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Conflitos ambientais urbanos no estado de Minas Gerais –mesorregiões Campo das Vertentes e Zona da Mata- Vivian Prado PereiraRevista de graduação em Sociologia da USP - Primeiros EstudosTRANSCRIPT
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Conflitos ambientais urbanos no estado de Minas Gerais mesorregies Campo das Vertentes e Zona da Mata
Vivian Prado Pereira*
Resumo: O artigo realiza anlise crtica de dez casos de conflitos ambientais urbanos identificados em cidades mdias das mesorregies mineiras Campo das Vertentes e Zona da Mata. Os conflitos estudados indicam que a construo da cidade dual intrnseca ao padro de urbanizao brasileiro.Palavras-chave: conflitos ambientais, periferizao, cidades mdias, cidade dual, Minas Gerais.
I IntroduoO presente artigo apresenta resultados parciais de atividades de pesquisa realizadas no mbito do projeto Mapa dos conflitos ambientais no estado de Minas Gerais, desenvolvido pelo Ncleo de Investigaes em Justia Ambiental (NINJA),
vinculado ao Departamento de Cincias Sociais (DECIS) da Universidade Federal de
So Joo del-Rei (UFSJ), em conjunto com pesquisadores da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
Esse projeto teve como objetivo fazer um amplo levantamento de casos/conflitos envolvendo o uso e apropriao assimtrica dos recursos naturais e territrios no estado de Minas Gerais, ocorridos entre os anos 2000 e 2010, resultando na constru-
o, num stio da Internet, de um mapa interativo de conflitos ambientais no estado de Minas Gerais (). Esse mapa contm relatos sistemticos de 541 casos de conflito ambiental, contemplando todas as doze
mesorregies do estado estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tstica IBGE (Minas Gerais, 2000), que recobrem a extensa rea de 586.528 km.
No mbito do presente artigo, vamos nos ater aos conflitos ambientais urba-nos identificados em cidades mdias de duas mesorregies do estado, Campo das
Vertentes e Zona da Mata, que apresentam caractersticas analiticamente relevan-
tes, presentes no padro de ocupao e gesto do territrio urbano verificado nas
grandes e mdias cidades brasileiras e, de modo geral, nos pases semiperifricos da
economia-mundo capitalista.
* Graduada em Psicologia UFSJ.
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A segunda parte deste artigo dedicada a consideraes conceituais acerca do
padro caracterstico da produo do espao urbano das cidades da semiperiferia1, responsvel pelo desenvolvimento das chamadas cidades duais. As tenses e con-tradies desse processo constituem as determinaes mais gerais da ecloso dos conflitos ambientais urbanos, tematizados na terceira parte. Aqui, problematizam-
-se as concepes hegemnicas acerca da chamada questo ambiental, trazendo
ao centro da reflexo a imbricao entre as condies naturais e os processos scio-
-histricos de construo de territrios, com nfase nas assimetrias estruturais que
se verificam entre, de um lado, os agentes da acumulao de capital e, de outro, as classes trabalhadoras rurais e urbanas.Na quarta parte do artigo, o arcabouo conceitual desenvolvido nas sees
anteriores investido na anlise de casos empricos de conflitos ambientais urba-
nos identificados nas cidades mdias das mesorregies mineiras da Zona da Mata
e Campo das Vertentes. Por fim, na quinta parte, apresentamos, como concluso, a
considerao de que as contradies do processo de urbanizao brasileiro, assim
como as tenses e conflitos ambientais/territoriais correlatos, se reproduzem no crescimento mais recente das cidades mdias brasileiras.II A construo da cidade dual na semiperiferia da economia-mundo
A urbanizao da sociedade brasileira vem, desde o incio do sculo passado,
reproduzindo padres de extrema desigualdade social e ambiental, porque cons-
truda sobre os pilares da desigualdade histrica do pas, assentada em fatores como
a relao de favores na esfera do poder poltico; a forte concentrao da proprieda-
de fundiria, rural e urbana (reafirmada e perpetuada pela lei de terras de 1850); a
importncia do trabalho escravo; e a emergncia do trabalho livre, em 1888, desti-
tuda de condies de absoro da mo de obra pela economia de ento (Maricato,
2002).
