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Composições: infância, monstros e contos de fadas
Gisele Dhein
Lutiane de Lara
PUCRS
Betina Hillesheim
Lílian Rodrigues da Cruz
UNISC
A forma como explicamos e damos sentidos ao universo é decorrente
da constituição de determinados regimes de verdade e da produção de modos
de subjetivação. Tendo em vista a noção moderna de infância, considera-se
que é a partir de como esta é conceituada e de quais práticas sociais se criam
para arregimentá-la, que podemos identificar como uma sociedade constrói o
que entende por infantil e o modo de fazê-la desenvolver ou crescer.
Assim, a partir do filme Monsters S/A1, o presente trabalho utiliza a
figura dos monstros para discutir as idéias sobre monstros e infância,
embaralhando-as e remontando-as de modo a criar novas figuras sobre o
infantil. Neste exercício, buscamos explorar em que medida uma composição
sobre a infância pode permitir ser, pensar e sentir de outras formas.
No delineamento de uma nova paisagem social e de novos raciocínios
populacionais que se firmaram a partir do século XVIII, estabeleceu-se um
novo lugar para as crianças, as quais passaram a ser alvo de operações que
administram corpos e visam à gestão calculista da vida, a partir de
determinadas intervenções que objetivam inseri-las em processos de regulação
e controle. A infância torna-se, portanto, um domínio a ser conhecido, sendo o
corpo infantil atravessado por relações de poder e saber (BUJES, 2000).
Assim, a condição histórica de possibilidade para o nascimento da infância,
conforme Corazza (2000) relaciona-se à eficácia produtiva do biopoder, que se
volta para os corpos no sentido de auxiliá-los a garantir sua saúde e bem-estar.
Desta maneira, constrói-se, mediante a subordinação da identidade infantil a
1 Descrição do filme disponível em http://www.terra.com.br/cinema/monstros.
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partir de mecanismos específicos de poder e saber, a idéia do infantil, sendo
que as crianças passam a ser sujeitadas pelo funcionamento de um conjunto
de instituições disciplinares, sendo tomadas como o outro do adulto, isto é,
como primitivas, selvagens, dependentes, carentes, frágeis. Eis, portanto,
como, na Modernidade, as gentes pequenas passaram de fantasmas a
verdades de sujeito (CORAZZA, 2002).
Neste momento, as cartas estão dadas. Retiraremos duas do baralho,
sem a pretensão de colocá-las todas sobre a mesa, nem de esgotar os
sentidos de cada uma delas. Como aquelas crianças que ainda não conhecem
as regras do jogo, apenas brincaremos com as cartas que escolhemos do
monte maior.
Primeira carta: monstros
Para Foucault (2001), o monstro, no período que vai da Idade Média
até o século XVIII, é essencialmente o misto: mistura de dois reinos (o homem
com pés de ave), de duas espécies (o porco com cabeça de carneiro), de dois
indivíduos (aquele que tem duas cabeças e um corpo), de dois sexos (um
hermafrodita), da vida e da morte (o feto que sobrevive alguns dias com uma
morfologia que não lhe permite viver), de formas (quem não tem pés ou
braços). Ao falar do monstro – um dos três elementos, junto com o indivíduo a
ser corrigido é a criança masturbadora, que irá constituir o domínio da
anormalidade –, o autor coloca que seu campo de aparecimento é um espaço
jurídico-biológico, configurando-se não somente como uma violação das leis da
sociedade, mas também das leis da natureza.
Entretanto, o monstro é um fenômeno tanto extremo como raro: é o
limite, o ponto de inflexão da lei, aquele “que combina o impossível com o
proibido” (FOUCAULT, 2001, p.70), trazendo consigo a transgressão à
natureza, a mistura, o embaralhamento dos limites e dos caracteres e, por
conseguinte, transformando-se em uma violação e um desafio ao direito. Deste
modo, a figura do monstro é essencial na problemática da anomalia, sendo
que, em torno dele, as instâncias de saber-poder se inquietam e se
reorganizam.
De acordo com Cohen (2000), o monstro é utilizado como metáfora
para pensarmos o não igual, o que foge à norma, que está na fronteira, assim
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como o louco, o negro, o pobre. O monstro recusa-se à categorização, sendo
criado nas encruzilhadas metafóricas (nos contos, mitos, assombros, ditos)
como a corporificação de um momento cultural, de uma época, de um
sentimento e de um lugar. Incorpora medos, desejos, ansiedades e fantasias,
dando-lhes vida e uma estranha independência. Desta maneira, eles são
híbridos perigosos, pois perturbam a pretensa ordem do mundo, a partir da
suspensão das formas, ameaçando destruir toda e qualquer distinção.
