli14

O livro origina-se da pesquisa realizada por Aline Radaelli, graduadaem Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP),para sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (PPGS/UFAM) e atualmente Doutoranda no Programa de Pós-Graduação emSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS).Assim, estão em evidencia seus deslocamentos disciplinares, da Economia paraa Sociologia com inserções na literatura antropológica, ampliados seusmovimentos entre o Sul e o Norte do Brasil, em articulação ativa com o Núcleode Estudos Socioambientais da Amazônia – NESAM/CNPq/UEA e o ProjetoNova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.

Neste estudo é realizada a descrição etnográfica da territorialidadeespecifica do povo Omágua-Kambeba cuja Terra Indígena Tuyuka está rodeadapor Unidades de Conservação e outras TI’s. Localiza-se ao longo do rio Jandituba,afluente do rio Solimões. A descrição etnográfica contribui para informar aosleitores quem são os Omágua Kambeba, respondendo a um conjunto vasto deindagações. Como são eles? Por que ocupam essas terras? O que fazem? Qualé sua situação atual? Por que abrigam um ethos tão particular e complexo?Como são produzidos os conflitos socioambientais e quais as ameaças sobresuas vidas, modos de viver e de agir politicamente? No decorrer da leituraaprecia-se um texto persistente e orientado por uma posição reflexiva sobresuas dificuldades no trabalho etnográfico. O antropólogo João Pacheco deOliveira2, que realizou estudo sobre o povo Tikuna na mesma região do altorio Solimões utiliza a noção de “situação etnográfica” para se reportar “aoconjunto de relações que o pesquisador, contemporaneamente à pesquisa,mantêm com todos os atores sociais que de algum modo intervêm no campo”e define sua intenção de “estimular o investigador a descrever a sua pesquisacomo um sistema de relações sociais, não como um relato de incidentes deviagem nem como o aprofundamento de experiências individuais”.

2 OLIVEIRA, João Pacheco de. Regime tutelar e faccionalismo. Política e Religião em uma reserva Ticuna. Rio de Janeiro:CASA 8, 2015. P. 43.

XII

Mediante esta ordem de exposição do trabalho de pesquisa, posso dizer de antemão que me libertei de apreensões e temores tanto de alguém berrando na portaria do hotel, quanto das implicações do tema escolhido acerca de riscos à minha integridade pessoal. Libertei-me, sobretudo, pela compreensão sociológica da mobilização étnica dos Kambeba frente aos antagonistas, que desrespeitam as disposições constitucionais e o território tradicionalmente ocupado, ameaçando efetivamente a reprodução física e cultural deste povo indígena.

Este sentimento de libertação, todavia, não pode ser genericamente atribuído nem a mim como pesquisadora, muito menos às lideranças Kambeba acuadas por este espectro quando as ouço, por exemplo, referirem-se à gravidade da situação, que perdura até o momento, nos seguintes termos:

“acho que não vou mais durar por muito tempo, é ruim andar se escondendo como se fosse bandido”.

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CAPÍTULO 1

RACIONALIDADES RIVAIS:ENCONTROS DO “VELHO” E DO “NOVO MUNDO”

Pesa sobre o meu corpo / Um peso que eu não conheço /Merecimento tão pouco / Com peso no lombo não penso /Cabeça virada pro oco / Me benza seu padre, me benzaseu padre.“O progresso não gosta de índio”, Magaiver Santos, poeta,músico e filósofo amazonense.

Na dinâmica do capitalismo mercantil a partir do século XVI, e suces-sivamente ao longo de sua história, o Brasil foi alvo de interesses da metrópoleque o via como fornecedor de matérias-primas e recursos naturais. O ritmo deexploração foi galopante à medida que a dívida portuguesa crescia na corridamercantilista mundial e, em consequência, a colônia designada Brasil, até en-tão deixada em suspensão por desinteresse da coroa, passa a ser “a menina dosolhos” do Estado monárquico português para ajustes de sua balança comercial.Nesta conjuntura, como reforça Silva (2004), a “Amazônia é um dos lugaresdos reajustes econômicos e políticos da Europa nos séculos XVI e XVII”.

Em convergência com o projeto de colônia de exploração, visando, so-bretudo, ouro, pedras e especiarias, o projeto da Igreja para expansão de fiéis e“catequização para a salvação” se torna um importante aliado na conquista doterritório e de seu gentio, escravizado de maneira física, cultural e subjetiva-mente. Segundo Silva (2004),

23VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

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Os religiosos acompanharam as expedições espanholas,portuguesas e francesas. [...] Cada lote definido na compe-tição mercantil era um espaço conquistado para a coloniza-ção espiritual. [...] Missões religiosas e governo temporal. Aconciliação de Deus e Rei é possível e necessária.

Neste modelo teológico de colonização, as ordens religiosas buscavamcontrolar a força de trabalho indígena através das chamadas missões, bem comoa circulação de bens produzidos na colônia, entrando em conflito com os inte-resses dos colonos, que promoviam incessantes expedições de captura eescravização de povos indígenas. O direito de tutela dos indígenas capturadosera concedido pelo poder real aos missionários portugueses.

A partir de 1750, com a governação pombalina, a conciliação entre asordens religiosas e o Estado dinástico sofre uma profunda transformação. Pas-sa a prevalecer um modelo de colonização fundado na razão do Estado, queconfisca os bens dos jesuítas e submete as demais ordens religiosas a seus de-sígnios. A política pombalina, em 1755, decreta a abolição da escravidão dosindígenas, enfraquecendo definitivamente o controle que sobre eles exerciamas missões. Ao mesmo tempo, cria a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, estabelecendo contratos econômicos com os colonos. Emsequência, em 1758, institui o “Diretório dos Índios”, disciplinando aldeamentose proibindo que outras línguas sejam faladas, que não o português, acabandocom as iniciativas de produção de uma gramática de línguas indígenas elabo-rada por clérigos e missionários. Ao financiar o tráfico de escravos africanos eos cultivos de algodão e cana-de-açúcar, a política pombalina buscou fortale-cer a colônia de exploração sob a regência do Estado (ALMEIDA, 2008)11.

Pode-se dizer então, nos desdobramentos desta governação pombalina,que a Amazônia nunca esteve “vazia”, “isolada” ou “desocupada”, como quise-ram fazer crer os governos militares com suas políticas desenvolvimentistas12, e

11 Antropologia dos archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8 / Fundação Universidade do Amazonas, 2008.12 Registra-se aqui o argumento do "vazio demográfico" e, por isso, a necessidade de ocupação das terras visando a

expansão da fronteira agrícola e, ao mesmo tempo, a proteção das fronteiras nacionais, e a integração econômica daAmazônia com as demais regiões. É com base neste ideal que surgem as políticas de colonização operacionalizadaspelo INCRA, e os grandes projetos de infraestrutura como hidrelétricas e rodovias federais. Para críticas maiscontundentes, ver ESTERCI & SCHWEICKARDT (2010), FEARNSIDE (2015), RODRIGUES (2011) e CASTRO (2012).

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queiram crer, até hoje, os governos que tratam a região como “atrasada” ou“subdesenvolvida”. Parafraseando Santos (2010) em um jogo de palavras, ela éo Sul do Norte do Sul13: geograficamente é o norte do Brasil, contudo tratadacomo Sul global pelo restante do país, sendo que este mesmo é parte do Sulglobal, elaborando neste processo um jogo de projeção e reprodução em que,em casa, o oprimido atua como opressor. Percebe-se, portanto, uma continui-dade de práticas colonialistas, desta vez inter-regional.

Com base nesta projeção destorcida e colonialista é que procuro deba-ter de que maneira o povo Kambeba foi invisibilizado pelos acontecimentoshistóricos de ocupação territorial e subjugação por parte do Estado no âmbitodo processo de colonização, e quais os possíveis reflexos disto para a formaçãode outras invisibilizações fundadas nas novas colonialidades e no não reconhe-cimento de suas outridades.

1.1 Mumuri sekwe14: os relatos sobre e dos Omágua-Kambeba do AltoSolimões

Conhecidos historicamente como Omágua e denominados comoKambeba ou Cambeba por obra dos portugueses (PORRO, 1996; FERMIN,2016), os Omágua-Kambeba são originários das regiões dos rios Napo, Ama-zonas e Solimões, estas que, de acordo com a delimitação geográfica dos Esta-dos-nação, são atualmente os territórios nacionais de Colômbia, Peru e Brasil,respectivamente. Neste contexto de pan-Amazônia, a racionalidade dos povosindígenas, tal como os Omágua-Kambeba, não estava e nem está atrelada àordem geopolítica de fronteiras internacionais. A despeito de se organizaremcomo povos transfronteiriços, que estabelecem vínculos sociais e relações com

13 A expressão Sul é uma referência de Santos (2010) aos países não-desenvolvidos, tal como a grande maioria dossituados no hemisfério Sul, enquanto os do Nor te são os plenamente desenvolvidos. "O Sul exprime todas as formasde subordinação a que o sistema capitalista mundial deu origem: expropriação, supressão, silenciamento, diferenciaçãodesigual, etc.". É um jogo de palavras que brinca com a localização geográfica e o desenvolvimento econômico dospaíses, contrastando-as.

14 Na língua Kambeba, tem o significado de "memórias vivas" (FERMIN, 2016).

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a terra que vão além dos limites geográficos dos Estados-nação, estes povosindígenas são enquadrados por dispositivos dos respectivos Estados nacionais.

Sobre o território dos Omágua, as contribuições dos relatos de viajantesnaturalistas que trataram e retrataram os povos ao longo do rio Amazonas peru-ano e rios Solimões e Amazonas brasileiro, e as leituras que Porro (1996), Pachecode Oliveira (1987) e outros autores fazem destes, permitem compreender a ex-tensão territorial de ocupação Omágua, a localização aproximada de povos vizi-nhos, como os Mayoruna e Tikuna, e os fluxos migratórios correspondentes aseus deslocamentos geográficos. Algumas indagações a respeito da fidedignida-de das informações relatadas surgem, entretanto, a partir do cruzamento de da-dos textuais e cartográficos, facultando condições para uma síntese pergunta: emque medida os registros acerca da localização geográfica ou territorialização dospovos feitos pelos viajantes naturalistas são de fato fiéis àquela realidade?

Minha indagação antecede à leitura que fiz de Pacheco de Oliveira(1987), e para minha surpresa coincidiu com sua formulação sobre a qualida-de da descrição dos viajantes, a saber

A pergunta então que se impõe ao antropólogo como crité-rio definidor de sua posição face aos relatos de viagem é emque medida tais descrições podem ser tomadas comoconstituindo uma etnografia. Ou seja, as informaçõescontidas nos relatos de viagem podem ser consideradas:(a) confiáveis em sua observação e registro?; (b) de cará-ter relevante?; (c) em número suficiente de modo a permitirque apoiado apenas por elas, o pesquisador atual possaexercer uma análise antropológica? (PACHECO DEOLIVEIRA, 1987, p. 86).

Visto que a presença destes viajantes seguia propósitos explícitos noâmbito do projeto colonizador que, objetiva ou subjetivamente, podem tersubestimado a grandiosidade e complexidade das sociedades amazônicas pré-colombianas, importa destacar a relativização de seus registros15. A dúvida

15 Ao compor o quadro da "população de viajantes do Alto Solimões", Pacheco de Oliveira (1978, p. 96) reforça aindagação com o argumento de que as observações dos naturalistas se referem a um tempo cur to de permanência noAlto Solimões, ou mesmo a uma rápida passagem pela região, e por isso se encontram sujeitas a imprecisões e a

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paira especificamente sobre a denominação das etnias e a sua localização geo-gráfica por, aparentemente, haver desencontro de dados ou mesmo confusãoentre povos com nomenclaturas aparentemente semelhantes, a exemplo dospróprios Omágua e os Yurimágua (Solimões).

No que tange aos Yurimágua, localizados no médio Solimões, os via-jantes missionários Acuña e Fritz assim os denominam. Carvajal, entretanto,fará referências cartográficas a eles na porção entre os rios Coari e Purus clas-sificando-os como Omágua. Nesta descrição, os Yurimágua seriam descritoscomo “vizinhos” dos Omágua, embora haja autores que afirmam não existir àépoca Omágua no médio Solimões. Desta maneira, como não questionar aprobabilidade de Carvajal os ter confundido por conta da semelhança dosnomes? Sobretudo se for considerada a origem dos Omágua como sendo asvárzeas do baixo Napo (Equador), baixo Amazonas (Peru) e alto Solimões(Brasil)16, e seu território se estendendo até pouco abaixo da foz do rio Jutaí,antes da sede do município de Fonte Boa (Figura 1), tendo como vizinhos ospovos grafados em caixa alta, conforme Fritz aponta em 1691.

Segundo Nimuendajú (1952)17, os Omágua, na primeira metade doséculo XVII, eram tidos por Acuña como inimigos dos Tikuna – até porqueos Tikuna receavam o grande poderio dos Omágua. Devido as disputas entreespanhóis e portugueses pela dominação de territórios de várzea, os Omáguaforam forçados a deixar as ilhas e as várzeas do Solimões, buscando refúgio nasterras firmes e nos altos rios, território dos Tikuna. Houve então uma grandedesestruturação da organização social Omágua e uma tendência decrescenteem termos demográficos uma vez que eram submetidos à escravidão e ao ex-termínio.

registros superficiais. A saber, esta população levantada pelo autor é composta por dezessete viajantes que vão desdeLa Condamine (1739-1745) a Monnier (1886), compreendendo quase um século e meio de viagens referidas.

16 Convém ressaltar neste momento que os rios Amazonas e Solimões são referentes ao mesmo curso de rio - que nascepróximo aos Andes peruanos, atravessa todo o Amazonas e tem sua foz no Oceano Atlântico, na divisa dos estadosde Pará e Amapá. As designações deste rio, entretanto, variam pelo fato de que no lado brasileiro da tríplice fronteira,se chamar Solimões, e do lado peruano atender pela nomeação de rio Amazonas.

17 Cf. Nimuendajú, C. The Tukuna, editado por Rober t H. Lowie e traduzido por William D. Hohenthal. Editora daUniversidade da Califórnia, 1952, pp. 2-3, 8, 12 e 20. Para detalhamento da relação e contato dos Omágua com osTikuna, sugiro consultar também p. 53, 64-67, 77 e 98.

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As representações gráficas do território Omágua-Kambeba, a despeitode seus deslocamentos, corroboram à localização historicamente conhecida:parte do Peru, região fronteiriça com o Brasil, parte do Brasil e inclusive po-dendo abranger uma pequena parte do que é hoje a Colômbia, no âmbito daconformação da tríplice fronteira atual. Contudo, mediante leitura a que Porrose refere sobre os territórios do cacicado de Aparia, entende-se por indicação ecruzamento de informações que o território Omágua-Kambeba seria aindamaior, em sentido oeste, abrangendo as nascentes do rio Napo no Equador:

As fontes quinhentistas falam do poderoso cacicado deAparia, que se estendia desde o baixo Napo, no Equador,até a região de São Paulo de Olivença; eram ao que tudoindica os Omágua, que os portugueses chamariamCambeba. (PORRO, 1996, p. 26)

O rio Napo nasce na região dos Andes equatorianos e percorre aproxi-madamente 1.100 quilômetros atravessando o Peru e desaguando na margemesquerda do rio Amazonas peruano, abaixo do município de Iquitos. Diantede tal, ao perceber a referência que se faz ao rio Napo, compreende-se que asfontes quinhentistas, tal como citadas por Porro, referiam-se à baixa porçãodeste rio sob a ótica dos limites do território equatoriano, e talvez não necessa-riamente à foz do Napo, localizada em território peruano. Neste sentido, por-tanto, o território Omágua ocupado poderia ter sido muito superior.

Outro trecho que comprova essa larga extensão do território Omáguados séculos XVI e XVII, para além à oeste do Napo peruano, é no qual Porro(1996) aponta acerca dos dois tipos de grupos Omágua, diferenciados pela vidainsular e em terra firme, contudo o grupo abordado em seus ensaios se restringeao primeiro, os Omágua das ilhas, por serem “histórica e demograficamente maisexpressivo e ecologicamente associado à várzea amazônica”:

Durante os séculos XVI e XVII havia dois agrupamentosOmágua ao longo do eixo Napo-Amazonas. No alto Napoequatoriano, os Omágua-Yetê (“Omágua verdadeiros”) eno Solimões os “Omágua das Ilhas”, ou “la Gran Omagua”dos autores espanhóis. (PORRO, 1996, p. 92)

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de uso, apresentam-se com melhores condições de conservação e preservação.Isto nos permite compreender, segunda as autoras, que este cenário deriva dofato de que as próprias instituições sociais em espaços comunitários são determi-nantes para o sucesso do manejo comunal dos bens que utilizam o que implica,sobretudo, na manutenção, produção e reprodução dos seus territórios.

No que tange aos demais tipos de extrativismo praticados pelos Kambeba – acaça, a extração de madeira e de vegetais não madeireiros – são atividades muitoeventuais que, quando realizadas, são destinadas apenas para consumo próprio.Na caça, costumam abater apenas um indivíduo de espécies como queixada,paca, cotia, veado, mutum, anta e catitu com o intuito de variar o cardápio deproteína animal. A única família que relatou não mais realizar atividade de caçafoi uma das unidades familiares de Mata Cachorro, por conta da idade avançadade seus membros. Quanto ao extrativismo madeireiro, costumam extrair entreuma e duas toras, somente com fins de construir ou reformar casas, ou ainda paraa confecção de canoas e barcos. As espécies citadas que costumam ser utilizadasforam o anoirá, a orelha de burro, a ocuuba e a paxiúba. Acerca do extrativismonão madeireiro, costumam realizar a coleta de sementes para fins medicinais,como a andiroba, e para fins alimentícios, como a castanha-do-Brasil, além deextraírem diversos cipós para a fabricação de cestarias e utensílios domésticos.Foram citados os cipós titica, ambé e o timbó-açu.

Os modos de vida de comunidades tradicionais, e as relações intrinse-camente estabelecidas com os bens naturais que dispõem, confere uma com-plexidade organizacional a partir da polivalência de seu trabalho e labor, e dasensível percepção de seu território, marcado por representações materiais esimbólicas que significam e ressignificam suas territorialidades e identidadescoletivas. Tal complexidade, em geral, é permeada por racionalidades que con-sideram aspectos de coletividade, cooperação, temporalidades ecológicas e re-sistências face às sazonalidades que marcam suas ações enquanto agentes polí-ticos. Tais aspectos se encontram cada vez mais díspares da (ir)racionalidadeda sociedade urbano-industrial.

Esta disparidade entre racionalidades reflete, muitas vezes, a oposiçãodas formas de uso dos bens naturais quando agentes exógenos são movidos por

No que tange aos demais tipos de extrativismo praticados pelos Kambeba – a caça,

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interesses mercantis no âmbito da exploração destes – que a seus olhos e inter-pretações não passam de recursos naturais. As diferenças desde a terminologiaadotada, bens naturais ou recursos naturais, até a significação e espacialidadedo uso podem ser a causa para os inúmeros conflitos socioambientais por aces-so, uma vez que se releva ou torna invisível o caráter indispensável de tais bensnaturais às comunidades tradicionais. Nesta queda de braço, povos e comuni-dades tradicionais – minoritários em sua maioria – insurgem na defesa de seusterritórios e territorialidades, efetivando atos que influenciam o valor e os sen-tidos que dão a suas próprias culturas e múltiplas identidades.

As diversas formas de colonização e colonialidade dos indígenas

A lideranças Kambeba que participaram da pesquisa temem a violên-cia contra as suas comunidades a partir de ações beligerantes continuadas dos“operadores de dragas”. Estas ações remetem à memória viva de acontecimen-tos históricos que me levam a reflexões mais gerais relativas às práticas corres-pondentes à situação colonial.

Sabidamente, o projeto colonial europeu implementado em diversasregiões do Brasil com fins econômicos para a espoliação de bens naturais co-muns representou um profundo etnocídio e, com o passar dos anos de contatocom políticas colonialistas, um etnoepistemicídio (CUCHE, 1999). No quediz respeito particularmente à Amazônia, diversos autores que contribuíramcom discussões acerca deste contato não se arriscaram a afirmar, ou sequeraproximar, os dados demográficos referidos à população indígena da épocapré-colonial. Viana (1936) é categórico quanto a esse tema: “a Amazônia comoque desmoraliza o próprio princípio da contradição [...] Tanto se pode errarafirmando como negando”.

Batista (2007) entende a necessidade de se aceitar estas inconsistênci-as de informações para dar continuidade ao argumento, deixando de lado pos-síveis pretensões, e expressa o que adota como fato historicamente certo quan-to à dimensão demográfica dos indígenas da Amazônia no período pré-colo-nial: havia tantos indígenas quanto puderam resistir a mais de quatro séculos

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de conflitos com os colonizadores, estes sendo entendidos como não apenaseuropeus e seus descendentes, mas também brasileiros deslocados posterior-mente de outras regiões que compuseram as chamadas “frentes extrativistas” e“frentes de ocupação”. Acerca deste tema, embora seja bastante pertinente àreflexão, não é proposta deste trabalho verticalizá-lo na seara das políticas dedeslocamentos para a Amazônia, implementadas da segunda metade do sécu-lo XIX em diante, refletindo em situações de colonialismo interno.

Tupiassu (1969) afirma que a dificuldade em estimar números resideno fato de os colonizadores não terem ferramentas para tal contagem estatisti-camente segura. Além disto, importa sublinhar que os colonizadores não che-garam a estabelecer contato com exatamente todos os povos indígenas. Háautores que estimam o número em centenas de milhares, outros em milhões.Fato é que, por maior ou menor que fosse essa população, isto não significouque a relação tenha sido harmoniosa e mantida sob a política da pacificação,sobretudo no que se refere às aldeias da várzea (PORRO, 1996; DENEVAN,1992; ROOSEVELT, 1992) tal como as dos Omágua-Kambeba (Figura 15).

Talvez tenha sido justamente por essa limitação de estatística demo-gráfica, tal como sublinhada pelos comentadores da história da Amazônia,que a interpretação que fazem do contato acentuou sua verticalidade e eviden-ciou sua violência, representando o conflito em larga escala. Além das modali-dades de dizimação que os comentadores afirmam – tais como a eliminaçãodireta em lutas por apropriação de bens naturais, por doenças contagiosas epela escravização –, Tupiassu (1969) afirma ter havido uma modalidade indi-reta de eliminação “por meio da estimulação de guerras intertribais”. É refutável,no entanto, o caráter indireto desta forma de subjugação pela simples correla-ção de que o estímulo a realizar algo reflete uma ação social com relação a fins.Ou seja, uma atitude objetivada e dotada de interesses que configuraria numamodalidade direta de dizimação. Está-se diante de uma estratégia de conquis-ta pela guerra e pela subjugação absoluta dos indígenas.

Atendo-se mais a questões de ordem demográfica, Tupiassu (1969)relativiza os aspectos negativos da presença de missionários jesuítas afirmandoque a “segregação relativa” proposta pelos missionários teve um caráter positivo

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em comparação ao processo integrador dos colonizadores escravistas, que viriapor tornar preponderante os padrões colonialistas.

A “segregação relativa” deste modelo teológico de colonização reduzi-da a “aldeamentos”, segundo o autor, teria propiciado uma conservação “quasetotal” de elementos culturais indígenas, e, portanto, alterações em “poucas áre-as” da cultura indígena. A adoção de uma língua geral, bem como de atos edogmas do catolicismo, de vestuário dito adequado, do consumo de bens “ci-vilizados”, traduz uma renúncia forçada de sua forma de gestão e organizaçãopolítica. O autor reconhece que estas foram mudanças radicais, poréminexpressivas devido ao fato de terem sido limitadas a poucos povos ealdeamentos.

Contudo, o reducionismo de uma análise fundada somente em parâmetrosquantitativos e demográficos subestima as dimensões materiais e simbólicas dadominação que pairou sobre os povos indígenas. Ao mesmo tempo, impondo-lhes uma redução cultural permeada por estigmas produzidos pelo eurocentrismo.Tal dominação simbólica afetou suas cosmologias e modos de vida e, em longoprazo, suas identidades étnicas, corroborando uma espécie de morte social e umetnoepistemicídio fundado no estranhamento das experiências que se mostra-vam diferentes das eurocêntricas (QUIJANO, 2009).

As interdições estabelecidas pelo Diretório Pombalino de 1758incidiram sobre as línguas indígenas, sobre suas identidades sociais e sobre alíngua geral Nheengatu: institucionalizou o português como língua oficial ecoibiu expressões culturais intrínsecas aos povos indígenas, inibindo-os histo-ricamente de falarem suas próprias línguas. No que se refere ao uso da línguamaterna do povo Kambeba, o relato feito por uma agricultora Kambeba nosdá pistas acerca da abrangência deste etnoepistemicídio.

Minha mãe falava [a língua Kambeba], mas naqueles tem-pos não existia essas coisas que tá existindo agora [do inte-resse pela língua]. Às vezes nós dizia ‘mamãe, ensina pragente’, aí ela ‘pra que vocês querem? Isso não vai ser precisopra vocês!’ [reproduziu a fala com tom de voz alto e rude](B. L. C., agricultora Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

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A interlocutora demonstra como, no interior do seu próprio núcleofamiliar, havia uma negação da língua conjugada com a negação da própriaidentidade. Neste sentido, a mobilização indígena consiste numa luta contra ogenocídio. Mas que, segundo afirma Pinto (2006), é limitada à dicotomiaentre vida e morte, e acaba que por se esgotar em si mesma, resultando numasegunda morte em um contexto “duplamente trágico”. O âmbito da segundamorte e o que aprofunda sua tragicidade é que, em face deste cenário, passa ase tornar impossível aos povos indígenas se apresentarem em suas epistemes,verdades e robustez cultural. No caso dos Kambeba, as mobilizações étnicas sevoltam atualmente para a luta contra esta impossibilidade de expressão de“suas epistemes, verdades e robustez cultural” através de um projeto derevitalização linguística – encabeçado pela cacique geral e mestranda emlinguística Eronilde Fermin Kambeba.

Voltando às interpretações dos comentadores, vale enfatizar que o atode irrelevar ou invisibilizar outras formas de conhecimento, como o das socie-dades indígenas, inclui também o ato de considerar suas formas organizacionaise de agir em sociedade como sujeito social que o é. Neste sentido, como bemchama atenção Batista (2007) para a relativização deste sujeito rousseunianohistoricamente conhecido como “bom selvagem”, imbuído de imagens e fanta-sias acerca do seu pacifismo e pureza vivenciados no lugar exótico e inóspito deselva, ele afirma que os indígenas cultivavam e cultivam disputas e ojerizasinterétnicas.

Os próprios Omágua-Kambeba são conhecidos por seu caráter belico-so e territorialista. Nimuendajú (1952) reconhece estes atributos descrevendoos Tikuna comparativamente aos Omágua. Esta descrição enfatiza o trata-mento dado aos inimigos aprisionados em combate. Numa direção semelhan-te, Porro (1996) vai além e cita ações que envolvem a escravidão e comerciali-zação de inimigos capturados e casos de morte entre os próprios indígenas:

A posse de escravos aprisionados em guerra era frequente,mas só após a conquista, pela demanda dos colonos, elesadquiriram um valor de troca que fez do apresamento ma-ciço de inimigos uma atividade econômica importante para

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muitas tribos. Os Omágua só matavam, entre os cativos, oschefes e os muito valentes para prevenir insurreições; osdemais eram incorporados à comunidade, onde cada chefede família tinha um ou dois escravos domésticos, geralmen-te muito bem tratados. (1996, p. 31)

Acerca da imagem de “selvagem da selva”, Katia Schweickardt (2012, p.82) discute os trabalhos de viajantes naturalistas e cronistas como forte contri-buição para a construção e consolidação desta visão de interpretação da Amazô-nia que a autora denomina de “modelo inconsciente de matriz biológica e natu-ralista”. Ao citar Pratt (1999), que afirma que para além da colonização territorial,o projeto colonial foi eficaz em colonizar a mente dos colonizados, KatiaSchweickardt (2012) questiona a naturalização do pensamento hegemônicoeuropeu acerca do imaginário criado a partir dos relatos dos viajantes, estes que,obviamente, devem ser relativizados à medida que se compreende as intenções econtextualização desta presença alheia nas calhas dos rios amazônicos. Em ummovimento dialético quase como de um chicote – ou uma “dança de espelhos”conforme a obra metaforiza –, a divulgação para a Europa deste que era conhe-cido como “novo mundo” também a influenciou e a reinventou, reafirmando aimagem de si mesma como superior (PRATT, 1999) tanto em termos culturaise sociais como em termos materiais e, inclusive, bélicos.

Elias (2001) nos ajuda a refletir a interdependência, por mais invisívelque ela seja, presente nas relações de poder, nas quais um só é superior a partirda autoimagem que cria de si mesmo e das representações que reflete ao outro,da mesma forma que o subjugado só o é também a partir da sua própriaimagem e da forma como ele significa a imagem que o dominante lhe impute,aceitando-a. Contudo, Elias faz o alerta de que as análises destes tipos derelações sociais devem contar com o exercício da relativização e, mais ainda,feitas sob a ótica processual de interrelações e contextos, uma vez que a posiçãodos sujeitos pode variar conforme variam as figurações. Como ampara, o estig-ma é um consistente mecanismo que se soma a construção da autoimagempara reforçar a diferenciação dos sujeitos envolvidos nestas relações hierarquizadas(ELIAS, 2000).

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A despeito desta autoimagem europeia de superioridade, a força e asuperioridade indígena nas disputas com colonizadores são invisibilizadas nosrelatos dos cronistas viajantes, exatamente como forma de exaltar a supremaciaeurocêntrica, como se encontra evidente no seguinte trecho de Batista (2007,p. 57):

Orellana, descendo pela primeira vez o rio, enfrentou lutase guerras, à procura de alimentos, e Carvajal (ob. cit: 56),não referiu, senão de passagem, às mortes resultantes des-ses encontros. Não pôde escapar, todavia, ao relato de quehouve índios enforcados e outros atingidos mortalmentepelos arcabuzeiros e balhesteiros, revidando guerreirosmunidos de arco e flecha, no máximo flechas envenenadascom curare35.

A contribuição de Quijano (2009) evidencia que a colonialidade éuma arma extremamente eficaz dos dominantes para perpetuar sua domina-ção, e atua como ferramenta de controle de poder. No caso da dominaçãoamazônica pelos colonizadores, a suposta superioridade cultural imposta pelaclassificação, racialização e categorização dos indígenas é reforçada simbolica-mente pela construção da autoimagem do dominado, estigmatizado e subju-gado. Este se mostra em desconformidade ao padrão único e aceitável querepresenta o pensamento eurocentrado, e que segrega à medida que hierarquizae exclui as diferentes racionalidades e saberes.

1.2 A presença-ausente do Estado no (não-)reconhecimento das outridades

O processo histórico de apropriação e (re)ocupação da Amazônia bra-sileira, sabidamente violento e forçado nos séculos de colonização traz reflexosà organização social. Obviamente de uma forma diferenciada e por vezes vela-da, o que anteriormente era expresso pelo Estado colonial aliado à Igreja, atu-

35 Mistura de substâncias vegetais e/ou animais (de anfíbios venenosos por exemplo) que é usada pelos indígenas naspontas de suas flechas no ato de caça. A substância imobiliza a presa e auxilia a captura.

