conceito e sentido em frege
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FILOSOFIA, ANTROPOLOGIATRANSCRIPT
Maria Luisa CoutoSoares
CONCEITO E SENTIDO
Introdução à Filosofia da Linguagem de Frege
ABREVIATURAS UTILIZADAS
Begriffsschrift ................................................................................................
Die Grundlagen der Arithmetik ....................................................................
Grundgesetze der Arithmetik ........................................................................
Funktion und Begriff .....................................................................................
Über Sinn und Bedeutung .............................................................................
Über Begriff und Gegenstand .......................................................................
Kritische Beleuchtung einiger Punkte in E. Schroeder's Vorlesung über
die Algebra der Logik .................................................................................
Der Gedanke .................................................................................................
Die Verneinung .............................................................................................
Gedankengefüge ............................................................................................
DUMMETT, Frege, Philosophy of Language ...............................................
Bs
Grl
Gg
FB
SB
BG
KB
G
V
Ggf
FPL
2
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ........................................................................................................
I. LÓGICA DO CONCEITO ............................................................................
I.1 O CONCEITO COMO FUNÇÃO .....................................................
I.2 CONCEITO E OBJECTO .................................................................
I.3 O NÚMERO: EXTENSÃO DO CONCEITO ...................................
I.4 A NOÇÃO DE CLASSE ...................................................................
II. SEMÂNTICA DO CONCEITO ....................................................................
II.1 A NOÇÃO DE SENTIDO .................................................................
1.1 A distinção entre Sinn e Bedeutung na obra de Frege ...........
I.2 Sentido e representação (Vorstellung) ...................................
I.3 Sentido dos nomes próprios ...................................................
I.4 Sentido e Conceito .................................................................
I.5 Sentido e Pensamento ............................................................
II.2 A NOÇÃO DE REFERÊNCIA .........................................................
2.1 Referência dos nomes próprios ..............................................
2.2 Referência e Verdade .............................................................
II.3 REFERÊNCIA DAS EXPRESSÕES INCOMPLETAS ...................
3.1 Estatuto ontológico do conceito .............................................
3.2 Referência e Existência ..........................................................
CONCLUSÃO ..........................................................................................................
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................
Pág.
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I – LÓGICA DO CONCEITO
3
4
I – LÓGICA DO CONCEITO
A consideração de todo o pensamento de Frege como uma "filosofia do conceito" está
perfeitamente justificada pela sua própria afirmação, na Introdução aos Grundgesetze, de que
é o conceito uma das pedras basilares de toda a sua construção. Não se trata de uma frase
circunstancial ou de mera retórica, mas, pelo contrário, oferece uma boa perspectiva para
abarcar todo o trabalho intelectual de Frege, como matemático, como lógico, como analista da
linguagem e como filósofo.
Assim, adoptei como metodologia e perspectiva, a consideração de toda a obra de
Frege, desde a Begriffsschrift até aos escritos póstumos e correspondência, como uma
meticulosa e perspicaz elucidação da noção do Begriff, procurando seguir e respeitar o próprio
sentido em que Frege o considera, ou seja, em sentido estritamente lógico, enquanto elemento
do pensar objectivo. O rigor e a nitidez com que Frege delimita, caracteriza e define a sua
própria tarefa, garante uma acuidade e uma clareza inexpugnáveis nas suas análises,
destrinçando as questões dos vários campos. Por esta nitidez dos contornos e dos limites, o
pensamento de Frege apresenta-se como que isento da resolução de outras questões, como as
epistemológicas e as ontológicas, que inevitavelmente despontam no horizonte da teoria
lógica do conceito.
Um outro ponto a notar, quanto à metodologia adoptada, é o de que, obviamente, esta
perspectiva não considera o aspecto histórico e evolutivo do pensamento fregeano1. Apesar de 1 Apesar da perspectiva de continuidade adoptada, muitos autores consideram que o pensamento de Frege é um pensamento em constante evolução e transformação, no qual se poderiam distinguir diversas etapas: a primeira, protagonizada pela Conceptografia, está dominada pela preocupação de justificar a linguagem conceptográfica e definir o programa logicista. As questões fundamentais desta primeira fase são: 1) as relações entre a linguagem conceptográfica e a linguagem comum; 2) as relações entre a aritmética e a lógica; 3) as noções de pensamento puro e de prova lógica pura, origem da noção fregeana de verdade analítica. Uma segunda etapa é marcada pela realização do programa logicista ( Gla e Gg), por um lado; e por outro lado a fundamentação da linguagem conceptográfica ( sobretudo nos escritos semânticos dos anos 90). Nomeadamente em FB, Frege manifesta já a sua preocupação pelas questões ontológicas subjacentes, levando a cabo uma explicitação da natureza de certas entidades matemáticas e lógicas, como os números, os valores de verdade, as extensões, as funções e os conceitos, os objectos, as funções de verdade, a generalidade, etc.. É sobretudo a partir deste escrito que se torna patente a clara distinção e contraposição das noções de conceito e objecto. A distinção entre sentido e referência surge para dar conta do diferente valor cognoscitivo dos múltiplos enunciados verdadeiros.. Com este novo par de noções, Frege desvia a atenção da linguagem conceptográfica, para se concentrar na linguagem corrente, na qual se exprime o sentido.Entre FB e SB, há a passagem da elucidação da linguagem conceptográfica, tema central no primeiro escrito, para a consideração da linguagem comum, sobre a qual se centra predominantemente o segundo. Aqui se entrecruzam, sem se identificarem nem confundirem, as noções de conceito e sentido, como se verá adiante. A primeira década do século XX está marcada pelas críticas de Russell à semântica e linguagem conceptográfica de Frege e sobretudo pela descoberta da contradição do seu sistema lógico, apontada pelo mesmo Russell.
A última etapa, das Investigações Lógicas, assinala o interesse central de Frege na defesa da objectividade da ciência e do pensamento, que o leva a formular o “terceiro reino”, domínio das realidades
ser incontestavelmente útil, situar os vários períodos da vida e obras de Frege, detectando
pequenas mudanças, acertos e cambiantes, não há dúvida que as principais visões de fundo
estão latentes desde os primeiros escritos, sendo paulatinamente clarificadas e confirmadas ao
longo da obra de Frege. Foi útil para esta descoberta das intuições mais genuinamente
fregeanas, a leitura comparada de alguns dos seus escritos lógicos com certos trechos dos
escritos póstumos e da correspondência.
A primeira parte deste trabalho é dedicada à noção peculiar do Begriff, considerando a
perspectiva lógica, explanada fundamentalmente na Begriffsschrift, nos Grundlagen e nos
Grundgesetze, as três grandes obras de Frege, e nos seus ensaios lógicos. Apresenta-se assim
o conceito no seu dinamismo próprio que se manifesta essencialmente pelo seu carácter
funcional, transformador, como algo que existe realmente, tão realmente como os próprios
objectos, com os quais no entanto nunca se confunde, entre os quais nunca se dissolve.
Ao fazer um balanço de todo o seu trabalho filosófico, num escrito de 19062, Frege
aponta em primeiro lugar, como uma das suas ideias fundamentais, o carácter funcional do
conceito. Este ponto de vista revela-se com efeito fundamental em toda a sua lógica do
conceito que assenta no reconhecimento de um domínio de realidades objectivas, mas não
actuais, não temporais, que não meros conteúdos mentais, embora sejam captadas pela mente.
A esse domínio peculiar se refere expressamente Frege inúmeras vezes em toda a sua obra,
como sendo o domínio próprio da lógica, como ciência do pensamento e suas leis: "para mim
há um domínio do que é objectivo, que é distinto do que é actual [Wirklich3], enquanto que os
lógicos psicologistas consideram sem mais, o que não é actual como sendo subjectivo"4.
objectivas mas não actuais, o domínio dos pensamentos, do sentido. A sua insistência em distinguir entre pensamento e representação, a separar o pensamento verdadeiro da respectiva apreensão pela mente, levará Frege a abordar o problema do sujeito pensante, do Eu, problema para o qual Frege não tem uma solução satisfatória, domminado sempre pela defesa e garantia da absoluta objectividade dos pensamentos, das verdades intemporais, transcendendo qualquer referência à subjectividade ou à consciência pensante.
Devo estas notas sobre a evolução do pensamento de Frege e suas aporias, a comentários de Angel d’Ors.2 FREGE, "Was kann ich als ergebnis meiner Arbeit ansehen?" (August 1906) Nachgelassene Scriften, p.
200.3 A noção de Wirklichkeit em Frege deve ser traduzido por actualidade, e não por realidade; para Frege
ser actual (wirklich) significa ser no espaço e no tempo, estar sujeito à acção de um outro; ser real abarca, para além do actual, também o objectivo. Os conceitos, os sentidos, os pensamentos são reais, embora não actuais. Cfr. Dummett, ob. cit., p. 392; cfr. também. "Der Gedanke" [G], Kleine Schriften, Logische Untersuchungen, pp. 342-362.
4 Grundgesetze der Arithmetik [Gg], pp. 15-16.
Creio que a tarefa filosófica de Frege se pode exprimir sinteticamente como uma
análise exploratória deste domínio, tendo por base uma fenomenologia rigorosa, cujas
afinidades com Husserl se poderiam apontar, tendo em conta uma diferença fundamental: o
noema husserliano não é, neste caso, um conteúdo de consciência, mas esse mesmo reino do
objectivo não actual, que envolve o mundo dos pensamentos, dos conceitos, dos sentidos, dos
objectos lógicos.
O conceito não é, para Frege, nem um conteúdo mental, nem um produto (ou uma
síntese) de um acto de pensar: um conceito é algo de objectivo que nós não construímos, que
tão pouco se constrói em nós, mas que procuramos apreender e que, em última análise nós
conseguimos de facto apreender, desde que não cometamos o erro de procurar uma realidade
onde não existe nada.5 Frege insiste neste carácter de independente do conceito em relação à
nossa própria captação ou a um construtivismo conceptual: que "3 é um número inteiro" é
uma verdade objectiva, não construída por mim a partir de um conceito de 3 posto em relação
com um conceito de número inteiro. Não se trata de um processo interior que termina na
construção de uma proposição ("3 é um número inteiro"), mas sim de uma verdade que foi e
será objectivamente válida, independentemente do nosso estado de vigília ou de sono,
indiferente ao facto de que haja ou deixe de haver indivíduos capazes de reconhecer essa
verdade6.
A diferença entre conceito e representação é reiteradamente afirmada e defendida por
Frege: uma representação forma-se e transforma-se dentro de um processo temporal; tem uma
duração própria, tem uma história, existe num indivíduo determinado. Um conceito, pelo
contrário, está fora do tempo (não é actual), não necessita de um portador para existir
enquanto conceito, não faz parte do conteúdo de uma consciência individual. A atribuição de
um conceito (uma propriedade) a um objecto não é fruto de um processo de abstracção a
partir dos objectos reais, actuais, até uma entidade mais ténue, mais enfraquecida, que seria o
conceito; para Frege a subsunção de um objecto por um conceito é o reconhecimento de uma
relação preexistente, de um aspecto formal dado na própria realidade. O conceito não é re-
presentação porque não se apresenta em vez dos objectos, a sua função não é re-presentativa
ou refigurativa; o conceito é um dos aspectos da própria realidade objectiva, o aspecto não
material, mas formal. O par conceito/objecto7 assume no pensamento de Frege,
5 Cfr. "Über das Trägheitsgesetz" (1890) cit. por LARGEAULT, Logique et Philosophie chez Frege, Paris-Louvain, Ed. Nauwelaerts, 1970, p. 59.
6 Cfr. ibid., pp. 58-59.7 A distinção entre conceito e objecto surge no pensamento de Frege, sobretudo a partir de FB.
operacionalmente, um certo carácter hilemórfico: constituem, tal como a matéria/forma
aristotélicas, dois co-princípios da realidade, inteligíveis apenas em relação. A noção fregeana
de objecto pode pensar-se como matéria8, enquanto sujeito indeterminado e virtual de todas as
determinações, impossível de apreender a não ser por via da forma, do conceito.
Se Frege tivesse sido físico, o seu ponto de partida para a teoria do conceito seria sem
dúvida o da relação matéria/forma. Sendo matemático, o seu binómio de partida foi o da
função/argumento. A forma, determinante, princípio de unidade, que é forma de uma matéria,
podendo no entanto pensar-se em formas não materiais, embora não se possa pensar em
matéria sem forma (tal como não se pode pensar em objecto sem conceito), é portanto
incompleta em si mesma e por isso capaz de determinar, de completar; esta forma pode ser
visualizada como função, sendo a sua "matéria" o argumento, no caso da função matemática,
o número, que Frege considera como objecto.
Matéria/forma, objecto/conceito, argumento/função constituem pares de co-princípios
de uma realidade complexa. O conceito fregeano aproxima-se mais da forma aristotélica do
que do eidos platónico, precisamente porque Frege não explora o distanciamento, a separação,
o hiato entre conceito e objecto, até ao ponto de os hipostasiar em dois mundos, mas procura
justificar a unidade complexa do todo conceito/objecto. O conceito, como forma ou como
função, faz parte integrante do mundo real de que falamos, que conhecemos, que podemos
captar: o universo real de Frege é constituído por LOGOS e por PHYSIS, cuja
heterogeneidade radical é resolvida em termos de saturação. O que caracteriza
fundamentalmente o conceito, a relação e a função é o facto de ser insaturado e é essa
característica que lhes permite penetrar o mundo dos objectos, fundindo-se com eles numa
unidade que assim se torna inteligível. A PHYSIS está penetrada e é perpassada pelo LOGOS,
não como duas partes que se unem para formar um todo (e o problema seria sempre explicar,
justificar essa união), mas como um todo dado, no qual podemos distinguir aspectos,
perspectivas, mas nunca as podemos separar ou isolar. Assim o conceito, o pensamento está
tão incrustado nas entranhas do universo real, que a nossa tarefa é desvendá-lo, recolhê-lo
com a nossa própria acção de pensar: e pensar mais não é do que ver o que não se vê.
Uma análise sobre o próprio conceber parte portanto desta perspectiva: conceber é
"ver", mas "ver" o quê? E como se dá esse acto de ver?
8 Do objecto só dá FREGE uma definição negativa: "um objecto é tudo o que não é uma função", Funktion und Begriff [FB], Kleine Schriften, p. 134. Cfr. ARISTÓTELES, Metafísica Z, 3 1029 a 5-15; Física I 192 a 31, III 207 a 26, onde a matéria é apresentada como o sujeito (hypokeimenon) último de todas as formas, ou seja, matéria é tudo o que não é forma.
As duas questões fundamentais que se põem são:
1ª — Se os conceitos não são constituídos pelos objectos, mas são feitos de notas
características e no entanto existem na realidade, tal como os próprios objectos, que tipo de
"realidade" ou de "entidade" são?
2ª — Sendo independentes da nossa mente, independentes da nossa apreensão ou
conhecimento, pertencentes a um domínio atemporal, como se explica a possibilidade de
serem apreendidos e entrarem em relação com a nossa mente? Para o conhecimento dos
objectos, é possível percorrer todo um processo casual que parte do próprio objecto até ao
sujeito cognoscente. No caso do conceito esse processo não se verifica: um conceito não
impressiona os nossos sentidos, não dá origem a sensações ou a percepções sensíveis.
À primeira questão, Frege responderá com a elucidação do próprio estatuto do
conceito: trata-se de uma entidade incompleta, insaturada, mas a sua incompletude ou
insaturação não significam em Frege falta de realidade. A sua justificação assenta num
princípio básico da constituição do seu universo ontológico: o objectivo não actual, não pode
ser identificado com o subjectivo (nem mesmo com o subjectivo transcendental); é também
real, tem um modo peculiar de existir.
Quanto à segunda questão, é difícil encontrar na obra de Frege uma resposta cabal,
talvez por não estar centralmente preocupado com a questão epistemológica da justificação
última dos nossos conhecimentos. A sua tarefa de lógico consistia sobretudo em justificar o
nosso reconhecimento de uma verdade, apelando para outras verdades já reconhecidas. Se há
verdades conhecidas por nós, tem que haver juízos cuja justificação deverá radicar em algo
que não seja outro juízo prévio, uma vez que toda a cadeia de inferências tem que começar
com algumas premissas. À epistemologia corresponde a tarefa de investigar os fundamentos
não inferenciais do reconhecimento da verdade. A lógica caracteriza-se pela indagação de
justificações que invoquem verdades previamente conhecidas.
A resposta à primeira questão envolve um certo compromisso ontológico que se pode
captar no pensamento de Frege; a resposta à segunda exigiria a formulação clara de uma
epistemologia que creio estar fora dos objectivos e tarefas a que se propôs Frege. Situando-se
dentro desse domínio do objectivo, não actual, que reconhece como o domínio próprio da
lógica, Frege nele se instala e é dele que se propõe ocupar. Não se preocupa com a
apresentação de nenhuma prova da existência desse domínio, nem da justificação do seu
reconhecimento. O único argumento invocado por Frege para comprovar a existência dos
conceitos é o que apresenta no texto "Der Gedanke", para justificar precisamente as sensações
e percepções do mundo sensível, externo: para ver, não basta ter impressões sensíveis; estas
são certamente necessárias, mas temos que acrescentar algo de não sensível. Este algo de não
sensível, que nos abre para o mundo externo, é o mundo dos pensamentos, dos conceitos, das
relações: um mundo que, sendo independente de nós e dos processos de apreensão intelectual,
atemporal, não individual, nos é apresentado, nos é dado. O itinerário de Frege será o de partir
para uma análise desse domínio, libertando-se das questões psicológico-genéticas, ou das
epistemológicas, como ponto de partida de toda a tarefa lógica e filosófica. Isto não significa
de modo nenhum que Frege fosse indiferente às questões epistemológicas. Significa apenas
que não as tomou como o ponto de partida da sua filosofia, nem fez depender delas a
resolução do problema fundamental que o ocupará: demonstrar que a matemática é um ramo
da lógica, e construir o seu sistema lógico no mais vasto sentido da palavra, como uma teoria
do raciocínio dedutivo.
I.1 O CONCEITO COMO FUNÇÃO
No prólogo da sua Bs, Frege considera que um dos principais contributos desta obra
para o desenvolvimento da lógica é, sem dúvida a substituição das noções de sujeito e
predicado pelas de função e argumento, substituição que o tempo se encarregará de confirmar.
É fácil ver como a apreensão de um conteúdo como função de um argumento é ilustrativa
para uma apreensão formadora de conceitos9. Esta substituição deve-se em parte ao facto de
que sujeito/predicado é uma distinção mais dependente da gramática e da linguagem, do que a
de função/argumento. E, se bem que Frege veja na linguagem um bom campo para uma
análise da estrutura do pensamento, por outro lado adverte contra o perigo de dar demasiado
peso às distinções linguísticas: exemplo disso é justamente a análise lógica de um juízo como
tendo um sujeito e um predicado.
"Em vez de seguir cegamente a gramática, o lógico deveria antes ver a sua tarefa como
a de libertar-nos dos grilhões da linguagem. Porque embora seja verdade que o pensamento,
pelo menos nas suas formas mais elevadas, só é possível por meio da linguagem, temos que
ter muito cuidado para não nos tornarmos dependentes da linguagem; muitos dos erros que
ocorrem no raciocínio têm a sua fonte nas imperfeições lógicas da linguagem"10.
A Bs (a lógica simbólica proposta por Frege) propõe-se apresentar uma linguagem que
registe, não os aspectos retóricos, mas unicamente o conteúdo conceptual (den begrifflichen
Inhalt)11, que é o que conta para a sua ideografia. Assim uma proposição como "os Gregos
derrotaram os Persas" tem o mesmo conteúdo conceptual que a proposição "os Persas foram
derrotados pelos Gregos", embora o sujeito da primeira seja diferente do da segunda. A Frege,
como lógico e matemático, interessa-lhe destacar que tanto Persas como Gregos são dois
termos de uma relação, que têm igual importância do ponto de vista lógico.
A terminologia função/argumento, em vez de sujeito/predicado permite uma maior
independência em relação à linguagem normal e à gramática, mas sobretudo, Frege antevê já
a luminosidade da noção de função para a compreensão da formação dos conceitos. Na Bs
9 Begriffsschrift [Bs], Introduction, p. 7. Note-se que nesta obra Frege concentra a sua atenção na construção de uma linguagem conceptográfica.
10 FREGE, "Logik", Posthumous Writings, p. 14311 Cfr. Bs § 3.
esta ideia é apenas sugerida no Prólogo e no § 912, Frege considera a função como a parte
invariável de uma expressão, sendo o seu argumento a parte da expressão substituível:
"Se numa expressão, cujo conteúdo não necessita de ser um juízo, aparece um símbolo
simples ou composto em um ou mais lugares, e se o pensamos como substituível em todos ou
em alguns destes lugares por algo de diferente, mas sempre pelo mesmo, então à parte da
expressão que aparece sem alteração chamamos função, e à parte substituível, o seu
argumento". Função e argumento são portanto já definidos como categorias linguísticas13, e a
distinção entre função e argumento vem explicitada em termos de determinado/
indeterminado14: pode-se dizer que o argumento da função "ser representável como a soma de
quatro quadrados" é indeterminado, pois esta pode ser saturada com qualquer número inteiro:
qualquer número inteiro é um possível argumento para esta função15.
A função surge como o elemento invariante, o estável, o que permite estabelecer as
ligações entre os elementos indeterminados, os elementos "soltos", ou livres.
Por que afirma Frege que a captação de um conteúdo como função de um argumento
se transforma facilmente numa apreensão formadora de conceitos16? A ideia é explicitada num
escrito muito posterior à Bs, Funktion und Begriff [FB]17. O ponto de partida é a noção
matemática de função, e Frege esclarece que se cingirá às funções de um único argumento18.
Depois de uma longa referência aos defeitos das teorias formais da aritmética, já
extensamente apontadas nos Grundlagen der Arithmetik, § 92, que fundamentalmente
identificam o signo com o seu designatum – o numeral com o número, a expressão funcional
com a função – Frege afirma que a característica própria da função é a insaturabilidade
(Ungesätigtheit), isto é, o facto de ser incompleta, necessitada de complementação. A função
não se pode portanto identificar com um número determinado, ela não é a referência de uma
expressão do cálculo, como por exemplo de "2.13+1" ou de "2.23+2" ou "2.43+4". Cada uma
destas expressões refere respectivamente os números 3, 18 e 132. A função propriamente,
sendo a parte invariante desta expressão deveria exprimir-se "2. ( )3 +
12 Bs § 9, p. 22.13 Cfr. ANGELELLI, Studies on Gottlob Frege and traditional Philosophy, Dordrecht-Holand, D. Reidel
Publishing Company, 1967, p. 153.14 Indeterminado, que não significa insaturado. Na Bs indeterminação significa "quantificação universal"
(cfr. § 1.15 Cfr. Bs § 9, p. 17.16 Cfr. ibid., p. 7.17 Funktion und Begriff [FB], conferência proferida a 9 de Janeiro de 1891, na Jenaischen Gesellschaft für
Medizin und Naturwissenschaft, H. Pohle, Jena, 1891.18 Cfr. FB, Kleine Schriften, p. 125.
+ ( )"19. Mas esta expressão não poderia ser sinal da função, pois não significa nada, nem
mesmo indica que o signo numérico tem que ser substituído por um mesmo valor nos dois
lugares vazios. Frege escolhe para designar a função uma expressão contendo a letra grega
"2.3 + ".
O que importa destacar na expressão, é que o argumento não faz parte da função, mas
é o elemento que vem saturar, completar a função. A decomposição das duas partes da
expressão funcional faz ressaltar a heterogeneidade dos dois elementos: enquanto o
argumento é um todo completo, saturado, fechado em si mesmo, a função apresenta-se como
uma realidade incompleta, aberta, insaturada20.
O exemplo com que Frege apresenta a estreita ligação entre a função matemática e o
conceito lógico é o de x2 = 1, função para a qual existem apenas dois números (1 e -1) que dão
à função o valor de verdadeira. Isto mesmo pode exprimir-se dizendo que "o número -1 tem a
propriedade de que o seu quadrado é 1", ou "-1 é uma raiz quadrada de 1", ou "-1 cai sob o
conceito de raiz quadrada de 1"21. Daqui conclui Frege, que se pode dizer que "um conceito é
uma função cujo valor é sempre um valor de verdade"22. Não se trata de modo algum de uma
definição de conceito, pois para Frege não se pode exigir que tudo seja definido, "da mesma
maneira que não se pode exigir do químico que decomponha todas as substâncias"23. E o
conceito é para Frege uma dessas noções simples da lógica que carece de definição
propriamente dita24. Trata-se apenas de explorar a analogia entre o par função-argumento e o
par conceito-objecto, analogia que se fundamenta no carácter comum à função e ao conceito –
da insaturabilidade (que corresponde à predicabilidade para o conceito), e no carácter comum
ao argumento e ao objecto – o de serem realidades completas, saturadas. Note-se que se trata
de uma analogia de proporcionalidade (analogia de relações, ou de proporções), que exprime
a relação: o argumento está para a função, como o objecto está para o conceito, ressalvando
que o argumento de uma função não tem necessariamente que identificar-se com um objecto, 19 Cfr. ibid., p. 24.20 Cfr. ibid., p. 24; cfr. THIEL, C. Sinn und Bedeutung in der Logik Gottlob Freges, Hain, Neisenheim,
1967 (trad. esp. Sentido y referência en la logica de Frege, Madrid, Tecnos, 1972, p. 80): cita Church, que afirma que as funções são "objectos abstractos não suficientemente reais", com um tipo de abstracção incompleta.
21 Cfr. FB, Kleine Schriften,, p.133.22 Cfr. ibid., p.133.23 Cfr. "Über Begriff und Gegenstand" (1892) [BG], Kleine Schriften, p. 167.24 Sobre a noção de "simplicidade lógica" e "definições", cfr. DUMMETT, M. Frege, Philosophy of
Language [FPL], London, Duckworth, 1973, p. 25: "While he stressed that it is impossible that every word should be defined, it is only very seldom that he stated of any particular word, that it defined; examples for which he did hold this are the sign of identity, the word 'true', and the terms 'object' and 'function'". Cfr. DUMMETT, The Interpretation..., p. 235.
como é o caso das funções de segundo nível ("as funções cujos argumentos são e devem ser
funções"). Do mesmo modo, conceito não se identifica com função: é um tipo de função de
um argumento; são também funções as relações, que são funções de dois ou mais argumentos.
É a noção de função de um argumento que permite estabelecer a analogia com os conceitos de
primeiro nível, isto é, os conceitos que subsumem objectos. A amplificação da noção
matemática é que permite a Frege mostrar que o conceito e a noção de mapping (aplicação)25
são ideias convergentes; as funções podem tomar como argumentos, não apenas números,
mas objectos, e os valores de verdade podem ser considerados como os possíveis valores da
função. Aqui passamos do domínio da matemática para a lógica, aplicando a mesma
decomposição das asserções em duas partes, uma completa em si mesma, e a outra
necessitando de complementação, sendo insaturada26. "Ser capital de..." é uma expressão de
referência incompleta, insaturada, que se pode transformar numa expressão de referência
completa, atribuindo-lhe um argumento (um objecto), por exemplo: o Império Alemão, para o
qual obtemos como valor da função, Berlim.
Objecto é aqui introduzido apenas como o análogo a argumento. É outra noção que
pela sua simplicidade lógica não admite decomposição e é portanto indefinível. Frege limita-
se a dizer: "um objecto é tudo o que não é função, de modo que uma expressão dele não
contém lugar vazio"27. O "mundo" de Frege pode considerar-se dividido entre objectos e
funções, duas classe que são mutuamente exclusivas. O critério para a distinção é a
insaturabilidade (Ungesätigtheit)28 das expressões funcionais (que, como já foi dito
corresponde à predicabilidade dos conceitos). E de tal forma a insaturabilidade é adoptada por
Frege como critério de discernibilidade, que na sua própria linguagem conceptual nos obriga a
"ver" os "lugares vazios" em cada predicado gramatical: f(x) deveria ser transformado em
f(...), ou (...) é mortal.
Se da linguagem retirássemos todas as expressões que referem objectos nomes
próprios, frases completas designatórias, – e ficássemos apenas com as expressões
25 De facto DUMMETT aponta esta noção como fulcral no estabelecimento da analogia função-conceito: cfr. FPL, pp. 184-185: "Under the new doctrine, what it means to say that an object falls under a concept (that an object has a certain property) is just that that concept maps the object on to the value true rather than the value false".É fundamental também para estabelecer a analogia, a atribuição dos dois valores de verdade, como possíveis valores da função-conceito. No caso de uma semântica bivalente, funções que não terão mais que dois valores – o Verdadeiro e o Falso.
26 Cfr. FB, Kleine Schriften, p. 134.27 Ibid., p. 134.28 O tema da insaturação e seus paradoxos será tratado na II parte (II.2.3).
incompletas – predicados, expressões relacionais e funcionais e as conexões
(Gedankengefüge), obteríamos como que o esqueleto visível, expresso, da própria estrutura
formal, lógico-linguística do pensamento. Seria o pensamento sem objectos, e tendo em conta
que são os objectos o que causa resistência, o que se torna opaco ao próprio pensamento,
poderíamos ter então, em presença, a forma do pensamento puro. A linguagem, neste sentido,
apresentar-se-ia de facto como a imagem perceptível (como um modelo) da estrutura do
pensamento29, como uma veste com que as palavras recobrem um pensamento para que este
possa ser reconhecido por outro homem30. Isto é possível, argumenta Frege, porque se podem
distinguir partes no pensamento, às quais correspondem os membros da proposição, de modo
que "a estrutura da proposição pode servir como de imagem da estrutura do pensamento".
"Com efeito, acrescenta Frege, há metáfora quando se transpõe para o pensamento a relação
da parte ao todo. Mas a metáfora é tão exacta e tão adequada ao conjunto, que as eventuais
discordâncias não têm importância"31.
Essa estrutura, composta por partes saturadas, completas, e partes insaturadas, que
exigem complementação, apresenta como que um hiato, uma fissura: esse hiato, em lógica é
resolvido sempre em termos de saturação.
"Quando o pensamento satura a parte insaturada ou, dito de outro modo, completa a
parte que requer complementação, o todo encontra a sua unidade. Daí a ideia que em lógica a
composição das partes num todo procede sempre por saturação de um elemento não
saturado"32.
Os elementos que no pensamento constituem essas partes insaturadas, incompletas (o
conceito, a função, a negação, as relações) e que têm a sua "imagem" na linguagem têm como
correspondente (como referente) uma dimensão formal da própria realidade? Ou constitui um
mundo de eidos platónico, um mundo de formas hipostasiadas, separadas, como que um
duplicado do mundo das formas sensíveis? Ou deveremos considerar essa dimensão formal
como uma dimensão de um sujeito transcendental, condição possibilitante de qualquer
conhecimento, de toda a experiência, radicando aí – e não mais – toda a sua validez?
29 Terá sido esta ideia de "imagem" da estrutura do pensamento na linguagem que inspirou a Bild do Wittgenstein do Tractatus, uma vez que é aos trabalhos de Frege e Russell que se refere expressamente no prólogo desta obra?
30 Cfr. "Gedankengefüge" [Ggf], Logische Untersuchungen, pp.378-394.31 Ibid., p. 378.32 Ibid., p. 378: Nota de Frege: " Hier wie im folgenden ist immer fest im Augen zu behalten, da
dieses Sättigen, dieses Fügen kein Vorgang in der Zeit ist.".
A insistência com que Frege refere o carácter não só objectivo, como independente
dos processos de captação, de conhecimento, do domínio dos conceitos, relações, do próprio
pensamento, indica inequivocamente que não se trata de conteúdos de consciência e que
Frege não pensou nunca esse domínio do objectivo não actual, como o domínio de uma
subjectividade transcendental33.
Quanto a uma interpretação em termos mais platonizantes, que é frequente nos
estudiosos de Frege, parece-me que não corresponde ao seu pensamento sobre os conceitos. É
a própria realidade, o próprio universo a que se refere Frege, que é composto de partes
completas, saturadas (os objectos) e partes incompletas, insaturadas. Estas últimas têm de
peculiar precisamente o facto de não serem objectos, de não serem por si mesmas. E,
importante ainda: para Frege um conceito que subsume um objecto não é nunca como que
uma reduplicação desse objecto, como um modelo (arquétipo) ou imagem ideal contemplada
pela inteligência. Para Frege, uma das suas ideias mestras na teoria do conceito, este não é
feito de objectos, mas das suas notas características. Essas notas características do conceito
são precisamente as propriedades do objecto. Como se vê, não se trata de dois mundos, mas
de um só mundo, embora constituído por partes: objectos e funções.
O tratamento mais a fundo do estatuto ontológico destas quase-entidades, realidades
incompletas que são as funções (conceitos), será feito mais adiante. Convém aqui sublinhar
apenas que é precisamente esse "estatuto" especial de realidade "incompleta", de "quase-
entidade" que permite à função a aplicabilidade dos vários argumentos, e ao conceito a
predicabilidade dos vários objectos. Uma realidade "completa", "fechada" recusa-se à
predicação, constitui ela própria um "sujeito último de predicação" (como se verá no capítulo
seguinte, ao tratar dos objectos).
33 Cfr. DUMMETT, The Interpretation..., pp. 495-557; Dummett discute amplamente a tese da obra de SLUGA, Gottlob Frege, que o interpreta como um idealista transcendental próximo de Kant. Dummett assinala vários pontos em que Frege diverge radicalmente de Kant, como por exemplo no que se refere à concepção de verdades sintéticas e analíticas, à fundamentação da matemática e da geometria, e fundamentalmente na noção de objectividade (cfr. ibid., pp. 512-516).
Num outro escrito de 189234, Frege identifica o conceito com a "referência de um
predicado gramatical", e explora conceptualmente este carácter essencialmente predicativo do
conceito. Nem sempre a linguagem corrente fornece uma "imagem" correcta deste facto. O
carácter predicativo do conceito é muitas vezes camuflado devido à não distinção entre as
duas funções – predicativa e de identidade – da cópula "é". Frege no entanto, burilando a sua
análise lógica da linguagem reafirma que um conceito é sempre predicativo e por sua vez um
predicado não pode ser nunca o nome próprio de um objecto. Um predicado não denomina
(ou não nomeia), não designa, por si só, nada em concreto. Esta incapacidade para designar é
a consequência semântica do carácter incompleto (e por isso predicativo) do conceito, que é a
referência do predicado gramatical. Como nota Geach35, um predicado não tem nunca um
sentido completo porque não mostra do que é a predicação. É o que fica de uma proposição
quando se lhe tira o sujeito [(...) é mortal], onde se vê o "lugar vazio" a ser preenchido pelo
nome próprio. O predicado só tem sentido na medida em que contribui para o sentido da
proposição. Pode ser verdadeiro se se diz com verdade de alguma coisa ou objecto. Mas por si
só o predicado não é referencial no mesmo sentido em que o é um nome próprio: o predicado
não serve para denominar (ou nomear) aquilo de que se predica. Exactamente por isso é que
se pode predicar de muitos, está livre, possui disponibilidade lógico-linguística,
contrariamente aos nomes próprios (sempre sujeitos de proposição), com os quais se
denomina necessariamente um objecto36.
A predicabilidade do conceito é assim a razão de ser do seu carácter funcional: uma
função, por estar insaturada, pode ser preenchida por diversos argumentos, pode determinar
34 BG, Kleine Schriften, p. 168 nota; Cfr. tb. ANSCOMBE e GEACH, Three Philosophers, Oxford, Basil Blackwell, 1961, p. 155: "It is thus misleading, on Frege's own principles, for him to speak of a general term as standing for a concept; what represents the concept is rather the structure of a clause with a singular subject and with that general term as predicate. (On the other hand, the way a singular name stands for an object is in no way dependent on that name's occurring in a special sort of clause). When a general term occurs non-predicatively in ordinary language, it "stands for" a concept only because it can be worked round into such predicative occurrence. All the same, Frege's use of the terms "concept-word, concept-expressions" instead of "general term" are useful as marking his rejection of the old error that singular and general terms are alike names of objects, differing only in how many objects they name.".
35 Cfr. GEACH, P. T. Reference and Generality, An examination of some medieval and modern theories. Ithaca, Cornell University Press, 1962, p. 32. Segundo a teoria ockamista dos "dois nomes", o sujeito e o predicado não são mais do que dois nomes diferentes de uma mesma coisa e é por isso que os podemos relacionar com a cópula "é". Na concepção medieval, os predicados têm certamente referência, significam algo, pelo qual estão, mas o que significam não é um suppositum, um objecto ou coisa individual (o único que pode ser nomeado). O que os predicados significam é, segundo a terminologia clássica, as formas ou naturezas que, por estarem "abertas" podem realizar-se (actualizar-se) em muitos indivíduos e por isso mesmo dizer-se de muitos (in multis et de multis). Cfr. LLANO, A. Metafísica y Lenguaje, Eunsa, 1984, p. 123.
36 Cfr. a noção do nome como um "designador rígido", em KRIPKE, La logique des noms propres, Paris, Ed. Minuit, 1980 (trad. de Naming and Necessity).
uma variedade de argumentos, assim como um conceito, por ser em si mesmo incompleto,
pode ser predicado de muitos objectos. Este carácter de abertura, de insaturação, patenteia-se
na linguagem através do facto de que um conceito só possa ocorrer como referente de um
predicado gramatical, e nunca como sujeito. Um predicado não nomeia, não denomina nunca
um objecto. Por isso, se por vezes na linguagem corrente, um aparente nome de um conceito
pode ocorrer como sujeito gramatical de uma frase, esse facto induzirá em erro: nesse caso o
"nome" do conceito, não será precisamente o nome de um conceito, mas sim o nome dos
objectos que caem sob esse conceito (que é, para Frege, a relação lógica fundamental)37.
Habilmente Frege transforma essas expressões em proposições lógicas onde se destroem as
aparentes objecções contra a natureza predicativa do conceito. Em "todos os mamíferos têm
sangue vermelho", o conceito de mamífero parece ser o sujeito. Mas a proposição traduz-se na
afirmação da implicação "o que é mamífero tem sangue vermelho" ou "se algo é um
mamífero, então tem sangue vermelho", onde se reconhece de novo a natureza predicativa do
conceito. A proposição neste caso exprime não a pertença de um objecto a um conceito, mas a
subordinação de um conceito a outro conceito38.
Portanto não é nunca do conceito propriamente dito que se fala. A incompletude da
sua realidade, apesar de pertencer ao domínio das referências, e não dos sentidos, torna o
conceito algo de fugidio e resvaladiço, que aparece e desaparece na estrutura da linguagem e
na do pensamento. Como uma mão invisível que "agarra" os objectos, liga os elementos
soltos... mas não se deixa ver nem captar39.
Os paradoxos da insaturação são explorados exaustivamente por Dummett40, que glosa
o curto-circuito semântico da impossibilidade de referir-nos a conceitos ou funções. Sendo
"entidades incompletas" deverão ser apresentadas como referentes de expressões incompletas.
Uma vez que estão introduzidas por "definição", podemos querer referir-nos a elas tratando-as
como se fossem objectos, através de uma notação na qual são representadas por expressões
completas (nomes próprios). Mas nunca poderá haver nomes próprios para conceitos ou para
funções, ou relações. Uma expressão como "o conceito F" não é o nome de um conceito: daí a
paradoxal afirmação de Frege "o conceito cavalo não é um conceito"41, que Dummett exprime 37 Cfr. BG, Kleine Schriften, p. 171.38 Duas relações que Frege distingue claramente nos Grundlagen der Arithmetik [Grl], § 53.39 De facto, por melhor que seja o simbolismo, não consegue apresentar informativamente o que é uma
função ou um conceito. Isto tem uma conexão óbvia com a teoria de Wittgenstein: o que se "mostra" na linguagem, não pode ser "dito" na mesma linguagem. O conceito e a função são bem um exemplo desta impossibilidade. Cfr. ANSCOMBE e GEACH, ob. cit., p. 147.
40 Cfr. DUMMETT, FPL, pp. 249-255.41 Cfr. BG, Kleine Schriften, p. 170.
no círculo: "We cannot explain what sort of objects concepts are save by referring to this
mysterious relation of falling under a concept (possessing a property), since we can say
nothing about concepts without speaking of this relation of ordinary objects to them..."42.
Um conceito ou uma função é, portanto, introduzido por um predicado ou por uma
expressão funcional, expressões incompletas, que portanto não realizam o acto de designar,
referir, tal como os nomes próprios. Apesar disso, nós necessitamos de falar dessas
"realidades", em vez das quais estão os predicados e as expressões funcionais – os conceitos e
as funções. Segundo Quine, a principal justificação para referir-nos a tais entidades é a de que
pretendemos quantificar sobre essas mesmas realidades. Quando introduzimos na linguagem
alguma relação, como por exemplo "tão grande... como", a expressão traduz-se em "Há uma
relação R tal que...". Estamos portanto a admitir a existência de algo a que se refere essa
expressão relacional. E se estas expressões – funcionais, relacionais – estão por alguma coisa,
na filosofia de Quine, essas expressões não podem referir senão um objecto: admitir as
relações como existentes numa ontologia, exige, para Quine, uma teoria da quantificação que
permita traduzir a "relação" em "conjunto de objectos que estão nessa relação". Por isso
Quine pretende passar directamente de uma teoria elementar da quantificação para a teoria da
classe43. Quantificar é sempre transformar as relações, as propriedades em termos de número
de objectos que estão nessa relação ou que possuem essa propriedade. Assim, no universo de
Quine poderemos falar de relações e de propriedades, mas o que as respectivas expressões
referem, não é senão o conjunto (a classe) de objectos que têm essas relações ou essas
propriedades.
Em nota, acrescenta Dummett, referindo-se ainda a Quine: "He would, however agree
that anyone who recognized the intermediate stage of admitting predicate-variables into
quantifiers would be committed to 'countenancing as entities' concepts and relations, i.e. to
regarding one and two-place predicates as having Bedeutung. Frege held that this intermediate
stage was essential: the notion of a class cannot, he thought, be understood save via that of a
concept"44.
Para Frege, portanto, mantém-se o impasse semântico: a referência aparente a funções,
conceitos ou relações, "transforma-se", na linguagem corrente em referência às suas
respectivas extensões, ou seja às classes constituídas por esses conceitos, funções ou relações.
42 DUMMETT, FPL, p. 256.43 Cfr. DUMMETT, Truth and other enigmas, Cambridge, Massachussetts, Harvard University Press,
1980, p. 77.44 Ibid., p. 77.
Mas estas entidades, as classes às quais nos referimos com expressões que utilizam um
predicado ou expressão relacional precedida de um quantificador, segundo Frege, não são o
próprio conceito. O conceito é a via necessária através da qual se determinam as classes, mas
permanece irredutível a estas, não se identifica com a respectiva classe, nem se dissolve nos
seus objectos.
A ideia de entender o conceito como um caso particular da noção mais vasta da
função, e a sua relação com os objectos, à luz da aplicação da respectiva função, foi de facto
um dos pontos de partida da tarefa lógico-filosófica de Frege, a partir do qual pôde resolver
vários problemas respeitantes à filosofia do conceito:
O primeiro é, como já foi referido, a ultrapassagem de uma série de escolhos
provenientes da identificação do conceito (Begriff) com a representação (Vorstellung),
identificação que Frege não se cansa de denunciar nos denominados lógicos psicologistas (cfr.
Introd. Gg – longa crítica a este grupo de lógicos psicologistas, que confundem pensar com
imaginar, conhecer com representar, etc. e tudo reduzem a representações).
O próprio Husserl, que tão nitidamente se enfrentará com o psicologismo e o
naturalismo45 fora alvo da crítica de Frege, na recensão da sua Philosophie der Arithmetik:
conceber o conceito como uma representação equivaleria a admitir que "cada objecto se vai
transformando num espectro cada vez mais exangue. De todo objecto, pode-se tirar um algo
cujo conteúdo é reduzido ao extremo, mas algo que se distingue ainda perfeitamente daquilo
que se obteria a partir de outro objecto. Na minha opinião, a subsunção de um objecto sob um
conceito é o reconhecimento de uma relação preexistente, os objectos aqui são realmente
modificados; colocados sob o mesmo conceito, eles tornam-se semelhantes uns aos outros"46.
Assim, com esta distinção entre pensar e imaginar tudo se transforma em algo de
subjectivo. E, precisamente porque a demarcação entre o subjectivo e o objectivo se vai
difuminando cada vez mais, aquilo que é subjectivo vai tomando a aparência de
objectividade47.
Frege combate declaradamente estas interferências do subjectivo no objectivo, do
psicológico no lógico, da imaginação e representação e processos mentais, no âmbito do
45 HUSSERL, Philosophie als strenge Wissenschaft (1910-1911).46 FREGE, "Rezension von: E. G. Husserl, Philosophie der Arithmetik" (1894), Kleine Schriften, p.
181:”Jeder Gegenstand verwandelt sich bei fortgesetzter Anwendung dieses Verfahrens in ein immer blutleereres Gespenst.”.
47 Cfr. Ibid., p. 182.
conceito e do pensamento. Como sentinela à porta do seu castelo, Frege defende
vigilantemente o seu "domínio" – esse domínio do objectivo, não actual – do conceito, do
pensamento, dos objectos lógicos – das investidas da lógica psicologista.
O conceito não é o termo de um processo mental, não nasce no entendimento "como as
folhas nas árvores", não re-presenta nenhum objecto porque não está em vez de nenhum
objecto. O conceito é tão real como os objectos, constituindo com estes, duas partes
heterogéneas, distintas, sendo uma dessas partes (o conceito) sempre insaturada, incompleta,
e podendo por isso ser saturada ou completada por outra parte (os objectos).Este carácter
objectivo, realista do conceito, apreende-se através da linguagem, cuja estrutura mostra bem
esses dois elementos complementares, através das suas expressões completas (nomes
próprios) e das incompletas (predicados, expressões funcionais e relacionais, etc.).
Precisamente pode ser o conceito uma dimensão formal da própria realidade, constitui a
referência dos predicados gramaticais. Um dos problemas de Frege, como veremos, será o de
justificar a atribuição de referência também a estas expressões incompletas, e dar conta do
estatuto peculiar desses referentes como "entidades incompletas, insaturadas", ou "quase-
entidades
I.2 CONCEITO E OBJECTO
A exploração da noção de conceito como função faz ressaltar a heterogeneidade e
consequente independência entre função e argumento. As funções linguísticas até aqui
consideradas tomam para seus argumentos nomes próprios. A analogia entre função e
conceito implica uma consequente analogia entre o par função/argumento e conceito/objecto.
