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1 Comportamento Estratégico e Cognição: Organizações Atuando em um Mundo Construído Autoria: Simone Cristina Ramos, Jane Mendes Ferreira, Fernando Antônio Prado Gimenez Resumo Os estudos organizacionais têm contribuído com a Administração ao investigar relações complexas por meio de metodologias e paradigmas que respeitam tal condição. Ao estudar pequenas empresas, estratégia, comportamento do gestor, tais estudos o fazem de um ponto de vista descritivo, sem prescrições precipitadas. Nesse sentido, o papel da cognição na construção do ambiente competitivo é espaço profícuo para pesquisas e pode auxiliar a explicar parte da diversidade das respostas estratégicas. Sendo assim, o objetivo deste artigo é identificar a influência da cognição do dirigente na construção do ambiente competitivo de organizações de pequeno porte. Para alcançar tal objetivo foi empreendida uma pesquisa exploratória em 35 organizações. Do universo cognitivo que constitui a mente do dirigente foi delimitado trabalhar com dois elementos: o contexto de referência e o conjunto de construtos que constituem a base da avaliação do ambiente. Os métodos de coleta de dados utilizados foram: questionário e Grade de Repertório de Kelly. Os resultados apontam que, mesmo quando as condições ambientais objetivas como produto, público-alvo, concorrentes e legislação são similares, o ambiente construído é muito diverso demonstrando que existe um papel importante do gestor como cognizer na condução dos negócios. Introdução A turbulência ambiental tem crescido nos últimos anos e deriva do aumento da freqüência de mudanças que atingem as organizações e da aceleração da velocidade de difusão delas. Outro elemento que incrementa a turbulência ambiental é a globalização, que consiste na intensificação da concorrência por meio da eliminação de barreiras a trocas comerciais e expõe as empresas a padrões inéditos de competição. Com a consolidação da globalização, intensificou-se o debate sobre quais características, competências e estratégias são necessárias para o sucesso e longevidade das organizações produtoras de bens e serviços (BARBOSA, 2001). Frente a este quadro, os estudos sobre estratégia organizacional tornaram-se mais freqüentes e multifacetados. A multiplicidade de visões sobre o fenômeno, apesar de não formar um consenso, indica que “não existem respostas corretas neste campo, mas existem orientações interessantes e construtivas” (MINTZBERG; QUINN, 2001, p. 20). De acordo com Machado- da-Silva, Fonseca e Fernandes (1999), é possível classificar os estudos sobre estratégia em duas correntes, uma de natureza econômica e outra organizacional. A primeira entende a estratégia como resultado das escolhas racionais dos atores organizacionais, buscando maior eficácia e eficiência face à competição. A outra investiga a relação da estratégia com características organizacionais, como estrutura e tecnologia. Uma vertente de estudos organizacionais que tem contribuído para a pesquisa de estratégia em organizações e que fundamenta a construção deste artigo é a da perspectiva cognitiva. Para contribuir com os estudos do campo, o objetivo principal deste artigo é identificar a influência da cognição do dirigente na construção do ambiente competitivo de organizações de pequeno porte. Do universo cognitivo que constitui a mente do dirigente foi delimitado trabalhar com dois elementos: o contexto de referência e o conjunto de construtos que constituem a base da avaliação do ambiente. Como contribuição adicional, tem-se a utilização de técnica de pesquisa estruturada e compatível com os pressupostos dos estudos cognitivos. Podem ser associadas algumas justificativas a esta produção acadêmica. Do ponto de vista teórico, a investigação da estratégia baseada em princípios e métodos característicos dos estudos organizacionais pode culminar em contribuições importantes para o entendimento do

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Comportamento Estratégico e Cognição: Organizações Atuando em um Mundo Construído

Autoria: Simone Cristina Ramos, Jane Mendes Ferreira, Fernando Antônio Prado Gimenez