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almente se configura nas forças veladas do Estado aliado com diversas escalasde agentes econômicos, que vão desde grandes conglomerados até pequenoscomerciantes, visando a exploração dos bens naturais da Amazônia.

O que é apropriação senão se apossar do desconhecido (SILVA, 2004)a partir de seu não-reconhecimento e somente torná-lo conhecido por meio daimposição e reprodução do agente apropriador? Sob o pretexto de conquista eviabilizada pelas grandes navegações da expansão mercantil europeia, que bus-cavam mercados indianos, a apropriação da Amazônia se deu através de inte-resses econômicos, políticos e religiosos de Estado que intentam reduzir arealidade do “Novo mundo” ao modelo da própria metrópole.

O Estado aqui tratado possui duas faces: é o Estado laico, na pessoados colonos responsáveis pela posse e (re)ocupação da Amazônia, e o Estadoreligioso, representado pelas Missões e seus missionários. Silva (2004) traça ocenário social das diversas Amazônias contidas nos significados de Amazôniapós-contato europeu: “Amazônia indígena”, “Amazônia portuguesa” e “Ama-zônia brasileira”. A primeira corresponde à Amazônia pré-colonial, pretérita,fundante, sintrópica. A segunda representa a dominação e exploração da pri-meira na relação metrópole-colônia, incluindo sua integração à lógicamercantilista do Estado monárquico lusitano e a presença expropriadora doscolonos, que foram “agraciados” com terras e pela oportunidade de exploraçãoda mão de obra indígena36. E a terceira é o misto de continuidade e rupturacom as duas Amazônias anteriores, na suposta eterna tentativa de se moldar demaneira própria, porém se deparando com os fantasmas do pensamento colo-nizado recorrentemente.

A região amazônica, que se constitui na sociedade nacional como con-tinuidade da sociedade colonial da Amazônia Lusitana negou, da AmazôniaIndígena, a sua identidade pluricultural. Inserida na revolução popular daCabanagem, a Amazônia Indígena penetra na Amazônia Brasileira, constitu-

36 Silva (2004) afirma que os referidos colonos representavam para a sociedade por tuguesa o "excedente populacional,a escória e os indesejáveis" que foram transformados em predadores de indígenas, extrativistas e senhores de escravosindígenas e negros por meio do controle da mão de obra e as opor tunidades mercantis na Amazônia. É o oprimidopor tuguês sendo o opressor do outro lado do Atlântico, na reprodução da hierarquização social e cultural.

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indo-se em ruptura regional com a Amazônia Lusitana. É, nesse sentido, forçasocial. Mas é também passado, presente e futuro de um modo de ser; é umaexpectativa social e um projeto político em construção, buscando se viabilizarna história (SILVA, 2004, p. 182).

Frente a esta configuração de forças politicamente organizadas, pode-mos considerar, para efeitos de análise, uma definição “provisória de Estado”(Bourdieu, 2014) que dialoga criticamente com a concepção weberiana acres-centando a violência simbólica no monopólio da violência física. Tal definiçãode Estado propicia condições para a compreensão dos processos de conquista,expropriação e exploração da força de trabalho indígena e bens naturais.

Complementando essas diferentes abordagens de Estado, cabe menci-onar que, segundo Marx e Engels (1998), é a partir da divisão do trabalhosocial e como a ação do homem se transforma para ele em força estranha, que a elese opõe e o subjuga, provocando forças alienadoras, que o Estado surge comonecessário, configurando-se como instrumento de mediação.

Tal concepção de Estado que problematiza o jogo de interesses dequem o compõe, e considerando ainda a hierarquização das relações sociaisentre Estado lusitano (colonos e Igreja) e povos indígenas, agindo como“civilizadores”, “tutelares” e “catequistas”, é que se propõe o termo presença-ausente como parte do esquema explicativo.

A atualidade das práticas colonialistas, ou o que considero comocolonialidade, materializa esta noção de Estado caracterizado pela presença-ausente, que resulta na indiferença e invisibilização das potencialidades e espe-cificidades dos povos indígenas. Isto se torna mais perceptível a partir da en-trevista que realizei junto a um gestor local. Ao ser questionado acerca do sítioarqueológico Santa Terezinha – cujo reconhecimento não é feito pelo poderpúblico municipal, não obstante os Kambeba reivindicarem o seu tombamen-to junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)–, afirma que os paulivenses reconhecem como indígenas somente os perten-centes à etnia Tikuna.

Objetivando proceder uma análise desta entrevista, selecionei excertosque compõem uma unidade discursiva subdividida em três planos analíticos:

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Na verdade, aqui não tem nenhum sítio arqueológico. Comoa cidade aqui é um pouco alta e nossos ancestrais eramKambeba e Omágua, então ele por si só contraponto ele éum cemitério arqueológico que botavam as urnas funerári-as indígenas em algum monte, nas áreas mais altas doSolimões, e depositar suas urnas.Então o que aconteceu [...]. Com essa nova chamada, novaabertura de usar os índios para ganhar benefício, porque oscaras não são índios, nunca foram e nunca [interrompeu afrase]. Eles querem usar os benefícios como lugar na uni-versidade, dinheiro de programas indígenas [...]. Então co-meçou uma onda de indígenas querendo ser índio, queren-do ser índio, que é pra usar, usufruir dos direitos dos índios.Nós paulivenses, consideramos só índio aqui os Tikuna, queainda tem sua raiz, tem sua língua. Os outros é só bacaba37

mesmo, só querendo dinheiro, querendo usar os benefíciosdos povos indígenas. Mas não existe, é só isso mesmo, elesquerem mesmo [...]. Inventam língua, inventam [interrom-peu a frase]. Pode ver que nenhum sabe falar nada.Aí eles querem demarcar tudinho aqui a área como se fosseterras indígenas. Não existe isso não. É só para ganhar osbenefícios mesmo. Pense num povo nó cego é esse (C.S[nome fictício], gestor de órgão municipal, pesquisa de cam-po, 2016).

No que corresponde ao primeiro plano, destaca-se um passado indíge-na idealizado, cuja discussão implica, do ponto de vista do gestor, o não reco-nhecimento do sítio arqueológico ali existente. Antes de utilizar a palavra“cemitério”, o gestor utilizou a palavra “aterro”, para depois se corrigir e pro-nunciar “cemitério arqueológico”. Algo bastante simbólico que deixa suben-tendida a dificuldade ou o não reconhecimento do poder público municipalda existência e importância do sítio arqueológico Kambeba. Ainda que sejareconhecida a ancestralidade Kambeba, acreditam que a perda histórica de sualíngua e costumes não os fazem mais indígenas, diferentemente dos Tikuna.Aqui, o gestor reforça os princípios da prática colonialista de subjugação dosOmágua-Kambeba do ponto de vista linguístico e arqueológico.

37 Variação de "abacaba", termo do vocabulário amazonense utilizado em referência a alguém que se finge, que não éconfiável no que diz e no que faz (FREIRE, 2011).

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Concernente ao segundo plano, o gestor expressa uma visão instru-mentalista dos Kambeba ao considerar que “não são índios, nunca foram”. Ouseja, há uma negação da identidade. Isto se dá com base na suposição de que osKambeba adotam uma identidade étnica tão somente para usufruir de vanta-gens materiais inerentes aos direitos indígenas. Este excerto se coaduna com oargumento que considera que somente os Tikuna são indígenas, “os outros é sóbacaba” que “inventam língua” e identidade.

O terceiro plano, por sua vez, aponta que, na opinião do gestor, haveriauma transformação indevida de áreas municipais em terras indígenasdemarcadas, onde querem “demarcar tudinho”, ilegitimando com isto a rei-vindicação dos Kambeba por seus direitos territoriais. E finalmente, o agentenega os Kambeba como povo ao estigmatizá-los como “nó cegos” ou farsantes.

Estes excertos analisados em três planos nos apontam cinco negaçõeshabitualmente reproduzidas pelo senso comum acerca dos Kambeba: a nega-ção de sua história, materializada pelos sítios arqueológicos, a negação da iden-tidade, a negação de seus direitos, a negação de seu território e, por fim, anegação de sua condição como povo indígena. Toda essa estratégia discursivado gestor do órgão municipal, a partir das negações sucessivas, é uma dasexemplificações da presença-ausente do Estado.

A mobilização étnica dos Kambeba passa a ocorrer em consonânciacom dispositivos jurídicos ratificados pelos Estados nacionais, de modo a secontrapor com essa presença-ausente do Estado em situações explicitadas até omomento. Um dos instrumentos que corroboram com a mobilização para ga-rantir a autodefinição dos Kambeba é o Artigo 1º da Convenção 169 da Or-ganização Mundial do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais (Bra-sil, 2004). O critério fundamental para determinar a quais grupos regem ostermos da presente Convenção é a consciência de sua identidade indígena outribal. Como afirmam a Convenção e o defasado Estatuto do Índio (Brasil,1973), são considerados indígenas os indivíduos que se declaram como tal,que se identificam como tal e, ao mesmo tempo, são identificados como taisem meio a seu povo.

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CAPÍTULO 2

NAS TERRAS E ÁGUAS DO BEM-VIRÁ: OS CONFLITOSSOCIOAMBIENTAIS NO RIO JANDIATUBA

São Paulo de Olivença – AM, Comunidade *, Jandiatuba04-06-14 Ofício nª 01Para o Coordenador Regional do Alto Solimões – CRAS-TBT,Sr. C. A. I.

Senhor C., venho através deste ofício lhe comunicar sobretudo que está ocorrendo na área do Jandiatuba com a che-gada do garimpo em nossas terras. Vale frisar que os mes-mos estão danificando, poluindo e desmatando esta áreacom escoriações, provocando erosão no solo no qual foidestruída uma parte da praia que se concentra em frente aminha residência no lugar denominado *. Também a conta-minação de óleo dentro do rio está matando os peixes eanimais e todos os tipos de lixo que são jogados dentro dorio, poluindo a água para consumo. Durante esses fatosocorridos, já fui ameaçado juntamente com minha esposaporque chamei atenção deles para sair da área. Depois dedois dias, avistei uma balieira com três pessoas armadasrodeando minha residência no Jandiatuba, armando tocaiapara dar fim na minha esposa e assim se livrarem de mim, jáfui ameaçado várias vezes. Procurei os órgãos competentesdo município, mas não encontrei resposta. Diante de todosesses fatos, venho pedir ajuda dos órgãos federais junta-mente com a Funai que mande urgente uma fiscalizaçãopara essa área e determine a expulsão desses garimpeirosda nossa área do Jandiatuba. Sem mais para o momento,desejo votos de considerações e apreços.Assina Cacique Kambeba da área *, Jandiatuba.

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A carta reproduzida acima, a partir da original escrita à mão, é uma dasdiversas denúncias enviadas à Coordenação Regional do Alto Solimões - CRASda Funai, que relatam as ameaças com a presença do garimpo no rio Jandiatubae exigem providências e o cumprimento das leis ambientais e dos direitosindígenas.

É neste cenário que se centra a discussão do presente capítulo, trazen-do trechos de fala e elementos que evidenciam os conflitos sociais surgidos naregião do rio Jandiatuba. Em forma de paráfrase, o título faz referência aopremiado documentário “Nas terras do bem-virá”38, que expõe o debate dosconflitos agrários no interior da Amazônia relacionados aos processos migra-tórios, ao avanço do agronegócio e do desmatamento, bem como do trabalhoescravo. Como contraponto e de forma a reforçar a resistência dos trabalhado-res rurais, debate também os movimentos de luta pela terra.

A partir da década de 50, as políticas de valorização econômica dosestados da Amazônia brasileira ganharam força, buscando implementar umprocesso de homogeneização dos espaços econômicos nacionais como uma con-sequência da integração. Isto se dá, sobretudo, por meio de políticas desenvol-vimentistas, pensadas de maneira exógena e verticalizada, para regiões consi-deradas como “pouco integradas” ao espaço econômico nacional e global. Aopasso que tiveram este objetivo, tais políticas refletiram grandes transforma-ções sociais, que foram percebidas como negativas aos olhos das comunidadeslocais39 no que se refere a seus efeitos socioambientais.

Do ponto de vista das consequências de um projeto dito modernizadorque exclua as comunidades locais, grande parte dos problemas decorrentes dosmodelos de desenvolvimento adotados reflete em conflitos socioambientais.Estes são marcados pela apropriação, conservação e exploração dos bens natu-rais disponíveis enquanto fonte de autonomia dos moradores locais, e, ao mes-mo tempo, enquanto matéria-prima para as estratégias empresariais na região.

38 Direção de Alexandre Rampazzo, produção de Tatiana Polastri. Brasil, 2007 (111 min).39 Cf. Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, Ar t. 8J/92, a qual o Brasil é signatário.

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2.1 A draga que arrasta, lava e lavra: os impactos do garimpo nas famíliasOmágua-Kambeba e nas águas do Jandiatuba

A lógica de funcionamento da exploração garimpeira nos rios da Ama-zônia é predadora por alterar o modo de vida dos povos e comunidades tradi-cionais, a qualidade da água de consumo das mesmas, a oferta e qualidade dospeixes, e a paisagem do rio ao explorarem não somente o fundo do leito, mastambém suas margens e barrancas. Ou seja, o ecossistema aquático como umtodo é afetado.

Tal lógica de operação nos rios, de acordo com Caheté (2008), dá-sepor meio da sucção do material deposto no fundo dos leitos dos rios através dedragas dotadas de bombas com dimensões entre 10 e 12 polegadas com co-mando hidráulico, ou por mangueira operada manualmente por um trabalha-dor de mergulho submerso – modo de exploração bastante frequente na ga-rimpagem artesanal de pequenas dragas (Figura 10). Após o material emergirà superfície da draga ou balsa, ele é triado em esteiras onde se realiza a primeiraseparação entre sedimentos grandes e menores, facilitando as próximas etapasde peneiragem. São nestas etapas em que a draga “arrasta, lava e lavra”, isto é:“arrasta” os sedimentos sugados para si e posteriormente depositados em outralocalidade do leito do rio; “lava”40 todo o material, inclusive biológico, que foisugado como primeiro processo de triagem, e; “lavra”, ou seja, realiza a extra-ção do ouro.

Após emergir e ser triado nas esteiras das balsas, o material recebecontato com o mercúrio, responsável por amalgamar com as partículas de ouropresentes no material. Após amálgama formada, o mercúrio perde seu valor deuso e ele é eliminado pelo processo de queima da liga, restando somente o ouroem sua pureza química. Como em todo processo químico, há perda de energiae materiais, não sendo diferente nestes dois processos que utilizam mercúrio.

40 A ambiguidade desta palavra também nos permite relacionar este jogo de palavras aos relatos de que a garimpagemé uma fecunda atividade econômica para lavagem de dinheiro e evasão de divisas, ambos atos considerados comocrimes financeiros.

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No primeiro deles, quando depositado para formar a amálgama, parte do mer-cúrio pode não se combinar com o ouro e, portanto, ela pode ser perdida parao rio. No segundo processo, de queima da liga ouro e mercúrio para obter apureza do primeiro, o mercúrio é perdido por meio da combustão e evapora-ção deste metal, podendo ser extremamente nocivo ao sistema respiratório dotrabalhador que realiza esta etapa da cadeia sem os devidos equipamentos deproteção individual.

Há dragas mais bem equipadas com sondas e equipamentos – chama-dos de retorta, comumente utilizados nos processos de destilação – quereaproveitam o vapor de combustão do mercúrio, fazendo-o voltar ao sistemafísico-químico e inferindo em menos riscos à saúde do garimpeiro operador.

Com os poucos garimpeiros que a gente conversou em cam-po, a gente percebe que aquela atividade desenvolvida poreles tá muito longe de ser uma atividade que traz algumasustentabilidade econômica ou ambiental para as própriaspessoas que estão envolvidas naquela ação. [...] Então não é,de longe, não é uma atividade sustentável, uma atividadedigna. A gente percebe que nenhum daqueles trabalhado-res possui equipamentos básicos de proteção individual, elesnão possuem treinamento pra poder lidar com aqueles equi-pamentos ou com aqueles produtos tóxicos, aquelas balsaspossuem uma estrutura muito precária, as balsas elas se tive-rem diariamente, praticamente a cada hora, dando manuten-ção elas afundam, ou seja, uma estrutura que apresenta umrisco pra quem tá operando elas, não existem equipamentosde segurança. Enfim, são atividades que são muito precárias.(H. L., chefe da divisão técnico-ambiental do Ibama-AM,42ª reunião ordinária do CEMAAM, em 17/11/17)

Os impactos aos garimpeiros são muitas vezes naturalizados, seja pelaatração dos altos ganhos monetários que esta atividade lhes oferece – que, sobsua ótica, podem “compensar” o risco à sua saúde –, pela falta de alternativa detrabalho e ocupação, por conjunturas político-econômicas de crise que osdirecionam para a economia informal, ou mesmo por todos estes fatores com-binados. Segundo outro trecho de fala do chefe de divisão do Ibama, no âmbi-to da 42ª reunião ordinária do CEMAAM:

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Não há nenhum garimpeiro com o qual a gente conversouem campo – e foram vários né, imaginem que uma balsa degarimpo tem em média seis pessoas trabalhando, ao longodesse processo41 nós abordamos mais de 50 balsas – que seorgulha daquela atividade que ele desenvolve, nenhum ga-rimpeiro se sente satisfeito com aquela atividade. Muitopelo contrário, ele é, de certa forma, empurrado para aquelaatividade ilegal diante da impossibilidade de desenvolveralgum outro trabalho que traga uma sustentação pra famí-lia dele. Ou seja, o movimento de entrada de uma popula-ção dentro do garimpo ela é muito semelhante também àentrada de uma população dentro do tráfico de drogas. Apessoa é empurrada pra aquela atividade ilegal diante deuma fragilidade social e de uma ausência de políticas públi-cas voltada pra aquela população. (H. L., CEMAAM, 17/11/17)

Então de quem se trata este agente social da garimpagem artesanaloperada nos rios do Amazonas? Embora a pesquisa não possa ter tido acesso adados primários entrevistando estes outsiders, os relatos são diversos quanto àorigem destes agentes. No caso da garimpagem no rio Madeira, os agentesorganizados em cooperativas são os chamados “ribeirinhos”, “indígenas”, “nor-destinos”, “desempregados”, “desalojados de seus territórios”, “pescadores” e“deslocados”. Suas múltiplas identidades se reduzem a de garimpeiro frente àprecarização de seu modo de vida de um lado e, de outro, a oportunidade deganhos monetários com a exploração. São deslocados a esta atividade, comopontuou a fala do representante do Ibama.

O instrumento analítico que me permitiu fazer esta reflexão acercados outsiders e seus reflexos nas comunidades Kambeba foi inspirado a partirde Elias e Scotson (2000). Trata-se de uma relação de dominação que envolvetambém estigma, seja ela positiva ou negativa, dos sujeitos ou povos comoforma de aprofundamento desta dominação. O trabalho de pesquisa dos refe-ridos autores retratou compreensivamente as relações entre estabelecidos e

41 Referência às ações de abordagem e desarticulação dos garimpos instalados no rio Jandiatuba, no município de SãoPaulo de Olivença, região sudoeste do Amazonas, e no rio Madeira, no município de Humaitá, sul do Amazonas,realizadas em agosto e outubro de 2017, respectivamente.

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outsiders da área suburbana de um vilarejo de operários da indústria inglesa.As quatro principais características percebidas pelos autores que influencia-vam este círculo vicioso de relação, onde a condição de um e de outro grupopoderia ser modificada pela estigmatização, foram, naquela configuração, ocarisma, a coesão dos grupos em suas individualidades, sua auto-imagem tantocomo estabelecido (superior) quanto como resignado (outsider), e o fator tem-po, que influenciava diretamente as questões relacionadas a tradição de nor-mas e costumes grupais, além da força dos laços antigos de vivência, com famí-lias nutrindo amizades por gerações.

Considerando o exercício de pensar relacionalmente (BOURDIEU,2007), pode-se, despretensiosamente, estabelecer uma interlocução com as con-tribuições de Elias e Scotson para pensar as quatro características que influen-ciam as relações sociais e políticas que os Kambeba de São Paulo de Olivençaestabelecem diante da presença dos garimpeiros, ora classificados como outsidersque expoliam o Jandiatuba. A auto-imagem do grupo estudado por Elias po-deria ser transmutada para a identidade dos Kambeba, considerando a luta domovimento para o fortalecimento da mesma; o carisma pode ser pensadorelacionalmente como a sua luta por reconhecimento; o fator tempo pode setraduzir para a configuração da realidade pesquisada como direitos originári-os dos povos indígenas; e a característica da coesão grupal pode ser expressacomo sendo as territorialidades do povo Kambeba.

Os garimpeiros do ponto de vista dos Kambeba

O caso do Jandiatuba é um tanto diferente quanto à origem destesagentes, segundo os relatos dos Kambeba. São garimpeiros de fora da cidadede São Paulo de Olivença, inclusive da região da tríplice fronteira, articuladoscom empresários do município e agentes do poder público municipal.

Já ouvi falar que tinha duas pra cá que quem mandavanelas era aquele tal de VM [nome fictício], daí de São Pau-lo [de Olivença], que é parente de prefeito. E as outrastudo era ele que diz que governava aí, pra cá pra dentro.

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Tinha alguns que era lá do [rio] Jutaí, uns trabalhador, nãoera gente de São Paulo [de Olivença] não. De São Paulo[de Olivença] mesmo é só esse tal de VM [nome fictício]mesmo que pega gente de São Paulo [de Olivença] pratrabalhar. (B. A. M., agricultor Kambeba, pesquisa de cam-po, 2016).

Esta modalidade de extração mineral em pauta no Jandiatuba incor-pora o trabalho armado no cotidiano produtivo, que acaba tendo como funçãoprincipal intimidar não apenas os Kambeba que narram estas cenas, mas pro-vavelmente também se refere ao controle para evitar as possibilidades de sub-tração da produção aurífera. Na narrativa de um dos Kambeba:

Quando vi eles passando, já imaginava que era extraçãode minério pq já tinha ouvido falar. O líder deles era até umestrangeiro, um colombiano ele. Ele andava numa lanchabem grande, bem grande mesmo! Bem bonita lancha. E nafrente dele assim, andava vários tipos de arma, muita armamesmo, calibre doze, sei lá que calibre mais, só era armapotente porque ele era o chefe. Ninguém teve informaçãose eles vieram baixando de lá [da tríplice fronteira] ou sevieram subindo o Solimões. A gente só viu quando entrouaqui mesmo. (L. A. R., pescador Kambeba, pesquisa decampo, 2016)

Esta intimidação é associada também às investidas de instalação dasdragas por mecanismos de influência política que inibem algumas iniciativasde interlocução por parte dos Kambeba com os garimpeiros:

Eu não converso com eles não. Só sei que umas dragas édeles daí mesmo de São Paulo [de Olivença], algumas doVM [nome fictício] que é comerciante parente do prefeito,e as outras é do [rio] Jutaí, que não conheço. Eles minera-vam no rio lá ouvi dizer, e parece que começaram a prendereles por lá e vieram tudo pra cá, o que eu soube. (B. R. A.,agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

M [nome fictício] o nome dele, o sobrenome não sei. Ele élá de Goiânia. Goiânia? Sei não, parece. Só sei que ele é delonge. Ele foi o primeiro garimpeiro que entrou aqui. Quan-

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do ele entrou aqui dentro foi com uma balsinha chupão eentrou como que fosse tirar seixo pro município, o prefeitocontratou ele pra tirar seixo, só que nessa entrada ele foi praexplorar minério. Então desde 2008 que ele tá aqui dentro.(L. A. R., pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

A composição das equipes que trabalham nas dragas envolve um nú-mero determinado de trabalhadores, designados como “operadores” segundoas entrevistas, que varia de cinco a sete pessoas

[o número de trabalhadores varia] Conforme o tamanhoda draga. Tem draga com sete pessoas, com seis, com cinco[...]. São todos os operadores. Que eu saiba, tem um só queé daqui de São Paulo [de Olivença]. A maioria é de fora. (L.A. R., pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

É necessário, portanto, pontuar que, da ótica dos Kambeba, estes agentessociais que operam a garimpagem no Jandiatuba não estariam nem articuladosa grandes empresas de mineração, como ocorre em outras localidades da Ama-zônia, e nem seriam ribeirinhos tais como os organizados em cooperativa noMadeira. Entre estes dois extremos, os que extraem ilegalmente no Jandiatubamostram-se mais próximos a comerciantes e gestores públicos locais e donosde balsas autônomos que movimentam boa parte da atividade garimpeira.

“Água barrenta” e “peixe ferido”: máquina, óleo e mercúrio

Para além da discussão acerca dos operadores do garimpo, o foco aquivolta-se para os impactos socioambientais sobre os Kambeba que vivem do rioJandiatuba. Faz-se entendido oficialmente como impacto ambiental a defini-ção constante na resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente –CONAMA42, que consiste em

42 Órgão consultivo e deliberativo do Sistema Nacional do Meio Ambiente-SISNAMA instituído pela Lei Nº6.938/81.

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qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e bio-lógicas do meio ambiente, causada por qualquer forma dematéria ou energia resultante das atividades humanas que,direta ou indiretamente, afetam a saúde, segurança, bemestar da população; as atividades sociais e econômicas; abiota; as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente;e a qualidade dos recursos ambientais. (Art. 1º, ResoluçãoCONAMA Nº 001/1986)

As alterações físicas ou paisagísticas do rio Jandiatuba e áreas adjacen-tes são resultados de assoreamentos em trechos do leito e, em consequência,alterações no seu curso natural provocados por duas ações realizadas pelo ga-rimpo: o desbarrancamento de margens e a sucção de sedimentos pela dragagem,que pode depositar este material de forma concentrada em alguma localidadedo rio. O desequilíbrio pode favorecer o surgimento de bancos de areia quedificultam a navegabilidade do rio, e a formação de áreas de água empossadaque são propícias para a procriação de insetos, incluindo os que são vetores dedoenças como a malária. Os indicativos de assoreamento e mudanças do cursodo leito do rio ficam evidentes nas declarações acerca das modificações perce-bidas pelas comunidades Kambeba após a chegada da atividade garimpeira noJandiatuba e podem ser ilustrados pela Figura 11.

Tem lugar que você olha assim parece o Solimões,escavaçado [refere-se às barrancas de terras caídas comunsnas margens do Solimões]. Eu queria que vocês viessem noverão, é aqueles barranco de terra lá no meio [apontandopara o rio]. Uns buracãozão danado assim. Aqui [normal-mente] não tem buraco não. Aí eles tiraram aquela praiatodinha de repente! (L. E. A., pescador Kambeba, pesquisade campo, 2016)

Essas buraqueira que tem aí pelos barranco é trabalho de-les. Só dá pra ver quando o rio seca, vocês vão ver só. Elesderrubam [a mata ciliar] com motosserra e tacam a draga,cavoca, cavoca. Porque pra lá que diz que tá o ouro. A genteia reclamar que era bom eles saírem daqui, e aí disseram pramim que eles não tavam maltratando o rio, porque eles nãotavam trabalhando no meio do rio, tavam trabalhando lápra dentro [risos]... Mas a água vem de lá pra cá né [risos],

Essas buraqueira que tem aí pelos barranco é trabalho deles. Só dá pra ver quando o rio seca, vocês vão ver só. Eles derrubam [a mata ciliar] com motosserra e tacam a draga, cavoca, cavoca. Porque pra lá que diz que tá o ouro. Fora aquelas [dragas] que chupa [o fundo do rio]. Trabalham dia e noite que a gente consegue ouvir o barulho. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

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qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e bio-lógicas do meio ambiente, causada por qualquer forma dematéria ou energia resultante das atividades humanas que,direta ou indiretamente, afetam a saúde, segurança, bemestar da população; as atividades sociais e econômicas; abiota; as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente;e a qualidade dos recursos ambientais. (Art. 1º, ResoluçãoCONAMA Nº 001/1986)

As alterações físicas ou paisagísticas do rio Jandiatuba e áreas adjacen-tes são resultados de assoreamentos em trechos do leito e, em consequência,alterações no seu curso natural provocados por duas ações realizadas pelo ga-rimpo: o desbarrancamento de margens e a sucção de sedimentos pela dragagem,que pode depositar este material de forma concentrada em alguma localidadedo rio. O desequilíbrio pode favorecer o surgimento de bancos de areia quedificultam a navegabilidade do rio, e a formação de áreas de água empossadaque são propícias para a procriação de insetos, incluindo os que são vetores dedoenças como a malária. Os indicativos de assoreamento e mudanças do cursodo leito do rio ficam evidentes nas declarações acerca das modificações perce-bidas pelas comunidades Kambeba após a chegada da atividade garimpeira noJandiatuba e podem ser ilustrados pela Figura 11.

Tem lugar que você olha assim parece o Solimões,escavaçado [refere-se às barrancas de terras caídas comunsnas margens do Solimões]. Eu queria que vocês viessem noverão, é aqueles barranco de terra lá no meio [apontandopara o rio]. Uns buracãozão danado assim. Aqui [normal-mente] não tem buraco não. Aí eles tiraram aquela praiatodinha de repente! (L. E. A., pescador Kambeba, pesquisade campo, 2016)

Essas buraqueira que tem aí pelos barranco é trabalho de-les. Só dá pra ver quando o rio seca, vocês vão ver só. Elesderrubam [a mata ciliar] com motosserra e tacam a draga,cavoca, cavoca. Porque pra lá que diz que tá o ouro. A genteia reclamar que era bom eles saírem daqui, e aí disseram pramim que eles não tavam maltratando o rio, porque eles nãotavam trabalhando no meio do rio, tavam trabalhando lápra dentro [risos]... Mas a água vem de lá pra cá né [risos],

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é a mesma coisa! Fora aquelas [dragas] que chupa [o fundodo rio]. Trabalham dia e noite que a gente consegue ouvir obarulho. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa de campo,2016)

Como resultado destas ações predatórias adotadas pelo garimpo, hámodificações nas condições fisíco-químicas da água, tornando-a barrenta (mu-dança de coloração e qualidade), com alta concentração de organismos decom-postos ou em decomposição, refletindo diretamente na saúde das comunida-des que utilizam a água do Jandiatuba não somente como meio de trabalho,como também para consumo – culinária, banho, recreação.

Segundo Caheté (2008), uma das características mais significativaspara a saúde dos ecossistemas aquáticos que sofrem modificação com estas“reviradas” das dragas em busca de ouro é a luminosidade abaixo da superfícieda água, ou seja, uma considerável limitação da incidência de raios solaresessencial para alguns organismos aquáticos, sobretudo aos que compõem asbases da cadeia alimentar. Além destas alterações biológicas que impactamtoda cadeia, há relatos da percepção de poluição das águas causada por derra-mamentos de óleo, detergentes, soda cáustica e outros químicos, resíduos sóli-dos e até mesmo eletrônicos. Estas são visíveis na água por meio de manchastranslúcidas e blocos de espuma branca que boiam na superfície da água. Paraalém destas, há as poluições não perceptíveis a olho nu, como é o caso domercúrio e outros possíveis metais utilizados.

