comunicação pública e sociedade movimentos sociais e reivindicatórios
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Comunicação públicaTRANSCRIPT
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CINTHYA ANDRADE DE PAIVA GONALVES
OS USOS POLTICOS DO CIBERESPAO PELAS REDES DE MOVIMENTOS SOCIAIS
Florianpolis, 2001
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CINTHYA ANDRADE DE PAIVA GONALVES
OS USOS POLTICOS DO CIBERESPAO PELAS REDES DE MOVIMENTOS SOCIAIS
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federai de Santa Catarina como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Direito.
Orientador:Prof. Dr. ANTONIO CARLOS WOLKMER
Florianpolis, julho de 2001
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC CENTRO DE CINCIAS JURDICAS
CURSO DE PS-GRADUAO EM DIREITO-PROGRAMA DE MESTRADO TURMA ESPECIAL -CONVNIO UFSC/ SEDES, UW-ES
OS USOS POLTICOS DO CIBERESPAO PELAS REDES DE MOVIMENTOS SOCIAIS
CINTHYA ANDRADE DE PAIVA GONALVES
Florianoplis, 31 de julho de 2001
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. ANTONIC R - Orientador
Prof. Dr. JOSEL MACHADO CORREIA - Membro da Banca
PROFESSOR ORIENTADC
Prof. Dr. AN1 KMER
COORDENADOR DO CURSO DE PS-GRADUAO
Prof. Dr. CHRISTIAN GUY CAUBET
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Agradeo a todos que de alguma forma contriburam para essa dissertao, principalmente, minha famlia e, em especial, minha me pela pacincia e compreenso. minha tia Ktia pela ajuda e colaborao. minha amiga Ane Priscila por estar sempre ao lado. s minhas alunas Laila, Lilian, Mariana e Samina por no permitirem que eu desanimasse. Cristina pela ajuda em todos os momentos. Ao Andr Favero por proporcionar tranqilidade na defesa da dissertao. Gilsilene pelas dicas teis. Patrcia pela ajuda em todo o perodo do mestrado. Ao professor Aires pela dedicao espontnea e pela amizade cultivada nesse perodo e ao professor Wolkmer por sua infinita pacincia e por compreender as limitaes de sua orientanda.
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"A rvore est virtualmente presente semente." Pierre Lvy
A cidadania est virtualmente presente Constituio. Cinthya Paiva
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SUMRIO
RESUMO........................................................................................................... vii
ABSTRACT....................................................................................................... viii
INTRODUO.................................................................................................. 1
CAPTULO 1 - A SOCIEDADE EM REDE....................................................... 5
1.1 A sociedade informacional................. ........................................................6
1 .20 pluralismo jurdico na sociedade em rede..............................................19
1.3 A formao do espao do saber na sociedade em rede............................32
CAPTULO 2 - OS MOVIMENTOS SOCIAIS EM REDE..................................42
2.1 0 conceito de redes de movimentos sociais............................................. 45
2.2 As caractersticas e os tipos de redes de movimentos sociais................. 54
2.3 As redes de movimentos sociais como sujeitos coletivos de Direito........61
2.4 As redes de movimentos sociais e a democracia informacional............... 69
CAPTULO 3 - AS REDES DE MOVIMENTOS SOCIAIS NO
CIBERESPAO................................................................................................ 79
3.1 A composio, caractersticas e os usos do ciberespao......................... 86
3.2 Os usos polticos do ciberespao.............................................................. 98
3.3 As mudanas poltico-estruturais das redes de movimentos sociais atravs
do uso do ciberespao.....................................................................................106
3.4 A Rede Criana - uma experincia local............ ...................................... 118
CONSIDERAES FINAIS.............................................................................129
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................... ............................139
ANEXOS.................. ........................................................................................144
Anexo 1.................................. .................................................................. .......145
Anexo 2......................................................... ...................................................146
vi
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RESUMO
As novas tecnologias da informao e da comunicao
mudaram as estruturas da sociedade, fornecendo a base material
para que houvesse a expanso de uma nova morfologia social, as
redes. A lgica das redes modificaram as estruturas dos
movimentos sociais que passaram a se articular e organizar sob a
forma de redes de movimentos sociais. Essas redes, de acordo
com o modelo aqui proposto, caracterizam-se pela sua articulao
em rede e pelo seu compromisso com a transformao social.
Identificam-se, devido a suas prticas e princpios, com os sujeitos
coletivos de Direito que so fundamento material do pluralismo
jurdico comunitrio-participativo e contribuem para a construo
da inteligncia coletiva atravs da sua movimentao no
ciberespao. As redes de movimentos sociais utilizam-se da
tecnologia que as modificou para ampliar o acesso informao,
contribuir para a incluso digital e para a efetivao dos direitos
humanos de quinta gerao e, assim, atravs de prticas plurais e
horizontais, reordenar o espao pblico, mesmo que imperfeito j
que nem todos participam, e gradativamente reconstruir a
sociedade civil que to essencial para a democracia e para a
cidadania. Dessa forma, a dissertao analisar, primeiramente, as
mudanas da sociedade, far um perfil das redes de movimentos
sociais e, por ltimo, abordar os usos polticos do ciberespao
pelas redes de movimentos sociais, trazendo um estudo de caso
sobre uma experincia local, a Rede Criana.
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ABSTRACT
The development of communications and information
technologies is central to understand the changes that happened in
the social structures, providing the material base for the expansion
of a new social morphology, the networks. Its logical modified the
structure of the grassroots movements that became civic
networking movements. The civic networking movement is founded
in work as a net and in the commitment to the social development.
They can be identified as collective citizens which is one of the law
pluralism material fundamental and they also contribute to the
construction of collective intelligence by the placement of actions in
the cyberspace. Using the new technologies that had modified
them, the civic networking movement can expand the access to the
information, contribute to the digital education and to the implement
of the fifth generation of the human rights and like this reordenate
an imperfect public space since not everybody has access to it yet
and reconstruct the civil society that is so essential to the
democracy and to the citizenship. This essay will analyse the
changing of the society, will delineate the aspects of the civic
networking movement and, finally, will show the political uses of the
cyberspace by the civic networking movement, bringing up a study
case of a local experience, the Rede Criana.
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INTRODUO
Esta dissertao possui como temtica geral as redes de movimentos
sociais, mais especificamente os usos polticos do ciberespao por essas
redes.
Um processo de transformao social foi desencadeado no final do
sculo XX em razo do novo paradigma socioeconmico surgido devido
Revoluo Tecnolgica. As novas tecnologias aceleraram as mudanas
estruturais na sociedade impondo uma lgica nica a todos os setores da \
sociedade. Os movimentos sociais para sobreviverem aos novos tempos I
tiveram que se institucionalizar e passar a trabalhar em rede. Essa mudana^
to radical exigiu o uso inteligente e social dos novos meios de comunicao,
assim como dos instrumentos da informao, j que a transparncia e o
acesso global informao e s novas tecnologias sero necessrios nos
prximos anos para a atividade interativa e a solidariedade mundial, criando
uma globalizao democrtica.
Para que tais condies fossem alcanadas, perspectivas humansticas
e cientficas foram trazidas nessa dissertao a fim de demonstrar que o uso
coletivo das novas tecnologias pelas redes de movimentos sociais pode
contribuir para a reordenao do espao pblico, que est cada vez mais
global, atravs de prticas descentralizadas e horizontalizadas. Acredita-se
que o ciberespao, por j ser em si fruto de uma construo coletiva da
humanidade, possa ajudar a renovar o lao social por meio de uma inteligncia
coletiva que tem como base a valorizao do homem pelo seu saber e por sua
diferena. Dessa forma, os efeitos positivos dos novos meios e das tecnologias
da informao podero ser ampliados e suas conseqncias negativas
minimizadas.
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Destaca-se, ento, como objetivo geral dessa dissertao, o estudo da
potencializao e da ampliao dos movimentos sociais atravs do uso
coletivo das novas tecnologias como a Internet, enfatizando a contribuio
dessa utilizao para a reconstruo democrtica da sociedade civil. Como
objetivos especficos destacam-se o estudo da origem das novas tecnologias
e do seu desenvolvimento, apresentando noes e conceitos importantes para
o entendimento dessa estrutura e a anlise das mudanas que esto
ocorrendo na sociedade civil e no Estado devido ao uso dessa tecnologia,
fazendo um breve estudo sobre impacto causado por esses novos meios
tecnolgicos em institutos jurdico-polticos como a democracia e a cidadania.
Tambm como objetivo especfico tem-se o estudo dos movimentos sociais
urbanos, suas origens e seu desenvolvimento, verificando o seu papel na nova
ordem global a fim de demonstrar a sua importncia para a consolidao da
democracia como instrumento de construo da cidadania global e, ainda, a
anlise da entrada desses movimentos sociais na Internet e o uso desse
instrumento para a ampliao de suas aes, enfatizando-se a formao das
Redes de Movimentos Sociais, suas caractersticas e sua forma de atuao.
E finalmente, procurou-se demonstrar, atravs de exemplos e casos, como o
uso da Internet por essas Redes de Movimentos Sociais pode ampliar a ao
dos movimentos sociais isolados e contribuir para uma efetiva cidadania.
Para que tais objetivos fossem demonstrados, procurou-se, no primeiro
captulo, analisar as transformaes da sociedade devido s novas tecnologias
da informao, estudando as novas relaes no espao e no tempo e
explicando como a sociedade se articula em um sistema policntrico e de
redes. Nesse estudo foram apresentadas as modificaes que afetaram a
sociedade civil, o Estado, o modo de produo e o prprio Direito. Tambm,
procurou-se trazer propostas que vem a modificao como uma oportunidade
para que se construa um novo espao pblico, como as do pluralismo jurdico
e a da inteligncia coletiva.
No segundo captulo procurou-se enfocar a formao das redes de
movimentos sociais na Amrica Latina, o seu surgimento, os tipos e as
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caractersticas, alm de seu funcionamento de uma forma generalizada.
Dentro do campo jurdico procurou-se demonstrar que as redes de movimentos
sociais consolidam a proposta do pluralismo jurdico comunitrio-participativo
como fontes de produo jurdica e ideais na reordenao do espao pblico
devido as suas caractersticas. Por ltimo, analisou-se a import
de movimentos sociais na reconstruo da democracia,
participao dos cidados na poltica.