Entretanto, para alm dessas especificidades, o padro de ocupao e gesto do
territrio urbano vigente na formao das cidades brasileiras no difere, em geral,
do que ocorre nos pases semiperifricos da economia-mundo capitalista. Caracte-
riza-se, fundamentalmente, pela constituio de cidades duais (Maricato, 2002). A
1 Para a exposio da noo de semiperiferia e suas implicaes para a anlise da estrutura da economia-mundo de acumulao de capital, veja-se Arrighi (1997, principalmente, p. 137 ss.).
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construo da cidade capitalista obedece, em ltima anlise, lgica dos interesses
especulativos do capital imobilirio e da construo civil, que contam com a suces-
so regular, ao longo das dcadas, de administraes municipais praticantes de for-
mas socialmente regressivas de gesto urbana, posto que promovem a concentrao
da aplicao dos recursos pblicos nas reas habitadas pelas classes privilegiadas
e naquelas que interessam expanso dos empreendimentos imobilirios. Nessas
reas, constri-se a cidade legal. Nela, o acesso moradia e urbanizao se d
pela combinao de dois mecanismos: a gesto pblica, ou seja, a ao do Estado, e
o funcionamento do mercado. A participao do capital se faz em cumprimento s normas que regulamentam a construo de espaos urbanos de moradia como mer-cadorias (loteamentos, condomnios etc), que exigem, dos capitalistas, o provimento
de itens essenciais de habitabilidade urbana, o que encarece a mercadoria final (ha-bitao urbana), tornando-a acessvel apenas a uma minoria da classe trabalhadora que recebe os mais altos salrios e s classes que vivem da extorso da mais-valia.
De outra parte, a construo da cidade ilegal segue outra lgica. No contexto
da semiperiferia da economia-mundo capitalista, o valor da fora de trabalho no
incorpora o acesso habitao e cidade como item essencial sua reproduo. As-
sim, extensas parcelas das classes trabalhadoras se vm obrigadas a obter o acesso
terra e habitao urbanas por meios extra-mercadolgicos, como as ocupaes
urbanas, e a compra da terra dos loteamentos no legalizados, mais barata porque
no dispe de equipamentos bsicos de saneamento e infraestrutura urbana.
Nessas reas, a ao do estado insuficiente, ou mesmo ausente. O moradores,
excludos do mercado imobilirio formal e abandonados prpria sorte pelo poder
pblico, so compelidos a se tornar protagonistas da construo das habitaes e
territrio urbano, acionando um complexo conjunto de estratgias: mutires para a
autoconstruo de casas e para a realizao de obras de infraestrutura; a sustenta-
o de lutas que reivindicam do Estado a implementao dos equipamentos de uso
coletivo e de servios bsicos; as ocupaes de terras urbanas que no interessam
ao capital imobilirio e etc (Vargas, 2006).
De toda sorte, as reas habitadas pelas populaes urbanas de baixa renda so
essas ltimas, tais como as margens inundveis de cursos dgua, as encostas sujei-
tas a deslizamentos, as reas de proteo ambiental em que ilegal a construo de
imveis, as regies perifricas muito distantes dos equipamentos e servios urba-
nos, as zonas de sacrifcio, prximas aos lixes, bota-foras, indstrias poluentes,
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enfim, todas aquelas reas que o discurso tcnico pe sob o rtulo estigmatizante de
reas de risco.
III Conflitos ambientais urbanos
Da perspectiva que nos orienta, a existncia de diferentes concepes e pro-
jetos de apropriao das condies naturais decorre do fato de que a relao dos
homens com a natureza no , ela mesma, naturalmente pr-determinada, mas sim,
condicionada por certas mediaes, como as relaes de produo (Marx, 2003).