Resumo Os estudos organizacionais têm contribuído com a Administração ao investigar relações complexas por meio de metodologias e paradigmas que respeitam tal condição. Ao estudar pequenas empresas, estratégia, comportamento do gestor, tais estudos o fazem de um ponto de vista descritivo, sem prescrições precipitadas. Nesse sentido, o papel da cognição na construção do ambiente competitivo é espaço profícuo para pesquisas e pode auxiliar a explicar parte da diversidade das respostas estratégicas. Sendo assim, o objetivo deste artigo é identificar a influência da cognição do dirigente na construção do ambiente competitivo de organizações de pequeno porte. Para alcançar tal objetivo foi empreendida uma pesquisa exploratória em 35 organizações. Do universo cognitivo que constitui a mente do dirigente foi delimitado trabalhar com dois elementos: o contexto de referência e o conjunto de construtos que constituem a base da avaliação do ambiente. Os métodos de coleta de dados utilizados foram: questionário e Grade de Repertório de Kelly. Os resultados apontam que, mesmo quando as condições ambientais objetivas como produto, público-alvo, concorrentes e legislação são similares, o ambiente construído é muito diverso demonstrando que existe um papel importante do gestor como cognizer na condução dos negócios. Introdução A turbulência ambiental tem crescido nos últimos anos e deriva do aumento da freqüência de mudanças que atingem as organizações e da aceleração da velocidade de difusão delas. Outro elemento que incrementa a turbulência ambiental é a globalização, que consiste na intensificação da concorrência por meio da eliminação de barreiras a trocas comerciais e expõe as empresas a padrões inéditos de competição. Com a consolidação da globalização, intensificou-se o debate sobre quais características, competências e estratégias são necessárias para o sucesso e longevidade das organizações produtoras de bens e serviços (BARBOSA, 2001). Frente a este quadro, os estudos sobre estratégia organizacional tornaram-se mais freqüentes e multifacetados. A multiplicidade de visões sobre o fenômeno, apesar de não formar um consenso, indica que “não existem respostas corretas neste campo, mas existem orientações interessantes e construtivas” (MINTZBERG; QUINN, 2001, p. 20). De acordo com Machado-da-Silva, Fonseca e Fernandes (1999), é possível classificar os estudos sobre estratégia em duas correntes, uma de natureza econômica e outra organizacional. A primeira entende a estratégia como resultado das escolhas racionais dos atores organizacionais, buscando maior eficácia e eficiência face à competição. A outra investiga a relação da estratégia com características organizacionais, como estrutura e tecnologia. Uma vertente de estudos organizacionais que tem contribuído para a pesquisa de estratégia em organizações e que fundamenta a construção deste artigo é a da perspectiva cognitiva. Para contribuir com os estudos do campo, o objetivo principal deste artigo é identificar a influência da cognição do dirigente na construção do ambiente competitivo de organizações de pequeno porte. Do universo cognitivo que constitui a mente do dirigente foi delimitado trabalhar com dois elementos: o contexto de referência e o conjunto de construtos que constituem a base da avaliação do ambiente. Como contribuição adicional, tem-se a utilização de técnica de pesquisa estruturada e compatível com os pressupostos dos estudos cognitivos. Podem ser associadas algumas justificativas a esta produção acadêmica. Do ponto de vista teórico, a investigação da estratégia baseada em princípios e métodos característicos dos estudos organizacionais pode culminar em contribuições importantes para o entendimento do

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fenômeno (WHIPP, 2004) e possibilitar um estudo menos prescritivo. Investigar a estratégia como ela ocorre na prática parece ser uma necessidade nos estudos sobre o tema, pois, como afirma Machado-da-Silva (2004, p. 254), é necessário entender “não como deveria acontecer, mas como realmente acontece”. Portanto, uma justificativa para a execução desta pesquisa é seu caráter exploratório e não determinístico, permitindo conhecer um pequeno fragmento a mais do processo estratégico em pequenas empresas. Do ponto de vista prático, dada a relevância econômica das PME´s, compreender seu processo estratégico pode contribuir para o incremento de sua longevidade e, conseqüentemente, para o desenvolvimento econômico. A investigação de como a percepção dos movimentos da concorrência impacta na estratégia pode elucidar os motivos de determinadas escolhas. Isto possibilitaria aos dirigentes de PME´s a adoção de estratégias mais adequadas às forças ambientais a que suas empresas estão submetidas. Para a consecução dos objetivos deste artigo, além desta introdução, serão apresentadas a fundamentação teórica, metodologia, análises e conclusão. Fundamentação Teórica