O terceiro captulo examinou o ciberespao e as suas possibilidades de
uso pelas redes de movimentos sociais para fins polticos. Para tanto, foi feita
uma breve explicao sobre a composio e as caractersticas do ciberespao
e demonstrados os usos mais freqentes pela sociedade. A seguir, procurou-
se identificar os usos para fins polticos e os fenmenos decorrentes, atravs
de exemplos encontrados na bibliografia em geral. No ltimo item desse
capitulo, procurou-se relatar uma experincia local do uso poltico de
ciberespao para a transformao social.
Para a execuo dos captulos acima referidos utilizou-se o mtodo de
abordagem indutivo. Com relao ao mtodo de procedimento valeu-se do
monogrfico. Ainda quanto metodologia utilizada, especificamente tcnica
de pesquisa, a forma preponderante foi a documental e a bibliogrfica.
No que pertinente ao embasamento terico utilizado, h quatro
tericos que compuseram a base desta dissertao. Para explicar as
transformaes da sociedade sob o ponto de vista socioeconmico utilizou-se
Manoel Castells, mais especificamente sua trilogia sobre a era da informao.
A abordagem de Pierre Lvy foi utilizada com o propsito de analisar as
modificaes socioeconmicas sob um ponto de vista antropolgico e assim
conseguir uma abordagem humanstica. Para conceituar as redes de
movimentos sociais foi utilizada a obra de llse Scherer-Warren e analisando-as
sob o ponto de vista jurdico-poltico utilizou-se a proposta de pluralismo
jurdico de Antonio Carlos Wolkmer.
Para relatar a experincia local foram utilizados documentos e relatrios
fornecidos pela Rede Criana, alm de dados buscados in loco, por meio de
cia das recre5~\
ampliando a I
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entrevistas s vrias pessoas envolvidas. Alm das contribuies acima, foram
consultados livros estrangeiros sobre o tema bem como vrios artigos em
peridicos e jornais retirados, inclusive, da Internet devido escassez de livros
nacionais sobre o assunto.
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CAPTULO 1
A SOCIEDADE EM REDE
As novas tecnologias da informao que aceleram a mudana na
sociedade, foram a humanidade a adaptar-se s novas relaes no espao e
no tempo. Trata-se agora de compreender como se articulam as formas de
atuao dispersas em um mundo ao mesmo tempo globalizado e com novos
desenvolvimentos locais, um sistema policntrico
As modificaes afetaram a sociedade civil, o Estado, a forma de
governo, o modo de produo e o prprio Direito. As multinacionais e as redes
de comunicao passam a reordenar o mercado como uma espcie de
sociedade civil global, com maior capacidade decisria que os partidos,
sindicatos e movimentos sociais de alcance nacional. Diante da sociedade do-..j
sculo XXI surge uma nova ordem mundial, produto de uma nova forma de
soberania, baseada no poderio econmico e na ampliao da velocidade e
quantidade da troca de informaes em nvel global que o imprio.
Assim, procura-se neste captulo analisar como essas mudanas
influenciaram e penetraram nas estruturas da sociedade e criaram um
conjunto aqui chamado, parafrasendo CASTELLS1, de sociedade em rede,
apresentando as propostas jurdico-polticas e antropolgicas de valorizao
humana atravs do uso social da tecnologia.
1 CASTELLS, Manuei. A sociedade em Rede: a era da informao: economia, sociedade e cultura. 3. ed. So Paulo: Paz e terra, 1999, v. I.capa
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1.1 A sociedade informacional
Uma nova estrutura social surge e manifesta-se sob vrias formas
conforme a diversidade de culturas e instituies em todo o planeta. Essa nova
estrutura social est associada ao surgimento de um novo modo de
desenvolvimento, historicamente moldado pela reestruturao do modo
capitalista de produo, que no final do sculo XX CASTELLS2 chama de
informacionalismo e que constitudo pelo surgimento de um novo paradigma
tecnolgico baseado na tecnologia da informao.
Nesse novo paradigma informacional de desenvolvimento, a fonte de
produtividade acha-se na tecnologia de gerao de conhecimento, de
processamento da informao e de comunicao de smbolos. Na verdade,
conhecimentos e informao so elementos cruciais em todos os modos de
desenvolvimento, visto que o processo produtivo sempre se baseia em algum
grau de conhecimento e no processamento da informao.
O que especfico ao modo informacional de desenvolvimento a ao
de conhecimento sobre os prprios conhecimentos como principal fonte
produtividade. O informacionalismo visa o desenvolvimento tecnolgico, ou
seja, a acumulao de conhecimentos e maiores nveis de complexidade do
processamento da informao. A busca por conhecimentos e informao
caracteriza a produo tecnolgica no informacionalismo.
Esse novo paradigma da tecnologia da informao possui algumas
caractersticas bsicas que servem para entender a transformao da
sociedade neste fim de sculo :
- A primeira caracterstica seria que a informao sua matria prima e
a tecnologia desenvolvida serve para agir sobre a informao.
- A segunda caracterstica refere-se penetrabilidade dos efeitos das
novas tecnologias. Como a informao uma parte integral de toda a
atividade humana, todos os processos de existncia individual e coletiva so
diretamente afetados pelos riovos meios tecnolgicos.
2 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede....p.34
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- A terceira caracterstica, e a mais importante no que se refere a esse
trabalho, a lgica das rede em qualquer sistema ou conjunto de relaes,
usando essas novas tecnologias da informao. A morfologia da rede a que
est melhor adaptada crescente complexidade de interao e aos modelos
imprevisveis do desenvolvimento derivado do poder criativo dessa interao.
A rede pode ser agora implementada materialmente em todos os tipos de
processos e organizaes graas s recentes tecnologias da informao. Sem
elas, tal implementao seria bastante complicada. Contudo essa lgica das
redes necessria para estruturar o no-estruturado preservando, porm, a
flexibilidade, pois o no-estruturado a fora motriz da inovao na atividade
humana.
- Um quarto fator importante desse paradigma est em sua flexibilidade.
Essa caracterstica faz com que os processos sejam mais facilmente
reversveis, podendo as organizaes e as instituies serem modificadas
atravs da reorganizao de seus componentes sem que haja quebra na sua
estrutura. Assim, a flexibilidade confere a sociedade a capacidade de
reconfirgurao, o que garante a fluidez e a constante mudana
organizacional.
- Como quinto aspecto tem-se a integrao das tecnologias, as antigas
e as novas, fazendo com que esses meios sejam impossveis de serem
separados. Como exemplo tem-se que a microeletrnica, as telecomunicaes
e os computadores esto todos integrados nos sistemas de informao.
Devido s caractersticas acima apresentadas, o paradigma da
tecnologia da informao evolui sob a forma e com a abertura de uma rede de
acessos mltiplos. A concluso de CASTELLS3 sobre esse novo paradigma
que ele " forte e impositivo em sua materialidade, mas adaptvel e aberto em
seu desenvolvimento histrico. Abrangncia, complexidade e disposio em
forma de rede so seus principais atributos."
Com base nesse paradigma, percebe-se que a tecnologia e as relaes
tcnicas de produo difundem-se por todo o conjunto de relaes e estruturas
3 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede....p. 81.
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sociais, penetram nas relaes de poder existentes, misturam-se s
experincias do cotidiano e as modificam. Precipuamente, os modos de
desenvolvimento modelam toda a esfera de comportamento social com
destaque, nessa era da informao, para a comunicao simblica que vai dar
origem a novas culturas e identidades.
Como disse LVY4,
Alm de certas repercusses comerciais, parece-nos urgente destacar os grandes aspectos civilizatrios ligados ao surgimento da multimdia: novas estruturas de comunicao, de regulao e de cooperao, linguagens e tcnicas intelectuais inditas, modificao das relaes do tempo e espao etc.
Nota-se que como o informacionalismo baseia-se na tecnologia de
conhecimentos e informao, h uma ntima ligao entre cultura e foras
produtivas no modo de desenvolvimento informacional. Assim sendo, deve-se
esperar o surgimento de novas formas histricas de interao, controle e
transformao social. Todo esse contexto proporciona o surgimento da
chamada sociedade informacional.5
Na sociedade informacional, o termo informacional indica o atributo de
uma forma especfica de organizao social em que a gerao, o
processamento e a transmisso da informao tornam-se fontes fundamentais
de produtividade e poder devido s novas condies tecnolgicas surgidas
nesse perodo histrico. A informao e o conhecimento nessa sociedade so
fatores importantes mas as transformaes produzidas pela tecnologia da
informao vo alm, principalmente quando o novo modo de produo
penetra nas estruturas sociais e provoca mudanas estruturais, culturais e de
identidades. Uma das caractersticas dessa nova formao da sociedade a
lgica em redes de sua estrutura bsica.
Esse novo paradigma da tecnologia da informao fornece a base
material para a expanso das Redes em toda a estrutura social. As redes,
assim, constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e a difuso
4 LVY, Pierre. A inteligncia coletiva: por uma antropologia do ciberespao. Traduo de Luiz Paulo Rouanet. 2 ed. So Paulo: Loyola, 1999. p.13.5 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede... p. 46.
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da lgica de redes modifica de forma substancial a operao e os resultados
dos processos produtivos e de experincia, poder e cultura. CASTELLS6 define
rede como: "...um conjunto de ns interconectados. N o ponto no qual uma
curva se entrecorta." O n ser definido de acordo com o tipo de rede no qual
est inserido. Podem ser exemplificados vrios tipos de ns de acordo com as
redes que estes integram. So ns, as ONGs no caso das redes de
Movimentos Sociais; os conselhos nacionais de ministros e comissrios
europeus da rede poltica que governa a Unio Europia; sistemas de
televiso, estdios de entretenimento, meios de computao grfic, equipes
para cobertura jornalstica que geram, transmitem e recebem sinais na rede
global da nova mdia entre outros exemplos de redes existentes nessa
sociedade informacional.