Logo, nas sociedades de classes, particularmente a capitalista, tais mediaes impli-
cam a distribuio desigual dos capitais (materiais e simblicos), o que, por sua vez,
acarreta a distribuio desigual das possibilidades de xito nas lutas pela significa-
o e apropriao das condies naturais. Da mesma forma, as classes e grupos so-ciais subalternos tendem a suportar maior carga de danos ambientais decorrentes das prticas dominantes de apropriao das condies naturais.Entretanto, essa disputa no se d apenas pela utilizao de condies natu-
rais, mas tambm por cristalizaes do trabalho humano, ou momentos de valori-
zao do espao, que caracterizam os ambientes como territrios (Moraes, 2002). Quando as condies de que dispe determinado agente para realizar a apropriao dos recursos naturais (solo, cursos dgua, atmosfera) e construdos (saneamento
bsico, infraestrutura, entre outros) so prejudicadas pelas atividades ou projetos
de outros agentes, abre-se a possibilidade para que se instaure a situao que desig-
namos como conflitos ambientais urbanos, ou seja, aqueles envolvidos na constru-
o de territrios urbanos, protagonizados pelos grupos e classes sociais subalter-nizados pela produo capitalista da cidade.IV Anlise dos casos empricos2
Dadas as limitaes de espao, nos ateremos, aqui, anlise de alguns pro-
cessos geradores de conflitos ambientais urbanos nas cidades mdias3 das mesor-2 Os casos de conflitos ambientais urbanos aqui analisados no esgotam, claro, todo o universo de casos que efetivamente ocorrem nas cidades mdias das mesorregies Campo das Vertentes e Zona da Mata. Trata-se, aqui, de evidenciar casos que so emblemticos, no sentido de expressarem tenses recorrentes no padro de construo e reproduo das desigualdades urbanas dessas mesorregies.3 A noo de cidade mdia no consensual entre os pesquisadores, no existindo uma definio cristalizada do conceito. As definies de cidades mdias esto, comumente, sujeitas aos objetivos de seus pesquisadores
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regies mineiras Campo das Vertentes e Zona da Mata. A partir dos anos 1980, a
populao das cidades mdias passa a crescer a taxas superiores s das grandes
cidades. Essa acelerao do crescimento demogrfico das cidades mdias se deve a
um conjunto de fatores estruturais que remetem, por exemplo, aos deslocamentos
espaciais do capital em busca de vantagens competitivas (Harvey, 2004a) e re-gionalizao dos processos de acumulao de capital.No caso especfico das mesorregies mineiras da Zona da Mata e Campo das
Vertentes, o forte crescimento das cidades mdias parece tambm estar ligado aos
processos de migrao endgena a essas regies, que compartilham um modo de in-
sero particular na dinmica de acumulao de capital que se realiza em Minas Ge-
rais. O estado apresenta, hoje, uma economia de acumulao fortemente concentra-
da nas atividades de minerao, metalurgia, siderurgia e gerao de energia4. Essa situao foi forjada, desde princpios dos anos 1940, pela elite econmica do esta-
do, de modo a seguir a lgica da modernizao recuperadora nacional (Carneiro,
2003; Dulci, 1999; Diniz, 1981 e 2002). Na prtica, isso significou o deslocamento
efetivo do eixo da industrializao de Minas Gerais para a regio central do estado,
fato que, associado recesso econmica nacional dos primeiros anos da dcada de
1960, determinou a decadncia da industrializao nas mesorregies Campo das
Vertentes e Zona da Mata, as quais, na primeira metade do sculo passado, haviam
passado por um perodo de forte e precoce industrializao centrado em setores
tradicionais (laticnios, bebidas, alimentos, couros, mveis, txteis etc.). Assim, a
partir dos anos 1970, cidades como So Joo del-Rei, Barbacena, Ub, Muria, Ca-
taguases, Juiz de Fora, transformam-se, cada vez mais, em cidades-polo de reas
marginais ao centro da acumulao de capital em Minas Gerais, passando a atrair contingentes de migrantes da zona rural e da rea urbana de pequenos municpios prximos. O quadro se agrava ainda mais a partir dos anos 1980, quando o colap-
so dos intentos de modernizao recuperadora mergulha o pas num processo de
desindustrializao endividada (Altvater, 1995). Nesse novo contexto, diminui o
ou dos promotores de polticas pblicas (Filho; Serra, 2001). Desse modo, buscou-se considerar, no presente estudo, na classificao das cidades mdias, alm do aspecto demogrfico (mdia de 100 mil a 500 mil habitan-tes), critrios como o papel desempenhado pela cidade no mbito regional, diversificao de bens e servios ofertados localmente, tamanho do mercado local e grau de concentrao das atividades, sempre tendo em vista as especificidades regionais (Lopes; Henrique, 2010).4 Essa funo estratgica de produtora de bens intermedirios ligados ao complexo mnero-siderrgico ser uma das responsveis pelos maiores impactos sobre as condies naturais do territrio mineiro (Carneiro, 2004).