As narrativas dos Kambeba participantes da pesquisa evidenciam estesefeitos dramaticamente sobretudo nas águas, afetando as famílias Kambebaem sua saúde.

Pelo o que a gente via descendo no rio, a gente não tinhacondições de consumir a água. Tinha óleo diesel, lixo [ficapensativo]. No momento, a água já subiu muito [de nível]né, mas eu fiz uma colheita de lixo, televisão e tudo o quevão jogando, e tirei fotos disso. A gente não conseguia con-sumir água e tinha que pegar do igarapé, tomar banho eralá. Agora esses dias, depois que saíram que a água mudou,mudou pra cor quase dela. Ainda não tá bem na cor que ela

Como resultado destas ações predatórias adotadas pelo garimpo, há modificações nas condições fisíco-químicas da água, tornando-a barrenta (mudança de coloração e qualidade), com alta concentração de organismos decompostos ou em decomposição, refletindo diretamente na saúde das comunidades que utilizam a água do Jandiatuba não somente como meio de trabalho, como também para consumo – culinária, banho, recreação.

Segundo Caheté (2008), uma das características mais significativas para a saúde dos ecossistemas aquáticos que sofrem modificação com estas “reviradas” das dragas em busca de ouro é a luminosidade abaixo da superfície da água, ou seja, uma considerável limitação da incidência de raios solares essencial para alguns organismos aquáticos, sobretudo aos que compõem as bases da cadeia alimentar. Além destas alterações biológicas que impactam toda cadeia, há relatos da percepção de poluição das águas causada por derramamentos de óleo, detergentes, soda cáustica e outros químicos, resíduos sólidos e até mesmo eletrônicos. Estas são visíveis na água por meio de manchas translúcidas e blocos de espuma branca que boiam na superfície da água. Para além destas, há as poluições não perceptíveis a olho nu, como é o caso do mercúrio e outros possíveis metais utilizados.

As narrativas dos Kambeba participantes da pesquisa evidenciam estes efeitos dramaticamente sobretudo nas águas, afetando as famílias Kambeba em sua saúde.

Pelo o que a gente via descendo no rio, a gente não tinhacondições de consumir a água. Tinha óleo diesel, lixo [ficapensativo]. No momento, a água já subiu muito [de nível]né, mas eu fiz uma colheita de lixo, televisão e tudo o quevão jogando, e tirei fotos disso. A gente não conseguia consumir água e tinha que pegar do igarapé, tomar banho era lá. Agora esses dias, depois que saíram que a água mudou, mudou pra cor quase dela. Ainda não tá bem na cor que ela é, porque quando chega nesse período [de cheia] a água fica mais clara, mais limpinha. Mas ainda tá meio barrenta por causa das outras dragas que ainda tão aí. (L. A. R., pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

Ela [água do rio] fica muito cheia de barro, tira assim navasilha e fica um monte de barro embaixo. As dragas que

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é a mesma coisa! Fora aquelas [dragas] que chupa [o fundodo rio]. Trabalham dia e noite que a gente consegue ouvir obarulho. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa de campo,2016)

Como resultado destas ações predatórias adotadas pelo garimpo, hámodificações nas condições fisíco-químicas da água, tornando-a barrenta (mu-dança de coloração e qualidade), com alta concentração de organismos decom-postos ou em decomposição, refletindo diretamente na saúde das comunida-des que utilizam a água do Jandiatuba não somente como meio de trabalho,como também para consumo – culinária, banho, recreação.

Segundo Caheté (2008), uma das características mais significativaspara a saúde dos ecossistemas aquáticos que sofrem modificação com estas“reviradas” das dragas em busca de ouro é a luminosidade abaixo da superfícieda água, ou seja, uma considerável limitação da incidência de raios solaresessencial para alguns organismos aquáticos, sobretudo aos que compõem asbases da cadeia alimentar. Além destas alterações biológicas que impactamtoda cadeia, há relatos da percepção de poluição das águas causada por derra-mamentos de óleo, detergentes, soda cáustica e outros químicos, resíduos sóli-dos e até mesmo eletrônicos. Estas são visíveis na água por meio de manchastranslúcidas e blocos de espuma branca que boiam na superfície da água. Paraalém destas, há as poluições não perceptíveis a olho nu, como é o caso domercúrio e outros possíveis metais utilizados.

As narrativas dos Kambeba participantes da pesquisa evidenciam estesefeitos dramaticamente sobretudo nas águas, afetando as famílias Kambebaem sua saúde.

Pelo o que a gente via descendo no rio, a gente não tinhacondições de consumir a água. Tinha óleo diesel, lixo [ficapensativo]. No momento, a água já subiu muito [de nível]né, mas eu fiz uma colheita de lixo, televisão e tudo o quevão jogando, e tirei fotos disso. A gente não conseguia con-sumir água e tinha que pegar do igarapé, tomar banho eralá. Agora esses dias, depois que saíram que a água mudou,mudou pra cor quase dela. Ainda não tá bem na cor que ela

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é, porque quando chega nesse período [de cheia] a águafica mais clara, mais limpinha. Mas ainda tá meio barrentapor causa das outras dragas que ainda tão aí. (L. A. R.,pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

Ela [água do rio] fica muito cheia de barro, tira assim navasilha e fica um monte de barro embaixo. As dragas queestão trabalhando ainda lá pra cima que tão fazendo isso,porque antes delas a água era bemmm [enfático] limpinha.Mas até janeiro desse ano [2016] a gente tava tendo que irlá pro igarapé pegar água porque aqui tava muito sujo. Agente sentiu muita dor de barriga, e acho que é por isso daíporque depois que nós começemo a consumir mais a águado igarapé, parou mais. As crianças tiveram muita diarreia,sempre sentiam dor de barriga. (B. A. M., agricultorKambeba, pesquisa de campo, 2016)

Ninguém tomava banho e nem tomava água daqui da bei-ra. Tinha que ir lá pra dentro no igarapé. Quando a gentetomava banho aqui, deus o livre, de noite ninguém conse-guia dormir com a coceira.Era doença de tudo jeito. (B. L.C., agricultora Kambeba, pesquisa de campo, 2016)Ninguém pode nem beber água nem tomar banho. Umhorror. Aqui eu queria que você visse quando tava seco,tinha surubim tudo cheio de ferida, de tanto óleo e mercúriona água, os peixes ficaram tudo ferido. Até soda cáusticajogam. Ixi, [mudou] muita coisa [...]. Com os peixes, com agente [...]. Tomava banho, saía da água era o mesmo que tábatendo urtiga, ardendo e coçando. Coçava que Deus medefenda. Até hoje tenho marca das coceiras na pele. Essaespuma toda é a draga que tá comendo. Tal de arroto queeles chamam, porque ela tá comendo. A água mas ficou queparecia leite! Branca, branca, branca. E ainda não tá muitoboa não [mesmo estando na cheia]. Tá mais limpa, mas nãotá igual era antes. (L. E. A., pescador Kambeba, pesquisade campo, 2016)

Os relatos sublinham os efeitos também de maneira dramática sobreos peixes, provocando profundas alterações na realização do processo de traba-lho cotidiano dos Kambeba.

O garimpo o que ele fez muito foi espantar os peixes do rioné, porque derramam barro, faz aquela sujeira na água, aí a

estão trabalhando ainda lá pra cima que tão fazendo isso,porque antes delas a água era bemmm [enfático] limpinha. Mas até janeiro desse ano [2016] a gente tava tendo que ir lá pro igarapé pegar água porque aqui tava muito sujo. A gente sentiu muita dor de barriga, e acho que é por isso daí porque depois que nós começemo a consumir mais a água do igarapé, parou mais. As crianças tiveram muita diarreia, sempre sentiam dor de barriga. (B. A. M., agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

Ninguém tomava banho e nem tomava água daqui da beira. Tinha que ir lá pra dentro no igarapé. Quando a gente tomava banho aqui, deus o livre, de noite ninguém conseguia dormir com a coceira.Era doença de tudo jeito. (B. L. C., agricultora Kambeba, pesquisa de campo, 2016)Ninguém pode nem beber água nem tomar banho. Um horror. Aqui eu queria que você visse quando tava seco, tinha surubim tudo cheio de ferida, de tanto óleo e mercúrio na água, os peixes ficaram tudo ferido. Até soda cáustica jogam. Ixi, [mudou] muita coisa [...]. Com os peixes, com a gente [...]. Tomava banho, saía da água era o mesmo que tá batendo urtiga, ardendo e coçando. Coçava que Deus me defenda. Até hoje tenho marca das coceiras na pele. Essa espuma toda é a draga que tá comendo. Tal de arroto que eles chamam, porque ela tá comendo. A água mas ficou que parecia leite! Branca, branca, branca. E ainda não tá muito boa não [mesmo estando na cheia]. Tá mais limpa, mas não tá igual era antes. (L. E. A., pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

Os relatos sublinham os efeitos também de maneira dramática sobre os peixes, provocando profundas alterações na realização do processo de trabalho cotidiano dos Kambeba.

O garimpo o que ele fez muito foi espantar os peixes do rio né, porque derramam barro, faz aquela sujeira na água, aí a gente percebeu que os bichos afugentaram. Mudou muito nosso trabalho, a água ficou branca, suja! Só espuma baixando aí no rio [...]. Do barro e de produto químico. E tem produto químico sim porque peguei um peixe que tava cheio de defeito, uma pirarara grande com uma banda43 toda roída dela, acredito que seja uma

43. Diz-se de uma das metades do peixe a partir de corte longitudinal; do verbo regional “bandar”, dividir ao meio.

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gente percebeu que os bichos afugentaram. Mudou muitonosso trabalho, a água ficou branca, suja! Só espuma bai-xando aí no rio [...]. Do barro e de produto químico. E temproduto químico sim porque peguei um peixe que tava cheiode defeito, uma pirarara grande com uma banda43 toda ro-ída dela, acredito que seja uma coisa bem tóxica. Deu pro-blema de estômago em nós, um tempo deu muita dor debarriga que os meninos rolavam aqui de dor e foi precisolevar tudo pra fora [cidade]. (B. R. A., agricultor Kambeba,pesquisa de campo, 2016)

Sintetizando os efeitos maléficos do garimpo e afirmando a demandapela paralisação e retirada das dragas do rio Jandiatuba, o relato a seguir écontundente ao expressar a reprovação desta atividade.

Pra mim acho que isso que eles tão fazendo é errado por-que a gente não pode fazer nada com a água do rio. Querdizer, poder, pode sim, mas tem que tirar ela numas vasilhase deixar muitas horas aí pra poder o barro assentar umpouco no fundo e usar a água de cima. No meu pensamen-to, acho que deveriam tirar [as dragas] né, parar com asatividades (B. A. M., agricultor Kambeba, pesquisa de cam-po, 2016).

Para além das mudanças e impactos negativos à água e à saúde dosKambeba do Jandiatuba, chama atenção a fala que expressa a mudança no tra-balho cotidiano das famílias, denotando os efeitos sociais desta lógica exploratória.Todas as sociabilidades e reprodução simbólica da vida Kambeba se dá em rela-ção direta com o rio, este modificado, arrastado, revirado e arrasado.

O fato de terem o conhecimento de quão nociva é esta atividade oslevam a rir, ironicamente, diante das justificativas e explicações dos garimpei-ros afirmando que não há maus tratos ao rio. O riso denuncia uma parcela deimpotência quanto ao que podem fazer diante de tal problemática:

Nós não vamos enxotar eles, nem não, porque nós não so-mos justiça né. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa decampo, 2016)

coisa bem tóxica. Deu problema de estômago em nós, um tempo deu muita dor de barriga que os meninos rolavam aqui de dor e foi preciso levar tudo pra fora [cidade]. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

Sintetizando os efeitos maléficos do garimpo e afirmando a demanda pela paralisação e retirada das dragas do rio Jandiatuba, o relato a seguir é contundente ao expressar a reprovação desta atividade.

Pra mim acho que isso que eles tão fazendo é errado porque a gente não pode fazer nada com a água do rio. Quer dizer, poder, pode sim, mas tem que tirar ela numas vasilhas e deixar muitas horas aí pra poder o barro assentar um pouco no fundo e usar a água de cima. No meu pensamento, acho que deveriam tirar [as dragas] né, parar com as atividades (B. A. M., agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

Para além das mudanças e impactos negativos à água e à saúde dos Kambeba do Jandiatuba, chama atenção a fala que expressa a mudança no trabalho cotidiano das famílias, denotando os efeitos sociais desta lógica exploratória. Todas as sociabilidades e reprodução simbólica da vida Kambeba se dá em relação direta com o rio, este modificado, arrastado, revirado e arrasado.

O fato de terem o conhecimento de quão nociva é esta atividade os levam a rir, ironicamente, diante das justificativas e explicações dos garimpeiros afirmando que não há maus tratos ao rio. O riso denuncia uma parcela de impotência quanto ao que podem fazer diante de tal problemática:

A gente ia reclamar que era bom eles saírem daqui, e aí disseram pra mim que eles não tavam maltratando o rio, porque eles não tavam trabalhando no meio do rio, tavam trabalhando lá pra dentro [risos]... Mas a água vem de lá pra cá né [risos], é a mesma coisa! Nós não vamos enxotar eles, nem não, porque nós não somos justiça né. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

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Tem-se aqui a percepção dos Kambeba do limite de suas mobiliza-ções que, em outras palavras, significa o impedimento de fazerem justiça comas próprias mãos. Mas também percebem o limite da presença do Estado,figurado como ausente neste caso. Trata-se de uma percepção refinada de jus-tiça que distingue as formas de justiça privada daquela executada pela ação doEstado.

A permanência das dragas e a continuidade das operações do garimpoafetam ainda as atividades de caça e de pesca, de acordo com os relatos dosindígenas. Para Caheté (2008), configuram-se como impacto ambiental osefeitos na agricultura e na fauna local, além da poluição sonora que contribuipara afugentar os animais. Coletei relatos que demonstram como são afetadosos quantitativos e a reprodução das espécies da fauna local citadas pelosKambeba nos excertos a seguir.

Ixi, peixe diminuiu muito. Tambaqui não tem mais! Aquidentro do rio não tem mais não. O peixe que você encontraaqui é aqueles filhinho de pirarara, surubim [...]. O quemais tem é surubim. Outro peixe não tem mais nada. Nãotem mais porque o pessoal invadiram. (B. R. A., agricultorKambeba, pesquisa de campo, 2016).

O meio ambiente era assim mais saudável do que agora.Porque na época não tinha tanta degradação, exploração demadeira, caça [...]. Era mais lá pra cima que o pessoal iam, lápro lado do Igarapé Preto, mas depois de passado um tem-po, o pessoal já foram entrando, invadindo a área, o municí-pio crescendo também né [...]. Aí a caça foi ficando emextinção. Tinha muita queixada44, era todo santo dia, tinhaqueixada que varava aqui, ali pra trás, e a gente pegava,assim, pra alimento né. E aí eu não tinha uma formaçãoassim né, de impedir a entrada, às vezes ficava assim que-rendo ir, ficava suspeito de chegar lá com o predador, falaralguma coisa e ele me agredir né, então eu ficava nessadúvida [...]. Não sabia se reagia ou se deixava acontecer. Eaí foi ficando em extinção da caça. E pescado também.Pirarucu você entrava nos lagos e você via certinho, tinha

44 Espécie de porco-do-mato.

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bastante. Consegui perceber a diferença dessa mudançade 94 pra cá. A gente sentiu o impacto mesmo nos quelônios.Tinha bastante aqui nessa área e praticamente na áreatoda, diminuiu muito, não sei por motivo de que [...]. Euacho que assim por motivo de muito mercúrio, óleo diesel,tudo isso que eles jogavam na água, e por esse motivo quehoje a gente vê esse impacto. Diminuiu também porquedentro desse trabalho do garimpo eles caçam né, pegam opeixe, tudo isso eles vão pegando. (L. A. R., pescadorKambeba, pesquisa de campo, 2016)

Os impactos afetam ainda a resistência de pequenos animais de cria-ção, como ilustra o relato abaixo. Ao ser questionado sobre estas perdas deanimais e se haviam relatado a algum órgão do município para que fossemressarcidos, a resposta foi negativa e traz indicativos de que há, em maior oumenor grau, envolvimento governamental na continuidade de operação dasdragas.

Animal morria. Porco, galinha, pato, bebia água e quandosubia só fazia subir e morria. Agora tá um pouco melhor,agora tá mais bonito [na cheia]. Mas perdi bem uns 50porcos. (L. E. A., pescador Kambeba, pesquisa de campo,2016).

Xii, nunca [fomos indenizados]. Fui lá com o prefeito, faleicom o vice [que disse] “ah rapaz, ninguém dá jeito [nasituação da presença das dragas], isso aí eu não posso fazernada, porque sou vice e é ordem do governo”. (L. E. A.,pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

O desinteresse interessado do poder público local como catalisador

A recorrência de relatos quanto ao desinteresse do poder público localem situações de denúncia, tanto de extrações ilegais de madeira, quanto deocorrências ligadas à operação das dragas no rio Jandiatuba, deixa evidente aestratégia de não reconhecer a existência destas comunidades indígenas frenteaos interesses econômicos. Elas são vistas como obstáculos à visão dos órgãos egestores municipais. A “ausência” do Estado em sua esfera local se dá em pelo

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menos dois momentos: tanto quando os Kambeba vão à sede do municípiorealizar alguma denúncia a respeito da extração ilegal de madeira ou do garim-po – e são desacreditados – como quando há a negação dos órgãos competen-tes de realizar possíveis idas à campo para averiguar as informações recebidas.

Três lideranças que participaram da pesquisa em dias e locais distintosfazem relatos parecidos quanto às duas situações de “ausência” do Estadosupracitada: a não aceitação de denúncias na sede e a não verificação in locu,como foi dito. Uma delas ainda apresenta o posicionamento negativista acercado ato de se realizar a denúncia, tanto é que, sob a ótica deste interlocutor,ninguém mais denuncia nada aos órgãos competentes da sede do municípiopor ser em vão, visto a realidade de que, segundo ele, com relação à extração demadeira, há inclusive demanda da própria prefeitura.

Aí fui lá com o AA [nome fictício do vice-prefeito à época],mas não tava. Fui atrás do prefeito, andei o dia todinho, masnão encontrei, parecia que ele se escondia. Até que conse-gui falar com o AA [e ele falou] “ah porque eu tô fora daí,não sei o que”. [E eu disse] “mas você tem algum documen-to [de licença pro garimpo]?, ele [falou] “teeeem” [de formaenfática]. Pois é [eu disse], vê o que tu faz porque assimnão tá dando certo não. (L. E. A., pescador Kambeba, pes-quisa de campo, 2016).Nada, nada, nada [de intervenção do poder público]. Eles[gestores municipais] não falam sobre isso não. Quando agente fala, algum que fala, eles acham ruim, eles não que-rem que acabe. Ninguém não reclama porque vem de lá. Àsvezes é até a própria prefeitura que manda eles tirarem[madeira] aqui [risos]. A gente vive esperando todo tempoque apareça uma lei pra proibir, pra ter, como que a gentediz? Justiça né. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa decampo, 2016).Não, nunca vieram não [verificar as denúncias]. O que euqueria mermo é que viesse alguma coisa que pudesse aju-dar a gente pra gente impedir mais a extração de madeira.De caça também, que ainda [os invasores] vendem a caçaaté mesmo pra gente consumir. (B. A. M., agricultorKambeba, pesquisa de campo, 2016).[a falta de atenção do poder público local] É [um proble-ma] e muito! Nunca vieram aqui, nem em período de elei-ção. Pra votar, a gente é que vai [pra cidade], na boa vonta-

Aí fui lá com o AA [nome fictício do vice-prefeito à época], mas não tava. Fui atrás do prefeito, andei o dia todinho, mas não encontrei, parecia que ele se escondia. Até que consegui falar com o AA [e ele falou] “ah porque eu tô fora daí, não sei o que”. [E eu disse] “mas você tem algum documento [de licença pro garimpo]?, ele [falou] “teeeem” [de forma enfática]. Pois é [eu disse], vê o que tu faz porque assim não tá dando certo não. (L. E. A., pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

Nada, nada, nada [de intervenção do poder público]. Eles [gestores municipais] não falam sobre isso não. Quando a gente fala, algum que fala, eles acham ruim, eles não querem que acabe. Ninguém não reclama porque vem de lá. Às vezes é até a própria prefeitura que manda eles tirarem [madeira] aqui [risos]. A gente vive esperando todo tempo que apareça uma lei pra proibir, pra ter, como que a gente diz? Justiça né. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

Não, nunca vieram não [verificar as denúncias]. O que eu queria mermo é que viesse alguma coisa que pudesse ajudar a gente pra gente impedir mais a extração de madeira. De caça também, que ainda [os invasores] vendem a caça até mesmo pra gente consumir. (B. A. M., agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

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de, vai pra lá no dia que é pra votar. (L. E. A., pescadorKambeba, pesquisa de campo, 2016).

Um dos reflexos práticos desta ausência é a inexistência de consultapública junto às comunidades Kambeba do Jandiatuba por parte dos empre-endimentos econômicos que exploram seus bens naturais. É recorrente nasfalas dos interlocutores que, em nenhuma temporada de exploração do ourono Jandiatuba, houve qualquer iniciativa de consulta às comunidades, tampoucoinformações prévias, prevalecendo uma estratégia de não reconhecimento dapresença das comunidades Kambeba.

Não, nós não tivemos informação dos órgãos [públicos] não.Tivemos informação de uns colegas pescador que sempretão por aqui, e eles já que trouxeram essa informação. Che-garam aqui comigo e disseram ‘tu sabia que vai entrar dragaaqui pra dentro?’, eu disse ‘não [silêncio]’, ‘diz que tá vindoumas dragas aí, ninguém sabe quantas dragas que tá vindoaí pra entrar pra cá’. Aí a gente ficou aguardando né, vamover. Aí que quando foi um belo dia a gente começou ouvirzuada [barulho de motor] né, zuada, zuada, zuada, zuada.Aí começou a passar. Primeiro entrou duas, daí veio maisduas, aí ficou quatro. E depois mais atrás veio mais duas, aíficou seis, e por último veio mais uma, aí ficou sete dragasque tinha aqui. Duas era de um tal de J [nome fictício] eoutras duas era de um senhor que chamavam ele de M[nome fictício]. Inclusive o gerente que trabalhava na dragadisse que esse senhor M [nome fictício] já tinha trabalhadona Polícia Federal, então quando vinha a fiscalização ouquando a PF pedia um valor em dinheiro [em multa], elesnão tinham pena de pagar. Ele e o J [nome fictício] eram osdois garimpeiros mais forte que tinha aqui. A gente rece-beu [informação] que agora, nessa segunda vez que elesentraram, o prefeito tinha assinado o termo pra eles entra-rem. E nenhuma comunidade que pertence a área doJandiatuba tiveram acesso de informação. (L. A. R., pesca-dor Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

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de, vai pra lá no dia que é pra votar. (L. E. A., pescadorKambeba, pesquisa de campo, 2016).

Um dos reflexos práticos desta ausência é a inexistência de consultapública junto às comunidades Kambeba do Jandiatuba por parte dos empre-endimentos econômicos que exploram seus bens naturais. É recorrente nasfalas dos interlocutores que, em nenhuma temporada de exploração do ourono Jandiatuba, houve qualquer iniciativa de consulta às comunidades, tampoucoinformações prévias, prevalecendo uma estratégia de não reconhecimento dapresença das comunidades Kambeba.

Não, nós não tivemos informação dos órgãos [públicos] não.Tivemos informação de uns colegas pescador que sempretão por aqui, e eles já que trouxeram essa informação. Che-garam aqui comigo e disseram ‘tu sabia que vai entrar dragaaqui pra dentro?’, eu disse ‘não [silêncio]’, ‘diz que tá vindoumas dragas aí, ninguém sabe quantas dragas que tá vindoaí pra entrar pra cá’. Aí a gente ficou aguardando né, vamover. Aí que quando foi um belo dia a gente começou ouvirzuada [barulho de motor] né, zuada, zuada, zuada, zuada.Aí começou a passar. Primeiro entrou duas, daí veio maisduas, aí ficou quatro. E depois mais atrás veio mais duas, aíficou seis, e por último veio mais uma, aí ficou sete dragasque tinha aqui. Duas era de um tal de J [nome fictício] eoutras duas era de um senhor que chamavam ele de M[nome fictício]. Inclusive o gerente que trabalhava na dragadisse que esse senhor M [nome fictício] já tinha trabalhadona Polícia Federal, então quando vinha a fiscalização ouquando a PF pedia um valor em dinheiro [em multa], elesnão tinham pena de pagar. Ele e o J [nome fictício] eram osdois garimpeiros mais forte que tinha aqui. A gente rece-beu [informação] que agora, nessa segunda vez que elesentraram, o prefeito tinha assinado o termo pra eles entra-rem. E nenhuma comunidade que pertence a área doJandiatuba tiveram acesso de informação. (L. A. R., pesca-dor Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

[a falta de atenção do poder público local] É [um problema] e muito! Nunca vieram aqui, nem em período de eleição. Pra votar, a gente é que vai [pra cidade], na boa vontade, vai pra lá no dia que é pra votar. (L. E. A., pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

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Ouro, conflitos e arena política

O ouro é historicamente conhecido e reconhecido como importantemeio de troca de alto valor e confiabilidade, desde sociedades que faziam usode sua função monetária, em formato de moedas ou pepitas, até a históriarecente que passou a utilizá-lo como padrão de moeda universal, em que asnações e seus bancos nacionais deveriam expedir moeda em uma proporçãofixa (regime cambial fixo) com relação ao quantitativo de sua reserva de ouro,ou seja, tornando o mineral um importante lastro para a economia monetáriamundial. Este sistema foi conhecido como padrão-ouro e foi substituído apósa Primeira Guerra Mundial por padrões que estabeleceram um regime cambi-al flutuante, e, posteriormente, com o advento de Bretton Woods, em 1944,garantiu o estabelecimento do dólar como padrão mundial das operações mo-netárias e financeiras.

A confiabilidade do uso do ouro como valor de troca nas grandes eco-nomias mundiais, de forma atemporal, também lhe confere um alto grau deliquidez, ou seja, há muita facilidade em converter este ativo em dinheiro, ousimplesmente sua venda é realizada de maneira rápida caso o operador precisetransformá-lo em dinheiro de imediato.

Tendo tudo isto sendo dito aos olhos da lógica economicista e de ex-ploração e valoração da natureza, os projetos desenvolvimentistas que se apre-sentam hoje não diferem desta racionalidade de exploração de commoditiespara salvar as balanças comerciais que, sob outra roupagem supostamentemoderna, nada mais é que continuar tratando as potencialidades dos bensnaturais amazônicos com subestima e vislumbrar uma economia agrária-extrativista-exportadora como modernizante da região. Comparando as épo-cas da história econômica brasileira com a presente, tal “modernização” pareceseguir a rotina de Sísifo, uma vez que acredita que está avançando, quando naverdade qualquer recessão mais forte da economia mundial, a pedra torna arolar morro abaixo, fazendo com que Sísifo tenha sempre o retrabalho deseguir com a mesma lógica de trabalho.

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Os projetos de governos atuais para flexibilizar a legislação de licenci-amento ambiental, facilitando a exploração mineral e garimpeira, são inúme-ros nas esferas nacional e estadual45. Aqui, entendemos que é grande a dife-rença entre mineração e garimpagem. Enquanto a primeira se dá em carátermais industrial e de organização complexa, envolvendo inclusive capital es-trangeiro, a segunda se dá no âmbito mais informal do setor, muitas vezesutilizando métodos artesanais de exploração. Segundo Caheté (2008), a ativi-dade de garimpo é caracterizada, sobretudo, pela ênfase no trabalho individualou em equipes diminutas, o uso predominante de ferramentas manuais ousemimecanizadas que fazem uso de combustíveis fósseis, e pelo uso do mercú-rio como método de amalgamento do ouro.

Além desta intenção clara de licenciamento a qualquer custo, à reveliados órgãos federais de fiscalização e licenciamento ambiental, de representaçãodos povos e comunidades tradicionais e de defesa ao patrimônio histórico,atualmente se encontra em debate no âmbito do Conselho Estadual de MeioAmbiente do Amazonas – CEMAAM46 a revisão de artigos das resoluçõesproduzidas pelo próprio no que se refere à licença das lavras garimpeiras emoperação em outro importante rio do estado, o rio Madeira, localizado naregião sul e sudeste do Amazonas.

Na 42ª reunião ordinária do Conselho, realizada no dia 17 de novem-bro de 2017 no auditório da Federação das Indústrias do Estado do Amazo-nas – FIEAM, pautou o requerimento feito pela da Cooperativa dos Garim-peiros da Amazônia – COOGAM solicitando a suspensão da exigênciaambiental estabelecida pelo Parágrafo único do Art. 12 da Resolução Nº 011/2012 e a renovação da licença de operação da cooperativa, que foi suspensa

45 A "recodificação" de códigos e legislações de grandes temas de interesse exploratório é uma onda que, nos últimosdez anos, tem abrangido não somente o código de mineração, mas também o código florestal, de regularizaçãofundiária, de recursos hídricos e quanto a demarcação de terras indígenas e quilombolas.

46 O CEMAAM é o órgão de deliberação coletiva e normatização superior da Política de Meio Ambiente do Estado doAmazonas. Foi criado pela Lei Estadual nº. 2985 de 18 de outubro de 2005. Sua função é propor diretrizes paraelaboração, monitoramento, avaliação e implementação de planos, programas, projetos e ações para o meio ambiente,visando à conservação e preservação dos bens e ecossistemas naturais do Estado. Como garantia de representaçãoparitária, o Conselho é composto por representantes de secretarias e entidades da administração pública, bem comode órgãos e entidades da administração privada e da sociedade civil organizada.

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pelo não cumprimento desta exigência, além de outras duas detectadas peloIPAAM. Consta no parágrafo único que

O resto ou rejeito do material concentrado, após azougado(amalgamado) com a formação da mistura ouro-mercúrio,deve ser acondicionado em um recipiente específico. Omaterial deverá ser transportado até a sede municipal, ondeserá depositado em um local apropriado, previamente au-torizado pelo IPAAM. (Art. 12, Resolução CEMAAM Nº011/2012)

A pauta foi iniciada após uma contextualização da situação feita peloentão secretário executivo da Secretaria de Estado de Meio Ambiente – SEMA,que presidiu a reunião, e denominou de “imbróglio” a situação que impediu arenovação das licenças da Cooperativa em questão, afirmando que há poucotempo tinha ocorrido uma rodada de negociações com as cooperativas de ga-rimpeiros atuantes do Madeira para que a licença seja liberada novamente e osgarimpeiros possam trabalhar na legalidade. Fica um tanto evidente o interes-se do Estado para que haja esta regularização, a despeito da existência de qual-quer laudo técnico acerca da maneira como as atividades são realizadas, e delaudo de caracterização química que analise os efluentes gerados pela explora-ção e que estabeleça limites no uso do mercúrio. As duas medidas prescindemde fiscalização in locu, o que é algo dificultoso para o órgão ambiental doestado uma vez que sua presença não é capilarizada pelas regiões do interior doAmazonas.