A cognição pode ser entendida como os processos envolvidos na construção do conhecimento, o que envolve sua aquisição, organização e uso (GIMENEZ, 2000). Para Bastos e Borges-Andrade (2004, p. 69), “trata-se, portanto, de uma atividade que é, em essência, social, quer porque ocorre pautada em normas, regras, papéis e expectativas, quer por ser o pensamento acerca de quaisquer objetos sociais carregado de valor, de significado emocional e afetivo”. Para os pesquisadores que investigam as organizações em acordo com um paradigma cognitivista, a divisão entre organização e ambiente é arbitrária e a própria dicotomia entre estes dois elementos já comporta pressupostos da formação objetiva do ambiente (SMIRCICH; STUBBART, 1985). Esta corrente de pensamento adota a posição da construção (enact) do ambiente, onde o compartilhamento dos significados é construído na interação social dos atores envolvidos com as organizações. Neste sentido, o estrategista é responsável por um “processo interpretativo, criando linhas imaginárias” (SMIRCICH; STUBBART, 1985, p. 726) que desenham a realidade organizacional. Para Tenbrunsel, et al (2004 p. 34), alguns pressupostos e valores podem ser associados à perspectiva cognitiva. O primeiro deles é que “a pesquisa deve tentar entender o mundo como ele é, não como gostaríamos que fosse ou pensamos que deva ser”, o que mostra um claro rompimento com as vertentes prescritivas dos estudos da área. Outros pressupostos apontados são que a pesquisa descritiva fortalece-se quando comparada a padrões normativos e que tais padrões devem derivar de pesquisas descritivas. Isto reforça a conclusão anterior e chama a atenção para a necessidade de formação de um rol de dados empíricos que embasem a ação organizacional. O último pressuposto aponta para a relação recursiva existente entre cognição e ação. Por um lado, a ação é decorrente da percepção frente a uma situação, mas também cada escolha serve como fundamento para novas percepções. A dicotomia organização-ambiente parece ser uma constante nos estudos sobre organizações e estratégia. Para teóricos que adotam paradigmas racionalistas nas investigações sobre estratégia, a organização é fruto de escolhas racionais com foco na eficiência dos processos. Já o ambiente organizacional é percebido como “conjunto objetivo e unívoco de forças e demandas que exigem respostas apropriadas dos agentes no intuito de posicionar a organização de forma que esta sobreviva a tais pressões (...)” (CRUBELLATE, GRAVE; MENDES, 2003, p. 2). Para os teóricos de uma perspectiva mais interpretativa, a organização é entendida como “um universo cognitivo em que estruturas e processos refletem conhecimentos e artefatos simbólicos, construídos na interação social mediante o compartilhamento de significados atribuídos à realidade pelos esquemas interpretativos dos membros da

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organização” (MACHADO-DA-SILVA, 2004, p. 252). Porém, mesmo partindo de pressupostos diversos, estas duas escolas de pensamento preservam a dicotomia organização-ambiente. Os estudos que analisam o comportamento estratégico das organizações sob um ponto de visto cognitivo são recentes, se comparados com outras correntes de pensamento (GIMENEZ et al, 2000). Podem ser destacados alguns trabalhos que buscam detectar como o modelo mental do dirigente interfere no processo de escolha estratégica. No trabalho de Bogner e Thomas (1993), é proposto um modelo que integra elementos do modelo econômico de formação de grupos estratégicos e do que agrupa os concorrentes em grupos cognitivos. Estes autores propõem que as decisões sobre alocações de recursos nas organizações são influenciadas por fatores econômicos e pelas percepções da coalizão dominante, sendo que este último elemento seria o mais impactante em tais decisões. Mudanças no ambiente competitivo, por sua vez, trazem conseqüências não só para as características econômicas da competição, mas também para os elementos cognitivos dos participantes destas organizações. Já no trabalho de Reger e Huff (1993), é apontado que no ambiente competitivo delimitado pela população de empresas em uma indústria, a formação dos grupos estratégicos é decorrente do compartilhamento de percepções e comunalidades cognitivas. O enfoque cognitivo permitiria, então, encontrar nuances nos agrupamentos estratégicos que não são percebidas em estudos econômicos de análise dos concorrentes. No trabalho de Calori, Johnson e Sarnin (1994), o estrategista principal das organizações é descrito como um “cognizer” (CALORI; JOHNSON; SARNIN, 1994, p. 438), ou seja, além das funções tipicamente atribuídas de tomador de decisão, líder visionário e ator político, os autores identificam a responsabilidade de interpretar o ambiente e formar alternativas para o comportamento estratégico. Para estes autores, a qualidade da interpretação de ambientes complexos pode impactar na performance das organizações, e a formação do estrategista precisa ser acompanhada de experiências em múltiplos cenários, em uma tentativa de desenvolver sua habilidade de formar mapas cognitivos mais amplos.