Assim tudo o que foi dito do argumento em relação à função de 1º nível (é uma realidade
completa, saturada, diferente da função, nunca podendo ser ele mesmo uma função), pode
dizer-se do objecto em relação ao conceito (o objecto é uma realidade completa, saturada, o
referente de um nome próprio, o sujeito de uma proposição).
A distinção nítida e radical entre o conceito e o objecto é um dos princípios
fundamentais e norteadores do todo o pensamento fregeano, formulado expressamente numa
das suas primeiras obras, Grundlagen der Arithmetik48. Três são os princípios de Frege
apresenta na Introdução, como orientadores da investigação em causa nesta obra, sobre o
conceito de número, e que se tornarão em três grandes constantes em todo o seu pensamento:
1º A necessidade absoluta de separar o psicológico do lógico, o subjectivo do
objectivo49. Frege dirige fortes ataques ao psicologismo e historicismo que dissolvem todo o
conhecimento e pensamento possíveis numa subjectividade, mais ou menos alargada, mas
sempre deficiente. A preocupação por demarcar o domínio do "objectivo", do "verdadeiro", e
fundamentá-lo em leis puramente lógicas leva Frege a afirmações de consonâncias
parmenídeas: "Se tudo estivesse num fluxo contínuo, e nada se mantivesse fixo para sempre,
não haveria nenhuma possibilidade de saber alguma coisa sobre o mundo e tudo mergulharia
na confusão"50.
Na sua investigação sobre a ideia de número, Frege reconhece que recorre a uma
fecunda cooperação entre a matemática e a filosofia51, cooperação essa que só não tem
revelado mais os seus frutos, devido à predominância, na filosofia dos "métodos psicológicos
de argumentação" que penetraram até no campo da lógica. Contra esta predominância adverte
48 Die Grundlagen der Arithmetik: eine logisch-matematisch Untersuchung über den Begriff der Zahl [Grl], Breslau (1ª ed.); seguimos a tradução de J. L. Austin, Oxford, Basil Blackwell, 1980 (2ª ed.).
49 Cfr Carl, Wolfgang, Frege's Theory of Sense and Reference, pp.26-52.50 Cfr. ibid., p. VII.51 Cfr. ibid., p. V.
Frege, notando ironicamente que "uma aritmética fundada em sensações musculares seria sem
dúvida bastante sensacional, mas também tão vaga como os seus fundamentos"52.
À matemática e à lógica não interessam as investigações psicológicas, genéticas, sobre
a origem, a evolução, a formação das representações mentais que se possam associar aos
próprios objectos matemáticos, aos próprios números. O modo como cada indivíduo possa
captar esses objectos, as imagens ou representações mentais que lhes associe, as
transformações que essas representações possam ter na mente do indivíduo, nada tem a ver
com o carácter objectivo, independente do número, ou de qualquer outro objecto lógico. Frege
rejeita toda a invasão da psicologia no domínio da matemática, que leva por vezes alguns
autores a apresentarem como uma definição, a mera descrição do modo como atingimos o
conhecimento do objecto ou conceito em questão53.
Frege considera portanto um ponto essencial para o desenvolvimento das matemáticas,
e no caso presente, para uma investigação sobre o conceito de número, o afastamento do
campo da psicologia, negando frontalmente uma explicação dos objectos matemáticos que
recorra aos processos subjectivos de apreensão, conhecimento, compreensão desses mesmos
objectos. Ao mesmo tempo propõe o reconhecimento da estreita conexão entre a matemática e
a lógica, propondo-se provar nos Grl que a aritmética é um ramo da lógica e portanto não
necessita de recorrer a nenhum fundamento das suas provas na experiência ou na intuição. Os
Gg constituem um complemento desta primeira tarefa: confirmar o seu logicismo,
apresentando a derivação das mais simples leis dos números, exclusivamente através de
processos lógicos54. Na Introdução desta obra, Frege desenvolve com mais veemência ainda a
sua crítica ao psicologismo, que dissolve tudo o que é objectivo na representação
(Vorstellung), reduzindo as leis lógicas a leis que regulam o acto de pensar, assim como as
leis da natureza regulam o mundo externo. Deste modo a lógica não seria mais do que um
ramo da psicologia, a noção de verdadeiro reduzir-se-ia à de validez geral. Para Frege ser
verdade é diferente de ser considerado (ou julgado) verdadeiro. Não há contradição nenhuma
em algo ser verdadeiro, e no entanto ser considerado por todos como falso. Para Frege, as
"leis da lógica" não são leis psicológicas da apreensão e afirmação da verdade, mas
simplesmente leis da verdade.
52 Cfr. ibid., p. V. 53 Cfr. ibid., p. VI.54 Cfr. Grundgesetze der Arithmetik [Gg], § 0, p. 29 [Montgomery Furth (trad.), Berkeley, University of
California Press, 1967].
Assim, tanto na Introdução aos Grl como na dos Gg, Frege esgrime denodadamente,
como lógico e matemático, para defender as fronteiras do seu próprio "domínio". Esse
domínio do objectivo não actual, atemporal, não individual, que constitui o mundo dos
conceitos, dos objectos lógicos, dos pensamentos, é o domínio da lógica que, na concepção
dos lógicos psicologistas se tem visto invadido e submergido pela ideia de subjectividade. Em
consequência desta rigorosa dilucidação entre o subjectivo e o objectivo, o psicológico e o
lógico, utilizará sempre a palavra representação (Vorstellung) no sentido psicológico,
distinguindo-a sempre nitidamente do conceito (Begriff).
O 2º princípio da Introdução dos Grl é apresentado por Frege como condição
necessária do primeiro e estabelece que o significado das palavras não se deve procurar
quando estas ocorrem isoladamente, mas sim no contexto da frase55. A relação necessária que
une este 2º princípio ao 1º não parece clara à primeira vista. Porque afirma Frege que, se não
se observa este 2º princípio, isto é, se não se procura o significado das palavras
contextualmente, se infringirá o 1º princípio, ou seja, a distinção entre o psicológico e o
lógico, o subjectivo e o objectivo? A ligeira explicação que Frege apresenta é a de que se não
se respeita o 2º princípio, então tomaremos como significado das palavras as imagens mentais
ou actos da mente individual. Pode-se assim depreender que a formulação deste princípio
semântico tem a finalidade de garantir um significado objectivo, fora da mente, às palavras.
Nesta altura Frege não tinha ainda formulado a distinção das noções de sentido e referência,
mas ambas as noções têm um carácter objectivo. Nos Grl, Frege teria já formulado os
princípios gerais da sua semântica realista, embora sem a terminologia de Sinn e Bedeutung, e
portanto quer rejeitar uma versão psicologista de uma teoria do significado em termos de
relações de uma palavra com a imagem interna, representação, ideia, etc. a que se associa.
Explora já a semântica como uma relação de significado entre palavra e algo de objectivo.
De qualquer modo a tese de que uma palavra tem por significado, não uma
representação ou imagem individual, mas algo de objectivo, não parece implicar que esse
significado tenha de ocorrer só quando a palavra é utilizada num contexto. Poderia atribuir-se
55 Cfr DIAMOND, Cora, The Realistic Spirit, "Frege and Nonsense", pp. 77 e ss.: o princípio da contextualidade tem uma estreita relação com a noção de «partes lógicas»: uma parte lógica de uma expressão consiste no facto de a a referência do todo depender da referência dessa parte. "Frege's original point, that we must ask for the meaning of a word only in the context of a sentence, reflects the idea that properly speaking it is only as a logial part of a sentence that the word has such-and-such a meaning; apart from such an occurrence we cannot even say that it is a concept word or a proper name."
a cada palavra isolada um significado objectivo. Fica portanto por justificar a formulação
deste princípio.
No entanto, ao longo dos Grl, o princípio é reafirmado várias vezes e esses textos
podem dar mais luz sobre os motivos que levaram Frege a formulá-lo; assim, no § 60, Frege
refere de novo o princípio da contextualidade, para ilustrar que o facto de não podermos
formar uma ideia (ou uma representação) do conteúdo duma palavra, não é razão para lhe
negarmos um significado e a excluirmos do nosso vocabulário. Como só no contexto da
proposição é que uma palavra tem significado, é evidente que as representações mentais não
correspondem aos elementos lógicos do juízo. Basta que a proposição como um todo tenha
sentido. O que Frege pretende mostrar é que a subsistência que atribui aos números como
objectos, não implica que se considere que um numeral signifique alguma coisa, quando é
isolado do contexto de uma proposição. O princípio da contextualidade semântica é portanto
formulado e reafirmado nos Grl, principalmente para justificar que, por um lado os números
são objectos, mas, por outro lado, apesar de objectos, não pertencem nem ao mundo exterior
(e por isso um numeral não tem como significado algo de externo, localizável) nem ao mundo
interior (por isso os numerais não significam tão pouco uma representação, imagem mental do
mundo interno). Os numerais têm significado no contexto da proposição em que ocorrem: só
aceitando este princípio é que se poderá evitar uma visão fisicalista do número, sem no
entanto cair numa perspectiva psicológica (§ 106). Para solidificar esta tese do significado dos
numerais ao serviço da ideia de número como objecto que Frege quer defender, ela é
considerada como um caso particular de um princípio semântico extensivo não só aos
numerais, mas a todas as palavras. Para Angelelli este recurso de Frege ao princípio
semântico nos Grl trata-se de uma espécie de argumento ad hominem, destinado a apoiar a
peculiaridade dos objectos que são os números, e uma manobra para conseguir manter os
números como objectos, sem no entanto cair numa embaraçosa situação de os proclamar
como substâncias imateriais, semelhantes aos anjos. Os numerais têm um significado no
contexto, um significado objectivo, mas não é necessário procurar-lhes umas entidades
subsistentes, como uma espécie de designati espirituais56. Na opinião de Angelelli o princípio
tem pois uma justificação dentro do âmbito dos Grl, para a defesa da noção de número como
objecto, mas não tem mais relevância no desenvolvimento posterior do pensamento de Frege.
56 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 75. Voltaremos adiante à discussão deste princípio como meio para justificar um certo tipo de objectos.
O 3º princípio estabelece a distinção entre conceito e objecto: "não se pode perder
nunca de vista a distinção entre conceito e objecto"57. Isto significa, para Frege que não se
pode fazer de um conceito um objecto sem o alterar. O critério que apresenta para a distinção
é um critério de ordem linguística: o uso do artigo definido58. Quando utilizamos um termo
conceptual geral, não estamos a designar uma coisa, a não ser que lhe acrescentemos o artigo
definido ou um pronome demonstrativo. Neste caso o termo adquire o valor de um nome
próprio. Este critério vale mesmo para o caso em que um conceito subsuma apenas um único
objecto, como por exemplo "satélite da terra", que é um conceito que subsume apenas um
objecto, a Lua. Indicador de que se trata de um conceito, é o facto de ter sentido fazer a
pergunta: "quantos satélites da terra existem?", que equivale a perguntar "o conceito satélite
da terra, quantos objectos subsume?". O que não acontece com o nome de objecto, visto que
um objecto não pode ter várias "ocorrências"; não tem sentido perguntar "quantas Luas
existem?", pois a Lua é o nome próprio que designa um objecto59.
Do mesmo modo, e para confirmar o critério do artigo definido para a distinção entre
conceito e objecto, na proposição "a direcção de A é idêntica à direcção de B", a direcção de
A é apresentada como um objecto, como o indica o artigo60.
Este critério e os exemplos apontados por Frege poderiam levar a uma identificação
precipitada da relação entre conceito e objecto como uma relação entre indeterminado e
determinado, identificação que Frege rejeita em absoluto. Se nomearmos um objecto de uma
forma indeterminada, por exemplo "baleia", sem designar nenhum indivíduo, poderia pensar-
se que essa expressão de objecto indeterminado fosse equivalente a uma expressão de um
conceito. Mas esta expressão é, segundo Frege, uma má expressão61 para "conceito" e além
disso contraditória. Um conceito, para Frege não é nada indeterminado, mas antes algo de
absolutamente determinado, a tal ponto que, dado um objecto, se saiba sempre se ele cai ou
não sob um dado conceito. Nos Grundlagen, Frege apresenta os conceitos como entidades 57 Grl, p. X.58 O mesmo critério é utilizado por RUSSELL, The principles of Mathematics, §§ 47 e 58; Cfr. nota 42 de
I.1.Pode, no entanto dar-se um desvio de uma palavra de nome próprio para termo conceptual. O desvio é exemplificado por Frege com o caso de 'Viena, o nome de uma cidade, utilizado em 'Trieste não é Viena'. Nesta segunda expressão, trata-se de um termo conceptual, como 'metrópole', ou melhor, é um termo para uma espécie de coisa enumerável, que se pode contar. Cfr dIAMOND, Cora, The Relistic Spirit, "Frege and Nonsense", p. 74.
59 Cfr. Grl § 51; o que significa que há entidades às quais só nos podemos referir na relação lógica fundamental (a de cair um objecto sob um conceito: das Fallen eines Einzelnen unter einen Begriff), isto é, que são sujeitos últimos de predicação. Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 157.
60 Cfr. Grl, § 66 e nota.61 Cfr. ibid., § 47.
"sólidas", formadas de uma complicada estrutura de notas (Merkmale), possuindo uma
"unidade" e "individualidade" próprias. De dois gatos, não formamos um conjunto de
unidades (Einsen), mas um conceito de gato (a abstracção nem sempre precede o conceito62).
É graças aos conceitos que introduzimos ordem numa multiplicidade, num amontoado,
fazendo desses amontoados, classes63. Frege atribui ao conceito um poder unificador muito
superior ao poder da apercepção sintética64.
A possibilidade de existirem conceitos vazios e conceitos que subsumem apenas um
objecto, confirma e ilustra bem a nítida distinção entre conceito e objecto. Escreve Frege nos
Gg: "Ora se são as notas (Merkmale) que fazem o conceito, e não os objectos que sob ele
caem, não haverá portanto nenhuma dificuldade ou objecção quanto ao conceito vazio.
Evidentemente que, nesse caso, um objecto nunca poderá ser ao mesmo tempo um conceito; e
um conceito sob o qual cai só um objecto, não deverá ser confundido com ele"65.
Mas há ainda um outro ponto para o qual Frege chama a atenção, que por vezes
origina mal-entendidos na apreensão da noção do conceito: é o facto de poder existir um
conceito cujas notas envolvam uma contradição: "Pode ainda admitir-se um conceito, mesmo
que as suas notas contenham uma contradição: o que teremos que fazer nesse caso é pressupor
que nenhum objecto cai sob esse conceito"66. Frege acrescenta no parágrafo seguinte que no
entanto, o simples facto de um conceito não envolver nenhuma contradição não implica
necessariamente que subsuma algum objecto; isto é, a mera ausência de contradição não
significa existência (de algum objecto). Daqui se segue que, para provar que um conceito não
envolve nenhuma contradição, basta mostrar a existência de algum objecto que caia sob esse
conceito. Mas a inferência conversa, isto é, partir de um conceito não contraditório para
provar a existência de algum objecto é falaciosa67.
Estes dois parágrafos são importantes para a posterior compreensão da tese de Frege
sobre a existência. Uma comparação do que Frege afirma nestes textos, com o § 53, permite
comprovar que Frege distingue dois sentidos, pelos menos, do predicado "existe". No § 53,
Frege considera a existência como um predicado de 2º nível, isto é, um predicado de
62 Cfr. ibid., § § 48 e 49: é errada a ideia de que só se pode obter um conceito por uma abstracção imediata a partir de objectos. Afirma Frege: "... We can arrive at a concept equally well by starting from defining characteristics; and in such a case it is possible for nothing to fall under it".
63 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., pp. 157-158.64 Cfr. Grl § 48.65 Gg I § 0, p. 31.66 Grl § 94.67 Cfr. ibid., § 95; Cfr. II.3.2 o que se diz sobre referência e existência.
predicados, ou uma propriedade de conceitos que, portanto não pode ser atribuída aos
objectos. A tese exprime por outras palavras o mesmo pensamento de Kant sobre a existência:
"No simples conceito de uma coisa não se pode encontrar nenhum carácter da sua
existência. Embora esse conceito seja de tal modo completo, que nada lhe falte para pensar a
coisa com todas as suas determinações internas, a existência nada tem a ver com isso; trata-se
apenas de saber se a coisa nos é dada, de tal modo que a sua percepção possa sempre preceder
o conceito"68.
Como se torna patente, a ideia é semelhante: as "determinações internas", na
terminologia kantiana, são as notas (Merkmale) do conceito em terminologia fregeana (ou
seja, as propriedades dos objectos que o conceito subsume); entre essas notas ("determinações
internas") não encontramos a existência ("nada tem a ver com isso"), propriedade do conceito
que indica se esse conceito subsume ou não algum objecto (em Kant, existência indica se a
coisa nos é dada, de modo que a sua percepção possa preceder o conceito).
Dizer que a existência não é um predicado real traduz-se, em terminologia fregeana na
afirmação de que a existência é um predicado de 2º nível, isto é, não um predicado de
objectos, mas sim de conceitos69. Nos §§ 94-95, Frege introduz uma nova modulação na
noção de existência, exactamente para a vincular à distinção entre conceitos e objectos. A
argumentação fundamenta-se em que, pelo facto de não existirem objectos que caiam sob um
determinado conceito, esse mesmo conceito (vazio) não deixa de existir, embora,
evidentemente isso indique que necessariamente não subsume nenhum objecto. Aqui a tese de
Frege começa a divergir da de Kant: para este sentido (ou este nível) do predicado da
existência já não se torna necessária a condição posta por Kant de que "a percepção (do
objecto) possa sempre preceder o conceito". Para Frege, como comprovam estes dois §§ dos
Grl pode atribuir-se um certo sentido de existência a um conceito, mesmo na ausência de
qualquer dado da percepção, anterior ao mesmo conceito. Existem os conceitos vazios e os
contraditórios.
Esta última acepção do predicado da existência implica, evidentemente, uma nova
formulação da noção de possibilidade. Assim como é claro em Frege a atribuição de um
sentido de existência como predicado de conceitos, mas que incide sobre os objectos incluídos
na sua extensão, e um outro sentido da existência para os conceitos em si mesmos
considerados (para poder afirmar "o conceito 'conceito vazio' tem a propriedade de existir", ou
68 KANT, E., Crítica da Razão Pura, Lisboa, Gulbenkian, 1985, p. 242.69 Cfr DIAMOND, Cora, The Realistic Spirit, "Frege and Nonsense", p. 84.
"Existe o conceito 'conceito vazio'"), assim também deverá haver uma correspondente
modulação na noção de possibilidade. Frege distingue nitidamente a possibilidade lógica da
possibilidade real, como consequência da radical distinção entre conceito e objecto.
Tomando posição contra os matemáticos "formalistas"70, Frege nega a clássica tese
segundo a qual a possibilidade lógica significa não contradição e a ausência de contradição é
condição necessária, embora não suficiente da existência71. Segundo a tese clássica, a não
contradição de um juízo seria condição suficiente da sua verdade possível. Existir, nesta
concepção é ser dotado de realidade concreta ou abstracta. A não contradição determina
apenas uma possibilidade de existir. O real é o possível mais a existência.
Neste sentido, só é impossível, para o matemático, o que é logicamente impossível,
isto é o que envolve contradição. Frege nega esta tese, apresentando como contra-exemplo o
conceito de objecto diferente de si mesmo, que serve para a definição de conjunto vazio. É
absurdo querer fundar a existência sobre a ausência de contradição72, como se a ausência de
contradição fosse já a existência da coisa. No § 97, acrescenta que este erro frequentemente
cometido se deve, evidentemente à falta de distinção clara entre conceitos e objectos.
Portanto, podemos concluir que a existência só implica não contradição quando
aplicada a um conceito sob o qual cai algum objecto. No entanto um conceito contraditório é
pensável, é possível qua conceito, ainda que não subsuma nenhum objecto: a contradição
indica a não existência de objecto. Para que um conceito possa subsumir algum objecto é
exigida a não contradição. No entanto, a ausência de contradição não implica necessariamente
existência de algum objecto (é o caso dos conceitos vazios) e a própria contradição de um
conceito não implica a não existência do próprio conceito. Assim o possível tem também
diferentes sentidos (ou graus, ou níveis) segundo é atribuído aos conceitos (é possível pensar a
contradição) ou aos objectos (basta a existência de um objecto sob um conceito para
comprovar a sua não contradição).
Uma investigação sobre as consequências das noções de existência e possibilidade em
Frege permitiria reformular uma teoria das modalidades. O que fica nestes §§ dos Grl por
esclarecer é a própria noção de possível em Frege: ou melhor, se Frege considera possível,
enquanto pensável, a própria contradição, o que entenderá por impossível? A razão que dá
Frege para a existência de conceitos contraditórios é a de que, se não fosse assim, nunca
70 Cfr. Grl § 94.71 Cfr. LARGEAULT, ob. cit., p. 339.72 Cfr. Philosophical and Mathematical Correspondence, Oxford, Basil Blackwell, 1980: correspondência
entre Frege e Hilbert sobre esta questão; Cfr. também. LARGEAULT, ob. cit., pp. 339-343.
poderíamos provar que um conceito não contém nenhuma contradição73. Nem sempre é óbvio;
não há nenhuma razão para que, pelo facto de não vermos nenhuma contradição, não haja
realmente nenhuma contradição. É necessário prová-lo, pois não se vê imediatamente. Antes
da prova nos ser dada, podemos pensar essa contradição A prova imediata de que não há
contradição é a de que há um objecto sob esse conceito. No entanto os "limites" do pensável
não aparecem nítidos no horizonte. Há como que uma nebulosa que difumina a linha de
demarcação nítida entre o possível (pensável) e o impossível (impensável).
Estas explicitações sobre os predicados da existência e da possibilidade vêm
corroborar a afirmação de Frege de que tudo aquilo que se predica de um conceito não se
pode predicar de um objecto, e vice-versa: trata-se de duas predicações radicalmente distintas,
em consequência da mesma radical distinção entre conceito e objecto.
A este tema dedica Frege um outro escrito, "Über Begriff und Gegenstand",
respondendo às críticas de Kerry. Em vários artigos, Kerry atacara os critérios e "definições"
dos Grl. O critério linguístico do artigo definido é classificado de insatisfatório (unzutreffend)
e a distinção entre conceito e objecto, nomeadamente considerada através da estrutura
predicado e sujeito manifesta na linguagem é deficiente, pois muitas vezes o conceito pode
servir de sujeito, "transformando-se" assim, de algum modo em objecto. Ser conceito e ser
objecto, não são, segundo Kerry propriedades mutuamente exclusivas74.
Frege esclarece antes de mais que nos seus Grundlagen utiliza conceito em sentido
estritamente lógico, sentido diferente da aplicação de conceito de Kerry. Daí poderão advir,
algumas das contradições. E o texto insiste de novo no carácter predicativo do conceito,
apesar das ilusões linguísticas. Uma das razões de tais ilusões é a não consideração de dois
usos diferentes da cópula "é" – o predicativo e o de identidade. Assim, em exemplos como
"Vénus é um planeta" a cópula é evidentemente predicativa, diz-se de Vénus a propriedade de
ser um planeta, ou afirma-se que o objecto Vénus pertence ao (cai sob) conceito planeta. Pelo
contrário na proposição "Vénus é a Estrela da Manhã", a cópula "é" é um sinal de identidade:
73 Cfr. Grl § 94.74 Cfr. KERRY, B. "Über Anschauung und ihre psychische Verarbeitung. Vierter Artikel",
Vierteljahrsschrift für wissenschaftlich Philosophie, IX (1885); X (1886); XIII (1889); XIV (1890); XV (1891). Kerry ataca a opinião de Frege de que "o conceito F" não é o nome de um conceito, invocando duas razões: 1ª considera ilegítimo basear a lógica em diferenças linguísticas; 2ª apresenta contra-argumentos: "o conceito sobre o qual estou a falar agora é um conceito individual" refere, apesar do artigo definido um conceito. Para Kerry a separação entre conceitos e objectos não lhe parece ser tão radical, sobretudo porque considera que os números, em certo sentido são também conceitos. E alguns conceitos transformam-se em objectos para outros conceitos (o conceito cavalo é um conceito de fácil aquisição). É para responder às críticas de Kerry que Frege escreve o ensaio BG onde explora o puzzle da insaturação. Sobre a linguagem como fundamento para a investigação lógica Cfr. Posthumous Writings, p. 143 e nota 8 I.1.
traduz-se por "Vénus = Estrela da Manhã", ou "Vénus é o mesmo objecto que a Estrela da
Manhã". Uma identidade estabelece-se entre os signos de um mesmo objecto, e por isso de
um lado e doutro do sinal de identidade (traduzido pela cópula "é"), podem ocorrer dois
nomes próprios. Além disso, uma identidade é reversível, o que não acontece com a relação
de cair um objecto sob um conceito. Esta distinção entre identidade e predicação75 vem
confirmar os critérios indicados nos Grl76.
Apesar da crítica de Kerry ao facto de Frege utilizar como critério de distinção, um
critério linguístico, e dos inevitáveis obstáculos e dilemas (Zwangslage) que esse critério
apresenta, Frege mantém-no: "o conceito cavalo não é um conceito"77. Dizer: "o conceito F
não é vazio", é evidentemente não a designação do conceito, mas da classe correspondente ao
conceito. E as classes são objectos, enquanto os conceitos não o são. Assim, sempre que,
aparentemente, ocorre na linguagem um conceito-sujeito, esse termo realmente designa uma
classe; não denominamos o que significamos (o que intencionamos significar), mas
transformamos sempre os conceitos em classes, como sua "representantes", para podermos
falar deles (conceitos), como se fossem objectos78. Mais uma vez surge o efeito um pouco
"alucinatório" do conceito, aparecendo e desaparecendo na linguagem. Frege no entanto não
confunde nem identifica conceito com a extensão conceptual, como expressamente o afirma
neste escrito.
Há, sem dúvida, em todo o seu pensamento uma tensão entre o extensional e o
intensional, não declaradamente resolvida. Lendo no entanto com atenção os textos de Frege,
esta tensão apresenta-se, não quanto à noção lógica do conceito, mas quanto aos usos que
Frege faz, da perspectiva extensional ou intensional, para efeitos práticos diferentes. Assim,
para a elaboração da sua lógica simbólica, que exige uma teoria da quantificação exaustiva,
tanto quanto possível, Frege não pode deixar de apresentar e utilizar a perspectiva extensional.
Geach aponta com efeito dois argumentos que favorecem uma concepção extensionalista do
conceito79: em relação às definições, Frege adopta a atitude matemática, para a qual não
interessa qual a definição que se escolhe, desde que os mesmos objectos caiam sob ela. E, ao
referir-se à identidade, afirma que é uma relação do primeiro nível linguístico, que se dá só
75 Cfr. BG, Kleine Schriften, p. 168-169.76 Cfr. Grl § 66, nota.77 Cfr. BG, Kleine Schriften, p.170.78 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 171: aproxima-se de facto da afirmação de Hegel cit. por Angelelli: "Die
Sprache aber ist, wie wir sehen das Wahrhaftere: in ihr widerlegen wir selbst unmittelbar unsere Meinung", Phänomenologie des Geistes, Meiner, Leipzig, 1952.
79 Cfr. GEACH, P. "Class and Concepts", KLEMKE, Essays on Frege, p. 284.
entre objectos; o análogo da identidade possível entre conceitos é a coextensividade, ou seja,
se dois conceitos subsumem os mesmos objectos, podem considerar-se idênticos.
No entanto, neste mesmo ensaio, Geach salienta também claramente que Frege não
identifica um conceito extensionalmente considerado, com uma classe como extensão.
Mantém deliberadamente essa distinção para assegurar, mais uma vez a absoluta
separação entre conceitos e objectos.
Um conceito pode ser extensionalmente considerado quando a sua extensão é
quantificável, isto é, quando se pode dizer quantos e quais os objectos subsumidos por esse
conceito: assim o predicado "... é homem" pode ser extensionalmente considerado, isto é pode
ser quantificado. São os conceitos cujos objectos se podem determinar (tal não é o caso por
ex. do conceito "... é vermelho"). O ponto de partida para a determinação dessa extensão é no
entanto, sempre o conceito: "... é homem" é constituído pelas suas notas, são as notas que
determinam a extensão. Isto é evidente na linguagem, porque quando predicamos "homem"
de algum indivíduo (ex.: "S. é homem") não estamos a predicar de S. a classe dos homens.
Portanto ao falar de conceito extensionalmente considerado, estamos sempre no "ponto de
vista" do conceito, que não se identifica nunca com os objectos que subsume.
A classe é um objecto lógico, portanto não um conceito, que é constituído pelo
conjunto de objectos subsumidos pelo respectivo conceito. O conceito, que é predicável, não
se poderia identificar com o conjunto dos objectos dos quais se predica. Por isso insiste Frege
em que um conceito não pode ser designado por um nome próprio, nem por um aparente
nome comum; um conceito é "aquilo que um predicado lógico significa". O significado por
um predicado lógico é uma propriedade, que se distingue da classe de objectos que têm essa
propriedade. No entanto, para tornar possível uma teoria da quantificação sobre os predicados
(e predicados de predicados), não há outra solução que não seja a de "tratar" as propriedades
como classes80.
A razão pela qual Frege no entanto não permite a redução do conceito à classe, é a sua
convicção de que a quantificação poderá resolver a questão da existência (responder a
80 Contrariamente a QUINE, Mathematical Logic, p. 120, cit. por GEACH, "Quine on Classes and Properties", KLEMKE, ob. cit., p. 479: "Once classes are freed... of any deceptive hint of tangibility there is little reason to distinguish them from properties. It matters little whether we read "X Y" as "X is a member of the class Y" or "X has the property Y". If there is any difference between classes and properties, it is merely this: classes are the same when their members are the same, whereas it is not universally conceded that properties are the same when possessed by the same objects... But classes may be thought of as properties if the latter notion is so qualified that properties become identical when their instances are identical. Classes may be thought of as properties in abstraction from any differences which are not reflected in differences of instances".
questões como "o que há?", "que tipo de coisas há?"), mas deixa por resolver a questão prévia
de saber como se determina o tipo de coisas que há. Para determinar quais os membros de
uma classe X, não é suficiente a própria extensão dessa classe. Cairíamos numa tautologia:
tais objectos pertencem à classe X (ou satisfazem a relação R), porque tais objectos formam
parte da extensão da classe X (ou da relação R).
Como conclui Geach, a perspectiva de que uma extensão possa ser construída a partir
dos objectos que lhe pertencem, é um erro crasso; os objectos relacionam-se com a extensão
só indirectamente, porque caem sob o conceito correspondente a essa extensão. Esta é a
opinião de Frege, que por esse motivo mais uma vez rejeita o "nome comum" como expressão
para designar um conceito.
"É fácil de ver como o emprego da palavra "termo comum" está ligado à concepção de
que a classe ou extensão consiste ou é composta por coisas singulares. Em ambos os casos dá-
se ênfase às coisas e o conceito é desatendido (...)".
"A extensão de um conceito não consiste nos objectos que caem sob esse conceito,
assim como, por exemplo, um bosque consiste nas suas árvores; está ligada ao conceito e só a
ele. Mas o conceito precede a sua própria extensão"81.
Referindo-se directamente à batalha entre extensionalistas e intensionalistas, Frege
confessa de facto, sob um certo aspecto, situar-se do lado dos últimos, pois considera estéril a
consideração da extensão do conceito como uma classe, fazendo-a residir, não no conceito,
mas nas coisas. Desse modo obter-se-á uma "domain-calcul", mas não uma lógica. O primeiro
baseia-se numa relação de pertença da parte ao todo, relação a que Frege se referia como a "de
um objecto que cai sob um conceito"; mas a lógica assenta, não só nesta relação fundamental,
mas também numa outra, que se deve manter separada desta: a relação entre a extensão de um
conceito e a de um outro conceito, sendo o primeiro subordinado ao segundo82.
Esta batalha de Frege por manter a distinção entre extensão do conceito e classe, vem
na sequência da sua luta pela separação entre conceitos e objectos, de modo que os primeiros
não sejam nunca tratados, assimilados, confundidos, ou dissolvidos entre os objectos. Mas, se
Frege trabalha, ao longo de toda a sua obra esta "intangibilidade" dos conceitos, das funções e
relações, não é com menor esforço que burila a sua noção de objecto, como algo que, não
sendo função, também não pode ser sem a função. A noção de insaturação, que é o que
81 "Kritische Beleuchtung einiger Punkte in E. Schroeders Vorlesungen über die Algebra der Logik", [KB], Kleine Schriften, p. 210.
82 Cfr. ibid., p. 146.
caracteriza a função (e o conceito) não podem existir por si, isoladamente. Seria fácil
caracterizar objecto como aquilo que, sendo completo, saturado, pode existir por si. No
entanto, nem a insaturação traduz insubstancialidade, nem a saturação, substancialidade.
Como se verá, ao tratar da insaturação as metáforas que se lhe aplicam como relação da parte
ao todo, do completo e incompleto são inadequadas, e o próprio Frege as abandonaria83.
Aliás os próprios exemplos de Frege contradizem esta oposição entre o que existe por
si, completo (objectos) e o que existe apenas como parte de, não isoladamente (funções,
conceitos): Frege considera nos Grundlagen a existência de conceitos que não subsumem
nenhum objecto84;e por outra parte considera como objectos os números. O critério da
distinção fregeana é portanto nitidamente diferente do da distinção clássica
substância/acidente, embora, como nota Angelelli, haja certas afinidades entre a noção de
Ungesätigttheit e o livro Z da Metafísica85.
Assim como não é a incapacidade de existir isoladamente (insubstancialidade) que
caracteriza ou determina as funções e os conceitos, também não é o facto de existir
isoladamente, por si, ou a substancialidade, que caracteriza os objectos de Frege. A sua
principal preocupação é a de manter a separação absoluta; e como foi dito, essa separação, por
parte dos conceitos é garantida por Frege, que considera mesmo que possam existir conceitos
que não subsumam nenhum objecto. Põe-se agora a questão em relação ao objecto: poderá
existir um objecto absolutamente simples, isto é sem partes, sem "propriedades", um objecto
que não caia sob nenhum conceito, que não seja argumento de nenhuma função?
A hipótese de um objecto assim, totalmente simples, sem partes, é problemática. Um
dos critérios utilizado por Frege para a distinção entre funções e objectos é justamente o de
que enquanto as funções existem só como funções de ..., portanto como partes de um todo, os
objectos são esse todo constituído pelo conjunto das funções para as quais ele é argumento: é
o que Frege invoca em "Über die Grundlagen der Geometrie"86. "É óbvio que não podemos
representar um conceito como algo de independente, do mesmo modo que podemos
representar um objecto. Um conceito só pode ocorrer num complexo. Pode dizer-se que um
conceito é distinguível, mas não separável desse complexo no qual ocorre".83 Cfr. DUMMETT, "Note: Frege on Functions", KLEMKE, ob. cit., p. 295.84 Cfr. Grl § 94.85 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 189, nota 149: o autor vê certas afinidades entre a Ungesättigtheit
fregeana e o Livro Z da Metafísica de Aristóteles.86 Editado em KLEMKE, ob. cit., pp. 559-575, Szabo (trad.); v. p. 570, nota: "It is obvious that we cannot
represent a concept as something independent in the way we can represent an object. A concept can only occur in a complex. One might say that a concept can be distinguished within, but not separated from, the complex in which it occurs".
Tendo isto em conta, Marshall87 argumenta dizendo que um objecto existe se existirem
as suas partes, e que uma função só pode existir como parte de algum objecto. O objecto é
visto portanto em relação à função como o todo para as suas partes. O critério da distinção
não parece satisfatório a Marshall, pois justamente não pode existir um objecto isolado das
funções das quais é argumento. Tal objecto seria o objecto simples. Supondo que A é esse
objecto, teríamos que dizer "A é o valor da função 'o objecto que é X'", sendo X "o objecto
simples". Consequentemente, sendo A o valor de alguma função, já não pode ser simples. De
facto o que está aqui em causa é a possibilidade de pensar um objecto enquanto objecto
simples, quando um objecto nos aparece sempre como algo de complexo, algo visto através
de conceitos. Por isso, é problemática também a possibilidade de se poder referir um objecto.
Cada nome do objecto tem um sentido, que exprime uma determinação do objecto. Por isso
esta mesma argumentação sobre o objecto simples surgirá de novo na questão do sentido e
referência dos nomes próprios.
No entanto, o próprio Frege não deve ter nunca posto a hipótese do "objecto simples",
nem problematizado a questão a este ponto. E a crítica de Marshall atinge sobretudo a
formulação da distinção função/objecto em termos de partes/todo. A metáfora do todo e da
parte é que se revela portanto insatisfatória. Mas isso foi reconhecido pelo próprio Frege que,
nos escritos tardios a abandonou. Como mostra Dummett88, não se trata propriamente de um
erro considerar o argumento de uma função como uma parte do valor dessa função para esse
argumento, mas de uma metáfora infeliz. Assim, a questão do objecto simples, sem partes, é
uma questão sem resposta justamente porque é uma questão mal formulada. Não é pois
definitivo, para Frege o critério de distinção entre função/objecto assente no ser parte de... ou
ser isoladamente.
A noção que se revela verdadeiramente adequada para estabelecer essa distinção é a da
insaturação/saturação. Assim como ser insaturado significa radicalmente essa propriedade que
têm os conceitos (como funções) de ligar, de encadear os elementos variáveis e livres da
linguagem; assim, ser saturado significa essencialmente impossibilidade de ser atribuído a, ou
predicado de outro. Um objecto não pode, logicamente aderir (ser acidente de, ou atributo de,
em terminologia clássica, ou inerir) a outro objecto. "Um objecto, por exemplo o número 2,
87 Cfr. MARSHALL, "Frege's Theory of functions", KLEMKE, ob. cit., p. 257.88 Cfr. DUMMETT, "Note: Frege on functions", KLEMKE, ob. cit., p. 296.
não pode logicamente aderir a outro objecto, por exemplo, Júlio César, sem algum tipo de
ligação"89.
É pelo facto de ser a saturação que determina o que é um objecto, que Frege considera
objectos os números, as classes, os valores de verdade, os indivíduos. Esta via para a
categorização do que é um objecto faz ver como a sua linha de demarcação difere da
categorização clássica, assente basicamente na oposição substância/não substância (acidente),
ou singular/universal90. Segundo a perspectiva tradicional, singulares são aquelas coisas às
quais nos podemos referir apenas com um termo singular, nunca com um predicado (ou
expressão relacional); e universais são aquelas às quais podemos referir-nos (ou podem ser
introduzidas na linguagem) por um predicado (ou expressão relacional), ou também por um
termo singular. Assim, às mesmas entidades (universais), na perspectiva clássica, podemos
referir-nos dizendo "vermelho", ou "é vermelho", "sabedoria", ou "é sábio", etc.. É esta a ideia
expressa por Aristóteles nas Categorias, dizendo que uma substância é aquilo do qual se
podem predicar coisas, mas que não pode ser predicado de nada91. Uma qualidade (acidente),
pode ser predicado de algo, mas pode também ser sujeito de predicação.
Aqui diverge o critério de Frege: a um objecto só nos podemos referir com um nome
próprio (termo singular), como os particulares de Aristóteles; um conceito, no entanto, só
pode ser referência de um predicado gramatical, nunca de um termo geral. Para Frege. termos
e predicados são expressões tão radicalmente heterogéneas e distintas que nunca poderiam
desempenhar papéis semelhantes na linguagem92. O referente de um termo geral não poderia
nunca ser reconhecido como coincidindo com o referente de um predicado. O que significa
então a expressão: "A sabedoria não está restringida aos velhos"? Trata-se de uma
transformação em linguagem corrente da expressão: "Nem só os velhos são sábios", onde se
patenteia de novo o carácter predicativo do conceito a que se refere "é sábio".
Esta argumentação fregeana vai aparentemente alimentar uma perspectiva nominalista,
para a qual o nome de um universal não tem referência propriamente dita, ou a sua referência
89 "Über die Grundlagen der Geometrie", KLEMKE, ob. cit., p. 570: "An object, for example, the number 2, cannot logically adhere to another object, for example, Julius Caesar, without some sort of liaison".
90 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., pp. 11-16.91 Cfr. ARISTÓTELES, Categorias 1 a, 20 1b, 10.92 Frege diverge aqui de Russell; Cfr. "Über die Grundlagen der Geometrie", KLEMKE, ob. cit., p. 570
nota: "Russell in section 49 of The Principles of Mathematics, vol. I (Cambridge, 1903) does not wish to concede that there is a difference of kind between concepts and objects. He maintains that concepts, too, are always terms. He bases his argument on the fact that we are forced to use a concept substantially as a term if we want to say something about it e.g. that it is not the case that it is a term. This necessity, it seems to me is only founded in the nature of our language and thus is not genuinely logical".
não é senão a classe de objectos que caem sob esse universal (conceito). Ou seja, não há
objectos abstractos, no sentido de Quine e Goodmann93. Poderemos considerar também Frege
um nominalista, na medida em que na sua análise da linguagem, praticamente transforma os
nomes de conceitos (universais) em nomes de classes (ou de objectos que caem sob esses
conceitos)?
A questão aqui implicada é a da existência ou não existência de objectos abstractos. O
nominalismo, baseado no critério de ostensão para a existência de objectos, nega a existência
de objectos abstractos, precisamente por estes não poderem ser apontados ou mostrados. São
por isso considerados como espúrios: não podendo ser identificados como referentes de um
nome, nem localizados no espaço e no tempo, nem perceptíveis pelos sentidos, tais objectos
devem pura e simplesmente ser eliminados do quadro ontológico94. Frege afirma também, sem
dúvida, que esses objectos não podem ser identificados como referentes de um nome (não há
termos comuns), nem localizados espacial e temporalmente, nem perceptíveis pelos sentidos.
Mas, apesar disso, é justamente a tese da existência de tais objectos, que Frege defende nos
Grl, rejeitando com veemência a tendência para considerar como existentes apenas os
objectos que são perceptíveis pelos sentidos e localizáveis no mundo externo. Os números são
exactamente um peculiar tipo de objectos, não pertencentes ao mundo externo, físico, mas
apesar disso objectos. Frege utiliza nesta obra o princípio da contextualidade semântica para
justificar esses objectos: não são identificáveis como referentes de um nome próprio
isoladamente, mas sim desse nome quando ocorre no contexto de uma frase. Se perguntamos
pelo significado de um nome de um objecto abstracto isoladamente, argumenta Frege,
cairemos na atitude psicologista, que leva a atribuir a esse significado alguma imagem mental
ou representação. Daí rapidamente se poderia inferir que o nome não tem nenhuma referência,
o que mostra como esta atitude psicologista alimenta e reforça a nominalista, que nega
precisamente a existência de tais objectos. O que Frege pretende garantir fundamentalmente
com o princípio semântico aqui enunciado é a atribuição de um significado objectivo também
aos nomes destes objectos. No caso dos nomes próprios, esse significado objectivo é
garantido pelo seu sentido, que pode ser considerado como o critério para identificar um
objecto como referente do nome. No caso de um nome de um objecto abstracto, este meio de
referir o objecto falta: o que é necessário dominar é o uso de afirmações de identidade, nas
quais o nome ocorre por um lado, e outros termos complexos para um objecto desse tipo, por
93 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 473.94 Cfr. ibid., pp. 494-495.
outro lado. A ideia de que a falta de um meio que permita a ostensão impossibilita o estatuto
de uma expressão como nome próprio, e portanto o estatuto do seu referente como um
objecto, deve-se à imagem falsa do objecto concreto como algo que nos pode ser dado,
independentemente da linguagem. Uma vez que compreendemos que não é assim, que
qualquer nome tem significado, não isoladamente, mas no contexto, não há necessidade de
atribuir um papel fundamental ao meio de ostensão. E, por consequência a divisão
concreto/abstracto esfuma-se e perde todo o seu peso: o importante é determinar e identificar
o papel dos respectivos nomes ou expressões que designam variados tipos de objectos, no
contexto linguístico no qual ocorrem95.
Assim se torna patente como o princípio semântico é o meio a que recorre Frege para
justificar um modo peculiar de existência96: a dos objectos como por exemplo os números (no
caso dos Grl), isto é objectos não actuais, mas não por isso menos reais do que os objectos
concretos, sensíveis, externos. No entanto, a "solução" fregeana levanta uma questão interna
ao seu próprio pensamento: como é possível conciliar o realismo latente no modelo semântico
do uso do nome próprio para um referente determinado (the name/bearer relation), que é o
protótipo da referência, com o princípio de que os significados dos nomes se dão no contexto
da frase em que ocorrem? Dummett reconhece que há indiscutivelmente uma tensão entre o
realismo de Frege e a sua teoria do significado dentro do contexto97. Torna-se problemático o
estatuto de "objectos" como por exemplo, os números e todos os objectos matemáticos, apesar
das duras críticas de Frege contra os "formalistas" e das suas teses repetidas vezes defendidas
da sua "realidade" como objectos, que se distinguem das expressões que a eles se referem.
Esta aparente inconsistência entre o realismo e o princípio semântico levantou uma
viva polémica98. A discussão está formulada em termos de compatibilidade ou 95 Cfr. ibid., p. 498.96 Dummett não admite essa plurivocidade do predicado "existe". Cfr. FPL, p. 497.97 Ibid., p. 499: "There is, indisputably, a considerable tension between Frege's realism and the doctrine of
meaning only in context: the question is wheather it is a head-on collision".98 O problema do princípio da contextualidade semântica e sua integração no sistema do pensamento
fregeano posterior aos Grl é extensamente tratado por Dummett (The Interpretation..., pp. 360-427). Dummett discute a tese de Angelelli segundo a qual o princípio teria sido praticamente abandonado por Frege, e não passaria de uma semântica ad hominem para sustentar a noção de número como objecto. Pelo contrário Sluga defende que Frege manteve o princípio semântico e até o reafirmou em escritos posteriores ("Über die Grundlagen der Geometrie", de 1906). Dummett sintetiza as duas posições aparentemente contrárias do seguinte modo:Há que considerar se o princípio semântico é um princípio que diga respeito ao sentido ou à referência, uma vez que nos Grl Frege não fizera ainda esta distinção explicitamente. Nos Grl Frege está preocupado sobretudo por atribuir uma referência aos numerais: para isso é necessário garantir que os números são objectos, e os numerais, os seus respectivos nomes próprios. Para evitar no entanto uma reificação desses objectos, Frege distingue-os dos objectos concretos, actuais (wirklich), distinguindo Wirklichkeit de Objektivität. Deste modo, Frege introduz uma plurivocidade no predicado da existência, que no entanto
incompatibilidade entre as duas teses: ou se mantém o realismo e o princípio semântico perde
a validez, ou se mantém o princípio da contextualidade e Frege será interpretado como
nominalista quanto à existência de objectos abstractos. No entanto, a tese da contextualidade
semântica não tem que estar necessariamente vinculada ao nominalismo. O princípio de que
uma palavra só tem significado no contexto só é incompatível com um certo realismo,
concretamente com o realismo que considera como existentes reais apenas os objectos
concretos (a que Frege chama actuais). Como já foi referido, o universo real de Frege não é
constituído apenas por esse tipo de objectos – os actuais (wirklich) – mas também pelo
domínio do objectivo não actual. E o princípio semântico surge exactamente como uma
defesa contra a noção grosseira de que um objecto nos possa ser dado imediatamente,
independentemente de qualquer conceito expresso na linguagem, isto é, contra o atomismo
epistemológico99, reflexo de uma noção de objecto exclusivamente como coisa concreta,
actual. Pode-se considerar portanto como a primeira pedra de uma semântica congruente com
a noção fregeana de objecto e de objectividade, e que apresente em concreto uma explicação
da referência adaptada aos respectivos domínios do objectivo actual e do objectivo não actual.