A ausência de laudos por parte do Estado e das cooperativas foi algoapontado pelo químico e analista ambiental do IPAAM, chefe da gerência derecursos hídricos e minerais do órgão, que compôs a mesa e teceu considera-ções técnicas à pauta. Ao explicitar que as políticas públicas ambientais sãocompostas por instrumentos econômicos e instrumentos regulatórios, estessendo licenças, zoneamentos e padrões estabelecidos, o analista ambiental atevesua fala a estes padrões, que são estabelecidos por decisões técnico-científicascom base na referida legislação que determina limites gerais. Um destes pa-drões é, por exemplo, o lançamento de efluentes nas águas jurisdicionais por

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atividades econômicas com base na exploração de recursos naturais das mes-mas – tal como o caso do garimpo fluvial tanto do Madeira quanto doJandiatuba.

Neste sentido, o fato de não haver nenhum laudo de caracterizaçãoquímica que dê conhecimento aos processos as substâncias contaminantes, emsuas palavras, “foge do escopo de parâmetros técnico-científicos definidos peloórgão”. E finaliza: “isto é necessário para haver proibição da atividade e do usodo mercúrio, do contrário, não há respaldo”.

A pesquisa coletou impressões de duas pessoas que estiveram presen-tes na reunião: um conselheiro efetivo do CEMAAM, representante de umórgão do Estado, e um participante da reunião como ouvinte, ambientalistapesquisador de uma organização não governamental. A leitura que ambos fi-zeram quanto ao discutido e aos encaminhamentos foram convergentes: “con-fusos” e “capciosos”. A síntese da reunião feita pelo conselheiro efetivo entre-vistado foi de que a mesa propôs uma votação para a suspensão do Art.12 emquestão, no sentido de tornar novamente legais as atividades da cooperativa.Contudo, ao longo do processo foi sugerido pela própria mesa que a votaçãoseria para aprovação da ata desta mesma reunião. A confusão foi feita peloscondutores da reunião e estabelecida entre os conselheiros, que deixaram decompreender o sentido da votação e seu encaminhamento. O resultado distofoi uma ampla margem de abstenções entre os conselheiros votantes.

Já para o ouvinte da sociedade civil, seu entendimento foi de que avotação estava sendo proposta para a reunião de um grupo de trabalho, paraatuar em paralelo com o CEMAAM na construção de uma nova redação parao referido artigo conflitante. Ou seja, houve três interpretações diferentes so-bre o que estava sendo definido como encaminhamento para votação do Con-selho. Ambos acreditam que esta possa ter sido uma manobra estratégica, po-dendo se configurar como de má-fé, por parte da presidência do Conselho quepretende liberar novamente a licença da Cooperativa sob a alcunha de que foidecisão majoritária do CEMAAM.

Para o conselheiro ouvido, o trâmite correto seria realizar a análise quí-mica para estabelecer parâmetros de proibição e uso de substâncias, e só então,

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com base nestes, é que haveria condições do Art. 12 ser revisto da forma comoestão propondo. A partir disto, estabelecer votação em reunião para aprovaçãoou reprovação da nova redação do artigo. Para o pesquisador ambientalista, odebate deve ir além considerando toda calha do Madeira a partir de um estudocompleto da mesma, desde Rondônia e os impactos causados naquela porçãodo rio pelas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, passando pela porção refe-rente ao município de Humaitá, até afluir no rio Amazonas. Segundo ele, ofato de o Zoneamento Econômico Ecológico – ZEE não estar concluído im-possibilita a tomada de decisões e medidas com base na realidade ecológica esocioeconômica daquela bacia.

Com relação aos argumentos que foram colocados, a genteentende o seguinte: em primeiro lugar, a licença ela foi dadacomo inválida. Não há como retomar uma licença inválida,validar ela novamente depois que um ato administrativodisser que ela não vale mais, ou seja, o processo teria que serreiniciado, desde o início. Teria que ser apresentado umestudo de impacto ambiental, tem que ser feito audiênciapública, tem que ser feito termo de referência, tem que serreiniciado todo o licenciamento ambiental. A retirada deum item da resolução pra legalizar é algo que pro Ibama éinconcebível [entonação enfática]. É sério, a gente tá as-sustado com o que foi colocado. Se vocês vão retirar o itemda resolução porque não existe estudo técnico pra saberqual efeito que aquele produto causa nas pessoas e no meioambiente, pelo princípio da precaução, que é um princípiodo direito ambiental, você tem que manter a proibição. (H.L., chefe da divisão técnico-ambiental do Ibama-AM, 42ªreunião ordinária do CEMAAM, em 17/11/17).

Mesmo com o cenário de abstenções diante da confusão e não enten-dimento entre os presentes na reunião, o ato do governo do estado foi o de, emmenos de um mês depois da reunião do Conselho, em 12 de dezembro de2017, expedir a licença e autorização da lavra garimpeira para a cooperativa norio Madeira. O documento foi entregue – e comemorado – por meio da visitaque o governador fez ao município de Humaitá em evento organizado pelaprefeitura municipal.

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Este movimento de flexibilização das regras de licenciamento e garim-pagem por parte do governo contradiz os compromissos assumidos pelo pró-prio no âmbito da 23ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Cli-mática – COP23, realizada na Alemanha na mesma semana em que ocorreu areunião do CEMAAM, justificando assim a ausência do secretário da pastana mesa da presidência do Conselho, uma vez que ele esteve presente no even-to das Nações Unidas.

Se a preocupação de organismos internacionais era com relação à “bai-xa governança ambiental” constatada com referência ao estado do Amazonasnos últimos painéis de discussão sobre o tema, o setor supostamente se tornoumais confiante a partir da apresentação Amazonas for the planet programfeita pelo governo demonstrando compromissos para a implementação de umanova gestão ambiental. Para o secretário, “autoridades renomadas em meioambiente viram o esforço do Governo do Amazonas como estratégia em po-tencial de novos rumos para gestão ambiental [...]. E isso recuperou a confian-ça em nosso Estado”47. Contrapondo os dois acontecimentos e os rumos quecada um propõe, em diferentes escalas, tornam-se visíveis as contradições doEstado quanto a compromissos estabelecidos e práticas efetivamente adotadasna área socioambiental.

Embora os casos dos garimpos fluviais do rio Jandiatuba e do rio Ma-deira sejam diferentes em diversos aspectos, considera-se relevante a proble-matização destas atuais discussões de interesse do Estado na liberação da lavragarimpeira, flexibilizando a legislação que delimita prerrogativas básicas paraeste modelo de exploração mineral agressivo social e ambientalmente. Estaflexibilização de normas, conceitos e valores é componente da atual conjuntu-ra de atualização de critérios de classificação territorial, étnica e ambiental, talcomo aponta Almeida (2012), em que estes recentes critérios

Reeditam a prevalência do quadro natural, privilegiambiomas e ecossistemas como delimitadores de “regiões”,

47 Entrevista concedida à sala de imprensa do governo do Estado. Disponível em http://www.amazonas.am.gov.br/2017/11/amazonas-e-destaque-no-encerramento-da-cop23-na-alemanha/

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flexibilizam normas jurídicas que asseguram os direitosterritoriais de povos e comunidades tradicionais e objetivamatender às demandas progressivas de um crescimento eco-nômico baseado principalmente em commodities mineraise agrícolas (ALMEIDA, 2012).

As diferenças entre os dois casos vão desde o licenciamento expedidopelo Estado – e que, no caso do Madeira, teve sua validade suspensa posterior-mente –, até a natureza de organização dos agentes garimpeiros, em coopera-tivas e representação de classe no caso do Madeira, e de maneira privada emconluio com o poder público municipal no caso do Jandiatuba. As similarida-des de ambos os casos se centram, sobretudo, em serem explorações artesanais,com baixas ou ausentes normas de segurança no manuseio e descarte corretodos metais pesados utilizados no processo de amalgamento do ouro, e ambasexecutadas nos leitos dos referidos rios, contaminando em maior ou menorgrau a vida aquática destes e da população que tem sua reprodução social,material e simbólica intrinsecamente ligada aos mesmos. Malm et al (1997)estima que, nos últimos dez anos de atividade garimpeira no rio Madeira,foram despejadas entre duzentas e trezentas toneladas de mercúrio no ambi-ente fluvial.

“Ninguém pode dormir sossegado”: Conflitos e violência no rio Jandiatuba

Para uma compreensão da realidade conflituosa no rio Jandiatuba, re-alizei pesquisa de campo com entrevistas feitas com os Kambeba das comuni-dades do rio buscando uma descrição das realidades empiricamente observa-das. A forma de exposição se dá de maneira a relacionar os excertos que evi-denciam, em maior ou menor grau, as situações de conflitos no Jandiatuba.

Na microrregião do Alto Solimões, que abrange a tríplice fronteiraentre Brasil, Colômbia e Peru, as tensões sociais têm sido ampliadas entre ospovos e comunidades tradicionais e a intensificação de ações ilegais de grupossociais organizados, empreendimentos privados e públicos e empresários locaisem terras e águas tradicionalmente ocupadas por povos indígenas e ribeirinhos– algumas delas localizadas em terras indígenas legalmente demarcadas. O

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resultado destes novos conflitos é a reconfiguração das dinâmicas de relaçõessociais e econômicas estabelecidas com relação ao uso dos bens naturais. Temreconfigurado, inclusive, a dinâmica natural e a paisagem das localidades queos predadores atuam.

De acordo com relatos, as situações de conflitos envolvendo a práticado garimpo no rio Jandiatuba perduram há mais de quinze anos. A partir de2013, o movimento Kambeba por meio da Organização dos Kambeba doAlto Solimões - OKAS, começou a protocolar as denúncias aos órgãos compe-tentes de justiça e defesa de direitos, sobretudo Funai e MPF localizados emTabatinga. Foram cartas e abaixo-assinados relatando a exploração do garim-po, o incômodo das famílias quanto as ameaças e medos que sofriam, e asmodificações na qualidade da água do rio e dos recursos pesqueiros.

Tá com uns cinco anos que [o garimpo] começou [correçãoda companheira “não, tá com oito anos que começou por-que o prefeito já vai inteirar oito anos.”]. É, oito anos que ogarimpo segue aqui dentro. E ainda meteram mais garimpopra dentro. Só parou agora esses dias porque eu fui lá como vice-prefeito e mostrei esse documento aqui [mostrou praentrevistadora], da Pastoral da Terra, e disse pra ele P [nomefictício], é o seguinte P [nome fictício], ou tomam providên-cia, ou vai ter bala lá dentro’. [...] A chegada é que foi operigo. Era todo dia eu abordando eles [garimpeiros] aqui.Chegavam na marra, arriava a draga e porrada comia aqui,escangalhando com tudo. (L. E. A., pescador Kambeba,pesquisa de campo, 2016).

Sobre o período anterior à ação destes garimpeiros que exploram oouro no rio desde 2008, coletei relatos sobre outros garimpeiros que adentraramao rio para esta mesma prática entre 1999 e 2000. Estes compunham umgrupo menor de garimpeiros, com um número inferior de balsas e dragas tra-balhando, e, de acordo com relatos dos Kambeba, eram menos violentos comas comunidades indígenas, no sentido de que respeitavam as reivindicaçõesdos Kambeba que os abordavam. Quando das idas da Polícia Federal paradesarticulação e desocupação das dragas no rio, os garimpeiros cumpriam or-dem e deixavam a área.

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O garimpo e os conflitos eu vim sentir em 99, quando en-traram a primeira equipe de garimpeiro. E meu pai foi de-nunciar na cidade e logo veio a polícia. Eles não tinhamlicença e estavam em 22 dragas nessa época. Trabalhavamlá pro lado da boca do igarapé Preto. Nessa época, queentrou essas 22 dragas, aconteceu muito conflito entre eles,matavam muito! Entre os próprios garimpeiros. Eles passa-ram aqui subindo, não foi pelo Vale do Javari não. (L. A. R.,pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

Esta primeira equipe de garimpeiros que atuaram no Jandiatuba entre1999 e 2000 passou pouco tempo explorando, cerca de um ano, e de formamais concentrada no chamado igarapé Preto. A operação da Polícia Federal àépoca rebocou algumas dragas para apreensão em Tabatinga, e alguns outrosgarimpeiros puderam pagar a multa aplicada pelo crime ambiental. O curtoperíodo de tempo de exploração no Jandiatuba, contudo, não significa queseus impactos foram brandos aos olhos das comunidades Kambeba.

Passaram pouco tempo, calculadamente assim um ano. Masnesse um ano eles fizeram muita coisa! Tudo no igarapéPreto que o foco era ali. O chefe lá montou, eles chamavamde uma sede do garimpo. Só era assim tudo de paxiúba.Bem grandona mesmo! Mas só que a cobertura era de zin-co né. Então aí o que acontecia, nesse garimpo aí existiumuita prostituição. Aí existiu, nesse daí. Agora, nesse quetava aqui e que ainda continua tendo, nesse ainda não tivenenhuma informação de que tem prostituição. (L. A. R.,pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

A intermitência das atividades das dragas e das ocorrências de confli-tos ficam evidentes em diversas falas, sempre correlatas à sazonalidade do rio enão exatamente a uma possibilidade de resolução do conflito ou de supressãodefinitiva das atividades exploratórias. As perguntas que fiz durante a entre-vista com os Kambeba sobre quem são os invasores e sua maneira de operar,propiciaram explicações que me induziram compreender a dinâmica intermi-tente e seus significados. O intrusamento é percebido pelos Kambeba comoconstante, com um “entra e sai” contínuo não só com relação às dragas comoainda ao fluxo de pessoas. As medidas para neutralizar tais movimentações se

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tornam explícitas a partir da instalação de placas como sinalizadoras da deli-mitação do território, produzindo inclusive uma briga permanente em tornodestes símbolos através dos atos contingentes de “tirar e pôr” as placas. Abre-seuma nova ocorrência de conflito e de uma outra simbologia da intermitência:a intermitência da placa.

Vão continuar aqui dentro com certeza. Teve algumas[dragas] que desceram [pra cidade], mas eles não param,tão trabalhando todo tempo aí pra cima, na cheia, na seca.Na seca eles descem mais aqui pra baixo e por isso fica piorpra nós. (B. A. M., agricultor Kambeba, pesquisa de campo,2016).

[sobre eles voltarem a subir o rio] Eu não tenho ainda ne-nhuma informação de que eles possam voltar. O que eu tôimaginando é que sem dúvida alguma [eles voltam], elesestão esperando algum resultado porque se não fosse pravoltarem pra cá, eles já teriam ido embora né, pra outrolugar, porque o [rio] Jutaí diz que tá liberado pra trabalhar,e o [rio] Madeira também, tenho visto na televisão, no jor-nal. Então se eles não fossem voltar, sem dúvida algumaeles já teriam ido [trabalhar em outra localidade]. (L. A. R.,pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

[sobre quem seriam os principais invasores] (Risos) Masisso não tem conta não. Tem muita gente! Todo dia tá pas-sando gente, tanto entra como sai. E não tem como a gentefazer nada. Os meninos até tentaram, pediram placa, pre-garam as placas lá da Funai, mas eles [invasores] jogamfora. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa de campo,2016).

As falas seguintes apontam a relação íntima entre a operação das dragase o poder público local a partir das eleições que aconteceriam naquele ano emque foram realizadas as entrevistas. O que foi levantado por diversosinterlocutores concerne a indicativos de que os garimpeiros investiram na cam-panha política de um dos candidatos à prefeitura. Tal compromisso consistiuem um acordo de que, se eleito, daria continuidade à licença de operação dasdragas e estas estariam livres do pagamento do imposto ao longo do primeiro

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ano de mandato. Esta cobrança de imposto, em ouro, era algo firmado nomencionado acordo entre garimpeiros e o poder local para que as dragas nãosofressem interferência no ritmo de trabalho ou fossem impedidas de operar.Os Kambeba participantes da pesquisa revelam uma percepção arguta descre-vendo a estratégia de articulação dos garimpeiros.

Eles [garimpeiros] estão esperando que o outro prefeitoganhe, o vice-prefeito hoje. Aí se o vice ganhar na próximaeleição, eles empurram de novo [as dragas] aqui pra dentro.Esse é o plano deles. (L. E. A., pescador Kambeba, pesqui-sa de campo, 2016)Acho que mais ou menos uns 500mil [reais]. O que elestiram dá pra fechar [as contas] e ter lucro. Vejo assim, queesse lucro que é do município que eles repassam – porqueeles mesmo dizem, os próprios garimpeiros, cada uma dragarepassa 250g de ouro todo mês pro prefeito. Os própriosgarimpeiros falando pra mim, dessas dragas que estão aquiagora, que abordei como agente ambiental voluntário. Elesdisseram ‘nós repassa pro município. Se o prefeito não táfazendo nada por vocês, não tá investindo na educação enem na saúde, o problema não é nosso porque nós repassacada final de mês 250g, então se ele não tá cumprindo com asmetas dele, problema não é nosso’. Então se a gente somarné, cinco dragas durante esse ano todo que eles tão traba-lhando, faz as contas, multiplica aí pra ver quanto vai dar.Mais de um quilo de ouro por mês. Aí multiplica pelo valorda grama do ouro. Ouvi falar que aqui em São Paulo deOlivença tem um senhor que compra ouro aí e tá pagando120 reais o grama, mas eles tem vendido a maior parte desseouro em Letícia [Colômbia] porque lá tá 180 reais o grama.(L. A. R., pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

Este acordo pode ter relação com o acesso a informações privilegiadas.Os garimpeiros ficariam sabendo com antecedência quando haverá uma fisca-lização do Ibama ou uma passagem da Polícia Federal na região. Esta questãofoi levantada por um dos interlocutores ao ser questionado sobre a vinda deórgãos governamentais para fiscalizar as ações do garimpo após as denúnciasrealizadas pelas comunidades indígenas. Tal relato suscitou hipóteses sobre osgarimpeiros como uma força política, de elevada influência de poder na região.

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Veio, veio. A [Polícia] Federal diz que sempre dá uma embusca por aqui, mas não faz nada. Só vem olhar, diz que [asdragas] não tão fazendo nada, que não sei o que [...]. Quan-do eles [PF] vem, as dragas se escondem tudo nos igarapés.Eles [garimpeiros] sabem quando [a PF] vem. Agora elesbaixaram tudinho, cinco dragas. Tá quase com um mês quebaixaram, tão dentro do Jaratuba [lago] lá em São Paulo[de Olivença], tão parado lá. Mas acho que elas sobemainda, eles tão lá reformando elas na solda. (B. R. A., agri-cultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

Os relatos assinalam também que acontecimentos do presente ano pro-vocaram tensões nesta articulação. Houve um descumprimento do acordo porparte do candidato apoiado pelos garimpeiros – e que venceu as eleições – noque se refere ao pagamento dos impostos pelas dragas à prefeitura municipal.A prefeitura deu seguimento à cobrança normalmente – em vão, obviamente,já que o acordo, na ótica dos garimpeiros, ainda estaria válido. Como retaliaçãoapós desentendimentos e o não pagamento dos impostos, gestores governa-mentais protocolaram uma denúncia junto ao Ministério Público Federal acercada irregularidade das dragas. Aos garimpeiros, foi divulgada a informação deque a denúncia havia partido de uma determinada liderança Kambeba. Prova-velmente, um boato que correu pela cidade tendo como base as diversas de-núncias que o movimento Kambeba fez ao longo dos anos à Funai e ao MPFde Tabatinga acerca do intrusamento dos garimpos, afetando as comunidadesKambeba.

Leva-se em conta a possibilidade de que o boato implantado foi utili-zado para tornar as lideranças indígenas um bode expiatório. Tais fatos setornaram ideais para dar fundamento à culpabilidade do movimento e suafalsa criminalização, tirando o foco da denúncia realizada pelas autoridadeslocais.

Como se não bastasse a emergência e o flamejar desta situação social,há um segundo canal de ameaças de morte, intimidações e violações, que, no-vamente, recaiu sobre uma liderança Kambeba por meio de um segundo boatocriado. As ameaças inflaram ainda mais devido a circulação de informações deque outros atos de brutalidade, agora cometidos contra indígenas reconheci-

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dos pela Funai como isolados. Embora ainda sem investigações concretas, pode-se supor atos genocidas contra estes indígenas isolados, que são conhecidoslocalmente como “índios flecheiros”48.

A referida liderança relata ser “comum a matança de indígenas pelointerior”, ou seja, na mata ou nas cabeceiras de rios. Tais atos de violência sãoconsiderados grandes feitos, que inclusive resultam em comemorações na ci-dade, sobretudo quando há a exibição de pertences – tais como utensílios decaça, de alimentação, e instrumentos de trabalho – furtados após a morte, eexibidos como troféus. Foi justamente dessa forma que o ocorrido foi noticia-do: por conta de dois conhecidos caçadores locais terem trazido para a cidaderemos, arcos e flechas, e os exibidos como troféus, após terem divulgado publi-camente terem “encontrado um monte de índio que tinha ido buscar água nabeira do rio”. Além disto, foi viralizado pelas mídias sociais de paulivensesuma mensagem de voz em que um dos caçadores relata em detalhes a trágicaocorrência. O áudio esteve de posse da Polícia Federal para colaborar com asinvestigações, ainda inconclusas.

O fato de o ocorrido dizer respeito a parentes indígenas brutalmentemortos foi um forte argumento para aqueles que falsamente atribuíram à lide-rança a denúncia realizada, já que ela supostamente teria se sensibilizado esido motivada a buscar por investigações. Pela segunda vez, utilizarem-na comobode expiatório, e a situação favoreceu o fortalecimento do boato. O resultadoimediato foi não somente a ampliação do número de ameaças de morte dirigidasà liderança, como também a força e expressividade de tais.

Foram relatadas à pesquisadora situações tais como rondas de cerco asua residência com o propósito de intimidação, ameaças diretamente dirigidasem estabelecimentos comerciais como mercados e “tabernas” do bairro, utili-zando o tom de alerta de que “a qualquer momento ela poderia ‘ser passada’”,isto é, assassinada. Além disso, registram-se situações de perseguição física,

48 O Alto rio Jandiatuba, cuja área pertence à TI Vale do Javari, consiste num território de perambulação de indígenasisolados, tal como reconhecidos pela Funai. Não há informações precisas sobre a quantidade desses isolados e sobreo raio de abrangência de seus deslocamentos.

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enquanto andava a pé, de motocicleta pela cidade e até mesmo em trechos dorio Solimões enquanto seguia em sua rabeta para o trabalho. Segundo a lide-rança, a mais grave ameaça foi a que envolveu sua filha pré-adolescente:

Um dia, A. [nome fictício] chegou no colégio para sua aula,e uma colega de sala perguntou dela ‘sabia que sua mãe támarcada pra morrer?’, ela era filha de uma das pessoas queestão me ameaçando, e ouviu comentários numa reuniãodeles que tinha até gente da prefeitura também. E eles temuma lista com vários nomes marcados pra morrer, e o meu tálá junto. (R. E., liderança Kambeba, pesquisa de campo,2017)

Acerca da sua lotação para dar aulas em uma escola rural distante cercade uma hora de rabeta (canoa motorizada) da sede, este destacamento repre-sentou, aos olhos da liderança, uma forma de perseguição política e retaliaçãodos gestores públicos municipais em resposta à sua luta política pela educaçãobilíngue e de qualidade nas escolas Kambeba, com a exigência de lotação deindígenas da própria etnia e falantes da língua. Uma legítima tentativa dedesmobilização de suas ações políticas na sede e que pode ser lida como umaviolência simbólica.

É possível interpretarmos que há um caráter de naturalização dos con-flitos e dos impactos ambientais por parte do poder público, ou mesmo pelavontade pessoal de gestores, e seu interesse financeiro na continuidade dasatividades, a que preço ambiental, social e étnico for. Tramas político-admi-nistrativas complexas desvelam a extensão dos crimes ambientais e revelam suaextrema gravidade.

[sobre alguma ação do poder público municipal] Não resol-vem nada porque é eles que mandam. Meu filho foi láreclamar [com as dragas] e disseram que tinham ordem láda prefeitura, com consentimento deles lá pra cá. (B. R. A.,agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

[sobre dar parte na delegacia] Deeei [de forma enfática],‘não, porque tem que ter testemunha, que não sei o que...’eles disseram. Olha só como é a justiça daqui né, já pensou?

[sobre dar parte na delegacia] Deeei [de forma enfática], ‘não, porque tem que ter testemunha, que não sei o que...’ eles disseram. Olha só como é a justiça daqui né, já pensou? (L. E. A, pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

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enquanto andava a pé, de motocicleta pela cidade e até mesmo em trechos dorio Solimões enquanto seguia em sua rabeta para o trabalho. Segundo a lide-rança, a mais grave ameaça foi a que envolveu sua filha pré-adolescente:

Um dia, A. [nome fictício] chegou no colégio para sua aula,e uma colega de sala perguntou dela ‘sabia que sua mãe támarcada pra morrer?’, ela era filha de uma das pessoas queestão me ameaçando, e ouviu comentários numa reuniãodeles que tinha até gente da prefeitura também. E eles temuma lista com vários nomes marcados pra morrer, e o meu tálá junto. (R. E., liderança Kambeba, pesquisa de campo,2017)

Acerca da sua lotação para dar aulas em uma escola rural distante cercade uma hora de rabeta (canoa motorizada) da sede, este destacamento repre-sentou, aos olhos da liderança, uma forma de perseguição política e retaliaçãodos gestores públicos municipais em resposta à sua luta política pela educaçãobilíngue e de qualidade nas escolas Kambeba, com a exigência de lotação deindígenas da própria etnia e falantes da língua. Uma legítima tentativa dedesmobilização de suas ações políticas na sede e que pode ser lida como umaviolência simbólica.

É possível interpretarmos que há um caráter de naturalização dos con-flitos e dos impactos ambientais por parte do poder público, ou mesmo pelavontade pessoal de gestores, e seu interesse financeiro na continuidade dasatividades, a que preço ambiental, social e étnico for. Tramas político-admi-nistrativas complexas desvelam a extensão dos crimes ambientais e revelam suaextrema gravidade.

[sobre alguma ação do poder público municipal] Não resol-vem nada porque é eles que mandam. Meu filho foi láreclamar [com as dragas] e disseram que tinham ordem láda prefeitura, com consentimento deles lá pra cá. (B. R. A.,agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

[sobre dar parte na delegacia] Deeei [de forma enfática],‘não, porque tem que ter testemunha, que não sei o que...’eles disseram. Olha só como é a justiça daqui né, já pensou?

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enquanto andava a pé, de motocicleta pela cidade e até mesmo em trechos dorio Solimões enquanto seguia em sua rabeta para o trabalho. Segundo a lide-rança, a mais grave ameaça foi a que envolveu sua filha pré-adolescente:

Um dia, A. [nome fictício] chegou no colégio para sua aula,e uma colega de sala perguntou dela ‘sabia que sua mãe támarcada pra morrer?’, ela era filha de uma das pessoas queestão me ameaçando, e ouviu comentários numa reuniãodeles que tinha até gente da prefeitura também. E eles temuma lista com vários nomes marcados pra morrer, e o meu tálá junto. (R. E., liderança Kambeba, pesquisa de campo,2017)

Acerca da sua lotação para dar aulas em uma escola rural distante cercade uma hora de rabeta (canoa motorizada) da sede, este destacamento repre-sentou, aos olhos da liderança, uma forma de perseguição política e retaliaçãodos gestores públicos municipais em resposta à sua luta política pela educaçãobilíngue e de qualidade nas escolas Kambeba, com a exigência de lotação deindígenas da própria etnia e falantes da língua. Uma legítima tentativa dedesmobilização de suas ações políticas na sede e que pode ser lida como umaviolência simbólica.

É possível interpretarmos que há um caráter de naturalização dos con-flitos e dos impactos ambientais por parte do poder público, ou mesmo pelavontade pessoal de gestores, e seu interesse financeiro na continuidade dasatividades, a que preço ambiental, social e étnico for. Tramas político-admi-nistrativas complexas desvelam a extensão dos crimes ambientais e revelam suaextrema gravidade.

[sobre alguma ação do poder público municipal] Não resol-vem nada porque é eles que mandam. Meu filho foi láreclamar [com as dragas] e disseram que tinham ordem láda prefeitura, com consentimento deles lá pra cá. (B. R. A.,agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

[sobre dar parte na delegacia] Deeei [de forma enfática],‘não, porque tem que ter testemunha, que não sei o que...’eles disseram. Olha só como é a justiça daqui né, já pensou?

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enquanto andava a pé, de motocicleta pela cidade e até mesmo em trechos dorio Solimões enquanto seguia em sua rabeta para o trabalho. Segundo a lide-rança, a mais grave ameaça foi a que envolveu sua filha pré-adolescente:

Um dia, A. [nome fictício] chegou no colégio para sua aula,e uma colega de sala perguntou dela ‘sabia que sua mãe támarcada pra morrer?’, ela era filha de uma das pessoas queestão me ameaçando, e ouviu comentários numa reuniãodeles que tinha até gente da prefeitura também. E eles temuma lista com vários nomes marcados pra morrer, e o meu tálá junto. (R. E., liderança Kambeba, pesquisa de campo,2017)

Acerca da sua lotação para dar aulas em uma escola rural distante cercade uma hora de rabeta (canoa motorizada) da sede, este destacamento repre-sentou, aos olhos da liderança, uma forma de perseguição política e retaliaçãodos gestores públicos municipais em resposta à sua luta política pela educaçãobilíngue e de qualidade nas escolas Kambeba, com a exigência de lotação deindígenas da própria etnia e falantes da língua. Uma legítima tentativa dedesmobilização de suas ações políticas na sede e que pode ser lida como umaviolência simbólica.

É possível interpretarmos que há um caráter de naturalização dos con-flitos e dos impactos ambientais por parte do poder público, ou mesmo pelavontade pessoal de gestores, e seu interesse financeiro na continuidade dasatividades, a que preço ambiental, social e étnico for. Tramas político-admi-nistrativas complexas desvelam a extensão dos crimes ambientais e revelam suaextrema gravidade.

[sobre alguma ação do poder público municipal] Não resol-vem nada porque é eles que mandam. Meu filho foi láreclamar [com as dragas] e disseram que tinham ordem láda prefeitura, com consentimento deles lá pra cá. (B. R. A.,agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

[sobre dar parte na delegacia] Deeei [de forma enfática],‘não, porque tem que ter testemunha, que não sei o que...’eles disseram. Olha só como é a justiça daqui né, já pensou?