Já no trabalho de Daniels, Johnson e Chernatony (1994), é investigado se as características da competição são percebidas de forma homogênea ou heterogênea por um conjunto de estrategistas da mesma indústria. Usando a abordagem de mapas cognitivos, os autores concluem que a heterogeneidade é predominante em tal percepção e propõem que a interação social entre os estrategistas pode promover a compatibilidade cognitiva por meio do estabelecimento de crenças compartilhadas.

Outro elemento presente nos estudos organizacionais com enfoque cognitivo é o contexto de referência. Para Scott (1992), existe a tendência de analisar as organizações por sua proximidade geográfica (contexto local), e faz-se necessária a introdução de outros contextos (nacional e internacional), pois “numerosas organizações são conectadas a sistemas corporativos nacionais e internacionais e muitas compram de e distribuem para mercados nacionais ou internacionais” (SCOTT, 1992, p. 130). Para Machado-da-Silva e Fonseca (1999), o contexto ambiental de referência representa o nível do contexto a que a organização se reporta para adotar suas concepções e valores, representando o foco da atenção da organização para a tomada de decisões estratégicas. Devido à expansão atual dos tipos de transação entre organizações, os autores sugerem que se faz necessária uma classificação mais precisa e propõem a utilização de quatro níveis: local, regional, nacional e internacional.

O contexto de referência, por determinar o foco da atenção organizacional, refletirá os pressupostos do ambiente técnico e institucional que a organização considerará para a elaboração de sua estratégia e a “mudança organizacional processa-se à medida que novos valores e regras se incorporam ao contexto institucional de referência” (MACHADO-DA-SILVA; FONSECA, 1999, p. 114). Para os autores, o contexto de referência pode ainda servir como buffer (amortecedor) que dificulta a apreensão de práticas e valores emergentes em um

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contexto mais amplo e interferem diretamente na competitividade das organizações, pois em um ambiente globalizado pode-se esperar maior competitividade das que adotam como contexto de referência o nível internacional. A relação entre contexto de referência e competitividade foi apontada por Machado-da-Silva e Fonseca (1995) em uma análise da indústria calçadista de Novo Hamburgo – RS. Neste trabalho, os autores encontraram evidências de que as mudanças no ambiente institucional fora de seu contexto de referência (pressões exercidas pelo Estado em prol da modernização e novas práticas adotadas por concorrentes internacionais) não afetaram esta população. As empresas parecem perceber e responder apenas às mudanças em seu contexto de referência, o que pode afetar sua competitividade e sobrevivência.