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volume dos repasses de recursos da Unio aos municpios, ao passo que aumentam
e diversificam suas responsabilidades em reas vitais, como a sade, o saneamento
e a educao. Esses processos ensejam, nas cidades mdias, a construo acelerada da cidade dual, replicando a ocorrncia de fenmenos e conflitos urbanos que, h algumas dcadas, j se verificavam nas grandes cidades do Sul-Sudeste do pas.
Observamos essa situao em diversos casos identificados na cidade de So
Joo del-Rei, localizada na mesorregio Campo das Vertentes, como o dos morado-
res do bairro guas Gerais, que organizaram a autoconstruo de ruas, assim como de um precrio sistema de captao e distribuio de gua potvel a partir de uma mina dgua existente na regio. Alm disso, lutam por acesso a gua potvel e sa-
neamento bsico, numa situao em que o esgoto a cu aberto e a ausncia do trata-
mento da gua ocasionam a incidncia de inmeras doenas.
H, ainda, problemas relativos eroso do solo, como se v no caso dos mo-
radores do bairro So Dimas, que reivindicam aes de conteno de voorocas,
agravadas com o passar do tempo, gerando risco de desabamento de casas, dada a
omisso dos proprietrios dos terrenos onde esto localizadas e do poder pblico.
Um conflito comumente encontrado o que envolve construtoras de lotea-
mentos irregulares. Assim, ainda em So Joo del-Rei, proprietrios de terrenos no
bairro Vila Belizrio denunciam falta de infraestrutura e ingressaram com ao ju-
dicial contra os empreendedores do loteamento. J Associao dos Moradores do
Bairro Matosinhos denunciou loteamento que previa a construo de valas para
o escoamento do esgoto que cairia, sem tratamento, no rio das Mortes. Enquanto
isso, moradores da vila Joo Lombardi denunciavam a recorrncia de inundaes no
bairro em decorrncia do despejo de esgoto e lixo de loteamentos irregulares nas
voorocas do entorno, o que vinha causando maior eroso e comprometimento das mesmas.J na cidade de Barbacena, ainda na mesorregio Campo das Vertentes, mora-
dores do bairro Santo Antnio reivindicavam melhorias na rede de esgoto. Outros
moradores, que habitam as proximidades da caixa de coleta de esgotos do Departa-
mento de Meio Ambiente e Saneamento de Barbacena (DEMASA), pleiteavam melho-
rias no equipamento, que estava exalando mau cheiro e incomodando a vizinhana.
Em Juiz de Fora, j na mesorregio da Zona da Mata, destacamos os casos de
ocupaes urbanas. A cidade vem atraindo expressivos contingentes de migrantes
da microrregio em que se situa e reas fluminenses do vale do Paraba limtrofes
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de Minas Gerais. A populao do municpio de Juiz Fora passou de 238.510 pessoas,
em 1970, para 513.348, em 20075. Isso quer dizer que, em menos de 40 anos, o mu-nicpio recebeu nada menos que cerca de 250.000 novos habitantes, dos quais mais de 99% residem na rea urbana6. Considerando as caractersticas do padro exclu-dente de urbanizao das metrpoles brasileiras acima indicado, conclui-se que boa
parte desses 250.000 habitantes esteve envolvida, nas ltimas quatro dcadas, num
monumental processo de construo da cidade ilegal.