Interessante notar que em uma rede a distncia, ou mesmo, a
intensidade e a freqncia da interao entre dois pontos, ser reduzida e nos
ltimos dois casos ampliada, se ambos os pontos forem ns de uma mesma
rede do que se pertencerem a redes diferentes. J entre os fluxos de uma
determinada rede, no h que se falar em distncia ou que estes fluxos
possuem a mesma distncia entre os ns. H que se falar, por isso, de uma
eqidade entre os diferentes pontos de uma mesma rede, mas isso j no I
possvel quando est se tratando de redes diferentes, pois a distncia amplia-
se.
Outro ponto a ser ressaltado com relao s redes que tratam-se d e )
estruturas capazes de se expandir de forma ilimitada, integrando novos ns
desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que
compartilhem os mesmo cdigos de comunicao. Isso interessante quando
se fala, por exemplo, em redes de movimentos sociais pois estas compartilham
os mesmos cdigos j que possuem os mesmos interesses e acabam por
formar identidades coletivas e grupos de consenso. Essa dinmica
proporcionada pela estrutura em redes faz com que as redes sejam suscetveis
a inovaes sem que haja ameaas ao seu equilbrio.
6 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede....p. 498.
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As relaes de poder tambm so afetadas com a estrutura social
baseada em redes. Segundo CASTELLS7 "as conexes que ligam as redes
representam os instrumentos privilegiados do poder. Assim, os conectores so
os detentores do poder. Uma vez que as redes so mltiplas, os cdigos
interoperacionais e as conexes entre redes tornam-se as fontes fundamentais
da formao, orientao e desorientao das sociedades." Porm, as redes,
por terem laos mltiplos, impedem que haja uma concentrao de poder
nesses conectores, tornando-se estruturas descentralizadas e sem vnculos
hierrquicos devido possibilidade de relaes horizontais entre os diversos
ns integrantes da rede.
Pelo fato das redes impedirem a concentrao de poder, o poder do
Estado8 vem sendo minado pelas foras do capitalismo informacional. O
Estado est comprometido de forma decisiva pela globalizao9 das principais
atividades econmicas e pela globalizao da mdia e da comunicao
eletrnica.
O Estado, como conceito e realidade, no deixar de existir mas est
realmente em declnio e passa por uma fase crtica, buscando reformular-se.
As foras sociais e econmicas presentes na sociedade informacional que
operam em escala global, desafiam o Estado-Nao, com a sua soberania,
como lugar de hegemonia.10
Percebe-se que a globalizao econmica est substituindo a poltica
pelo mercado, como instncia privilegiada de regulao social. Os capitais
financeiros tornam-se imunes a fiscalizaes governamentais por estarem
7 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede.... p. 499.8 O conceito de Estado-nao aqui utilizado ser aquele dado por Luiz Carlos Bresser Pereira: " o aparelho com capacidade de legislar e tributar sobre a populao de um determinado territrio. A elite governamental, a burocracia e a fora militar e policial constituem o aparelho do Estado. O Estado porm, mais do que seu aparelho, porque inclui todo o sistema constitucional-legal que regula a populao existente no territrio sob sua jurisdio. Esta populao, por sua vez, assume o carter de povo, ao se tornar detentora do direito da cidadania, e se organiza cmo sociedade civil. Sociedade civil e Estado constituem o estado- nao." em PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estado, sociedade civil e legitimidade democrtica. Revista Lua Nova, So Paulo, n.36, p.85-104,1995. p. 909 Sobre o tema ver: IANNI, Octavio. Globalizao: Novo paradigma das cincias sociais. Estudos Avanados, So Paulo, v.8, n.21, mai/ago,1994.10 IANNI, Octavio.op.cit.p.152
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sempre em fluxo, em movimento. As atividades produtivas em Estados
distintos vo se fragmentando, se desterritorializando e vo reduzindo as
sociedades nacionais ou locais a meros conjuntos de grupos e mercados
unidos em rede. Em suma, estes aspectos vm esvaziando parte dos
instrumentos de controle dos atores nacionais, isto , do Estado-Nao.
Ocorre que,
medida que o processo decisrio foi sendo transnacionalizado, as decises polticas tornaram-se crescentemente condicionadas por equilbrios macroeconmicos que passaram a representar um efetivo princpio normativo, responsvel pelo estabelecimento de determinados limites s intervenes reguladoras e disciplinadoras dos governos.11
Num primeiro momento a abertura dos sistemas econmicos nacionais
para o exterior e sua progressiva insero numa economia globalizada
propiciam maior competitividade e ganhos de escala para os mercados
nacionais. No entanto, igualmente correto que, eles acarretam a reduo da
soberania nacional, com graves repercusses sociais e polticas, pois h a
proliferao de mecanismos de auto-regulao econmica gerada pela
globalizao. As instncias decisrias nacionais perdem seu papel como locus
privilegiado de deliberao, conduo e proteo, tendendo a operar sob a
forma de "redes" formais ou informais articuladas por empresas, sindicatos e
entidades representativas preocupadas em negociar questes especficas e
assegurar interesses particularsticos.12
Essa soberania compulsoriamente partilhada, e por isso reduzida, do
Estado-Nao o tem obrigado a rever sua poltica legislativa, a reformular a
estrutura de seu direito positivo e a redimensionar a jurisdio de suas
instituies judiciais amplas e ambiciosas de estratgias de desregulametao,
deslegalizao e desconstitucionalizao, implementadas paralelamente
promoo da ruptura dos monoplios pblicos.
11 FARIA, Jos Eduardo. Direitos humanos e globalizao econmica: notas para uma discusso. Estudos Avanados, vol. 1, n1 1987,So Paulo:IEA,1997.p.4312 FARIA, Jos Eduardo. Direito e Globalizao Econmica: Implicaes e Perspectivas. So Paulo: Malheiros, 1996.p.37
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Em suma, os Estados-Naes ao atuarem estrategicamente na arena
internacional, esto sujeitos a um tremendo desgaste interno. Tem-se o
seguinte paradoxo:
Por um lado, para estimular a produtividade e a competitividade de suas economias nacionais e obedecer a regras globais que favoream os fluxos de capital, enquanto rogam s suas sociedades que aguardem pacientemente pelos benefcios gradativos advindos da engenhosidade corporativa. Alm disso, para serem considerados bons 'cidados' de uma ordem mundial multilateral, os Estado-Nao tm de atuar em regime de cooperao mtua, aceitando 'hierarquia' da geopoltica...Quanto mais triunfam no cenrio internacional, em parceria direta como os agentes da globalizao, menos representam suas bases polticas nacionais. A poltica do final do milnio, praticamente no mundo todo, est profundamente marcada por esta contradio.13
Alm do Estado-Nao, o espao e o tempo esto sendo
revolucionados por esse capitalismo informacional provocado pelos
desenvolvimentos cientficos e tecnolgicos incorporados e dinamizados pelos
movimentos da sociedade informacional. IANNI14 explica essa transformao
da seguinte forma:
As realidades e os imaginrios lanam-se em outros horizontes, mais amplos que a provncia e a nao, a ilha e o arquiplago, a regio e o continente, o mar e o oceano. As redes de articulao e as alianas estratgicas de empresas, corporaes, conglomerados, fundaes, centros e institutos de pesquisas universidades, igrejas, partidos, sindicatos, governos, meios de comunicao impressa e eletrnica, tudo isso constitui e desenvolve tecidos que agilizam relaes, processos e estruturas, espaos e tempos, geografia e histrias. O local e o global esto distantes e prximos, diversos e mesmos. As identidades embaralham-se e multiplicam-se. As articulaes e as velocidades desterritorializam-se e re-territorializam-se em outros espaos, com outros significados. O mundo se torna mais complexo e mais simples, micro e macro, pico e dramtico.
E citando o gegrafo Milton Santos complementa:
H, hoje, um relgio mundial, fruto do progresso tcnico, mas o tempo-mundo abstrato, exceto como relao. Temos, sem dvida, um tempo universal, tempo desptico, instrumento de medida hegemnico, que comanda o tempo dos outros. Esse tempo desptico responsvel por temporalidades hierrquicas, conflitantes, mas
13 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 2. ed.vol.2. So Paulo: Paz e terra, 2000. p. 357.14 IANNI, Octavio. op. cit. p. 155-156.
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convergentes. Nesse sentido todos os tempos so globais, mas no h um tempo mundial. O espao se globaliza, mas no mundial como um todo, seno como metfora. Todos os lugares so mundiais, mas no h um espao mundial. Quem se globaliza, mesmo, so as pessoas e os lugares.15
preciso reconhecer que a sociedade informacional global e que
possui os seus prprios paradigmas pois corresponde a uma nova realidade,
uma totalidade abrangente, subsumindo formal ou realmente as sociedades
nacionais. E como o espao e o tempo so vinculados a sociedade, esses
conceitos transformaram-se. O espao se contextuaiiza na expresso da
sociedade enquanto o tempo delineado pelas prticas sociais. O espao vem
a ser construdo pela dinmica de toda a estrutura social, assim como o tempo
definido por essa dinmica o que toma o espao "tempo cristalizado"16.
A definio de espao dentro da teoria social trazida por CASTELLS17:
'"espao um produto material em relao a outros produtos materiais -
inclusive pessoas - as quais se envolvem em relaes sociais [historicamente]
determinadas que do ao espao uma forma, uma funo e um sentido
social."'
Ocorre que, atualmente, as prticas sociais da sociedade informacional,
incluindo aqueles que tm acesso s tecnologias de informao, tm sido
realizadas no em um lugar fsico, mas em um espao que no fixo pois as
prticas realizam-se por meio de fluxos. Entende-se por fluxos "as seqncias
intencionais, repetitivas e programveis de intercmbio e interao entre
posies fisicamente desarticuladas mantidas por atores sociais nas estruturas
econmica, poltica e simblica da sociedade."18 Forma-se ento o que
CASTELLS19 denomina de espao de fluxos que seria a "organizao material
das prticas sociais de tempo compartilhado que funcionam por meio de
fluxos."