Frente ao exposto, pode-se concluir que a inclusão dos elementos cognitivos nos estudos sobre organizações permite o desenvolvimento de trabalhos que contenham melhor capacidade de explicação para o posicionamento competitivo. Para concretizar esta contribuição, os estudos cognitivistas demandam desenvolvimento de procedimentos metodológicos consistentes. Um procedimento de investigação, surgido originalmente no campo da psicologia cognitiva, tem sido utilizado em estudos sobre o comportamento estratégico das organizações de enfoque cognitivista (GIMENEZ, 1995; GIMENEZ; GRAVE, 2002; GIMENEZ et al, 2000; GIMENEZ; GRAVE; HAYASHI, 2004). A teoria de personalidade de Kelly (1963) e sua psicologia dos construtos pessoais geraram um instrumento de pesquisa capaz de permitir o conhecimento dos construtos cognitivos que orientam a percepção dos atores organizacionais. Para este autor, o entendimento do mundo está associado à categorização dos elementos da percepção. Estas categorias são embasadas no estabelecimento de similaridades e diferenças entre os elementos percebidos, o que constituiria um frame estável de referência para o indivíduo. Em pesquisa torna-se possível a elicitação destes construtos, utilizados pelo indivíduo para interpretar seu ambiente, pela aplicação de um conjunto de procedimentos conhecidos como técnica de grade de repertório. Uma vantagem da utilização de tal técnica é que os construtos são elicitados com uma interferência mínima, o que permite que o resultado seja associado às características do indivíduo e não às do pesquisador. Ao pesquisador cabe somente a definição de um amplo cenário inicial para a tarefa, que levará o indivíduo a definir os construtos relevantes para aquele cenário. Outra vantagem seria a estruturação da técnica, que permite a replicação dos estudos desenvolvidos. Para ilustrar as características descritas acima, no quadro 1 são apresentadas as etapas para a aplicação de tal técnica, em um estudo sobre percepção da concorrência por um estrategista de pequena empresa.

Quadro 1 – Etapas de aplicação da grade de repertório

Etapa Descrição Identificação dos concorrentes O entrevistado elabora uma lista que contenha os

concorrentes mais relevantes no seu ambiente de negócios.

Listagem dos construtos São apresentados ao entrevistado tríades de concorrentes e é solicitado que ele indique de que forma dois deles se parecem e um é diferente.

Análise dos concorrentes e da empresa

É solicitado que o entrevistado classifique por uma escala likert as características de cada concorrente e de sua empresa.

Fonte: Adaptado de Gimenez e Grave (2002).

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Já no quadro 2, são apresentados os principais corolários referentes a esta teoria, o que auxilia no entendimento da relevância desta técnica para estudos organizacionais baseados na perspectiva cognitiva.

Quadro 2 – Corolários da teoria dos construtos pessoais de Kelly Corolário Descrição

Construção A cognição é um processo discriminatório, voltada para o entendimento do mundo, pois é através dela que categorizamos elementos e eventos, formando um conjunto de construtos para dar sentido às coisas.

Individualidade Cada indivíduo tem seu próprio conjunto de construtos. Organização Este conjunto é organizado de forma a existir uma hierarquia de construtos tal que

alguns sejam mais fortes e mais amplos do que outros. Dicotomia Cada construto implica em dois pólos, sendo estes formados psicologicamente (e

não através da lógica). Escolha As pessoas buscam aprimorar seus construtos pessoais em tentativas de

entendimentos de situações confusas. Extensão Os construtos podem ser limitados a situações específicas. Experiência O conjunto de construtos pessoais pode sofrer modificações com a experiência. Modulação Refere-se à questão de modificação de construtos decorrentes da experiência. Há

construtos permeáveis e não. Permeabilidade refere-se à facilidade de modificação.

Fragmentação Dentro do conjunto de construtos, poderão existir subconjuntos que podem até ser incompatíveis.

Equivalência Duas ou mais pessoas apresentam processos psicológicos semelhantes, quando empregam construções de experiências similares.

Sociabilidade O conjunto dos construtos, ou parte dele, de uma pessoa pode ser compreendido por outras.

Fonte: Adaptado de Bannister e Fransella (1986). In: Pidd (1998).

Outra possibilidade de ação seria a aproximação das abordagens cognitiva e institucional, que não é um tema inédito nos trabalhos sobre organizações. Uma análise da relação entre elas é apresentada no trabalho de Fonseca e Machado-da-Silva (2002), onde é descrito o tratamento dispensado ao conceito de estratégia organizacional nestas abordagens e na de escolha estratégica. Os autores apontam similaridades na forma como as teorias cognitiva e institucional representam o indivíduo e a organização, o que pode ser verificado no quadro 3.