Portanto o dilema aparente entre a existência de objectos abstractos e princípio da
contextualidade semântica resolver-se-á dentro do sistema de Frege, se admitirmos as
modalidades da actualidade (Wirklichkeit) como existência de objectos concretos e da
objectividade (Objektivität) como modo de existência dos objectos abstractos. Se no entanto
se admitir um único sentido para o predicado da existência – o do quantificador existencial –,
como Dummett admite, então é inevitável um certo dilema quanto ao estatuto dos objectos
não actuais. E sem o recurso a essa plurivocidade do predicado "existe", não encontraremos
de facto nenhuma solução em todo o pensamento de Frege.
A distinção clara e radical entre conceito e objecto, um dos princípios de toda a obra
de Frege, permite-lhe por um lado uma nítida demarcação do domínio da lógica, da ciência do
pensamento puro e suas leis, mas exige, por outro lado uma cuidadosa elucidação da noção de
Dummett não admite. Por isso, enquanto princípio respeitante à referência, conclui Dummett, o princípio da contextualidade colide de facto com o realismo pois põe em causa a existência de objectos abstractos. Sendo referentes de palavras apenas quando estas ocorrem no contexto da frase, a sua existência é duvidosa. Enquanto princípio respeitante ao sentido, no entanto, não há nenhum conflito com o realismo nem com o pensamento posterior de Frege: o princípio estabelece a primazia das frases na ordem da compreensão e explicação do seu sentido.O dilema põe-se portanto só quanto à existência dos objectos abstractos, e Dummett conclui que Frege nunca o resolveu. Uma reformulação da tese da existência e modalidades, no entanto, pode dar uma solução para este problema.
99 Cfr. ibid., p. 427.
objecto: um trabalho difícil, sem dúvida, pois desta noção não se pode dar uma definição, ou
uma descrição, apenas aproximações pela via da linguagem, que se revela ser uma via eficaz e
luminosa. O objecto para Frege caracteriza-se sobretudo pela saturação, característica que se
mostra sobretudo através da linguagem. Mas precisamente por ser esta a característica
fundamental, o universo dos objectos em Frege, é um universo mais vasto do que aquele que
correntemente se considera como o universo dos objectos: abarca os números, os valores de
verdade, as classes. A dificuldade da elucidação desta noção não era decerto alheia à mente de
Frege, como o comprova a resposta que deu a Wittgenstein, quando este lhe perguntou se não
via nenhuma dificuldade em considerar os números como objectos: "Às vezes parece-me ver
uma dificuldade, mas depois deixo novamente de a ver".
I.3 O NÚMERO: EXTENSÃO DO CONCEITO
A obra de Frege que marca a sua viragem para uma preocupação predominantemente
filosófica é Die Grundlagen der Arithmetik, já referida em I.2100, que constitui um grande
contributo não só para a filosofia da aritmética, mas sobretudo para uma teoria filosófica do
conceito. A sua análise da noção de número e suas definições exploratórias constituem o
pensamento primeiro de Frege sobre o conceito e a sua extensão e contém em si, como em
incubação as principais teses da semântica, da lógica filosófica e da pressuposta ontologia
fregeanas.
Por isso justifica-se plenamente que, para uma exposição sobre a teoria do conceito em
Frege, se examine o conteúdo desta obra, tanto na sua parte crítica como na pars construens e
se comprove como os Grl assinalam um marco importante na formação e evolução do
pensamento filosófico de Frege.
A tarefa que Frege se propõe levar a cabo nesta obra é uma investigação rigorosa do
conceito de número, com a finalidade principal de mostrar que o raciocínio propriamente
matemático repousa em leis lógicas gerais, e não necessita portanto de recorrer a leis
particulares que regem o pensamento por agregação101. Frege pretende refutar, com esta
finalidade logicista, a filosofia da matemática que considera o número a partir de uma análise
psicologista do acto de contar, como um pensamento por agregação, que procede
mecanicamente102. A objectividade, universalidade e independência das leis lógicas do
pensamento são princípio fundamentais, para Frege: "O pensamento é essencialmente o
mesmo em toda a parte: não é verdade que haja vários tipos de leis do pensamento segundo os
diversos tipos de objectos do pensamento aos quais se aplicam. Tais diferenças consistem
apenas em que o pensamento é mais ou menos puro, menos ou mais dependente das
influências psicológicas e dos apoios externos, como é o caso das palavras, dos
numerais..."103.
A dificuldade não é pequena, pois as teses sobre a natureza do número são múltiplas e
por vezes contraditórias: para uns matemáticos "as unidades são iguais entre si", outros
100 Cfr. I.2, nota 1.101 Cfr. Grl, p. III.102 Cfr. ibid., p. III. 103 Ibid., p. III.
consideram-nas diversas; o número é considerado ora como uma propriedade das coisas
externas, ora como algo de puramente mental, subjectivo, etc.. Frege dedicará toda uma parte
da obra a um cuidadoso exame crítico das teses em questão, para na segunda parte (a partir do
§ 45) tentar construir a sua filosofia da matemática, concretamente, através da exploração de
várias possíveis definições do número cardinal. Não é de admirar que toda a exposição
assuma um tom mais filosófico104 do que estritamente matemático, factor que terá levado ao
escasso êxito da obra entre os matemáticos. O que Frege rejeita frontalmente na sua posição
em relação às teorias do número e das leis da aritmética é a abordagem psicologista e
historicista, atitudes que critica com uma referência irónica àqueles que julgam que os
conceitos brotam na lama individual como as folhas nas árvores e pensam conhecer a sua
essência examinando a sua génese por vias psicológicas105.
Na exposição das opiniões sobre a natureza das proposições aritméticas Frege critica
sobretudo Kant, pela definição como sintéticas a priori (Frege defende a analiticidade das
mesmas); e critica sobretudo Stuart Mill que considera que todas as proposições se
fundamentam num facto de observação física. As objecções fundamentais de Frege são: os
grandes números, dos quais não temos uma intuição sensível, e o número zero, que ficaria
igualmente por explicar por falta de dados sensíveis. Perante as teses em questão, Frege
explora o conceito de número à luz de uma dicotomia básica: trata-se de saber se o número é
uma coisa externa, ou interna, objectiva ou subjectiva, investigação que está de acordo com
um dos princípios fundamentais formulado na Introdução106. Onde situar o lugar do número:
no mundo objectivo, independente, ou no subjectivo das representações e imagens sensíveis;
no mundo externo, como propriedade das coisas, ou no mundo interno? E, à luz do 3º
princípio formulado na Introdução (distinção do conceito e do objecto), trata-se de examinar
se o número pertence ao domínio dos conceitos ou ao dos objectos.
Na dilucidação do carácter subjectivo/objectivo do número, Frege107 distingue dois
sentidos de objectivo: um primeiro sentido enquanto algo de externo, espacial, palpável, real e
um segundo sentido enquanto captado e partilhado por várias mentes. O eixo da terra, o centro
de gravidade do sistema solar são objectivos neste segundo sentido, embora não se possam
considerar reais no sentido primeiro, como o é, por exemplo a própria terra.
104 Ibid., p. V.105 Cfr. ibid., p. VII.106 Cfr. ibid., p. X.107 Cfr. ibid., § 26.
No entanto, de subjectivo, Frege considera apenas um sentido único: o psicológico,
constituído por sensações pessoais, sentimentos, etc.108. A noção de subjectivo no sentido de
algo referente a um sujeito do conhecimento, não necessariamente a um sujeito individual,
Frege não a considera nunca: pelo menos, não utiliza a palavra subjectivo para se referir a este
aspecto. E no entanto, o seu típico reino dos sentidos (que não são sensíveis nem coisas
externas, mas são objectivos no sentido de comuns a todas as mentes) também poderia ser
descrito como uma subjectividade transcendental, ou como uma forma peculiar de "being in
the mind", sem ser uma mente individualizada, particular109. Não parece que Frege tenha feito
esta identificação e a sua noção de subjectivo é sempre limitativa, conotada com um mundo
de imagens, representações e emoções individuais, em si mesmas incomunicáveis, encerradas
no campo do eu psicológico. Angelelli propõe110 que no termo subjectivo, analogamente à
distinção dos dois sentidos de objectivo apresentada por Frege, se distinga também um
sentido "forte" em que subjectivo significa ser uma representação (Vorstellung, que poderá
corresponder ao tradicional conceptus subjectivus), e um sentido "fraco", em que subjectivo
implique apenas a referência a um sujeito (a introduzir um novo termo o mais adequado será
talvez subjectual). Nesta subjectividade transcendental poderia caber o mundo dos sentidos,
dos números, mas não, evidentemente no estreito campo do subjectivo fregeano.
Depois de ter rejeitado a tese fisicalista, do número como uma coisa entre as coisas
externas, defendida por Stuart Mill, Frege contrasta a sua própria ideia de número com a tese
de Leibniz, segundo a qual os números "são só na mente"111. "Ser na mente" (in der Idee)
pode ser considerado como ser na mente objectivamente, e neste caso Leibniz não estaria no
grupo dos "subjectivistas" criticados por Frege. Leibniz não pretendeu nunca fundamentar a
aritmética na psicologia, nem afirmar que os números são Vorstellungen (isto é concepti
subjectivi), ao declarar que os números são "na mente". Pelo contrário, Leibniz considera o
número como algo de absolutamente geral, aplicável não só aos seres corpóreos como aos
incorpóreos, algo pertencente à metafísica112.
A noção de objecto e de objectividade é ainda imprecisa e um tanto ambígua nos
Grundlagen, e daria pé para uma longa dilucidação do problema e seus antecedentes
filosóficos. O § 26 termina com um breve esclarecimento final sobre a noção de objectividade
108 Cfr. "Der Gedanke" [G]: o mundo das "representações" é o subjektiv para Frege.109 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 234.110 Cfr. ibid..111 Cfr. ibid.; Cfr. Grl, § 25.112 Cfr. Grl, § 24.
que poderia ser interpretado em termos kantianos, precisamente no sentido de uma certa
forma de "subjectividade transcendental":
"Entendo por objectivo o que é independente das nossas sensações, intuições e
imaginação, e de qualquer construção de imagens ou representações mentais a partir de
recordações de sensações anteriores, mas não o que é independente da razão – pois o que são
as coisas independentemente da razão? Responder a esta questão seria pretender julgar sem
julgar ou lavar o couro sem o molhar"113.
O número é para Frege algo de carácter objectivo, no sentido de independente da
representação [Vorstellung114], mas não algo de totalmente independente da razão. A defesa
deste carácter objectivo, que ocupa desde o § 18 até ao § 27 (nos quais se procede ao exame
de algumas opiniões sobre o conceito de número cardinal) tem como finalidade principal
desemaranhar a noção de número de qualquer enredo de leis e explicações psicológicas e
genéticas da sua representação: se o número fosse uma representação, a aritmética seria
psicologia115. Assim como a astronomia não se ocupa das representações dos planetas, mas
dos próprios planetas, também o objecto da aritmética não é uma representação.
Será o número algo de objectivo também no primeiro sentido atribuído por Frege, ou
seja algo de externo, palpável, alguma propriedade das coisas externas? Poderá considerar-se
o número como uma qualidade semelhante à cor, ao peso, etc.116? Se o número – a unidade e a
pluralidade – fossem propriedades das coisas poderiam ser utilizados na linguagem como
predicados: os numerais seriam termos conceptuais (Begriffswort) como "... é sábio", ou "é
vermelho".
É fácil comprovar na prática linguística que a unidade e a pluralidade não podem ser
atribuídas aos objectos: não tem sentido perguntar em relação a um objecto, se ocorre uma ou
mais vezes, se é um ou muitos. A unidade e a pluralidade só podem ser atribuídas aos
conceitos sob os quais caem determinados objectos. Se "um homem" fosse uma expressão
equivalente a "homem sábio", o termo "um" poderia utilizar-se como predicado: assim como
dizemos "Sólon era sábio", poderíamos dizer "Sólon era um". Esta expressão isoladamente,
no entanto, não tem nenhum sentido, pois imediatamente levaria o interlocutor a perguntar: 113 Ibid., § 26.114 Cfr. § 27, nota 1, em que Frege distingue representação (Vorstellung) no sentido subjectivo, isto é
aquilo a que se aplicam as leis psicológicas da associação, de natureza sensível, análogo a uma imagem, da representação no sentido objectivo, pertencente à lógica, essencialmente não sensível. A representação subjectiva é geralmente diferente de pessoa para pessoa. A objectiva é comum a todos. Frege esclarece que empregará representação apenas no sentido subjectivo.
115 Cfr. Grl § 27.116 Cfr. ibid., §§ 29 e 44.
"um ... quê?". "Um" não tem o carácter predicativo que têm os conceitos. Como o exemplo do
plural, isto torna-se ainda mais patente: "Sólon era sábio" e "Tales era sábio" podem reunir-se
em "Sólon e Tales eram sábios"; não podemos no entanto afirmar o "um" como uma
propriedade partilhada por Sólon e Tales117.
O "um" não pode ser entendido como propriedade ou determinação das coisas: apesar
disso o emprego da palavra "unidade utilizada para nos referirmos às coisas (diz-se que uma
coisa é uma unidade) produz uma certa perplexidade. As "unidades" são idênticas entre si ou
diversas118? Por um lado, o número nasce da diversidade, da diferença, pois só podemos
enumerar as coisas que podemos discernir umas das outras, pelo menos como situadas
diversamente no espaço e no tempo. Se as unidades fossem absolutamente idênticas entre si,
haveria um colapso das unidades numa unidade única, e portanto impossibilidade de contar,
por ausência de diversidade e de pluralidade. Por outro lado, a ideia de que as unidades são
diversas levanta também sérias dificuldades: se 1+1+1+1 exprimem unidades diversas,
deveríamos substituir os sinais por outros que manifestassem a diversidade, como por
exemplo a+b+c+d; assim se dissiparia totalmente a identidade e não teria sentido indicar as
"unidades" como participando de alguma semelhança: "O um escapa-se-nos por entre os
dedos; ficamos apenas com os objectos em toda a sua particularidade"119. Como resolver esta
aparente incompatibilidade entre identidade e discernibilidade?
Uma primeira aproximação à solução desta aporia é apontada por Frege na distinção
entre unidade e um como uma distinção entre um conceito e um objecto, e respectivos termo
conceptual e nome próprio. Na linguagem corrente quando dizemos "o número um", o artigo
definido mostra que estamos a designar um objecto. Não há vários números um, há apenas um
só número um. Portanto "um" é um nome próprio e como tal não admite plural, como
"Frederico, o Grande" ou "o elementos químico ouro". O número não é tão pouco um
amontoado de coisas, de unidades diferentes: diferentes um, diferentes dois, etc.. Seria a ruína
da aritmética querer introduzir em lugar do um, sempre idêntico a si mesmo, coisas diferentes,
embora expressas por sinais semelhantes.
Quando falamos de "unidades", pelo contrário, utilizamos o plural, o que mostra bem
que se trata, não de um nome próprio, mas de um termo conceptual. Como conceito quais são
então os objectos que subsume? Se subsume o um, o plural deixa de novo de ter sentido; se
117 Cfr. GEACH, P. "Frege's Grundlagen", KLEMKE, ob. cit., p. 470-41; Cfr. Grl § 29.118 Cfr. ibid., § 34.119 Ibid., § 36.
subsume os objectos ou coisas que se podem enumerar, então unidade não é senão outra
forma de dizer coisa, algo. A palavra "unidade" parece camuflar a dificuldade, absorvendo
tanto a diferença, quando ocorre como conceito que subsume as coisas que enumeramos,
quanto a identidade, ao transformar-se em nome próprio120.
Um último expediente para solucionar esta aporia é o recurso ao espaço e tempo como
princípios de discernibilidade, o que levaria a considerar que só as realidades espaciais e
temporais é que seriam enumeráveis, hipótese que é refutada por exemplo por Leibniz, para
quem o número não é consequência da simples divisão do contínuo, mas é aplicável também
aos seres incorpóreos. Segundo Frege, o recurso ao espaço e tempo para reconciliar
discernibilidade com identidade não resolve a questão: o tempo não é senão um requisito
psicológico para o acto de enumerar, não tem nada que ver com o conceito de número; e os
pontos no espaço só são idênticos entre si, precisamente quando considerados isoladamente,
independentemente das suas relações espaciais.
Como é patente, a perspectiva que domina toda esta obra é a de uma irreconciliação
total, insolúvel, entre a percepção sensível da pluralidade, da multiplicidade e o princípio do
inteligível, a identidade, a unidade. Irreconciliação que pode ser interpretada como um dos
aspectos mais "platonizantes" do pensamento de Frege: a unidade, a identidade pertence ao
conceptual, ao intelegível, a multiplicidade ao "representável", ao sensível. A identidade surge
como um ponto focal para o qual convergem, sem nunca o alcançarem, as experiências do
diverso, a discernibilidade do diferente. Identidade e discernibilidade, como dois atributos
contraditórios parecem encontrar-se, paradoxalmente na nascente da ideia de número, na
própria ideia de unidade. Entre os dois mundos, o da identidade e o da diferença, há um hiato
abissal, difícil de re-solver. A dificuldade está em entender a diversidade, e em ver a
identidade.
Na segunda parte dos Grl, Frege vai tentar apresentar uma solução para as aporias
explanadas na primeira parte. A obra apresenta no seu conjunto um processo de investigação e
uma estrutura metodológica um pouco semelhante aos diálogos de Platão. O mesmo método
"indutivo" socrático-platónico está patente no itinerário seguido por Frege: partir do exame da
opiniões (DOXA) contrastantes, provar a sua aporeticidade, para a seguir propor possíveis
soluções de definição do conceito em causa.
120 Cfr. ibid., § 39.
A aproximação de Frege consiste, não propriamente em dar uma definição em sentido
estrito, mas em analisar as frases nas quais atribuímos um número121: quando dizemos "um
grupo de árvores" ou "cinco árvores", "quatro companhias" ou "quinhentos homens", estamos
a referir-nos aos mesmos indivíduos, mas com diferente "denominação"122. Esta diferença
significa que substituímos um conceito por outro: dar um número é pois enunciar algo de um
conceito. Nas frases referidas, há um conceito (árvore, homem), e desse conceito afirmamos
quantos indivíduos subsume. Assim, a solução de Frege preserva tanto a diferença como a
identidade: os indivíduos são responsáveis pela diferença e o conceito é responsável pela
identidade123. Um objecto, um indivíduo não pode ocorrer várias vezes, mas muitos objectos
caem sob um mesmo conceito. Por isso, em relação a um objecto não podemos somar 1 e 1 e
1 para obter o resultado de três, porque um objecto será sempre o mesmo objecto; mas em
relação a um conceito (ser lua de Júpiter) não há dificuldade em equacionar 1 lua + 1 lua + 1
lua = 4 luas. Cada uma difere das outras três enquanto objectos diversos, mas formalmente
(formaliter), enquanto luas de Júpiter são idênticas.
O caso do número zero evidencia talvez melhor ainda que a atribuição do número diz
respeito ao conceito: ao dizer "Vénus tem 0 luas", estamos a atribuir ao conceito "lua de
Vénus" uma propriedade, a de não subsumir nenhum objecto.
Assim resolve Frege a dicotomia do interno/externo, do espacio-temporal ou do que
está fora do espaço e tempo124. E por ser atribuído aos conceitos, segundo o princípio da
distinção entre conceito e objecto formulado na Introdução e reafirmado em BG, não se pode
atribuir aos objectos125.
Sendo o número algo que se atribui a um conceito, poderá concluir-se que se trata de
uma propriedade de um conceito, isto é, um predicado de predicados, ou, em terminologia
fregeana, um conceito de segundo nível?
Frege distingue no § 53 as propriedades (Eigenschaften) das notas (Merkmale) de um
conceito: por propriedade de um conceito, entende Frege não as notas que compõem o
conceito, que são as propriedades dos objectos que caem sob esse conceito. "Rectângulo" não
é propriedade do conceito "triângulo rectângulo". É propriedade do conceito a que enuncia a
proposição "não há nenhum triângulo rectângulo rectilíneo equilátero", que lhe atribui o 121 Cfr. ibid., § 46.122 Note-se que nesta passagem se pode ver um antecedente da distinção entre sentido e referência.123 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 239.124 Cfr. Grl § 48.125 Cfr. BG, Kleine Schriften, pp. 173, onde Frege afirma que a predicação que é feita de um conceito não é
adequada para um objecto.
número zero, ou seja que diz que esse conceito é vazio. No escrito BG, Frege refere a mesma
distinção126: os conceitos sob os quais cai um objecto são propriedades desse objecto numa
mesma propriedade e neste caso são notas deste último conceito. O exemplo ilustrativo é: "2 é
um número positivo, é um número inteiro e é um número maior que dez", em que "ser um
número positivo, inteiro e maior que 10 são propriedades de 2 e simultaneamente podem ser
consideradas como notas do conceito "número inteiro, positivo e maior que 10".
Afirmar de um conceito que não é vazio é enunciar uma propriedade desse conceito
que equivale a afirmar a existência de algum objecto subsumido por esse conceito, ou a negar
o número zero. Por isso Frege afirma que a existência tem alguma analogia com o número.
Esta aproximação parece confirmar a ideia de que um número é propriedade de um conceito:
sendo uma asserção sobre um conceito, o número "aparece" no segundo nível de entidades
lógicas. Neste sentido, o pensamento de Frege parece enveredar para a tradição filosófica que
considera o número como uma propriedade e atribui o seu poder unificador à nossa
intervenção mental, pertencendo portanto o número ao ens rationis. Subjectivamente
interpretado, o número é como um ser na mente ("being in mind")127.
Isto suporia uma total inversão de marcha no percurso fregeano, no sentido da defesa
do carácter objectivo da noção de número. Mas não é isto o que Frege quer significar ao dizer
que a atribuição de um número envolve uma asserção sobre um conceito128. O número é
apenas uma parte do predicado, mesmo quando na linguagem corrente toma o aspecto de um
atributo: "Júpiter tem 4 luas" significa "o número das luas de Júpiter é (é igual a) quatro".
Trata-se de uma identidade e uma identidade, na concepção de Frege estabelece uma relação
entre objectos, não entre conceitos. Portanto à esquerda e à direita da cópula ocorrem nomes
próprios, nomes de objectos. "Quatro" é portanto, claramente o nome de um objecto como o é
Júpiter. Cada número particular manifesta-se como um objecto independente, como uma
entidade "subsistente" por si mesma, no sentido de ser como um indivíduo, um sujeito último
de predicação, tal como Calias o era para Aristóteles. É objecto enquanto independente e
sujeito de predicação, mas um objecto algo misterioso que não se pode representar (imaginar)
sensivelmente, como os objectos externos, pois não se trata obviamente de um ser sensível
nem de uma propriedade das coisas. A objecção à categorização do número como objecto
126 Cfr. Cfr. ibid., p. 51.127 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 243.128 Cfr. Grl § 57: o que se torna um pouco estranho é a analogia que Frege estabelece no § 53 entre existência
(propriedade de um conceito que consiste em negar o nº 0) e número, para logo a seguir negar que o número seja uma propriedade de um conceito e afirmar que se trata de um objecto. A analogia deixa de se ver.
pelo facto de não ser representável é aliás facilmente descartada por Frege: trata-se de um
objecto inteligível, um objecto do pensamento, que nos faz muitas vezes transgredir os limites
do representável, sem que por isso os nossos juízos percam o seu conteúdo129.
O facto de o número ser um objecto porque é independente, completo em si mesmo,
não implica de modo algum que um termo numérico, o nome próprio de um número tenha
significado isoladamente, fora do contexto de uma proposição, o que transgrediria o terceiro
princípio enunciado na Introdução, o de que as palavras não têm significado isoladamente,
mas apenas contextualmente. O que Frege quer refutar terminantemente é que o termo
numérico possa ser utilizado como uma forma predicativa, como se fora uma propriedade ou
um atributo. A característica decisiva dos objectos é que a sua expressão não tem a
incompletude (insaturação) própria de um termo conceptual: é fácil de comprová-lo na
linguagem corrente, pois um termo numérico como 2 ou 3 comporta-se como um nome
próprio como César, por exemplo. Os nomes de objectos completam os lugares vazios nas
expressões funcionais ou de relações ("... respira", ou "... ama...", ou "a capital de...") também
um termo numérico pode completar lugares vazios como "... é primo" ou "... é maior que"130.
A análise da linguagem faz ver portanto que os termos numéricos são nomes próprios que,
como todos os nomes próprios designam (se referem a) objectos.
Dizer que os números são objectos, no entanto, não só não constitui nenhuma
definição de número, como, pelo seu carácter peculiar de objectos que não nos são dados nem
por uma representação nem por uma intuição, exige um critério de identificação que não pode
recorrer nem à mera ostensão, nem a qualquer dado de percepção sensível. Como é que um
número nos pode ser dado? Para responder à questão, e segundo o procedimento analítico
habitual de Frege, será necessário perguntar pelo significado de um termo numérico, e como
este só tem significado no contexto de uma proposição, a resposta será definir o sentido de
uma proposição onde figure esse termo. A proposição "o número que pertence ao conceito F é
o mesmo que pertence ao conceito G" estabelece uma relação de identidade entre dois
números que os matemáticos definem por uma correspondência bi-unívoca: se a cada objecto
pertencente ao conceito F corresponde um objecto pertencente ao conceito G, o número de F é
igual ao número de G. A identidade estabelece-se entre objectos e uma afirmação de
129 Cfr. Grl, § 60.130 Cfr. GEACH, "Frege's Grundlagen", KLEMKE, ob. cit., p. 473: no entanto também "ninguém" ou
"nada" poderia parecer como sendo nomes próprios, o que no entanto levaria a contradições imediatas. Considerar as classes como objectos conduz na verdade a uma série de paradoxos.
identidade entre objectos não nos dá uma definição, mas um meio de reconhecer esse
objecto131. A definição de um objecto enquanto tal não diz nada desse objecto, mas dá o
sentido de um sinal. Portanto é um juízo sobre o objecto, mas não introduz o objecto; atribuir-
lhe esse privilégio seria afirmar que o objecto só pode ser dado de uma mesma e única
maneira132.
Frege propõe outra tentativa de aproximação à noção de número no § 68: "O número
que pertence ao conceito F é a extensão do conceito: equinumérico ao conceito F"133. Dando
por conhecida a noção de extensão do conceito, Frege apresenta-a como definição de número.
No entanto também esta definição apresenta as suas ambiguidades. A ideia tradicional de
extensão, com origem na lógica de Port Royal não distingue precisamente se a noção se aplica
só aos indivíduos, ou também aos conceitos subordinados: "Segundo Arnauld e Nicole, a
extensão de um termo geral é o conjunto dos seus inferiores, mas não é bem claro se os
inferiores de que eles falam são espécies ou indivíduos"134. De modo semelhante, Frege, ao
definir o número que pertence ao conceito F como a extensão do conceito "equinumérico com
o conceito F", está a utilizar esta última expressão como um termo conceptual, de modo que a
extensão do conceito que ela refere tem que ser um conjunto de conceitos. O que equivale a
dizer que o número é um conjunto de conceitos, contradizendo toda a argumentação anterior
de Frege para sustentar que os números são objectos135.
Na concepção fregeana a extensão não é constituída pelos objectos que caem sob o
conceito, tal como uma floresta é feita de árvores136. A extensão liga-se ao conceito como uma
propriedade primitiva do conceito, e Frege chega mesmo a dizer, em nota de rodapé que a
expressão "extensão do conceito" pode ser substituída pela palavra "conceito"137. É evidente
que Frege não está a querer anular a afirmação de que os números são objectos, distintos de
131 Cfr. Grl § 66 sobre juízo de recognição; Cfr. IMBERT, Claude, Introduction aux Fondements de l'Arithmétique, p. 13: faz notar que a referência neste parágrafo e no § 106 ao juízo de recognição comprova que Frege não exclui afinal toda a consideração de tipo epistemológico. Sobre definibilidade Cfr. DUMMETT, The Interpretation..., pp. 254-260.
132 Frege pensa já, aqui na distinção entre sentido e referência: os sentidos são os vários modos de dar-se um objecto.
133 Na tradução francesa dos Grl, Claude Imbert propõe muito acertadamente a palavra équinumérique para a alemã gleichzahlig. Austin traduz por equal, mas anota outras possíveis traduções, como identinumerate, ou tautarithmetic. Equinumerous é de facto a melhor tradução.
134 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 121; cfr. também. KNEALE, W. e M., O Desenvolvimento da Lógica, p. 323.
135 Cfr. KNEALE, ob. cit., p. 469.136 Cfr. KB, Kleine Schriften, p. 210.137 Cfr. Grl § 68, nota 1; Cfr. KNEALE, ob. cit., pp. 469-470.
conceitos, uma vez que reconhece, na mesma nota que a contradição aparente poderia ser
eliminada, mas isso levá-lo-ia demasiado longe.
A extensão liga-se ao conceito como uma propriedade primitiva do conceito, portanto
trata-se de uma noção estritamente lógica. Como "propriedade do conceito", sendo o número
a extensão, voltamos a encontrar os números entre os predicados de predicados, ou entre os
conceitos de segundo nível, o que não é a tese de Frege. Mas é a sua própria noção de
extensão que conduz a estas ambiguidades na identificação do número com a extensão do
conceito.
É necessário precisar melhor como se faz este identificação. Frege considera que a
passagem do conceito à sua extensão não é imediata nem idêntica em todos os casos: há a
considerar três grupos de conceitos, tendo em conta as propriedades e notas:
– aquelas cujas notas constitutivas exprimem uma qualidade;
– uma propriedade individualizante;
– a propriedade de um outro conceito, se se tratar de conceitos de segundo nível.
Do primeiro grupo de conceitos, Frege dá o exemplo de "... é vermelho"138. A estes
conceitos não se pode atribuir um número, pois não satisfazem o requisito da delimitação
estrita, em virtude do qual se pode dizer sempre se um objecto cai ou não sob um conceito. A
sua extensão é pois indeterminada e não será considerado, na lógica fregeana este grupo de
conceitos: não se trata propriamente de um predicado no sentido preciso, definido sobre uma
colecção de indivíduos discretos.
O segundo grupo, em que a propriedade reflectida pela nota do conceito individualiza
os objectos que o conceito subsume, reúne os conceitos que Frege qualifica de "unidades" e
nos quais está especificada a correspondência existente entre os casos de verdade e cada um
dos objectos. A este conceito é atribuído o número139, porque separa em geral com precisão os
elementos da pluralidade que subsume. Enquanto que aquilo que cai sob o conceito vermelho
pode ser dividido de vários modos, sem que as partes assim obtidas deixem de cair sob o
mesmo conceito, no caso de um conceito-unidade, este delimita precisamente os elementos
que subsume e não admite nenhuma outra divisão desses elementos. Por isso pode constituir
uma unidade para um número cardinal finito.
O terceiro grupo é constituído por uma propriedade (conceito) comum a vários
conceitos, portanto de ordem superior ou de segundo nível (expressão que Frege utilizará em
138 Cfr. Grl § 54.139 Cfr. ibid., § 54.
BG). Se reunimos sob um mesmo conceito todos os conceitos sob os quais um só objecto é
submetido, a unicidade é a nota deste conceito. Podemos por isso submeter um conceito a
outro mais elevado, de segunda ordem, ou de segundo nível, no entanto é necessário distinguir
esta relação da subordinação de conceitos140.
Neste caso, do conceito de segunda ordem, pode-se saber, em relação à extensão do
conceito de primeira ordem, se é universal ou limitada, sem no entanto ter um conhecimento
explícito dessa extensão. Nunca, portanto a função que permite passar de um conceito à sua
extensão nos dá um conhecimento determinado dessa extensão141.
Por isso se pode concluir que o extensionalismo de Frege tem um carácter muito
peculiar, porque a extensão de um conceito, não é a mera colecção dos objectos que
"pertencem" ao grupo que eles constituem, mas sim o conjunto dos casos de verdade desse
conceito, ou os casos em que um argumento vem efectivamente preencher o lugar vazio do
conceito. Se tivermos em conta que para Frege o verdadeiro e o falso são também objectos,
esta segunda afirmação pouco altera em relação à primeira: a extensão do conceito será ainda
um conjunto de objectos (os percursos de valor da função, os casos de verdade do conceito).
Mas neste caso a noção de objecto adquire uma característica particular: é ob-jecto, algo que
se dá, se patenteia à mente de uma forma acabada, completa, saturada. Mas é o conceito que
determina a sua extensão, portanto há no ob-jecto algo determinado pelo próprio conceito, e
não o contrário, o objecto, a extensão a determinar o conceito.
O extensionalismo de Frege consistirá afinal, essencialmente no princípio de que em
qualquer enunciado, sem alterar a sua verdade, um termo conceptual pode substituir outro se a
ambos corresponde a mesma extensão conceptual; isto implica também que na relação com a
inferência e as leis lógicas, os conceitos funcionam de modo diferente na medida em que a sua
extensão for diferente142. Este princípio lógico apresenta-se como um princípio de carácter
meramente "funcional", mais como uma regra da substituição dos termos, à qual não
corresponde no entanto uma consequência de carácter epistemológico nem ontológico. Com
efeito Frege afirma também que os conceitos podem ter extensões iguais sem que eles
próprios coincidam, o que confirma que não é a extensão que determina decididamente o
conceito. E além disto o seu "extensionalismo" ressalvará sempre a noção de referente do
conceito, que não é a sua extensão, como erradamente se poderia pensar; não se pode
140 Cfr. ibid., § 53, in fine.141 Cfr. Claude Imbert, Introduction..., p. 75.142 Cfr. "Ausführungen über Sinn und Bedeutung", Nachgelassene Schriften, pp.128-136.
esquecer que as extensões dos conceitos são objectos, e não conceitos. A relação do conceito
à sua extensão é uma relação lógica, uma relação do pensamento puro, a relação lógica
fundamental. É esta relação lógica que determina de um modo que poderíamos dizer
constitutivo, as extensões dos respectivos conceitos. Portanto a intensio143 tem prioridade
lógica sobre a extensio: é o que Frege confirma no seu escrito KB: "Defendo realmente que o
conceito é logicamente anterior à sua extensão; e considero trivial a tentativa de tomar a
extensão de um conceito como uma classe, fazendo-a radicar, não no conceito, mas nas coisas
singulares"144.
Nos Grl estão presentes de uma forma explícita e clara, ou de uma forma implícita,
como que em gérmen, as teses fundamentais do pensamento fregeano145. Em primeiro lugar a
irrelevância da "representação" ou imagem mental para o sentido enquanto conhecimento, que
será um dos princípios fundamentais da sua teoria do significado; o carácter objectivo da
lógica e das leis do pensamento contra o carácter subjectivo dos processos psicológicos e a
prevenção contra o recurso a estes últimos como explicação e fundamentação das primeiras; a
distinção nítida e radical separação, embora por vezes problemática, entre conceitos e
objectos; o princípio semântico de que é no contexto da proposição que uma palavra tem
sentido.
No que diz respeito à filosofia de um modo geral, a obra de Frege apresenta uma nova
noção de analiticidade e de a priori, crítica em relação à filosofia kantiana, e fonte da
distinção de sentido e referência, distinção de amplo alcance não só no âmbito da semântica,
como também no da epistemologia. A distinção vem reforçar e justificar a tese de que os
juízos de identidade (analíticos) não são irrelevantes para o progresso no conhecimento. No
terreno mais específico da filosofia da matemática, Frege expõe com pormenor a sua tese
logicista de que as afirmações aritméticas são analíticas, podem ser explicadas em termos
puramente lógicos e derivadas de princípios também puramente lógicos.
A introdução da noção de classe na teoria lógica do conceito, que ocorre nos §§ 68-69,
acabaria por dar resultados francamente negativos no programa logicista fregeano. As
consequências lógicas do extensionalismo originaram o fracasso dos Gg, com a descoberta do
paradoxo de Russell, e levaram Frege, no resto da sua vida, a um contínuo trabalho intelectual
143 Cfr. KNEALE, ob. cit., p. 323: "Desde a segunda metade do século XIX que os escritores de língua inglesa imitaram Sir William Hamilton substituindo "compreensão" por "intensão", que não tem emprego na linguagem vulgar, mas nem sempre é óbvio o que é que eles decidiram que este termo deve incluir".
144 KB, Kleine Schriften, p. 209.145 Cfr. DUMMETT, FPL, pp. 630-631.
para restabelecer a sua teoria do conceito com uma visão mais "intensionalista". De certo
modo, depois dos Grl, onde Frege expõe os fundamentos do seu programa lógico e dos Gg,
onde propõe o correspondente sistema formal, as obras posteriores são uma série de notas de
rodapé às teses em causa nestas duas obras fundamentais.
I.4 A NOÇÃO DE CLASSE
A definição de número introduzida por Frege nos Grl (§ 68) – "o número que
corresponde ao conceito F é a extensão do conceito equinumérico do conceito F" – dá por
conhecida a noção de extensão de um conceito, como esclarece a nota (§ 80): "Pressuponho
que se sabe o que é a extensão de um conceito". Mas seria interessante saber o que
responderia Frege a uma pergunta frontal e directa sobre o que é a extensão do conceito. Pois
a verdade é que não está perfeitamente clara e isenta de ambiguidades toda a sua "filosofia da
classe".
A própria definição apresentada não deixa de suscitar algumas dificuldades: a
expressão "equinumérico do conceito F" só pode ser atribuída com verdade a conceitos, a
extensão do conceito que ela exprime será um conjunto de conceitos. O que contradiz a
afirmação de Frege de que os números são objectos; segundo esta definição, o número parece
ser antes um conjunto de conceitos. Além desta dificuldade, há outra consequência da
definição que obscurece a visão do número como extensão do conceito, e ao mesmo tempo,
como objecto. Frege afirma que o conceito F tem um número que lhe pertence, o que equivale
a dizer que o conceito F tem um conjunto de conceitos que lhe pertence, nomeadamente o
conjunto dos conceitos cujas extensões estão relacionadas biunivocamente com os elementos
da sua própria extensão. Podemos assim dizer que o conceito F pertence como membro ao
conjunto dos conceitos "equinuméricos com o conceito F", ou que o conceito "equinumérico
com o conceito F" pertence, enquanto propriedade, ao conceito F, mas não que o conjunto dos
conceitos equinuméricos com F pertence ao conjunto F. Isto leva Frege a pôr mesmo a
hipótese de que a expressão "extensão do conceito" pode ser substituída, na definição
mencionada, pela palavra "conceito"146.
Em toda a obra de Frege, desde os Grl até alguns dos escritos publicados
postumamente147, há numerosos indícios de que a noção de classe ou de extensão do conceito,
não é óbvia: desde a própria dúvida quanto ao estatuto da classe ou extensão, à formulação da
relação conceito/classe em termos de sentido e referência e à necessidade de revisão de toda a
filosofia da classe provocada pela célebre antinomia russelliana, que Frege reconhece dever
146 Cfr. Grl, § 68; cfr. KNEALE, W. e M., ob. cit., p. 469 passim..147 Cfr. "Ausführungen über Sinn und Bedeutung", Nachgelassene Schriften, pp. 118-125.
fazer no Apêndice do II volume dos Gg148, tudo indica que Frege fez várias aproximações à
noção de classe, aproximações nem sempre convergentes, mas por vezes discordantes. por
isso as suas afirmações sobre o estatuto das classes devem ser analisadas cuidadosamente,
sem delas se extrapolar prematuramente uma conclusão definitiva sobre a sua tese global
neste domínio. Segundo uma opinião de Angelelli149, as oscilações no pensamento sobre
classes, devem-se a que Frege teria começado por interpretar a noção de classe em termos de
sentido e referência, mas acabaria por projectá-las no mundo platónico de entidades
abstractas: daí a conclusão um tanto paradoxal que concebe as classes determinadas pelos
seus indivíduos, e ao mesmo tempo afirma que as classes são constituídas por conceitos, na
medida em que são determinadas por estes. O famoso Axioma V seria um resultado híbrido
destas oscilações nas aproximações da noção de classe.
Nos Grl, um dos pontos de vista sobre o conceito proposto por Frege é o de que o
conceito é um modo de introduzir no mundo das coisas uma certa estrutura, uma certa ordem:
no § 22, refere que podemos ver na Ilíada, um poema, 24 cantos ou um grande número de
versos. E no § 48 Frege refere o poder que tem o conceito de constituir uma colecção, poder
que considera muito superior ao da apercepção sintética. A apercepção não permitirá reunir
num mesmo todo os habitantes do Império Alemão, mas o conceito "habitante do Império
Alemão" subsume todos esses indivíduos que podem ser contados. O conceito tem o poder de
re-unir e de separar de todos os outros, com exactidão, os elementos que subsume150. É o
conceito que traça os contornos nítidos, constituindo todos os indivíduos, sem os quais o
amontoado das coisas permaneceria amorfo, impensável, indiscernível. As classes surgem,
nesta forma de abordagem como o resultado desse poder unificador e isolador do conceito:
são os diferentes modos segundo os quais uma pluralidade (multiplicidade) pode ser dada.
Esta formulação sugere nitidamente uma possível visualização da relação
conceito/classe em termos de sentido/referência. As classes são por um lado diferentes, por
outro idênticas em relação à sua própria multiplicidade, de um modo muito semelhante em
que "Estrela da Manhã" é idêntica (a mesma referência) e diferente (um outro sentido) em
relação a "Vénus". Os nomes das classes que dizem respeito ao mesmo conjunto de coisas
(como por ex.: "24 cantos" ou "um grande número de versos da Ilíada"), têm o mesmo
148 Cfr. Gg I, Appendix II, p. 127.149 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., pp. 205-218.150 Cfr. Grl § 54.
referente (Bedeutung) mas exprimem um sentido (Sinn) diferente151. O desenvolvimento desta
perspectiva não se encontra porém no posterior pensamento fregeano sobre classes, e
apresenta-se até incongruente com a sua tese, clara e reiteradamente expressa, de que as
classes são objectos. Os objectos não podem nunca ser sentidos. Encontram-se no entanto
algumas passagens nas quais se vislumbra esta formulação, como é o caso deste texto da
recensão da Philosophie der Arithmetik de Husserl152: "O sentido das palavras 'extensão do
conceito satélite de Marte' é diferente do das palavras 'Deimos e Phoebus', e a proposição 'o
número de Deimos e Phoebus é dois', se porventura contém um pensamento, trata-se de um
pensamento certamente diferente do pensamento expresso em 'o número dos satélites de
Marte é dois'. Como Frege nesta altura (1894) utilizava já os termos Sinn e Bedeutung no seu
próprio sentido, poderia acrescentar que as expressões "Deimos e Phoebus" e "extensão do
conceito lua de Marte" envolvem sentidos diversos, mas dizem respeito à mesma referência.
A referência de um nome de classe seria uma multiplicidade, enquanto o seu sentido seria um
peculiar "modo de dar-se" dessa mesma multiplicidade.
Voltaremos a este tema ao tratar dos percursos de valores das funções, que permitem
também até certo ponto, uma formulação nestes termos. De momento, note-se que a
exploração desta perspectiva choca com a tese predominante na obra fregeana, segundo a qual
as classes são "objectos lógicos" (logische Gegenstände), apesar de ter sido esta mesma tese
que conduziu a lógica das classes às célebres antinomias e paradoxos, do qual o próprio Frege
iria ser vítima.
Rejeitando, portanto, a hipótese de serem as classes possíveis sentidos sob os quais
nos é dada uma pluralidade, surge obviamente a ideia de identificar a classe ou a extensão do
conceito com a própria referência do mesmo conceito. Assim, a distinção fregeana entre um
conceito e a sua extensão pareceria um mero prolongamento da distinção tradicional entre
intensão e extensão153. Mas o próprio Frege, num escrito publicado postumamente, esclarece
directamente este tema:
"Poder-se-ia facilmente chegar ao ponto de tomar a extensão conceptual como a
referência do termo conceptual; com isto, porém, não seria levado em conta que extensões
conceituais são objectos, e não conceitos"154.151 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p.213.152 "Rezension...", Kleine Schriften, p. 185.153 GEACH, P. "Class and Concept", KLEMKE, ob. cit., p. 284.154 "Ausführungen über Sinn und Bedeutung", Nachgelassene Schriften, p. 129: "Man könnte so leicht
dahin kommen, den Begriffsumfang für die Bedeutung des Begriffswortes auszugeben; aber hierbei würde man übersehen, dass Begriffsumfange Gegenstände und nicht Begriffe sind".