15 SANTOS, Milton citado por IANNI, Octavio, op.cit. p.156.16CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede....p. 43517 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede.... p. 435-43618 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede....p. 435-436.19 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede.... p. 436
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0 espao de fluxos pode ser descrito por trs camadas de suporte
material que juntas constituem esse espao. A primeira camada constituda
por um circuito de impulsos eletrnicos, incluindo a a microeletrnica, as
telecomunicaes, o processamento computacional, os sistemas de
transmisso e o transporte em alta velocidade, que so a real base material do
espao de fluxos. Tem-se que:
A articulao espacial das funes dominantes ocorre em nossas sociedades na rede de interaes, possibilitadas pelos equipamentos da tecnologia da informao. Nessa rede nenhum lugar existe por si mesmo, j que as posies so definidas por fluxos. Conseqentemente, a rede de comunicaes a configurao espacial fundamental: os lugares no desaparecem, mas sua lgica e seu significado so absorvidos na rede. A infra-estrutura tecnolgica [a infovia] que constri a rede define o novo espao como as ferrovias definiam as regies econmicas. Essa infra-estrutura tecnolgica a expresso da rede de fluxos, cuja arquitetura e contedo so determinados pelas diferentes formas de poder existentes em nosso mundo.
A segunda camada constituda pelos ns das redes de fluxos. Esses
ns podem ser centros estratgicos ou centros de comunicao que
interconectam, organizam e coordenam todos os elementos que se integram
rede. O espao de fluxo se move dentro dessas redes eletrnicas que
conectam lugares diferentes e especficos. O n passa e repassa as
informaes, as prticas geradas dentro de cada um dos grupos. As
caractersticas de cada n dependero do tipo de rede que se forma ou se
quer formar:
Alguns lugares so intercambiadores, centros de comunicao desempenhando papel coordenador para a perfeita interao de todos os elementos integrados na rede. Outros lugares so os ns ou centros da rede, isto , a localizao de funes estrategicamente importantes que constrem uma srie de atividades e organizaes locais em tomo de uma funo-chave na rede.20
A terceira camada desse espao refere-se organizao espacial das
elites gerenciais dominantes que exercem as funes direcionais em torno das
20 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede....p. 437.
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quais esse espao articulado. Parte-se da suposio de que as sociedades
so organizadas de maneira assimtrica em torno de interesses dominantes
especficos a cada estrutura social e com isso percebe-se que o espao de
fluxos no a nica lgica espacial de nossas sociedades, mas a lgica
espacial dominante porque pertence a essa elite informacional. O espao
desempenha um papel fundamental na forma de dominao pela elite para sua
organizao e desorganizao de outros grupos da sociedade. Tem-se que:
Em resumo: as elites so cosmopolitas, as pessoas so locais. O espao de poder e riqueza projetado pelo mundo, enquanto a vida e a experincia das pessoas ficam enraizadas em lugares, em sua cultura, em sua histria. Portanto, quanto mais uma organizao social baseia-se em fluxos a-histricos, substituindo a lgica de qualquer lugar especfico, mais a lgica do poder global escapa ao controle sociopoltico das sociedades locais/nacionais historicamente especficas.21
E assim, tem-se que o espao de fluxos vai se expandindo, cada vez
mais para abranger uma elite informacional mais global do que local. Isso
ocorre no s pela expanso do poder mas tambm pela prpria capacidade
que os ns de vrias redes tm de se interconectarem e, com isso, se
expandirem.
O tempo nesse espao tambm modificou-se de duas formas, tornou-se
simultneo e intemporal. A informao tornou-se instantnea em todo o globo
utilizando-se dos equipamentos das tecnologias da informao. Exemplos
dessa instantaneidade podem ser vistos desde transmisses de guerras ao
vivo at comunicao mediada por computadores em que h dilogos em
tempo real que renem pessoas de diversas partes do globo em conversas
multilaterais.
Outra transformao foi a intemporalidade do tempo ou melhor dizendo,
um tempo no-seqencial. Isso ocorre porque atualmente as informaes
tornam-se disponveis de forma assncrona, sem que haja uma seqncia, um
antes ou depois. Percebe-se facilmente isso quando se observa um hipertexto
de multimdia que traz em si vrias informaes sem que essas sejam
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organizadas cronologicamente. A abertura de cada informao depender
daquele que a utiliza e no de uma ordem baseada no tempo. Interessante o
exemplo dado por CASTELLS22:
Se as enciclopdias organizaram o conhecimento humano por ordem alfabtica, a mdia eletrnica fornece acesso informao, expresso e percepo de acordo com os impulsos do consumidor ou decises do produtor. Com isso, toda a ordenao dos eventos significativos perde seu ritmo cronolgico intemo e fica organizada em seqncias temporais condicionadas ao contexto social de sua utilizao.
Assim, essa caracterstica do tempo percebida com maior nfase
quando as especificidades de um determinado contexto causam confuso na
ordem seqencial dos fenmenos sucedidos naquele encadeamento. Essa
confuso pode tomar a forma de compreensso da ocorrncia dos fenmenos,
visando instantaneidade, ou ento de introduo de descontinuidade
aleatria na seqncia. A eliminao dessa seqncia cria um tempo no-
diferenciado.
O tempo e espao da sociedade informacional se complementam. O
espao determina a forma como o tempo ir se desenvolver. Pode-se falar em
um tempo para os lugares e um tempo para o espao de fluxos. O tempo dos
lugares ser biolgico e a sua seqncia ser feita pelos atos sociais, definido
pela ordem de sucesso das coisas. O tempo da sociedade informacional que
o tempo do espao do fluxos, no possui uma seqncia baseada em uma
ordem cronolgica, apresentando-se descontnuo e simultneo e de efeito
instantneo.
medida que o espao toma-se fluido e o tempo to veloz que quase
instantneo, o Estado tambm flexibiliza sua extenso de poder que baseada
nos seus limites territoriais. O seu poder jurisdicional tambm se flexibiliza e
conseqentemente o Direito. Nas palavras de FARIA23:
21CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede.... p. 440.22 CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede....p. 487.23 FARIA, Jos Eduardo. Direitos humanos e globalizao econmica....p.44.
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Como foram concebidos para atuar dentro de limites territoriais precisos, com base nos instrumentos de violncia monopolizados pelo Estado, seu alcance ou seu universo tende a diminuir na mesma proporo em que as barreiras geogrficas vo sendo superadas pela expanso da microeletrnica, da informtica, das telecomunicaes e dos transportes. E quanto maior a velocidade desses processos, mais os tribunais passam a ser atravessados pelas justias emergentes, quer nos espaos infra-estatais (os locais, por exemplo) quer nos espaos supra-estatais. Os espaos infra-estatais esto sendo polarizados por formas inoficiais ou no-oficiais de resoluo de conflitos - como usos, costumes, diferentes estratgias de mediao, negociao e conciliao, autocomposio de interesses e auto- resoluo de divergncias, arbitragens privadas ou mesmo a imposio da lei do mais forte nos guetos inexpugnveis controlados pelo crime organizado e pelo narcotrfico (constituindo assim uma espcie de direito marginal).J os espaos supra-estatais tm sido polarizados pelos mais diversos organismos multilaterais (Banco Mundial, Fundo Monetrio Internacional, Organizao Mundial da Propriedade Intelectual, etc.), por conglomerados empresariais, instituies financeiras, entidades no-govemamentais(...).
A flexibilizao do espao refletiu-se na flexibilizao dos problemas,
colocando-os a nvel global, no se limitando mais a um territrio nico.
Problemas relacionados ao meio ambiente e aos direitos humanos, o crime
organizado, dentre outros, que causam impacto na opinio pblica,
demonstram a incapacidade do Estado e tem levado as organizaes no-
governamentais e os movimentos de carter supranacional a assumirem
gradativamente as responsabilidades da cidadania global24. Como percebe
CASTELLS25:
Assim, Anistia Internacional, Greenpeace, Medicina Sem Fronteiras, Oxfam e tantas outras organizaes no-governamentais transformaram-se em uma fora de grande importncia na conjuntura internacional dos anos 90, muitas vezes promovendo maior captao de recursos, atuando com melhor desempenho e tendo sua legitimidade bem mais reconhecida que iniciativas internacionais patrocinadas pelos governos.
A constatao de que nem o Estado e nem o mercado conseguem ^
resolver os problemas mundiais, provocando uma crise global, fez com que o
papel das ONGs fosse fortalecido enquanto organizaes da sociedade^
24 Sobre a questo VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalizao. Rio de Janeiro: Record, 1997.25 CASTELLS, Manoel. O poder da identidade, p. 313.
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informacional global como entidades capazes de construir alternativas e
mecanismos de cooperao transnacionais. As ONGs seguem a lgica das
redes pois suas aes procuram fortalecer a autonomia e a capacidade das
organizaes da sociedade civil local em todas as partes do globo e tentam
levantar os problemas do nvel local ao global e vice-versa. As ONGs
tendem assumir o papel crescente nas negociaes transnacionais,como catalisadoras de mudanas destinadas a incorporar a sociedadecivil no processo de tomada de decises [a nvel global], e como uminstrumento emergente de uma cidadania planetria enraizada em
26valores humanos universais.
Sua estrutura descentralizada, pluralista e democrtica alm de ter na
informao a sua base de ao, pois essas organizaes que trabalham a
nvel global tratam de recolher dados sobre os problemas em vrias regies,
alm de participarem em Fruns Mundiais27 lanando discusses e
apresentando alternativas e solues.
A lgica das redes, portanto, domina todos os aspectos dessa
sociedade informacional. Os mercados, as empresas e os capitais financeiros
articulam-se em rede, os meios de comunicao tradicionais e eletrnicos
funcionam em rede e constituem a prpria rede e o espao se torna mvel,
fluxo que tem como base as redes eletrnicas. O tempo dilui-se na fluidez do
espao, tornando-se instantneo. As organizaes da sociedade civil atuando
em rede institucionalizaram as ONGs como representantes da sociedade
informacional global. Na mesma proporo, as instncias decisrias infra e
supra-estatais so obrigadas a operar em redes articuladas por empresas,
sindicatos e entidades representativas, e portanto, o Estado vai sendo
obrigado a sucumbir lgica das redes corporativas. O Direito, por sua vez,
vai perdendo sua racionalidade como sistema devido a sua pretenso de
abarcar a pluralidade de interesses e comportamentos particularsticos.
18
26 VIEIRA, Liszt. op.cit. p. 12027 Fruns iniciados com o Eco-92 no Rio de Janeiro, Conferncias sobre a Populao no Cairo em 1994, Cpula Social em Compenhague 1995, Mulheres em Pequim 1995 e Frum Mundial Social em Porto Alegre, 2000, dentre outros.