Quadro 3: Componentes da representação do indivíduo e organizações

Representação Abordagem Cognitiva Abordagem Institucional Indivíduo → Agente Psicossocial, com

múltiplas racionalidades. → Formulações de estratégias conforme percepções e interpretações compartilhadas da realidade, visando a satisfação de resultados.

→ Ator Social, ser social. → Formulação de estratégias conforme significados atribuídos às regras de funcionamento organizacional, institucionalizadas na sociedade.

Organizações → Universo cognitivo, reservas localizadas de conhecimento e artefatos simbólicos → Significados intersubjetivamente compartilhados e mobilizados por atores em interação.

→ Arena social, componente do sistema de relações de um campo específico. → Atividades padronizadas e frouxamente conectadas. → Normas e regras sociais.

Fonte: Adaptado de Fonseca e Machado-da-Silva, 2002.

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Outra similaridade possível entre as duas abordagens é o conceito de construção do ambiente (FONSECA; MACHADO-DA-SILVA, 2002; MACHADO-DA-SILVA; FONSECA, 1999; SCOTT; MEYER, 1994), mas a teoria institucional acrescenta uma contribuição original ao desdobrá-lo em duas dimensões e propor o fim da dicotomia entre organização e ambiente. Com base na revisão da literatura, pode-se afirmar que o estudo da cognição é relevante para o campo dos estudos organizacionais na medida em que destaca o papel do ator no comportamento organizacional. Este papel é evidenciado na leitura que o estrategista faz do ambiente competitivo onde a organização está inserida, leitura esta que fundamenta as estratégias adotadas pela organização. A seguir são apresentados os procedimentos metodológicos que nortearam a pesquisa. Metodologia

Usando os critérios de classificação desenvolvidos por Cooper e Schindler (2003), pode-se classificar esta pesquisa como exploratória, pois seu propósito imediato é a exploração inicial de uma realidade, sem intenção de verificar relações de causalidade, visando subsidiar a formulação de hipóteses ou questionamentos para pesquisas futuras.

Seu método de coleta de dados foi especificado em acordo com a variável estudada. Para levantar os construtos que o estrategista utiliza para analisar seu ambiente competitivo foi utilizada a técnica de Grade de Repertório de Kelly. Nesta, o respondente indica os concorrentes significativos em seu ramo e, após a elicitação dos construtos referentes a estes competidores, avalia as características atuais de sua empresa e as pretendidas em um horizonte de tempo de cinco anos. Já para o levantamento do contexto de referência, foi utilizado um questionário.

Para a coleta de dados foram realizadas visitas às empresas participantes e pode-se afirmar que este formato de interrogação/comunicação garante melhor controle do pesquisador sobre as respostas, pois este pode observar o preenchimento do questionário e garantir que o respondente desejado participe da pesquisa.

Em relação ao controle de variáveis, o estudo pode ser considerado ex post facto, pela impossibilidade de manipulação destes elementos. Quanto ao propósito da pesquisa, pode-se enquadrá-la como descritiva, tendo-se em vista que o propósito estabelecido é conhecer o objeto sem buscar relações causais entre suas variáveis. Já no quesito dimensão de tempo, o trabalho propõe um corte transversal (cross-section), com coleta de dados única e sem acompanhamento das variáveis ao longo do tempo. No item ambiente, este estudo caracteriza-se como pesquisa de campo, pois os dados foram coletados no local de sua ocorrência e não em um ambiente artificialmente planejado. O nível de análise da pesquisa é organizacional, pois cada empresa é tratada como uma unidade da amostra e a unidade de análise são os dirigentes das empresas estudadas. A população escolhida para a realização deste estudo foi a de pequenas empresas industriais de Curitiba – PR, dos setores metal-mecânico, gráfico, têxtil e moveleiro. A pesquisa multi-setorial pareceu adequada, pois cada organização elencou seus competidores relevantes e fez comparações entre as suas características e as deles, o que impediria que organizações muito diversas fossem comparadas entre si. A escolha de pequenas empresas foi baseada na percepção de que, em organizações deste porte, normalmente o dirigente/proprietário ocupa papel central nas escolhas estratégicas e, portanto, sua percepção sobre o ambiente competitivo pode impactar fortemente no comportamento estratégico de sua organização. Em função da natureza exploratória e descritiva deste estudo, onde a intenção não foi a busca de explicações e relações causais, a amostragem não seguiu um padrão estatístico rigoroso que permitiria a extrapolação dos resultados obtidos para a população. A amostragem