No entanto, Frege considera que esta perspectiva tem um núcleo de verdade, ou pelo
menos uma razão de ser fundamentada, que lhe advém da já referida insaturação das funções
que, no caso do conceito se traduz na sua natureza predicativa. Esta natureza própria do
conceito constitui, como já foi dito, um autêntico obstáculo para uma adequada expressão e
compreensão do conceito155. Frege refere-se de novo à impossibilidade de utilizar o nome de
um conceito como sujeito em qualquer expressão, o que leva a linguagem, muitas vezes a
obscurecer, ou mesmo a falsificar a noção do conceito, pois sempre que utilizamos a
expressão "o conceito de..." estamos a referir-nos, não ao conceito, mas a um objecto, ou aos
objectos (extensão) que esse conceito subsume. A referência da expressão "o conceito
triângulo equilátero" (contanto que exista), é um objecto. Conceitos e objectos são
radicalmente distintos e não se podem substituir os sinais de conceitos (predicados) por sinais
de objectos (nomes próprios), nem vice-versa, assim como não se podem estabelecer entre os
conceitos as mesmas relações que se estabelecem entre os objectos. Assim a relação de
identidade é uma relação que se estabelece entre objectos, e não entre conceitos. Quando
dizemos "o conceito é o mesmo que o conceito X" estamos a designar uma relação entre
objectos que se exprime dizendo que "aquilo a que dois termos conceptuais se referem é o
mesmo se, e somente se, suas extensões conceptuais coincidem". precisamente porque a
relação de identidade entre dois conceitos só se pode formular em termos de coextensividade,
é que Frege dá razão, até certo ponto aos "lógicos extensionais" na sua "predilecção" pela
extensão em detrimento do conteúdo, que revela precisamente a consideração de que é da
referência das palavras que a lógica se deve ocupar essencialmente. Os lógicos intensionais
(do conteúdo) preocupam-se mais com o sentido, não se apercebendo que se a lógica se
interessa pela verdade, deve-se perguntar pela referência, e excluir qualquer termo conceptual
que não a tenha. A questão de saber se, em última análise é a referência a determinar o sentido
ou pelo contrário, é o sentido que determina (ou fixa) a referência, parece ser indecidível. Se,
no caso dos nomes próprios parece óbvio que é o objecto (a referência) a determinar os
sentidos (os vários "modos de dar-se" desse objecto), a questão está longe da resolução; se
considerarmos os diversos nomes como um modo de "fixar a referência", o sentido na ordem
do re-conhecimento aparece como primeiro e determinante da referência156. No caso dos
termos conceptuais, como acabamos de ver, a questão oscila entre um "intensionalismo" que
155 Cfr. ibid., p. 119.156 Cfr. KRIPKE, ob. cit., p. 42.
privilegia o sentido e um "extensionalismo" que opta por uma perspectiva referencialista. Mas
o par sentido/referência aplicado aos conceitos não se pode apresentar segundo uma
formulação isomórfica da que se aplica aos nomes de objectos.
Este breve escrito de Frege, termina com um texto que constitui um esclarecimento
decisivo para a compreensão do seu pensamento no que respeita à extensão conceptual:
"Um termo conceptual deve ter um sentido também e, para o uso científico, uma
referência; esta, porém, não consiste, nem em um objecto nem numa pluralidade de objectos,
mas sim num conceito. Quanto ao conceito, por certo, pode-se novamente perguntar se um
objecto, vários ou nenhum caem sob ele. Mas isto só diz directamente respeito ao conceito"157.
Frege separa portanto com nitidez a relação do termo conceptual com o seu referente
(um conceito), da relação deste conceito aos possíveis objectos que caem sob ele. Esta última
relação, "mais remota e inessencial" não constitui, segundo a opinião de Frege, um critério
adequado para classificar os termos conceptuais. Isto parece reforçar tanto a radical separação
entre conceitos e objectos, como a ideia de que o facto de sob um conceito cair um ou vários
objectos constitui uma propriedade do próprio conceito, portanto é definitivamente rejeitada a
formulação da relação conceito/extensão (classe) em termos de sentido e referência.
A relação do termo conceptual aos objectos é tema de uma carta de Frege a Husserl158,
onde para fazer ver a distinção da relação do sentido à referência, da relação do conceito ao
objecto, é apresentado o seguinte quadro:
157 "Ausführungen über Sinn und Bedeutung", Nachgelassene Schriften, p. 135.158 Philosophical and Mathematical Correspondence, Oxford, Basil Blackwell, 1980, Carta de Frege a Husserl
VII/1 (XIX) 1 de 24-5-1891, p. 63.
Proposição
Sentido
(pensamento)
Referência
(valor de verdade)
Nome próprio
Sentido do nome
próprio
Referência
(objecto)
Termo conceptual
Sentido do termo
conceptual
Referência
(conceito) Objecto que cai
sob esse conceito
E acrescenta Frege: "Com um termo conceptual há mais um passo para alcançar o
objecto do que com o nome próprio e o último passo pode faltar, isto é o conceito pode ser
vazio sem que o termo conceptual deixe de ser útil cientificamente. Indiquei o último passo
do conceito ao objecto horizontalmente de modo a mostrar que este tem lugar ao mesmo
nível, que objectos e conceitos têm a mesma objectividade".
A transição do conceito para a sua extensão é uma transição horizontal, poderíamos
dizer, intra-conceptual. Diferente da transição vertical que marca o passo do sentido à
referência, do "aspecto" da coisa ao próprio objecto, do pensamento ao seu valor de verdade,
ou ainda do sentido de um conceito ao próprio conceito.
Assim é clara a ideia de Frege de que a extensão de um conceito não é constituída
pelos indivíduos que lhe pertencem, mas sim pelo próprio conceito, isto é, pelo que se diz de
um objecto quando é subsumido por um conceito. Considerar que as classes são feitas de
indivíduos seria como dizer que uma obra de arte é feita da sua matéria prima. Esta
perspectiva excluiria, além disso a classe vazia e tornaria impossível a distinção entre uma
classe de um só elementos e esse mesmo elementos. É neste ponto que incide a crítica de
Frege a Schroeder14: por considerar as classes constituídas pelos seus elementos, Schroeder
envolve-se em múltiplas dificuldades para admitir a classe nula ou vazia. Se, pelo contrário
consideramos que os conceitos são feitos com as suas notas (characteristic marks), não há
1 4 Cfr. KB, Kleine Schriften, pp. 193-210.
objecções para aceitar um conceito vazio. Não sendo os objectos que sob ele caem que
constituem esse conceito, pode não haver nenhum objecto, e manter-se um conceito.
Percurso de valores de uma função
Em Funktion und Begriff, Frege introduz uma nova noção que ilumina particularmente
a analogia entre função e conceito, e a própria noção de extensão. Sem este terceiro termo
(percursos de valores e extensões de conceitos), a analogia entre conceito e função ficaria por
completar.
Partindo da Geometria Analítica, torna-se intuitivo o conjunto de valores de uma
função para diferentes argumentos. Assim a representação gráfica da função y = x2 - 4x é uma
parábola, onde "y" indica o valor da função e o valor numérico da ordenada, e "x" indica o
argumento e o valor numérico da abcissa. Se compararmos esta representação gráfica com a
da função x (x - 4) verificamos que ambas tomam o mesmo valor para o mesmo argumento.
Pode-se portanto concluir que "a função x (x - 4) tem o mesmo percurso de valores que a
função x2 - 4x"15. E ao escrever
x2 - 4x = (x - 4)
não estamos a identificar uma função com a outra, mas apenas identificamos os seus valores
de verdade (objectos). Obtemos uma igualdade entre percursos de valores (Wertverläufe).
Para atribuir uma designação abreviada ao percurso de valores de uma função, Frege utiliza
vogais gregas, antepondo a mesma letra grega com um espírito fraco. (2 - 4) designa
portanto o percurso de valores da função x2 - 4x, e ' ( - 4) designa o percurso de valores
da função x (x - 4). Pode-se portanto exprimir a igualdade de percurso de valores destas duas
funções do seguinte modo:
' (2 - 4) = ' ( - 4)
Enquanto a expressão x2 - 4x = x (x - 4) representa o mesmo sentido, mas de uma
forma generalizada, a expressão introduzida designa propriamente uma identidade, pois de um
e outro lado do sinal = estão nomes de objecto, os percursos de valores. Têm uma referência
completa de uma função, portanto uma expressão de referência incompleta. Rigorosamente, e
de acordo com o pensamento de Frege sobre a identidade entre conceitos e funções, esta
expressão não significaria uma identidade.
1 5 FB, Kleine Schriften, p. 129.
Os percursos de valores (Wertverläufe) são portanto objectos, entidades saturadas,
realmente os únicos objectos que se encontram no domínio da lógica pura, além dos valores
de verdade; a afirmação é portanto de grande importância para a afirmação de que os números
são objectos e de que a aritmética é lógica16.
Frege faz uma aproximação imediata, intuitiva do Wertverlauf da função com a
extensão do conceito. O sinal "f()"17 pode designar uma entidade conhecida, familiar, um
objecto ou um conjunto de objectos. É a designação da extensão de um conceito. Expresso de
um modo mais formal: () pode ser considerado como "an entity determined by the
equivalence-relation which applies between propositional functions when they yield the same
truth-value for the same argument"18.
Nos Gg, Frege faz explicitamente a aproximação da extensão do conceito e do
percurso de valores da função: dizer que "a função (2 = 4) = (32 = 12) tem sempre o mesmo
valor para o mesmo argumento" é o mesmo que dizer "o conceito tem a mesma extensão
que o conceito 'algo cujo quadrado triplicado é 12'". "Com estas funções cujo valor é um valor
de verdade podemos dizer, em vez de percurso de valores, extensão do conceito; e é
apropriado chamar directamente conceito a uma função cujo valor é sempre um valor de
verdade"1599.
Assim como o conceito não se identifica com a sua extensão, tão pouco a função se
identifica com o seu Wertverlauf; conceito e função são insaturados, enquanto as extensões e
os percursos de valor são "entidades" completas, são objectos. Mas nem a extensão do
conceito se pode determinar como o conjunto dos objectos que pertencem a essa classe, nem
um percurso de valores se pode considerar como uma classe de pares ordenados resultante da
aplicação da função20. A razão é ainda a mesma, a função requer ser completada, em si mesma
está aberta ou insaturada, não é um objecto selbstandiger como o é uma classe.
O que Frege quer sublinhar é a peculiaridade da função e também a sua prioridade
lógica em relação ao Wertverlauf: à noção de percurso de valores só se pode chegar via
1 6 Cfr. ANGELELLI, ob.cit., p. 206.1 7 Sinal introduzido em FB, Kleine Schriften, p. 131 para exprimir o percurso de valores de uma função
ainda indefinida.1 8 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 207.159 9 Gg I, § 3.2 0 Cfr. DUMMETT, The Interpretation..., p.173: "A function is a mapping: to arrive at the general notion
of a function, one who is more familiar with the notion of a class, taken as primitive, may find it helpful to think of a class or ordered pairs, provided that he bears in mind that a function requires completion and is not a selbstandiger object like a class".
função. Tal como, para o caso do conceito, só via conceito se chega à sua extensão. Só
podemos pensar no percurso de valores de uma função como sendo a sua própria extensão.
A interpretação usual segue esta perspectiva que, considerando o percurso de valores
como objectos, os considera radicalmente distintos da próprias funções. Alguns autores, no
entanto, exploram a relação função/percurso de valores, em termos de sentido/referência,
seguindo essa pista traçada por Frege em alguns textos dos Grl e numa sugestão do § 10 dos
Gg. Neste último texto, depois de introduzir a notação para o percurso de valores, Frege
afirma o seguinte21:
"Embora tenhamos estabelecido que a combinação dos sinais
" () = (a)"
" a (a) (a)",
isto não fixa completamente a referência de um nome como " ()"".
Esta afirmação estabelece que os nomes de um percurso de valores e da sua respectiva
função exprimem dois sentidos de uma mesma referência, o que levou alguns autores a
considerar os percursos de valores como o "aspecto objectivo" da função.
"Os seus percursos de valores escreve BARTLETT22 não são senão uma
objectivação das funções, não objectivas em si; todas estas objectivações das funções são
equivalentes entre si as diferenças entre as notações não correspondem a nenhuma diferença
nas coisas. O percurso de valores de uma função é só a função interpretada como objecto".
Contra esta perspectiva há que referir de novo a insistência de Frege em distinguir e
separar com todo o rigor os objectos das funções. "Os objectos opõem-se às funções"23.
Admitir expressões em que essa distinção parece anulada pela conversão de um conceito ou
função em objecto, como por exemplo "função como objecto", ou "o aspecto objectivo da
função", seria incorrer no ponto de vista de Kerry, criticado por Frege em "Über Begriff und
Gegenstand", por não salvaguardar uma diferença absoluta entre o conceito e o objecto.
Assim se rejeita definitivamente a formulação da relação conceito/classe ou
função/percurso de valores como uma relação semântica, significativa ou representativa. A
função de um termo conceptual não é, para Frege a de representar um ou vários objectos. Esta
relação entre o conceito e a sua extensão é uma relação lógica, determinada pelas notas
2 1 Gg I, § 10.2 2 BARTLETT, Funktion und Gegenstand. Eine Untersuchung in der Logik von Gottlob Frege. Munich,
1961, p. 58, cit. por THIEL, C., ob. cit., p.77.2 3 Gg I, § 2.
(Marks) que constituem propriamente o conceito, e mediante as quais o conceito "marca"
porque discrimina, isola, detém um ou mais objectos que sob ele caem.
O termo conceptual, expressão do conceito, tem uma referência, mas esta não é a
extensão do conceito, ou os objectos que lhe pertencem. Um conceito pode ser vazio e não
deixa de ser um conceito e de te validade lógica. A referência do termo conceptual é pois o
próprio conceito.
Apesar de rejeitada a formulação de considerar as classes em termos de sentido e
referência, ou como "aspectos" da pluralidade, Frege mantém explicitamente que as classes
são objectos lógicos (logische Gegenstände) o que significa que são entidades abstractas, não
concretas. A classe dos bípedes sem penas e a classe das células humanas, apesar de serem
fundamentalmente a mesma pluralidade, são duas classes diferentes. Duas classes projectadas
no mundo das abstracções. Poderia dizer-se. com a mesma justificação que a Estrela da
manhã e a Estrela da Tarde são duas estrelas abstractas, invisíveis aos olhos humanos ou aos
telescópios24. Já sabemos que o principal motivo para esta projecção das classes no "mundo
das ideias" foi a de atribuir um estatuto à classe vazia.
Outra razão igualmente fundamental foi, sem dúvida a identificação dos números com
classes. Se as classes (de conceitos ou de pedras) não são interpretadas como um objecto
abstracto, a definição fregeana de número, transformá-lo-ia, como classes de classes, não
seriam suficientemente independentes do mundo concreto25.
A "objectivação" das extensões do conceito, ou classes levou à célebre antinomia de
Russel: a "classe que não pertence a si própria" tem por extensão a "classe de todas as classes
que não pertencem a si próprias" – Classe C; esta classe C pertence ou não a si própria? Frege
reproduz no seu Apêndice ao II volume dos Gg a objecção de Russell, e o seu resultado
paradoxal. Supondo que pertence a si própria: se alguma coisa pertence a uma classe, cai sob
o conceito da qual essa classe é extensão; assim se a classe C pertence a si própria, então é
uma classe que não pertence a si própria, o que é contraditório. Supondo que a classe C não
pertence a si própria, então cai sob o conceito cuja extensão ela própria é, e portanto pertence
a si própria, o que é de novo uma contradição. A antinomia de Russell levaria Frege a uma
revisão de toda a sua teoria da extensão dos conceitos. Embora não veja alternativa à 2 4 Cfr. ANGELELLI, OB. CIT., P. 215.2 5 Cfr. SMART, "Frege's Logic"; KLEMKE, ob. cit., p. 453: "The definition of the number of a given
collection (extension of a given concept) as the classe of all collections that are similar (stand in a one-one relation) to it; or, more precisely, the number of terms in a given class is defined as the equivalent of the 'class of all classes that are similar to a given class'. Thus two is the 'class of all couples', three 'the class of all triads', and so forth".
consideração das extensões dos conceitos ou classes, como objectos no pleno sentido da
palavra, reconhece que a expressão "extensão do conceito" necessita de uma nova
justificação.
A resposta que o próprio Russell dá ao paradoxo, nos seus Principia, com a teoria dos
tipos, pode considerar-se muito semelhante à teoria dos níveis que Frege elaborara já
anteriormente. Por isso, seguindo Quine26, parece que se Frege tivesse apresentado como
resposta a Russell uma ordenação das classes segundo os níveis correspondente aos que tinha
formulado para os conceitos, esta solução seria idêntica à do próprio Russell.
Há assim uma espécie de duplicidade no pensamento fregeano sobre o conceito: por
um lado a perspectiva predominantemente extensional com toda a sua filosofia da classe que
tem origem nos Grl e que obedece ao projecto fundamental de Frege, de integrar a matemática
na lógica. Para este projecto logicista, era indispensável a concepção do número como algo
que pertence ao conceito, e o recurso à extensão do conceito para a definição do número
constitui a base lógico-filosófica para a posterior sistematização formal, levada a cabo nos Gg.
Por outro lado, e como que em paralelo com o desenvolvimento da sua lógica
matemática, Frege deixa em vários escritos (alguns de datas próximas à publicação dos Gg,
outros posteriores27), claros indícios da sua concepção intensionalista do conceito, que
constitui uma das características próprias do seu pensamento lógico-filosófico. Como
conciliar os textos que apoiam uma e outra visão da teoria do conceito, e como interpretar a
atitude de Frege perante as objecções de Russell? (Atitude de profunda consternação, como 2 6 Cfr. QUINE, "On Frege's Way Out"; KLEMKE, ob. cit., pp. 485-501. Na terminologia de QUINE,
atributo significa o que FREGE designa geralmente por conceito, a classe corresponde à extensão do conceito (atributo). Nos Principia de WHITEHEAD e RUSSELL, afirma Quine, há distinção entre atributos e classes: encontram-se variáveis para atributos , e também para classes. Formalmente, a única diferença entre atributos e classes, nos Principia é que a lei de extensionalidade
(x) (x ) . é válida para as classes, enquanto que a correspondente lei
(x) ( x x) . não é válida para os atributos. Assim, nos Principia a lei da extensionalidade é demonstrável para as classes, sem ser adoptada para os atributos.A distinção na notação para atributos e classes é uma das características também da teoria de Frege. Mas para Frege os atributos dependem em larga medida das classes.O paradoxo de Russell para as classes tem um análogo directo para os atributos, e portanto a sua teoria dos tipos teria que servir tanto para as classes como para os atributos. Porque é então que Frege deixou intacto o seu universo de atributos e se preocupou apenas com o das classes? Não se pode também traduzir o paradoxo de Russell na teoria fregeana dos atributos, sem utilizar para nada as classes? A resposta de Quine é: "We can not. The reason is that Frege had, even before the discovery of Russell's paradox, the theory of levels of attributes hinted at above; an antecipation, to some degree, of the theory of types. If in response to Russell's paradox Frege had elected to regiment his classes in levels corresponding to those of his attributes, his overall solution would have borne considerable resemblance to that in Principia". Ibid., p. 489.
2 7 Os Gg I foram publicados em 1893; KB, em 1895; Gg II, em 1903; o escrito "Ausführungen über Sinn und Bedeutung", publicado postumamente, foi provavelmente escrito em 1895.
Frege o exprime no princípio do Apêndice II: "Não há nada de mais desagradável que possa
acontecer a um escritor do que, depois do seu trabalho terminado, verificar que uma das
pedras basilares do seu edifício foi demovida"28).
Uma primeira hipótese seria a de considerar que a antinomia de Russell atinge apenas
o projecto de formalização logicista dos Gg; é este o "edifício" que Frege vê ruir perante as
objecções russellianas. A sua resposta teria que ser reformular a noção de "extensão do
conceito" de forma a permitir uma inequívoca notação. É o que Frege esboça na própria
resposta ao paradoxo, no Apêndice ao II volume. Isto implicaria que não há uma perfeita
correspondência entre as teses logicistas e as teses filosófico-epistemológicas de Frege.
Uma segunda hipótese seria a de considerar que Frege, no que diz respeito aos
conceitos (como atributos, não extensionalmente considerados), não os considera atingidos
pelo paradoxo de Russell, pois a sua teoria dos níveis da predicação era de certa forma
(seguindo a opinião de Quine), um análogo da futura "solução" apresentada por Russell com a
sua teoria dos tipos. Por considerar as classes como objectos, todas ao mesmo nível que os
indivíduos, a teoria fregeana dos níveis não fora aplicada no domínio das classes.
De qualquer forma, se existe duplicidade no pensamento fregeano do conceito, essa
duplicidade não é senão a expressão de dois "pontos de vista" lógicos que se podem
complementar numa mesma lógica e numa mesma perspectiva ontológica. Assim o exprime
Quine29: "As ontologias intensionais e extensionais são como o óleo e a água. Ao admitirmos
atributos e proposições juntamente com o emprego livre de quantificadores e outras
expressões básicas excluímos os indivíduos e as classes. Ambas as espécies de entidades
podem ser acomodadas na mesma lógica apenas com o uso de restrições, como as de Church,
que servem para impedir que se misturem e isto é quase uma questão de duas lógicas
separadas com um universo para cada".
2 8 Gg II, Appendix II, p. 127.2 9 QUINE, From a logical point of view p. 157 cit. por KNEALE, o Desenvolvimento da Lógica, p. 624.
A obra de CHURCH a que QUINE se refere é "A Formulation of the Logic of Sense and Denotation" incluída em Structure Method and Meaning: Essays in honour of Henry M. Sheffer, 1951.O desenvolvimento desta questão em pormenor seria de grande interesse, mas ultrapassa as dimensões deste trabalho, sobre as perspectivas actuais das "ontologias" baseadas em linguagens extensionais e intensionais cfr. KÜNG, Guido, Ontology and the Logistic Analysis of Language, D. Reidel Publishing Company, Dordrecht-Holland, 1967.
II – SEMÂNTICA DO CONCEITO
II – SEMÂNTICA DO CONCEITO
Um dos princípios fulcrais do pensamento fregeano, e aquele pelo qual se tornou
mais conhecido no mundo filosófico, é a sua distinção entre sentido e referência. Sinn e
Bedeutung surgem na obra de Frege como duas noções semânticas, basilares na sua teoria
da significação. A distinção tem sido muitas vezes interpretada como uma nova versão do
par intensão-extensão160, ou, em termos tradicionais, compreensão-extensão de um
conceito. No entanto, nos textos de Frege referentes à lógica do conceito, pode-se detectar
a sua enorme preocupação por evitar esta dicotomia radicalizante, ou mesmo reducionista:
é um exemplo desta preocupação a sua luta intelectual por evitar que a noção de classe se
sobreponha à do conceito, ou acabe por absorvê-la, defendendo a peculiaridade da
"realidade" conceptual, não só independente, como determinante da própria extensão,
enquanto conjunto de objectos que o respectivo conceito subsume. E, além desta defesa
para resguardar o "próprio" do conceito, é patente também a preocupação por evitar quer
uma hipostasiação de "entidades mentais", numa nova versão platonizante, quer o recurso a
uma subjectividade transcendental, que adia, mas não resolve os impasses de um
idealismo, construído na base da noção de representação (Vorstellung), ou de um
mentalismo psicologista.
Esta tensão detectada na filosofia do conceito de Frege, entre intensionalismo e
extensionalismo, deve-se precisamente à exigência de extrema lucidez manifesta em todos
os seus escritos lógicos e filosóficos. Não seria portanto de esperar que, na elucidação
destas duas noções semânticas, nos apresentasse uma simples transposição de divisões ou
dicotomias traçadas a outros níveis, ou que, levado cegamente pelo seu princípio básico da
distinção entre conceito e objecto, Frege o quisesse traduzir no plano semântico, com um
isomorfismo rigoroso, próprio de pensadores sistemáticos ou sistematizantes. Que as duas
distinções (conceito/objecto, sentido/referência) não coincidem, na medida em que não
apresentam esse carácter isomórfico, nos planos lógico e semântico, é uma comprovação
demasiado óbvia para que o próprio Frege a tivesse passado por alto. Por isso, mais do que
detectar essas aparentes inconsistências entre o plano lógico e o semântico, propõe-se este
trabalho uma investigação compreensiva das noções cuidadosamente buriladas por Frege, 160 Cfr. CARNAP, Meaning and Necessity, Chicago, 1956. Cfr. também KÜNG, Otto, Ontology and
the logistic analysis of language, Dordrecht, D. Reidel, 1967, p. 95, nota 25: "Carnap, on the other hand, intends to use only one kind of sign, a particular sign having at the same time a definite extension and a definite intension. That is, he defines relations of extensional and of intensional equivalence of signs by referring to what the signs designate. Thus is is not only extensions but intensions that are designated".
destacando um aspecto fundamental na sua semântica: o de que a distinção entre Sinn e
Bedeutung é sobretudo um reflexo ou uma aplicação do carácter funcional do conceito no
plano linguístico. É a noção do conceito como função que está em jogo no processo
semântico de compreensão, ou seja a apreensão de um conceito, é talvez o único meio que
manifesta, mostra, fenomeniza a captação de um conceito. Compreender uma expressão é
captar o seu sentido e dar conta do que é captado por alguém que compreende é dar uma
explicação do significado. Frege, como foi dito na I parte, preocupa-se essencialmente pela
lógica, não perceptível pelos sentidos. Não são a linguagem nem a semântica que
constituem os seus objectivos centrais. No entanto, para aceder ao domínio do conceito, do
pensamento, dos sentidos, a única via é a da linguagem. Apesar dos inconvenientes, da
inépcia da própria linguagem corrente para exprimir o pensamento, Frege reconhece que
não há outra possibilidade, se se quer dar uma explicação filosófica do acto de conceber e
de pensar: "Tenho de me satisfazer com apresentar ao leitor o pensamento, que não é em si
mesmo um objecto dos sentidos, contido nas suas formas linguísticas que o tornam
perceptível. A natureza figurativa da linguagem dá origem a dificuldades. O que pertence
aos sentidos sempre se intromete e torna a expressão impropriamente figurativa. Daí nasce
um conflito com a linguagem e vejo-me obrigado a tratar uma vez mais da linguagem,
ainda que não seja o meu principal objectivo"161.
A filosofia da linguagem, a semântica fregeana, assume portanto claramente o
papel de um ramo da lógica ou da filosofia do pensamento: um ramo de carácter
instrumental (um organon), mas incontornável, pois só conhecemos o pensamento através
da sua expressão em proposições. Ainda que Frege tenha defendido sempre o carácter de
anterioridade, de autonomia do pensamento em relação à sua mesma expressão, na
linguagem, nunca propôs outra via de acesso a esse pensamento que não fosse através da
própria linguagem. Por isso Dummett162 não duvida em considerá-lo como um filósofo da
linguagem, considerada esta como epifenómeno por antonomásia do reino do pensamento
Frege.
A argumentação seguida por Frege para provar a necessidade da distinção entre
sentido e referência, será portanto considerada essencialmente como "aplicação" semântica
do carácter funcional do conceito. No modelo da relação nome-portador a distinção é
óbvia, entre os vários "modos de dar-se de um objecto", e a coisa à qual esses vários modos
161 G, Kleine Schriften, Logische Untersuchungen, p. 350, nota 4: Frege reconhece uma certa dependência da linguagem para termos acesso ao pensamento, mas no entanto adverte que não é da linguagem propriamente que pretende tratar, mas sim do pensamento nela expresso.
162 Cfr. DUMMETT, The Interpretation..., pp. 36-56.
se referem. Mas não se trata de uma distinção tão trivial como poderia parecer, pois a
questão vem repor toda a problemática respeitante à distinção entre conceito e objecto: o
conceito parece identificar-se aqui com sentido ("o modo de dar-se do objecto" pode
considerar-se como uma das suas propriedades ou atributos, ou um dos conceitos sob o
qual cai o objecto). Essa identificação, no entanto parece inconsistente com as reiteradas
afirmações de Frege de que o conceito é o referente de um predicado gramatical. Referente
ou sentido?
A referência de um nome é o objecto designado: mas o que é que designa o nome
senão o objecto segundo um determinado aspecto, uma aspectualidade, um determinado
sentido, não esgotando nunca essa potencialidade de sentido que possui qualquer objecto?
Nunca se poderá esgotar a dizidibilidade sobre cada objecto, mas sim multiplicar
infinitamente os sentidos segundo os quais o conhecemos e o designamos. A noção de
referência surge assim como algo de problemático: um ponto imaginário, para o qual
convergem todos os sentidos? Um algo subjacente a todas as propriedades, e a todas as
incidências e ocorrências que de ele se possam dizer? Uma noção tão problemática como a
ousía aristotélica, ou o indivíduo para B. Russell163.
A noção de objecto sem propriedades, sem atributos é impensável: se é essa a
referência de um nome próprio, não será mais do que "um feixe de sentidos"?
A objectividade164 dos sentidos, pela qual Frege tanto batalhou, garante de qualquer
modo o carácter fundamental de "entidades" uma data de questões a resolver por uma
possível ontologia.
O mesmo modelo da relação semântica nome-portador, é aplicado por Frege às
frases que são expressão de um pensamento e têm por referência um valor de verdade. A
tentativa de Frege de transpor a distinção sentido-referência, do plano dos nomes próprios
para o das frases significa que Frege considera qualquer expressão completa como um
nome próprio também. Expressões que, tendo por sentido um pensamento, não se
satisfazem com esse sentido, mas levam-nos a perguntar pela sua referência. O pensamento 163 Cfr. KÜNG, Otto, ob. cit., p. 67: "It is not, as one would expect, the universals but rather the
individual substances that give him trouble". Russell considera as coisas como "bundles of qualities" (My Philosophical development, London – New York, 1959, p. 161, cit. por Küng, O., ob. cit., p. 67); ou, segundo outra expressão ("a coisa"), é como "an invisible peg from which properties would hang like hams from the beams or a farm house".
164 Objectivo é utilizado por Frege em dois sentidos: 1º) objectivo é aquilo que pode ser alcançado por todas as mentes que pensam; por exemplo o conceito "não ser idêntico a si mesmo". 2º) objectivo é o que existe independentemente de nós; neste sentido poderia ser controverso se o conceito "não ser idêntico a si mesmo" é objectivo, embora haja consenso para afirmar que a Lua é objectivo. Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 66; cfr. também SB, Kleine Schriften, p. 148, nota e Gg I, p. XVII, onde predomina o sentido de ser independente de nós. O pensamento (Der Gedanke) é definido em termos de objectividade, como algo que me é prévio; cfr. G, Logische Untersuchungen, p. 354.
não nos satisfaz, porque pretendemos saber o seu valor de verdade165. Um juízo é
considerado como uma "trajectória de um pensamento para o seu valor de verdade"166.
A questão de fundo volta a renascer também a este nível. Na semântica das frases
de Frege pode-se reconhecer os traços peculiares de um certo monismo filosófico167. Os
juízos são distinções de partes dentro dos valores de verdade168. A cada sentido, que
consiste num "movimento do pensamento", uma maneira particular de análise, corresponde
um valor de verdade, ou uma parte do Verdadeiro, como todo. A referência é de novo esse
todo (o verdadeiro ou o falso), constituído por partes inesgotáveis, um vértice regulador,
para o qual convergem todas as trajectórias do pensamento. Um todo (que é também um
objecto) que se esconde ou se patenteia (se vela ou se des-vela), em cada uma das suas
partes? Que é constituído ou constitui cada uma dessas partes169?
De novo a noção de ob-jecto, como algo que se apresenta diante da mente, se lhe dá
e se lhe opõe como um todo, completo e fechado em si mesmo, nos aparece como mais
obscura e problemática do que a noção de conceito ou do próprio pensamento. É a
referência que se torna mais distante e inacessível à compreensão, que se dá menos a uma
apreensão intelectual170.
O modelo semântico da distinção sentido-referência é aplicado ainda às expressões
incompletas, insaturadas: expressões relacionais ou expressões de funções e predicados.
Frege não o faz no ensaio SB, onde expressamente declara a tese de que o conceito é a
referência de um predicado gramatical. A atribuição de referência aos predicados e
expressões relacionais é dos pontos que, para muitos dos intérpretes e comentadores de
Frege se apresenta como sendo dos mais controversos171. Por um lado considerar que o
conceito (não a classe ou a extensão) é uma referência, parece ser uma tese inconsistente
com o tratamento extensionalista que Frege faz do conceito na sua lógica simbólica; mas
165 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 149.166 Ibid., p. 150.167 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 60.168 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 150169 Sobre a noção de todo (HÓLON) cfr. ARISTÓTELES, Metafísica, , 26, 1023 b 25 - 1024 a 10.170 Note-se que Frege fala com frequência de apreender, captar um sentido ou um pensamento, na
acepção de agarrar, com as garras do entendimento que são justamente os Gefügen, a que se refere no seu escrito "Gedankengefüge"(Ggf); cfr. por ex. G, Logische Untersuchungen, p. 359, nota 6; o que não agarramos com o entendimento, são justamente os objectos, os indivíduos, o verdadeiro ou o falso na sua totalidade, a substância, etc..
171 Cfr. BLACK, Max, "Frege on functions" e MARSHALL, William, "Frege's Theory of functions and objects", KLEMKE, ob. cit., pp. 223 e 249.
por outro lado essa é uma das prerrogativas mais peculiares do "realismo" fregeano,
mantida e reiterada até aos últimos escritos, postumamente publicados172.
O conceito constitui sem dúvida um elemento central de toda a obra de Frege, uma
das pedras basilares de toda a sua estrutura, como afirma nos Gg173. Um elemento algo
misterioso, sem dúvida, que ora aparece no "reino dos sentidos", ora no "reino das
referências", servindo por um lado de eixo central da rotação semântica do sentido à volta
da referência (que é sempre, do ponto de vista lógico a saturação de um predicado ou
função pela aplicação a um objecto (sujeito) ou argumento), mas, por outro lado, dando
lugar, pela sua inclusão no domínio da referência, a uma série de ambiguidades que fazem
do par sentido-referência um binómio não totalmente transparente, mas talvez por isso
mesmo rico em perspectivas e suficientemente maleável para penetrar as subtilezas das
relações entre coisas, linguagem e pensamento.
Segundo Dummett a dificuldade principal de uma aplicação unívoca de sentido-
referência a todos os tipos de expressões (nomes próprios ou frases completas e
predicados, expressões funcionais e relacionais), vem do facto de, em relação aos nomes,
Frege se ver na necessidade de defender sobretudo a tese de que estes têm um sentido,
enquanto em relação aos predicados a questão residir sobretudo na necessidade de provar
que estes têm uma referência174. Talvez a dificuldade não resida tanto nesta dicotomia, mas
sim na elucidação de ambas as noções semânticas para uma aplicação ajustada a cada um
dos níveis linguísticos.
172 DUMMETT, "Note: Frege on functions", KLEMKE, ob.cit., p. 295, cita um escrito de Frege de 1906, onde se pode ler: "It is all together improbable that a proper name should be so different from the remaining part of a singular sentence that it should be important for it alone to have a Bedeutung... It is unthinkable that there could be a Bedeutung only in the case of proper names, and not in the remaining part of the sentence".
173 Gg I, § 0, p.4.174 Cfr. DUMMETT, "Frege on functions: a reply", KLEMKE, ob. cit., p. 270: "In 'Über Sinn und
Bedeutung' Frege argues (as against Mill and Russell) that proper names must be conceded to have a sense; of course, it needs no argument that they also sometimes have Bedeutung, in Frege's use of this term. Conversely, no one has ever doubted that such expressions as predicates have Sinn: but a justification is required for asserting them to have Bedeutung".
II.1 A NOÇÃO DE SENTIDO
1.1 A distinção entre Sinn e Bedeutung na obra de Frege
Se bem que seja no ensaio intitulado "Über Sinn und Bedeutung"175 que Frege
desenvolve explicitamente a distinção, encontram-se na obra anterior de Frege inúmeros
prenúncios desta teoria.
Na Bs, Frege refere-se muitas vezes aos sinais e seus designata: é do conteúdo
(Inhalt) que se ocupará a Bs. Este conteúdo pode ser expresso de vários modos: "As duas
proposições 'Os Gregos derrotaram os Persas em Plateia' e 'Os Persas foram derrotados
pelos Gregos em Plateia' têm o mesmo conteúdo, embora seja expresso com uma ligeira
diferença de sentido"176.
No § 8 Frege introduz a noção de identidade como sendo uma relação entre sinais,
que exprime a circunstância de dois nomes terem o mesmo conteúdo: "A identidade de
conteúdo difere da condicionalidade e da negação na medida em que se aplica aos nomes e
não aos conteúdos"177. Se, no entanto, os nomes são voces significativae ad placitum178,
parece que a asserção de uma identidade não tem relevância para o conteúdo, uma vez que
é arbitrário designar uma coisa com um ou outro nome. Tendo em conta esta objecção,
Frege considera desnecessário introduzir um símbolo para a igualdade de conteúdo,
símbolo esse que necessariamente introduziria uma bifurcação no significado de todos os
símbolos, que tanto estarão em vez do seu conteúdo, como em vez de si mesmos179.
No entanto, para esclarecer esta aparente ineficácia do sinal de igualdade, Frege
apresenta o seguinte exemplo: considere-se um círculo onde existe um ponto determinado
A, à volta do qual se faz rodar um raio. Quando este forma um diâmetro, chamamos ao
ponto oposto a A o ponto B associado à posição do raio em cada caso que se produz, a
partir da regra de que a variações contínuas da posição do raio, devem corresponder
175 "Über Sinn und Bedeutung", publicado em Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, vol. 100 (1892) (SB).Sobre a distinção Sentido/Referência cfr CARL, Wolfgang, Frege's Theory of Sense and Reference, Cambridge, 1994.
176 Bs § 3, p. 17.177 Bs § 8, p. 20.178 ARISTÓTELES, De Interpretatione, 16 a 18-20: "O nome (ÓNOMA) é um som vocal que possui
uma significação convencional, sem referência ao tempo, e cujas partes separadamente não têm nenhuma significação".
179 Cfr. Bs § 8, pp. 20-21.
sempre variações contínuas da posição B. Portanto o nome B significa algo de
indeterminado, enquanto não se especificar a posição associada do raio. Qual o ponto
correspondente à posição da linha recta que é perpendicular ao diâmetro? O ponto A. Um
mesmo ponto pode ser determinado de dois modos: 1) imediatamente através da intuição,
ou 2) como um ponto B associado com o raio perpendicular ao diâmetro. A cada um destes
modos de determinar o ponto, corresponde um nome particular180.
Com este exemplo Frege mostra que a mesma entidade pode ser determinada de
vários modos, motivo suficiente para que haja mais do que um nome para o mesmo
objecto. Cada nome traduz diferentes modos de determinar o objecto em questão. Se não
houvesse esta variedade de determinações (Bestimmungsweisen) na coisa, então a
variedade de nomes seria puramente arbitrária e irrelevante para o conteúdo (Inhalt).
Assim, a necessidade de um símbolo "" para a igualdade de conteúdo fundamenta-se no
seguinte: o mesmo conteúdo pode ser determinado plenamente de diferentes modos, aos
quais correspondem diferentes nomes que designam "a coisa", mas cada um exprimindo
um aspecto particular diferente.
"A existência de diferentes nomes para o mesmo conteúdo nem sempre é uma
questão formal, meramente irrelevante; antes pelo contrário é uma questão fulcral, se cada
um desses nomes corresponde a um modo de determinar o conteúdo. Neste caso um juízo
cujo objecto é afirmar a identidade de conteúdo, será sintético, no sentido kantiano"181.
Como se torna patente, esta formulação assemelha-se à teoria do sentido e
referência do célebre ensaio de 1892: falta apenas a conhecida terminologia fregeana de
Sinn e Bedeutung182. O próprio exemplo aproxima-se também de um dos exemplos de SB,
o da intersecção das medianas de um triângulo, cujo ponto se pode designar tanto como "o
ponto de intersecção entre A e B", como "o ponto de intersecção entre B e C", ou ainda, "o
ponto de intersecção entre A e C"183.
A ideia condutora é a de que um objecto pode "dar-se" de vários modos, sob vários
aspectos, apresentar uma variedade de propriedades ou atributos, cair sob vários conceitos.
Uma proposição que exprima dois modos diversos de dar-se um mesmo objecto, é pois
uma expressão de identidade, e no entanto é também "sintética no sentido kantiano",
180 Cfr. ibid., p. 21.181 Ibid., § 8.182 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 40. Nestes preliminares da distinção entre sentido e referência,
Angelelli sugere a estreita associação entre conceito e sentido: o ponto A pode ser determinado por intuição directa, mas também "descrevendo-o" como pertencente ao conceito B (B é a propriedade, ou o conceito "ser uma intersecção do círculo e de um raio à volta de A").
183 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 144.
portanto relevante quanto à informação cognitiva que contém. O § 67 dos Grl desenvolve
esta mesma ideia: a propósito da definição de direcção, Frege afirma: "A definição de um
objecto, enquanto tal, não diz nada desse objecto, mas põe o sentido de um sinal. Assim,
ela constitui um juízo que trata do objecto, mas não podemos dizer que ela introduz o
objecto; a definição está no mesmo plano que todos os outros enunciados que dizem
respeito ao objecto. Se atribuíssemos à definição o privilégio de introduzir o objecto, isso
implicaria que o objecto só pudesse ser dado de um único modo. (...) E todas as identidades
implicariam a admissão da identidade apenas daquilo que nos é dado de um único
modo"184.
O que Frege quer sublinhar é que não podemos considerar um nome de um objecto
(ou um modo de dar-se-nos desse objecto), como o seu único nome (o único modo de dar-
se). A possibilidade de reconhecer o mesmo objecto sob várias designações é justamente o
fundamento do valor cognitivo dos juízos de identidade. É de novo com a questão da
identidade que Frege abre este ensaio que o tornou conhecido: a identidade é uma relação
entre objectos ou entre nomes? Na Bs, Frege tinha defendido a segunda possibilidade, para
preservar o valor cognitivo das afirmações de identidade. Se fosse uma relação entre
coisas, cada objecto seria idêntico a si mesmo e nenhum objecto seria idêntico a nenhum
outro. O facto é que as proposições de identidade não são meramente triviais e contêm um
relevante aumento de conhecimento. Frege reformula a noção: a fórmula A = B,
interpretada segundo o uso da aritmética significa que os signos A e B têm a mesma
referência, ainda que diferentes sentidos. É a identidade a parte objecti que fundamenta a
equivalência dos sentidos e a possibilidade de substituir os sinais. Esta nova formulação
dos princípios traz uma precisão maior em relação à doutrina apresentada por Frege nos
Grl, onde sintetizou as propriedades da identidade na fórmula de Leibniz, apresentada
como definição: eadem sunt quorum unum alteri substitui potest salva veritate, na qual se
via a distinção entre a substituibilidade de objectos, de sentidos ou de sinais185.
Em "A = B" "A" apresenta um aspecto, um sentido diferente do aspecto ou sentido
apresentado por "B", referindo-se ou designando porém, ambos, o mesmo objecto. Portanto
o modelo semântico exprime-se agora através de uma relação triádica: o próprio sinal, o
184 Grl § 67.Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 41: "'to introduce an object' is used by Frege here to mean the same as 'to introduce a new name' (by definition). In definitions – as Frege says since Bs – one does not have a sentence about objects but a rule about signs".
185 Cfr. IMBERT, Claude, Introduction aux Écrits logiques et philosophiques, Paris, Seuil, 1975; Cfr. WIENPAHL, "Frege's Sinn und Bedeutung", KLEMKE, ob. cit., p. 203.
seu sentido e a sua referência. "A" e "B" são diferentes enquanto sinais186 e enquanto
sentidos, tendo por referência o mesmo objecto: "Um nome próprio (palavra, sinal,
combinação de sinais, expressão) exprime (ausdrückt) um sentido (Sinn) e refere-se a ou
denota (bedeutet, bezeichnet) uma referência (Bedeutung). Por meio de um sinal,
exprimimos o seu sentido e designamos a sua referência"187.
Esta diferenciação de sinais e de sentidos corresponde a uma multiplicidade de
modos de dar-se, de aspectos (aspectualidades) do próprio objecto. Para usar uma
expressão de Quine, estes diferentes sentidos ou modos de designar o objecto, não "estão
divorciados do objecto e casados com a palavra"188. A multiplicidade de sentidos é a
manifestação do carácter polifacetado do próprio objecto: o sentido é apresentado por
Frege como os lados (Seiten) do objecto189.
Portanto é evidente que a distinção não se fundamenta primeiramente na variedade
dos nomes, na polissemia, mas nas próprias coisas. Não são "modos de designar"
meramente arbitrários, como insiste Frege, não partem da iniciativa do sujeito semântico,
mas apresentam-se como "dados", "modos de dar-se" objectivos que se podem captar,
apreender. Os sentidos "não brotam na alma como os frutos na árvore"190, segundo uma
gráfica expressão de Frege aplicada aos conceitos, mas dão-se à apreensão.
1.2 Sentido e Representação (Vorstellung)
Para sublinhar este carácter objectivo do sentido, Frege distingue Sinn de
Beleuchtung e de Färbung (sombreados e colorido) que envolvem uma diferenciação de
tom na linguagem no plano das representações apenas. Frege traça clara e expressamente
uma fronteira inequívoca entre representação (Vorstellung) e sentido: a representação é
uma imagem interna, que surge do mundo das recordações e impressões sensíveis
experimentadas no passado, geralmente saturada de emoções, confusa e obscura por vezes.
Nem sequer num mesmo homem a mesma representação está associada ao mesmo sentido,
186 Frege prefere o termo Figur quando não se quer referir ao significado. Cfr. ANGELELLI, ob, cit., p. 79, nota 21.
187 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 144.188 A expressão é de QUINE, From a logical point of view, Cambridge, Harvard University Press, 1961,
p. 22: "... divorced from the object and wedded to the word".189 Esta ideia encontra-se com frequência em SB, FB e G.190 Esta expressão que Frege aplica aos conceitos, mas que tem pleno cabimento em relação aos sentidos,
aliás porque se pode, até certo ponto analogar sentidos e conceitos. Cfr. Grl, p. VII: "We suppose, it would seem, that concepts sprout in the individual mind like leaves on a tree...".
podem dar-se uma variedade de representações subjectivas associadas a um mesmo
sentido191. O exemplo apontado é o da variedade de representações que ao nome
"bucephalus" associarão um pintor, um cavaleiro e um zoólogo. Assim se vê claramente
como a representação difere essencialmente do sentido, que pode "ser a propriedade
comum de muitos, e portanto não é uma parte ou modo da mente individual". Esse "reino
dos sentidos" constitui, para Frege um autêntico "tesouro comum de pensamentos, que é
transmitido de uma geração para outra"192. Por isso um sentido pode ser apreendido por
vários indivíduos, comunicado, expresso; enquanto que o mundo das representações é
individual, incomunicável, inefável.
É o mundo de que vive a arte, o que a linguagem poética tenta exprimir com os
múltiplos recursos metafóricos, utilizando esses coloridos e sombreados (Färbung und
Beleuchtung) para sugerir, evocar no ouvinte, no leitor um desencadeamento de
associações, emoções, representações. Uma vez caracterizada a noção de representação
(Vorstellung) como "acidente individual inerente à mente individual", é compreensível que
não seja esse o tema que vai ocupar a mente lógica de Frege.