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O Estado em rede fica obrigado a reconhecer toda essa pluralidade de
decises infra e supra estatais, que se constituem como " direitos autnomos,
com normas, lgicas e processos prprios, entreabrindo a coexistncia (por
vezes sincrnica, por vezes conflitante) de diferentes normatividades; mais
precisamente de um pluralismo jurdico de natureza infra-estatal ou supra-
estatal."280 Estado, ento, acostumado a ser a fonte nica de produo
jurdica vai sendo obrigado a ceder e legitimar outras fontes de produo
jurdica para no desaparecer como instncia reguladora da sociedade.
A sociedade em rede e sua lgica atingem, portanto, o monismo jurdico
do Estado, obrigando-o a descentralizar o seu poder jurisdicional e a
reconhecer a pluralidade de formas jurdicas da sociedade, o que d base ao
pluralismo jurdico que ser analisado no prximo tpico.
1.2 O pluralismo jurdico na sociedade em rede
Como foi visto no tpico acima, o Estado Moderno formulado como
paradigma terico e realidade, baseado no povo, territrio e soberania estatal
vem sendo enfraquecido pelas transformaes da sociedade informacional que
impe uma lgica descentralizada e flexvel, nica capaz de responder
complexidade social crescente.
Com a flexibilizao dos elementos da sociedade (tempo, espao,
mercado e o prprio Estado), houve uma ampliao de fontes jurdicas e uma
multiplicao de fatores que vm forando o Estado a se adequar realidade
vivida nos paradigmas da sociedade informacional. O Estado est em crise
devido globalizao econmica e aos meios de comunicao, alm do
fortalecimento de organizaes no-governamentais na esfera transnacional e
nacional que corroem seu poder soberano e refletem-se na perda de
legitimidade estatal tanto internamente quanto externamente. Externamente, o
Estado constantemente minado por normas e acordos internacionais
28 FARIA, Jose Eduardo. Direitos humanos e globalizao econmica....p.45.
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decorrentes da assinatura de estatutos de organizaes mundiais tais como a
OMC, o Banco Mundial e o FMI e ONGs como o Greenpeace e Anistia
Internacional. Internamente essa perda de poder estatal reflete-se na prpria
organizao da sociedade. Ao mesmo tempo em que os agentes como o
trfico de drogas e o crime se organizam no interior de instituies estatais
como os presdios, a polcia e a poltica como tambm na casa de
representantes estaduais e municipais, alm do prprio Congresso Nacional,
as associaes de bairro, as aes em favor da cidadania, o movimento de
voluntariados e as ONGs vo se institucionalizando e legitimando-se como
instncias prprias de soluo de conflitos e ocupando o espao deixado pelo
Estado pela perda de sua capacidade reguladora.
Nesse quadro, tem-se que o Estado enfraquecido cedeu espao para
outras fontes de produo jurdica apresentando de acordo com a classificao
de Jos Eduardo Faria29 os seguintes tipos de ordem normativas:
- Lex mercatoria/ Direito de Produo que seria um conjunto de normas
tcnicas formuladas para atender s exigncias de padres mnimos de
qualidade e segurana dos bens e servios em circulao no mercado
transnacionalizado. Adotam normas pragmticas e casusticas, dentro de uma
racionalidade procedimental que se formaliza pelo contrato. Adotam a
transao e mediao como procedimento para resoluo de suas tenses.
Integram esse direito organismos econmicos flexveis e sistemas auto-
regulados, que tm a sua efetividade baseada na aceitao e na incluso.
- Direito inoficial ou de normatividade auto-produzida pelas partes: trata-
se de um direito que se preocupa com os conflitos materiais, procurando
alcanar solues substantivas atravs da conciliao e da arbitragem.
Integram esse direito, os membros do campo social semi-autnomos, como
organizaes da sociedade civil, que tentam adaptar as solues ao contexto
scioeconmico. Utilizam-se, para tanto de uma racionalidade material.
- Direito positivo ou oficial - que trata dos litgios jurdico-processuais,
buscando solues formais atravs do Direito codificado e decises. Atua no
FARIA, Jos Eduardo. Direitos humanos e globalizao econmica.29 p.46
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21
campo normativo estatal, utiliza-se de uma racionalidade formal e tem a
pretenso de aplicabilidade universal.
- Direito marginal - trata de agresses, buscando contestar, utilizando-
se da lei do mais forte. Trata-se de um direito irracional em que h a ausncia
de formalizao, que consegue sua eficcia atravs da represso atuando na
marginalidade.
Ocorre o que chamado pela doutrina de pluralismo (em contraposio
ao monismo) quando "h a existncia de mais de uma realidade, de mltiplas
formas de ao prtica e da diversidade de campos sociais com
particularidade prpria, ou seja, envolve o conjunto de fenmenos autnomos
e elementos heterogneos que no se reduzem entre si."30 O quadro acima
exposto nada mais do que reflexo da situao de enfraquecimento do Estado
que imposto pelo capitalismo informacional e est comportando diversas
realidades que no se reduzem entre si. Portanto, conclui-se que h um
quadro de pluralismo jurdico, reflexo dessas vrias fontes de produo jurdica
coexistindo no mesmo espao. Boaventura de Souza Santos31 define o
pluralismo jurdico como:
Existe uma situao de pluralismo jurdico sempre que no mesmo espao geopoltico vigoram, oficialmente ou no mais de uma ordem jurdica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentao econmica, rcica, profissional ou outra; pode corresponder a um perodo de ruptura social como, por exemplo, num perodo de transformao revolucionria: ou pode ainda resultar, como nas favelas, de conformao especfica do conflito de classes numa rea determinada da reproduo social...
As vrias instncias decisrias supra e infra-estatais do quadro acima
exposto revelam a existncia de um pluralismo sociolgico e poltico. O
pluralismo poltico poderia ser definido como
uma diretriz histrico-estratgica ou modo de anlise assentado em prticas de direo descentralizadas, [que] reala a existncia de um
30 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurdico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 2ed. So Paulo: Alfa-omega,1997.p.158.31 SANTOS, Boaventura de Souza. Notas sobre a Histria Juridico-Social de Pasrgada, in: SOUSA Jr.,Jos Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua. Braslia: UnB, 1987. p.46
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22
complexo corpo societrio formado pela multiplicidade de instncias sociais organizadas e centros autnomos de poder, que, ainda que antagnicos ou mantendo conflitos entre si, objetivam restringir, controlar ou mesmo erradicar formas de poder unitrio e hegemnico, principalmente a modalidade suprema de poder corporificado no Estado 32
Trata-se do quadro vivido na sociedade informacional, em que o Estado
enfraquecido subjugado por outras foras supra e infranacionais, tanto
econmicas (OMC, FM, empresas multinacionais) como decorrentes da
sociedade civil organizada (ONGs nacionais e internacionais, grupos de
presso, crime organizado).
A complexidade social da sociedade informacional faz com que exista
uma situao de pluralismo sociolgico consolidado "na medida em que
socialmente se ampliam os papis, as classes e as associaes profissionais
no mbito da sociedade industrial."33
O pluralismo como base terica importante para a sociedade
informacional porque alm de reconhecer a pluralidade de sujeitos, de
instncias decisrias e fontes jurdicas, preza por valores como a autonomia,
a descentralizao, a participao, localismo, diversidade e tolerncia.
A adequao dos valores do pluralismo sociedade informacional
grande, pois essa sociedade convive com a autonomia de diversos grupos
sociais e econmicos que se constituem sob a forma de redes autnomas,
porm, conectadas entre si. Redes que por sua estrutura descentralizam as
conexes de poder da sociedade e do Estado e garantem a diversidade entre
os vrios ns que a integram. A sociedade em rede tolerante com a
diferena, pois necessita dessa diferena para se auto compor. A participao
e o localismo so garantidos pelas inmeras instncias que agem tanto
localmente quanto globalmente e pelos meios de comunicaes que se
encontram abertos sem controle de um poder nico.
A sociedade informacional requer, portanto, um Direito que abarque
todas essas caractersticas plurais e descentralizadas e que seja, tambm,
32 WOLKMER, Antonio Carlos, op.cit. p. 15933 WOLKMER, Antonio Carlos, op.cit. p. 158.
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aberto, possibilitando a participao dos diversos sujeitos que a compem.
Assim, diante da crise do Direito positivo e de sua racionalidade formal
universalizante, abre-se a perspectiva de crtica terica e construo de uma
prxis normativa sedimentada num "novo" tipo de pluralismo.
O pluralismo deve ser entendido como marco de ruptura, como
paradigma alternativo no mbito da cultura jurdica, como expresso mais
direta dos reais interesses e das exigncias histricas da sociedade devendo
ser visualizado tanto como um fenmeno de possibilidades e dimenses de
universalidade cultural, quanto um modelo que incorpora condicionantes inter
relacionados (formal e material) adequado s especificidades e s condies
histricas de micro e macro sociedades polticas.34
Esse "novo pluralismo jurdico", de caractersticas participativas,
concebido a partir de uma nova racionalidade e de uma nova tica, pelo
refluxo poltico e jurdico de novos sujeitos - os coletivos; de novas
necessidades desejadas - os direitos construdos pelo processo histrico; e
pela reordenao da sociedade civil - a descentralizao normativa do centro
para a periferia; do Estado para a Sociedade; da lei para os acordos, os
arranjos, a negociao. , portanto, a dinmica de um espao pblico aberto e
democrtico. Esse pluralismo configura-se como proposta de um pluralismo
jurdico comunitrio-participativo como referencial prtico-terico de uma nova
cultura.35
Pode-se dizer que essa proposta do pluralismo jurdico comunitrio-
participativo a que melhor se adequa s transformaes socioeconmicas e
culturais ocorridas no fim do sculo e correspondentes ao paradigma da
sociedade informacional. O pluralismo como tal deve ser entendido pelo
reconhecimento de outras fontes jurdicas alm do Estado, legitimando a ao
de novos sujeitos coletivos de Direito como produtores autnomos de sua
prpria regulao e com a capacidade de criar novos direitos que ainda no
foram regulados pelo Estado.