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foi, então, não probabilística por adesão, também conhecida como amostra por voluntários, onde os dirigentes/proprietários eram convidados a participar da pesquisa por meio de contato telefônico. Foram levantados dados de 35 organizações, sendo 17 metal-mecânicas e 06 de cada um dos outros três setores. O tratamento de dados utilizado pertence ao escopo da estatística descritiva e a técnica multivariada de agrupamento do tipo cluster, em acordo com medidas de Ward com ligação completa. Descrição e Análise dos Resultados A amostra é composta por 35 empresas de pequeno porte, com média de 20 empregados e 20 anos de atuação. Elas atuam predominantemente (15 empresas) no mercado nacional, sendo que 12 regionalmente (PR, SP e SC) e oito na esfera local (Curitiba e Região Metropolitana). Somente quatro exportam, mas esta atividade não representa parte significativa de seu faturamento. Antes da consolidação das respostas do questionário sobre o contexto de referência, foi realizada a verificação da consistência interna do instrumento pelo procedimento de reliability do SPSS, usando como indicador a medida Alpha de Cronbach. Foi encontrado um alpha = 0,84 para o conjunto de dados apurados pelo questionário, o que indica a alta consistência interna do instrumento, já que índices acima de 0,7 são considerados suficientes em pesquisa social. Na consolidação do questionário por meio da técnica de cluster, os grupos formados e a distribuição das empresas podem ser observados na figura abaixo. Os dois grupos identificados são: contexto local, composto por 18 empresas, e contexto regional/nacional contendo 17 empresas.

FIGURA 01: Organizações por Contexto de Referência Este primeiro resultado aponta para a limitação do contexto de referência do

estrategista, pois apesar de existirem fortes pressões internacionais sobre os setores estudados, o indivíduo se atém a níveis ambientais mais próximos. Assim, o efeito buffer relatado por Machado-da-Silva e Fonseca (1995) é novamente constatado, podendo esta percepção

Tree Diagram for 35 Cases

Complete LinkageCity-block (Manhattan) distances

C_

C_

C_

C_

C_

C_

C_

C_6

C_4C

_C

_9C

_5C

_C

_C

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_C

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_C

_C

_C

_C

_C

_C

_C

_C

_C

_8C

_1

0

5

10

15

20

Linkage D

istance

CR: LOCALn = 18

CR: REGIONAL/NACIONALn = 17

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limitada de seu ambiente competitivo, levar as empresas à perda de competitividade pelo desprezo de pressões importantes provenientes de outras esferas.

Ainda sobre o contexto de referência foi possível perceber uma clara divisão entre as variáveis que o compõem e o nível do ambiente de onde são provenientes. Em outras palavras, quando o estrategista planeja o mercado-alvo futuro, coleta informações sobre a concorrência ou freqüenta feiras, cursos e encontros setoriais, ele usa predominantemente um contexto regional/local. Já as pressões regulatórias percebidas e ações governamentais consideradas relevantes provêm de um nível nacional. Por outro lado, o nível internacional aparece como fonte de referência para a percepção de tendências futuras e mudanças ambientais. Tal associação entre as variáveis e o contexto de referência foi delimitada utilizando a técnica de agrupamento do tipo cluster, com medidas de Ward e ligação completa, o que pode ser observado na figura abaixo:

Levando em conta que boa parte das empresas constantes da amostra (15) atua no

mercado nacional, ter como fonte de referências setoriais e informações sobre a concorrência a esfera regional/local pode indicar uma restrição na percepção. Mesmo para as 23 empresas que atuam na esfera regional/local ter como fonte de informações setoriais este nível do ambiente pode levar à lentidão na implementação de inovações e não percepção e adoção de tendências importantes, gerando descompasso entre o ambiente e a organização. A mudança futura e as tendências são percebidas a partir de um contexto mais amplo indicando que, ao menos nestes aspectos, o estrategista é sensível às pressões internacionais. A distribuição das variáveis que compõem o contexto de referência nos níveis ambientais foi estável para todos os setores estudados. Explicando melhor, pode-se afirmar para esta amostra que, independente de ramo, os indivíduos apresentaram similaridade na forma de coleta e organização da informação, com tendência a direcionar sua atenção a uma esfera mais próxima de seu cotidiano. Este dado corrobora a impressão de que a miopia com que o estrategista enxerga o