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(L. E. A, pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)O impacto [para a economia do município] é muito grandeporque nessas primeiras dragas que entraram de 99, omunicípio ficou em movimento que pagava em ouro, com-prava em ouro, tinha comprador na cidade, e tinha muitomovimento, muito movimento! Dessa vez agora, infelizmentenão tem movimento, até do dinheiro mesmo público da pre-feitura. Acho que o ouro tá indo todo pro bolso do prefeitoporque o seu Q. [nome fictício], que é indígena e era coor-denador local da CPL de SPO, eu conversando com elesobre o garimpo ele me perguntou ‘como tá a situação dogarimpo lá?’, [respondi] ‘tão trabalhando...’, aí ele disse ‘olha,eu tive com o vice-prefeito e ele me mostrou o ouro que osgarimpeiros dão pra eles, me mostrou assim uma quantia’,uma quantia desse tamanho e dessa largura [mostrou comas mãos o tamanho aproximado de um lingote de ouro], jáem barrinha mesmo. Isso foi em setembro de 2014. Aí eudisse pra ele ‘então essa porcentagem que eles [garimpei-ros] dão pro município é o que tá com o vice-prefeito’, e semdúvida com o prefeito. Diz que ele tem parentes nisso. (L.A. R., pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

As situações de constrangimentos expressas pelos interlocutores de-monstram momentos de tensão que favorecem o surgimento de medos e afli-ções por parte de quem as vivencia, podendo ser combustível para a radicalizaçãode um possível embate. Trata-se de uma relação de conflito face a face, quetambém é percebido pelos ruídos que resultam em medos. Estes interferemnos afazeres das atividades triviais da vida cotidiana.

Era uma hora dessa [15h]. Eu tava me embalando ali nes-sa outra barraca debaixo [onde tem a casa de farinha], aí abalieira veio, deu meia volta e aí parou aqui, no que eleparou ele foi se aguardando, aí eu vi quando ele tirandoarma do porão da balieira. Aí que quando ele foi saindo aíele puxou a balieira e dobrou pra cima [desistindo e indoembora com a lancha]. Não sei [porque fizeram isso], agente abordava eles né. Aí quando ele [companheiro] saía,tem dia que eu tinha medo, quando eu escutava cadabalieira que ia por aqui, eu ia me embora lá pro meio daroça. (B. L. C., agricultora Kambeba, pesquisa de campo,2016)

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enquanto andava a pé, de motocicleta pela cidade e até mesmo em trechos dorio Solimões enquanto seguia em sua rabeta para o trabalho. Segundo a lide-rança, a mais grave ameaça foi a que envolveu sua filha pré-adolescente:

Um dia, A. [nome fictício] chegou no colégio para sua aula,e uma colega de sala perguntou dela ‘sabia que sua mãe támarcada pra morrer?’, ela era filha de uma das pessoas queestão me ameaçando, e ouviu comentários numa reuniãodeles que tinha até gente da prefeitura também. E eles temuma lista com vários nomes marcados pra morrer, e o meu tálá junto. (R. E., liderança Kambeba, pesquisa de campo,2017)

Acerca da sua lotação para dar aulas em uma escola rural distante cercade uma hora de rabeta (canoa motorizada) da sede, este destacamento repre-sentou, aos olhos da liderança, uma forma de perseguição política e retaliaçãodos gestores públicos municipais em resposta à sua luta política pela educaçãobilíngue e de qualidade nas escolas Kambeba, com a exigência de lotação deindígenas da própria etnia e falantes da língua. Uma legítima tentativa dedesmobilização de suas ações políticas na sede e que pode ser lida como umaviolência simbólica.

É possível interpretarmos que há um caráter de naturalização dos con-flitos e dos impactos ambientais por parte do poder público, ou mesmo pelavontade pessoal de gestores, e seu interesse financeiro na continuidade dasatividades, a que preço ambiental, social e étnico for. Tramas político-admi-nistrativas complexas desvelam a extensão dos crimes ambientais e revelam suaextrema gravidade.

[sobre alguma ação do poder público municipal] Não resol-vem nada porque é eles que mandam. Meu filho foi láreclamar [com as dragas] e disseram que tinham ordem láda prefeitura, com consentimento deles lá pra cá. (B. R. A.,agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

[sobre dar parte na delegacia] Deeei [de forma enfática],‘não, porque tem que ter testemunha, que não sei o que...’eles disseram. Olha só como é a justiça daqui né, já pensou?

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enquanto andava a pé, de motocicleta pela cidade e até mesmo em trechos dorio Solimões enquanto seguia em sua rabeta para o trabalho. Segundo a lide-rança, a mais grave ameaça foi a que envolveu sua filha pré-adolescente:

Um dia, A. [nome fictício] chegou no colégio para sua aula,e uma colega de sala perguntou dela ‘sabia que sua mãe támarcada pra morrer?’, ela era filha de uma das pessoas queestão me ameaçando, e ouviu comentários numa reuniãodeles que tinha até gente da prefeitura também. E eles temuma lista com vários nomes marcados pra morrer, e o meu tálá junto. (R. E., liderança Kambeba, pesquisa de campo,2017)

Acerca da sua lotação para dar aulas em uma escola rural distante cercade uma hora de rabeta (canoa motorizada) da sede, este destacamento repre-sentou, aos olhos da liderança, uma forma de perseguição política e retaliaçãodos gestores públicos municipais em resposta à sua luta política pela educaçãobilíngue e de qualidade nas escolas Kambeba, com a exigência de lotação deindígenas da própria etnia e falantes da língua. Uma legítima tentativa dedesmobilização de suas ações políticas na sede e que pode ser lida como umaviolência simbólica.

É possível interpretarmos que há um caráter de naturalização dos con-flitos e dos impactos ambientais por parte do poder público, ou mesmo pelavontade pessoal de gestores, e seu interesse financeiro na continuidade dasatividades, a que preço ambiental, social e étnico for. Tramas político-admi-nistrativas complexas desvelam a extensão dos crimes ambientais e revelam suaextrema gravidade.

[sobre alguma ação do poder público municipal] Não resol-vem nada porque é eles que mandam. Meu filho foi láreclamar [com as dragas] e disseram que tinham ordem láda prefeitura, com consentimento deles lá pra cá. (B. R. A.,agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

[sobre dar parte na delegacia] Deeei [de forma enfática],‘não, porque tem que ter testemunha, que não sei o que...’eles disseram. Olha só como é a justiça daqui né, já pensou?

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Tu não sabe o que é garimpeiro, eu conheço, já andei umpouco, conheço o que é garimpeiro. Garimpeiro é o ser maisbandido que existe. Eles mata pessoa rindo. E eu já abordeimuito eles aqui, pra não derrubar por aqui. (L. E. A, pesca-dor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

[Se tem piorado com o passar dos anos], vixi, e muito. Nin-guém pode dormir sossegado. Teve um que começou meameaçar sentado bem aí [apontando pro quintal da área,entre a beira do rio e a casa], que tava caindo muito marí, né,e acho que ele vinha morto de fome, o miserável, e aindaqueria comer e [risos...] chegou aí, parou aí ele e mais outro,todo encarapuçado, ficou olhando [...] eu tava só olhandotambém aqui... aí ele viu que eu tinha matado uma anta etava salgada aí [apontando pra área da casa de farinha,localizada em frente à casa]... ele falou ‘ué, matou anta?’, eudisse ‘matei’... que eu não dou muita bola pra eles né... aí ele‘hoje jantamos marí’ como coisa de eu ficar espantado né[risos], eu nem disse nada. ‘ah você que dizem que é um talde valentão aqui, que diz que não pode cavar em cantonenhum?’ ele perguntou de mim, ‘tá botando os cara prasair’. Eu disse ‘rapaz, quem falou isso mentiu, mas se tu veiopra discutir comigo, levanta daí e vai-te embora, é só o quetenho pra te dizer, vai cuidar do que tu tem que fazer’. Logoque ele chegou eu perguntei de onde ele era né, ele disseque era do Jutaí grande. Eu disse ‘e por que tu vem de lácavar aqui? Por que tu não cava lá no Jutaí grande? Vocêdeveria cavar lá na tua terra, e deixar a nossa em paz, tiran-do nossa riqueza daqui’. ‘ah porque eu comprei uma má-quina nova’ ele disse, e eu ‘eu não quero saber se vocêcomprou máquina nova não..e você me tira daí, vai emborae logo! Antes que eu me esqueça. Tu não quer nem comer,nem nada, vai embora’, aí ele pulou na balieira [lancha] e sefoi. Tava os dois encarapuçados, com cara de bandido mes-mo, não sei o que eles tavam entendendo sabe? Eu calculeique eles iam atrás de querer fazer alguma coisa comigo. (L.E. A., pescador Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

[garimpo de 99] Eles não ameaçavam, mas a gente tinhaum pouco de suspeita assim, quando a gente via eles che-gavam assim, as vezes vinham atrás de peixe, sei lá, ou atrásde uma caça, se a gente não tinha pra vender, quando agente via assim eles já tavam em cima, assim próximo cheiode arma né, aí a gente tinha suspeita que eles pudessemfazer alguma coisa. (L. A. R, pescador Kambeba, pesquisade campo, 2016)

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93VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

A despeito de os garimpeiros dizerem para os Kambeba que estãogarimpando com a autorização das autoridades municipais, os Kambeba ex-pressam uma dimensão coletiva do enfrentamento agindo como força política,isto é, promovem reuniões na comunidade de consulta aos membros e defini-ção da tomada de posição face aos antagonistas, para então implementar o quefoi deliberado. Tal ação coletiva demonstra uma forma político-organizativados Kambeba que, sem recorrer ao princípio de justiça privada, posicionam-sediretamente como agentes com participação ativa face aos garimpeiros.

Poucos dias atrás, fui lá e conversei com um garimpeiro quetava um mês trabalhando aqui dentro, ou o gerente quandoele não tava, [dizia] ‘vocês tem que desocupar, essa área énossa’, aí [garimpeiro dizia] ‘não, a gente tá autorizado peloprefeito, a gente só sai daqui se o prefeito mandar, se oprefeito não mandar a gente não sai, porque a gente temdocumentação aqui’, e mostrava documento. Quando elechegou aqui próximo, reuni com meu pessoal e disse ‘a gen-te vai ter que tomar uma decisão, esse cara tá abusado de-mais, eu sou amenizador de conflitos mas ele tá abusando’,a gente foi lá, eu fui lá, e disse ‘olha, meu amigo, vim aqui prapedir pra você desocupar’, ele degradou aqui tudinho pertodo furo, desde lá do Bacaba até chegar aqui, e aí fui lá e pedipra desocupar, disse ‘você vai ter que desocupar de um jeitoou de outro, o que você acha? Ainda tô tendo paciência comvocê’, aí foi que ele me disse ‘meu amigo, eu vou sair daquimas não é com medo de você’, aí eu disse pra ele ‘meuamigo, eu tô vindo aqui porque eu também não tenho medode você, aqui a terra é nossa, eu sei que você é brasileiro,mas você tem que respeitar nossos direitos; e não você des-respeitar porque se eu tivesse lá na sua terra, mesmo sendobrasileiro, eu tenho que respeitar’. Não posso dizer que eletava armado porque ninguém viu arma com ele, mas a gen-te percebeu que pela fala dele, ele quis dizer que poderiamatar um de nós lá. (L. A. R, pescador Kambeba, pesquisade campo, 2016)

Há ainda ameaças que partem de outros antagonistas, localizados emdiferentes posições, quer sejam madeireiros ou agentes governamentais. Essaocorrência explicita que os Kambeba enfrentam uma complexa coalizão de

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Aline Radaelli94

interesses, que tanto mobiliza os que se apropriam dos recursos madeireirosem terras indígenas, quanto aqueles que se apropriam dos recursos minerais,apoiados por agentes da esfera pública.

[Os madeireiros] Ameaçaram eu e minha família váriasvezes já. Ameaça de morte e tudo. Até dessa vez que eu fuichamado lá na delegacia, até lá me ameaçaram, que diz quealgum dia que acontecesse alguma coisa aqui dentro, iamprocurar minha família e matar de um por um. Falaram issomermo, lá em frente a delegacia, na porta. Só que isso aí eunão falei pro delegado nem nada. Mas se eu falasse era piorporque o próprio delegado que foi me ameaçar eu. (B. A. M,agricultor Kambeba, pesquisa de campo, 2016)

Esta coalizão de interesses reúne agentes que agem igualmente traba-lhando com ameaças, intimidações e impondo situações de medo a partir dainvasão de terras indígenas.

Eu tava sozinho. Aí tava bem noite, fiquei aí e dormi narede, e a chuva tava caindo. Acho que eles viram que tavasó eu e ‘vamos matar ele e ninguém sabe’, e vieram mesmo.E garanto que eles não viram a espingarda que tava desselado aqui do mosquiteiro. Aí vieram e jogaram a gasolinadali [apontando pra uma área próxima da beira], jogaramde fora porque só era essa daí [casebre da casa de farinha],aqui não tinha essa casa [onde a entrevista foi realizada],essa aqui é nova que eu fiz agora. Aí eu senti por cima domosquiteiro e aí eu abri os olhos e alguém me agarrou.Amarraram no braço e aqui na perna, mas no pé ele nãoconseguiu meter direito a corda. Então ele amarrou lá nopunho da rede, pra eu ficar preso. E foi mermo. Eu quase eunem esperei aquele negócio caiu por cima de mim, comoquando chove por cima. Aí acho que eu dormi que quandoeu tava dormindo na rede, uma pessoa chegou e disse ‘teacorda que vamos tocar fogo em ti’, eu só escutei foi ‘vvvvvuf ’[som de líquido inflamável entrando em combustão], o fogo.A pessoa jogou gasolina por cima do mosquiteiro com tudo,foi só um tiro. Aí eu pulei assim, meti os pés assim, bati naparede e rebolei, aí o fogo cobriu, aí no que eu fiz assim sentique eu tava amarrado na munheca, ‘puta merda, que foimeu deus do céu?’... aí vi o fogo, o mosquiteiro já se acaban-

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do porque é só nylon hoje em dia, queima rápido, e aí foipegando fogo no tapiri. Aí eu di cum força e arrancou acorda do meu braço, queimou né, aí eu deitei a mão pra alie peguei a faca. Quando eu peguei na faca fiquei olhandodali desse jambeirinho ali. Aí ele ‘kkkk’ eu escutei benzinhodepois da chuva, escutei eles achando graça ainda. Subiramo rio, foi lá pra cima. (L. E. A, pescador Kambeba, pesquisade campo, 2016).

A situação de violência expressa e que envolve risco físico a uma daspartes, aconteceu com um dos interlocutores acessados, conforme o relato an-terior. Dotado de detalhes, o interlocutor fez questão de contar cuidadosa-mente o que se passou, como se viu preso a essa situação de perigo e as marcasque ficaram em sua pele devido seu aprisionamento e o fogo ateado.

Registram-se ações de resistência em todas as ocorrências menciona-das, o que me leva a refletir sobre a mobilização étnica dos Kambeba comouma forma político-organizativa em construção e fortalecimento. Resistir, aqui,significa para os Kambeba um exercício de liberdade de escolha. Promoverreunião para tomar posição, implementar uma ação coletiva quer dizer nãorenunciar a construção de sua própria existência enquanto povo.

Volta-se à presença-ausente do Estado

A presença-ausente do Estado foi discutida no primeiro capítulo, noâmbito das conquistas coloniais, e reflete a atualidade do colonialismo. O focodo presente capítulo é problematizar a ausência-presente do Estado, conside-rando os desinteresses interessados dos agentes sociais a ele referidos, materia-lizados nas forças políticas do poder público da região. A noção de presença-ausente, entretanto, é retomada brevemente neste tópico pois nos ajuda a pen-sar a ocorrência de uma operação de fiscalização ambiental realizada na regiãopor órgãos federais.

As duas noções, portanto, presença-ausente e ausência-presente, foramforjadas considerando as faces de um mesmo Estado, e que ora está presente,ora ausente, ora os dois ao mesmo tempo, a depender dos (des)interesses e

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conjunturas. A definição de ambas as noções converge para o significado doconceito de Estado espectral.

Justamente considerando que esta condição espectral do Estado não éuníssona ou cristalizada, e sim configuracional e com uma dinâmica própria, éque retomei a presença-ausente diante de uma nova situação imposta à reali-dade do movimento Kambeba frente ao garimpo no Jandiatuba: as operaçõesrealizadas pelo Ibama em parceria com o Exército, em agosto e novembro de2017, que tiveram como objetivo o “desmantelamento do garimpo” na região.Esta ocorrência propicia condições para a utilização desta noção que retomocomo instrumento analítico, a presença-ausente.

Pressionada por diversas solicitações de intervenção por meio de denún-cias registradas pelas etnias de São Paulo de Olivença, a Coordenação Regionaldo Alto Solimões - CRAS da Funai acionou o Ministério Público Federal deTabatinga, que, por sua vez, acionou o Ibama, o qual contando com o apoio doExército, realizou duas operações de desmantelamento do garimpo no rioJandiatuba, uma no final de agosto e outra no final de novembro de 2017.

A operação de agosto, sendo a de maior envergadura e que obteve maisrepercussão, foi marcada por ações fluviais e aéreas simultâneas. Relatos apon-tam que uma parte da equipe de ação realizou um sobrevoo de helicópteropelo rio Jandiatuba, enquanto outra parte da equipe navegava adentrando orio, onde fizeram um percurso com duração de dois dias no qual puderamrealizar abordagens diretas às dragas encontradas ao longo do caminho.

Embora tenha sido uma viagem de dois dias, a equipe só pode chegaraté o início do Médio Jandiatuba. O que dá a aparência de uma viagem longae que torna possível percorrer o rio em sua totalidade, na realidade, não o épara os padrões amazônicos e, assim, não representam grandes extensões dedeslocamento. Sobretudo se adicionarmos a esta situação os fatores de sinuosi-dade do rio Jandiatuba e a sazonalidade do mesmo, que se encontrava noperíodo de seca e, portanto, sem dar as possibilidades de atalhos (furos) pelosigapós – o que reduziria consideravelmente o tempo de viagem.

Na operação aérea, foram avistadas dezesseis dragas em funcionamen-to ao longo de todo o rio. Na operação fluvial, foram apreendidas quatro dragas,

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as quais foram explodidas e queimadas como método de desarticulação (Figu-ra 12). A justificativa desta ação, por muitos considerada como radical, dá-sepelo fato de serem grandes balsas e embarcações, o que torna inviável sua apre-ensão por rebocagem por parte do órgão fiscalizador, tal como alegaram. Oprejuízo de cada draga explodida foi estimado em cerca de um milhão de reais,considerando o valor físico da embarcação, suas instalações e respectivosmaquinários. Contudo, pode-se afirmar um valor de perda muito maior seconsiderado o montante que deixa de produzir em ouro não estando em plenofuncionamento.

Aos olhos dos órgãos governamentais envolvidos nas operações, as mes-mas podem ter tido expectativas alcançadas, ainda que soubessem da existên-cia de outras tantas dragas rio acima. Esta poderia ser facilmente interpretadacomo uma situação de presença efetiva do Estado na resolução de conflitos ena classificação de ilegalidades quanto ao uso dos bens naturais. Seu caráterausente, no entanto, salta aos olhos do movimento Kambeba e de suas lideran-ças, que avaliam as operações como sendo malsucedidas e destituídas de plane-jamento. Isto pelo simples fato de não terem tido o conhecimento prévio da-quela realidade conflituosa e do histórico das ações ilegais nesse rio.

Eu fiquei assim muito triste porque foi uma operação e queos responsáveis dela não deram uma condição pra genteassim, uma segurança, nem vieram conversar com a gente.(R. E, liderança Kambeba, pesquisa de campo, 2017).

Foram operações que, na prática, mais pareceram uma ilusão de eficá-cia do que de fato uma desarticulação da ilegalidade do garimpo, realmentevoltada à solução do problema. O que me leva a constatar que a noção depresença-ausente se justifica como recursos analítico nesta situação. Provasdisto foram: i) as ameaças às lideranças indígenas se intensificaram; ii) a ten-são, o medo e o caos instaurados na cidade de São Paulo de Olivença, onde apopulação permaneceu por semanas receosa e em estado de alerta mediantepossíveis ações de represália dos donos dos garimpos, afetados social e finan-ceiramente; e iii) em questão de dias após a primeira operação, as balsas e

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dragas já estavam no porto da cidade sendo consertadas. Tendo seu esqueletofeito de ferro fundido (Figura 13), a verdade é que o incêndio provocado nãocausou muita deterioração em sua robusta estrutura, restando para o consertosomente as fiações elétricas, as divisões de madeira e os equipamentos.

[a operação] Não foi muito bem planejada, por conta quenós fomos acusados de uma coisa e não teve segurança pranós, nós ficamos a mercê aqui e eles foram embora pra terradeles, que a gente nem sabe que é né, os órgãos que atua-ram. E aí deixaram nós aqui como se fosse assim uma arma-dilha. Eles atuaram, fizeram o papel deles e foram embora,e nós ficamos pra cobaia aqui, pra morrer na mão dos garim-peiro. Porque eles e o poder municipal ficaram acusandonós de ser mandante da denúncia [que levou à operação].E aí em nenhum momento a Polícia Federal se justifica‘não, é uma operação de rotina’ ou ‘é um trabalho que temque ser feito mermo’, todo tempo eles calado pra lá e nóslevando pipa pra cá, sendo ameaçado. Por um lado, temgente que acha que foi bom, que parou um pouco, mastambém dizem que não foi bom porque eles não foramembora totalmente, já tão ajeitando as draga aí né, tá emconserto, e com certeza é pra voltar de novo [rio adentro].Todas as dragas que foram explodidas na operação tão tudoaí no porto sendo consertadas. (R.E, liderança Kambeba,pesquisa de campo, 2017).

As operações podem ter sido inócua, conforme os Kambeba assinalam,mas seus efeitos foram bastante palpáveis e tiveram ampla repercussão. Verifi-ca-se uma individualização da culpa através de insinuações que criminalizamas lideranças indígenas, como se pode constatar no excerto a seguir. Esta obser-vação evidencia o poder explicativo do conceito de Estado espectral adjunto ànoção de presença-ausente.

As pessoas [de SPO] ficaram comentando, muita genteligada ao prefeito ficavam dizendo ‘os Kambeba são muitoamaldiçoado, merecem morrer mesmo, porque eles que tãodenunciando’, como se o garimpo fosse mermo uma coisaboa pra cá e que nós tinha feito algo de errado. Mas aídefendia a gente dizendo que essas denúncias não partiude uma só pessoa, e tem muitos anos que muitos povos vem

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denunciando. Nós mesmo, recente, não fizemos nenhumadenúncia. [...] E aí ficou todo mundo comentando aqui emSão Paulo e todo tempo jogando pra cima de mim né, comose eu sozinha tivesse a capacidade de fazer as coisas. (R. E,liderança Kambeba, pesquisa de campo, 2017).

Para compreender as percepções ambientais de conservação, preserva-ção e do que os Kambeba consideram como ameaças, incorporei uma propostado projeto no qual a pesquisa estava vinculada, que era realizar uma atividadede mapeamento social. Esta iniciativa foi recebida com entusiasmo pelosinterlocutores e a equipe de pesquisa, coordenada pelos professores ReginaldoConceição da Silva e Pedro Rapozo e contando com minha participação, efe-tivou a oficina. Na interpretação dos trabalhos cartográficos feitos por Acselrade Coli (2008)49, esta oficina consistiu na construção do mapa do Jandiatuba eseus igarapés afluentes, incluindo os lagos de uso e de preservação, a partir dosdesenhos de próprio punho das lideranças das comunidades Kambeba. O foco,porém, era para que pontuassem as localidades que já haviam vivido situaçõesde risco, como a presença de dragas do garimpo, de caçadores, de madeireiros,de pescadores ligados à pesca comercial de “arrastão”.

A atividade foi importante inclusive como atividade lúdica e de inclu-são participativa de crianças e jovens, que contribuíram no momento de pin-tura das gravuras do croqui. Estes dados para elaboração do mapa foram plotadoscom a utilização de ferramentas de georreferenciamento, visando a fiel repre-sentação eletrônica do desenho feito pelos interlocutores que participaram daatividade (Figura 14). Neste processo, ocorreu a transformação de croquis edesenhos num mapa com coordenadas e com maior precisão. O resultado finalé representado pelo mapa a seguir. É possível verificar no mapa diversos pontosem que é registrada a presença de quatorze dragas, em operação não somentena TI Vale do Javari, cabeceira do rio Jandiatuba, mas também em outras TI,

49 Na perspectiva de Fox et al. (2008, p. 72), o mapeamento par ticipativo, que tem como base a pesquisa de campo emcomunidades, "é visto como extensão lógica do repertório de estratégias de capacitação para o for talecimento dascomunidades locais" permitindo que muitos de seus sujeitos tomem consciência de seu empoderamento a par tir dacartografia produzida por eles, sobre eles e para eles.

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Mapa participativo situacional que aponta a presença de outsiders e conflitos

Fonte: NESAM, 2018.

como a Sururu e a Feijoal. Vale atentar para o fato de que a maior concentra-ção de dragas neste mapa situacional ocorre na TI Vale do Javari e muitopróximo da base de operação da Funai, desativada desde 2008. As denúnciasdo massacre dos “flecheiros”, anteriormente mencionadas, levaram a Funai ga-rantir que reativaria tal posto de fiscalização.

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Esse trecho do Jandiatuba se torna ainda mais complexo e tensionadocom o intrusamento da pesca comercial na região, onde sabidamente há regis-tro de índios isolados, os “flecheiros”, em constante perambulação. Cabe refor-çar que considero estas informações do mapa situacional um pequeno recortede realidade, por se tratar de agentes invasores que operam atividades econô-micas que envolvem alta mobilidade ao longo do rio, além de possuírem umforte caráter sazonal. Os períodos de vazante e seca do rio favorecem tanto apesca quanto o garimpo e, portanto, suas presenças são mais intensificadasnestas épocas. Configura-se assim uma temporalidade própria dos conflitossociais que este trabalho tenta descrever com pormenor.

2.2 A ausência-presente do Estado: os conflitos socioambientais na expropri-ação dos bens naturais

A inserção do tema ambiental nos debates políticos – reflexo das pre-ocupações climáticas da vida social – tem pressionado a reflexão acerca dosdiferentes usos e percepções dos bens naturais, revelando diversas concepções eracionalidades da relação humanidade-natureza. Tais concepções eracionalidades, entrando em tensão geram conflitos, que permitem analisá-losquanto ao seu fundamento, as relações de poder intrínsecas a eles e aos interes-ses em disputa.

No que concerne especificamente aos Kambeba, pode-se descrever con-cretamente as práticas de uso comum, de cooperação simples ou de ajuda mútuaem atividades no plano comunitário. Agricultura, pesca e extrativismo são ar-ticulados em unidades de trabalho familiar. Estas realidades empiricamenteobservadas podem ser relacionadas dinamicamente e ser produtoras de tensõesentre interesses, que levam a situações de conflitos em seus mais diversos grausde expressão, tal como interpreta Ostrom (1987)

As características sociais e políticas dos usuários de recur-sos, assim como a maneira como estes se relacionam com osistema político dominante, afetam a habilidade dos grupos

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locais em organizar e manejar a propriedade comunal(OSTROM, 1987).

Para além da interpretação de Ostrom sobre a ideia de manejo da pro-priedade comunal, poderia ser acrescentado o uso comum de bens naturais,que consiste numa expressão produtiva e organizativa dos Kambeba.

Ao debater a história da Amazônia a partir dos seus elementos funda-dores, Loureiro (2009) pontua alguns pilares de perdas e danos e afirma que,em se tratando da persistência de sua representação ao longo do tempo, estessão também elementos da sua organização social. Dentre os pilares elencadospela autora, sublinho: a persistência, na formação social da Amazônia, “depolíticas de caráter elitista e patrimonialista e voltadas para a acumulação decapital”, e movimentos sociais de resistência às políticas de Estado que tentaminvisibilizá-los (LOUREIRO, ibidem).

Outro elemento necessário para a discussão da situação contempo-rânea de conflitos – além das estruturas históricas de colonialismo e asreferidas subjugações que provocam – é a fragilidade do aparato institucionalque produz, implementa e fiscaliza as políticas ambientais no estado doAmazonas.

As mudanças ocorridas na primeira década do século XXI nesta temáticade políticas públicas se deveram à nova forma de perceber as questõesambientais, sobretudo a partir das discussões da Rio-92 que deu maior visibi-lidade à Amazônia e ao Amazonas, em se tratando de uma unidade da federa-ção que possui cerca de 90% de sua cobertura florestal original.

A despeito disso, até o final do século XX a contundência de um dis-curso ambiental na pauta das instituições governamentais era inexpressiva. Aperspectiva ambiental desta época era de dotada de um cunho maispreservacionista e, portanto, pouco aceita pelos governantes locais por afetar asatividades produtivas planejadas pelo modelo econômico da época.

O início do século XXI é responsável por uma inflexão da lógica atéentão praticada devido, sobretudo, à criação de um aparato institucional con-solidado a partir de diversos órgãos ambientais e de legislações específicas para

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a efetividade da gestão ambiental do Estado. No caso do Amazonas, o órgãocentral criado foi a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimen-to Sustentável - SDS e, vinculados a ela, a Unidade Gestora do Centro Esta-dual de Mudanças Climáticas, que abarcava o Centro Estadual de Unidadesde Conservação - CEUC e o Centro Estadual de Mudanças Climáticas -CECLIMA. O órgão gestor das unidades de conservação estaduais adminis-tra 43 UC estaduais que representam uma área de cerca de 19 milhões dehectares protegidos50.

Contudo, tais marcos para a consolidação das políticas ambientais doEstado sofreram forte abalo comprometendo sua efetividade e eficiência. Apósreforma administrativa realizada pelo executivo em exercício no ano de 2015,prescrita pela Lei 4.163/2015, reduziu-se a estrutura de gestão das UC emnível de departamento da Secretaria de Meio Ambiente – SEMA, antiga SDS,e, assim sendo, o CEUC passou a se chamar Departamento de MudançasClimáticas e Gestão de Unidades de Conservação – DEMUC. A pastaambiental em sua totalidade sofreu duros cortes que configurou em uma de-sidratação de recursos pessoais, técnicos e financeiros para o enfraquecimentodo setor.

Segundo Meirelles (2017), neste período das reformas administrati-vas, as despesas empenhadas representaram somente 0,47% do orçamento es-tadual, indicando que o setor deixou de ser uma prioridade ao Estado, que atéentão vinha tendo avanços significativos para a gestão e o fomento à governançaambiental. A SEMA teve uma redução de 75% em suas despesas realizadas noano de 2015, o que representou uma ainda maior dependência dos recursosexternos ao governo do estado – a saber, recursos de programas do governofederal via Ministério do Meio Ambiente e de organismos internacionais paraa gestão ambiental e do clima. Em 2013, o Tribunal de Contas do Estado do

50 Atualmente no Amazonas, tem-se discutido propostas que procuram atender a interesses na recategorização eredefinição territorial de suas áreas protegidas, agindo em convergência com as medidas provisórias propostas emnível nacional. Tais interesses resultariam em um cenário alarmante de redução dos atuais milhões de hectaresprotegidos e da ampliação dos casos de conflitos agrários e ambientais.

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Amazonas – TCE-AM já havia apontado, em auditoria ambiental realizada,os riscos de uma alta dependência de recursos externos, provenientes de orga-nismos internacionais de cooperação e conservação ambiental, por parte doCEUC, à época (Amazonas, 2013; RADAELLI & WITKOSKI, 2015).