Há, no entanto, um texto mais tardio, fundamental para a distinção entre sentido e
representação: trata-se de "Der Gedanke"193, onde Frege retoma a caracterização do mundo
das representações, como um mundo interior, nitidamente distinto do "mundo externo".
Em primeiro lugar porque as representações não podem ser vistas, nem tocadas, nem
sentidas, nem ouvidas, não são objecto de percepção sensível. Pertencem, além disso ao
conteúdo da consciência, são algo que temos, como temos emoções, sentimentos, estados
de alma, desejos. As representações têm necessidade de ser representações de alguém,
alguém sentindo (a sentient being). O mundo interno pressupõe um indivíduo para quem
ele é esse mundo interno194. Portanto as representações, têm necessidade de um portador
(an owner na tradução inglesa, porteur na francesa, da palavra utilizada por Frege Träger).
Pelo contrário, as coisas do mundo externo são independentes. As impressões sensíveis são
individuais e intransmissíveis. Frege escreve sobre a subjectividade e incomunicabilidade
da representação humana uma página que contrasta vivamente com o seu estilo habitual:
"De qualquer modo, é impossível para nós, homens, comparar as representações de
outras pessoas com as nossas próprias. Pego num morango, seguro-o entre os dedos. O
outro pode ver o mesmo morango; mas cada um tem a sua própria representação. Mais 191 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 146.192 Ibid.193 "Der Gedanke" (G), foi publicado em Beiträge zur Philosophie des deutschen Idealismus (1), 1918-
1919, pp. 58-77.194 G, Logische Untersuchungen, p. 14.
ninguém tem a minha representação, embora muitas pessoas possam ver a mesma coisa.
Mais ninguém sente a minha dor. Pode alguém ter compaixão de mim, mas de qualquer
modo a minha dor pertence-me a mim e essa compaixão ao outro. Ele não sente a minha
dor, e eu não sinto o seu sentimento de compaixão"195.
Daí uma última caracterização da representação: cada uma tem o seu portador
(owner, Träger), dois homens não têm nunca a mesma representação. Neste texto, com a
caracterização da representação subjectiva, o que Frege pretende mostrar é que o
pensamento (der Gedanke) não é uma representação. O teorema de Pitágoras pode ser
apreendido, participado, comunicado por vários indivíduos, não pertence a um conteúdo de
uma consciência individual, não necessita de um portador. A sua verdade não depende da
consciência que o conhece, não depende da apreensão de um ou mais indivíduos. Com
efeito, se o pensamento tivesse necessidade de um portador do qual ele é o conteúdo de
consciência, diluir-se-ia toda a ciência como saber universal, do qual podem participar
todos os indivíduos: a ciência fragmentar-se-ia numa multiplicidade de saberes subjectivos,
individuais, dentro dos quais seria completamente ridículo bater-se pela verdade196. O que
garante a objectividade do pensamento é o facto, reiteradamente afirmado por Frege de que
não se trata de conteúdos da consciência197. Há conteúdos de consciência, como as
representações, impressões, desejos, etc., e as breves páginas de Frege neste ensaio são
como uma micro-fenomenologia de contornos nítidos, para salvaguardar algo que não se
encerra, pura e simplesmente no campo de consciência: o mundo do sentido (Sinn) e do
pensamento (Gedanke) não pertencem a esse conteúdo e Frege afirma-o fazendo desta sua
tese como que um depoimento anti-fenomenologista.
Não pertencendo ao mundo externo, das coisas, nem ao mundo interno, do
conteúdo de consciência, o pensamento deverá pertencer a um "terceiro reino" que tem
algo de comum com as ideias, o facto de que não pode ser apreendido pelos sentidos
(órgãos sensoriais), mas tem também algo em comum com as coisas, o facto de que não
necessita de um portador (Träger) para pertencer ao seu conteúdo de consciência198. Trata-
se, portanto, de uma verdade independente do tempo, independente do acto de ser
195 Ibid., p. 15.196 Cfr. ibid., p. 17.197 Pelo contrário, HUSSERL entende o sentido como conteúdo. Cfr. Ideas pertaining to a pure
phenomenology and to a phenomenological philosophy, Martinus Nijhof, The Hague/Boston/London, 1982, trad. F. Kersten, § 129: "Each noema has a content that is to say, its sense is related through it to 'its' object...As content we take the 'sense' of which we say that in or through it consciousness relates to something objective as 'its' something objective".
198 FREGE põe completamente de parte a hipótese de um sujeito transcendental. Cfr. G, Logische Untersuchungen, p. 21.
apreendida como verdade: tal como um planeta, mesmo antes de ser visto, está já em
interacção com os outros planetas. Daí a explicitação em nota de Frege: "Uma pessoa vê
uma coisa, tem uma ideia, apreende ou pensa um pensamento. Quando apreende ou pensa
um pensamento, não o cria mas apenas estabelece uma certa relação com algo que já
existia – uma relação diferente de ver uma coisa, ou ter uma ideia"199.
A metáfora escolhida por Frege é pois apreender, captar, apesar de lhe reconhecer
as limitações ou ambiguidades que a expressão traz consigo. Mas a linguagem não permite
mais200.
Da distinção entre sentido e representação é importante salientar que tanto a breve
passagem de SB, como as páginas de G têm como principal finalidade a demarcação do
subjectivo do objectivo, o contorno nítido, claro, inequívoco entre o mundo interno (inner
world), os conteúdos da consciência e o intencional (no sentido de Brentano, Husserl,
como consciência de algo, o objecto enquanto ob-jecto da consciência) de um mundo
externo, para além do mundo das coisas físicas, objectivo, independente das consciências,
existindo para além da sua captação temporalizada por parte de uma mente individual: a
esse mundo pertence o pensamento (Gedanke), pertence o sentido (Sinn) (note-se que em
SB Frege afirmará que os sentidos das frases são uma parte do pensamento).
Como escreve Dummett201, "the notion of sense was introduced as something
objective and common to all speakers of a language, in contrast to mere subjective
association that may differ from speaker to speaker. Hence the admission that different
senses may be attached to the same word by speakers of what would ordinarily be said to
be one language threatens the whole notion of sense".
A noção fregeana de sentido é determinante de uma teoria do significado em que o
reconhecimento da referência, o reconhecimento da verdade ou falsidade de uma frase
desempenha um papel fulcral no funcionamento da linguagem. Uma explicação da
significação não pode estar divorciada de uma certa explicação do conhecimento e do re-
conhecimento. Com efeito, apesar do valor atribuído ao re-conhecimento para entender
(captar) o significado de uma palavra ou frase, a teoria fregeana do significado não pode
considerar-se verificacionista202. A razão fundamental está no facto de que na sua
199 Ibid., p. 18, nota.200 Ibid., p. 24, nota; para ilustrar a ambiguidade da metáfora, Frege escreve em nota: "What I hold in
my hand can certainly be regarded as the content of my hand; but all the same it is the content of my hand in quite another and a more extraneous way than are the bones and muscles of which the hand consists or again the tensions these undergo". V. alemã.
201 DUMMETT, FPL, p. 584.202 Cfr. ibid., pp. 589 e 627.
concepção, Frege não faz depender o sentido das frases da decidibilidade como verdadeiras
ou falsas. Os positivistas, ao considerar que só podem ter sentido as frases sobre as quais se
puder decidir da sua verdade/falsidade, estão a formular uma teoria da significação ao
mesmo tempo realista e verificacionista. Frege, pelo contrário, admite como frases com
sentido também aquelas para as quais não há um método efectivo de decisão da sua
verdade; essas frases têm pois determinados valores de verdade, independentemente do
nosso conhecimento, os seus sentidos não podem ser explicados apenas em termos da
nossa capacidade para reconhecer os seus valores de verdade203.
De qualquer modo torna-se problemática a reconciliação destas duas facetas da
noção de sentido em Frege: algo de objectivo, independente, atemporal, e ao mesmo tempo
constituindo o valor propriamente cognitivo da linguagem. O sentido apreende-se, capta-se
(to grasp), como algo de pre-existente, autónomo, como um planeta, mas o sentido do
sentido é justamente esse captar por parte de uma mente. Captar e captado são um só? O
sentido é o acto de captar ou o captado? Pode-se considerar como sentido o planeta, em si
mesmo considerado, antes de ser conhecido ou apreendido? Que exista já, é outra questão,
mas existe já como sentido?
A consideração dos casos particulares do sentido dos nomes próprios e das frases
assertivas, que Frege passará a tratar depois desta distinção entre o "lado subjectivo", a
representação, e o "lado objectivo", o sentido, dará ocasião para explorar mais
detalhadamente as aporias do sentido.
1.3 Sentido dos nomes próprios
No ensaio SB, Frege define o sentido de um nome próprio como um modo de dar-
se do objecto, a expressão de uma das suas propriedades, atributos, de um dos conceitos
203 Cfr. ibid., p. 590: "Frege goes as little beyond this as it is impossible for a realist to go: he does not sever the connection between sense and knowledge, between sense and the recognition of truth; but he allows that it may consist in a grasp of ideal procedures for the determination of truth-value which we cannot in practice, or even in principle, carry out".
sob os quais cai esse objecto. Assim, "o discípulo de Platão", "o mestre de Alexandre
Magno" ou "Aristóteles" são nomes próprios que exprimem vários sentidos de um mesmo
referente.
A ideia de que uma entidade pode dar-se de muitos modos tem antecedentes
filosóficos remotos na filosofia ocidental. Aristóteles menciona na Física que um sujeito
pode ser "um numericamente", embora "dois na forma"204.
Brentano distingue três dimensões na semântica dos nomes: 1) um nome anuncia
que alguém o usa; 2) um nome significa (means) algo; 3) um nome refere um objecto205.
No entanto a atribuição de sentido ao nome próprio não é uma questão pacífica nem
irrelevante e não são poucas as suas implicações epistémicas e ontológicas. Frege não
dedicou explicitamente muitas páginas à semântica dos nomes próprios, mas a questão está
latente em muitos dos temas debatidos ao longo da sua obra. A caracterização da categoria
dos nomes próprios é absorvida pela elucidação da noção de objecto, um nome próprio é a
expressão (simples ou complexa, singular, precedida de um artigo definido) que designa ou
refere um objecto206. Se se tiver em linha de conta as dificuldades já apontadas na I parte
para a caracterização da noção de objecto, facilmente se transporá para a semântica dos
nomes próprios a insatisfação perante a explicação e os critérios de distinção entre objecto
e conceito, que Frege apresenta. O critério do artigo definido invocado não é aplicável a
muitas línguas onde falta o artigo definido, e mesmo naquelas em que o critério se aplica, é
inexacto. A convicção fundamental de Frege, no entanto, é a de que com o uso das
expressões que denominou de "nomes próprios" (termos singulares ou expressões
altamente complexas) estamos a apontar, designar objectos determinados, referidos pelo
termo ou expressão, do mesmo modo que um nome, em sentido estrito, refere o seu objecto
designado. O uso ontológico do termo objecto é pois correlativo, em Frege, do seu uso do
termo linguístico "nome próprio". Um nome próprio está sempre em vez de um objecto, é o
que refere um objecto; e um objecto é o referente de um nome próprio. A questão a
dilucidar será a de saber em que domínio – no linguístico, no lógico ou no ontológico – é
que devemos procurar o primeiro princípio de classificação. Frege considera que são
objectos os números, por exemplo, e consequentemente são nomes próprios os numerais.
Se a aplicação do termo "nome próprio" fosse determinada apenas pela intuição, torna-se
bastante problemático saber se é no domínio linguístico ou ontológico que se dá a intuição:
devemos considerar os números como objectos porque as expressões numéricas são nomes 204 Cfr. ARISTÓTELES, Física, 190 b 24; 201 a, 34 b, 3; 219 b, 18-22; 202 b, 12.205 Cfr. BRENTANO, Die Lehre vom richtigen Urteil, Francke Verlag, Bern, 1956, § 18.206 Cfr. Grl, §§ 51, 66 nota e 68 nota.
próprios, ou pelo contrário, estas são nomes próprios precisamente porque aqueles são
objectos207?
Geach208 opta sem hesitar por esta segunda alternativa: é por ter defendido a tese
filosófica de que os números são objectos que Frege considera que os termos numéricos
são nomes próprios. Segundo a perspectiva de Geach, primeiro apreende-se uma expressão
linguística que designa uma certa entidade, depois reconhece-se pelo carácter dessa
entidade a que categoria ontológica pertence, e finalmente, de acordo com essa
categorização, atribui-se a expressão linguística apropriada. Dummett discorda desta
interpretação: no pensamento de Frege, as categorias lógicas nas quais as coisas de que
falamos estão divididas reflectem as diferentes categorias da expressão que ocorrem na
linguagem; e esta última divisão, por sua vez depende dos diferentes modos como são
utilizados na linguagem. É essencial para Frege a tese de que cada expressão pode ser
reconhecida como pertencendo à sua categoria lógica ou tipo, através de um conhecimento
do modo de emprego na linguagem.
Na opinião de Geach esta aproximação linguística e lógica das questões de filosofia
não corresponde à atitude de Frege209.
Sem enveredar de momento pelas implicações ontológicas em causa nesta questão,
saliente-se apenas que de facto no pensamento de Frege não há confusão entre a "ordem do
conhecer" e a "ordem do real", ou entre o psicológico e epistémico e o puramente lógico e
ontológico. Sendo duas ordens heterogéneas, não se podem isomorfizar, nem assimilar
numa mesma explicação. A via para encontrar certas noções, ou para as introduzir pode ser
– e é frequentemente a que utiliza Frege – a linguística, que serve como instrumento de
avaliação das categorias lógicas e categorias do real. Mas o facto de esse ser um recurso
que se revela eficaz, não justifica que se considere a via como um fundamento.
Voltando pois à questão dos nomes próprios, interessa sublinhar que, para Frege o
que os distingue de outras expressões na linguagem é o facto de constituírem expressões
completas, capazes de dominar, de designar ou referir por si só um objecto determinado.
207 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 567.208 Cfr. GEACH, Three philosophers, Basil Blackwell, Oxford, 1961, p. 136.209 Segundo a perspectiva de GEACH, ibid., FREGE rejeitou sempre uma aproximação epistémica, e
portanto também linguística, dos problemas de filosofia. "His lifelong attitude was: first settle what is known, and how these know truths are to be analysed and articulated – and only then can you profitably begin to discuss what makes these truths dawn upon a human being; if you try to start with a theory of knowledge, you will get nowhere".É certamente uma atitude frequentemente adoptada por Frege. Mas não parecem explicáveis nesse caso muitas das teses do seu pensamento, como por exemplo a adopção (discutível) da teoria de que os nomes são "descrições definidas" disfarçadas, ou em abreviatura. O próprio Geach, que parece atribuir a tese a Frege não tem resposta para a razão de ser no pensamento fregeano.
Esta completude do nome próprio traduz o carácter igualmente completo, saturado do
objecto, por oposição às realidades incompletas, insaturadas ou quase-entidades dos
conceitos e relações que se exprimem pelas expressões insaturadas – termos conceptuais
ou expressões relacionais.
No caso dos nomes próprios a relação semântica entre o sinal e o designatum é
portanto intuitiva e não exige grande esforço de argumentação sustentar que o nome
próprio tem um referente (pressuposto ou real, não se trata aqui da questão da existência do
referente). O que se torna problemático é explicar que tenha um sentido210.
Em SB Frege afirma: "O sentido de um nome próprio é apreendido por todos
aqueles que estiverem suficientemente familiarizados com a linguagem ou com a
totalidade de designações a que ele pertence; isto porém serve apenas para elucidar um só
aspecto da coisa referida, no caso de ser um referente. Para um conhecimento total da
referência, exigir-se-ia que fôssemos capazes de dizer, imediatamente, se um dado sentido
pertence ou não a essa referência. Um conhecimento assim, nunca o conseguiremos"211.
O sentido é o conhecimento e re-conhecimento da referência, não se limita ao mero
facto de um sinal ter (realmente ou pressuposta) uma referência. Como via de acesso à
referência, o sentido constitui o "valor cognitivo", isto é o conteúdo informativo. Se o
sentido de um nome próprio consistisse apenas no facto de ter um referente, o problema do
estatuto informativo de uma afirmação de identidade ficaria por explicar. A introdução da
noção de sentido como uma via de elucidação da referência mostra bem como Frege
associa sentido a conhecimento: o sentido é um ingrediente da significação, sendo
significação aquilo que uma pessoa sabe quando compreende o significado de uma palavra.
Ao captar o sentido, não sabemos apenas que o nome está associado a um objecto
particular como seu referente, mas relacionamos o nome com um modo particular de
identificar um objecto como referente desse nome212. O critério de identificação do
referente forma parte do sentido de um nome próprio. Para apreender qual o objecto que é
designado por um nome é necessário saber, segundo palavras do próprio Frege, "como
reconhecer o objecto como o mesmo". Não se trata (como entendia Stuart Mill) de uma
mera associação do nome com a coisa designada, mas de apreender juntamente com o
nome o critério de identidade associado a objectos desse tipo213. Por isso dois nomes
210 Cfr. DUMMETT, "Frege on Functions: a Reply", Klemke, ob. cit., p. 271: "... whereas his task, with proper names, was to argue that they have Sinn, in the case of predicates the whole interest lies in their having Bedeutung".
211 Cfr. SB, Kleine Schriften, p.144.212 Cfr.DUMMETT, FPL, p. 95.213 Cfr. ibid., pp. 178-180.
podem ter o mesmo referente e sentidos diferentes, isto é, com os dois nomes estão
associados métodos diferentes de identificar algum objecto como referente de ambos; o
que equivale a dizer que é o mesmo objecto que satisfaz os dois pares de condições dessas
identificações214.
"Frege uses the metaphor of a route from the name to the referent: names with
different senses but the same referent correspond to different routes leading to the same
destination. In the case of complex proper names, the difference of route is sign-posted by
structure of the proper names themselves: we could not do justice to their complexity – the
way they are compounded out of their constituent expression – without acknowledging this
difference in the way in which we recognize an object as being referent of one name and of
the other"215.
Para Russell, por exemplo, as expressões complexas não são, logicamente falando,
nomes próprios; só as palavras simples utilizadas como nomes no sentido estrito para
designar um objecto ou um indivíduo concretamente localizado é que são nomes próprios.
Esses nomes próprios poderiam ser introduzidos tacitamente ou explicitamente como
equivalentes de um termo complexo singular ou de descrições definidas, por exemplo. Mas
de qualquer modo, segundo Russell deve haver uma categoria do "logicamente simples",
isto é nomes que não podem ser analisados como equivalentes de termos complexos e cujo
sentido portanto não é senão a sua posse de um referente particular216.
Um dos modos de identificação de um objecto como referente de um nome, pode
ser dado por uma descrição definida. No pensamento de Russell todos os nomes próprios
são descrições definidas disfarçadas (disguised), isto é, tacitamente entendidos como
equivalentes de descrições definidas. Muitos autores consideram que Frege teria a mesma
opinião: o sentido de um nome próprio não composto é dado por uma descrição definida217.
214 Cfr. ibid., p. 95.215 Cfr. ibid., p. 96.216 Cfr. ibid., p. 96.217 Cfr. KRIPKE, La logique des Noms Propres, Paris, Ed. de Minuit, 1982 (trad. fr. de Naming and
Necessity), p. 15: "Frege et Russell ont tous deux pensé, et il semble qu'ils soient arrivés à ces conclusions indépendement l'un de l'autre, que Mill avait eu tort en un sens très fort: en réalité, un nom propre, correctement employé, ne serait qu'une description définie ou abrégé. Frege a dit spécifiquement qu'une telle description donne le sens du mot".Na realidade a concepção de Russell, nota Kripke, é a de que os nomes não são descrições definidas abreviadas, nem têm sentido. Os verdadeiros nomes, no sentido lógico são os que existem realmente na linguagem ordinária nomeadamente os demonstrativos "este...", "aquele...", utilizados numa situação particular para fazer referência a um objecto com o qual o locutor possui acquaintance (no sentido russelliano significa conhecimento directo, por apresentação das próprias coisas; distingue-se de knowledge, conhecimento através de expressões denotativas). Cfr. RUSSELL, "On denoting", Logic and Knowledge, Essays R. C. Marsh (ed.), Geory Allen & Unwin, 1956, New York, p. 41.Kripke apresenta uma teoria alternativa à de Frege e Russell, segundo a qual a descrição serve, não para dar o sentido, mas para fixar a referência. Introduz uma noção de nomes próprios como designadores
No entanto, segundo a opinião de Dummett, Frege não teria defendido explicitamente essa
tese. Ao tentar explicar o que são os sentidos, Frege é levado naturalmente a citar essas
descrições definidas: o sentido de "Afla" corresponderia ao sentido expresso numa
descrição da forma "A montanha vista pelo viajante A em tal data a Sul, na linha do
horizonte". Mas, afirma Dummett "There is nothing in what he says to warrant the
conclusion that the sense of a proper name is always the sense of some complex
description. All that is necessary, in order that the senses of two names which have the
same referent should differ, is that we should have a different way of recognizing an object
as the referent of each of the two names: there is no reason to suppose that the means by
which we effect such a recognition should be expressible by means of a definite
description or any other complex singular term. Other writers may perhaps have
maintained this: but there is no ground to impute any such thesis to Frege"218.
Parece mais plausível, portanto que Frege tenha considerado a descrição definida
apenas como um dos modos de dar o sentido do nome, fornecendo um critério de
identidade do referente. Mas por outro lado, Frege não limita a categorização de nome
próprio aos nomes logicamente simples, o nome no sentido corrente, uma palavra simples
que designa imediatamente o seu objecto. Segundo a caracterização aristotélica um nome
não pode ser decomposto em partes que signifiquem separadamente219. Pelo contrário, para
Frege são nomes próprios também as expressões complexas220. Portanto o que Frege
considera é que tanto as palavras isoladas (nomes em sentido estrito) como as expressões
complexas (como descrições definidas) são classificadas como nomes próprios. Não
expressamente que um nome próprio (no sentido em que Russell considera os nomes
próprios) seja uma abreviatura de descrições definidas. De facto, a tese conduziria a
situações paradoxais, dentro do pensamento de Frege: como por exemplo, se uma
descrição definida é um modo de introduzir um nome, dando-lhe o seu sentido e
fornecendo-lhe um critério de identificação do referente, a descrição assimilaria e
dissolveria em si mesma as duas noções semânticas que Frege quer cuidadosamente
rígidos, isto é, um nome que, em todos os mundos possíveis designaria sempre o mesmo objecto. Assim por exemplo "O Presidente dos E. U. em 1970" não é um designador rígido, pois esse Presidente poderia não ter sido Nixon, mas sim Humphrey, ou outro. Pelo contrário, Nixon é um designador rígido, pois mais ninguém poderia ter sido Nixon.
218 DUMMETT, FPL, p. 98.219 Cfr. ARISTÓTELES. De Interpretatione, 16 a, pp. 20-21.220 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 145: por exemplo "o corpo celeste mais afastado da Terra" é um nome
próprio, tem sentido, se bem que não tenha referência. "Ausdruck, der für einen Eigennamen steht, immer einen Sinn habe. Aber ob dem Sinne nun auch eine Bedeutung entspreche, ist damit nicht gesagt. Die Worte «der von der Erde am weitesten entfernte Himmelskörper» haben einen Sinn; ob sie aber auch eine Bedeutung haben, ist sehr zweifelhaft."
distinguir. A descrição definida é, ela mesma uma expressão referencial, um nome próprio
no sentido fregeano. Não pode um nome próprio constituir o sentido de outro nome
próprio, pois cairíamos numa cadeia infinita de nomes próprios dando-se os sentidos uns
aos outros.
Considerado como o modo de determinar a referência, o sentido tem uma certa
flexibilidade, pois cada um pode determinar de modo diferente a mesma referência, dando
um sentido diferente do mesmo nome, ou podendo até o sentido variar com o tempo. Neste
caso, o único que se mantém invariante, objectivo e pode ser participado por vários
locutores, seria afinal o referente; o sentido perderia então o carácter objectivo, comum à
mente de vários indivíduos, que Frege lhe atribuíra221.
Por isso, parece que a tese de um nome próprio – abreviatura de descrição definida,
não condiz exactamente com a teoria semântica de Frege. Em primeiro lugar a sua noção
de nome próprio – palavra, sinal ou expressão que designa um objecto (tudo o que não é
função) – abrange também as próprias descrições definidas. Que um nome próprio possa
ser introduzido por uma descrição definida, ou que a descrição definida dê um sentido do
nome é uma explicação de ordem epistémica: permite dar conta do que é saber o
significado de um nome, ou apenas dar uma via para o conhecimento do seu significado.
Daí não se infere que o nome seja o "feixe" de uma família de descrições. As descrições
são possíveis vias (trajectórias) para o conhecimento do referente do nome. O facto de ser
através dessas vias que conhecemos o referente, não prova nada sobre o estatuto do próprio
referente.
Portanto, é bastante discutível que se possa situar o pensamento de Frege em
consonância com o de Russell, no que diz respeito aos nomes próprios como abreviaturas
de descrições definidas. Nada na obra fregeana nos permite situá-lo entre aqueles filósofos
a que se refere Kripke222, que se debatem com o falso dilema: "Os objectos, perguntam,
encontram-se por trás dos 'feixes' de qualidades, ou não são mais do que esse 'feixe'? Nem
uma coisa nem outra; esta mesa é de madeira, castanha, está no quarto, etc.. Tem todas
estas propriedades, não é uma coisa sem propriedades que estaria por trás das
propriedades. No entanto também não há nenhuma razão para a identificar com o conjunto
(o 'feixe') das suas propriedades, nem com o sub-conjunto das suas propriedades
essenciais".
221 Cfr. DUMMETT, FPL, pp. 101-102.222 Cfr. KRIPKE, ob. cit., p. 40.
A melhor via para a compreensão da noção de sentido em Frege conduz-nos de
novo à conexão que Frege estabelece, ao introduzir a própria noção de sentido, com o
"conteúdo informativo", o "valor cognitivo"223. Não é a mera associação com uma família
de descrições definidas, associação que se dá no mesmo nível da linguagem, entre nomes
próprios, nem é o simples facto de o nome ter um referente (pressuposto ou real), nem
mesmo um determinado critério de identificação do objecto designado, que constituem o
sentido do nome próprio. O seu sentido é o conhecimento do nome que tem o locutor
quando o emprega na prática linguística. Isto não implica uma relativização do sentido,
porque sendo, em última análise determinado pela referência (e não a referência pelo
sentido), há sentidos dados, comuns, objectivos, do qual várias mentes individuais podem
participar. Talvez se possa afirmar que, tal como na distinção tradicional entre conceito
subjectivo, formal e conceito objectivo, também na noção de sentido se podem ver estes
dois "lados" – o subjectivo e o objectivo. Que Frege tenha querido salientar o "lado"
objectivo está de acordo com as preocupações fundamentais do seu pensamento –
desinfectar a lógica de todo o psicologismo e apresentar uma teoria da linguagem ideal.
Mas não se trata de um mero artifício da teoria do significado, um instrumento teorético: é
algo de que constantemente nos servimos na praxis linguística, e sem o qual não haveria
actos de significação.
1.4 Sentido e Conceito
A consideração do sentido como "valor cognitivo", como o conhecimento de um
nome leva a uma hipotética identificação, ou pelo menos analogia entre sentido e conceito.
Sendo um aspecto, um lado ou uma propriedade de um objecto, tal como Frege introduz a
sua noção em SB, o sentido parece ser o conceito, ou os conceitos sob os quais cai esse
objecto. Com efeito "ser discípulo de Platão", ou "ser mestre de Alexandre Magno", "ser
filósofo" ou "ser um grego de Estagira", nomes próprios do mesmo referente, Aristóteles,
exprimem várias das suas propriedades ou os vários conceitos sob os quais cai o indivíduo
Aristóteles. Sendo assim, os sentidos, como conceitos identificam-se com os tradicionais
universais. Por outro lado, como "aspectos da coisa", os sentidos apresentam-se mais como
"acidentes individuais", os "momentos" de Husserl. Os sentidos são do objecto
223 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 104.
determinado, individualizado e portanto não são conceitos, posto que são eles mesmos
objectos.
Nas distinções de Frege entre conceito e objecto, sentido e referência encontramos
tanto várias razões que inclinam para uma identificação entre sentido e conceito, quanto
para uma radical negação dessa identificação. Comecemos por examinar uma série de
razões a favor da identificação:
No citado ensaio SB, Frege afirma que cada nome, além de referir a coisa, elucida a
referência, mas só parcialmente; um conhecimento exaustivo e completo da referência, sob
todos os seus aspectos seria inalcançável. Este conhecimento exaustivo, seria o
conhecimento conceptual completo, acabado, de um objecto, de um indivíduo, o que é
impossível; a condição apresentada por Frege para tal conhecimento seria a seguinte: dado
qualquer sentido, deveríamos ser capazes de decidir sempre se esse sentido (expressão de
um aspecto) pertence ou não ao objecto em questão. Esta condição é muito semelhante à
exigência de Frege da contornabilidade e decidibilidade dos conceitos (scharfe
Begrenzung): dado um conceito deveremos poder decidir, para cada objecto, se cai ou não
sob esse conceito224.
Na Bs, ao referir, a Inhaltsgleichheit (igualdade de conteúdos), Frege considera que
os vários nomes estão em correspondência com uma só coisa; mas cada nome envolve uma
determinação (Bestimmungsweise) particular dessa coisa. Por outro lado, Frege considera
também a situação na qual o mesmo nome se aplica a várias coisas ("homem" a Pedro,
João, etc.); esse nome comum, esclarece Frege, não é a designação de indivíduos, mas do
conceito comum a esses indivíduos. (Aqui conceito parece poder ter um nome,
contrariamente à introdução da noção de conceito, como sendo sempre a referência de um
predicado). Angelelli225 descreve esta curiosa situação do seguinte modo: "When viewing
many things (correlated to one name), Frege speaks of the concept (common to them),
when viewing one thing (correlated to many names), he speaks of the sense (of each
name)".
Além disto, fixar um sentido parece ser o mesmo que escolher um conceito. No
exemplo primeiro invocado por Frege na Bs, a distinção entre o ponto geométrico A,
enquanto dado intuitivamente ("o ponto A") e o mesmo ponto dado por uma descrição ("o
ponto B que ....") é uma forma de distinção entre intuição e conceito: "B" no exemplo
apontado é o nome de um conceito.
224 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 48 passim.225 Cfr. ibid., p. 48.
Em SB, Frege refere a flutuação na determinação dos sentidos (Aristóteles pode ser
para uma pessoa "o discípulo de Platão", para outra "o mestre de Alexandre Magno", ou
para outra "o Estagirita"). Uma linguagem científica deve evitar esta flutuação de sentidos,
mas o único modo de o fazer é escolher o conceito sob o qual cai o objecto em questão, e
construir uma descrição.
Frege refere a possibilidade de nomes que exprimem um sentido, mas aos quais
lhes falta o referente226: "o corpo celeste mais distante da terra" tem um sentido, mas é
duvidoso que tenha uma referência; ou a expressão "a série que converge menos
rapidamente" tem um sentido, mas provadamente não tem referência, pois para cada série
convergente dada, é sempre possível encontrar uma outra que converge menos
rapidamente. Portanto, apreender um sentido não assegura de modo nenhum a sua
referência. Há portanto "sentidos vazios", tal como há "conceitos vazios"227.
Um último argumento a favor da identificação entre sentido e conceito, é a própria
identificação que Frege estabelece de referência (Bedeutung) dos nomes próprios com o
objecto (Gegenstand)228. Dada a divisão exaustiva da ontologia fregeana em objectos e
funções (conceitos) a tal ponto que se pode introduzir a noção de objecto como "tudo o que
não é função", também no domínio semântico se deverá dar esse carácter exaustivo: tudo o
que não é referência (objectos), é sentido (conceitos).
Contra esta identificação há, em primeiro lugar a própria introdução da noção de
conceito229, como sendo a referência de um predicado gramatical. Pode-se talvez considerar
que a referência do predicado seja o sentido (um dos sentidos) do sujeito, na medida em
que a predicação é de facto a única via de acesso ao conhecimento conceptual do
indivíduo. Predicar seria equivalente a dar um sentido, ou dizer um sentido do sujeito
(referente) do qual predicamos. De qualquer modo dá-se uma colisão semântica entre
sentido e referência no predicado.
Independentemente do pensamento do próprio Frege há uma outra objecção
importante: se os aspectos das coisas são considerados como entidades concretas que
acompanham a própria coisa, como conceitos serão considerados como abstractos, comuns
a muitas coisas. Aqui estão em jogo as ambiguidades do termo Eigenschaft, ambiguidades
que nascem com a própria ontologia aristotélica, que não respeita a distinção de
226 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 145.227 Cfr. também Grl § 74 nota. 228 SB, Kleine Schriften, p. 144 "(...)zu einer Bedeutung (einem Gegenstande) nicht nur ein Zeichen
zugehört. p. 146; "Die Bedeutung eines Eigennamens ist der Gegenstand selbst, den wir damit bezeichnen…"
229 Cfr. BG, Kleine Schriften, p. 168, nota.
universalidade-singularidade no que se refere aos acidentes. O acidente torna-se um termo
ambíguo, por um lado próximo do "universal" ("atributo", "predicado") na medida em que
se diz das substâncias, e por outro lado aproxima-se do "individual", na medida em que
sempre se pensa de uma entidade real230. A ambiguidade no entanto só se mantém se se
acentuar a separação mesmo de um modo abissal, entre o concreto e o abstracto. Separação
que, por um lado Frege reprova231 e por outro lado alimenta na sua distinção radical entre o
conceito e o objecto. Distinção que transpõe para o domínio lógico as distinções
universal/singular e abstracto/concreto, sem dilucidar as nuances destas mesmas
distinções. O sentido flutua exactamente nesse balanço ambíguo entre estes dois pares de
termos.
Considerando agora como noção semântica, importa examinar o modo como o
sentido é expresso: em primeiro lugar, no caso do discurso directo, em que os sinais
designam a sua referência e só "obliquamente" apontam para o seu sentido, não há um
processo de designar directamente (in recto) um sentido, a não ser utilizando a frase "o
sentido de tal nome..."232. Sendo assim, como é possível que Frege apresente como o nome
de um dos sentidos de Aristóteles "o discípulo de Platão"? "O discípulo de Platão" é,
segundo a semântica dos nomes próprios de Frege, um dos nomes para o indivíduo
Aristóteles, e não do seu sentido. Nova colisão portanto entre o sentido e a referência! No
caso do discurso indirecto, as palavras não têm as suas referências habituais, mas referem-
se ao que habitualmente é o seu sentido233. Num contexto de discurso indirecto "a Estrela
da Manhã" não designa a Estrela da Manhã, mas o sentido de "a Estrela da Manhã", isto é
um modo particular dos conceitos de Frege, uma expressão saturada (particularmente as
precedidas pelo artigo definido) não podem ser nunca consideradas como nomes de
entidades insaturadas, ou seja de conceitos. Portanto "a Estrela da Manhã" no discurso
indirecto é o nome de um sentido, mas não pode ser o nome de um conceito. Não há
identificação possível. Mas é de notar que são as consequências da insaturação
(característica própria da expressão dos conceitos) que surgem de novo na questão do
sentido a impedir essa identificação.
1.5 Sentido e Pensamento
230 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 16; Cfr. também ARISTÓTELES, Metafísica, , 5, 1071 a, 20.231 Cfr. "Rezension: Husserl, Philosophie der Arithmetik", Kleine Schriften, pp. 179-192232 SB, Kleine Schriften, p. 145: "Wenn man von dem Sinne eines Ausdrucks 'A' reden will, so kann
man dies einfach durch die Wendung «der Sinn des Ausdrucks 'A'».233 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 151.
Como foi referido, Frege trata em SB exclusivamente da semântica dos nomes
próprios e se, depois das páginas dedicadas ao caso dos nomes (nomes de objectos)
estritamente falando, passa à consideração das frases completas, isso significa
precisamente que estas são também consideradas como nomes próprios. Qual neste caso, o
seu sentido e a sua referência? Frege pretende utilizar para as frases assertivas o mesmo
modelo semântico triádico do sinal-sentido-referência, que utilizara para os nomes. E como
toda a frase completa contém um pensamento (Gedanke, em alemão geralmente traduzido
pela palavra inglesa proposition, ou naturalmente, thought), que consiste, não no acto
subjectivo de pensar, mas sim no seu conteúdo objectivo234, a argumentação de Frege
partirá da pressuposição de que o pensamento seja a sua referência. Com um argumento
indirecto, prova-se que alternando uma parte da frase por outra que possua a mesma
referência, o pensamento modifica-se, mas não a sua referência. O pensamento da frase "a
Estrela da Manhã é um corpo iluminado pelo sol" é diferente do da frase "a Estrela da
Tarde é um corpo iluminado pelo sol". Quem desconhecer que "Estrela da Manhã" e
"Estrela da Tarde" têm o mesmo referente, poderia pensar que uma das frases é verdadeira
e a outra é falsa. No entanto a referência não é alterada, portanto, conclui Frege, o
pensamento não pode ser a sua referência, mas sim o seu sentido.
Nesta breve argumentação, Frege começa por indicar que as frases contêm um
pensamento (Gedanke). Porque considera que é diferente o pensamento da frase onde
ocorre "a Estrela da Manhã", do da frase onde ocorre "a Estrela da Tarde"? Seria natural
dizer simplesmente que quem não reconhece o mesmo objecto sob os diferentes aspectos
(Vénus como Estrela da Manhã, e como Estrela da Tarde), poderá considerar dois
pensamentos diferentes, sendo um tido como verdadeiro e o outro como falso; mas a
diferença entre os dois pensamentos é consequência do não reconhecimento do mesmo
objecto real. Portanto aqui "pensamento" está tomado em sentido subjectivo, individual,
com um estatuto de ordem epistémica, sentido que não corresponde ao que Frege atribuirá
ao pensamento ao longo deste escrito e que será expressamente banido no escrito posterior
G. Além disso, na própria argumentação Frege pressupõe já que o sentido de qualquer
frase é constituído pelos sentidos das suas partes, tese a demonstrar, e a afirmação de que o
234 Cfr. ibid., p. 62 nota: de novo a linha de separação entre o subjectivo e objectivo. Objectivo é o conteúdo e poderia ser entendido como conteúdo de consciência. Em G, Frege rejeitará a identificação de pensamento com conteúdo, porque este pressupõe um continente, portanto o pensamento como conteúdo pressupõe um "portador". É mais taxativo neste texto a defesa do carácter independente, não incluído em nenhuma mente, do pensamento.
sentido da frase é o seu pensamento está também implícita na rejeição da hipótese
contrária, a de que o pensamento fosse a sua referência.
Quando Frege conclui que a alteração de palavras com a mesma referência não
altera a referência da expressão complexa, poderia dizer que não altera o pensamento;
ainda não se sabe, nesta passagem de SB o que é a referência da frase, e porque permanece
inalterada. Mas Frege quis à partida sustentar que o pensamento não pode ser a referência,
e que portanto deve ser o sentido.
A questão seguinte, obviamente será a de saber se a frase tem referência
(Bedeutung), ou se tem apenas sentido (Sinn)235. A argumentação de Frege pode
esquematizar-se em três afirmações principais:
1) estamos interessados na referência de partes da frase; o exemplo de Frege é:
"Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca". A frase tem
um sentido, mas da referência do nome Ulisses depende que a frase seja
considerada como verdadeira ou não. Se não nos importássemos por mais nada
a não ser o sentido, não nos interessaria tão pouco a referência de uma parte da
frase. No caso da poesia só interessa o sentido, não nos interessaria tão pouco a
referência de uma parte da frase. No caso da poesia só interessa o sentido, pois
"a questão da verdade, far-nos-ia abandonar o encanto estético por uma atitude
de investigação científica".
2) No entanto, quando se trata da ciência, não nos satisfaz o sentido, e por isso
perguntamos pela sua referência. Porquê? Porque não nos basta o pensamento?
3) Porque nos interessa o seu valor de verdade. É a preocupação pela verdade que
"nos dirige do sentido para a referência"236. Como é o interesse pelo valor de
verdade de um pensamento, que nos leva a perguntar pela referência de uma
frase, Frege conclui imediatamente que a referência de uma frase é o seu valor
de verdade.
A argumentação um tanto artificiosa, bem como a sua rápida conclusão estão
justificadas pela pretensão de Frege de impor uma total univocidade do par sentido-
referência, tanto para a semântica dos nomes, como para a semântica das frases,
englobando assim todas as expressões completas sob a designação de nomes próprios.
Assim, tal como um nome designa ou refere um objecto, também uma frase completa tem
por referência um objecto, que neste caso será o seu valor de verdade, o verdadeiro ou o
235 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 148-149.236 Ibid., p. 149.
falso. Cada frase é sempre um nome próprio cujo sentido ou pensamento pode variar, e que
designa o verdadeiro ou o falso: são nomes próprios, no verdadeiro sentido da palavra, do
verdadeiro e do falso. Frege reconhece a dificuldade de aceitar esta tese, pois afirma logo a
seguir: "Designar os valores de verdade como objectos pode parecer um devaneio
arbitrário ou talvez um mero jogo de palavras, sem consequências profundas. O que eu
denomino objecto só pode ser mais precisamente discutido quando vinculado ao conceito e
à relação"237.
O principal motivo da distinção, na semântica das frases entre sentido e referência,
como relação entre pensamento e valores de verdade, é o de preservar a peculiaridade do
verdadeiro, não como uma parte do pensamento, mas como algo de completo, "subsistente"
por si mesmo, independente do pensamento que a ele se refere. Daí a identificação,
aparentemente estranha, mas congruente dentro do pensamento fregeano, do verdadeiro e
do falso com objectos. Os objectos de Frege são, ontologicamente, "entidades" completas,
independentes, do ponto de vista lógico, sujeitos de predicação e nunca predicados de
outros, e as suas expressões são também completas, saturadas, do ponto de vista semântico
são nomes próprios. No próprio escrito SB238, Frege defende esta independência do
verdadeiro em relação ao pensamento, esclarecendo que verdadeiro ou falso não são
predicados: a relação do pensamento com o verdadeiro não pode ser analogada à relação
do sujeito com o predicado, embora a linguagem corrente possa aparentemente induzir
nesse sentido. Ocorrem muitas vezes frases como "O pensamento de que 5 é um número
primo é verdadeiro", em que "é verdadeiro" parece ser um predicado. No entanto Frege
distingue o conteúdo de uma proposição assertiva verdadeira, da própria asserção de
verdade. O que faz parte do pensamento é o conteúdo da proposição "5 é um número
primo", sendo "5" o sujeito e "é número primo" o seu predicado; sujeito e predicado estão
no mesmo nível, ao nível do pensamento, enquanto que a atribuição da verdade está a
outro nível: "Um valor de verdade não pode ser parte de um pensamento, tal como não o
pode ser o sol, posto que ele não é um sentido, mas um objecto"239.
Esta mesma distinção é mais elaborada e detalhada por Frege em G240. Aí distingue:
1) a apreensão de um pensamento (pensar, acto de pensar);
2) o conhecimento da verdade de um pensamento (o acto de julgar);
3) a expressão deste juízo (a asserção).
237 Ibid., p. 64.238 Cfr. ibid., p. 64.239 Ibid., p. 64.240 Cfr. G, Logische Untersuchungen, p. 7.
Na frase assertórica devem distinguir-se o conteúdo, que pode ser o mesmo numa
frase afirmativa e numa interrogativa, da asserção propriamente dita. O primeiro é um
pensamento ou pelo menos contém um pensamento; um pensamento é para Frege algo em
relação ao qual se levanta a questão da verdade241; é possível exprimir um pensamento,
porém, sem afirmar a sua verdade. Numa frase assertórica as duas coisas ocorrem
intimamente unidas, mas é necessário ver a diferença. No processo de um conhecimento
científico é talvez mais patente a graduação: primeiro apreende-se (capta-se) um
pensamento através de uma questão proposicional; depois das correspondentes
investigações, a esse pensamento pode ser atribuído o valor de verdadeiro. O ser
verdadeiro no entanto, não depende da sua descoberta como verdadeiro, mas é por si
mesmo, independentemente de ser apreendido ou captado como verdadeiro. Para
salvaguardar a sua independência, completude, o seu carácter "substantivo" e não
predicativo, Frege é levado a considerá-lo como um objecto. O pensamento é a apreensão
de um facto como verdadeiro242. Pensar não consiste por isso em produzir pensamentos,
mas em apreendê-los na sua estreita conexão com a verdade. Essa é a tarefa da ciência que
não consiste na criação, mas na descoberta de pensamentos verdadeiros.
Já foi referida a cuidadosa distinção que Frege expõe neste escrito243 entre o mundo
interno, da representação ("idea" na trad. de Geach), o mundo externo (das coisas físicas),
e um terceiro mundo, não subjectivo, não depende de alguma mente em particular, não
necessitando de uma consciência, de um Eu como seu "portador", como seu sujeito, mas
tão pouco um mundo "físico", externo, captável pelos sentidos (órgãos sensoriais); esse
terceiro mundo é o reino dos pensamentos244. Um pensamento, conclui Frege, não pertence
nem ao meu mundo interno (recorde-se o exemplo do teorema de Pitágoras, que não é o
meu teorema, mas sim um teorema universalmente captável), nem ao mundo externo, o
mundo das coisas perceptíveis pelos sentidos.