Dados do Instituto de Pesquisa e Planejamento (IPPLAN), da Empresa Regio-
nal de Habitao de Juiz de Fora S.A. (EMCASA), e da Universidade Federal de Juiz de
Fora indicam que cerca de 30.000 juiz-foranos vivem em habitaes subnormais
(ocupaes irregulares, reas carentes de infra-estrutura e servios pblicos etc),
em 79 reas de ocupao (Vargas, 2006, p. 45).
Assim, no surpreende que a pesquisa emprica tenha identificado um grande
nmero de ocupaes irregulares, e conflitos relacionados. Os dados apresenta-
dos pelo presidente do Movimento Nacional de Luta por Moradia em Juiz de Fora
(MNLM-JF), em entrevista e durante a oficina com movimentos sociais da Zona
da Mata, divergem fortemente das informaes oficiais. Segundo o presidente do
MNLM-JF, h, atualmente, em Juiz de Fora, 144 reas ocupadas, nas quais viveriam
cerca de 60.000 pessoas, isto , precisamente o dobro do nmero informado pelas
fontes oficiais.
Entre os vrios casos de ocupaes urbanas de Juiz de Fora, destacamos as
ocupaes Ponte Nova, Granjas Bethnia e Vila Barroso. Em todas encontramos si-
tuaes semelhantes, como ausncia de equipamentos e servios bsicos de infraes-
trutura urbana, gerando condies insalubres de moradia e comprometimento da
sade da populao, e falta de regularizao de posse do terreno.
As ocupaes Ponte Nova e Granjas Bethnia so exemplos da participao
nula do capital na construo de espaos urbanizados. Trata-se de espaos que no
interessam ao capital, localizados em regies no viveis especulao imobili-
ria, como reas de proteo ambiental, reas degradadas por atividades industriais
(com alto ndice de poluio sonora, atmosfrica e hdrica), reas com recorrncias
de alagamentos e enchentes, com elevada eroso do solo etc.
5 Em .6 Conforme .
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Do ponto de vista da acumulao de capital e dos gestores urbanos, essas ocu-
paes so, em larga medida, funcionais (Carneiro, 2005). Em primeiro lugar, elas
servem de vlvula de escape, reduzindo as presses sobre o poder pblico por pol-
ticas pblicas de habitao popular e, portanto, ajudando a preservar a legitimidade
dos governantes junto populao local. Isso permite ainda ao Estado poupar o gas-to de recursos que teriam que ser investidos na construo de moradias e territ-rios urbanos para populaes de baixa renda. Pelo contrrio, esses recursos podem,
inclusive, ser empregados em atividades da gesto urbana socialmente regressiva
(como, por exemplo, o embelezamento e urbanizao de reas j capturadas pelo
capital, que, dessa forma, se valorizam). De outra parte, as ocupaes em reas
que no interessam ao capital imobilirio preservam, para ele, as regies rentveis.
Por fim, as ocupaes permitem a no incluso dos custos de moradia e do acesso
cidade nos salrios, facultando a realizao da acumulao de capital, principalmen-
te naqueles setores intensivos no emprego de mo de obra pouco qualificada. Por
essas razes, como salienta Maricato (2002), a farta legislao urbanstica aplica-
da de forma seletiva: nos casos de ocupaes que se mostram funcionais s clas-
ses dominantes, o poder pblico se mostra tolerante; nos casos em que as ocupa-
es ameaam os interesses hegemnicos, a fiscalizao e a aplicao da legislao
so implacveis. Aqui, ganha destaque, por exemplo, a prevalncia do princpio da propriedade privada sobre o preceito constitucional que preconiza a observncia da funo social dessa propriedade. So inmeros os casos de remoes violentas
dos moradores de ocupaes urbanas que esto na linha de expanso dos negcios
imobilirios. Nesses casos, os moradores da ocupao se vm obrigados a organizar
aes de resistncia ao deslocamento compulsrio que as ameaa. O desfecho de
cada caso depende da correlao de foras entre os agentes favorveis e contrrios
desocupao.