Isto reflete ainda em uma baixa disponibilidade de efetivo técnico napasta ambiental. Atualmente, segundo relatos informais, os profissionais doDEMUC são contratados comissionados ou bolsistas financiados por projetosdestes organismos internacionais, ou seja, não há posições que sejam ocupadaspor técnicos concursados, senão aqueles transferidos de outros setores do go-verno, o que aponta para uma extrema instabilidade institucional. A imple-mentação efetiva das leis ambientais do estado, prevista de maneira técnico-científica, portanto, ficam à mercê da superficialidade das medidas governa-mentais e a flutuação dos recursos externos.

Em articulação às reformas administrativas que desidrataram o setorambiental no estado, o poder executivo à época encaminhou à AssembleiaLegislativa do Estado do Amazonas - ALE-AM um projeto de lei de suaelaboração que acabou sendo rapidamente aprovado e se tornou a Lei Ordiná-ria N° 4.185/2015 que, a julgar pela ausência de celeridade dos órgãos fede-rais de licenciamento implicando em prejuízos ao andamento dos processosdo Amazonas, transfere a competência primeira de licenciamento ambientalao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas – IPAAM (AMAZO-NAS, 2015).

Tal resolução contém um grau de periculosidade em se tratando desolicitações de exploração em territórios juridicamente estabelecidos como áreasprotegidas, nas quais o processo de impedimento das ações por parte da Funaiou do Instituto Chico Mendes – ICMBio se tornariam minimamente difi-cultado. Além destes, as decisões do IPHAN e do Ibama seriam sobrepostaspela decisão primeira do órgão de fiscalização ambiental do estado, que, ironi-camente, é desprovido de recursos humanos e técnicos em quantidade ade-quada para ser o responsável majoritário dos licenciamentos, além de não pos-suir estrutura de gestão e fiscalização capilarizada pelas regiões interioranas do

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extenso estado do Amazonas. A lei se encontra interpelada pelo MinistérioPúblico Federal.

Os fatos por si só são graves, e se tornam ainda mais ao serem justapos-tos em um quebra-cabeça que gera a paisagem nublada de uma políticaambiental de Estado frágil, e que pode ser ainda mais fragilizada. O preceden-te para o surgimento de conflitos nesta situação política é grande, e cresce àmedida que garimpeiros e madeireiros, com interesses diretos na exploraçãopredatória dos bens naturais, realizam articulações com comerciantes e políti-cos locais. Os trabalhadores cooptados para prestarem serviços nestas cadeiasextrativas o fazem naturalizando sua lógica predatória a partir da impotênciacausada pela falta de oportunidades e alternativas econômicas. Questionadoacerca de seu conhecimento sobre os rendimentos do garimpo e se ele já haviavisto esse ouro que é expropriado do Jandiatuba, um dos interlocutores Kambebarespondeu de pronto:

Muita quantidade. Inclusive agora nesses daí [atuais ga-rimpeiros em operação], a gente teve a abordagem quandoeles tavam fazendo a apuração do ouro e a gente via aquantia assim, calculadamente assim, um quilo e meio, doisquilo, em cada batida que eles chamam né, que eles traba-lham, assim, 24h [de trabalho] eles fazem a busca do ouro.Tive conversando com um garimpeiro que ele sempre sedeu aqui comigo né, sempre vinha aqui né, atrás de com-prar galinha, ver se tinha alguma banana, alguma coisa pracomprar... E aí em conversa eu sempre me informei né, [per-guntei] ‘quanto vocês adquirem assim por mês?’, ele disse‘olha, depende... De onde a gente acha mermo, a genteadquire produção que dá pra suprir a necessidade da draga,que é muita despesa, porque às vezes quebra peça né, temque mandar pedir [de fora do município] e aí tem que pa-gar os trabalhadores... Mas aí sobra! Sobra uma quantia...’,ele só não fez dizer a quantia né, mas sobra uma quantiasem dúvida deve ser grande né. (L. A. R., pescador Kambeba,pesquisa de campo, 2016)

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A paisagem nublada das políticas públicas ambientais fragilizadas pro-duz discursos de interesses economicistas dos bens naturais e abre margempara flexibilizações que podem ser impactantes ambientalmente. Exemplodisto é a rediscussão do Código de Mineração, datado de 1967, posto comocaráter de urgência no Congresso Nacional desde 2013. A ideia é que o textodo Código seja atualizado no que estão denominando de “Novo MarcoRegulatório da Mineração”. As principais modificações propostas se dão noâmbito dos procedimentos de concessão da exploração mineral, da criação doórgão regulador Agência Nacional de Mineração (ANM) – em substituiçãoao DNPM – e de ajustes da política fiscal de arrecadação do Estado a partir daconcessão da exploração.

O retorno deste tema à pauta tem motivações econômicas, mas tam-bém políticas à medida que o setor tem se articulado a partir de financiamentode campanhas políticas de congressistas. No âmbito dos interesses econômi-cos, o objetivo fim e que dá mais força ao discurso do setor, é o fato da balançacomercial da mineração ter grande peso na conjuntura do superávit da balançacomercial nacional, superando sua média a partir de meados de 2009 e perma-necendo acima desde então.

Estas questões estão mais relacionadas, obviamente, ao patamar maisalto do setor mineral, que é gerido por grandes capitais nacionais e estrangei-ros, e não está relacionado à realidade local a qual este trabalho se debruça.Contudo, as alterações de dispositivos legais no Congresso nacional acabampor afetar, em maior ou menor grau, os garimpeiros locais, menores, informaise/ou ilegais.

Todo o exposto apresentado até aqui consiste em exemplificações deum esquema explicativo apoiado na noção de ausência-presente do Estado.Trata-se de situações que denotam desinteresses interessados, ou seja, as au-sências interessadas das políticas ambientais. Estas se mostram voltadas para ouso dos bens como recursos naturais numa lógica expropriadora, cujos efeitosse fazem sentir no cotidiano dos Kambeba subjugados à ação de donos degarimpo e madeireiros.

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Conflitos sociais

As escolhas teóricas que fiz no decorrer deste trabalho de pesquisa melevaram optar pela descrição criteriosa e pormenorizada das ocorrências de con-flito empiricamente observadas no Jandiatuba, que não correspondem aos exem-plos relativos às situações teóricas pré-definidas e mecanicamente aplicadas.

Do meu ponto de vista, os antagonismos no Jandiatuba não devem serpensados como uma mera ilustração de noções teóricas, mesmo que essa nãotenha a pretensão de exemplificar e seja endossada usualmente pelo senso co-mum erudito. Assim, evitei caracterizá-los por meio da literatura sociológicasobre os conflitos sociais, correndo o risco de naturalizá-los. Em verdade, origor científico do trabalho descritivo tem o mérito de deixar fluir as situaçõessociais da realidade, sem aprisioná-las na normatividade dos manuais comoum leito de Procusto, como nos ajuda a refletir Weber – embora, paradoxal-mente, ele esteja formulando isso num trabalho de características manualescas51.

No caso do Jandiatuba, além dos conflitos envolvendo os outsidersaqui designados como garimpeiros, há ainda os conflitos intra-comunidades,envolvendo algumas das próprias famílias Kambeba, caracterizados sobretudopor divergências de concepção acerca dos usos econômicos de lagos de pesca. Ozoneamento dos lagos e o acordo de pesca resultante disto, orientado por pes-quisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA em 2008e 2009, colaborou para maiores entendimentos entre as famílias e mitigaçãode alguns conflitos internos a elas.

Para Bourdieu (2007), o lócus de conflito entre agentes sociais emdisputa por legitimidade – seja de ações, concepções, estilos de vida – estáreferido ao que ele denomina de campo. Nestes termos, as disputas no rioJandiatuba se dão a partir do domínio por agentes que detém o controle daextração do ouro, ou seja, sobre algum capital específico, seja econômico e/oupolítico. Então, na interpretação de Bourdieu, o campo social é a soma do

51 Weber (2001).

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“campo de forças e campo de lutas”, e cada campo específico – o ambiental,por exemplo – guarda relações correlativas com outros campos, ou seja, não háa possibilidade de existir na sociedade um campo isolado: os campos possuemdinâmicas internas próprias e ainda dinâmicas entre si que, por sua vez, dialo-gam com dinâmicas sociais amplificadas. Está-se diante de um conflitosocioambiental caracterizado pelo confronto de campos de força, nos quais seinteragem os componentes ambiental e social.

Ao contrário, na interpretação de Simmel (1983; 2013), os conflitossociais são representados como competição ou concorrência, levando sempre àreconciliação. A relevância sociológica destes conflitos se encontra na necessi-dade de quantidades proporcionais de ações e sensações divergentes para que asociedade alcance determinadas configurações. Ele considera, portanto, que asdiscordâncias não se apresentam como deficiências sociológicas, uma vez quesociedades não são constituídas somente por forças sociais convergentes. Estaposição positiva dos conflitos como essenciais à dinâmica da organização socialse opõe radicalmente à formulação de Bourdieu, e abre debate acerca da com-preensão dos conflitos sociais.

Em virtude deste debate, nas situações empíricas referidas aos Kambebado Jandiatuba, optei por analisá-las como conflitos socioambientais, numaperspectiva dinâmica e relacional.

Sobre a tipologia dos conflitos sociais

Num esforço analítico de apreciação da teoria sociológica, senti-melevada a estabelecer uma interlocução crítica com o exercício de tipologias dosconflitos sociais. Com base em Weber (2001), a reflexão e a construção detipos ideais não são de interesse final, e sim um meio de conhecimento darealidade, acessada por meio da ciência empírica a qual a ciência social preten-de praticar. Ressalta-se que o quadro conceitual gerado quando do uso destaabordagem de compreensão da realidade não se confunde com um preceitonormativo, como se fosse um exemplo que deve caber de forma hermética eforçada na realidade expressa.

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Depreendi das leituras de Santos (2007) que se pode estabelecer umaclassificação dos conflitos em latentes, manifestos e demais tipos expressos noquadro 2. O autor entende como conflitos latentes as tensões que, por algumarazão, são veladas por quaisquer dinâmicas sociopolíticas e são invisibilizadosem maior ou menor grau. Os conflitos manifestos são, por sua vez, os queganham um amplo reconhecimento social de quem o vivencia direta ou indi-retamente e que, contudo, não detém força política suficiente para ser pautadoem espaços de reivindicação, mediação e resolução de conflitos. Em certa me-dida, são abafados no meio do processo.

Para além da reflexão de Santos (2007) e recorrendo a interpretaçãode Little (2004), estabeleci dois novos tipos de conflitos. Um de caráter maisgeral, que pode ocorrer entre quaisquer outros graus de conflitos, que são osconflitos intermitentes, expressos de maneira interrompida, cíclica oudescontínua, conforme sazonalidade ou agenda política, por exemplo, e outrode caráter mais intermediário de conflito que são os conflitos iminentes, carac-terizados pelas tensões simbólicas de medos, aflições e constrangimentos.

Quadro 2 - Tipologia dos conflitos sociais

Fonte: Elaborado pela autora com contribuições de Santos (2007) e Little (2004).

Para além da reflexão de Santos (2007) e inspirada em Little (2004), poderia estabelecer dois novos tipos de conflitos, e assim o fiz. Um de caráter mais geral, que são os conflitos intermitentes, expressos de maneira interrompida, cíclica ou descontínua, conforme sazonalidade ou agenda política, por exemplo. E outro de caráter mais intermediário que são os conflitos iminentes, caracterizados pelas tensões simbólicas de medos, aflições e constrangimentos. Entretanto, esta tipologia se revelou teoricamente insuficiente para explicar as realidades localizadas.

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Consoante tal explicação, os conflitos podem apresentar estágios querepresentem dois ou mais tipos destes elencados ao mesmo tempo; não é im-pedimento, por exemplo, que um conflito que se expresse de maneira inter-mitente possa também conter um grau de naturalização em si. Neste sentido,cabe a relativização de que a presente tipologia de graus e expressões de confli-tos não são fechadas e uníssonas, representando a totalidade da realidade. Pelocontrário, são partes gerais, tipos-ideais, que podem explicar uma parcela dosconflitos sociais, sejam eles ambientais ou não. Nesse sentido, não serve deesquema em que se pode incluir a realidade de maneira exemplar (WEBER,2001, p.140).

Conflitos socioambientais

Em se tratando de conflitos socioambientais, tal como a pesquisa aborda,recorri a Zhouri & Laschefski (2014) apoiados em Acselrad (2004) que afir-mam que o estímulo para a organização destes povos atingidos por impactosindesejáveis se dá justamente a partir da divergência entre os sentidos atribu-ídos à natureza, que “comprometem a coexistência entre distintas práticassocioespaciais” ou as territorialidades dos povos originários. Tais conflitos, in-clusive, fazem emergir as contradições impostas aos atingidos que, sob manei-ra autoritária, não somente são excluídos dos processos como também devemarcar com todo ônus resultante. Dentre eles, os que representam passivosambientais, tal como a poluição que se relata do rio Jandiatuba.

Estudar estes mesmos conflitos é [...], para os envolvidosna busca de processos mais democráticos de ordenamentodo território, a ocasião de dar visibilidade, no debate sobre agestão das águas, dos solos, da biodiversidade e dasinfraestruturas urbanas, aos distintos atores sociais que re-sistem aos processos de monopolização dos recursosambientais nas mãos de grandes interesses econômicos(ACSELRAD, 2004, p. 10).

Esse quadro sintetiza o percurso que realizei no exercício de uma análise reflexiva. Contudo, a presente tipologia, quando submetida a uma leitura crítica, e contrastada com as narrativas dos Kambeba, revelou-se uma teoria de pouco poder interpretativo das situações empiricamente observadas. Neste sentido, portanto, não representa um esquema capaz de propiciar uma compreensão sociológica, sobretudo porque se adotou uma abordagem descritiva dos processos sociais, e esta se contrapõe aos esquemas formais.

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Consoante tal explicação, os conflitos podem apresentar estágios querepresentem dois ou mais tipos destes elencados ao mesmo tempo; não é im-pedimento, por exemplo, que um conflito que se expresse de maneira inter-mitente possa também conter um grau de naturalização em si. Neste sentido,cabe a relativização de que a presente tipologia de graus e expressões de confli-tos não são fechadas e uníssonas, representando a totalidade da realidade. Pelocontrário, são partes gerais, tipos-ideais, que podem explicar uma parcela dosconflitos sociais, sejam eles ambientais ou não. Nesse sentido, não serve deesquema em que se pode incluir a realidade de maneira exemplar (WEBER,2001, p.140).

Conflitos socioambientais

Em se tratando de conflitos socioambientais, tal como a pesquisa aborda,recorri a Zhouri & Laschefski (2014) apoiados em Acselrad (2004) que afir-mam que o estímulo para a organização destes povos atingidos por impactosindesejáveis se dá justamente a partir da divergência entre os sentidos atribu-ídos à natureza, que “comprometem a coexistência entre distintas práticassocioespaciais” ou as territorialidades dos povos originários. Tais conflitos, in-clusive, fazem emergir as contradições impostas aos atingidos que, sob manei-ra autoritária, não somente são excluídos dos processos como também devemarcar com todo ônus resultante. Dentre eles, os que representam passivosambientais, tal como a poluição que se relata do rio Jandiatuba.

Estudar estes mesmos conflitos é [...], para os envolvidosna busca de processos mais democráticos de ordenamentodo território, a ocasião de dar visibilidade, no debate sobre agestão das águas, dos solos, da biodiversidade e dasinfraestruturas urbanas, aos distintos atores sociais que re-sistem aos processos de monopolização dos recursosambientais nas mãos de grandes interesses econômicos(ACSELRAD, 2004, p. 10).

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Bensaïd (2017) utiliza a ideia de Harvey sobre a nova fase em que ocapitalismo se encontra que é caracterizada pela “acumulação por despossessão”e afirma que esta é uma condição de sobrevivência do sistema, que vai além daapropriação de meios de produção e forças produtivas e se estende ao que eledenomina de “apropriação comercial da história cultural”, englobando especi-almente o turismo e a pilhagem de patrimônios culturais. Segundo o autor,essa ofensiva passa pela supressão dos direitos sociais e pela criminalização dasresistências sociais. O alerta que ele faz é relembrando os estudos de Marx(1857-1858) sobre o furto de madeira: “por trás da aparência consensual doscostumes, subsiste um antagonismo latente entre os direitos consuetudináriosdos dominantes e os dos dominados” (p. 63).

Historicamente, o rio Jandiatuba era descrito por naturalistas viajantese cronistas como uma região de incidência de bens naturais, como madeiras delei, que eram objeto de ação predatória constante por parte de intrusos quemobilizavam força de trabalho indígena.

Retomando analiticamente a relação entre colonialidade e Estado, pode-se dizer que sob este pano de fundo de conflitos sociais, desvela-se o caráterfantasmagórico deste Estado, que chamo de Estado espectral e é compostopelas noções presença-ausente e ausência-presente, discutidas até aqui. EsteEstado espectral se mostra presente em determinados momentos e para certosgrupos sociais, e ausente para outros. É presente no diagnóstico, classificação evaloração estigmatizantes do outro, e ausente no reconhecimento das diversasoutridades. É presente na expropriação de bens naturais e na imobilização daforça de trabalho indígena, e ausente na divisão dos ativos ambientais e econô-micos conquistados unicamente pela força de trabalho, saberes e conhecimen-tos indígenas – colonos e missionários não conheceram as drogas do sertão,nem saberiam se embrenhar na mata para o extrativismo. É presente na impo-sição de um modo de vida, de organização sociopolítica, língua, crença e sím-bolo à imagem e semelhança do colonizador, e ausente no reconhecimento dosmodos de vida, sociabilidades, línguas, cosmologias indígenas. Em síntese, umEstado que é presente como operador da morte física, espiritual e cultural dosindígenas, e ausente no diálogo e na audição das outridades.

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CAPÍTULO 3

CONHECER PARA RECONHECER: TERRITÓRIO EDIREITOS GARANTIDOS COMO VIA PARA O

ECODESENVOLVIMENTO

Afirmamos que para nós, todas nossas histórias reais nosdá segurança e direito sobre esta terra. Queremos respeitoe direito de sermos consultados e ouvidos, não vamos espe-rar a demarcação vir para ter direito a nossa terra, quem faza autodemarcação e diz que ela é nossa somos nós, porquenela nascemos, vivemos e moramos, temos vínculo e conhe-cimentos muito fortes sobre tudo que nela existe [...]. Ogoverno tem o dever de respeitar e nos dar apoio nas nossasdecisões. (Trecho do Protocolo de Reconhecimento Étnicodo Povo Omágua-Kambeba)

Conhecer os povos indígenas e seus direitos originários é premissa paraque haja o devido reconhecimento, étnica e territorialmente. Como forma dese fazerem conhecidos e reconhecidos em suas sociabilidades, organização po-lítica, lutas e reivindicações é que foi construído o Protocolo de Reconheci-mento Étnico do Povo Omágua-Kambeba, registrado no excerto acima repro-duzido52. Nele, constam as diversas demandas do movimento Kambeba, den-tre elas a proposição de demarcação territorial – demonstrado a partir do mapaque ilustra sua reivindicação de território Kambeba –, que garante as expres-sões de suas territorialidades específicas (ALMEIDA, 2008) e sua segurança

52 O documento completo pode ser acessado em https://drive.google.com/file/d/1JIHGky66c6PH_xaN3YsVBgmZ12Bvy4uO/view.

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etnoambiental, nesta que é a região de origem deste povo e que, porém, não hánenhuma instância jurídica que até o momento tenha procedido o reconheci-mento de seu território. Não obstante, administrativamente, existe um proces-so tramitando na Funai para a solicitação de estudos de identificação da TI.

3.1 O interesse na demarcação de terras e a fragilidade das terras demarcadas

Anteriormente à Constituição de 1988, a lógica do Estado com rela-ção aos indígenas era assimiladora, integradora, com vistas a torná-los sujeitosde direito individual e juridicamente capazes de negociação. Era marcada porum processo de aculturação produzindo, inclusive, confusão identitária aodenominá-los de “silvícolas”, conforme demonstra o primeiro artigo do cha-mado Estatuto do Índio. Este corresponde à Lei n° 6.001/73, que “regula asituação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com opropósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosa-mente, à comunhão nacional.” (SOUZA FILHO, 2003). Segundo a formu-lação do autor, sob esta lógica de Estado, o genocídio dos indígenas teve segui-mento a cada tentativa de integração dos povos, fazendo com que perdessemnão somente visibilidade, como suas próprias vidas.

No âmbito da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, a partici-pação dos movimentos indígenas organizados foi garantida. A Constituiçãode 1988 estabeleceu os direitos coletivos e, embora de maneira tímida, reco-nhece o país como formado por uma diversidade étnica e cultural. Souza Filho(2003) aponta este fato como positivo, mas o relativiza afirmando que: i)embora as mudanças legais advindas com as constituições da década de 80 naAmérica Latina como um todo, no que tange à propriedade e território, per-manece a dificuldade para que juízes e demais agentes interpretem as leis deforma divergente dos interesses do instituto da propriedade privada ou dodireito patrimonial; ii) faz-se necessária a revisão do chamado Estatuto doÍndio – lei que segue a lógica individualista e assimilacionista dos direitos dospovos – e afirma que houve discussões para tal, mobilizadas pelas organizações

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indígenas após a promulgação da Constituição, reformulando a lei e a deno-minando de Estatuto dos Povos Indígenas. Após diversas tentativas de aprova-ção no legislativo, o texto da lei permanece em tramitação, segundo o site doSenado53.

A política indigenista oficial da Fundação Nacional do Índio – Funaié dividida entre ações voltadas tanto para os povos contatados, como os derecente contato e os povos isolados. Tal política é pautada a partir de princípi-os como o respeito a autodeterminação étnica, o da precaução54, o da garantiapela posse de terras originalmente ocupadas e o da proteção ambiental destesterritórios – em geral, a partir da demarcação territorial e suas políticas ineren-tes (RIBEIRO & AMORIM, 2017). São considerados povos indígenas iso-lados os agrupamentos que fizeram a opção de não manter contato com apopulação não-indígena, povos pertencentes a outros grupos étnicos ou com oEstado, enquanto que os povos de recente contato se caracterizam como agru-pamentos que, devido ao pouco histórico de contato, detém insuficiente co-nhecimento sobre a língua e organização da população não-indígena.

A demarcação das terras indígenas é apoiada pelo direito constitucio-nal, previsto em seu Art. 231, que assegura os direitos originários sobre asterras tradicionalmente ocupadas e a competência da União no processo dedemarcação, proteção e de fazer cumprir o respeito a seus bens.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização soci-al, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos origi-nários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, com-petindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar to-dos os seus bens. (BRASIL, 1988)

Embora todas as fragilidades conjunturais, políticas ou institucionaisda Funai, o processo de demarcação das terras indígenas é visto pelo movimen-

53 PLS 169/2016. Disponível em http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125563. Acesso em 06/10/2019. Registra-se que o último local de apreciação no Senado refere-se à Comissão de Constituição, Justiça eCidadania em 14/02/2019.

54 Princípio conhecido da área do direito ambiental que tem sua aplicação requerida em casos de incertezas científicasacerca dos impactos socioambientais de uma ação. O princípio é acionado uma vez que a incerteza científica não deveser utilizada como motivação para postergar medidas de prevenção de danos (MACHADO, 2004).

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to indígena como importante e segura garantia de proteção sociocultural eambiental. Isto se dá a partir do entendimento de que, sendo detentores dadocumentação jurídico-institucional da posse coletiva das terras, os processosde autofiscalização e autoproteção do território pelas aldeias são mais eficien-tes diante do trânsito de invasores.

Os relatos dos Kambeba do rio Jandiatuba, em torno destas questões,apresentam a posição de enfrentamento com que os agentes invasores se apre-sentam aos indígenas quando estes solicitam a saída daqueles de seus territóri-os. As respostas em justificativa à presença e uso dos bens naturais desta loca-lidade fazem referência à inexistência de proprietários individuais ou a condi-ção de serem terras públicas. Acerca do entendimento do que seriam as “terrasda União” que eles têm conhecimento,

A madeira começou que se descuidavam, descuidavam, aíinventaram da tal de terra da união. Quando eles inventa-ram, até foi o tempo que o S* foi prefeito aqui em SPO, aí eleque inventou esse negócio de terra da união, aí faziam aque-les mutirão de motosserra. Terra da união é que todo mun-do mete a mão. Era isso que falavam. Aí eles se danaram,desbulhou e todo mundo meteu a mão mermo, pessoal en-traram. E de lá não parou mais não, é todo tempo. Traba-lham muito por aí. Aí pra dentro tem muito nosafluentezinho, no rio mesmo. Ninguém não cuida aqui, nin-guém não repara nada não. (B. R. A., agricultor Kambeba,pesquisa de campo, 2016, grifos nossos).

Uma das assimetrias de interesses que podemos destacar entre os agen-tes sociais envolvidos são as diferentes concepções e interpretações que estesconferem a um determinado espaço territorial, o rio Jandiatuba, e aos bensnaturais ali dispostos. Utilizando as categorias de direito de propriedade en-volvidos em relação ao manejo dos recursos de propriedade comum a partir deFeeny et al (1990), podemos inferir de forma relacional que, enquanto osindígenas moradores da calha do rio o veem como “propriedade comunal”,agentes externos que trabalham na extração do ouro ou na pesca ilegal o veemcomo “propriedade de livre acesso”. O poder público municipal, por sua vez, ovê como “propriedade estatal”, passível de licença de operação e uso para os

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agentes que a solicitarem. Tem-se formado, assim, um cenário de repetidosataques aos direitos constitucionais dos povos indígenas ali estabelecidos, nãoconsultados em nenhuma instância, formal ou informalmente, acerca dointrusamento das atividades garimpeiras. Consoante a argumentação dos au-tores mencionados, foi possível a elaboração do quadro síntese abaixo apresen-tado.

O fato de veios hídricos serem de propriedade e gestão da União trazconfusões e sobreposições de tomadas de decisão quanto ao uso efetivo destesrecursos, o que pode resultar nas assimetrias de poder e conflitos entre osagentes sociais envolvidos, sobretudo em se tratando de sujeitos de direitoscoletivos como povos originários. Na interpretação de juristas, esta dimensão

Quadro 3 - Manejo dos bens naturais conforme modalidades de propriedade

Fonte: Feeny et al (1990).Org.: Radaelli, 2018.

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está intimamente ligada à formação do Estado moderno, que constituiu e édefensor do individualismo jurídico, pautado na propriedade privada e noscontratos estabelecidos entre indivíduos, o que vai na contramão da concepçãode direitos coletivos, este sim adequado à realidade dos povos indígenas (SOU-ZA FILHO, 2003). Centra-se nesta questão a demarcação do território paraque sejam plenamente reconhecidos e garantidos os direitos coletivos dos po-vos originários, tal como os Kambeba do rio Jandiatuba.

Um exemplo desta tentativa de não-reconhecimento de direitos cole-tivos foi a discussão do chamado “marco temporal das terras indígenas”, susci-tado após os recursos apresentados por recorrentes aos processos de territoria-lização das terras Raposa Serra do Sol (RR), em 2009, e Guarani-Kaiowá(MT), em 2014, junto ao Supremo Tribunal Federal. Após estes dois casosemblemáticos, a discussão do marco temporal retornou à tona na discussão dosprocessos que envolvem a demarcação de outras três TIs. Em cada um doscasos, a Frente Parlamentar da Agropecuária – FPA foi ganhando peso e forçapolítica para influenciar as discussões no Supremo. Ela representa, juntamen-te com os grandes grupos mineradores, o núcleo duro dos responsáveis pelasmaiores ofensivas aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionaisdos últimos anos55.

Popularmente conhecida como bancada ruralista, a FPA éinstitucionalmente composta por 15 parlamentares que assumem cargos in-ternos de presidência, vice-presidência, secretaria e coordenações temáticas,mas que é capaz de reunir 207 parlamentares que direta ou indiretamente serelacionam com o tema e colaboram com a organização política no cerne doCongresso. Segundo o sítio da bancada56, seu objetivo é ampliar as políticaspúblicas para o desenvolvimento do agronegócio nacional, tendo como priori-

55 "Bancada ruralista já propôs 25 Projetos de Lei que ameaçam demarcação de terras indígenas e quilombolas",disponível em https://deolhonosruralistas.com.br/2017/09/11/bancada-ruralista-ja-propos-25-projetos-de-lei-que-ameacam-demarcacao-de-terras-indigenas-e-quilombolas/; "Projeto ruralista que altera Estatuto do Índio e cria leiantidemarcação pode ser votado na Câmara" https://www.cimi.org.br/2018/05/projeto-ruralista-que-altera-estatuto-do-indio-e-cria-lei-antidemarcacao-pode-ser-votado-na-camara/.

56 http://www.fpagropecuaria.org.br/, acessado em 18 de janeiro de 2018.

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dades a “modernização” das legislações trabalhista, fundiária e tributária, alémda “regulamentação da questão de terras indígenas e áreas de quilombolas,para garantir a segurança jurídica necessária à competitividade do setor.” Alémde deixar claros seus objetivos políticos em prol de seu campo, afirma-se como“exemplo de grupo de interesse e de pressão bem-sucedido” sendo o “maisinfluente nas discussões, articulações e negociações”.

Embora a FPA esteja indiretamente ligada aos setores políticos da mi-neração ou garimpagem, sua atuação incisiva em torno dos objetivos economicistasdo setor a que está a serviço beneficia os demais que percebem toda e qualquerracionalidade diferente da hegemônica – tal como a dos povos indígenas – comoentraves ao desenvolvimento ou “muita terra para pouco ‘índio’”.

Uma das expressões máximas dos riscos destas articulações em favor dogrande negócio, do capital transnacional e daquilo que a FPA chama de “regu-lamentação” das terras tradicionalmente ocupadas, é a proposta de emendaconstitucional PEC 215/2000. Esta proposta altera a esfera de competênciapara a demarcação dos territórios: transferir a responsabilidade das discussões,homologações e decretos de demarcação do poder executivo, como é realizadoatualmente, para o poder legislativo. Ou seja, o Congresso Nacional passaria aser o ente decisivo para aprovar ou reprovar pedidos de demarcações, bemcomo alterar em delimitação ou categoria os atuais territórios já demarcados.

Ora, se os maiores grupos políticos organizados são explicitamentecontrários aos direitos coletivos de indígenas, quilombolas e demais povos ecomunidades tradicionais, fica evidente a gravidade caso esta proposta de emendavenha a ser aprovada. Os interesses econômicos por tais territórios prevalecerãoferindo a autonomia territorial e política dos povos e violando convenções in-ternacionais que garantem seus direitos, das quais o Brasil é signatário, talcomo a 169 da OIT. Portanto, o cenário é, no mínimo, alarmante para ospovos indígenas, bem como para os movimentos sociais e ambientalistas. Deum lado, diversas articulações institucionais para desidratar e desmantelar osórgãos públicos responsáveis pela democratização do acesso à terra e pela defe-sa dos direitos de minorias socioambientais, como Funai e Incra – que já fun-

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cionavam a duras penas57. De outro lado, o grande capital avança sobre asterras tradicionalmente ocupadas conforme seus interesses exploratórios, co-metendo violações aos direitos humanos.