34 WOLKMER, Antonio Carlos, op.cit. p.15635 WOLKMER, Antonio Carios. op.cit. p.157
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0 pluralismo jurdico, portanto, tende a reconhecer alm do direito
estatal oficial outras manifestaes normativas no-estatais servindo como um
instrumental para que os sujeitos coletivos de Direito consigam construir uma
cidadania mais ampla baseada na efetivao dos direitos j garantidos pelo
Direito posto e na criao de novos direitos. Para SOUZA JR.36 o pluralismo
jurdico deve ser valorizado a partir "...da atuao jurdica dos novos sujeitos
coletivos, numa opo terica e poltica de questionamento do monoplio
estatal de produo e circulao do direito..."
Portanto, nada mais adequado do que o pluralismo jurdico para que o
Direito consiga contemplar todas as fontes nascentes dessa sociedade
complexa, com seus inmeros sujeitos pertencentes a mltiplas classes e que
lutam por causas amplas que abarcam vrios interesses ao mesmo tempo.
Talvez, o pluralismo jurdico seja o nico que comporte a flexibilidade que essa
sociedade civil em reconstruo necessita.
Mas quem so esses novos sujeitos coletivos de Direito? Os n o v o s ^ \
sujeitos coletivos de Direito so sujeitos sociais que se encontram no interior
dos movimentos populares que antes estavam dispersos e privatizados e
agora passam a se definir, a se reconhecer mutuamente, a decidir e a agir em
conjunto e a redefinir-se a cada efeito resultante das decises e atividades
realizadas. Alm disso, esse sujeito, embora coletivo, no se apresenta como
portador da universalidade definida a partir de uma organizao determinada
que operaria como centro, vetor e fim das aes socio-polticas e para a qual
no haveria propriamente sujeitos, mas objetos ou engrenagens da mquina
organizadora.37
Fala-se em novo sujeito coletivo, pois este vem a substituir o antigo
sujeito histrico que se tratava de um sujeito "individualista, abstrato e
universal, que na tradio da periferia latino-americana vinha sendo
representado, dentre tantos, por oligarquias agrrias, setores mdios da
36 SOUZA Jr., Jos Geraldo de. Movimentos sociais - emergncia de novos sujeitos: O sujeito coletivo de direitos. In: ARRUDA Jr., Edmundo Uma de (org). Lies de Direito Alternativo. So Paulo: Acadmica, 1991.p.142.37 SOUZA Jr., Jos Geraldo de. op.cit. p.138.
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/
burguesia nacional, elites empresariais e por burocracias militares."38 So
exemplos de novos sujeitos coletivos os movimentos sociais rurais como o
movimento sem-terra, os movimentos sociais urbanos que lutam por questes
relacionadas com a moradia, etnia, cidadania e excluso social.
O novo sujeito coletivo nasce de classes populares e das suas
diferentes histrias produzidas pela diversidade de condies que afetam sua
existncia. Tratam-se de manifestaes autnomas, despojadas de
concepes preestabelecidas, e constituem um novo sujeito histrico que faz
de seu cotidiano um novo espao poltico, inaugurando novas prticas de
mobilizao e de organizao social. O sujeito coletivo uma nova identidade
plural, que por meio de diferentes expresses, nas suas diferentes
experincias de luta, aceleram o processo de democratizao do Estado e das
relaes sociais.39
Esses sujeitos so os operadores da reconstruo da sociedade civil,
contemporaneamente. Essa noo de sociedade civil revitalizada surge
principalmente na dcada de 80, com os movimentos sociais democratizantes
da Amrica Latina mas que vo se consolidar com os movimentos sociais
libertrios, tpicos dos anos 90, proponentes de projetos civilizatrios
democrticos, sensveis diversidade cultural e justia social.
A sociedade civil em construo concebida como "a esfera da
interao social entre a economia e o Estado, composta principalmente pela
esfera ntima (famlia), pela esfera associativa (especialmente associaes
voluntrias), movimentos sociais e formas de comunicao pblica."40 A
construo de um novo tipo de sociedade civil envolve tambm um conjunto
novo de direitos que teriam como o seu centro o direito de comunicao ao
invs do direito de propriedade.41 A sociedade civil no engloba toda a vida
38 WOLKMER, Antonio Carlos, op.cit. p.213.39 NARDI, Maria Elenir. O acampamento da Telebraslia e a sua luta pelo direito de morar. In: Ncleo de Prtica Jurdica e Escritrio de Direitos Humanos e Cidadania. Direito memria e moradia: realizao de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebraslia. Braslia: UnB, 1999. p.27 'V ie ira , uszt. op.cit. p. 45.41ARATO, Andrew & COHEN, Jean. Sociedade Civil e Teoria Social. In: AVRITZER, Leonardo (org). Sociedade Civil e Democratizao. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p.181.
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26
social fora do Estado e da economia. necessrio distinguir a sociedade civil
tanto de uma sociedade poltica de partidos, organizaes polticas,
parlamentos, quanto de uma sociedade econmica composta de organizaes
de produo e distribuio, em geral empresas, cooperativas, firmas etc.
O pluralismo jurdico, tal qual proposto, prev uma sociedade civil
capaz de preservar sua autonomia e formas de solidariedade em face do
Estado e da economia. Como define VIEIRA42 "a sociedade civil deixa de ser
vista apenas de forma passiva, como um conjunto de instituies, para ser
percebida tambm ativamente, como o contexto e o produto de atores coletivos
que se autoconstituem." Isto , os sujeitos coletivos de Direito, fundamento
material do pluralismo jurdico-poltico comunitrio, so atores coletivos que se
autoconstituem e querem reordenar o seu espao poltico com prticas
democrticas e pluralistas. A sociedade civil como reordenadora do espao
comunitrio produtora de democracia e solidariedade social. Democracia
aqui definida
...enquanto capacidade dos movimentos sociais interativos de constituir associativamente uma terceira esfera, a esfera da sociedade civil. ... [que se identifica] com a vigncia de uma democracia radical autolimitada, na qual a ao das instituies sistmicas [Estado e economia] seriam limitadas pelo pluralismo e associativismo, assim como pela constituio de fruns intermedirios entre a sociedade civil, o Estado e o mercado.43
A proposta do pluralismo jurdico defendido por WOLKMER pretende
um modelo poltico e jurdico que integra um pluralismo legal com um
pluralismo comunitrio-participativo44, tendo como fundamentos a emergncia
dos novos sujeitos coletivos de Direito, a satisfao das necessidades
humanas fundamentais alm da reordenao do espao pblico mediante uma
poltica democrtica-comunitria descentralizada e participativa.
42 VIEIRA, Liszt. op.cit. p. 48.43Avritzer, Leonardo. Introduo. In: AVRITZER, Leonardo (org). Sociedade Civil e Democratizao. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p.15.44 Maiores informaes em WOLKMER, Antonio Carlos, op.cit.
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A reordenao do espao pblico encontra fundamento, tambm, na
proposta de democratizao de AVRITZER45, que ressalta: " a democratizao
implica no surgimento de uma esfera especfica encarregada de renovar os
potenciais do pluralismo e da cultura poltica democrtica."
Os sujeitos coletivos de Direito so os principais agentes de
transformao desse espao pblico pois atravs de suas lutas deram uma
real efetividade aos direitos formalmente declarados. E a noo de democracia
tambm passa pela idia de uma sociedade aberta que permite a consolidao
dos direitos j institudos e a criao de novos direitos. Os sujeitos coletivos de
Direito so os principais autores dessa criao por meio de uma cidadania que
se define e se constitui "na criao de espaos sociais de luta (movimentos
sociais) e na definio de instituies permanentes para a expresso poltica
(partidos, rgos pblicos), significando, necessariamente, conquista e
consolidao social e poltica."46
A cidadania nessa reconstruo do espao pblico tendo como agente
os sujeitos coletivos de Direito supera a viso de ser apenas um direito poltico
de votar e ser votado, mas se apresenta como estratgia poltica47 ligada luta
por direitos realizada pelos movimentos sociais. A cidadania por isso no um
conceito estanque mas fruto da construo histrica de cada sociedade e
evolui de acordo com a conquista e consolidao de direitos.48
DAGNINO49 trabalha essa nova noo de cidadania partindo da
concepo de um direito a ter direitos50 que no se limita a conquista legais ou
45 Avritzer, Leonardo, op.cit.p.15.46 VIEIRA, Liszt. op.cit. p. 40.47 DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergncia de uma nova noo de cidadania. In: Anos 90: Poltica e Sociedade no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1994.p. 103.48 Ver Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro:Campus, 1992; Na mesma linha MARSHALL, T.H. Cidadania,Classe social e Status. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.49 DAGNINO, Evelina. op.cit. p. 108 e ss.50 Hanah Arendt preocupada com os direitos dos aptridas em sua maioria refugiados de guerra observou que a cidadania corresponde ao direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade em direitos no um dado mas um construdo da convivncia coletiva que requer um espao pblico em comum. o acesso a esse espao pblico que o vnculo original da cidadania que significa o direito de pertencer a uma comunidade poltica o que permite a construo de um mundo em comum atravs do processo de assero dos direitos humanos, (apud LAFER, Celso. A reconstruo dos direitos humanos: a contribuio de Hannah Arendt. Estudos Avanados, vol. 1, n1 1987,So Paulo:IEA,1997.p.55)
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acesso a direitos previamente definidos, ou implementao efetiva de
direitos formais e inclui a criao de novos direitos que emergem de lutas
especficas e da sua prtica concreta. Essa noo ampliada de cidadania
requer e constitui-se na formao de novos sujeitos sociais ativos que definem
o seu prprio direito e lutam pelo seu reconhecimento sendo por isso uma
estratgia para os excludos. Tambm, constitui-se como uma proposta de
sociabilidade que trata da difuso de uma cultura jurdica que se prope a
afetar no s a relao da sociedade/indivduo com o Estado mas que se
preocupa em construir dentro da prpria sociedade civil uma cultura de
respeito e de convivncia com o outro cidado, emergente da luta dos
movimentos sociais. A cidadania ativa com base nos sujeitos coletivos de
Direito requer e luta, no s, para ter mais acesso ao sistema poltico mas,
tambm, para ter o direito de definir e participar efetivamente do prprio
sistema.