Segundo expressão do autor, “o monstro é a diferença feita carne” (p.32), isto
é, o corpo monstruoso é a inscrição da alteridade.
Nesta perspectiva, Gil (2000) aponta que o monstro não está além do
domínio humano, mas encontra-se em seu limite, “pois o monstro não é senão
a ‘desfiguração última do Mesmo no Outro” (p.174). E, ao marcar o limite, o
monstro confere aos seres humanos uma imagem estável de si mesmos, na
medida em que, fora desse limite, nada mais há senão a demência e a
desordem.
Se a etimologia da palavra monstro – monstrum – remete a ‘aquele que
revela’, ‘aquele que adverte’, o monstro existe para ser lido: mas, como as
letras na página, ele significa algo diferente dele, ou seja, é sempre um
deslocamento (COHEN, 2000). Assim, conforme Gil (2006), o monstro
comunica um excesso de ser. Ao exibir sua anormalidade, o monstro oferece
ao olhar o que jamais é visto; ele mostra o irreal verdadeiro, exibindo-o, sem se
preocupar com o olhar do outro, fascina, – atos que, no final, significam a
mesma coisa.
A monstruosidade fascina. E por quê? Gil (2000) entende que o
monstro vem mostrar como a humanidade do homem contém o germe de sua
inumanidade. Os monstros existem “não para nos mostrar o que não somos,
mas o que poderíamos ser” (p. 168).
Atração e repulsa. No romance concebido por Mary Shelley em um
chuvoso verão de 1816, Victor Frankenstein, mergulhado em seu projeto de
criação, assim descreve seus sentimentos no momento em que sua criatura
veio à vida:
Eu o havia desejado com um ardor que excedia à moderação, mas agora, que havia terminado, desvanecera-se a beleza do
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sonho, e meu coração se enchia de horror e asco. Incapaz de suportar o aspecto do ser que eu havia criado, saí correndo do aposento, e continuei durante muito tempo a andar pelo quarto, sem poder dormir (SHELLEY, 1997, p.61-2).
Entretanto, como comenta Bloom “o monstro é mais humano do que
seu criador” (1997, p.242-3), mais digno tanto de amor quanto de ódio, capaz
de causar mais piedade e mais temor. Nesta perspectiva, o autor pontua a
confusão que se faz entre a criatura e o criador – ambos acabam por ficar
conhecidos pelo nome de Frankenstein –, remetendo à dualidade da novela de
Shelley: tanto um como outro são as metades antitéticas do mesmo ser.
Ao nos acenar com práticas proibidas, espreitando-nos em um espaço
ambíguo que conjuga medo e atração, o monstro demarca, assim, uma
geografia. Ele configura os lugares sociais nos quais os corpos podem se
movimentar e os limites que não devem ser transpostos, sob o risco de sermos
atacados ou, ainda pior, tornarmo-nos também monstruosos (COHEN, 2000).
Eis, portanto, uma carta inquietante, perturbadora. Uma carta que nos
assombra constantemente, tais como os monstros que habitam os armários
dos quartos infantis e ameaçam o sono das crianças. Aliás, de acordo com o
filme infantil citado no início deste artigo, este é o trabalho dos monstros: os
gritos das crianças os alimentam e garantem sua sobrevivência. Entretanto, os
monstros as temem na mesma medida: o toque de uma criança pode destruí-
los. Uma relação desconcertante. Talvez seja necessário buscar outras cartas...
Descansem os monstros, por ora.
Segunda carta: contos de fadas
Ao pensarmos em monstros, lembramo-nos das lendas, das histórias
populares, dos contos de fadas. Estes últimos - os contos de fadas - têm sido,
na Modernidade, sistematicamente associados à infância, constituindo-se uma
parcela significativa da literatura infantil (e de seus derivados, como, por
exemplo, os filmes infantis). Entretanto, como assinala Tatar (2004), até o
século XVII os contos não se dirigiam especificamente às crianças, mas se
relacionavam a uma tradição narrativa popular. É Perrault, na França, quem
recolhe estes contos populares e os direciona para a infância, sendo
responsável pelo primeiro impulso à literatura infantil. Assim, em 1697, ele
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publica Contos da Mamãe Gansa, cujo título original era Histórias ou narrativas
do tempo passado com moralidades (LAJOLO E ZILBERMAN, 1999), tendo por
intenção entreter as crianças e orientar sua formação moral (COELHO, 1998).