Tal influência que a FPA tem pode ser confirmada quando se compa-ra a celeridade dos processos que envolvam as referidas “regulamentações” quantoa terras indígenas e quilombolas. A respeito das terras indígenas, o principalargumento impetrado é o da temporalidade da ocupação das terras, a qualdeve se guiar pela data de 05 de outubro de 1988, de promulgação da Cons-tituição Federal. Este argumento corresponde a um dos quatro critérios cria-dos pelo Supremo (2009) para reconhecer determinada localidade como terraindígena, e categoriza como terra indígena as que tiveram efetiva ocupaçãopelos povos na data da promulgação da Constituição, não se caracterizandocomo tais as terras demarcadas após este marco temporal.

A dúvida constitucional deste critério é explícita ao deparar com osparágrafos primeiro, segundo e quarto do Art. 231 da Constituição, os quaisdeixam claro a habitação em caráter permanente, porém sem referência a umadata de marco,

Art. 231. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pe-los índios as por eles habitadas em caráter permanente,as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescin-díveis à preservação dos recursos ambientais necessários aseu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física ecultural, segundo seus usos, costumes e tradições.§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios des-tinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufrutoexclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelasexistentes. [...]§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis eindisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. (BRA-SIL, 1988)

57 Dentre as articulações, estão a Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI para investigar as atuações da Funai e do Incrana demarcação de terras de povos. O relator da CPI é o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT) que compõe o grupopolítico da Frente Parlamentar da Agropecuária. O texto evidencia a investigação de servidores públicos, liderançassociais e antropólogos.

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A imprecisão deste argumento como um dos critérios de caracteriza-ção de uma terra indígena envolve, ainda, o fato de não considerar as históricase recorrentes expulsões dos povos de suas terras por interesses privados oupúblicos quando se referem a grandes obras de infraestrutura que necessitam“passar” pelas terras indígenas. Exemplos disto, dentre tantos, são a BR-17458

e a UHE de Balbina invadindo o território dos Waimiri-Atroari, conformediscute Schwade (2012)59, a remoção dos Panará para a construção da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, e a expulsão dos Pataxó Hãhãhãe de suasterras na Bahia pela elite produtora de cacau, como relata Souza Filho (2003).A respeito disso, Pegorari (2017) e Viegas (2017) colaboram apontando ou-tros aspectos necessários de consideração, mas que a decisão os tornouirrelevantes,

A verdade é que o estabelecimento arbitrário da referidadata carrega o vício da anti-historicidade, ignorando o pas-sado indigenista brasileiro e o caráter originário de seusdireitos, assim como o histórico compartilhado das gravesviolações dos direitos humanos desses povos por parte departiculares e do próprio Estado (PEGORARI, 2017).

A interpretação que estabelece a promulgação da Consti-tuição de 1988 como limite temporal para estagnação dosespaços territoriais destinados aos povos indígenasdesconsidera o efeito que a própria inovação normativa trou-xe a essas comunidades a partir de suas mobilizações antesda Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e da Con-venção 169/OIT (VIEGAS, 2017).

Os múltiplos interesses por parte do grupo étnico para a demarcaçãolegal do território se centram em questões identitárias e de reafirmação. Con-tudo, face à constante ameaça exógena aos bens naturais de uso comum alidispostos, e simbolicamente à sua cultura, a discussão da demarcação envolvetambém questões acerca da segurança ambiental, étnica e cultural dos povos, e

58 Rodovia que liga Manaus à Boa Vista, Roraima.59 Ver também documento do Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas (2014).

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o interesse pela tutela do Estado como meio de garantir a defesa de seu terri-tório. Ainda que esta tutela seja complexa, ela exerce uma função regularizadorae de mediação intercultural e política (OLIVEIRA, 2004) e é, por vezes,dispensável aos olhos dos Kambeba, que acreditam que “a Funai não faz nadapor nós”.

Tanto ficava bom pra nós, como pra eles [munícipes] tam-bém porque a gente tá preservando. A gente mora aqui hámuito tempo. Eu falo pra meus filhos plantarem... Eu nãovou mais sair daqui porque já tô com essa idade, né, entãoeles tem que plantar. Mandioca, fruta... Fazerem um sítio.Porque nós não tem terra lá fora [município], só temos aquimesmo. (B. R. A., agricultor Kambeba, pesquisa de campo,2016).

Para Oliveira (2004), enquanto os territórios são inerentes a cada cul-tura, a territorialização é um processo social desencadeado pela instância polí-tica, sendo um movimento pelo qual comunidades indígenas se transformamem coletivos organizados, dotados de identidade própria, operando mecanis-mos de representatividade e organização social e ressignificando suas culturas– inclusive suas relações com o meio ambiente. Embora seja desencadeadopela instância política, o autor faz a ressalva de que o processo “não deve jamaisser entendido como de mão única, dirigido externamente e homogeneizador”,uma vez que tem caráter dialético, pois os grupos se apropriam do processo deacordo com seus interesses e crenças prioritários.

As territorialidades específicas que Almeida (2012) traz à discussão, porcontemplar pluralidades étnicas, são relevantes para a compreensão sociológicado que se infere como terras tradicionalmente ocupadas, quais sejam: terras in-dígenas, terras de quilombos, “castanhais do povo”, “comunidades de fundo efeichos de pasto”, comunidades ribeirinhas e babaçuais livres, por exemplo.Ou seja, terras “controladas de modo efetivo pelas suas respectivas comunida-des ou pelas formas organizativas que lhes correspondem”, como movimentos,associações, cooperativas ou sindicatos. Almeida faz esta discussão no âmbitodos interesses e efeitos sociais do processo galopante de concentração fundiária

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na Amazônia, considerando os direitos territoriais de povos e comunidadestradicionais e as pressões advindas de interesses que gravitam em torno domercado especulativo de terras.

O autor afirma que este cenário tem afetado de maneira profunda aconsolidação das formas diferenciadas de territorialidades específicas, mas osefeitos ainda não podem ser estimados com profundidade. Uma possível saídapara esta armadilha, a seu ver, é o emergir de formas organizativas mais autô-nomas e interligadas, apoiadas em mobilizações que denunciem a limitação doEstado na aplicação das normas jurídicas e, ao mesmo tempo, visualizem ins-trumentos políticos que assegurem os direitos territoriais que historicamentetem sido usurpados, contudo escapando do risco da tutela – o que pode limi-tar e/ou abafar a autonomia dos grupos na gestão de seus territórios. Pode-seperceber que a saída apontada por Almeida (2012) se aproxima da noção deterritorialização de Oliveira (2004) que, dialeticamente, age como construtorae afirmadora da identidade étnica individualizada de uma determinada co-munidade.

Para Oliveira (2004), os processos identitários devem ser visualizadosem contextos específicos e compreendidos como atos políticos. Os movimen-tos de reconhecimento intra e inter-étnicos foram acompanhados pelo reco-nhecimento destes pelas políticas de Estado que, desde a promulgação daConstituição de 1988, garantem direitos originários antes renegados ou rele-vados. Além disso, promoveram o acesso a bens e serviços básicos considerandosuas especificidades e ampliando sua renda para uma maior possibilidade demanutenção das formas de reprodução da vida social e de sua própria existên-cia. Neste repertório de direitos, encontram-se os relacionados a seus territóri-os e os bens naturais dispostos neles, garantindo a manifestação de suasterritorialidades.

Contudo, a reivindicação territorial passa a não mais ser ouvida peloEstado à medida que a área originária em questão apresenta interesses econô-micos maiores e pressões políticas institucionais (SOUZA FILHO, 2003)para se fazer valer o uso econômico e especulativo destas terras. Isto torna dedifícil garantia a aplicação desta legislação. O aparente (ou suposto) desinte-

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resse do Estado em solucionar certas questões envolvendo os direitos coletivosindígenas nos apresenta como sendo composto por interesses explícitos e

direcionados, que expressam a concentração de forças político-econômicas. Estaseria uma das faces do que designo como ausência-presente do Estado.

Neste contexto de luta por reconhecimento e pelos direitos originári-

os, inclui-se a variável não menos importante, e possível catalizadora de confli-tos socioambientais, que é a atividade garimpeira na calha do rio Jandiatuba.Ela se configura como radicalmente contrária para a vida ribeirinha não so-

mente das comunidades Kambeba ali localizadas, como também de comuni-dades Tikuna vizinhas, localizadas próximas da foz do Jandiatuba, no territó-rio demarcado da TI Nova Esperança, homologada em 2004.

Seja por ter uma diferente concepção de propriedade ou por conivên-cia à medida que a exploração lhe beneficia de diversas maneiras, o poderpúblico municipal, articulado com o estadual, vale-se do baixo nível de capital

político na mobilização coletiva das comunidades afetadas pela garimpagem.Esta tem ainda como amparo a institucionalização de medidas que fomentameste tipo de atividade econômica, tal como a lei de licenciamento citada ante-

riormente, com base no progresso econômico que ela proporciona, bandeiralevantada pelos últimos governos do estado do Amazonas. Resultantes desteprocesso, os conflitos socioambientais podem ser pensados como reflexo desta

ausência-presente do Estado, marcada por (des)interesses.Dois dos reflexos desta conjuntura de ausência-presente do Estado con-

forme os interesses dos grupos políticos no poder são, por um lado, a dificul-

dade e burocracia de demarcação de terras indígenas e, por outro, os recentesmovimentos de desidratação da Funai, que já dispunha de um quadro técnicoe orçamentário bastante limitado. O ato da demarcação de território tradicio-

nalmente ocupado por povos indígenas contatados é garantido pelo Decreton° 1775/96 e de competência do poder executivo. Uma das ilustrações destaburocracia estaria nas etapas de tramitação dos processos de reconhecimento

das Terras Indígenas: 1 estudos de identificação e delimitação, realizados porcorpo técnico para estudo antropológico; 2 registro do contraditório adminis-

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trativo60; 3 declaração dos limites territoriais; 4 demarcação física; 5 levanta-mento fundiário e cadastro dos ocupantes não-indígenas; 6 homologação dademarcação; 7 deslocamento e reassentamento dos ocupantes não-indígena,podendo inferir em indenização e/ou desapropriação; 8 registro da terra indí-gena na Secretária de Patrimônio da União; e 9 interdição da área para prote-ção étnico-territorial.

O trajeto institucional para realização de cada uma das etapassupracitadas é longo e tortuoso, envolvendo diversas instâncias do poder pú-blico federal e, em muitos casos, mais de uma instituição. De acordo com aFunai, em situações como de conflitos internos irreversíveis, impactos de gran-des empreendimentos ou eventuais impossibilidades técnicas de reconheci-mento do território tradicionalmente ocupado, o órgão age conforme o previs-to na Lei 6.001/73 e reconhece o direito territorial das comunidades na cate-goria de Reserva Indígena. O órgão classifica estas situações como “casos extra-ordinários”, contudo a realidade nos aponta que não são tão extraordináriosassim e dificilmente é conquistada a categorização de Reserva Indígena.

A baixa celeridade dos processos, para além das diversas instâncias en-volvidas e a burocracia do Estado, é influenciada pelos diversos (des)interessesfundiários nas localidades que tem a demarcação exigida pelos povos. Sobre-tudo quando esta localidade possui recursos naturais ou localização estratégicapara a exploração ou especulação do grande capital. A respeito disso e emcrítica à política indigenista do Estado, Ribeiro (1962) apud Davis (1978)defende que algumas pressões econômicas são tão contundentes que até mes-mo o destino dos mais isolados territórios indígenas pode ser determinado porpequenas alterações na sociedade brasileira ou flutuações de mercado na eco-nomia. As diversas fases da economia da borracha na Amazônia brasileira con-sistem em exemplos a serem levados em conta.

60 Segundo Di Pietro (2012), o princípio garante que a outra parte possa ser ouvida e ter direito de resposta quandouma das par tes alega ou protesta algo. Disto resulta o caráter dialético do processo, caminhando com diversascontrariedades ao longo do mesmo.

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Muito mais do que as garantias da lei, é a falta de interesseeconômico que garante ao índio a posse do nicho em quevive. A descoberta de qualquer coisa que possa ser explo-rada é sinônimo do dia do juízo final para os índios, que sãopressionados a abandonar suas terras, ou chacinados den-tro delas. E as descobertas econômicas não precisam serexcepcionais para que os índios sejam saqueados (RIBEI-RO, 1962 apud DAVIS, 1978, p. 41).

Ao ser questionado acerca do futuro esperado por ele com relação aoterritório das comunidades Kambeba no rio Jandiatuba, o interlocutor, ao pas-so que é otimista, também relativiza o otimismo trazendo a realidade da lutapela demarcação para a garantia da segurança territorial. Ressalta-se nesta falauma solidariedade interétnica e o efeito da experiência de demarcação de umpovo vizinho, os Tikuna.

Acredito e vou continuar acreditando primeiro na nossademarcação, e pro futuro ensinando as crianças e jovenscomo se trabalha na biodiversidade, na roça. Esse é nossomodo de viver e de ver as coisas. A partir do momento queeu entrei na luta, eu vou lutar até morrer. Falo isso pramulher e pros filhos. Não perco a esperança e não vou per-der. Os parentes Tikuna dizem assim ‘vocês sabem quantotempo nós lutamos pra conseguir a demarcação das nossasterras? Vinte anos! Lutando, indo em Brasília, brigandomesmo pra nós conseguir’. Então tenho colocado isso, nósainda estamos no início ainda! Eles [Tikuna] brigaram vin-te anos, quem sabe nós não vamos ter que brigar trinta[anos] pra chegar? Então vamos lutar, nós não vamos dei-xar isso desvanecer do que já começamos. Daqui pra frenteé se organizar mais. A luta é essa. (L. A. R., pescadorKambeba, pesquisa de campo, 2016).

Em concomitância com este processo de demarcação, usualmente lon-go que pode durar décadas, surge o agravante das forças políticas que desarti-culam o órgão indigenista por meio de uma alegada escassez de recursos orça-mentários e técnicos para apoio na gestão das já existentes terras indígenas.Simultaneamente, afeta o atendimento das demandas cada vez mais crescentesde demarcação de terras, visto a força dos movimentos sociais indígenas de

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auto reconhecimento e luta pelos direitos originários, inclusive a terra. Trata-se de uma política deliberada de contingenciamento e corte de recursos.

Segundo Ribeiro & Amorim (2017), este atual corte de recursos espe-cificamente das Frentes de Proteção Etnoambiental – FPEs da Funai foi de17% em relação a 2009. Em dados levantados pelo Instituto de Estudos Soci-oeconômicos - Inesc61, o corte do orçamento da Funai para despesas discricio-nárias foi de 54,8%. Para além destes contingenciamentos, houve corte nosrecursos humanos atingindo quase 20% de cargos comissionados. Os autoresapontam que para as FPEs, a relação de recursos humanos disponíveis é de umservidor para cada 300 mil hectares de terras indígenas. Por conta destas limi-tações, oito das vinte e sete Bases de Proteção Etnoambiental, localizadas es-trategicamente em pontos da Amazônia Legal, encontram-se desativadas. Su-blinho que as FPEs da Funai, que são ligadas diretamente à presidência doórgão, atuam junto aos “índios isolados” e de recente contato por meio depreceitos legais que impõem à Funai o dever de proteger, sem necessariamentecontatar tais grupos, preservando sua cultura e respeitando sua autonomia. NoAmazonas, existem 6 destas Frentes.

Dentre estas bases desativadas, encontra-se a do rio Jandiatuba, locali-zada na porção interior da TI Vale do Javari. Segundo os Kambeba partici-pantes da pesquisa, tal base se encontra paralisada desde 2008 e poderia tersido uma importante ferramenta, ainda que simbólica, para desencorajar osinvasores e suas atividades garimpeiras caso estivesse em funcionamento e comservidores em postos de vigilância.

Em dezembro de 2018, uma decisão liminar concedida em ação civilpública ajuizada pelo MPF, determinou a apresentação de cronograma de atu-ação por parte da Funai no prazo de 90 dias. Na ação civil pública, que seguetramitando na 1ª Vara Federal no Amazonas sob o nº 004249-82.2018.4.013200, o MPF argumenta que a crise financeira não pode serjustificativa para omissão da União na proteção dos “indígenas isolados” e de

61 http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc/2017/maio/politica-anti-indigena-avanca-funai-tem-cor te-de-mais-de-50-no-orcamento.

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recente contato. Estas informações coadunam com o que foi noticiado emperiódico de circulação regional no final de 2018.

Na ação civil pública, o MPF destaca, entre as bases daFunai que atuam com os índios isolados, a do rio Jandiatuba,vinculada à FPE Vale do Javari. A região em que está loca-lizada é a que concentra a maior quantidade de índios iso-lados reconhecida pela própria Funai. Segundo o MPF, abase do rio Jandiatuba foi fechada em 2014 e teve a re-construção iniciada no fim de 2017. Uma das consequênciasmais graves do fechamento e desestruturação da base doJandiatuba, aponta o MPF, foi a proliferação do garimpoilegal com o aumento da atuação de garimpeiros. Até 2014,os registros da Funai somente indicavam a presença debalsas e dragas de garimpo a considerável distância abaixoda base do Jandiatuba. Após o fechamento, não só elas‘subiram o rio’ em direção à base e à TI Vale do Javari como,com frequência e intensidade muito maiores, ultrapassa-ram a área de proteção e ingressaram na TI, como demons-tra relato contido em documento da Funai. (Cf. “Bases deproteção a índios terão reforço” do periódico Diário doAmazonas, 22 de dezembro de 2018)

Embora não estejam na interlocução estabelecida entre a pesquisadorae os Kambeba, há indagações que surgiram na relação de pesquisa relativas àausência de perspectiva para a ação demarcatória por parte dos órgãos oficiaiscompetentes. Sobretudo diante dos obstáculos financeiros, técnicos, burocrá-ticos e de interesses difusos, poderíamos pensar por contraste uma possibilida-de a garantia da demarcação territorial e da defesa étnica através do processo deautodemarcação dos Kambeba? Pensando a partir dos direitos constitucionais,esta possibilidade pode não representar a melhor das opções, porquanto estespreveem uma ação efetiva do Estado para fins de demarcação, ou seja, trata-sede um Estado presente. Mas em que medida o “direito moderno” representaefetivamente a cultura e os interesses dos povos indígenas, uma vez que oEstado se mostra ausente? E se considerarmos então que ele não representa ourepresenta parcamente os interesses indígenas, por qual razão não seria possí-vel legitimar os movimentos de autodeterminação e autodemarcação territorial?

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Neste sentido, Neves (2003) menciona um caso de autodemarcação daetnia Kulina na região do Alto Rio Purus, no estado do Acre, como uma dasprimeiras iniciativas para tal cumprimento de uma reivindicação que perdura-va por anos. Diante das ambiguidades legais, desinteresses, burocracias einoperâncias por parte do Estado e sua obrigação constitucional de reconheci-mento, os índios Kulina assumiram a função instalando placas e marcos queindicavam os limites da terra. Ainda que estes instrumentos de sinalizaçãoestivessem fora dos padrões oficiais expedidos pela Funai e governo federal,segundo o autor, eles serviram para afirmação territorial e afugentaram os in-trusos que frequentemente invadiam a área. O exemplo dos Kulina do AltoPurus relatada na assembleia geral do povo, em 1990, inspirou os Kulina doRio Juruá, Amazonas, a fazerem o mesmo. Ainda que as terras dos Kulina doRio Juruá estivessem delimitadas em 1988, não havia previsão de demarcaçãoe a área era invadida com constância por madeireiros, pescadores e seringalis-tas62 que não a reconheciam como território indígena.

Além de incentivarem seus parentes de outras aldeias, os Kulina influ-enciaram o mesmo movimento por parte dos Kanamari e dos Deni, seus povosvizinhos, além de outras autodemarcações por diversas regiões do país. No casodos Deni e Kanamari, os procedimentos de demarcação foram os mesmos dosKulina, de abrir caminhos na mata ao passo que estacas de madeira iam sendoplantadas para delimitar as terras. Neves (2003) afirma que o desfecho foi oreconhecimento e a legitimação, através de relatório antropológico, daqueleslimites que a autodemarcação promovida pelos Kanamari estabeleceu.

Para além da importância do protagonismo dos próprios indígenasinteressados na demarcação e o “fazer justiça com as próprias mãos”, aautodemarcação como ato é também uma estratégia política como que parachamar atenção e obrigar o Estado a cumprir sua parte no processo de reco-nhecimento de seus direitos territoriais originários. Tem-se uma situação de

62 Diferentemente do seringueiro, que é o trabalhador extrativista tradicional autônomo, a pessoa do seringalistarepresenta a figura de um proprietário de terras (a história mostra que muitas delas controladas sem titulação ouadquiridas por processos de grilagem) que controla a produção e comercialização do látex da borracha produzido nosseringais amazônicos.

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presença-ausente do Estado, mas sua presença só se faria sentida a partir da açãoindígena de autodemarcação.

No caso dos Kambeba do Jandiatuba, o órgão indigenista tem conheci-mento e identifica aquelas comunidades como Kambeba, contudo alega quenão dispõe de recursos para solicitar o início das etapas de demarcação, a começarpelos estudos técnicos-antropológicos. Isto confirma as falas de dois dos Kambebaparticipantes da pesquisa acessados no decorrer do trabalho de campo:

Eu já procurei resposta deles lá [Funai] que não vai termedição. A Funai nunca veio, promete de vir, mas não vem.A gente só é identificado como Kambeba. (L. E. A, pesca-dor Kambeba, pesquisa de campo, 2016).

A nossa dificuldade, eu tenho visto assim, pelos nossos re-presentantes legais. Porque nós aqui a gente tá lutando,não perder esperança de que um dia pode ser demarcada, edentro disso a gente não quer elevar o conhecimento ‘ah aFunai é órgão que demarca terra’, mas a gente já teve infor-mação de que quem demarca terra são as próprias comuni-dade né, elas que tem que ver onde é, o que querem, o quefazem ali dentro pra poder ser demarcado. Então o que vejoé isso. Falta mais pra ser demarcado, a gente se integrar, osmoradores se aproximarem, pra que a gente possa traba-lhar mais unidos e possa acontecer a demarcação. A dificul-dade pra demarcar é isso e por ter poucas famílias aqui.Porque digamos assim, aqui tá registrado como comunida-de, mas são quatro [famílias] aqui, quatro no Bacaba, euma no Pinã. (L. A. R., pescador Kambeba, pesquisa decampo, 2016)

Os Kambeba reconhecem as experiências de autodemarcação de ou-tros povos indígenas, e expressam, neste aspecto, suas próprias limitações facea este tipo de ação.

A demarcação territorial em que o Estado se exime de realizar denotaa fragilidade da segurança étnica e ambiental não só dos Kambeba mas tam-bém de indígenas de diversas localidades na Amazônia. Porém, esta insegu-rança se dá mesmo entre os povos que estão garantidos territorialmente emsuas terras demarcadas, como o caso do Vale do Javari, mas estão sujeitos a

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ações de intrusamento. Em virtude disto surge o questionamento: em quemedida a demarcação da terra, e consequentemente as políticas de proteção oututela por parte do órgão indigenista do Estado, é garantia de autonomia,segurança e autodeterminação das etnias?

Contudo, há a ressalva dos riscos inerentes à condição de tutela jurídi-ca das terras indígenas, por ser caracterizada pelo ideal de proteção que con-tém uma ambiguidade entre a imposição de proteção a quem é visto comomais frágil – ou seja, sob um olhar hierarquizante de forças e capacidades –, ea submissão ao Estado, que se encarrega de representar ou encobrir o tutelado(ALMEIDA, 2012).

Arisi & Milanez (2017) apontam parte dessas fragilidadesproblematizando, sobretudo, o papel da Funai como órgão tutelar no âmbitodas relações interétnicas no interior da TI. A Funai declara como “conflitoshistóricos” as relações entre os Matis e os Korubo com fundamento em anta-gonismos sociais que envolveram mortes de indígenas de ambos os povos. Asmobilizações indígenas, por sua vez, desvelam que as violências em ações decontato e pós primeiros contatos, praticadas nas últimas quatro décadas, temmuita influência na atual situação de fragilidade da TI Vale do Javari. Segun-do os autores, especificamente os Matis estariam passando por um “processode descolonização da relação com o Estado nacional”.

Para além das ações de contato com povos considerados isolados, oórgão indigenista releva o fato de que as relações entre ambas as etnias, e delascom as demais residentes da TI, foram estabelecidas em razão de intrusamentosdo território. Estes instrusamentos sendo muitas vezes perpetrado pelo pró-prio Estado e seus interesses, como o caso da Petrobras realizando pesquisas deexploração de petróleo na região na década de 70.

Se entre os Matis e os Korubo a relação se estabelece, tam-bém, em razão dos interesses do Estado em projetos deinfraestrutura, como a prospecção de petróleo, na demarca-ção da terra e a invasão de pescadores e madeireiros, porfalta de fiscalização da terra indígena, assim como pela dis-puta intensificada pelos materiais e objetos disponibiliza-dos pela Funai e pelas relações dos Matis com os agentes

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do Estado, é surpreendente que, em certo momento, o Es-tado “desapareça”, como por um passe de mágica, da rela-ção histórica com os povos que vivem no Vale do Javari.(ARISI & MILANEZ, 2017).

Em contraponto a essa argumentação, o trabalho de pesquisa que rea-lizo enfatiza a ausência-presente do Estado, e não exatamente seu “desapareci-mento”. Nesse sentido, os povos indígenas mantêm constantes e diferenciadosplanos de interlocução com o órgão indigenista, haja vista, por exemplo, suascartas-denúncia e relatos acerca das ações ilegais de garimpo no Alto Solimões.

Guardadas as proporções, podemos estabelecer analogia à relação entreos Kambeba e os Tikuna do baixo rio Jandiatuba, que, a despeito de eventuaisdivergências interétnicas, estabelecem laços cooperativos frente a invasão deseus territórios por parte dos garimpeiros à procura do ouro do Jandiatuba.Assim como a TI Vale do Javari, no alto Jandiatuba, a TI Nova Esperança dosTikuna, no baixo Jandiatuba, é devidamente demarcada, e ainda assim passapor sucessivas invasões. Entre tais TI, constata-se um espaço físico que corres-ponde a um “vazio jurídico-territorial”, que é o da não demarcação do territó-rio Kambeba, localizado no médio Jandiatuba. A Figura 17, que ilustra aatual situação fundiárias da região da tríplice fronteira, corroboram, de certomodo, com a expressão do “vazio” onde se encontram as comunidades Kambeba,localizadas em terras de “florestas não destinadas de domínio federal”.

Para os Kambeba, a terra indígena que reivindicam deve ser reconhecidae juridicamente delimitada segundo o georreferenciamento que consta no Pro-tocolo de Reconhecimento Étnico do Povo Omágua-Kambeba, a partir de suaproposta de demarcação territorial. Uma vez conquistado este direito, seria re-duzido a zero o mencionado “vazio jurídico-territorial”. Portanto, a importânciada TI Tuyuka, referenciada no Protocolo, tem duplo sentido: além decorresponder ao território reivindicado pelos Kambeba e garantir seu reconheci-mento, cobriria idealmente este espaço físico que chamo de “vazio jurídico-territorial” no médio Jandiatuba. Como desdobramento, poderia ser constatadoum contínuo e consolidado mosaico de Terras Indígenas e Unidades de Conser-vação, reforçando a segurança etnoambiental dos povos e seus bens naturais.

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O relato da conversa de uma liderança com um madeireiro, invasor desuas terras tradicionalmente ocupadas, deixa evidente o não-reconhecimentode seu território:

Meu primeiro contato foi assim de conversar com eles numaboa né, e diziam pra mim que eu não mandava nada aqui, ediziam que terra indígena não existia, não existia terra indí-gena aqui, que ninguém tinha documento de nada e [porisso] eu não podia falar nada pra eles. (B. A. M., agricultorKambeba, pesquisa de campo, 2016).

Ainda que devam ser feitas as relativizações necessárias quanto à tutelado Estado, a demarcação é essencial aos olhos dos Kambeba e representa umamodalidade de segurança sociocultural e ambiental, transcendendo à garantiade reconhecimento pelos invasores com relação às comunidades do rioJandiatuba.

Eu acredito [na segurança da demarcação] assim um pou-co né, porque quem vai fazer essa segurança fazer valer vaiser o próprio dono das terras. Se demarcarem a terra propovo Kambeba, e [também] pro Kaixana, Tikuna e Kokama,eu tenho certeza que eles vão ser o guardião da terra deles,apenas os poderes vão poder dar aquele apoio em seguran-ça, mas quem faz mesmo a segurança [proteção] somos nósné. Porque nós vamos poder ter a segurança de dizer ‘a terratá demarcada, quem manda aqui somos nós e vai ser dessejeito’. Porque como não tá [demarcada], eles [não indígena]dizem ‘ah, vocês tem que ser subordinado ao prefeito, agoverno, aos órgãos porque a terra não é demarcada, só éapenas identificada e reconhecida. Então eu acho que aterra demarcada tem mais segurança sim. (R. E., liderançaKambeba, pesquisa de campo, 2017).

A dança de espelhos da demarcação de territórios indígenas se materi-aliza quando nos deparamos com suas diversas faces, muitas das vezes parado-xais. Ou seja, ao passo que há o interesse pela demarcação, tem-se claro que háfragilidades contidas nelas. Isto se coaduna com a contribuição de Almeida(2012), que afirma que os povos e comunidades tradicionais se encontram

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comprimidos entre a ineficácia das políticas de Estado para “proteção” e acrescente ofensiva sobre seus bens naturais, indispensáveis para sua vivência esociabilidade, fomentada justamente pelas medidas “protecionistas”. Por ana-logia e imaginação sociológica, a imagem que se tem deste cenário é a de ummilimétrico, porém constante, movimento de encontro entre estes dois largosmuros que tem como força motriz as flexibilizações dos direitos indígenas porparte do Estado, este espectral aos olhos dos indígenas.

Portanto, o jogo de espelhos que relativiza os efeitos da demarcação daTI, conjugado com os muros e seus movimentos de compressão que flexibilizamdireitos dos povos indígenas, constituem fatos que historicamente compri-mem cada vez mais os Kambeba. Esta afirmação se dá em virtude de osKambeba estarem sujeitos a um constante “se” de probabilidades – “se tiveremo protocolo aceito”, “se forem reconhecidos”, “se demarcarem” etc –, tal comose estivessem condenados a uma eterna espera, condenados a ser um povo semterritório.

3.2 A presença-presente do Estado: elementos para a superação das ausências

Para se discutir os possíveis mecanismos para a superação das ausênci-as, fez-se necessária a contextualização das condições socioeconômicas doAmazonas no âmbito da lógica historicamente exploratória do colonialismo, e,de maneira temporalmente mais próxima, da lógica neoliberal, conforme jádiscutido. O ponto histórico comum é o interesse pela expansão do capital pormeio da apropriação do trabalho e da natureza e a formação de novos merca-dos, resultando no “processo de subdesenvolvimento” dos trópicos.

Leff (2000) afirma que o chamado “subdesenvolvimento” é resultantedos processos de degradação ambiental por que passaram os países do Sul63

devido à sua dependência tecnológica com relação aos países do Norte. Atreladaa isso, considera a deformação de seu modelo de desenvolvimento, julgado como

63 O autor utiliza o termo "Terceiro Mundo". Há, contudo, na literatura sociológica e afins, um conjunto diverso deconceitos para "classificar" o Sul: países subdesenvolvidos, emergentes, em desenvolvimento, periféricos, dentreoutros.