Cada vez mais os sujeitos coletivos de Direito esto sendo
considerados legtimos para se autoorganizarem e recomporem a sociedade
civil na sua reconstruo. Se por um lado o ressurgimento de uma sociedade
baseada em grupos faz com que seja possvel construir uma sociedade com
bases democrticas, por outro essa legitimao das organizaes civis como
canalizadores das necessidades sociais faz com que haja uma crise de
representatividade51 e a conseqente perda de legitimidade por parte dos
Partidos Polticos que se constituam como o nico canal de acesso,
aumentando o fosso no plano do Estado e a chamada sociedade civil
organizada.
Essa mudana decorreu das transformaes socioeconmicas da ltima
dcada, que pelo seu carter impositivo acabaram refletindo na estrutura
desses movimentos sociais que tiveram que se adaptar, modificando o seu
projeto social e sua estrutura, para sobreviverem aos novos tempos. Os
51 Sobre o tema ver: WOLKMER, Antonio Carlos. Crise de representao e cidadania participativa na Constituio brasileira de 1988. In: WOLFGAN, Ingo. O direito pblico em tempos de crise- estudos em homenagema Ruy Rubem Ruschel. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1999. p.39-48
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movimentos sociais, por isso, foram se institucionalizando, expandindo os seus
objetivos e ampliando seus membros. A institucionalizao foi necessria para
que os sujeitos coletivos fossem aptos a captar recursos provenientes tanto do
mercado quanto do Estado. Como percebe VIEIRA52: "Os movimentos sociais
levantam a bandeira da autonomia e da democratizao da sociedade, mas
seria um erro imaginar que possam prescindir das instituies do Estado
enquanto sociedade politicamente organizada." A necessidade de uma
estratgia poltica dual pelos movimentos sociais foi prevista por COHEN
&ARAT053 que pregam que estes devem atuar no plano institucional e extra-
institucional, apoiados ao mesmo tempo nas organizaes da sociedade civil e
em outros autores, como os partidos e sindicato:
Os princpios da legitimidade democrtica e da representao implicam na livre discusso de todos os interesses envolvidos no interior de uma esfera pblica institucionalizada (o parlamento) e a primazia do mundo da vida em relao aos dois subsistemas [famlia e associaes]. Todavia, o desacoplamento entre a esfera pblica e uma forma genuna de participao conduz excluso de uma gama de interesses e questes da agenda de discusso poltica. Por outro lado, como as polticas ambguas do estado do bem-estar social revelam, as presses do mundo da vida no podem simplesmente ser ignoradas pelos sistemas representativos, mesmo na forma altamente seletiva de funcionamento adotada contemporaneamente.
As ONGs (organizaes no-governamentais) surgem e se fortalecem
por serem mais adequadas a essa nova situao e por se constiturem como
entidades de carter no-governamental, no-mercantil, no-corporativo e
no-partidrio, e, portanto, aptas a assumir um papel estratgico enquanto"^
novos sujeitos coletivos de Direito que levantam a bandeira da tica, da
cidadania, da democracia e da busca de um novo padro de desenvolvimentc
que no produza a excluso social e a degradao ambiental. Tambm pode
se dizer que so aptas tanto pelo grau de institucionalizao que possuem
quanto pela sua capacidade tcnica. Ainda assim, o fortalecimento das ONGs
incentivou e estimulou toda uma camada de movimentos sociais de ao local,
com um grau menor de institucionalizao mas que so essenciais para a
52 VIEIRA, Liszt. op. cit.p. 61.53 ARATO, Andrew & COHEN, Jean. op.cit. p.168.
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consolidao dos ideais democrticos a que esses novos movimentos se
prope. As ONGs vm ocupando um papel de relevncia tanto no espao
pblico local quanto a nvel transnacional, no s por exigncia dos
paradigmas da sociedade informacional mas pelo fato dos problemas serem de
ordem global. O fato de agirem como elos dessas duas esferas, a global e a
local, alm de terem que lidar com vrios atores sociais informais ou
institucionalizados que se proliferaram na reconstruo do espao pblico, faz
com que haja a necessidade de que esses vrios tipos de sujeitos coletivos
articulem-se como redes tal qual o paradigma da sociedade informacional. As
redes, como foi visto, so estruturas capazes de se expandirem de forma
ilimitada, integrando novos ns (atores sociais) atravs de compartilhamento
dos mesmos interesses. As ONGs, por sua vez, so os ns dessas redes que
possuem pontos eqidistantes devido ao seu carter democrtico e
descentralizado.
Cabe ressaltar que trata-se agora da consolidao e no mais da
emergncia de novos sujeitos coletivos, atravs das redes de movimentos
sociais que contribuem para efetividade material do pluralismo, no s como
sujeitos legtimos para fonte de produo jurdica mas com uma estrutura
organizacional baseada na autonomia, participao, articulao e
descentralizao que identificam-se com a proposta de reordenao do
espao pblico do pluralismo jurdico.
As redes de movimentos sociais transitam na sociedade informacional
pelo espao de fluxos atravs das redes eletrnicas de comunicao. Ao
conseguirem se comunicar por esse meio, compartilham as experincias e os
problemas em comum e reconfiguram, juntamente com outros atores presentes
no espao de fluxos, o espao pblico. A perspectiva do uso dos meios de
comunicao eletrnicos na reordenao democrtica do espao pblico foi
prevista por COHEN & ARATO54:
No domnio da esfera pblica literria, no se pode pensar odesenvolvimento dos meios de comunicao de massa apenas como
54 ARATO, Andrew & COHEN, Jean. op.cit. p.169.
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um sinal puramente negativo da mercantilizao ou da distoro administrativa da comunicao. Certamente, a possibilidade de controle social aumenta com o modelo de comunicao de massa de cima para baixo e do centro para a periferia. No entanto, as formas generalizantes de comunicao desprovincializam, expandem e constituem novos pblicos. Alm do mais, o desenvolvimento tcnico dos meios eletrnicos de comunicao no conduz, necessariamente, centralizao, tal como parece evidente atualmente. Ele pode tambm levar criao de formas mais horizontais, autnomas e criativas de pluralismo comunicativo. Portanto, nesse caso, as alternativas so entre a lgica manipulativa da indstria cultural e a emergncia de contrapblicos e contraculturas capazes de utilizar os novos meios de comunicao de massa de formas no hierrquicas.
Na proposta aqui apresentada ser ressaltada a possibilidade das redes
de movimentos sociais interagirem utilizando-se das novas tecnologias da
informao, tal qual previsto na sociedade informacional, de forma que
possam buscar a reordenao do espao pblico democrtico e participativo e
assim contriburem para a efetivao de um real acesso informao e,
paralelamente, para a implementao e consolidao dos direitos humanos
que advm da realidade virtual e do desenvolvimento da ciberntica, tambm
chamados de direitos de quinta gerao55. -
As redes de movimentos sociais constituem os sujeitos coletivos dos
anos 90 que so fundamentos do pluralismo jurdico e pr-requisitos para a
noo ampliada de cidadania assim como construtores dos direitos humanos
j institudos ou a serem reconhecidos. Com a utilizao dos recursos de
informtica para a organizao de suas estruturas as redes de movimentos
sociais passaram a ser, mesmo que indiretamente, promotoras da educao
digital proporcionando o acesso e a difuso da informao relativa tanto aos
meios tecnolgicos quanto aos contedos do ciberespao56. O ciberespao, tal
qual proposto por LVY e que ser explicado a seguir, proporciona para essa
sociedade informacional e para as redes de movimentos sociais nela inseridos
uma oportunidade de renovarem os laos sociais e construrem o que ele
55 OLIVEIRA JR., Alcebades. Cidadania e novos direitos. In: OLIVEIRA JR., Alcebades. O novo em Direito e Poltica. Porto Alegre: Livraria do advogado,1997.p. 193.56 Ciberespao trata-se do espao formado no interior das redes de comunicao mediada por computadores. O ciberespao se assenta sobre a vasta estrutura de telecomunicaes, mas no se reduz a ela. Em: SILVEIRA, Srgio Amadeu da. Poder no ciberespao: o Estado-
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chama de inteligncia coletiva. Trata-se de uma proposta antropolgica,
humanstica e de renovao do uso da tecnologia como forma de
desenvolvimento social.
1.3 A formao do espao do saber na sociedade em rede
A abordagem de LVY mais otimista com reiao mudana da
sociedade. Logicamente, fala-se nas dificuldades e nos obstculos a serem
vencidos, como por exemplo o aumento da distncia entre ricos e pobres,
excludos e bem-posicionados, entre o analfabeto e o analfabeto digital57, mas
fala-se tambm de uma era ou melhor dizendo, de um espao que est se
iniciando com oportunidades que podem ser comparadas at mesmo
descoberta de novos mundos na poca das grandes navegaes. O
interessante que a mudana proporcionada pelas novas tecnologias
tamanha que como se a humanidade estivesse descobrindo novas terras,
lugares onde existem esperanas, medos e obstculos a serem vencidos.
Tem-se a oportunidade de se construir uma nova filosofia com a simples
modificao da tecnologia. Isso to raro na histria da humanidade, que vale
a pena se pensar nela ou ao menos indicar caminhos para que essa mudana
seja em prol da prpria humanidade e no em seu malefcio.
Portanto, a importncia da mudana que est em jogo muito maior do
que as dificuldades que a ela se impem. E basta lembrar que essa mudana
irreversvel e os problemas ligados a ela tambm. Por isso, no basta
apenas criticar, as solues devem ser extradas da prpria mudana.
Uma das solues est na utilizao dos novos meios de comunicao
no sentido de renovar profundamente as formas do lao social, criando uma
Nao, a regulamentao e o controle da Internet. 169 f. Dissertao. Mestrado em Cincia Poltica, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2000.p. 1057 Analfabetismo digital o termo utilizado para quem no possui conhecimentos que possibilitem o acesso s tecnologias como Internet, o computador. Na mesma linha o excludo digital aquele que no possui acesso s tecnologias. CBRIAN utiliza o termo cidados
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maior fraternidade e ajudando a resolver os problemas com os quais a
humanidade hoje se debate. Na verdade, no se trata de uma soluo, mas
sim de um projeto.