Sublinhamos aqui a utilização do termo moralidades no título do livro de
Perrault, assim como a intencionalidade de orientar sua formação moral, a
partir do que já se percebe o entrelaçamento entre a pedagogia e a literatura
infantil. Aliás, como pontuam Lajolo e Zilberman (1999), uma vez que a
literatura infantil depende da capacidade de leitura das crianças, esta é
colocada, desde o início, em uma posição subsidiária em relação à Educação,
sendo que, muitas vezes, a função utilitário-pedagógica domina a produção
destinada à infância (Palo e Oliveira, 1988). Mas o que ensina a literatura
infantil? Ora, ao aliar-se ao discurso pedagógico, a literatura infantil “ensina, em
primeiro lugar, como ser criança, ou melhor, delineia essa idéia de infantil,
dando determinados contornos dentro dos quais as crianças devam se
reconhecer, marcando seus lugares sociais e conformando o corpo infantil”
(HILLESHEIM, 2006, p.54).
Quem são os monstros dos contos de fadas? Pensando em um sentido
amplo, os contos de fadas são habitados por seres assustadores: lobos maus
(como em Chapeuzinho Vermelho e Os Três Porquinhos), gigantes (como em
Pequeno Polegar e João e o Pé de Feijão), bruxas (como em Branca de Neve,
João e Maria, Rapunzel e A Bela Adormecida), feras (como em A Bela e a
Fera). Seres monstruosos que reeditam os dois grandes monstros do domínio
da anomalia, o incesto dos reis e o canibalismo (FOUCAULT, 2001), tais como
em Pele de Asno e O Pé de Zimbro. Contos utilizados para a hora de dormir,
junto com doces cantigas de ninar que falam de cucas e bichos-papões,
quando a escuridão vem acalentar nossos mais aterrorizantes pesadelos.
Temos assim vários elementos nesta carta: um cenário (os contos de
fadas), um autor (o adulto), um propósito (educar), um personagem (o monstro)
e um campo de ação (a infância). Como se desenrola a cena? Por que os
monstros são tão insistentemente chamados para compô-la?
Duas cartas sobre a mesa
Do baralho, tiramos duas cartas: monstros e contos de fadas. Que
disposição poderemos lhes dar, de modo que possam falar (e também fazer
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calar) sobre a infância? Muitas são as entradas possíveis neste jogo, pois, tal
como no castelo de Kafka pode-se entrar por qualquer extremidade, uma vez
que o que vale é a experimentação, a busca de conexões entre os pontos e as
modificações que aconteceriam caso utilizássemos outra entrada qualquer
(DELEUZE E GUATTARI, 1997).
Sigamos, assim, nossa carta primeira – os monstros. Que combinações
podemos vislumbrar? Um filme infantil, intitulado Monstros & Cia. Elementos
dos contos de fadas, tais como poucos personagens na trama, características
exageradas (bons e medrosos; valentes e nobres; anões ou gigantes; feios e
maus, etc.). Além disto, tais características são ressaltadas, sendo que, no
final, o bem triunfa sobre o mal, o corajoso sobre o covarde, o belo sobre o feio,
sendo o vício punido e a virtude recompensada (CF. SOSA, 1993). Utilização
de técnicas de animação computadorizadas, as quais, de acordo com Merten
(2003), têm-se tornado ferramenta fundamental nos filmes infantis.
Um filme sobre monstros... Mas, surpresa! Não se trata de um cenário
escuro, cheio de sombras e recantos assustadores, nem os monstros causam
terror mediante a visão de seus corpos deformados, suas faces desfiguradas
ou seus hábitos repugnantes e agressivos. Ao contrário, tudo em Monstros &
Cia é límpido e organizado; o sol brilha e a cidade dos monstros pulsa cheia de
vida. E os monstros... Ah, os monstros, em sua maioria, são fofos, coloridos,
interessantes, divertidos, bonzinhos... Como diz a menina do filme, parecem
um gatinho, bichinhos de pelúcia macios. Monstros domesticados, muito
distantes das monstruosidades que nos assustam.