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inadequado e despadronizado aos olhos dos países dominadores, que os sujeita-ram a condições históricas do processo de acumulação de capital, este inerente àracionalidade econômica. Contudo, pode-se afirmar que não somente a depen-dência tecnológica é pauta decisiva para a condição de países subdesenvolvidos,mas também a dependência política, do mercado e, sobretudo, cognitiva do Sulatrelado ao Norte. À medida que a dominação de um país ou região sobre ooutro se intensifica, os saberes e culturas do dominado passam a ser questiona-dos, invalidados e substituídos pela lógica homogênea do dominador.

O resultado ambiental desta colonização cognitiva consiste na utiliza-ção de técnicas, culturas agrícolas e manejo de recursos inadequados à realida-de local, degradando os mecanismos naturais de equilíbrio:

As transformações culturais geradas por este modo de ex-ploração foram sepultando uma enorme quantidade de co-nhecimentos práticos elaborados durante séculos de expe-riência produtiva pelas comunidades autóctones destas re-giões, os quais permitiram uma apropriação ecologicamenteracional do meio ambiente. Desta maneira, o sistema capi-talista rompeu a harmonia entre os sistemas naturais e asformações sociais (LEFF, 2000, p. 26).

Esta lógica se reflete na atual exploração do ouro pelos garimpos fluvi-ais dos rios do Amazonas, pois a única ótica interessante e interessada é a degeração de divisas e a acumulação de capital a curto prazo, desconsiderando ospassivos ambientais cumulativos nos ecossistemas fluviais e na cadeia alimen-tar, uma vez que a proteína animal das espécies de peixe é a base da culturaalimentar de parte significativa da população amazônica. A defesa que o go-verno do estado faz da legalização da atividade – com base na operação dosgarimpos do rio Madeira – coaduna com esta ótica de racionalidade estrita-mente econômica, quando seus planejadores afirmam que “a atividade extrativistamineral é uma fonte de renda rápida para famílias de comunidades ribeirinhasexistentes ao longo da calha do rio Madeira”64.

64 Cf. http://amazoniareal.com.br/justica-federal-suspende-licencas-autorizadas-por-amazonino-para-garimpo-no-rio-madeira/.

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Leff (2000) contribui para a explicitação desta lógica degradadora afir-mando que tal racionalidade econômica, uma vez que parte da maximizaçãodos excedentes e dos benefícios a curto prazo, delega as questões da equidadesocial e sustentabilidade ecológica para as políticas distributivas, desvalorizan-do-se assim “o longo prazo” e o patrimônio ambiental e cultural do território.Ao traçar o caráter cíclico e vicioso da degradação ambiental, expressa que estaé geradora de quadros ainda mais ampliados de pobreza e que, portanto, asustentabilidade ecológica deve preconizar também aspectos sociais e culturaisda sociedade, levando em conta o princípio da equidade.

A sustentabilidade ecológica não se refere só à preservaçãoda Natureza, já que sua degradação ou suas potencialida-des estão vinculadas indissoluvelmente a processos sociaise culturais. Assim, a degradação ambiental gera um círculoperverso de pobreza, que, por sua vez, acentua a deteriora-ção ecológica. [...] O princípio da equidade é, pois,indissociável [...]: mais que uma questão de solidariedadediacrônica [...], trata-se de um princípio de equidadeintrageracional (LEFF, 2000, p. 202-203).

É possível estabelecer, portanto, uma relação entre a soma de fatorescomo o denominado “subdesenvolvimentismo” e a “degradação ambiental”,resultando em acumulação de capital de dominantes e em passivos ambientais65,ou capital ecológico negativo, aos dominados por meio da desigualdade de usoe acesso aos bens naturais. A equação a seguir tenta fazer a síntese da relaçãoentre estes fatores, considerando, porém, que eles não estão, de maneira algu-ma, isolados ou em dicotomia de análise, e sim se inter-relacionam de maneiradialética.

Sd + DA = K’(dt) + (-Ke)(dd)

65 A noção de passivo aqui tem mais a ver com as desigualdades ambientais e de expropriação dos bens naturais do quecom a noção fundada na contabilidade e posteriormente adotada pela economia ambiental, que define a obrigação eresponsabilidade ambiental de empresas quanto a uma possível atuação danosa ao meio.

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Legenda:Sd = subdesenvolvimentoDA = degradação ambientalK’(dt) = acumulação de capital dos dominantes(-Ke)(dd) = passivos ambientais, ou capital ecológico negativo, dos

dominados

Um dos reflexos mais imediatos desta dialética de fatores é aflexibilização das políticas públicas ambientais, tornando-as cada vez maisflexíveis e não palpáveis aos olhos de uma robustez jurídica. Este cenário se fazpresente na atualidade e tende a se agravar conforme se ampliam os interessesexploratórios. Considerando que a crise ambiental é, também, além de umacrise da razão, uma crise política, a presença-presente do Estado se faz impres-cindível a partir de suas políticas, agências e agentes interessados em progra-mas que se estabeleçam para além das políticas de governos.

Faz-se necessário reforçar o alerta que Leff faz ao afirmar que a equidadenão deve ser compreendida como a imposição de um padrão homogêneo dequalidade de vida, acesso aos recursos e distribuição dos custos de contamina-ção ou esgotamento do ambiente, pois a equidade está inserida em um contex-to diverso e que por ele é influenciada. Neste sentido, é necessário tratá-lacomo “equidade na diversidade”, o que implica necessariamente em suprimircondições de dominação que abafem a autonomia dos povos e deem condiçõesreais de apropriação ou reapropriação dos potenciais ecológicos locais confor-me os interesses sociais e culturais de cada unidade social.

O problema da reapropriação social da Natureza vai alémdas possibilidades de resolver o conflito da iniquidade eco-lógica [...]. As condições de existência das comunidadespassam pela legitimação dos direitos de propriedade daspopulações sobre o seu patrimônio de recursos naturais ede sua própria cultura [...]. As lutas sociais pelareapropriação da Natureza ultrapassam a resolução dosconflitos ambientais através da justa valorização econômicada Natureza e da concessão de direitos sobre o uso dosrecursos (LEFF, 2000, p. 203).

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Ou seja, envolve extinguir as relações colonialistas e as persistentescolonialidades ao passo que se reconheçam os direitos de autonomia culturalde cada grupo, povo ou comunidade em sua diversidade única, em suas espe-cificidades. Tal autonomia cultural, afirmará Leff (2000), nada mais é que ascomunidades terem controle e liberdade de manifestação de suas próprias ins-tituições, costumes e crenças, terras, linguagem, práticas e usos66.

Um exemplo de valorização da autonomia cultural e autogestão deterritórios seria o reconhecimento das autodeterminações étnicas eautodemarcação territorial dos povos indígenas, como já problematizamos. OsKambeba do Alto Solimões nos oferecem um exemplo acerca deste tema: suasresistências e re-existências estão expressas no Protocolo do Povo Omágua-Kambeba67, que, sendo um documento de domínio público e com necessida-de de ampla repercussão, representa a formalização da manifestação e exigên-cia de reconhecimento étnico, direito à consulta prévia e respeito aos direitosoriginários sob quaisquer instâncias e circunstâncias.

Redigido no âmbito da Assembleia Geral do povo, realizada em agos-to de 2017 na comunidade Tuyuka I, bairro de Santa Terezinha, antiga aldeiaWakariazal, no município de São Paulo de Olivença, Amazonas, os presentesreafirmaram, validaram e documentaram o conjunto de valores étnicos e cul-turais do povo Omágua-Kambeba, tendo, segundo os mesmos, o cuidado degarantir que as leis culturais expressas estivessem associadas e amparadas às leisnacionais e internacionais, como a Constituição Federal de 1988, a Convenção169 da OIT, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Uni-das, a Referencial Curricular Nacional para a Educação Indígena – RCNEI, oEstatuto do Índio e todas as leis que asseguram os direitos indígenas.

É possível que pareça contraditória a ideia de que a presença-presentedo Estado seja mais facilmente viabilizada por meio de incrementos as capaci-

66 Para além, o autor sugere que estes ideais de apropriação social dos bens naturais devem transcender aos limitesgeográficos ou territoriais restritos a áreas juridicamente protegidas, como unidades de conservação ou terrasindígenas, e abarcar toda gama de sujeitos socioambientais dotados de identidade étnica e cultural.

67 O movimento Kambeba julga ser de suma necessidade a elaboração e divulgação do Protocolo uma vez que "diversosdireitos seguem sendo negados, vedados, manipulados, determinados, representados, desrespeitados e retiradospelos órgãos governamentais sem a devida consulta e consentimento, gerando problemáticas diversas.".

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dades de autogestão das comunidades ribeirinhas ou indígenas, descentrali-zando efetivamente o poder do Estado. Contudo, é justamente sua capacidadede se tornar menos espectral que garante sua presença-presente, à medida quedeixa de ser via de mão única aos interesses estritamente econômicos e passa avalorizar o saber local, a autonomia de gestão e a fomentar a convergência dasforças políticas locais. Para Leff (2000), estes são componentes do conjuntode elementos para efetivação do ecodesenvolvimento como proposta de umanova ordem de Estado e sociedade: i) saber local; ii) potencial produtivo local;iii) revalorização do capital ecológico local; iv) autogestão territorial local; v)forças políticas locais convergentes. Tais elementos são regidos pelos três pila-res do respeito à diversidade biológica e cultural, do fortalecimento das iden-tidades étnicas e do fomento às capacidades de autogestão (“self-reliance”) dopatrimônio natural das comunidades.

O protagonismo Kambeba assume uma pluralidade de repertórios re-lativas ao processo de mobilização étnica, que se expressa por meio de pelomenos duas formas político-organizativas – OKAS e OKOPAM. Estasimplementam as pautas intrínsecas às mobilizações Kambeba, como as lutaspela demarcação da terra indígena, pela revitalização linguística, pelos reco-nhecimentos étnico e do sítio arqueológico, e pela afirmação identitária atravésda autodefinição consoante à Convenção 169. Em síntese e diante destas pau-tas, pode-se dizer que as reivindicações identitárias não se dissociam das lutaspela autogestão dos bens naturais e do território.

As mobilizações étnicas contemplam modalidades de autogestão noplano comunitário que se contrapõem à degradação ambiental e às forças po-líticas locais, coniventes com a garimpagem ilegal e com as práticas predatóriasde madeireiros e demais intrusos. O processo de produção constante e histori-camente registrado dos Kambeba como resistência se apoia no saber local/tradicional, que tem maneiras específicas de lidar com a diversidade biológicae cultural. Nos termos de Leff, reforça-se a valorização do capital ecológicolocal visto em seu conjunto.

A capacidade de autogestão destes bens e territórios não se dissocia dasformas político-organizativas, ou seja, não há uma cisão entre economia e po-

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lítica. Contudo, esta separação se faz presente na realidade empiricamenteobservada, uma vez que os Kambeba dispõem da possibilidade de fortaleci-mento de sua identidade e de mobilização étnica, mas não dispõem, no mes-mo plano, da capacidade de autogestão dos bens naturais. Tudo isto ocorrendode maneira autônoma ao exercício de poder do Estado.

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Os conflitos no Jandiatuba envolvendo os intrusamentos dagarimpagem ilegal em terras tradicionalmente ocupadas, descritos no decorrerdeste trabalho, evidenciam uma resistência a estas ações predatórias por partedos Kambeba. Esta resistência resulta num importante componenteorganizacional e de mobilização étnica e num fator de reforço identitárioexpressos concretamente pela luta por direitos territoriais dos Kambeba. Isto éarticulado pela consciência de si mesmos e pela percepção das fronteiras de seuterritório, tal como registradas no Protocolo de Reconhecimento ÉtnicoKambeba.

Esta resistência se faz presente a despeito das interpretações históricasque obliteraram a ação e resistência dos Kambeba, e os forçaram à sucessivasreconstruções históricas, tanto relativas ao reconhecimento do sítio arqueológico,quanto aquelas da revitalização linguística e as condizentes à luta pelo território.O trabalho de campo realizado para esta pesquisa desdiz aquilo que o sensocomum acadêmico consolidou, reiterando a retórica das referências históricasque ofuscaram os Kambeba. O reconhecimento das formas de resistênciaKambeba se opõe à tendência prevalecente de suprimi-los ou apagá-los aospoucos.

Como sublinha Marilene Silva (2004), a “Amazônia é um dos lugaresdos reajustes econômicos e políticos da Europa nos séculos XVI e XVII” e por

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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esta razão, nunca esteve “vazia”, “isolada” e “desocupada”, como quiseram equerem fazer crer os governos, a partir da década de 50, ao desenhar políticasdesenvolvimentistas e de colonização classificando a região como “atrasada” ou“subdesenvolvida”.

O Estado se fez e faz muito presente por meio de diversos formatos emúltiplas faces, dando suporte ao dominador enquanto se mostra ausente parao dominado. Assim, em que medida o Estado, seja ele colonial ou republicano,cumpre o papel de mediador das situações de conflitos por reconhecimento,por territórios e territorialidades, e pelo uso de bens naturais? Tendo estasrelações de dominação como pressuposto, acirram-se os conflitos sociais, e como avanço dos interesses exploratórios em determinados bens naturais, adiciona-se o fator ambiental aos conflitos, que passam a ser expressos como conflitossocioambientais. É evidente que para os povos indígenas tais situações históricasresultaram em ações de genocídio, incidindo sobre seus corpos, territórios eculturas, e configurando um etnoepistemicídio, que é um fato do presente pormeio dos colonialismos. Portanto, aqui se inicia minha compreensão do Estadocomo uma instância que não só articula forças contraditórias e ambíguas, comotambém é composto por tais.

Neste sentido, procurei demonstrar no decorrer da pesquisa, as duasnoções que foram muito relevantes para pensar a realidade empiricamenteobservada, a presença-ausente e a ausência-presente do Estado, e que depoisconvergiram para a ideia do conceito de Estado espectral, que segue emconstrução68. Ambas as noções, portanto, foram forjadas considerando as facesde um mesmo Estado, e que ora está presente, ora ausente, ora os dois aomesmo tempo, a depender dos (des)interesses e conjunturas.

A presença-ausente do Estado foi discutida no primeiro capítulo, noâmbito das conquistas coloniais, e reflete a atualidade do colonialismo. Aausência-presente foi trabalhada no segundo capítulo considerando os

68 Está em constante processo de trabalho e reflexão, em movimento, com paciência e discernimento. Assim, nãoreivindico qualquer pretensão de propor um campo de significação acabado ou definitivo. Ao contrário, coloco aquisua condição de "definição provisória". Justamente esse processo de trabalho é que me move a esta consideraçãoreflexiva acerca do conceito.

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desinteresses interessados dos agentes sociais a ele referidos, materializados nasforças políticas do poder público da região. No segundo capítulo ainda, retomoa noção de presença-ausente no âmbito da discussão das operações dedesmantelamento do garimpo ilegal no Jandiatuba promovidas por órgãosambientais, de defesa e indigenistas. A noção foi reutilizada de modo a debateras controvérsias das operações, que foram consideradas satisfatórias por agentesdo Estado, porém malsucedidas aos olhos dos povos indígenas, que constituem47,7% da população de São Paulo de Olivença, e da população residente.

Portanto, o conceito de Estado espectral me é caro pois permitiu minhaaproximação para entender a lógica da ação do Estado e seus desdobramentos,bem como as relações entre os poderes constituídos e os Kambeba. Isto foipossível a partir de uma descrição detalhada das situações de conflitos pormeio do uso de instrumentos analíticos de práticas etnográficas. Considero,contudo, que esta condição espectral do Estado não é uníssona ou cristalizada,e sim configuracional e portadora de uma dinâmica própria.

Observando-se a capacidade dos Kambeba de resistência às formas dedominação que o Estado lhes impõe, tem-se a seguinte distinção: no caso docolonialismo histórico, há uma ocupação estrangeira com subordinação diretaà metrópole, enquanto que neste caso do Alto Solimões, as formas de dominaçãodo Estado ausente-presente apontam para os componentes de uma forma dedominação diferentes, que pode ser lida como colonialismo interno. Ao não sefazer presente na região, prevalecem formas de dominação apoiadas numacoalizão de interesses ampla e vigorosa composta de garimpeiros, madeireiros,mineradoras, forças políticas de poder local, dentre outros agentes.

Aos olhos do Kambeba, não há qualquer minimização dosintrusamentos e nem qualquer ilusão quanto às operações repressivas, sabemque os garimpeiros voltarão, e externam isso com clareza em diferentesmomentos. Esse entendimento da ação continuada dos garimpos devastandoterras, florestas e águas é vivida pelos Kambeba como uma catástrofe de talmagnitude que tem alterado sua maneira de pensar e viver seu território.

Os acontecimentos e fatos que vem ocorrendo no rio Jandiatuba sãoexpressões de conflitos dos mais variados graus e gravidades. Ao fazer uma

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tipologia deles, tentei não os reduzir a categorizações ou simplificá-los comosituações que são despidas de outras variáveis que os tornam complexos. Aocontrário, por meio das críticas às classificações usuais, busquei compreender acomplexidade dos conflitos e suas contradições internas, levando em conta oslimites e as dificuldades com as quais me defrontei no trabalho de campo. Aanálise reflexiva tornou-se, portanto, uma prática indispensável no trabalho depesquisa.

Os recursos conceituais que busquei para tal compreensão da realidadeobservada me permitiram construir tipos-ideais de conflitos sociais e ambientais:latentes, iminentes, manifestos, explícitos, extremos, intermitentes enaturalizados. Este conceito de tipos-ideais não deve ser confundido com anoção do “exemplar”, como se fosse um “deve ser” imposto de maneira herméticae forçada para explicar a complexa realidade analisada. Justamente por sercomplexa é que torna errônea esta leitura de que o tipo-ideal é capaz de reduzi-la. Os conflitos socioambientais pesquisados no rio Jandiatuba devido à presençade garimpeiros outsiders, e também a presença de madeireiros ilegais, caçadorese barcos de pesca comercial, correspondem a uma pluralidade de situações deconflitos que não são redutíveis aos sete tipos levantados, além de poder expressarmais de um tipo.

No decorrer da pesquisa, assumo que conhecer os povos indígenas,como eles se auto representam, seus saberes e seus direitos originários é premissapara haver reconhecimento étnico e territorial. O Protocolo de ReconhecimentoÉtnico do Povo Omágua-Kambeba, que surgiu de uma assembleia realizadapelo povo, consiste num documento de ampla divulgação e se apresenta comoinstrumento para se fazerem conhecidos e reconhecidos em suas sociabilidades,organização política, lutas e reivindicações. Constam neste documento asdiversas demandas do movimento, dentre elas a principal que é a demarcaçãoterritorial e que inclui uma proposta estratégica de autodemarcação: a TerraIndígena Tuyuka. A TI Tuyuka estaria ladeada por Unidades de Conservaçãoe outras TI, o que reforçaria a defesa dos limites territoriais e deste territórioem si de maneira estratégica, e preencheria o “vazio jurídico territorial” existentehoje. A relativa eficácia do movimento Kambeba se apresenta justamente por

análise crítica da tipologia deles, tentei não os reduzir a categorizações ou simplificá-los como situações que são despidas de outras variáveis que os tornam complexos. Ao contrário, por meio das críticas às classificações usuais, busquei compreender a complexidade dos conflitos e suas contradições internas, levando em conta os limites e as dificuldades com as quais me defrontei no trabalho de campo. A análise reflexiva tornou-se, portanto, uma prática indispensável no trabalho de pesquisa.

Os recursos conceituais que busquei para tal compreensão da realidade observada me permitiram desconstruir as tipologias dos conflitos sociais e ambientais: latentes, iminentes, manifestos, explícitos, extremos, intermitentes e naturalizados. Os conflitos socioambientais pesquisados no rio Jandiatuba devido à presença de garimpeiros outsiders, e também a presença de madeireiros ilegais, caçadores e barcos de pesca comercial, correspondem a uma pluralidade de situações de conflitos que não são redutíveis aos sete tipos levantados.

No decorrer da pesquisa, assumo que conhecer os povos indígenas, como eles se auto representam, seus saberes e seus direitos originários é premissa para haver reconhecimento étnico e territorial. O Protocolo de Reconhecimento Étnico do Povo Omágua-Kambeba, que surgiu de uma assembleia realizada pelo povo, consiste num documento de ampla divulgação e se apresenta como instrumento para se fazerem conhecidos e reconhecidos em suas sociabilidades, organização política, lutas e reivindicações. Constam neste documento as diversas demandas do movimento, dentre elas a principal que é a demarcação territorial e que inclui uma proposta estratégica de autodemarcação: a Terra Indígena Tuyuka. A TI Tuyuka estaria ladeada por Unidades de Conservação e outras TI, o que reforçaria a defesa dos limites territoriais e deste território em si de maneira estratégica, e preencheria o “vazio jurídico territorial” existente hoje. A relativa eficácia do movimento Kambeba se apresenta justamente por esta ação deliberada de selecionar limites protegidos de áreas vizinhas tradicionalmente ocupadas.

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tipologia deles, tentei não os reduzir a categorizações ou simplificá-los comosituações que são despidas de outras variáveis que os tornam complexos. Aocontrário, por meio das críticas às classificações usuais, busquei compreender acomplexidade dos conflitos e suas contradições internas, levando em conta oslimites e as dificuldades com as quais me defrontei no trabalho de campo. Aanálise reflexiva tornou-se, portanto, uma prática indispensável no trabalho depesquisa.

Os recursos conceituais que busquei para tal compreensão da realidadeobservada me permitiram construir tipos-ideais de conflitos sociais e ambientais:latentes, iminentes, manifestos, explícitos, extremos, intermitentes enaturalizados. Este conceito de tipos-ideais não deve ser confundido com anoção do “exemplar”, como se fosse um “deve ser” imposto de maneira herméticae forçada para explicar a complexa realidade analisada. Justamente por sercomplexa é que torna errônea esta leitura de que o tipo-ideal é capaz de reduzi-la. Os conflitos socioambientais pesquisados no rio Jandiatuba devido à presençade garimpeiros outsiders, e também a presença de madeireiros ilegais, caçadorese barcos de pesca comercial, correspondem a uma pluralidade de situações deconflitos que não são redutíveis aos sete tipos levantados, além de poder expressarmais de um tipo.

No decorrer da pesquisa, assumo que conhecer os povos indígenas,como eles se auto representam, seus saberes e seus direitos originários é premissapara haver reconhecimento étnico e territorial. O Protocolo de ReconhecimentoÉtnico do Povo Omágua-Kambeba, que surgiu de uma assembleia realizadapelo povo, consiste num documento de ampla divulgação e se apresenta comoinstrumento para se fazerem conhecidos e reconhecidos em suas sociabilidades,organização política, lutas e reivindicações. Constam neste documento asdiversas demandas do movimento, dentre elas a principal que é a demarcaçãoterritorial e que inclui uma proposta estratégica de autodemarcação: a TerraIndígena Tuyuka. A TI Tuyuka estaria ladeada por Unidades de Conservaçãoe outras TI, o que reforçaria a defesa dos limites territoriais e deste territórioem si de maneira estratégica, e preencheria o “vazio jurídico territorial” existentehoje. A relativa eficácia do movimento Kambeba se apresenta justamente por

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esta ação deliberada de selecionar limites protegidos de áreas vizinhastradicionalmente ocupadas.

O debate da demarcação territorial indígena passa pelas questões derepresentatividade e garantia de suas expressões culturais, territorialidades esegurança etnoambiental que o território significa para os Kambeba. Esta regiãodo Alto Solimões representa as origens deste povo e de sua história. Nãoobstante, paradoxalmente, não há qualquer tramitação de processos para oreconhecimento deste território como Terra Indígena. Configura-se, portanto,uma dança de espelhos dotada de contradições e paradoxos que tornam a lutapela demarcação um terreno ainda mais pedregoso para o movimento indígena.

Despossuídos de uma Terra Indígena demarcada, sem língua maternareconhecida, com identidade negada e sem força política suficiente face aospoderes locais, vivendo uma posição relegada e sob o Estado espectral, osKambeba estão fortalecendo paulatinamente a construção da sua resistênciapor meio das mobilizações étnicas, que visam pautar as reivindicações para seureconhecimento enquanto povo, e de seus direitos originários.

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esta ação deliberada de selecionar limites protegidos de áreas vizinhastradicionalmente ocupadas.

O debate da demarcação territorial indígena passa pelas questões derepresentatividade e garantia de suas expressões culturais, territorialidades esegurança etnoambiental que o território significa para os Kambeba. Esta regiãodo Alto Solimões representa as origens deste povo e de sua história. Nãoobstante, paradoxalmente, não há qualquer tramitação de processos para oreconhecimento deste território como Terra Indígena. Configura-se, portanto,uma dança de espelhos dotada de contradições e paradoxos que tornam a lutapela demarcação um terreno ainda mais pedregoso para o movimento indígena.

Despossuídos de uma Terra Indígena demarcada, sem língua maternareconhecida, com identidade negada e sem força política suficiente face aospoderes locais, vivendo uma posição relegada e sob o Estado espectral, osKambeba estão fortalecendo paulatinamente a construção da sua resistênciapor meio das mobilizações étnicas, que visam pautar as reivindicações para seureconhecimento enquanto povo, e de seus direitos originários.

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151VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

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153VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

FONTES DOCUMENTAIS ACESSADAS

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BRASIL. Decreto N° 1.775, de 08 de janeiro de 1996. Dispõe sobre oprocedimento administrativo de demarcação das terras indígenas e dá outras

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Aline Radaelli154

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1) http://acritica.uol.com.br/amazonia/Manaus-Amazonas-Amazonia-E x p l o r a d o r e s - m o v i m e n t a r a m - R 3 0 - i r r e g u l a r -Amazonas_0_1433256702.html

2) https://www.cartacapital.com.br/sociedade/mpf-suspeita-de-massacre-de-indigenas-no-amazonas

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155VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

3) http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc/2017/maio/politica-anti-indigena-avanca-funai-tem-corte-de-mais-de-50-no-orcamento

4) https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/09/12/Como-a-suspeita-de-um-massacre-exp%C3%B5e-a-vulnerabilidade-de-ind%C3%ADgenas-isolados

5) http://amazoniareal.com.br/operacao-destroi-garimpo-de-ouro-em-terras-indigenas-no-rio-jandiatuba-no-amazonas/

6) http://amazoniareal.com.br/licenca-simplificada-e-mineracao-sao-prioridades-para-amazonino-e-braga-no-amazonas/

7) http://amazoniareal.com.br/garimpeiros-mataram-indios-isolados-flecheiros-no-vale-do-javari-confirma-mpf-do-amazonas/

8) http://amazoniareal.com.br/mpf-recua-e-diz-em-nota-que-nao-ha-confirmacao-de-mortes-de-indios-isolados-por-garimpeiros-na-amazonia/

9) https://www.survivalinternational.org/artigos/3299-sobreviventes-haximu

10) http://amazoniareal.com.br/o-inferno-e-as-boas-intencoes/

11) http://amazoniareal.com.br/recorde-mineral-para-que/

12) https://deolhonosruralistas.com.br/2017/04/20/crescem-os-conflitos-pela-agua-no-brasil-entre-causas-mineracao-e-agronegocio/

13) http://amazoniareal.com.br/cooperativa-de-garimpeiros-no-amapa-era-fachada-de-organizacao-criminosa-diz-mpf/

1 4 ) h t t p s : / / w w w. b b c . c o m / p o r t u g u e s e / n o t i c i a s / 2 0 1 5 / 1 2 /151202_escritorio_mineradoras_codigo_mineracao_rs

15) http://d24am.com/amazonas/exercito-e-funai-destroem-garimpo-ilegal-no-vale-do-javari-no-amazonas/

16) http://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2017/12/1942928-apos-ataques-de-garimpeiros-am-outorga-licenca-para-extracao-do-ouro.shtml

17) http://www.oeco.org.br/noticias/mpf-quer-governo-federal-responsavel-

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p o r - g a r i m p o s - n o - a m a z o n a s /?utm_campaign=shareaholic&utm_medium=facebook&utm_source=socialnetwork

18) https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/general-ex-presidente-da-funai-se-torna-conselheiro-de-mineradora-no-para.shtml

19) http://livre.jor.br/brasil-tem-4-536-conflitos-socioambientais-latentes/

20) http://livre.jor.br/latentes/conflitos-latentes

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157VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

CADERNO FOTOGRÁFICO

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Figura 1 - Localização das aldeias Omágua na segunda metade do séc.XVII

Figura 2 - Vestígio de instrumento supostamente utilizado parabeneficiamento do algodão

Fonte: Porro, 1996.

Fonte: Material conservado na residência de Fermin e encontrado em sítio arqueológicoKambeba (2009).

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Fonte: Alexandre Rodrigues Ferreira, gravura “Indio Cambeba com suas armas” Iconografia,1971, p. 118.

Figura 3 - Omágua Kambeba com roupas de confecção própria

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Figura 4 - Marcas da cheia do rio no tronco das árvores no igapó

Figura 5 - Kanga Pewa: Omágua-Kambeba de cabeça chata

Fonte: Alexandre Rodrigues Ferreira, gravura "Indio Cambeba", Iconografia. 1971, p. 117.

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161VERMELHO QUE TE COBRE, AMARELO NOBRE

Figura 6 - Microregião do Alto Solimões no âmbito da tríplice fronteira

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Figura 7 - Localização da Terra Indígena Nova Esperança, do povoTikuna

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Figura 8 - Comunidade Bacaba, localizada na margem esquerda do Jandiatuba

Figura 9 - Comunidade Mata Cachorro, localizada na margem direita doJandiatuba

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Figura 10 - Vista parcial de uma draga em funcionamento em trecho doJandiatuba

Figura 11 - Vista aérea das dragas em operação e bancos de areia que apontamrisco de assoreamento

Fonte: Acervo NESAM, pesquisa de campo, 2016.

Fonte: Ibama, 2017.

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Figura 12 - Vista parcial de uma draga incendiada como resultado da operação

Fonte: Ibama, 2017.

Figura 13 - Vista parcial de uma draga atracada próximo ao porto da cidade

Fonte: Radaelli, pesquisa de campo, 2016.

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Figura 14 - Discussão, construção, pintura e finalização do croqui do rioJandiatuba

Fonte: Radaelli, pesquisa de campo, 2016.

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Figura 15 - Situação fundiária da região do Alto Solimões, localidade do rioJandiatuba

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Figura 16 - Um furo no igapó

Autoria: Radaelli, 2016.

Figura 17 - Aprendendo a ler e a escrever à luz de velas

Autoria: Radaelli, 2016.

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Figura 18 - Entrevista

Autoria: Rapozo, 2016.

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Figura 19 - Ilustração do mapa situacional de conflitos no Jandiatuba

Figura 20 - Construção do mapa situacional de conflitos

Autoria: Radaelli, 2016.

Autoria: Radaelli, 2016.

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Figura 21 - Comunidade Bacaba

Figura 22 - Menino na proa da canoa

Autoria: Radaelli, 2016.

Autoria: Radaelli, 2016.

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Figura 23 - Draga atracada próximo ao porto de São Paulo de Olivença

Autoria: Radaelli, 2016.

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