Como a forma e o contedo desse ciberespao que se abriu com as
novas tecnologias da informao e comunicao ainda so indeterminados (e
sero por muito tempo indeterminados graas a sua mutabilidade), no h que
se falar em um determinismo tecnolgico ou econmico. Vale dizer que nem o
Estado ou as empresas que produziram e continuam a inventar novas
tecnologias planejaram ou anunciaram o desenvolvimento da informtica
pessoal, o das interfaces grficas interativas para todos, o do BBS58 entre
outras tcnicas ou tecnologias, como a criptografia59, aquelas que sustentam
as comunidades virtuais60. O uso dessas tecnologias compartilhados por vrios
atores, tornaram indeterminados os caminhos que iriam seguir.
O carter indeterminado dessas modificaes talvez seja propcio para
que se construa ao longo dessa mudana um projeto que possa acompanhar o
ritmo dessas mudanas sem desmoronar. A pergunta inicial desse projeto
pode ser extrada das consideraes de LVY61:
Escolhas polticas e culturais fundamentais abrem-se diante dos governos, dos grandes atores econmicos, dos cidados. No se trata apenas de raciocinar em termos de impacto (qual o impacto das 'infovias'62 na vida poltica, econmica ou cultural?), mas tambm em termos de projeto (com que objetivo queremos desenvolver as redes digitais de comunicao interativa?).
conectados e cidados no-conectados. Conferir em CBRIAN, Juan Luis. A rede. Trad. Lauro Machado Coelho. So Paulo: Summus, 1999. p.78.58 BBS significa Boletim Board System nome dado para os primeiros sistemas de troca de mensagens que funciona como um quadro de avisos.59 Criptografia a tcnica de codificao e decodificao de mensagens, utilizando matemtica complexa para produzir chaves de leitura em forma de equaes ou senhas. utilizada para manter a integridade e/ou a autenticidade de um documento.60 Comunidades virtuais so aquelas formadas no ciberespao.61 LVY, Pierre. A inteligncia coletiva... . p.1362 Infovias ou autopistas da informao, via pela qual passa a informao. Esse termo no muito adequado sendo mais completo a utilizao do termo ciberespao para significar o espao onde as informaes circulam e so armazenadas e os cibernautas (navegadores do ciberespao) interagem entre si. Porm o ciberespao pode ser utilizado num sentido mais amplo.
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Partindo desse questionamento e observando as transformaes da
sociedade sob um olhar antropolgico, LVY constri teoricamente o Espao
do Saber. O Espao do Saber um novo espao antropolgico63 onde so
valorizados os saberes coletivos e a inteligncia. Nesse Espao, os saberes
da humanidade so reconhecidos como fonte de todas as outras riquezas. As
suas principais caractersticas so a velocidade de evoluo dos saberes, a
massa de pessoas que pode ser convocada a aprender e a produzir novos
conhecimentos e o surgimento de novos instrumentos, novos espaos, novos
sujeitos (chamado por ele de "ferramentas" como o ciberespao) que
promovem o surgimento de novos laos entre cada sujeito. Essa renovao
do lao social por intermdio do conhecimento traado como projeto a ser
alcanado por esse Espao do Saber, assim como a construo de uma
inteligncia coletiva.
A velocidade da troca e evoluo dos saberes caracterstica marcante
desse Espao. As modificaes so muito rpidas assim como a interferncia
dessas no cotidiano, no trabalho, nos meios de comunicao e na relao com
o corpo, com o espao e, principalmente, com o tempo, so cada vez mais
acentuadas. A massa refere-se ao "coletivo humano que deve, daqui por
diante, se adaptar, aprender e inventar para viver melhor no universo
complexo e catico em que passamos a viver."64 J as ferramentas so
"instrumentos institucionais, tcnicos e conceituais para tornar a informao
'navegvel', para que cada um possa orientar-se e reconhecer os outros em
funo dos interesses, competncias, projetos, meios, identidades recprocos
no novo espao."65
A necessidade d utilizao de ferramentas surge devido quantidade
de informaes em circulao que impossibilita a filtragem de informaes
63 Espaos antropolgicos "no so eras, nem idades, nem pocas, pela boa razo de que no substituem uns aos outros, mas coexistem. E, no entanto, enquanto espaos estruturantes e autnomos, aparecerem sucessivamente. Como o espao que se desenvolveu de maneira consistente toma-se irreversvel, ele no eliminado pelo que vem depois dele." (LVY, Pierre. A inteligncia coletiva.... p. 189). So identificados quatro espaos antropolgicos a Terra, o Territrio, o Espao das Mercadorias e o mais recente o Espao do Saber, cada um com suas especificidades.64 LVY, Pierre. A inteligncia coletiva....p.25
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segundo a subjetividade de cada um. Alm disso, a utilidade dessas
ferramentas fornecer aos grupos humanos instrumentos para reunir suas
foras mentais a fim de constituir intelectuais coletivos. Tenta-se, assim,
definir o papel da tcnica nesse novo espao e conseqentemente o objetivo
dessa tecnologia:
A informtica comunicante se apresentaria ento como a infra- estrutura tcnica do crebro coletivo ou do hipercrtex de comunidades vivas. O papel da informtica e das tcnicas de comunicao com base digital no seria 'substituir o homem', nem aproximar-se de uma hipottica ' inteligncia artificial', mas promover a construo de coletivos inteligentes, nos quais as potencialidades sociais e cognitivas de cada um podero desenvolver-se e ampliar-se de maneira recproca.66
A renovao do lao social como proposta a ser alcanada surge
exatamente quando necessrio criar-se uma identidade que no tenha
vnculos laos tnicos, nacionais ou religiosos. Deve-se tentar reconstruir um
lao social baseado no saber humano.
Para essa reconstruo alguns pressupostos so necessrios. O
aprendizado recproco deve ser visto como mediador das relaes humanas.
Alm disso, deve-se partir do princpio que todos os homens possuem
conhecimento, saberes pois constituem a espcie homo sapiens. Cada
homem dentro de suas competncias e peculiaridades deve ser encarado
como detentor de conhecimentos e saberes adquiridos ao longo de sua vida.
Nessa renovao do lao social, os homens se relacionariam para
adquirir conhecimento uns dos outros. O que um ser humano no soubesse o
outro poderia saber. A idia do outro passaria, ento, a ser construda em
relao ao que ele pode saber ou pode complementar em termos de
conhecimento. Praticar-se-ia a valorizao do conhecimento alheio. O valor
estaria na possibilidade de complementao e troca de saberes. Nas palavras
de LVY67:
65 LVY, Pierre. A inteligncia coletiva....p.2566 LVY, Pierre. A inteligncia coletiva....p.2567 LVY, Pierre. A inteligncia coletiva....p.27
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O outro no mais um ser assustador, ameaador: como eu, ele ignora bastante e domina alguns conhecimentos. Mas como nossas zonas de inexperincia no se justapem ele representa uma fonte possvel de enriquecimento de meus prprios saberes. Ele pode aumentar meu potencial de ser, e tanto mais quanto mais diferir de mim. Poderei associar minhas competncias s suas, de tal modo que atuemos melhor juntos do que separados. As 'rvores de competncias', hoje comuns em empresas, escolas e quartis, permitem desde j ver o outro como um leque de conhecimentos no Espao do saber, e no mais como um nome, um endereo, uma profisso ou um status social.
O que se pretende nessa proposta de reconstruo da identidade a
partir dos saberes de cada um justamente a valorizao do ser humano e do
seu conhecimento sem que haja conceitos pr-formados, rtulos e sim um ser
humano pronto e apto para transferir e receber conhecimentos. Dentro dessa
reconstruo, h o objetivo de se valorizar cada um pela sua diferena j que
ser esse o ponto de intercmbio dos saberes:
O Espao do saber comea a viver desde que se experimentam relaes humanas baseadas nesses princpios ticos de valorizao dos indivduos por suas competncias, de transmutao efetiva das diferenas em riqueza coletiva, de integrao a um processo social dinmico de troca de saberes, no qual cada um reconhecido como uma pessoa inteira, no se vendo bloqueada em seus percursos de aprendizado por programas, pr-requisitos, classificaes a priori ou preconceitos em relao aos saberes nobre ou ignbeis.68
Cabe lembrar que, para LVY69, conhecimento o saber adquirido da
relao com os signos e com as informaes; competncia seria a capacidade
desenvolvida quando h a interao dos seres humanos com as coisas e o
saber adquirido na relao com os outros mediante a iniciao e
transmisso. Os trs referem-se inteligncia humana. Trata-se, assim, de
saberes no especializados mas espalhados pelo espao e vivendo dentro de
cada ser humano, dentro de cada identidade. Cada um valorizado por seu
conhecimento, seus saberes e suas competncias.
Na medida em que se renovam os laos sociais, construda a
inteligncia coletiva. A inteligncia coletiva "uma inteligncia distribuda por
68 LVY, Pierre. A inteligncia coletiva....p.2869 LVY, Pierre. A inteligncia coletiva....p.27
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toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que
resulta em uma mobilizao efetiva das competncias."70 Alm disso, tem-se
como base e objetivo da inteligncia coletiva o reconhecimento e o
enriquecimento mtuos das pessoas.
A mobilizao efetiva das competncias um ponto que deve ser
enfatizado. Essa mobilizao deve partir necessariamente do reconhecimento
das competncias de cada um. Quando se reconhece as competncias de um
sujeito, sua identidade social valorizada e permite-se sua mobilizao para
um projeto coletivo de acordo com as suas capacidades. Quando, ao contrrio,
essas competncias no so reconhecidas, inicia-se um processo de excluso
e de desfigurao que recusa a prpria identidade social do sujeito.
A inteligncia coletiva no uma inteligncia que valoriza o todo em
detrimento do indivduo. Trata-se de um projeto em que necessrio valorizar
a inteligncia de cada um, para que se crie esse coletivo. Da interao com as
diversas comunidades, os indivduos se transformam continuamente.
Nesse projeto humanstico tenta-se incluir e ampliar "o 'conhece-te a ti
mesmo' para um 'aprendamos a nos conhecer (sic) para pensar (sic) juntos', e
que generaliza o 'penso, logo existo' em um 'formamos uma inteligncia
coletiva, logo existimos eminentemente como comunidade"'71. No se trata de
fundir as inteligncias individuais em uma, mas sim de um processo de
crescimento, de diferenciao e de retomada recproca das singularidades