O caso de ocupao irregular juiz-forano mais extremo, em termos da preca-
riedade das condies de habitabilidade, , sem dvida, o da vila Barroso, tambm
pejorativamente denominada Afeganisto. Ela se constitui em processo diferente
das outras duas, pois ocorreu em um terreno de propriedade da empresa multina-
cional de cimento Holcim. A populao local continua vivendo em situao de in-
salubridade, embora tenha obtido, da empresa, a cesso definitiva do terreno. Em
casos raros como esse, o capital se v pressionado, pelas lutas populares, a trans-
ferir riqueza para as classes populares, num processo de inverso da acumulao
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por espoliao, tal como definido por Harvey (2004b), ou seja, quando o capital se
apropria de riquezas e recursos comuns mediante coao (geralmente exercida pelo
Estado).O caso das ocupaes urbanas pe em relevo outro elemento estrutural do processo de urbanizao em nosso pas: a precariedade ou mesmo ausncia de po-lticas pblicas de enfrentamento do enorme dficit habitacional, ou seja, de cons-
truo de moradia urbana para as famlias de baixa renda. Recentemente, em 2009,
o governo federal lanou o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), que tinha
como objetivo, no s subsidiar a compra da casa prpria, mas, principalmente, im-pulsionar a construo de moradias de modo a minimizar o impacto da crise in-ternacional eclodida em 2008 (Maricato, 2011). Para a autora, o PMCMV retomou
conceitos antigos, vigentes durante o regime militar, sobre a promoo de habita-
o. Com interesse apenas na quantidade de moradias, ignorou a questo central
que a condio urbana, desprezando a cidade pr-existente. Embora se destine
necessidade real de insero da moradia no meio urbano, o pacote no garante essa
condio devido aos agentes que esto envolvidos em sua formulao e operao
(Maricato, 2011, p. 59). A proposta foi formulada em parceria do governo federal
com as onze maiores empresas promotoras de moradias (construtoras e incorpora-
doras) do pas. Em contrapartida, no foram incorporados os avanos conceituais
sobre habitao social e as diretrizes do Planhab (Plano Nacional de Habitao) e
do FNHIS (Fundo Nacional de Habitao e Interesse Social). A anlise do PMCMV,
tendo como referncia a experincia da poltica habitacional implantada nos anos
70, j mostra o impacto negativo sobre as cidades devido localizao inadequada
de grandes conjuntos habitacionais e ao aumento do preo da terra e dos imveis
(Maricato, 2011, p. 68).
V Concluso
Os casos de conflitos ambientais urbanos aqui destacados podem ser tomados como contundentes evidncias de que a relativa desconcentrao do adensamento populacional nas metrpoles em favor de maiores taxas de crescimento demogrfi-
co nas cidades mdias no significou a ruptura com os processos sistmicos de (re)produo da cidade dual, expresso que pretende designar estenograficamente a trgica fratura que, reiterando-se ao longo das dcadas, demarca abismos de desi-
gualdades scio-ambientais aparentemente intransponveis. Pelo contrrio, os con-
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flitos empricos aqui reportados indicam que essa fratura teima em se reapresentar na trajetria recente das chamadas cidades mdias brasileiras.Nesse sentido, a investigao rigorosa dos conflitos ambientais urbanos que
tm lugar nas cidades mdias brasileiras parece-nos tarefa inarredvel para o avan-o da compreenso acerca dos processos contemporneos de espacializao da acumulao do capital no pas. Esse avano , a nosso ver, indissocivel do enfren-
tamento prtico-poltico das histricas desigualdades ambientais e territoriais ur-
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Recebido em dezembro/2012Aprovado em fevereiro/2013