Torna-se necessário provar a "existência" desse terceiro mundo dos pensamentos,
provar que algo como os conceitos e os pensamentos, tem alguma forma de existência. O
argumento em que Frege baseia a prova assenta na refutação de que a percepção sensível
(sense-perception) seja a fonte do conhecimento única e certa de tudo o que não pertencer
ao mundo interno245. A percepção sensível é constituída por impressões sensíveis (sense-241 Cfr. ibid., p. 4.242 Cfr. ibid., p. 25.243 Cfr. ibid., pp. 13-25.244 Cfr. ibid., pp. 17-18.245 Cfr. ibid., p. 26.
impressions) que formam parte do nosso mundo interno. Mas Frege sustenta que a
impressão sensível, por si só não nos revela nada do mundo externo. Pode haver mesmo
alguém que tenha apenas impressões sensíveis sem ver ou captar as coisas. Ter impressões
sensíveis, afirma Frege não é o mesmo que ver coisas. É óbvio que se vejo uma coisa, isso
depende das impressões visuais fisicamente impressas nas retinas dos dois olhos, nas quais
se forma realmente, fisicamente, uma imagem particular. Mas qualquer outra pessoa que
veja o mesmo objecto, terá as suas imagens visuais que diferem das minhas. As impressões
sensíveis variam de indivíduo para indivíduo, embora nos movamos no mesmo mundo
externo. Além destas imagens sensíveis, é necessário algo de não-sensível para ver as
coisas: é esse algo de não sensível que nos abre para o mundo externo, sem esse algo cada
indivíduo ficaria encerrado no seu próprio mundo interno. Esse algo de insensível é um
factor determinante, tanto para distinguir o mundo externo, próprio das coisas sensíveis,
como o mundo do que não é perceptível pelos sentidos. Se este elemento não-sensível é
determinante, este algo poderia, mesmo não havendo nenhuma impressão sensível,
conduzir-nos fora do nosso mundo interno, e fazer-nos apreender os pensamentos. Deste
modo, a diferença entre o modo como uma coisa e um pensamento nos são dados não
radica na própria coisa ou no pensamento nem em cada um dos seus domínios, mas no
mundo interno (ou interior). E Frege conclui: se esse algo não sensível nos permite captar,
através das impressões sensíveis (condição necessária mas não suficiente), as coisas do
mundo externo a nós, não é difícil de admitir que esse mesmo elemento nos permita
apreender os pensamentos, que não pertencem tão pouco ao nosso mundo interno.
De novo Frege tenta demarcar com nitidez o subjectivo, individual, incomunicável,
do objectivo, comum a várias mentes, público, desta vez recorrendo ao problema da
recognição (reconhecimento), que é comum à experiência privada e à de comunicação.
Para re-conhecer um mesmo objecto através das impressões sensíveis várias, isto é, para
haver distinção entre impressões sensíveis (ou simplesmente sensações) e percepção do
objecto, tem que haver, segundo o pensamento de Frege, um factor não sensível que
intervenha no processo; a necessidade de admitir a existência desse algo não sensível para
explicar o próprio conhecimento sensitivo, é para Frege o argumento mais forte para
provar a existência do pensamento. Ver um objecto, no sentido de percepcionar, é
topologizar esse objecto entre as espécies de objectos possíveis e esta capacidade
pressupõe o conceito. Captar ou apreender um facto, exige um pensamento, algo de
diferente do facto em si mesmo e do conjunto de impressões sensíveis que recebemos das
coisas que constituem esse facto. Nem o facto, nem as impressões poderiam ser
reconhecidos como tal, sem o elemento não sensível, que é o pensamento246.
A prova da existência de conceitos e pensamento assenta portanto nesta
argumentação de Frege, na possibilidade de distinguir entre impressões do objecto e
percepção do objecto247. No referido ensaio, Gram critica com acerto esta argumentação de
Frege248: a nossa capacidade para classificar objectos da percepção radica no nosso
conhecimento dos conceitos sob os quais cai esse objecto; o nosso conhecimento
(acquaintance) dos conceitos é condição para o reconhecimento dos seus objectos. Para
Frege um conceito é captado pela mente (the mental eye)249. A relação epistémica aqui
referida é a de uma simples apreensão. Sendo assim, a explicação que Frege dá desta
relação da mente com o conceito, não faz mais do que duplicar o problema a resolver da
capacidade de ver objectos perceptuais. Como é que distingo uma apreensão de um
conceito, verdadeira de uma errónea? O problema inicial era o de explicar a nossa
classificação dos objectos da percepção, e para tal, Frege tem de recorrer à capacidade para
distinguir entre um conceito e outro. Mas esta distinção, por sua vez, necessita da primeira
classificação. Portanto, se a simples apreensão é suficiente para reconhecer os conceitos,
não há nenhuma razão para que não seja suficiente também para reconhecer os objectos da
percepção que os conceitos subsumem. O problema é o mesmo nos dois níveis: ou a
simples apreensão é suficiente para explicar o re-conhecimento (recognição), ou não o é.
246 Cfr CARL, Wolfgang, Frege's Theory of Sense and Reference, p. 194. O autor considera importantes os contributos epistemológicos de Frege e vê, na distinção entre os três «reinos» uma réplica da divisão das nossas faculdades cognitivas - razão, percepção e representação; os três domínios - do mundo interno, do actual e do objectivo não actual - constituem aquilo a que estas tr~es faculdades têm acesso. Assim, para Carl, trata-se de uma distinção que não envolve qualquer compromisso ontológico, mas que se baseia na própria epistemologia e explicação do conhecimento que Frege se propõe apresentar. A ideia dos três mundos diferentes e independentes uns dos outros seria, portanto, alheia aos objectivos principais de Frege, como o comprova, segundo o autor a explicação fregeana do conhecimento empírico e a sua crítica ao empirismo subjectivista. O exame de Frege integra-se numa crítica da concepção empirista, segundo a qual a percepção sensível constitui a única fonte de conhecimento e a mais certa sobre tudo o que não pertence ao mundo interno. Mas a percepção sensível implica impressões sensíveis que são representações pertencentes ao mundo interno, e, por isso, ter impressões sensíveis não é perceber objectos externos.; é uma condição necessária, mas não suficiente para ter acesso ao mundo externo. Daí a necessidade de Frege concluir que, para ter acesso ao mundo externo, seja preciso acrescentar à mera sensação ou impressão sensível, algo não sensível. Esta componente não sensível da percepção de um objecto material consiste na apreensão de um pensamento. O autor compara esta afirmação de Frege com a tese de Kant segundo a qual as intuições requerem os conceitos. Dada a distinção entre os três domínios em Frege, pode dizer-se que não temos acesso ao mundo externo sem termos acesso ao mundo interno e também ao «terceiro reino», o do objectivo não actual. Esta distinção seria, segundo esta leitura, eminentemente marcada por uma perspectiva epistémica, por uma determinada explicação do conhecimento que pretende rejeitar o empirismo e o consequente subjectivismo céptico.247 Cfr. GRAM, M. S., "Frege, Concepts and Ontology", KLEMKE, ob. cit., p. 187. 248 Ibid. p. 192.249 Cfr. Gg I, p. XIV.
Se é, os conceitos são supérfluos. Se não é, o problema do re-conhecimento (recognição)
mantém-se, transferido para o plano dos conceitos250.
O tema central da argumentação para justificar os conceitos e o pensamento na
argumentação de Frege é, pois, o juízo de precognição. Apesar da rejeição fregeana de
qualquer via psicológica ou epistemológica, para dar conta das noções da lógica e das leis
do pensamento puro, é de notar que por várias vezes é justamente a um argumento de
ordem epistémica que Frege recorre para justificar essas mesmas noções251.
O argumento de Frege do texto de G a que nos referimos, não só recorre a uma via
epistémica, como a utiliza como um argumento indirecto, ou mesmo negativo. Como não
encontra outro meio de justificar a percepção de um objecto, Frege recorre a um elemento
não sensível que afirma serem os conceitos, o pensamento. Assim, a distinção entre
objectivo e subjectivo fica um pouco difuminada nessa noção que Frege faz intervir de um
elemento não sensível, mas determinante do conhecimento sensitivo. Se esse elemento é o
pensamento, é um pensamento tomado em sentido subjectivo, pelo menos como acto do
sujeito. Na passagem anterior252, Frege dissera que apreender um pensamento pressupõe
alguém que o apreenda, alguém que pense. Mas distinguira logo a seguir que o sujeito que
pensa (the owner of the thinking) é dono do acto de pensar, mas não é dono do pensado
(not of the thought). Como é isto possível? Alguém ser dono do acto de pensar e não do
pensado? O que é pensar? Para Frege, a metáfora que melhor exprime o pensar é ver, ou
captar, apreender. O que é visto pela visão, é realmente ser visto. Não pode ser visto antes
de ser visto. O pensado, antes de ser pensado, como pode ser pensamento? Antes de
250 Cfr. GRAM, ob. cit., p. 193.251 Gram considera que na teoria do conceito de Frege os argumentos provenientes da predicação não o
levam necessariamente à mesma teoria dos conceitos que os argumentos de ordem epistémica. Ignora todo o tema da predicação neste ensaio, para considerar apenas os argumentos de ordem epistémica. Cfr. ibid., p. 180.Cfr CARL, Wolfgang, ob.cit. pp. 186-211. Contrariamente a GEACH, DUMMETT, o autor defende uma aproximação claramente epistemológica do pensamento de Frege e considera relevantes os seus contributos para uma teoria do conhecimento. Em primeiro lugar porque Frege usa a sua própria teoria para criticar várias perspectivas epistemológicas, nomeadamente o empirismo, idealismo e cepticismo. Em segundo lugar, o autor considera que as noções fundamentais da filosofia de Frege, como a ideia de valor cognitivo de uma proposição e a sua concepção de juízo, são noções epistemológicas. E finalmente, porque o desenvolvimento do seu pensamento tende claramente para uma nítida teoria epistemológica sobre as "fontes do conhecimento".Embora estas afirmações tenham o seu sentido e não haja dúvida que no pensamento de Frege existem múltiplas interfer~encias de cariz epistemológico, também é certo que, como afirma Geach, Frege "rejeitou completamente uma aproximação epistemológica dos problemas filosóficos". De facto, o ponto de partida das análises lógicas e filosóficas de Frege não é nunca o problema epistémico, embora no desenvolvimento da sua filosofia estejam contidos muitos pressupostos e consequências que revelem de concepções epistemológicas.
252 Cfr. G, Logische Untersuchungen, p. 25.
pensado, antes de ser contido por alguma consciência, também não pode ser pensamento-
pensado. Ou trata-se de um pensamento-não-pensado?253
Frege batalha claramente por esta distinção: o pensamento não pertence ao
conteúdo da consciência do ser pensante. O pensamento não é noema. Apesar disso, Frege
tem de reconhecer que deve haver algo na consciência que é alcançado no pensamento254.
Como é que esse algo (something in his consciousness), algo do sujeito (subjectual) se
relaciona, ou se refere ao pensamento? Qual a relação pensado (enquanto conteúdo de
consciência) e pensamento (enquanto algo fora de nós, fora das consciências)? Para Frege,
esta relação consiste simplesmente em que o pensador ou o ser pensante capta, apreende,
vê ou entra em relação com o pensamento. Mas nada mais nos diz sobre esta relação255:
persiste o problema de saber como é que um pensamento pode existir, pre-existir enquanto
pensamento, sem ter sido jamais pensado? E como é que um ser pensante vê e reconhece
um pensamento que jamais viu, e que não procede do seu próprio acto de pensar?
A dificuldade parece provir da preocupação fregeana (sempre guiada pelo seu anti-
psicologismo e anti-representacionismo), por des-subjectivizar ou melhor des-mentalizar
os pensamentos, para lhes assegurar uma objectividade estável, evitar a sua redução a
imagens mentais individuais e incomunicáveis, e sobretudo garantir o carácter permanente,
eterno, imutável da verdade. Para isso, Frege julgou necessário rodear os pensamentos de
uma fronteira protectora de qualquer interferência da psicologia ou epistemologia. E
localizou-os num mundo de objectividades independentes de qualquer consciência que os
apreendesse. Dando assim origem a uma situação impossível de sustentar, a do pensamento
nunca pensado, pensamento anterior a qualquer pensamento que o pense. Esta ideia de um
pensamento nunca pensado, ou um pensamento-em-si é como um pau de ferro...
"Existem" pois os pensamentos, mas têm uma forma muito peculiar de existir, pois
não pertencem propriamente ao mundo da "actualidade" (Wirklichkeit), o mundo no qual
uma coisa actua sobre a outra, provocando uma mudança que por sua vez vem reagir sobre
a mesma coisa que é de novo modificada256. Trata-se de um processo no tempo, ao qual um
253 Cfr CARL, Wolfgang, Frege's Theory os Sense and Reference, p. 91: "Thinking is grasping a thought, and with regard to thoughts grasped by someone or other Frege asks the rhetorical question: "What would a thought be for me if it were never grasped by me?" (G, 76/28). The answer seems to be that a thought is something for me, if it is grasped by me sometime. If we identify conscious thoughts with thoughts being something for me, it seems reasonable to suppose that the only way of grasping a thought consists in expressing it by a sentence in a language that I understand. Thus, we can think only by using a language."254 Cfr. ibid., pp. 25-26.255 Cfr CARL, Wolfgang, ob.cit., p. 89: "Frege's analysis of grasping a thought does not reveal the nature of our access to what is objective but not real and does not explain, therefore, how thinking differs from perceiving an object."256 Cfr. ibid., p. 27.
pensamento não está de forma alguma submetido. Um pensamento, portanto, segundo
Frege, não forma parte deste mundo de Wirklichkeit (realidade efectiva). Um pensamento,
como por exemplo o teorema de Pitágoras é a-temporal, eterno e invariante. A aparente
variação de alguns pensamentos, que hoje são verdadeiros e amanhã são falsos, procede de
não se considerar que a especificação do tempo forma parte da expressão completa desses
pensamentos. Frege não admite uma relativização das noções de verdade ou falsidade; por
isso não permite que o sentido de qualquer frase que contenha uma parte cuja referência
necessite de ser determinada pela ocasião do seu emprego, seja identificado com um
pensamento. "Frege allows that, by means of a particular utterance of a sentence of this
kind, a thought may be expressed; but he says that, in such a case, the accompanying
conditions of the utterance serve, together with the utterance itself, to express the
thought"257.
Embora não activos, porque fora da actuality, os pensamentos têm no entanto um
modo peculiar de entrar em acção, um modo muito diferente de uma coisa externa. Um
pensamento "actua" ao ser apreendido e considerado como verdadeiro. Esse pensamento
captado por um ser pensante pode influir no decurso dos acontecimentos, mas essa
actividade (ou efectividade) é provocada pela acção do pensador, sem a qual o pensamento
permaneceria na sua perene "inactividade" (inefectividade). No entanto, isto não significa
de modo nenhum que seja o ser pensante quem cria os pensamentos; apenas os apreende
tal como são258. Nem sequer é o acto de apreensão por parte do sujeito pensante que os
torna verdadeiros, podendo ser verdadeiros sem terem sido captados por nenhum pensador.
Estas afirmações na parte final de "Der Gedanke", trazem de novo as dificuldades
já apontadas: que significa essa "actualidade" ou "efectividade" (Wirklichkeit) do
pensamento? É apenas a "actualidade" (ou a realidade) do que pode-ser-captado por um
pensador. Se a actualidade ou a realidade consiste em poder-ser-captado, como manter,
apesar disto, que se trata de "algo" independente do ser captado ou apreendido por uma
mente? Só pode ser trazido à acção mediante o pensador que as pensa, e no entanto este
não os cria, nem mesmo determina o seu carácter de verdadeiro, pois são verdadeiros
independentemente da sua relação com o ser pensante. Existem pois, invariantemente
pensamentos verdadeiros. Surge então a questão: o que são nesse caso pensamentos falsos?
Se não é a relação com a mente que os capta, que determina a verdade ou a falsidade de um
pensamento, qual o critério para identificar um pensamento como verdadeiro? Se, no
257 DUMMETT, FPL, p. 367.258 Cfr. G, Logische Untersuchungen, pp. 29-30.
princípio do texto, Frege afirma que o Verdadeiro e o Falso se afirmam dos pensamentos e
que o pensamento é justamente aquilo do qual se pode dizer que é verdadeiro ou falso, a
sua noção de pensamentos na parte final do texto parece levar à conclusão parmenídea de
que pensar é sempre pensar verdadeiro. Mesmo que não existíssemos, o pensamento de
que a Terra tem um só satélite natural seria sempre verdadeiro: o que significa, segundo a
interpretação de Dummett259 que, mesmo que não houvesse ninguém para dar expressão a
este pensamento, aquilo que faz com que o pensamento seja verdadeiro, dar-se-ia do
mesmo modo. Para Frege um facto é simplesmente um pensamento verdadeiro: a relação
entre um pensamento e o facto correspondente, se houver algum, não é uma relação de
correspondência, mas de completa coincidência.
Não há dúvida que aquilo que Frege denominou algumas vezes como o "reino dos
sentidos"260 constitui uma zona problemática da realidade, nada fácil de descrever, de
caracterizar ou de localizar: um sentido pode ser captado, expresso e comunicado a outra
pessoa, no caso de se tratar de um pensamento, pode ser-lhe atribuído um valor de verdade.
Frege não quis, ao descrever estas noções fundamentais, que pudessem ser identificadas
com imagens mentais, ideias (subjectivas, individuais) ou representações, para evitar que o
mundo dos pensamentos e dos sentidos ficasse encerrado na incomunicabilidade que
Frege atribuía àquelas. Por isso defende a tese de que os pensamentos e os sentidos em
geral são entidades a-temporais, que não estão submetidas a um processo de mudança. "His
reason for holding this – pensa Dummett261– is that he supposed that, otherwise, he would
be unable to hold that anything was true at a time when there was no one to think it: for
what is either true or false is a thought, and, if the existence of a thought depends upon its
being grasped, there would be nothing to be true at a time when there was no one who
grasped it".
O que Frege queria garantir era a fundamentação lógica e ontologicamente válida
para todos os tempos, para todas as mentes pensantes e independentemente das
circunstâncias em que fossem pensadas, de uma série de verdades que para ele constituíam
um background de conhecimento científico do qual toda a humanidade podia participar.
Esses pensamentos podem ser expressos na linguagem e constituem os sentidos de algumas
frases assertivas. Alguns textos, particularmente "Der Gedanke" sugerem, pela sua
terminologia uma interpretação segundo a qual os sentidos são apreendidos directamente, 259 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 369.260 Cfr. ibid., p. 153.261 DUMMETT, FPL, p. 154.
associando as palavras com os seus respectivos sentidos, através de uma faculdade de
intuição intelectual. Apreender o sentido das palavras e as frases seria, assim visionar essas
entidades lógicas (conceitos e pensamentos) e relacioná-las com a linguagem. Esta
perspectiva no entanto não condiz absolutamente nada com a análise da linguagem que
Frege leva a efeito meticulosamente, como processo de elucidação das noções cardeais da
sua lógica filosófica. Dummett considera que esta terminologia (os sentidos como
entidades eternas, imutáveis, objectivas) é apenas um modo de falar ("a harmless manner
of speaking"), com a qual Frege pretende simplesmente sublinhar a comunicabilidade do
sentido, contra a alegada incomunicabilidade do tone, do elemento subjectivo, da
linguagem. Todas as teorias fundamentais da lógica filosófica de Frege estão muito mais
de acordo com uma interpretação do sentido como algo que pode ser concebido como
sentido de uma expressão real; não possuímos outra faculdade para apreender sentidos,
para além da capacidade de aprender a utilizar palavras e frases. O sentido só pode ser
concebido como sentido de uma palavra ou frase, tal como a direcção o é de uma linha.
Mesmo que Frege tenha aderido à primeira interpretação de sentido, essa teoria não
o levou a tentar analisar os sentidos por outra via que não fosse a da linguagem. Se os
considerou como um reino de "entidades independentes, separadas", foi porque, embora
seguindo sempre a via da análise da linguagem, Frege não subscreveria nunca, em última
análise uma teoria em que a linguagem se explicasse a si mesma, ou em que o significado,
o sentido fosse determinado pelo uso.
II.2 A NOÇÃO DE REFERÊNCIA
O principal contributo do escrito de Frege "Über Sinn und Bedeutung" é o da
formulação de uma teoria semântica triádica, que apresenta o trio sinal-sentido-referência
como modelo explicativo da significação. O sentido constitui, como vimos, o elemento
cognitivo de toda a praxis linguística e a sua noção é introduzida por Frege neste escrito,
fundamentalmente para justificar a dimensão cognitiva de um juízo analítico, de identidade,
reforçando assim a fundamentação logicista da Matemática, sem que essa fundamentação
implicasse uma condenação de esterilidade formalista. A mediação do sentido, no mais
elementar acto da linguagem, como seja a utilização de um nome próprio, confere à
linguagem um carácter de saber prático e torna patente a conexão estreita entre a semântica e
a epistemologia, sem no entanto submeter a primeira a uma explicação dos processos
cognoscitivos.
A referência constitui o terceiro elemento da teoria do significado: é a expressão do
carácter essencialmente transitivo de todo o sinal. Todo o sinal é sinal de algo, ou em
terminologia escolástica, todo o sinal stat pro (está por, está em vez de)262.
Peirce, na sua classificação dos sinais refere também esta tríplice relação do sinal com
a coisa denotada (designada, significada) e com a mente263. Os modos da relação variam e
determinam os token (sinais abstractos e gerais, dependentes de um hábito, ou regra geral;
neste caso a relação do sinal com a coisa denotada depende da associação mental); os índex
(sinais naturais, sintomas físicos, nos quais a relação dual entre o sinal e o seu objecto é
independente da mente); e os ícones (nos quais a relação entre sinal e coisa se fundamenta
numa semelhança); neste caso o sinal está por algo porque se lhe assemelha. Em qualquer
caso constitui uma invariante do sinal esse seu carácter indicativo, esse apontar para algo
diferente dele próprio.
A capacidade de referir é pois a própria razão de ser do sinal, que remete de um modo
ou de outro, para um algo diferente de si mesmo. A referência é para Frege "aquilo de que se
fala", a possibilidade de a linguagem se referir ao real, ao "visado" ou "intencionado" por ela.
Dummett considera esta perspectiva a tese fundamental de Frege sobre a referência, e a prova
inequívoca do seu realismo semântico; reiteradamente afirma Frege que quando falamos
estamos de facto a referir-nos ao mundo real, dos objectos actuais, referentes dos nomes que
262 Cfr. KNEALE, W. e M. – O Desenvolvimento da Lógica..., p. 251 e ss.. Os medievais distinguem entre as propriedades dos termos, as seguintes: significatio, suppositio, copulatio et appelatio. Por suppositio entendiam a "ordinatio alicuis intellectus sub alio" (Guilherme de Shyreswood). O significado técnico da suppositio era explicado em termos de "colocar sob". No Latim clássico a frase supponere aliquid pro aliquo tinha o sentido de "substituir qualquer coisa por qualquer coisa".
263 Cfr. PEIRCE, Collected Papers, III, p. 210.
empregamos, e não a um mundo de representações internas, mediação intransponível entre o
eu e o mundo.
Há uma tendência natural para considerar que as expressões às quais lhes falta uma
referência no mundo externo, real, como os nomes de seres de ficção, designam alguma
imagem mental. Frege, no entanto, com a distinção entre sentido e referência, evita certos
paradoxos a que conduz a teoria de Meinong e do próprio Russell, ao considerarem objectos
que não existem, objectos não reais, mas meramente possíveis, sobre os quais podemos falar.
Para Frege, quando utilizamos nomes desse tipo, estamos e dizer alguma coisa, isto é, a
exprimir um pensamento, mas não estamos a falar de nenhum objecto existente nem
possível264. Se, ao usar expressões às quais não corresponde nada no mundo externo,
estivéssemos a falar de alguma concepção mental, isto também se aplicaria aos casos em que
corresponde algo no mundo exterior; não é possível decidir, apenas pela compreensão de uma
expressão, se há ou não algo de real que lhe corresponda no mundo externo, e seria estranho
fosse algo de diferente daquilo que se compreende através da expressão, que determinasse que
tipo de entidade é que essa expressão representa directamente e que, hipoteticamente,
constituiria o seu significado. Por consequência, nós não lograríamos nunca falar sobre nada
do mundo objectivo, mas só da sua representação mental. De novo o mundo da representação
se intrometeria, com a sua opacidade, a inviabilizar o conhecimento e a expressão do mundo
externo. A argumentação de Frege contra o "representacionismo" reforça o seu realismo
semântico: em SB265, afirma expressamente que seria um mal entendido pensar que, quando
falamos de algum objecto do mundo externo, estamos a designar a nossa representação mental
desse objecto: "Seria positivamente entender mal o sentido da sentença 'a lua é menor do que
a terra', admitir-se que é a representação da lua o que está em questão. Se isso é o que queria o
locutor, ele deveria usar a locução 'a minha representação da lua' ".
Do mesmo modo, quando nos referimos ao Mont Blanc como sendo a montanha mais
alta da Europa, não se trata da nossa representação mental da montanha, mas da própria
montanha, com o seu gelo e neve; e acrescenta Frege, o que dizemos será verdadeiro ou falso,
se esse mesmo objecto cair ou não cair sob o conceito "a montanha mais alta da Europa", um
conceito que forma parte também do mundo real, do "reino da referência", tal como a própria
montanha266.
264 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 197: "a person who uses such a name really says something, – i.e. expresses a thought – but there is not anything about which he is speaking".
265 SB, Kleine Schriften, p. 147-148.266 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 197.
Neste sentido a noção de referência está intimamente vinculada ao modelo da relação
nome próprio-portador (objecto nomeado): a referência de uma expressão será por isso o seu
correlato extra-linguístico no mundo externo e é precisamente porque existem esses correlatos
extra-linguísticos que nós logramos falar sobre o mundo real. Este sentido da referência como
correlato extra-linguístico é válido não só para os nomes próprios (expressões completas), que
designam objectos, mas também para o caso das expressões incompletas, como termos
conceptuais, relacionais e funcionais, aos quais corresponde também algo de extra-linguístico,
os conceitos, as relações e as funções, que são tão constituintes da realidade objectiva como
os próprios objectos. Esta extensão da noção de referência às expressões incompletas será um
dos pontos mais importantes da teoria da referência fregeana, decisivo, não só para a
formulação da semântica do conceito, mas também para a compreensão da ontologia implícita
em todo o pensamento de Frege.
Para garantir esse carácter realista da semântica fregeana, e ao mesmo tempo o papel
decisivo que o sentido desempenha na teoria da significação, Dummett considera que é
fundamental compreender que "a referência não é um ingrediente do significado"267. Se o
fosse, então a referência de uma palavra esgotaria – ou determinaria – o seu sentido, pois nada
mais teríamos que saber sobre o seu significado, para determinar o seu valor de verdade em
qualquer frase em que ocorrer essa palavra. A teoria do significado reduzir-se-ia a uma
explicação da relação entre as palavras e os objectos (seus referentes). Uma teoria do
significado, no entanto, é algo mais do que isso, pois tem de proporcionar uma teoria da
compreensão do significado. A capacidade de utilizar uma linguagem não é uma mera
habilidade mecânica de relacionar sinais com os seus significados. Os referentes são algo de
real, externo ao próprio processo interno da compreensão, da captação e da expressão do
significado. Afirmar que a referência não é um ingrediente do significado, significa pois, por
um lado garantir o alcance realista do uso da linguagem, e por outro explicar a relação da
significação, não como um mero processo de associação de uma expressão com algo
correspondente no mundo externo, mas como um processo que envolve a compreensão desse
significado. Deste modo, considerar a referência como um elemento extra-linguístico é
condição fundamental para uma semântica que reserve sempre, em qualquer acto linguístico,
um papel próprio ao sentido como valor cognitivo.
Apesar desta perspectiva da noção de referência em Frege como um factor
determinante da sua semântica "realista", aberta, da sua concepção predominantemente
transparente (porque transitivo) dos sinais, é necessário sublinhar que a referência em Frege é
267 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 91.
uma noção semântica sem "contaminações ontológicas", isto é, não há em Frege uma
transgressão, uma passagem directa, através da noção de referência, da semântica para a
ontologia268. A confirmar esta nítida distinção entre as noções semânticas de sentido-
referência e suas relações, e a esfera do ontológico, note-se o modo como Frege introduz, em
SB a noção de referência como aquilo que pressupomos ao falar dos objectos, ressalvando a
hipótese de que possamos enganar-nos quanto à pressuposição, no caso de tal referente não
existir. Não é da existência do referente que se trata, mas da nossa "intenção ao falar ou ao
pensar"269. A referência é esse "intencionado" do acto da fala, que não aponta para si mesmo
como sinal, mas para outro algo do qual fala. A "pressuposição da referência" não implica
nem envolve a "posição da existência". Quando afirmamos "Kepler morreu na miséria"
pressupomos que o nome "Kepler" designa algo; mas daí não se segue que o sentido desta
frase implique o pensamento de que "Kepler" designa de facto algum ser existente. Se fosse
esse o caso, a negação de "Kepler morreu na miséria" não seria "Kepler não morreu na
miséria", mas sim "Kepler não morreu na miséria ou o nome 'Kepler' carece de referência"270.
268 Contrariamente à tese de THIEL, Christian, Sentido Y Referencia en la Logica de G. Frege..., p. 162: considera que Frege contaminou (a expressão é sua) a divisão ontológica:
subjectivo-realsubjectivo-não realobjectivo-real
com a semântica: signosentidoreferência
e de um modo que nem sequer os dois domínios centrais (subjectivo-não real e sentido) chegam a coincidir. A argumentação de Thiel centra-se no facto de não coincidirem as noções de sentido com a de subjectivo-não real, pois para Frege os sentidos são também algo de objectivo. Este terceiro reino, problemático, de um objectivo (ou subjectivo-não real) demarcado do domínio do subjectivo-psíquico, real, e do objectivo-físico, apresenta-se ambíguo, pois a ele pertencem, não só os pensamentos e as suas "partes", como também em geral todos os objectos lógicos – percursos de valores, números e valores de verdade, os conceitos e as funções. Todos estes objectos foram introduzidos por Frege como referências de determinados sinais e expressões, e nunca a sua semântica permite interpretá-los como sentidos. Portanto a esfera do sentido não coincide em absoluto com a do subjectivo-não real. Como já referimos, esta não coincidência deve-se por um lado a uma certa ambiguidade da noção de sentido, como na noção de conceito: apresentam um lado subjectivo, que envolve a "representação", a captação interna do sentido, a apreensão de um conteúdo conceptual, que Frege cuidadosamente distingue para afastar uma perigosa intromissão psicologizante no domínio da lógica; e um lado objectivo, que corresponde justamente ao sentido como algo que pode ser captado, apreendido por várias mentes, e que portanto não se reduz a conteúdo de consciência individual; o conceito como "estrutura formal do real", e não como forma vazia do entendimento, ou como produto da abstracção.Precisamente o facto de as divisões apresentadas por Thiel não coincidirem, prova que, para Frege as relações entre as esferas ontológicas e semânticas não se podem analogar numa proporcionalidade perfeita, num modelo isomórfico. Esse isomorfismo entre o real, o lógico e o linguístico está longe do pensamento fregeano, que justamente apresenta um modelo semântico de uma extrema maleabilidade e, por isso mesmo adaptável e aplicável aos diferentes níveis da linguagem e do real.
269 SB. Kleine Schriften, p. 147-148.270 Ibid., p. 69; cfr. também GIL, G., La logique du nom, p. 66: "C'est ce qui fait que la préssupposition de
référence par le nom propre reste nécessairement extrinsèque au problème de l'existence". Nesta obra se encontra a exploração da noção de "pressuposição da referência".
A "posição da existência" envolve a afirmação de que a um conceito pertence
determinado objecto, ou que sob um conceito cai algum objecto (ou alguns objectos).
"Posição de existência" equivale à "negação do número zero" e é portanto afirmar algo de um
conceito271. Não tem sentido afirmar a existência de objectos, referentes de nomes próprios,
pois a existência é um predicado de segundo nível, isto é, uma propriedade, e não uma
característica (ou nota) de um conceito. Por isso a afirmação "Há um homem que se chama
Júlio César" tem sentido, enquanto não tem sentido afirmar "Há Júlio César".
Portanto a referência não indica nem determina de modo nenhum a existência. A
referência é um atributo próprio de todo o sinal que tem a propriedade de indicar. Peirce ao
exemplificar os "índex", como sinais apresenta-os como um dedo indicador, que não assere
nada, apenas mostra – Ali! Eis! (There!)272. Esse atributo do sinal, a sua transitividade, não é
nem consequência, nem efeito de que exista algo, e de facto pode faltar esse algo, objecto
referenciado. Mesmo nesse caso, o sinal não deixa de possuir como próprio o carácter
referencial273.
Esta autonomização da semântica em relação a uma ontologia reflecte uma vertente
mais pragmatista, incontestavelmente presente também na teoria da referência de Frege. A
dimensão semântica ganha relevo, por assim dizer, no contexto do pensamento fregeano, com
a exploração da tríade – sinal-sentido-referente – como uma dimensão marcada
fundamentalmente pela sua dependência constelacional274: o lugar de um objecto na tríade
semântica pode variar segundo os casos, como se vê claramente na construção de Carnap
(objecto é "tudo aquilo sobre o qual se pode fazer um enunciado"275). Esta mobilidade
contrasta com a dimensão ôntica, onde cada "entidade" é determinada uma vez por todas: um
pensamento fregeano, argumenta Thiel276 não se poderá nunca encontrar no mundo externo,
porque pertence ao "reino dos sentidos". No entanto também o próprio Frege admite esta
mobilidade das relações semânticas, pois reconhece que o pensamento pode desempenhar o
papel de referente, como é o caso do discurso indirecto, em que as palavras não têm a sua
referência corrente, mas uma referência indirecta.
É este cunho pragmatista da semântica fregeana que permite a interpretação da noção
de referência em termos de "função semântica" (semantic role, ou na expressão de Tugendhat,
271 Cfr. Grl, § 53.272 Cfr. PEIRCE, Collected Papers III, p. 210.273 Cfr. ARISTÓTELES, Tópicos I, 5, 102 a 15-20: "O próprio é o que, não exprimindo a essência da coisa,
pertence no entanto só a esta coisa e pode reconverter-se com ela...".274 Cfr. THIEL, Ch., ob. cit., p. 164.275 CARNAP, Der logische Aufbau der Welt, § 1, cit., por GIL, F., ob. cit., p. 164.276 THIEL, ob. cit., p. 164.
truth-value potential). Esta perspectiva resulta do abandono da relação nome próprio-portador
como protótipo para a apresentação da noção de referência, e partir da relação proposição-
valor de verdade, não considerando a possível analogia com o primeiro modelo, que levaria a
considerar todos os juízos como possíveis nomes próprios do verdadeiro e do falso. O valor
de verdade de uma expressão seria entendido em termos de valor veritativo potencial, isto é,
como contributo para a determinação do valor de verdade de uma frase na qual ocorre277. Com
esta noção de truth-value potential, a relação do pensamento ao verdadeiro é traduzida numa
relação interna à própria linguagem, uma relação entre duas expressões com o mesmo
"potencial veritativo". Na opinião de Dummett, com esta noção, Tugendhat despojou a
referência do seu carácter de relação com um termo extra-linguístico: tornou-se nas suas mãos
essencialmente uma relação de equivalência entre expressões. A perspectiva de Dummett
constitui uma tentativa de não contrapor os dois modelos – nome próprio-portador,
proposição-valor de verdade – mas de considerá-los como complementares e integráveis na
noção fregeana de referência. Enquanto objecto real, do qual se fala, a referência apresenta-
se-nos como um ponto fixo, um centro de gravidade para o qual convergem os múltiplos e
possíveis sentidos (quer seja o objecto no sentido físico, ou o indivíduo, sobre o qual não se
esgotam nunca as infinitas atribuições, quer seja o Verdadeiro ou o Falso como objectos
lógicos, dos quais os juízos constituem partes inesgotáveis também e são infinitos nomes
próprios que os designam). A referência enquanto semantic role, o truth-value potential da
frase, apresenta-se como o que importa, o que conta para a apreensão da verdade, sendo a
verdade considerada em termos de contextualidade semântica.
Em G Frege faz, surpreendentemente, uma afirmação que reflecte bem esta marca
pragmatista da sua semântica: "O essencial depende do que se tem a intenção de propor"278.
Mas o aspecto mais peculiar e mais valioso da semântica fregeana, se bem que
também o mais polémico, é a extensão da referência também às expressões incompletas,
predicados, expressões funcionais e relacionais, com a correspondente formulação da
semântica do conceito e da relação. Se para os nomes próprios, Frege terá que, contrariamente
a Stuart Mill e Russell, batalhar pela atribuição de sentido, evitando assim uma semântica
referencialista, diádica, que relaciona em circuito fechado os nomes com as coisas designadas,
sem mediação do sentido, para os predicados, Frege terá que batalhar pela elucidação da sua
referência, constituída pelo próprio conceito e não, em directo, pelos objectos que este
subsume. Em ambos os casos se torna necessário manter a relação triádica de sinal-sentido-277 Cfr. TUGENDHAT, "The Meaning of Bedeutung in Frege", Analysis, XXX (1970), pp. 177-189, cit.
por DUMMETT, FPL, p. 199.278 G, Logische Untersuchungen, p. 348: "Was aber wesentlich ist, hängt von dem Zwecke ab"..
referência, evitando, quer o curto-circuito da semântica referencialista, quer as ambiguidades
da "denotação" russelliana.
Na semântica dos nomes próprios, a ausência da reformulação de uma lógica análoga,
dificultando uma ordenação ou hierarquia de predicados, e promovendo um igualitarismo ou
nivelação dos sentidos, vai pôr em causa a noção de objecto, de indivíduo. Os diferentes
sentidos, como modos de dar-se de um objecto são sempre partes, em pé de igualdade, do
objecto; não fornecendo um critério para a captação de um sentido primeiro (equivalente à
atribuição da essência ou da predicação da substância segunda à substância primeira), Frege
deixa desprotegida a noção de indivíduo. A nenhum sentido é atribuída a função de "fixar a
referência"279. Assim a referência identifica-se remotamente com o objecto, mas este não
determina decididamente o sentido. A referência-objecto não se apresenta nunca de um modo
totalmente fechado, como uma opacidade perante a mente, mas como um foco irradiador de
sentidos280.
De um modo análogo, a semântica das proposições estabelece uma relação entre partes
e todo, entre as proposições como nomes próprios de um mesmo objecto, o Verdadeiro ou o
Falso, que também não se esgota nunca. Neste caso o referente é um objecto lógico, de
características peculiares, que tão pouco se apresentará à mente como algo de acabado,
completo, consistente, capaz de oferecer resistência281. Neste domínio, o principal lucro da
semântica fregeana será a crítica à definição da verdade em termos de correspondência ou
adequação: a verdade não é uma relação entre dois termos, a proposição e o facto, pois não há
comensurabilidade possível entre pensamento e realidade fáctica. A linguagem não é, para
Frege como uma re-produção ou re-figuração do real: em nenhum dos casos, nomes próprios
e proposições, a referência é concebida como a formulação semântica de uma espécie de
carácter mimético da linguagem. A linguagem não é MIMÉSIS porque comporta em si mesma
um plus que é o que se torna necessário averiguar através da semântica. O caso particular da
279 A expressão é de KRIPKE, La Logique des noms propres, p. 42 e ss..280 Tomamos aqui "opacidade" num sentido diferente do de QUINE, que foi quem introduziu o termo: cfr.
Word and Object, Cambridge Mass., The M.I.T. Press, 1979, § 30, pp. 141-156. Quine distingue a posição puramente referencial em que um termo singular é utilizado numa frase para especificar o seu objecto (ex. "Túlio era Romano"), de outras posições em que falta esta "transparência" (o termo é de Whitehead e Russell), como é o caso de frases em que ocorrem certos verbos como "acreditar que...", "tentar que...", "procurar que...", etc.. No caso de construções opacas falha a substituibilidade de identidade assente no princípio da extensionalidade. Por isso Frege considera que nestes casos, as palavras utilizadas não referem um valor de verdade, ou uma classe ou um indivíduo, mas refere uma proposição (pensamento), um atributo ou um "conceito individual".
281 Cfr. PEIRCE, Collected Papers, III, p. 390: Apresenta a definição estoica de indivíduo como algo que resiste, reage à minha vontade; a ideia de resistência pode considerar-se uma das notas características do que é ob-jecto, contrariamente ao que não o é, e que por isso está disponível para ser utilizado, é maleável.
referência das expressões incompletas permitirá a elaboração de uma semântica do conceito
onde essa concepção da linguagem do conhecimento e do real se torna patente.
2.1 Referência dos nomes próprios
Em SB o primeiro modelo explorado para a elucidação das noções de sentido e
referência é o da relação nome próprio e seu portador. O sentido de um nome próprio dá um
certo conhecimento da referência, no caso de a ter, mas sempre um conhecimento parcial, pois
nunca esgotaremos a potencialidade de sentidos, de inteligibilidade, de compreensão dessa
mesma referência282.
A referência do nome próprio permanecerá oculta, para lá de todos os possíveis
sentidos dados pelos seus nomes. Esta é a primeira das três teses implícitas na semântica
fregeana no que respeita aos nomes próprios: nela se capta a referência como um centro
convergente dos sentidos, não devidamente identificável porém, por nenhum desses sentidos,
que dão aspectos sempre parciais.
A segunda afirmação é a de que "a referência de um nome próprio é o próprio objecto
que por seu intermédio designamos". A célebre comparação com a lua, vista através de um
telescópio por vários observadores, apresenta a lua como referente, que é captado através do
sentido – a imagem projectada pela lente no interior do telescópio. Aqui a referência é
identificada, sem mais, com o objecto.
A terceira afirmação importante para a semântica dos nomes, é a de que quando
nomeamos algo, quando empregamos um nome próprio, não temos a intenção de falar das
nossas representações de objectos, mas sim dos próprios objectos, mesmo que se possa dar o
caso de que esses objectos não existam. Isto é, ao empregar nomes próprios, pressupomos a
sua referência283.
A primeira tese referida, põe em causa a própria noção de nome próprio. Nenhum
nome é realmente próprio, se todos são próprios, isto é, se todos dão um aspecto parcial,
nunca definitivo do objecto. Assim, Frege garante que todos os nomes têm um sentido (o
aspecto parcial que dão do objecto denominado), ao preço de enfraquecer a potencialidade
referencial de todos os nomes. Aqui Frege aproxima-se da semântica de Russell, considerando
282 Cfr. SB, Kleine Schriften, p. 144.283 Ibid., p. 61.
que os nomes são como descrições abreviadas284. Este tema foi já abordado na questão do
sentido dos nomes próprios, portanto trata-se apenas de detectar as consequências últimas
desta afirmação de Frege. Dá-se um relaxamento na linguagem, relaxamento que é admitido e
consentido pelo próprio Frege, na flutuação dos sentidos diversos captados e expressos por
diferentes pessoas, em relação a um mesmo referente. A afirmação de que o nome tem a
função de dar um sentido, e não de fixar a referência, envolve uma noção, a de "conceito-
feixe"285, que poderá ser congruente com o pensamento de Russell, mas não parece muito
consistente com a teoria do conceito de Frege: a concepção parte da ideia de que um
particular não é mais do que "um feixe de qualidades"286, que por sua vez assenta num falso
dilema: os objectos encontram-se por detrás (subjacentes) desse feixe de qualidades, ou não
são senão esse mesmo feixe de qualidades? Segundo Kripke, nem uma coisa nem outra. Esta
mesa é de madeira, é castanha, está nesta sala, etc.. Tem todas essas propriedades (aspectos,
parcialidades dadas), não é no entanto uma coisa sem propriedades, oculta debaixo ou por
detrás dessas mesmas propriedades. Isto não é razão para a identificar com o conjunto (o
"feixe") das suas propriedades, nem com o sub-conjunto das suas propriedades essenciais.
Kripke argumenta do seguinte modo: "Não perguntemos: como é que posso identificar esta
mesa num outro mundo possível, a não ser pelas suas propriedades? Eu tenho a mesa nas
mãos, posso mostrá-la com o dedo e, quando pergunto se essa mesa se poderia encontrar
numa outra sala, é dela, por definição, que eu falo. Não preciso de a identificar depois de a ter
observado ao telescópio. Se falo da mesa é dela que falo, do mesmo modo que, ao dizer que
poderíamos ter as mãos pintadas de verde, estipulo que falo da cor verde. Algumas
propriedades de um objecto podem ser essenciais na medida em que não poderia deixar de ar
ter. Mas estas propriedades não servem para identificar o objecto num outro mundo possível,
porque essa identificação não é requerida"287. Kripke distingue assim a identidade ontológica
284 RUSSELL na realidade considera que os nomes próprios, estritamente falando, são os que se utilizam na linguagem corrente, como por exemplo os demonstrativos, como "este" ou "isto", empregues numa ocasião particular para fazer referência a um objecto do qual o locutor possui um acquaintance, no sentido russelliano. A distinção entre acquaintance e knowledge about é a distinção entre aquilo que nos é directamente apresentado no conhecimento perceptivo, e aquilo que só conhecemos através de frases referenciais (denoting phrases). Cfr. Russell, "On denoting...", p. 41.A questão de saber se de facto Frege identifica os nomes próprios com descrições abreviadas é discutível; cfr. Dummett, FPL, p. 110 e ss.. De facto a identificação é inconsistente com outras teses claramente defendidas por Frege – concretamente a de que um objecto nos pode ser dado intuitivamente, a afirmação, sem hesitações de que o referente de um nome próprio é um objecto. A teoria das descrições definidas leva a uma construção da linguagem da qual se expulsam os nomes próprios, e a uma concepção do conhecimento que põe em causa o conhecimento do indivíduo, teses contrárias ao pensamento de Frege.
285 O termo é de KRIPKE, cfr. ob. cit., p.18.286 Ibid., p. 30.287 Ibid., p. 41; para uma discussão mais extensa das teses de Frege e Kripke, cfr. DUMMETT, FPL, p. 110
e The Interpretation..., p. 182.
de um objecto, da sua identificação gnoseológica. A fonte desta confusão é justamente "a
confusão entre o epistemológico e o metafísico, entre aprioridade e necessidade". Se se
identificam aprioridade com necessidade, e se pensa que os objectos são designados através
das propriedades especificamente únicas, pode-se julgar que as qualidades que a priori nos
servem para identificá-lo gnoseologicamente em qualquer "mundo possível" são as
propriedades que necessariamente o constituem em qualquer situação contrafáctica, isto é, as
que constituem a sua identidade ontológica288.
A impossibilidade de "fixar a referência" teria como consequências negar o
conhecimento da essência, negar a possibilidade de identificação de um próprio, negar a
própria identidade, pois nenhuma descrição, nenhum nome será totalmente idêntico, mas
sempre o separa uma diferença. A diferença instala-se dentro de cada objecto, de cada
indivíduo, que se estilhaça em fragmentos impossíveis de colar. Como afirma Russell, "a
proposição estilhaça-se perante a análise".
Toda esta perspectiva parece irreconciliável com a transparência com que Frege
introduz a noção intuitiva de objecto, que se dá, não só à sensibilidade, mas também à
mente289. Por isso talvez se possa considerar esta primeira afirmação sobre a referência,
apenas como uma cedência perante a flutuação de sentido que se dá na linguagem corrente.