Se, como coloca Cohen (2000), os monstros dizem de nós mesmos e
nos interrogam sobre porque os criamos, cabe perguntar: por que criamos
monstros domesticados? Ora, já Platão alertava que o homem é habitado por
feras e que a infância deveria ser material de política, visto que “a criança é a
mais difícil de manejar de todas as bestas” (FUENTES, 2006, p.223). Talvez
monstros domesticados venham nos dizer do nosso desejo de domesticação
da infância, que nos afaste de uma infância selvagem, incontrolável, repleta de
vigor, que enfrenta o mundo adulto, interrogando-o incessantemente, em sua
ladainha de porquês, suas birras, seus irracionalismos, suas paixões.
Domesticar monstros-crianças vem dizer de nosso desejo de governar
o infantil, torná-lo racional e cooperativo, moldá-lo, dar-lhe contornos nítidos.
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Monstros-crianças domesticados que não saem dos armários para nos
assustar à noite, que são dóceis e nos fazem companhia quando estamos sós.
Monstros-crianças domesticados que não se filiam à imagem de crianças-
baderneiras sugerida por Fuentes (2006), as quais brincam de morder sem
discriminar o que é útil ou inútil, deixando-se levar pela vida, subordinando a
razão ao calor da paixão. Monstros-crianças domesticados são bonitinhas,
fofas, limpas e doces, despertando-nos nobres sentimentos de amor e proteção
e, em hipótese alguma, nos causam terror. Assim, se não é possível manter
distância destes seres monstruosos, visto que habitam a escuridão dos nossos
quartos, que, pelo menos, possamos governá-los, disciplinar e controlar os
corpos e almas infantis, tornando-os inofensivos.
Por outro lado, cabe pontuar que o monstro supre uma necessidade: a
de convencer que o real humano é racional; entretanto, a monstruosidade atrai
seu devir-inumano. Ao se situar em um espaço de indiscernibilidade, o monstro
é capaz de suscitar um devir-outro (GIL, 2000). De acordo com Deleuze e
Guattari:
(...) devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento ou repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos (1997, p. 64).
A infância-monstro é, assim, experimentação, fluxo de intensidades,
multiplicidades, relação intensiva com o tempo, algo da ordem do mistério e da
vida. A infância-monstro, diferentemente do monstro-criança domesticado, não
se deixa capturar e insistentemente nos desconcerta. Portanto, não nos cabe
perguntar se ela existe, pois, parafraseando Cohen (2000): se esta não
existisse, existiríamos nós?
Deixamos as cartas, agora, para quem quiser realizar outros jogos,
talvez com outros parceiros, talvez com outras perguntas. E vamos nos
recolher à solidão de nossos quartos, assombrados por seres monstruosos e
terrores insondáveis.
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Referências
BLOOM, Harold. Posfácio. In: SHELLEY, Mary. Frankenstein. Porto Alegre: L&PM, 1997. p. 239-52. BUJES, Maria Isabel. O fio e a trama: as crianças nas malhas do poder. Educação e Realidade, v. 25, n. 1, p. 25-44, jan/jul. 2000. COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. 3ª ed. São Paulo: Ática 1998. COHEN, Jeffrey Jerome. A cultura dos monstros: setes teses. In.: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 25-55. CORAZZA, Sandra M. Infância e educação. Era uma vez... quer que conte outra vez? Rio de Janeiro: Vozes, 2002. CORAZZA, Sandra Mara. História da infância sem fim. Ijuí: Editora Unijuí, 2000. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 19. ed. Edições Graal: São Paulo. 2004. FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FUENTES, Héctor S. Os baderneiros, a guerra e os botões. In: TEIXEIRA, Inês A. de C.; LARROSA, Jorge; LOPES, José de S. M. (Org.) A infância vai ao cinema. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 209-226. GIL, José. Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p.165-84. GIL, José. Monstros. Ed. Lisboa: Relógio d’Água, 2006. HILLESHEIM, Betina. Entre a literatura e o infantil: uma infância. [Tese de Doutorado]. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Psicologia – PUCRS, 2006. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias. 6.ed. São Paulo: Ática, 1999. MERTEN, Luiz Carlos. Criança e cinema. In: JACOBY, S. A criança e a produção cultural. Porto Alegre, Mercado Aberto, 2003, p. 137-60. PALO, Maria J.; OLIVEIRA, Maria Rosa D. Literatura infantil: voz de criança.
9
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