Como escreve em nota, essas variações de sentido "devem ser evitadas na estrutura teórica de
uma ciência demonstrativa, e não devem ter lugar numa linguagem perfeita"290.
A referência de um nome é apresentada logo de seguida, como foi dito, e sem mais
reticências, como o objecto designado. O que é um objecto para Frege? O que melhor
caracteriza o seu estatuto de objecto é a saturação, isto é, o facto de ser algo completo,
fechado em si mesmo, opaco. A expressão de um objecto caracteriza-se, consequentemente
por não possuir lugares vazios. Um nome de objecto é sujeito último de predicação, nunca
pode desempenhar numa proposição a função de predicado.
Vimos já a dificuldade para a introdução da noção de objecto, pois Frege considera
objecto, aquilo que é o referente do nome próprio, e ao mesmo tempo define nome próprio
como a expressão que designa, refere um objecto. A questão da prioridade, linguística sobre a
lógica e ontológica, ou lógico-ontológica sobre a linguística parece ser indecidível, embora
288 Cfr. LLANO, A., Metafisica y Lenguaje, Pamplona, EUNSA, 1984, p. 355.289 Cfr. Grl, Conclusões, § 89.290 SB, Kleine Schriften, p. 144, nota: "(...) Solange nur die Bedeutung dieselbe bleibt, lassen sich diese
Schwankungen des Sinnes ertragen, wiewohl auch sie in dem Lehrgebäude einer beweisenden Wissenschaft zu vermeiden sind und in einer vollkommenen Sprache nicht vorkommen dürften".
Geach, como foi referido291, opte sem hesitar pela via ontológica e lógica, como acesso para a
linguística.
O segundo critério para a identificação dos nomes próprios recorre à sua função
sintáctica na proposição em que ocorre. A distinção entre nomes e predicados é radical e
inequívoca: um nome tem um sentido completo, pode ocorrer por si mesmo, autonomamente,
num simples acto de nomear; um predicado não tem nunca um sentido completo, é sempre um
predicado potencial, pois não manifesta de que é que se predica292. Um predicado é verdadeiro
de algumas coisas (por exemplo "Pedro feriu..." aplica-se a Malco). Esta relação é nitidamente
distinta da relação do nome ao seu portador, e é precisamente a indistinção entre estas duas
relações que está na origem das ambiguidades da "denotação". Um predicado nunca nomeia,
refere, aquilo do qual é verdadeiro, e portanto "Pedro feriu..." não pode ser considerado de
forma alguma como mais um nome próprio de Malco. Esta confusão resulta da falta de
clareza na distinção entre nomes e predicados. Se um termo pode aplicar-se indiferentemente
como sujeito e como predicado, esta confusão entre "ser um predicado aplicável a" e "ser um
nome de" levou naturalmente à teoria dos dois nomes, de marcado cunho nominalista. Na
proposição "Sócrates é filósofo", tanto "Sócrates", como "filósofo" seriam dois nomes do
mesmo indivíduo, relacionados pela cópula "é". Não haveria distinção entre o acto de nomear
e o de predicar293, como reflexo semântico da falta de distinção entre conceito e objecto. Frege
sublinha reiteradamente a necessidade de manter esta distinção a nível lógico, e de ver as suas
consequências a nível linguístico. Um nome próprio, por ser o nome de um objecto, não pode
nunca ser utilizado predicativamente, a não ser que deixe de ser um nome próprio (Ex.: "Ele é
um Napoleão em finanças", ou o exemplo fregeano "Trieste não é Viena – nestes casos a
palavra "Napoleão" e "Viena" referem-se a certos atributos do objecto que é normalmente
designado pelo próprio nome). A impossibilidade de ser utilizado predicativamente é devida
justamente ao carácter de saturado, fechado do objecto. Um predicado (expressão de um
conceito) tem sempre uma espécie de "gancho"294 ao qual se pode prender alguma coisa que
ocorra na frase; pelo contrário, um nome próprio, não o podemos visualizar com essa espécie
de "gancho" ao qual se possa prender uma outra coisa. Um nome próprio não "cola" com
outro nome próprio, a não ser através de um termo conceptual, relacional, etc..
291 Cfr. GEACH, P., Three Philosophers, p. 151.292 Cfr. GEACH, P., Reference and Generality, p. 32: "(...) it does not show what the predication is about".293 Cfr. GEACH, P., ob. cit., pp. 36-37.294 A expressão é de DUMMETT, FPL, p. 63 (hook).
Uma outra característica do modelo da referência nome-portador é a ausência de
qualquer determinação temporal. Já Aristóteles afirmara295 que o nome não faz referência ao
tempo. Em Frege não há nenhuma afirmação semelhante em relação aos nomes de objectos,
estritamente falando, mas sim em relação às proposições verdadeiras, que são "timeless
trues". Como as proposições, segundo Frege, referem o verdadeiro ou o falso de um modo
atemporal, assim a relação de um nome ao seu referente não envolve referência ao tempo. O
nome próprio "Augusto", tal como é utilizado nos livros de História de Roma tem Octávio
como seu portador e isto é verdade sem qualquer determinação temporal. Mesmo que o
portador tenha deixado de existir, não deixa de ser verdade que esse mesmo portador seja o
designado pelo nome próprio. Esta perspectiva que aproxima o nome da proposição e que em
Frege se relaciona com a sua teoria da verdade, poderia apresentar uma noção de nome
próprio bastante semelhante à de Kripke – o nome é um "designador rígido", porque em todos
os mundos possíveis designa o mesmo objecto. Nixon poderia não ter ganho as eleições dos
E. U. em 1970, poderia não ter sido o Presidente, etc., mas Nixon teria necessariamente, em
qualquer dos "mundos possíveis" que ser Nixon. O nome designa o objecto rigidamente e
sempre. Neste sentido, para Kripke "o Presidente dos E. U. em 1970" não é um nome próprio
"rígido no sentido forte", pois designa um certo homem, que poderia não ter sido Nixon, mas
Humphrey, por exemplo.
No entanto, Frege consideraria "o Presidente dos E. U. em 1970" como um nome
próprio, de acordo com a primeira das afirmações de SB comentadas neste ponto. Há
portanto, na semântica dos nomes fregeana, um certo desequilíbrio entre a rigidez e a
necessidade que serão impostas pelo modelo referencial proposição-referência, onde a relação
apresenta um carácter atemporal, e o relaxamento com que Frege trata a relação nome
próprio-portador, relaxamento permitido pela "acidentalidade" das descrições definidas.
Estreitamente relacionada com esta questão se encontra o princípio enunciado por
Frege na Introdução dos Grl, de que uma palavra só tem significado no contexto em que
ocorre, e não isoladamente. Como não há referências ao princípio nos textos posteriores a
este, muitos estudiosos de Frege consideram que este não foi mantido na semântica fregeana.
Se o mantivesse, Frege deveria sustentar que um nome não refere, quando empregue
isoladamente, e não parece ter sido esse o seu pensamento. Além disso, deveria aplicar o
mesmo princípio também à semântica das frases (como nomes do verdadeiro e do falso), o
que não seria consistente com a noção de verdade, sobretudo no que respeita à sua
295 ARISTÓTELES, De Int., 2, 16 a 15-20: "O nome é um som vocal, que possui um significado convencional, sem referência ao tempo, e cujas partes, tomadas separadamente não têm nenhum significado".
atemporalidade e independência da expressão linguística. Evidentemente que a utilização de
um nome, no acto de nomear não pode ser propriamente considerado verdadeiro nem falso.
Mas pode exprimir um pensamento, como por exemplo quando dizemos "Napoleão", em
resposta à pergunta: "Napoleão venceu a batalha de Hastings?"296. Os nomes assim utilizados
de um modo "independente" não exigem um contexto de palavras para terem um referente.
A segunda tese de Frege sobre o referente dos nomes próprios envolve portanto várias
questões, não totalmente clarificadas:
1º a sua compatibilidade com a afirmação anterior. Como aceder ao conhecimento,
reconhecimento e expressão de um objecto? As questões epistemológicas interferem
constantemente, emaranhando as afirmações que poderiam constituir as bases para uma teoria
dos objectos. Por isso tornar-se-ia necessário um trabalho de clarificação que destrinçasse o
epistemológico do metafísico: esse foi um dos principais contributos da obra de Kripke
(Naming and Necessity);
2º atemporalidade e necessidade no modelo referencial do nome próprio, versus
contingência e relativização na apresentação dos nomes como descrições definidas.
As questões enunciadas não encontram uma solução dentro do âmbito da própria
semântica dos nomes. Será necessário captar um modelo mais amplo do binómio sentido-
referência, para avaliar da adequação e fecundidade deste primeiro modelo nome-objecto,
como protótipo da noção de referência.
A terceira tese respeitante à referência dos nomes, diz respeito à distinção entre
"pressuposição da referência" e "posição da existência": quando empregamos nomes próprios
na linguagem corrente, pressupomos a sua referência, mas não pomos (nem postulamos) a sua
existência. Numa correcta e precisa fenomenologia, o acto de nomear distingue-se
nitidamente do acto de conhecimento da existência. Com esta terceira afirmação, Frege acaba
de situar a questão da referência no seu campo estritamente semântico, sem contaminações
ontológicas. A distinção entre "pressuposição da referência" e "posição da existência" é
decisiva para autonomizar a referência em relação à questão do próprio objecto, evitando
assim as aporias a que conduz a teoria dos "objectos irreais, inexistentes" proposta por
Meinong e Russell. A distinção fregeana permite atribuir uma função referencial a nomes
próprios como "Ulisses" ou "o actual rei de França", sem que por isso seja necessário
identificá-los com a classe nula ou com qualquer outro correlato in-existente, mas "posto"
296 Cfr. GEACH, P., ob. cit., p. 26.
como objecto perante a mente297. "Ao distinguir sentido e referência em cada expressão, Frege
não é obrigado a atribuir correlatos mais ou menos evanescentes às frases sem referência"298.
Definitivamente, o sentido de um nome próprio não depende, de forma alguma da existência
do seu referente.
Este passo dado por Frege na elucidação da noção de referência é fundamental e
decisivo para uma progressiva definição da referência distinguindo-a de noções próximas e
afins, mas não identificáveis: em primeiro lugar, para uma clara distinção entre referência e
objecto (será esta identificação que conduzirá Russell às ambiguidades das suas "denoting
phrases"); em segundo lugar, para uma demarcação da questão da referência em relação à
questão da verdade. Em lugar de admitir várias modalidades de ser (como a introduzida por
Russell, entre being e existence), conforme os diversos universos do discurso, Frege situa
inequivocamente a questão da verdade num só tipo de discurso, que se contrapõe a todos os
outros, fazendo notar que a questão da referência real não se coloca nestes últimos299; em
último lugar, ao afirmar a existência como um predicado de segundo nível, Frege desloca a
questão do âmbito dos nomes próprios, para o âmbito dos predicados. Por isso designar ou
referir um objecto não pode conter nem implicar uma posição de existência, pois para isto se
exige o nível da predicação que, como vimos constitui uma relação referencial essencialmente
diferente da mera denominação. Afirmar a existência exige subir do primeiro nível, da
linguagem-objecto, dominado pelo modelo nome-portador, para um nível mais elevado, para
o qual se torna necessário encontrar um adequado modelo referencial (II.2.3).
2.2 Referência e Verdade
Todo o ensaio SB é dedicado à exploração da referência das expressões completas.
Depois do modelo apresentado para os nomes próprios, Frege passa à investigação da questão
no caso das proposições: "Agora passemos a investigar qual seja o sentido e a referência de
uma sentença assertiva completa"300. Toda a proposição contém um pensamento, mas este não
pode constituir a sua referência, pois pode variar o sentido, isto é, o pensamento, mantendo-se
o mesmo valor de verdade de uma proposição. O pensamento expresso nas proposições nem 297 Cfr. GIL, F., ob. cit., p. 121.298 Cfr. GIL, F., ob. cit., p. 119.299 Cfr. GIL, F., ob. cit., p.122.300 SB, Kleine Schriften, p. 148: "Wir fragen nun nach Sinn und Bedeutung eines ganzen
Behauptungssatzes."
sempre nos satisfaz, pois em muitos casos perguntamos pelo seu valor de verdade. É pois a
busca da verdade que nos dirige do sentido para a referência301, o que leva a concluir que o
valor de verdade de uma frase é a sua própria referência. O modelo do nome-portador, até
certo ponto mantém-se, na elucidação da referência das proposições, pois cada frase
verdadeira designa o verdadeiro, tal como um nome designa o seu objecto. A primeira e
imediata consequência a inferir desta tese é a de que todas as proposições verdadeiras terão o
mesmo referente, assim como todas as falsas. A relação da proposição ao verdadeiro, ou ao
falso é visionada, como dissemos, como uma relação da parte ao todo, de um modo análogo
ao da relação de um nome próprio ao objecto (o sentido expresso pelo nome é um aspecto,
uma parte do referente na sua totalidade).
Esta analogia permite considerar o verdadeiro como algo extra-linguístico,
independente da própria expressão e do próprio pensamento, tal como o objecto (referente do
nome) se apresentava independente e não determinado pelo sentido que exprimisse o nome. O
ser verdadeiro não é um predicado que se possa atribuir a algumas frases, como erroneamente
por vezes, a linguagem pode levar a pensar. Quando dizemos "o pensamento de que 5 é um
número primo é verdadeiro", esta frase nada acrescenta à simples asserção "5 é um número
primo". A relação do pensamento com o verdadeiro não se pode identificar com a relação do
sujeito ao predicado, relação lógico-gramatical, que se dá no mesmo nível do pensamento,
sem que se dê o passo do pensamento ao seu referente. Um valor de verdade para Frege não é
uma parte do pensamento, como não o é o sol, mas sim um objecto.
Esta perspectiva reforça a concepção realista da semântica fregeana, mas não pode ser
levada ao extremo de considerar o valor de verdade de uma proposição como uma entidade,
com a qual se relacionasse o próprio pensamento. A concepção da verdade em Frege passa
justamente entre estas duas margens que lhe definem e marcam o curso: por um lado a tese de
que o verdadeiro é um correlato extra-linguístico, independente portanto do pensamento e da
sua expressão, de carácter atemporal, como se comprova no texto de SB e em "Der Gedanke";
por outro lado, neste último escrito, a negação de que o verdadeiro seja algo que sirva de
segundo termo de comparação com o pensamento. Frege detecta as aporias da definição da
verdade em termos de correspondência, mostrando como a teoria da verdade como mera
adequação é inviável. Em primeiro lugar, a atribuição da verdade a imagens ou representações
constitui uma deslocação incorrecta da questão da verdade, com consequências graves: uma
imagem (Bild), argumenta Frege, como simples objecto visível pode ser considerada como
301 Ibid., p. 149: "Das Streben nach Wahreit also ist es, was uns überall vom Sinne zur Bedeutung vorzudringen treibt.".
verdadeira? Então por que não considerar também verdadeira uma pedra ou uma folha? Frege
considera inaceitável uma concepção da verdade colocada a este nível representativo: "se eu
não sei que uma imagem deveria representar a Catedral de Colónia, também não sei com que
devo comparar essa imagem, para decidir sobre a sua verdade. Uma concordância só pode ser
perfeita quando as coisas concordantes coincidem, isto é quando não são coisas diferentes.
Poder-se-ia verificar a autenticidade de um bilhete de banco sobrepondo-o
estereoscopicamente a um autêntico. Mas a tentativa de sobrepor estereoscopicamente uma
moeda de ouro a uma nota de vinte marcos, seria ridículo. Conseguir sobrepor exactamente
uma representação a uma coisa, só seria possível se também a coisa fosse uma
representação"302.
Para alcançar o âmbito da verdade é necessário "ganhar altura gnoseológica"303, deixar
o plano representativo para aceder ao nível proposicional, ao âmbito do saber e do pensar. É
exactamente o que faz Frege ao situar a questão da verdade no plano dos pensamentos
(proposições), não como seu predicado, e portanto como parte integrante do próprio
pensamento, mas como sua referência. Em que consiste, pois, para um pensamento, ser
verdadeiro? Não se trata de uma relação entre a proposição e um facto, ou um estado de
coisas nela representado; não se trata de descobrir o estado de coisas descrito ou re-figurado
pela proposição, e comparar os dois termos, para verificar se correspondem. Os factos, para
Frege, não são constituintes da realidade, portanto não são os referentes dos pensamentos.
Não têm um lugar na ontologia fregeana, ao lado dos objectos, valores de verdade, conceitos,
relações e funções304. Os factos, para Frege são pensamentos que são verdadeiros. Dizer: "É
um facto que Aníbal atravessou os Alpes" é um outro modo de dizer "o pensamento de que
Aníbal atravessou os Alpes é verdadeiro". Não podemos dizer que um pensamento é
verdadeiro porque corresponde a um facto: se o pensamento for verdadeiro, então ele é um
facto, não há dois termos entre os quais se possa estabelecer uma relação de
correspondência305.
302 G, Logische Untersuchungen, p. 343.303 A expressão é de LLANO, A., ob. cit., p. 186.304 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 442.305 Cfr. ibid., p. 369: "It is, indeed, a conspicuous feature of Frege's ontology that he invokes no such
entities as facts, as other philosophers have done, to serve as that which true thoughts correspond to, or as what make true thoughts true. On the contrary, for Frege a fact is simply a true thought: the relation between a thought and the related fact, if there is one, is not of correspondence, but that of complete coincidence. Russell, at one time, held the same about propositions and facts: but the difference is that, for Frege, thoughts, and therefore facts, belong to the realm of sense and not that of reference; an ingredient of a fact, i.e. of a true thought, may therefore be the sense of the name "Mount Everest", but it could never be the mountain itself, whereas for Russell the actual objects which are the denotations of proper names are constituents of propositions, and, when these are true propositions, therefore of facts".
Frege não apresenta nenhuma definição de verdade, apenas mostra que a questão nasce
com o pensamento proposicional, e nunca no plano representativo, e que não há possível
comensurabilidade entre um pensamento e um facto. Neste sentido, o modelo referencial
pensamento-verdade, embora conserve do modelo anterior nome-objecto a sua dimensão
realista, por manter-se como correlato extra-linguístico, exige um novo tratamento que ajuste
o modo de referir ao pensamento proposicional.
II.3 REFERÊNCIA DAS EXPRESSÕES INCOMPLETAS
Uma das teses mais polémicas da lógica filosófica de Frege é a sua atribuição da
distinção entre sentido e referência, não só às expressões completas (nomes e proposições),
que é o tema de todo o ensaio SB, mas também às incompletas – predicados, expressões
relacionais e funcionais. Que estas expressões tenham um sentido, parece estar justificado
pela própria concepção fregeana da linguagem como uma praxis consciente, intelectual, sendo
o sentido o seu elemento cognitivo, presente em qualquer acto linguístico; mas atribuir-lhe
uma referência, ou um referente, parece bastante problemático. Como foi dito, Frege utiliza
indistintamente os termos referência e referente. Poderíamos considerar uma diferença,
entendendo por referência o próprio processo semântico de referir, e por referente o correlato
propriamente dito, ou o próprio "complemento directo" do acto transitivo de referir. Neste
sentido, atribuir aos predicados uma referência poderia ser entendido como a sua capacidade
de designar algo, capacidade ou atributo comum a todo o sinal, sem nenhum envolvimento de
compromisso ontológico. Atribuir-lhe um referente, pelo contrário, seria atribuir-lhe um
correlato extra-linguístico, existente de algum modo. Neste caso, o modelo nome
próprio/objecto seria perfeitamente analogado à relação predicado/referente, isto é, haveria
algo pelo qual, ou em vez do qual está o predicado, como seu representante. É nestes termos
que a tese da atribuição de referente às expressões incompletas parece atingir as proporções
de um paradoxo, ou de um "excesso metafísico"306. As dificuldades que levanta levou alguns
dos estudiosos de Frege a negar pura e simplesmente, que Frege tenha estendido a sua
distinção entre sentido e referência, às expressões incompletas. Marshall307 por exemplo,
defende que, embora Frege tenha utilizado a palavra Bedeutung em relação às referências
incompletas, não tinha a intenção de que essa expressão fosse entendida do mesmo modo que
para a referência dos nomes próprios: no caso dos predicados, pensa Marshall, Frege
empregava Bedeutung no sentido corrente de significado (meaning), isto é, corresponderia ao
Sinn e não ao Bedeutung dos nomes próprios e para os predicados, Frege pura e simplesmente
não utilizava a palavra Sinn. Dummett308 diverge desta tese de Marshall, embora
reconhecendo que a partir dos escritos de Frege seja difícil refutar esta explicação. Com
efeito, Frege não afirma nunca que Bedeutung quando aplicado a expressões incompletas,
deva ser entendido de um modo análogo ao que é aplicado a nomes próprios; tão pouco 306 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 204.307 MARSHALL, W. "Sense and Reference: A Reply", in KLEMKE, ob. cit., pp. 298-320.308 Cfr. DUMMETT, ob.cit., p. 204.
defende que as expressões incompletas devem ter uma referência, assim como um sentido, ou
que, no seu caso, tal como no dos nomes próprios, a referência seja insuficiente para
determinar o sentido. A verdade é que no Ggf, por exemplo, Frege fala extensamente dos
sentidos das expressões incompletas, defendendo que esses sentidos deverão ser também
incompletos, mas não menciona nunca o termo Bedeutung o que poderia levar à conclusão de
que Frege, no final da sua vida, teria abandonado a tese da distinção entre sentido e referência,
ou pelo menos que a teria restringido definitivamente ao caso dos nomes próprios. Por isso
Dummett baseia a sua argumentação para defender a atribuição de Bedeutung às expressões
incompletas, fundamentalmente em textos publicados postumamente.
No entanto, a tese parece estar bem presente em todo o pensamento fregeano, mesmo
desde o período dos Grl: vejamos alguns desses textos em vida de Frege, que comprovam que
a distinção semântica e a atribuição de referência, sempre estiveram presentes na mente de
Frege, também, para os predicados, expressões relacionais e funcionais309.
Em "Über die Wissenschaftliche Berechtigung einer Begriffschrift", texto de 1882310,
Frege escreve:
"A linguagem é defeituosa para prevenir defeitos de pensamento. Não satisfaz à
condição primordial, a da univocidade (...). Entre muitos exemplos, citaremos um bem típico:
a mesma palavra serve para designar um conceito e um objecto particular que cai sob esse
conceito; de uma maneira geral, não há nenhuma diferença assinalada entre o conceito e o
objecto particular. "O cavalo" pode designar um indivíduo, mas também a espécie, como na
proposição "o cavalo é um herbívoro"; e cavalo pode também designar um conceito, como na
frase "isto é um cavalo".
309 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 71, refere fundamentalmente os textos seguintes: "Über die Wissenschaftliche Berechtigung einer Begriffsschrift" (1882); Grl, § 51 e BG; cfr. textos citados por KLEMKE, ob. cit., p. 71.
310 O texto é citado por ANGELELLI, ob. cit., p. 87 nota 176, em alemão: "Von vielen Beispielen mag nur eine durchgehende Erscheinung hier erwähnt werden: dasselbe Wort dient zur Bezeichnung eines Begriffes und eines einzelnen unter diesen fallenden Gegenstandes. Überhaupt ist kein Unterschied zwischen Begriff und Einzelnem ausgeprägt. 'Das Pferd' kann ein Eizelwesen, es kann auch die Art bezeichnen, wie in dem Satze: 'das Pferd ist ein pflanzenfressendes Thier'. 'Pferd' kann endlich einen Begriff bedeuten wie in dem Satze: 'dies ist ein Pferd' ".
É possível conjecturar que Frege tem aqui já formulado o seu posterior requisito de
que os conceitos sejam os designata das expressões insaturadas. Deste modo a questão da
insaturação não seria simplesmente uma reacção à crítica de Kerry, mas uma perspectiva
original. Na última frase, o "nome" do conceito seria "... é um cavalo".
Nos Grl, Frege manifesta também defender uma distinção paralela entre nomes de
conceitos e de objectos:
"Um termo conceptual geral designa precisamente um conceito. Só com o artigo
definido ou com um demonstrativo é que vale como um nome de uma coisa, mas (...) o nome
de uma coisa é um nome próprio"311.
Além disso há a definição por demais citada de que o conceito é a referência de um
predicado gramatical312.
Encontram-se portanto, não só em escritos póstumos, mas ao longo de toda a obra de
Frege, passagens suficientes para formular a tese da semântica própria dos termos
conceptuais, que tem a principal vantagem de libertar a semântica dos termos universais de
uma tradicional confusão enraizada nas ambiguidades do próprio quadrado ontológico
aristotélico, e que viria a culminar na distinção de Stuart Mill entre denotação e conotação313.
Para Aristóteles, "branco" designa tanto a qualidade (ou atributo, propriedade, acidente
universal), como o sujeito singular que é branco314. Portanto "branco" é, indistintamente, tanto
um termo singular, como universal, tanto designa os indivíduos (singulares) nos quais inere
essa propriedade (universal), como o próprio universal, em si mesmo considerado. Ora
precisamente Frege, com a sua noção de objecto, e o princípio da radical distinção entre
conceito e objecto contorna (ou ultrapassa) o tradicional dilema singular/universal. Por isso,
resolvendo a tradicional ambiguidade da semântica dos predicados, Frege elimina pura e
simplesmente deste domínio, os indivíduos que caem sob o conceito315. Por esta mesma razão,
rejeita Frege a designação de termos gerais ou termos comuns, utilizando sempre a expressão
"termo conceptual" (Begriffswort). Os termos comuns parecem ser nomes de muitas coisas,
quando na realidade a palavra "homem", por exemplo não tem nenhuma relação semântica,
directa, com todos os indivíduos que caem sob o conceito homem. Trata-se de uma relação
mediata, mediante a referência (relação semântica) do termo ao conceito. Quando muito,
poder-se-ia conceder que "homem" tem uma relação de andeuten (indicar) com os homens316.
311 Grl, § 51.312 Cfr. BG, Kleine Schriften, p. 168.313 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 71.314 ARISTÓTELES, Metafísica, Z, 6, 1031 b, p. 23-25.315 Cfr. Carta de Frege a Husserl (citada na nota 13 de I.4).316 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 71.
Isto parece indicar claramente que Frege considera, como referente dos predicados,
não uma extensio, mas uma intensio. Com efeito, esta tese parece ter sido progressivamente
reforçada e reconfirmada ao longo da obra de Frege, e as suas ramificações invadiram os
vários domínios ou âmbitos – semântico, lógico e ontológico. Considerámos já, na parte
dedicada à lógica do conceito, a importância desta tese na constituição da filosofia da classe.
No campo da semântica, ela constitui também um ponto fulcral. Angelelli invoca quatro boas
razões para comprovar o alcance semântico desta questão317:
1º A insaturação é um ponto essencial da filosofia de Frege e segundo esta noção as
classes (ou conjunto de objectos que caem sob um conceito), que são objectos saturados,
devem ser excluídas da semântica das expressões insaturadas (como é o caso dos termos
conceptuais).
2º É uma constante da teoria do conceito de Frege, a sua formulação em termos de
notas (Merkmale), como sendo as constituintes dos conceitos. Um conceito é feito de notas,
assim como uma casa é feita de pedras. Esta aproximação confirma a perspectiva
intensionalista.
3º Que as classes têm a sua base ou fundamento nos conceitos, que lhe são anteriores,
é também uma perspectiva básica de Frege.
4º Alguns textos, sugerem explícita e inequivocamente a exclusão das extensões da
semântica dos predicados, como por exemplo: "Numa proposição que atribua um número não
são designadas directamente nem uma totalidade, nem uma extensão, nem um conteúdo, mas
só um conceito"318. Está excluída portanto qualquer relação semântica entre o predicado e a
classe.
Mas, como dissemos, é sobretudo em textos publicados postumamente que Dummett
se fundamenta para justificar que a distinção entre sentido e referência foi firmemente
mantida por Frege, para a semântica dos predicados.
Concretamente nos "Ausführungen über Sinn und Bedeutung", Frege afirma
expressamente que "a mesma distinção deve fazer-se também para os termos conceptuais"; e
317 Cfr. ibid., p. 72.318 "Rezension...", Kleine Schriften, p. 185: "…es wird in der Zahlangabe etwas von einem Begriffe
ausgesagt. Darüber werde ich nicht streiten, ob die Aussage direkt auf den Begriff und indirekt auf dessen Umfang, oder indirekt auf den Begriff und direkt auf den Umfang gehe; denn mit dem einen geschieht auch das andere. Soviel ist sicher, dass direkt weder ein Begriffsumfang noch ein Inbegriff bezeichnet ist, sondern nur ein Begriff."
em "Einleitung in die Logik" de 1906, defende definitivamente que as expressões incompletas
devem ter referência, assim como sentido319.
Dummett refere dois argumentos para comprovar a referência dessas expressões
(reporto-me ao texto de Dummett):
O primeiro: Frege afirma que uma frase (atómica) se forma colocando nomes próprios
nos lugares para argumentos de uma expressão incompleta – um predicado ou uma expressão
relacional. Os nomes próprios (em geral) têm referentes e, portanto, a frase completa tem um
referente também – o seu valor de verdade. Por isso é bastante improvável que as expressões
por meio das quais nós reunimos algumas partes simples que têm referência, não tivessem
também uma referência; se lhe faltasse, o todo formado por essas partes, ficaria também sem
referência.
O segundo: quando dizemos, por exemplo, "Júpiter é maior que Marte", estou a
afirmar uma certa relação entre o referente da palavra "Júpiter" e o referente da palavra
"Marte": esta relação deve pertencer ao reino da referência, e não ao do sentido, uma vez que
as coisas que relaciona pertencem ao reino da referência. Com efeito, como pode qualquer
coisa que pertença ao peculiar reino do sentido, atingir dois objectos que não pertencem a esse
reino? (Ou seja, como explicar o relacionamento entre o pensamento, o inteligível e a
realidade?). O "ser maior que" atribuído a Júpiter por relação com Marte deve pertencer tanto
ao mundo real, objectivo – ao reino da referência – como Marte e Júpiter.
Este mesmo texto manuscrito de 1906, fora o que Dummett invocara na sua réplica a
Marshall320. Marshall rejeita a atribuição de referência às expressões funcionais e relacionais,
criticando sobretudo a metáfora utilizada por Frege do todo e da parte: a função seria uma
parte completada (ou saturada) pelo argumento. Com efeito esta é a metáfora utilizada por
Frege, sobretudo nos Ggf:
"Na verdade há metáfora quando se transpõe para o pensamento a relação da parte ao
todo. Mas a metáfora é tão exacta e adequa-se tão bem ao conjunto, que as eventuais
discordâncias não causam nenhuma perturbação (...). Quando o pensamento satura a parte
insaturada, ou seja, completa a parte que pede complemento, o todo encontra a sua unidade.
Daí a ideia de que em lógica a composição das partes num todo procede sempre pela
saturação de um elemento não saturado"321.
319 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 206.320 Cfr. DUMMETT, "Note: Frege on functions"; KLEMKE, ob. cit., p. 295.321 Ggf, cit. nota 29 I.1.
Marshall tomando à letra esta metáfora da parte e do todo, faz ver as incongruências a
que conduziria tal noção322: considerar uma função como algo incompleto poderia significar
que se trata de uma parte a que lhe falta qualquer coisa, como uma casa sem telhado, por
exemplo, ou um livro a que lhe faltasse um capítulo. No entanto isto não é exacto, pois a uma
função não lhe falta nenhuma parte: a única coisa que lhe poderia faltar, seria o argumento
para a função, mas Frege diz que "o argumento não pertence à função, antes forma com a
função um todo completo"323. Uma vez completada pelo argumento, o que resulta já não é
uma função, mas uma expressão completa. Se uma função é completada, no sentido fregeano,
não se torna uma função completa, mas torna-se um objecto. A metáfora do todo/parte,
completo/ /incompleto, que Marshall considera o protótipo apresentado por Frege para a
noção do saturado/insaturado revela-se portanto inadequada e até falaciosa.
Ora Dummett corrobora que o próprio Frege terá considerado posteriormente a
inadequação desta metáfora, que abandonou como exemplificação da noção do insaturado/
/saturado. O exemplo seguinte, apresentado pelo próprio Frege é ilustrativo: considerando "a
capital da Dinamarca" não se pode dizer que, nesta expressão, a Dinamarca seja uma parte da
referência da expressão completa, concretamente, Copenhague. Esta é a real objecção à
metáfora: enquanto o sentido de parte de uma expressão é uma parte do sentido do todo,
temos que negar que a referência de parte de uma expressão seja parte da referência do
todo324.
Por isso, ao discutir a questão da referência das funções, conclui Dummett, será
melhor concentrar-se, não na terminologia da parte/todo, mas antes na insaturação
(Unselbständig) da função, tal como a entende Frege. E a questão fundamental será a de saber
se há no mundo algum correlato não linguístico do significado de termos como os de
conceitos e funções, ou seja se estas expressões têm, de facto uma referência (Bedeutung), que
não se esgote exclusivamente na sua função semântica. E já se mostrou que Frege se inclina
indubitavelmente para a hipótese afirmativa.
Uma vez comprovado que, tanto em textos publicados em vida de Frege, e alguns do
primeiro período (dos Grl, e antes), como em textos póstumos, Frege atribui a distinção de
sentido e referência também às expressões incompletas, e considera que têm também um
referente, duas questões se põem:
1º Qual o modelo de relação semântica entre predicados, expressões relacionais ou
funcionais, e referente? O modelo anteriormente apresentado para o caso dos nomes próprios 322 Cfr. MARSHALL, " Frege's Theory of functions and objects"; KLEMKE, ob. cit., p. 253.323 FB, Kleine Schriften, p. 128.324 Cfr. DUMMETT, "Note: Frege on functions"; KLEMKE, ob. cit., p. 296.
pode ser analogado para o caso das expressões incompletas?
2º Qual o estatuto "ontológico" desses referentes dos termos conceptuais e
relacionais, uma vez admitido que se trata de algum correlato extra-linguístico?
Passemos a examinar a primeira questão.
Vimos já, ao tratar da relação referencial nome/portador, que a referência pode ser
considerada de dois modos; fundamentalmente: como função semântica (semantic role)325, ou
como o próprio objecto – portador do nome. A primeira concepção, transferida para o caso
dos predicados, levaria simplesmente a admitir que a referência de um predicado é a sua
função semântica, o que significaria simplesmente que a referência de dois predicados seria a
mesma no caso de poderem ser substituídos numa frase, sem alteração do seu valor de
verdade. E a questão não constituiria mais problema. Mas, o que causa problema, e chega
mesmo a ser paradoxal, é a atribuição aos predicados de uma referência, não tendo em mente
o modelo da função semântica, mas o protótipo nome-portador: a referência do predicado
deverá ser portanto algo extra-linguístico, em vez do qual ocorre o predicado, numa relação
análoga à do nome-portador.
A exploração deste modelo referencial para os predicados conduz-nos ao conhecido
paradoxo da insaturação: no início do seu escrito FB, Frege começa por estabelecer a
necessidade de distinguir claramente entre os sinais e os seus designata, no caso das funções e
nomes de funções. Com a explicação da distinção, Frege afirma inequivocamente que uma
função não é um nome ou um sinal, mas sim a referência de uma expressão insaturada. O que
entende Frege por "insaturado"?
Trata-se de uma noção que se aplica primeiramente a expressões linguísticas: um sinal,
uma expressão é insaturada quando tem pelo menos um lugar vazio, onde é possível
introduzir outro sinal (nome, ou expressão) que tem o efeito de "completar" a expressão
inicial326. Funções, conceitos e relações são instaurados porque nas suas expressões há um
lugar vazio, a ser preenchido com o nome de um ou mais objectos (conforme funções de um
ou mais argumentos, ou relações, pelo menos entre dois objectos). A insaturação parece assim
coincidir com a perspectiva tradicional, segundo a qual os conceitos (predicados, universais)
envolvem uma referência aos seus "inferiores" (indivíduos, singulares), ou seja, a
predicabilidade dos conceitos parece coincidir com a noção fregeana da insaturação327. Mas,
apesar de as funções serem introduzidas como referentes de expressões insaturadas, e portanto
a insaturação ser apresentada, primeiramente como uma noção semântica, aplicável às 325 Cfr. DUMMETT, FPL, pp. 210-211.326 Cfr. ANGELELLI, ob. cit., p. 173.327 Cfr. BG, Kleine Schriften, p. 171, nota.
expressões linguísticas, Frege considera por outro lado, que a insaturação linguística não é
senão o reflexo da própria realidade e que se deve portanto atribuir com prioridade às funções
e conceitos propriamente ditos, e não às suas expressões328. "O carácter de insaturação
pertence propriamente ao domínio do sentido, e daí refere-se ao signo"329. Mas, noutros textos,
parece ser prioritária a insaturação dos nomes: como por exemplo em "O que é uma função?":
"A esta peculiaridade do sinal funcional, que denominamos de insaturação, corresponde,
naturalmente, algo nas próprias funções"330.
De qualquer forma, o que é certo é que os nomes de nomes insaturados devem ser
insaturados, e nomes de nomes saturados, devem ser saturados.
Considerando qualquer predicado, por exemplo, " é um cavalo", segundo a semântica
de Frege esta expressão está por um conceito. Se perguntarmos "por que conceito esta?", a
resposta será naturalmente "O conceito cavalo". Mas esta expressão, como o comprova o
artigo definido que a precede, é um termo singular, um nome, portanto designa um objecto. O
que leva a dizer que "O conceito cavalo não é um conceito, mas um objecto", ou "o conceito
cavalo", não é o nome de um conceito. A razão de ser deste paradoxo é que há entidades que
são definidas como referentes de expressões insaturadas (como é o caso do conceito, função e
relação), mas Frege considera que o artigo definido "o", satura (completa) a expressão,
transformando-a por isso em nome de um objecto. Daí que não seja possível, segundo Frege
designar essas "entidades" através daqueles nomes ou descrições que na linguagem corrente
são normalmente aceites como designações dessas "entidades".
Este facto é o reflexo da imperfeição e rudeza da própria linguagem corrente, que
Frege reconhece ser impossível evitar. Os nomes de entidades insaturadas são também
insaturados e, de novo os nomes de nomes insaturados devem também ser insaturados, o que
produz um infinito processo de auto-reflexão da insaturação, impossível de solucionar: "This
infinite self-mirroring of unsaturatedness involves an infinite reiteration or the paradox, which
is, indeed unsolvable"331.
Será de facto um paradoxo insolúvel, será um mero jogo de palavras irrelevante, ou
tratar-se-á de um problema verdadeiramente decisivo para a filosofia de Frege?
328 Cfr. Gg II, p. 148, nota 2.329 Ggf, KLEMKE, ob. cit., p. 541: "The unsaturatedness really emerges in the realm of sense, and is
transferred from there to the symbol".330 "Was ist eine Funktion?", Kleine Schriften, p. 279: "Der Eigentümlichkeit der Funktionszeichen, die wir
Ungesättigtkeit genannt haben, entspricht natürlich etwas an den Funktionen selbst. Auch diese können wir ungesättigt nennen und kennzeichnen sie dadurch als grundverschieden von den Zahlen."
331 ANGELELLI, ob. cit., p. 176.
Angelelli332, que refere de passagem algumas das soluções propostas, considera o
paradoxo inevitável, se se deseja permanecer dentro do sistema de Frege, mas não lhe atribui
uma importância relevante. O próprio Frege teria indicado que não há nenhuma saída, no
escrito datado de 1914 "Über Logik und Mathematik", ao qual se reporta Angelelli: "Frege
continues to maintain, as in BGGE that one has to take such expressions as 'the function...'
cum grano salis. Cum grano salis indicates that we should take into account what we mean,
and not what we say. Is this perhaps the simplest way out?".
De novo se aponta para uma inviabilidade de dizer algo que se mostra, que sugere uma
afinidade com Wittgenstein (cfr. nota 31 de I.1).
No entanto, P. Geach tinha apresentado, em 1951, uma possível solução para o
paradoxo da insaturação333, solução que, em termos gerais coincide com a proposta por
Dummett, que se baseia em alguns dos escritos póstumos de Frege. A solução proposta por
ambos envolve o recurso à quantificação de segundo nível: expressões como "o conceito
homem" ou "a função...", etc., aparentam ser logicamente simples, unidades lógicas, mas não
o são. Trata-se precisamente de predicados complexos, ou predicados de 2º nível: assim "o
conceito homem não está por um conceito", porque a expressão "o conceito homem" cinde-se
em duas, que se podem traduzir no circunlóquio "há alguma coisa que é um homem". Por um
lado há "homem" e por outro a afirmação de que "esse conceito está realizado, ou não é
vazio". Como detecta Geach, a falácia escondida na expressão "o conceito homem não é um
conceito" é a mesma que contém a expressão "alguns homens não refere (não está por)
nenhum homem definido, mas por um homem indefinido". O erro vem também de se
considerar a expressão como uma unidade lógica, portanto como uma expressão designativa,
uma expressão que possa servir de sujeito gramatical. De facto, a expressão "alguns homens
são sábios" divide-se logicamente em "homem" e "alguns... são sábios". Para negarmos a
expressão teremos que dizer "nenhum homem é sábio", e não "alguns homens não são
sábios". Isto mostra claramente como "alguns", "nenhum" forma parte do predicado, e não do
sujeito.
De modo semelhante, "o conceito homem", segundo Geach, se pode transformar na
expressão que refere "a extensão do conceito homem", e por isso não designa um conceito,
mas um objecto, a classe; ou para ver mais nitidamente a função predicativa que se esconde
na frase corrente "o conceito homem", transformá-la-emos em "há alguma coisa (alguns
332 Ibid., p. 188.333 GEACH, P. "Frege's Grundlagen"; KLEMKE, ob. cit., p. 476.
indivíduos) que são homens", ou que têm a propriedade de serem homens", ou dos quais se
pode predicar o conceito homem334.
A expressão "há alguma coisa que..." envolve justamente a quantificação de segundo
nível, como explica Dummett, que analisa detida e extensamente esta mesma solução para o
referido paradoxo. Para entender melhor o alcance da explicação, será útil recordar que uma
das descobertas de Frege que dominaram toda a evolução da sua lógica, foi a da notação dos
quantificadores e variáveis para exprimir a generalidade. Com essa descoberta, Frege resolveu
pela primeira vez, na história da lógica, o problema que causara mais frustração a todos
quantos dele se ocuparam anteriormente335. A ideia fundamental que regula toda a descoberta
da notação de quantificadores, foi precisamente a de que as frases são construídas segundo
uma série de estádios, ou níveis (Stufen) na terminologia fregeana, que correspondem
exactamente aos diferentes signos de generalidade que nela ocorrem. Uma frase pode por
exemplo ser formada combinando um sinal de generalidade com um predicado para um lugar
(one-place predicate). Este predicado é ele próprio formado a partir de uma frase da qual se
eliminam uma ou mais ocorrências de algum termo singular (nome próprio). Assim, por
exemplo, começando com a frase "Pedro inveja João", a partir desta podemos formar o
predicado para um argumento "Pedro inveja ", eliminando o nome próprio "João": a letra
grega indica aqui o lugar vazio, deixado pela supressão do nome próprio. Este predicado pode
ser combinado com o sinal de generalidade "alguém", para formar a frase "Pedro inveja
alguém". Por sua vez esta nova frase pode ser submetida ao mesmo processo: suprimindo o
nome próprio "Pedro", obtemos o predicado " inveja alguém" e combinando esta última frase
com o sinal de generalidade "todos", formar-se-á a frase "todos invejam alguém".
Esta explicação dos níveis da predicação permite a compreensão de uma outra ideia
fundamental, a da formação dos predicados complexos a partir de frases das quais se vão
suprimindo uma ou mais ocorrências de um nome próprio singular. Estes predicados
complexos são o protótipo da noção geral fregeana, de expressões "incompletas": expressões
que contêm lugares vazios, isto é, que são insaturadas. Assim, a "construção" das categorias
334 Cfr. GEACH e ANSCOMBE, Three Philosophers, p. 156: Refere o mesmo paradoxo e a solução apresentada neste artigo de 1951 (Frege's Grundlagen): "The concept horse would have to stand for a concept if it stood for anything; in fact it does not, and sentences in which it occurs are at best circumlocutory (falls under the concept horse = is a horse) and at whose philosophers' nonsense". Cfr. GEACH e ANSCOMBE, Three Philosophers, p. 156: Refere o mesmo paradoxo e a solução apresentada neste artigo de 1951 (Frege's Grundlagen): "The concept horse would have to stand for a concept if it stood for anything; in fact it does not, and sentences in which it occurs are at best circumlocutory (falls under the concept horse = is a horse) and at whose philosophers' nonsense".
335 DUMMETT, FPL, p. 8: Reporto-me a todo o capítulo segundo da obra de Dummett que apresenta uma pormenorizada exposição sobre os quantificadores; e ao capítulo terceiro, sobre a hierarquia dos níveis de predicação.
de expressões da linguagem, segundo Frege, procede a partir das expressões completas
(nomes próprios e frases, as duas categorias da base da hierarquia dos níveis), para os níveis
acima formados pelas várias espécies de expressões incompletas. Primeiro, temos as duas
categorias de operadores que formam uma frase complexa quando combinados com uma ou
mais frases respectivamente. Seguidamente, os predicados de um argumento, do primeiro
nível, isto é, expressões incompletas que formam uma frase com a ocorrência de um nome
próprio; e a categoria das expressões relacionais (de dois argumentos), do primeiro nível, isto
é, expressões incompletas que resultam de uma frase depois da supressão de uma ou mais
ocorrências de cada um dos dois nomes próprios. Assim obtemos as várias categorias das
expressões incompletas do primeiro nível: predicados de um argumento (one-place), relações,
ou funções de dois argumentos.
Para passar à consideração dos predicados de segundo nível, teremos que preencher o
lugar do argumento de um predicado, com um predicado de primeiro nível: assim como o
modo mais simples de formar uma frase a partir de um predicado de primeiro nível, é inserir
um nome próprio no lugar do argumento, assim também, o modo mais simples de formar uma
frase a partir de um quantificador é conectá-lo com um predicado do primeiro nível. Por
outras palavras, um predicado do segundo nível deste tipo é uma expressão incompleta
formada a partir de uma frase pela supressão de uma ou mais ocorrências do mesmo
predicado do primeiro nível.
Esta teoria dos níveis de predicação está na base da solução possível para todo este
imbróglio da insaturação. A raiz de todo o aparente paradoxo, está precisamente no modo de
empregar palavras como "conceito", "relação" e "função"336. Enquanto a palavra objecto
desempenha claramente a função de um predicado de primeiro nível, de tal modo que " é um
objecto" será uma expressão correcta desde que se substitua "" por um nome próprio, o
mesmo não acontece com a palavra "conceito", ou "função" ou "relação": a expressão " é um
conceito" nunca dará origem a uma expressão correcta se preenchermos o lugar vazio
indicado por "" com o nome de um objecto, mas só se o preenchermos com uma "expressão
predicativa de primeiro nível". Por isso a expressão " é um conceito" ou " é uma relação" é
uma frase logicamente mal construída, sempre que se preencham os lugares vazios com
nomes de objectos, e uma vez excluídos estes pseudo-predicados, já não há modo de construir
as frases paradóxicas como "O conceito cavalo não é um conceito".
Daí os circunlóquios para explicitar em unidades lógicas expressões como "Há algo a
que o predicado 'é um filósofo' se refere" – a palavra algo (alguém) não está a designar
336 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 213.
nenhum objecto que seja o referente do predicado, mas deve ser interpretado como
significando generalidade de segundo nível. O que a frase diz é que há alguma coisa como "o
que ' é um filósofo' refere", isto é há algo que é "ser um filósofo". A expressão "o que 'é um
filósofo' refere" deve ser entendida como uma expressão predicativa, e não como uma
descrição definida. A expressão refere, embora não nomeie nenhum indivíduo particular, que
tenha a propriedade de ser filósofo; a expressão designa directamente essa mesma propriedade
de ser filósofo.
Como é patente há aqui uma divergência fundamental entre o critério de Frege para a
existência de um conceito e aquele que é implicado no uso da generalização de segundo nível
na linguagem natural. Para Frege, tanto um predicado que não se aplique a nada, quanto um
predicado em si mesmo contraditório, têm também uma referência, como qualquer outro. Isto
parece indicar que o recurso à quantificação de segundo nível como critério de existência não
se sustém como solução decisiva para a questão da referência dos predicados. Até aqui,
seguindo a solução proposta por Dummett, baseada na teoria dos níveis de predicação e na
notação dos quantificadores, tudo parecia indicar que a existência dos conceitos, ou seja, dos
referentes dos predicados, requeria, para a sua adequada expressão, o emprego da
quantificação de segundo nível. E esta explicação parecia aproximar Frege da teoria de Quine,
segundo a qual "existir é ser o valor de uma variável" ("to be is to be the value of a variable").
Este é o critério de qualquer compromisso ontológico em relação a um certo nível de
entidades, o desejo de quantificar sobre essas entidades, ou pelo menos de fazer uma
afirmação de existência que envolva quantificação. Portanto, para Quine, a existência de
conceitos, ou a atribuição de referência aos predicados, coincide exactamente com a
permissibilidade de quantificação de 2º nível, ligando predicados-variáveis.
Para Frege, porém o recurso à quantificação do 2º nível, embora tenha sido a sua
solução lógico-semântica para resolver questões da referência das expressões incompletas (e
predicados complexos), não foi nunca critério para decidir da existência dos conceitos, como
referentes dos predicados. Frege considera que a qualquer expressão, seja de que nível for,
que forme uma unidade lógica, se deve atribuir uma referência. Isto indica claramente uma
divergência profunda entre Frege e Quine: para Quine, uma linguagem que não envolva
quantificação, não envolve nenhum compromisso ontológico, nem mesmo quanto à existência
de objectos que fossem os portadores (referentes) dos nomes. Para Frege, dever-se-á atribuir
referência aos predicados, mesmo antes de que se possa introduzir a quantificação de qualquer
tipo337.
337 Cfr. DUMMETT, FPL, p. 225.
Teremos portanto de concluir que afinal a quantificação de segundo nível (sobre
conceitos), não constitui, no pensamento de Frege a verdadeira solução para a semântica dos
predicados? De facto, se uma linguagem não contiver quantificação sobre os referentes de um
dado tipo de expressões, não é possível exprimir, dentro dessa mesma linguagem a proposição
de que essas expressões têm referência. Mas esta exigência só se dá se o modelo único da
referência, for o do nome-portador, como protótipo para todos os tipos de expressões.
Portanto, o que se pode concluir é que, para construir a referência dos predicados, segundo o
modelo do nome-portador, é necessário admitir a quantificação de segundo nível. Mas se,
pelo contrário considerarmos que este modelo não se adequa exactamente ao caso da
referência dos predicados, baseando-nos na afirmação de Frege de que a quantificação
universal não envolve necessariamente referência a todos os objectos do respectivo domínio,
teremos que recorrer a outro modelo para explicar esta referência. Com efeito Frege afirma
que, ao dizer "todos os homens são mortais", ninguém tem em mente um certo chefe africano
de quem nunca ouviu falar. A referência portanto não diz respeito a todos os indivíduos da
classe humana, mas ao atributo, à propriedade de ser homem. Para além dos indivíduos (ou
dos objectos), estas expressões predicativas, mostram pois, claramente algo distinto deles,
mas que é neles, que se diz deles: algo que todos os indivíduos não esgotam plenamente, algo
do qual se pode falar, mas que escapa à nomeação (ou denominação). Isso, que escapa à
nomeação, embora apareça nas expressões predicativas, é propriamente o conceito. Tal como
Frege escrevera nos Grl (§ 36)338 a propósito do uno, que este "nos escapa entre os dedos",
também a referência dos predicados e outras expressões incompletas parece escapar-se entre
as palavras porque foge à nomeação.
Não sendo o modelo do nome-portador, o protótipo para dar conta da referência dos
predicados, a quantificação de segundo nível (quantificação sobre conceitos) deixa de ser um
factor imprescindível e decisivo para a compreensão deste processo de referência. A ausência
de quantificação, para Frege, não implica, como para Quine, impossibilidade de referir,
embora implique impossibilidade de nomear (ou denominar): a referência dos predicados e
outras expressões incompletas não pode ser denominada, precisamente porque essa referência
é também incompleta, é também insaturada.
Concluindo: o paradoxo da insaturação não encontra de facto, dentro do sistema de
Frege, uma solução no recurso à quantificação de 2º nível. Mas o paradoxo só se mantém, se
insistirmos em querer impor como modelo único para a referência, o da relação nome-
338 Cfr. Grl, § 36.
portador, ou seja o processo de denominação. Porque não são objectos, os conceitos
(referências dos predicados) não poderão nunca ser logicamente, em sentido estrito,
designados por um nome, e por isso as expressões como "o conceito de...", ou "a função de..."
são enganadoras, porque levariam a uma reificação, ou a uma objectivação dos mesmos. O
recurso à quantificação de segundo nível provém exactamente da extensão do processo da
denominação, como processo referencial por antonomásia, ao caso das expressões
incompletas. Tal recurso é para Frege a solução lógico-semântica para a construção de uma
linguagem extensionalista, quantitativamente rigorosa e determinada. Mas a quantificação não
assume nunca, em Frege o carácter de critério de existência exclusivo, tal como acontece em
Quine.
Assim, o paradoxo poderá ser interpretado, fundamentalmente como um sinal de
proibição, que indirectamente indica a via a seguir, isto é, que a questão da referência dos
predicados e das expressões incompletas não encontra uma solução se se adopta literalmente o
modelo denominativo da referência. É uma espécie de redução ao absurdo, que comprova a
existência de um outro modo de referir que não o substancialista, objectivista e reificante,
próprio dos nomes. Segundo este modelo da referência, o único modo de ser ou de existir, é
de facto o de ser um "valor de uma variável" segundo a expressão de Quine. No entanto a
própria linguagem mostra um outro modo de ser, de existir diferente do de ser um valor de
uma variável: um modo de existir incompleto, insaturado, problemático portanto, mas que
Frege não deixa de considerar.
Afinal, aquilo que se poderia considerar como sendo uma inconsistência na semântica
de Frege, ou uma ameaça de rotura de todo o seu sistema, uma fenda radical que divide lógica
e linguagem em conceitos e objectos, em predicados (e outras expressões incompletas) e
nomes próprios, revela-se como uma trave mestra de toda a construção fregeana: uma prova
irrefutável de uma plurivocidade do predicado "existe", irredutível à univocidade do conceito
lógico de "ser um valor de uma variável", e que reclama a reformulação de uma ontologia.
3.1 Estatuto Ontológico do Conceito
Uma vez identificada a referência de um predicado gramatical com o conceito
propriamente dito (ou a de uma expressão funcional, com a função, a de uma expressão
relacional com a relação), e assinaladas as peculiaridades do modelo referencial para este tipo
de expressões, resta-nos a resposta à segunda questão formulada (cfr. p. 131): qual o estatuto
ontológico que Frege atribui aos conceitos e outras funções? Poder-se-ia objectar que se trata
de uma questão ontológica, por si irrelevante para uma elucidação lógico-semântica do
conceito. É certo que todo o pensamento de Frege parte da análise lógica da linguagem –
matemática, e natural. Mas ninguém contesta que o interesse e o alcance da problemática
fregeana, não se confinou de modo algum ao domínio lógico-linguístico – que em Frege
assume sobretudo um estatuto metodológico. Só um exagerado e rígido "espírito de escola" é
que poderia impedir de considerar Frege como um ontólogo, embora os seus escritos, segundo
uma catalogação rigorosa se encontrem sobretudo no âmbito da filosofia da matemática e da
lógica. Não se trata aqui de defender a tese de uma "ontologia fregeana" – tema por demais
debatido e não por isso menos sugestivo e rico –, mas de examinar quais as teses ontológicas
mais plausíveis, implicadas na sua lógica e semântica do conceito, deixando apenas em
esboço o que poderiam ser as estruturas fundamentais de uma ontologia fregeana.
O exame dessas teses de Frege, implicadas na sua lógica e semântica do conceito
requer uma breve análise prévia da questão do nominalismo ou realismo fregeanos339. O
interesse da questão não é propriamente o de decidir da posição de Frege face à reiterada
querela dos universais e encontrar o seu adequado posicionamento entre "nominalistas" e
"realistas platónicos", etc., mas sim o de comprovar como a resposta a dar à questão do
estatuto ontológico dos conceitos e funções, serve como que de catapulta, que projecta todo o
pensamento fregeano em sistemas completamente opostos: ora uma espécie de
transcendentalismo, ora num realismo de tipo platónico, ora num puro nominalismo.
A principal atribuição de nominalismo à construção de Frege, partiu do Prof. Gustav
Bergmann, que, no artigo intitulado "Frege's Hidden Nominalism"340, considera que se
esconde uma latente tendência para o nominalismo, precisamente no facto de Frege englobar
a noção de conceito (universal) na de função. Uma função é uma realidade incompleta,
insaturada (entidade sincategoremática), com um "fraco" estatuto ontológico. A relação da
função com os seus argumentos é designada pelo termo de aplicação (mapping), que consiste
fundamentalmente numa regra de aplicação, segundo a qual se aplica cada membro de uma
das duas classes sobre um, e só um membro da outra classe. Uma regra de aplicação é
portanto algo de muito mais inconsistente, menos real, menos palpável, menos substancial do
339 A questão é discutida numa série de ensaios de BERGMANN, GROSSMAN e KLEMKE, publicados em KLEMKE, Essays on Frege; G. BERGMANN " Frege's Hidden Nominalism", ibid., p. 42; E.D. KLEMKE, "Professor Bergmann and Frege's 'Hidden Nomalism'", ibid., p. 68; GROSSMAN, "Frege's Ontology", ibid., p. 79; BERGMANN, "Ontological Alternatives" ibid., p. 113; E. D. KLEMKE, "Frege's Ontology: Realism", ibid., p. 157.
340 Ibid., p. 42.
que aquelas coisas às quais se aplica. No caso do conceito, a relação entre um indivíduo e um
carácter (universal, propriedade) é designada por exemplificação: assim, o indivíduo Pedro
exemplifica a propriedade de ser loiro. Bergmann considera que Frege assimilou a relação de
exemplificação (uma relação ontologicamente mais forte e consistente), à relação de
aplicação, e aqui precisamente se esconderia a sua tendência nominalista. Partir da noção de
função numérica e seus argumentos, para a noção de conceito (universal, propriedade) e seus
indivíduos, implicaria um enfraquecimento do realismo desta última relação. Um realista,
pensa Bergmann, parte dos indivíduos e seus caracteres, e nunca dos números e suas relações.
Embora se trate de um nominalismo "escondido", latente, na noção de função e sua aplicação
(mapping), ele estende-se à própria noção de conceitos e seus indivíduos341.
É de notar, porém que esta concepção de G. Bergmann assenta na ideia de que a noção
de função matemática e sua aplicação é algo de menos real do que as coisas às quais se aplica
(os números), fruto de uma regra que Bergmann apresenta como algo de subjectivo,
estabelecida e formulada pelo matemático, com um carácter quase arbitrário. Enquanto um
conceito (carácter, propriedade) existe nos indivíduos, uma função não existe nos números de
uma forma necessária. Existem números, independentemente do facto de serem argumentos
ou valores de uma função. E, embora Frege insista variadas vezes no carácter objectivo da
função, Bergmann considera que não conseguiu dar à função o estatuto ontológico que atribui
aos peculiares objectos, conceitos e relações. A assimilação do conceito à função é assim uma
causa de "enfraquecimento" ontológico do carácter realista e do estatuto ontológico do
conceito enquanto universal (ou atributo, propriedade).
No entanto, penso que esta aproximação que Frege faz entre conceito e função pode
ser vista sob uma perspectiva exactamente oposta à de Bergmann: em vez de considerar que a
aproximação obriga a um "enfraquecimento" da noção realista do conceito, pode-se ver nela
antes um "reforço" do carácter realista dos números como objectos e suas relações ou funções
matemáticas. A frequência com que Frege insiste no carácter objectivo da função, a analogia
forte estabelecida entre as funções e os conceitos, a sua concepção dos números como
objectos, aponta muito mais neste sentido, do que no sentido de um nominalismo latente,
como sugere Bergmann. Frege não apresenta nunca a regra de aplicação como uma regra
subjectiva. O que se poderia dizer é que nos números há um número indefinido de possíveis
funções, cada número pode ser argumento para um número indefinido de funções. Mas esta
indefinição ou infinitude, não envolve de modo nenhum subjectivismo, não permite deduzir
que a função seja o fruto de uma regra de aplicação de origem mais ou menos subjectiva. As
341 Ibid., p. 52.
funções, na concepção de Frege, tal como os conceitos, estão lá, existem de algum modo,
mesmo antes de serem captadas pela mente de algum matemático. Não são produzidas por
ele, mas simplesmente apreendidas. Assim como um planeta, antes de ser visto pelo
astrónomo ocupa já o seu lugar entre os restantes planetas342, assim as funções, em número
infinito, estão já, de algum modo entre os números, para serem captadas. Portanto, na
concepção de Frege, a aproximação das noções de função e conceito, não contém nenhum
surto camuflado de nominalismo, mas revela antes um forte realismo no que respeita aos
objectos matemáticos e suas funções.
Em resposta à tese citada, Klemke faz notar que a noção de nominalismo em causa é a
perspectiva segundo a qual "nenhum universal (carácter, propriedade) é um existente". Neste
sentido não há dúvidas em considerar Frege como nominalista, pois não reifica, nem
substancializa os conceitos ou as funções. Mas há uma ambiguidade no emprego do termo
existência que importa clarificar. Frege não utiliza o termo "existente", e quando se refere à
existência não faz nenhuma distinção que permita atribuí-la exclusivamente aos objectos.
Bergmann reconhece que Frege não utiliza a palavra "existente", mas afirma no entanto que
Frege defenderia com certeza que tudo aquilo que se pode considerar existente é um objecto.
Identificar objecto com existente, e deduzir a não existência de conceitos e funções não são no
entanto ilações que se possam fazer dos textos de Frege: o que afirma reiteradamente é que
nem o conceito, nem a função são objectos, que função e objecto são duas coisas totalmente
separadas e distintas. Mas daqui não se pode concluir que só os objectos é que existem, nem
que as funções não existem, ou que são menos reais do que os objectos343.
Por isso mesmo, Klemke prefere desviar a discussão da questão da existência (e
dicotomia entre existentes/não existentes), para a questão da referência: o que é decisivo, para
uma compreensão do estatuto do conceito, é a tese fregeana da sua introdução como sendo a
referência de um predicado gramatical. O predicado não nomeia (ou denomina) o conceito,
mas, como termo conceptual, refere o mesmo conceito344. Klemke infere desta afirmação, que
o conceito tem uma certa "entidade ontológica": "For it may be seen that Frege follows the
same pattern as he does with respect to names and sentences, and gives ontological status to
concepts. For this notion of reference and not that of object (or existent) is, I believe, what
342 Cfr. G, Logische Untersuchungen, p. 354: "Er ist wahr (der pytagorische Lehrsatz) nicht erst, seitdem er entdeckt worden ist, wie ein Planet, schon bevor jemand ihn gesehen hat, mit andern Planeten in Wechselwirkung gewesen ist."
343 KLEMKE, ob. cit., p. 70.344 Escreve Klemke: "Naming is a special kind of referring, as when a proper name refers to an object".
Ibid., pp. 70-71. O autor apresenta uma série de textos de Frege em que o conceito é apresentado inequivocamente como uma referência.KLEMKE, ob. cit., p. 70.
indicates ontological satatus to Frege"345. O que Klemke sublinha é a importante noção de que
a referência não coincide nem se esgota com a noção de objecto, porque além dos nomes
próprios e expressões completas, também as expressões incompletas têm uma referência. Daí
deduz Klemke a atribuição de um estatuto ontológico aos conceitos e funções. E, uma vez
clarificado que os referentes dos conceitos não se identificam com as suas extensões, e que
portanto o conceito (universal) não se dilui nos próprios objectos que subsume, é evidente que
o próprio Frege considera que o conceito tem um estatuto ontológico próprio, distinto do da
mera colecção, agrupamento ou classe dos seus indivíduos.
O desvio de Klemke para a questão da referência vem reforçar a tese de que o conceito
pertence ao domínio dos referentes, tal como os objectos, os números, as classes, os valores
de verdade. O universo ontológico de Frege estaria marcado, não pela dicotomia conceito/
/objecto, mas sim pela da referência/não referência. Ao primeiro domínio, das referências,
pertencem, como se sabe, os objectos, que incluem indivíduos, números, valores de verdade,
extensões, correlatos conceptuais e funções; ao segundo, o da não-referência, pertencem os
sentidos e pensamentos. Esta dicotomia garantiria, segundo Klemke, o estatuto ontológico dos
conceitos, ao serem listados ao lado dos objectos: "He does succeed in securing full
ontological status for concepts as well as for objects. While he preserves the distinction
between objects and concepts, he does not 'increase the ontological distance between them' to
the point of denying the basic reality of the latter"346.
Mas a questão resolvida por Klemke contorna a questão ontológica fundamental, sobre
o que existe. A substituição de existente por referente, permite mostrar que, do ponto de vista
semântico, os conceitos estão "do lado" dos objectos, o que significa que, se houver algum
problema quanto ao "realismo", ele abarcaria tanto os objectos como os próprios conceitos.
No entanto, a argumentação de Klemke pressupõe uma teoria da referência com uma directa
transição para a ontologia, que, como vimos, não se adequa exactamente à teoria fregeana da
referência, que salvaguarda a autonomia e distinção dos campos semântico, lógico e
ontológico. Aliás, o próprio Klemke afirma num outro ensaio347, que as duas distinções de
sentido-referência e objecto-conceito, devem ser de algum modo mantidas sem se fundirem,
reduzindo uma à outra.
A argumentação principal de Klemke, nesta resposta a Bergmann, consiste sobretudo
em acentuar o realismo reconstrucionista de Frege (o termo é seu), mostrando que o carácter
de insaturado dos conceitos, relações e funções não permite concluir que estes não sejam 345 Ibid., p. 72.346 Ibid., p. 75.347 Ibid., p. 167.
reais, ou excluí-los da lista de "entidades ontológicas". Mas, de qualquer modo, fica por
resolver a questão do critério de existência: o que significa ser um existente, de que modo
existem os objectos e os conceitos? Toda a questão do "nominalismo" radica afinal na
determinação de um critério de existência.
Grossman348 reformula o problema, distinguindo, em Frege, dois significados do
predicado "existe": num primeiro caso fala-se de existência quando se pretende saber se um
nome próprio refere alguma coisa; no segundo caso, quando se trata de saber se um conceito
subsume ou não algum(s) objecto(s). Neste contexto, Frege argumenta do seguinte modo:
considerando que a coisa designada por um nome próprio é a extensão do nome, e julgando
equivocadamente que um termo conceptual se refere à sua extensão, pode-se pensar que um
nome próprio sem referência é ilegítimo, ou que um termo conceptual sem referência é
igualmente ilegítimo. Contra esta perspectiva, Frege afirma que um termo conceptual não
refere uma extensão, mas sim um conceito, e o caso de não haver nenhum objecto que caia
sob o conceito, não impede que o termo refira na mesma o conceito. Portanto, para Frege
existem objectos e existem conceitos: no entanto, o modo de existência é exactamente o
mesmo? É evidente que não. Como é óbvio, os conceitos não existem do mesmo modo que os
objectos do mundo externo, localizáveis no espaço e no tempo, captáveis pelos sentidos. Se se
entender por "nominalismo" a perspectiva segundo a qual as propriedades ou os universais
não são localizáveis no espaço e no tempo, então Frege foi decerto um nominalista. Trata-se
no entanto de um nominalismo muito peculiar, pois, embora negue a localização dos
conceitos e funções no espaço e no tempo, Frege afirma reiteradamente a sua existência. A
prova irrefutável de que existem é o facto de poderem ser apreendidos pela mente, argumento
que para Frege é tão forte e decisivo como os dados dos sentidos (sense data): "o que existe,
neste sentido é o que pode entrar em contacto (interact) com as mentes"349.
A conclusão de Grossmann, no que respeita ao critério de existência de Frege é a de
que os conceitos não existem, em termos de localização espacio-temporal e neste sentido
Frege poderia ser considerado como um nominalista, mas, na medida em que Frege defende
abertamente que os conceitos são reais porque podem ser apreendidos (e não produzidos) pela
mente, Frege deve ser considerado fortemente realista. Um realismo peculiar também que
348 Ibid., p. 94.349 Cfr. G, Logische Untersuchungen, pp. 360-362: Frege distingue o conceito de realidade como
objectividade, do conceito de realidade como actualidade (Wirklichkeit); os pensamentos são reais, objectivos, embora não tenham, por si mesmos actualidade; só actuam, entram em acção, ao serem apreendidos por uma mente. Por isso, os pensamentos não são de modo algum irreais, mas a sua realidade é de uma natureza diferente da realidade das coisas.
confere aos conceitos um estatuto ontológico caracterizado pela objectividade, mas
nitidamente distinto da actualidade: são objectivos, mas não são objectos, são reais, mas não
são completos, saturados. Aqui radica precisamente a principal dificuldade para reconhecer o
"realismo" fregeano e a tendência para descobrir no seu pensamento um nominalismo latente:
a que nasce de considerar que apenas os objectos são as últimas entidades ontológicas, reais.
Para Frege os objectos são as únicas entidades completas ou saturadas, mas incompleto,
insaturado não significa de modo nenhum menos real, ou irreal. Ser incompleto faz parte da
própria natureza do conceito, mas essa incompletude não minimiza o seu estatuto ontológico.
A distinção fregeana entre conceitos e objectos não serve portanto como base ou fundamento
para a decisão da questão de nominalismo/realismo, pois trata-se de uma distinção dentro do
domínio das próprias entidades, a que Frege atribui realidade no sentido de objectividade.
O critério assente na base da noção de referência, para a decisão da existência, tão
pouco parece ser o adequado. Porque, como foi já dito, podemos referir-nos a coisas não
existentes propriamente ditas, sem que isso ponha em causa o processo da referência; e
porque há sentidos, como é o caso dos pensamentos, que são também, de algum modo
entidades reais, segundo o pensamento de Frege. O próprio Klemke o afirma. Sendo assim, a
sua dicotomia de referências/não referências não é totalmente explícita quanto à entidade
ontológica, ou melhor, quanto ao modo de existir dos conceitos. Qual o modo de existência
dos sentidos, nomeadamente, dos pensamentos? Existem tal como os conceitos? No entanto,
os conceitos pertencem ao domínio das referências, enquanto os pensamentos ao dos sentidos.
Não há dúvida que Frege atribui existência, ser aos pensamentos, como se pode comprovar no
seu ensaio sobre a negação ("Die Verneinung"), e no já citado sobre o pensamento ("Der
Gedanke"): "o acto de julgar não produziu o pensamento, ou constituiu as suas partes em
ordem; porque o pensamento estava já ali"; "Quando alguém apreende ou pensa um
pensamento, não o cria, mas apenas passa a uma certa relação com esse pensamento... com
aquilo que já existia antes"350.
Portanto, se também os sentidos – e não só as referências – possuem um certo estatuto
ontológico, são entidades, o que importa é encontrar os modos peculiares de existência de
cada um. Frege apresenta-nos um universo ontológico, constituído por objectos ligados,
estruturados. Como explicar essas ligações? Meras afinidades? Processos mentais? A
insistência de Frege para desinfectar essas ligações entre os objectos, dos processos psico-
epistemológicos, indica claramente que a sua perspectiva não se adequa com nenhuma destas
aparentes soluções. As ligações, as conexões, as relações entre os objectos "existem": mas
350 Cfr. G, Logische Untersuchungen, p. 354 nota.
apontam no mundo ontológico de Frege, um modo de existência muito peculiar e
problemático, que excede o âmbito e as dimensões da própria questão em termos de
nominalismo/realismo. Trata-se, não só de discutir se existem ou não os universais,
propriedades, relações ou funções, mas de averiguar que tipo de "realidades" são estas, ou seja
qual o significado do predicado "existe", quando aplicado a estas mesmas realidades.
De toda a discussão da questão anterior – referência das expressões incompletas –
podemos concluir que:
1. As expressões incompletas – predicados, expressões funcionais e relacionais – têm
um referente, tal como o têm os nomes próprios.
2. Esse referente não é, no entanto, um objecto, um indivíduo, uma realidade completa
saturada, mas sim uma realidade, tal como a sua expressão o indica, incompleta, insaturada.
3. O modelo referencial para dar conta deste tipo de expressões não se pode analogar
exactamente ao modelo apresentado para o caso dos nomes próprios (nome/portador); como é
óbvio, não sendo o referente um objecto, mas algo de incompleto, insaturado, a relação
predicado/conceito, ou expressão funcional/função, etc., não é uma relação de nomeação de
denominação, o que não significa que não seja uma relação referencial: os predicados, as
expressões funcionais e relacionais referem sem nomear, porque referem de uma forma
"aberta", insaturada. Isto não significa tão pouco que a noção de referência que está aqui em
causa seja a de uma simples "função semântica". À expressão incompleta corresponde algo na
realidade, só que esse algo não é um objecto nem um indivíduo completo em si mesmo, mas
uma propriedade (um aspecto) desse objecto, ou uma relação desse objecto com outro ou com
outros objectos.
4. Pelo dito em 3. se conclui que o sistema de Frege não se pode considerar
radicalmente como um sistema nominalista: as propriedades (os universais), que são
referentes dos predicados, existem nos objectos, não são os próprios objectos que têm tal
propriedade (x como propriedade ou atributo, é uma propriedade dos objectos y, não se dilui
nem se identifica com os próprios objectos); as relações entre objectos, referentes das
expressões relacionais, não são meras relações mentais, mas existem realmente entre os
objectos.
No entanto, é de salientar que a conclusão pelo não nominalismo de Frege, não se
baseia na dicotomia referentes/não referentes, e na identificação dos conceitos, funções e
relações com referentes. Ser referente não significa ser existente, nem ser sentido significa ser
não existente. Como foi dito, é possível fazer referência a objectos não existentes, e por outro
lado os pensamentos (sentidos das proposições), segundo Frege, também existem, de algum
modo.
A justificação do não nominalismo de Frege radica antes no seu critério de existência:
é este critério que o distingue nitidamente de um nominalista, porque Frege não considera os
indivíduos como entidades únicas na ordem do existente. No seu pensamento é possível
encontrar, não um significado unívoco para o predicado existe, mas uma plurivocidade (cfr. p.
139).
É do significado do predicado "existe" e sua plurivocidade que se tratará
seguidamente.
3.2 Referência e Existência
Nos Grl (§ 53), Frege introduz a noção de existência como propriedade de um
conceito, distinguindo propriedades e notas: as notas do conceito são as propriedades das
coisas que caem sob esse conceito, como por exemplo rectângulo é uma nota do conceito
"triângulo rectângulo". Mas dizer que não há nenhum "triângulo rectângulo rectilíneo
equilátero", é enunciar uma propriedade desse conceito, a saber, que a sua extensão é 0.
Afirmar a existência equivale portanto a negar o número 0 e trata-se de uma propriedade do
conceito. Dada a clara e radical distinção entre conceito e objecto, Frege estabelecerá que
aquilo que se pode predicar de um conceito não se pode predicar de um objecto, e aquilo que
se predica de um objecto, não se pode predicar de um conceito. Neste sentido a existência,
sendo propriedade de um conceito, não poderá ser predicada de um objecto.
Esta aproximação da existência como predicado do segundo nível, ou seja, como
propriedade, e não nota de um conceito, permite resolver algumas das aporias respeitantes à
negação da existência de objectos. Quando se nega a existência de objectos, não se está a
referir nenhum objecto inexistente, mas sim o conceito sob o qual cai esse objecto: a esse
conceito atribui-se o número 0. Não é necessário assim recorrer a esse objecto-fantasma
inexistente, porque se trata do conceito, do qual se afirma que não subsume nenhum
objecto351.
351 Cfr. LLANO, ob. cit., p. 203.
Frege, tal como Kant, ao afirmar a existência como propriedade de um conceito e não
de um objecto, recorre ao contra-exemplo do argumento ontológico352: neste caso é evidente a
interpretação da existência como nota, ou como um predicado real de um objecto. A
existência não poderá nunca encontrar-se entre as notas do conceito de Deus, simplesmente
porque se trata de uma propriedade desse conceito e não de uma nota do próprio objecto que
esse conceito subsume – Deus. Quando dizemos "Deus existe", a palavra Deus é um termo
conceptual, cujas notas são omnisciência, omnipotência, omnipresença, etc., etc.. A existência
é uma propriedade desse conceito que indica se o conceito subsume ou não algum objecto. A
palavra "existe" significa aqui simplesmente "Há Deus..." ("es gibt"), ou o conceito Deus não
é um conceito vazio.
Neste sentido a existência é portanto um conceito de segundo nível, um predicado de
predicados, uma propriedade que se pode afirmar de conceitos, mas nunca de objectos.
Afirmar a existência, como afirma Frege, é algo que tem que ver com a atribuição de um
número: em última análise existência pode considerar-se como propriedade do conceito sob o
qual cai, pelo menos um objecto. A analogia entre existência e unidade é nítida e cabe
perguntar se se poderá considerar também a unidade exclusivamente como um predicado de
segundo nível.
A palavra "unidade", como advertira Frege353 tem a propriedade de camuflar uma séria
dificuldade: a de reunir sob um mesmo conceito a identidade e a discernibilidade das
unidades. A aporia consiste em que, se quisermos dar origem ao número através da reunião de
objectos diferentes, obtemos um amontoado de objectos diversos, com todas as propriedades
que os distinguem, e não obteremos o número; se, pelo contrário quisermos construir o
número pela reunião do idêntico, os idênticos fundir-se-ão necessariamente num só um, e não
obteremos nunca a pluralidade.
Frege tenta resolver a aporia apelando para dois sentidos de unidade: "Como conciliar
a identidade e a distinção das unidades, a resposta agora é fácil. A palavra 'unidade' é utilizada
num duplo sentido. Por um lado, as unidades são idênticas no sentido explicado (...). Na
proposição 'Júpiter tem 4 luas', a unidade é 'lua de Júpiter'. Sob este conceito caem os satélites
I, II, III, IV. Pode-se dizer: a unidade à qual se refere I é idêntica àquela a que se refere II,
etc.. Aí temos a identidade. Mas, por outro lado quando se fala na distinção das unidades,
entender-se-á então a capacidade de distinção das coisas contadas"354.
352 Cfr. Grl, § 53.353 Cfr. Grl, § 39.354 Grl, § 54.
O primeiro sentido de unidade (unidade das coisas que caem sob um mesmo conceito,
e portanto são idênticas) é o que apresenta uma analogia com a noção de existência como
predicado de segundo nível. Trata-se de enunciar a propriedade de um conceito, a saber, que
sob ele cai pelo menos um objecto, não este ou aquele objecto determinado, mas um apenas,
que é só um caso do conceito em questão355. Mas, como assinala Frege, a própria acção de
contar remete para outro sentido de unidade que não envolve unicamente o sentido de
unidades iguais, de objectos pertencentes a um mesmo conceito, mas que permita considerá-
las como discerníveis entre si.
Enquanto o primeiro sentido apresenta uma nítida analogia com a existência como
quantificador existencial, existência no sentido estritamente lógico, este segundo sentido
remete para um outro sentido de existência: aquele que se predica, não dos conceitos, mas dos
próprios objectos reais que sob eles caem, a existência de cada coisa, não considerada como
um caso de uma generalidade, mas como coisa em si mesma única e irrepetível. Esta distinção
dos dois sentidos da existência – como predicado de segundo nível e como propriedade real,
de objectos – que é afinal uma consequência das distinções fregeanas entre conceito e objecto,
entre propriedades e notas dos conceitos, foi bem detectada por Frege, como o comprova o
seguinte texto da Introdução aos Gg356: "Com isto (a confusão dos lógicos psicologistas entre
conceito e objecto, propriedade e nota) se relaciona a sua concepção errada sobre os juízos da
linguagem corrente que se exprimem com "há...". Esta existência, o Sr. Erdmann confunde
com actualidade (Vol. I, p. 311), que, como vimos, também não é claramente distinguida de
objectividade. De que coisa estamos nós a afirmar que é actual quando dizemos que "há raízes
quadradas de 4"? De 2 ou de -2? Mas nem um nem outro são nomeados aqui de modo algum.
E se eu desejasse dizer que o número 2 actua ou é activo ou actual, isto seria falso e
completamente diferente daquilo que eu digo com a frase "Há raízes quadradas de 4". A
confusão é das mais grosseiras possíveis; porque não se trata de conceitos do mesmo nível,
mas sim de conceitos de primeiro e de segundo nível".
Frege refere-se aqui à noção de actualidade (Wirklichkeit), como sendo o sentido da
existência que se atribui aos objectos individuais, que podem ser nomeados (denominados),
que são actuais (efectivos) e activos (pela sua inserção em processos temporais, de mudança,
de movimento). Quando utilizamos o quantificador existencial – "Há coelhos..." – estamos a
afirmar apenas que desse tipo de objectos, há alguns, dá-se o caso que existem. Não estamos a
nomear ou a referir algum coelho particular.
355 Cfr. LLANO, A., ob. cit., p. 214.356 Gg, Vorwort, XXV.
Confundir estes vários sentidos de existência é considerada por Frege uma confusão
grosseira, que radica na falta de consideração dos diferentes níveis de conceitos. Esta
afirmação parece sugerir que a teoria dos níveis da linguagem, que tão bons resultados
demonstrara dar na lógica e na semântica de Frege, se deverá estender à própria concepção da
existência; ou, considerar que essa teoria não é senão um correlato ou um reflexo da estrutura
(da estratificação, talvez) de tudo aquilo que existe. É essa estrutura (ou estratificação) que
não permite encerrar a noção da existência numa predicação formal unívoca, mas exige uma
predicação aberta, analógica.
CONCLUSÃO
A noção de conceito foi adoptada, ao longo deste trabalho, fundamentalmente como
um ponto de mira adequado para a compreensão das teses principais da filosofia fregeana. É
de sublinhar, em primeiro lugar o facto de ser o conceito, na trajectória do pensamento de
Frege, justamente um ponto de partida, um dado originário, genuíno, e por isso, mais do que
uma teoria ou filosofia do conceito, Frege elabora sobretudo uma filosofia conceptualista do
conhecimento e do próprio real. A perspectiva inicial de considerar o conceito como função
revelou-se eficaz para detectar a dinâmica própria do conceito como estrutura formal da
realidade, como constitutivo integrante, juntamente com os objectos, desse mesmo real. Esta
visualização do carácter funcional do conceito contribui fundamentalmente para a superação
de uma perspectiva psicologista do conceito, como conteúdo ou produto mental, como
representação ou como termo final de um processo intelectual abstractivo. O conceito
distingue-se radicalmente do objecto, mas os dois elementos são constitutivos da própria
realidade, são portanto dois elementos originários, dados, genuínos, dos quais há que partir,
aos quais não falta nenhuma justificação: tentar justificar os objectos a partir dos conceitos
seria idealismo, tentar justificar os conceitos a partir dos objectos seria alguma forma de
empirismo. Frege dispensa-se, à partida de formular uma teoria explicativa da formação dos
conceitos, como se dispensa de uma teoria explicativa da constituição dos objectos, pelo
simples facto de que os toma – aos conceitos e aos objectos – como elementos originários,
indefiníveis, indemonstráveis, incontestáveis. E sobretudo porque defende cuidadosamente a
sua tarefa central, a de formular uma filosofia do pensamento, uma ciência das leis do
pensamento puro, da dependência ou da interferência de questões epistémicas ou psicológicas.
O conceito é pois tomado como pedra basilar de toda a construção lógica de Frege.
Que quer isto dizer? Em primeiro lugar, como ilação óbvia, quer dizer que a sua filosofia não
é de modo nenhum uma filosofia empirista, não parte dos sense data, nem dos objectos. Não
podemos partir dos dados dos sentidos, das sensações, porque são estes mesmos que carecem
de justificação. Frege não só não recorre à percepção sensível para justificar a construção, a
formação dos conceitos, como, pelo contrário, sugere abertamente que são os conceitos os
elementos cognitivos necessários para justificar as próprias sensações: é o conceito que se
constitui em elemento fundamental de uma teoria da percepção sensível. Este argumento
apresentado no texto Der Gedanke constitui a tese fundamental do peculiar conceptualismo de
Frege: o conceito não é o resultado de uma construção mental a partir de sensações e
percepções, o conceito está já construído, apresenta-se à mente, tal como se apresentam os
objectos.
No entanto, apesar de se darem originariamente, de uma forma genuína, como os
objectos, os conceitos não são objectos, não se apresentam à mente de um modo acabado,
saturado, completo. Defender simultaneamente que o conceito é um dado originário (não
construído nem sintetizado pela mente) e que, no entanto, não é um objecto (não se dá
completamente, é um dado e não dado), só é possível a Frege, através da sua noção de
insaturação. A insaturação joga em todo o pensamento de Frege um papel fundamental, que
lhe permitirá desenvolver uma teoria conceptualista que evita, por um lado, uma reificação ou
hipostasiação do conceito (à semelhança do eidos platónico) e, por outro, os vícios de uma
perspectiva transcendental e a sua posterior degeneração em "psicologismo". O conceito não é
"objectivável", portanto não será nunca substancializado, nunca se apresentará à mente como
objecto; e no entanto também não é uma forma da própria mente ou um produto seu,
construção sua. Trata-se de uma zona peculiar do real, uma realidade incompleta, raiz dessa
aparente ambiguidade do conceito, à qual nos referimos ao tratar da conciliação, na lógica de
Frege, da perspectiva intensionalista com a extensionalista. Nos dois domínios, o da realidade
ontológica, como no da lógica, Frege tira partido dessa ambiguidade aparente: ela não é senão
o reflexo do estatuto ontológico peculiar do conceito, que não se compadece com um
tratamento unívoco ou redutor, quer seja o de incluir o conceito no domínio dos restantes
objectos, quer seja o de o integrar num quadro de meras categorias formais do entendimento.
A elaboração de uma lógica do conceito assume assim em Frege duas tarefas
fundamentais: a distinção nítida e radical entre conceito e objecto detectando com rigor o que
é genuinamente próprio do conceito por contraposição à classe; a tentativa de construção de
uma linguagem lógica que, sem deixar de ser inequívoca, exacta e rigorosa, manifeste com
fidelidade esse estatuto peculiar do conceito.
A primeira tarefa é plenamente conseguida por Frege com a sua clara teoria do
conceito, da classe, do número; a segunda tarefa enfrenta-se com a célebre antinomia de
Russell que representa os limites ou a impossibilidade de todo o logicismo. No entanto,
parece-nos que a antinomia estaria implicitamente resolvida na anterior teoria fregeana dos
níveis da linguagem, da qual a teoria dos tipos de Russell será uma réplica no plano mais
estritamente lógico.
A desvinculação da lógica das interferências epistémicas e psicológicas levou Frege a
situar o conceito nesse domínio do objectivo não actual, domínio que firmemente é arrancado
para fora do âmbito da consciência. Ao negar aos conceitos, assim como aos pensamentos, o
estatuto de conteúdos de consciência, Frege pretende garantir a sua objectividade, a sua
realidade e autonomia: um pensamento, um conceito, não dependem do facto de serem
captados ou apreendidos pela mente. Esta autonomização do pensamento, como do conceito,
esta desnoematização do pensamento, suscita no entanto questões bastante difíceis sobre o
estatuto desse mesmo pensamento: o que será um noema sem nous? Um pensamento
completamente desenraizado de qualquer mente pensante? O "realismo" de Frege parece
excessivo, no que diz respeito a conceitos e pensamentos: fica por justificar o próprio estatuto
deste "domínio" do objectivo não actual, constituído por pensamentos, sentidos, conceitos,
relações, etc., entidades mas não "objectuais", não substancializáveis e tão pouco atribuíveis a
algum sujeito, nem individual nem transcendental; e fica por justificar também, em última
análise o modo e o porquê captamos nós esses pensamentos, conceitos e relações. Não existe
em Frege, neste caso uma teoria causal que explique a captação de um conceito, pois como se
viu, não é a partir de objectos, de sensações ou de percepções que se formam os conceitos; do
mesmo modo, não é a partir do mundo dos objectos que se forma o mundo dos pensamentos.
Estes são captados, apreendidos por uma certa visão intelectual (à qual Frege se refere em Der
Gedanke). Não há porém nada que prove ou explique essa visão, assim como não há uma
possível teoria da verdade que permita o reconhecimento de um pensamento como verdadeiro.
A teoria do conceito de Frege necessitaria de ser complementada por uma fenomenologia e
uma epistemologia, ausentes em Frege. Uma fenomenologia das operações da mente, do
entender, da noesis enquanto actividade do nous e cujo objecto é o noeta. Uma epistemologia
que teria como principal objectivo o de justificar esse duplo carácter do conceito, como
elemento formal da própria realidade extra-mental (que corresponde ao Begriff de Frege), e
como elemento analogamente "produzido", na própria mente, justificação que só poderia
radicar na conaturalidade e congenitalidade entre pensamento e ser, entre logos e physis. A
esta teoria do conhecimento caberia esclarecer cabalmente o peculiar estatuto do pensamento.
A via única que dá acesso a esse domínio do pensamento, do sentido, do conceito, é a
da linguagem, que Frege reconhece como sendo uma espécie de veste que torna os
pensamentos perceptíveis. Daí que a análise das leis do pensamento tem necessariamente que
utilizar, como instrumento imprescindível a análise da linguagem. Embora por vezes se revele
como um meio pobre, um instrumento inadequado para exprimir exactamente essas leis do
pensamento, a linguagem é sem dúvida o campo de amostragem inevitável, onde se podem
recolher os dados necessários para a filosofia do pensamento. Neste sentido Frege é, sem
dúvida, um filósofo da linguagem, o iniciador da filosofia analítica, pois recorreu
sistematicamente à análise da linguagem para elaborar a sua lógica e a sua filosofia,
reconhecendo sempre que essa era a via única de acesso ao domínio do pensamento puro. Via
única, via de acesso, que Frege no entanto não adoptou nunca como via fundante ou
fundamental. Como bem assinala Dummett, Frege diverge radicalmente das teses
fundamentais da maior parte dos posteriores filósofos analíticos, para os quais uma explicação
da linguagem pressupõe geralmente uma explicação do pensamento; muitas vezes, não só a
pressupõe, como a produz, e portanto não haverá outros meios adequados para dar uma
explicação do pensamento, a não ser via linguagem.
Em Frege é patente sempre a anterioridade e independência de uma filosofia do
pensamento em relação a uma filosofia da linguagem; esta não pode ser nunca tomada como
uma filosofia primeira ou o fundamento último e único de todo o pensamento. A tarefa de
uma filosofia da linguagem, tal como Frege a concebe será a de explicar como é que
conseguimos exprimir o pensamento que queremos através de uma determinada frase. Mas a
tarefa, difícil e mais radical, de explicar em que consiste para um pensamento, ser verdadeiro
ou ser falso, compete à filosofia do pensamento.
Frege pode pois ser considerado como um filósofo da linguagem enquanto que
elaborou e desenvolveu uma semântica inovadora e rica, cujas principais noções, sobretudo a
teoria do signo/sentido/referência, se mostraram eficazes para a compreensão das relações
entre conhecimento e linguagem. A noção de sentido, nomeadamente, contribuiu para a
elaboração de uma teoria do significado que apresenta a linguagem como uma praxis
intelectual. Mas não se trata de um filósofo da linguagem no sentido de ter atribuído à análise
linguística o papel de fundamento de toda a filosofia do pensamento, da lógica, e de ter
considerado que uma explicação do modo de funcionamento da linguagem proporcionaria de
um modo imediato uma explicação das leis lógicas do pensamento.
A semântica do conceito constitui-se, pois, no pensamento de Frege, a par da lógica do
conceito; enquanto nesta última se detecta a peculiaridade do conceito como elemento
insaturado, aberto à predicação, na primeira capta-se através da expressão dos conceitos (os
predicados), um modelo referencial que reflecte com exactidão esse carácter de insaturação ou
incompletude do conceito. A resolução que Frege apresenta para a referência das expressões
incompletas, além de evitar os paradoxos referenciais que são consequência de uma
assimilação da noção de referência à noção de objecto, proporciona excelentes pistas para a
reformulação de uma ontologia: algumas das análises do predicado "existe" permitem a
consideração de uma noção analógica da existência e a construção de uma teoria das
modalidades, a partir das noções fregeanas de possibilidade, actualidade e necessidade. Este é
talvez um dos aspectos virtualmente contidos na obra de Frege, que mereceriam uma
investigação mais detalhada, reveladora das novas potencialidades do seu pensamento.