FIGURA 02: Variáveis por Contexto de Referência

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seu ambiente pode levar à perda de competitividade pela não percepção de pressões vindas de níveis mais amplos.

Ainda em relação às variáveis do contexto de referência, foi possível verificar pouca consistência entre variáveis que aparentemente poderiam ser relacionadas. Um exemplo disso seria a relação entre a área de atuação e a esfera de onde o estrategista busca informações sobre os concorrentes. Neste quesito foi encontrada uma correlação moderada (0,59) entre as variáveis. Significa dizer que ao buscar informações sobre os concorrentes, o estrategista não leva em conta todos os concorrentes de sua área de atuação. Novamente, pode-se aqui afirmar que o desnível no tratamento das informações pode comprometer a ação estratégica das organizações.

Outro dado verificado diz respeito à relação que o estrategista mantém com o município e estado em que a empresa atua, com coeficiente de correlação de 0,14. Quando o estrategista leva em conta fontes de regulação, ele predominantemente percebe pressão do governo nacional. Esse dado pode indicar uma baixa legitimidade das esferas municipal e estadual e enfraquecimento de seu poder regulatório frente à pequena empresa.

Mesmo para aqueles que planejam atuar futuramente em nível nacional ou internacional, a fonte de referência (cursos, feiras, encontros setoriais) permanece predominantemente local (coeficiente de correlação=0,34). Assim, fica evidente o descompasso entre a formação do estrategista e o planejamento para sua organização. Como já apontado anteriormente, um dos papéis do gestor é ser o cognizer da organização, e a formação do estrategista precisa ser acompanhada de experiências em múltiplos cenários, em uma tentativa de desenvolver sua habilidade de formar mapas cognitivos mais amplos.

Em relação aos construtos, algumas evidências de que a cognição possui forte influência na construção e interpretação do ambiente, foram verificadas. A primeira delas diz respeito à quantidade de construtos utilizados pelos estrategistas. O número máximo verificado foi de 11 e o mínimo de três. A maior quantidade de construtos indica que o indivíduo pode perceber com mais detalhes o ambiente a sua volta e construir um número maior de alternativas estratégicas. Pode-se então afirmar que aqueles que atuam com mais alternativas podem elaborar estratégias com maior riqueza de detalhes. O uso de um número restrito de construtos pode levar o estrategista a ignorar elementos importantes para avaliação de seu ambiente competitivo e dificultar a interpretação da realidade.

Outra evidência diz respeito à diferença entre o conteúdo dos construtos utilizados por estrategistas inseridos em um mesmo ambiente competitivo. Por exemplo, no setor gráfico, a tecnologia parece ser um elemento relevante, porque apenas um dos estrategistas não utiliza esta variável para analisar o ambiente. Assim, é possível inferir que este estrategista ao criar suas alternativas de ação ignorando o elemento tecnologia pode criar um viés significativo no comportamento da organização. Do mesmo modo, no setor têxtil a maioria das empresas (4) pesquisadas listou como construtos relevantes a atualidade dos produtos, preço e tecnologia o que indica que são elementos importantes na avaliação do ambiente e formulação da estratégia. Estes elementos foram ignorados pelos demais respondentes (2). A mesma análise vale para o setor moveleiro, onde a customização e preço aparecem como elementos relevantes na formulação de estratégias e no setor metal mecânico com elementos: qualidade, escopo de produtos e porte. No setor metal mecânico podem ser apontados seis construtos mais freqüentes, além de um grande número (48) com menor repetição, o que sugere certa complexidade desse ambiente competitivo. Neste caso, parece haver a necessidade de um número expressivo de variáveis para interpretação do ambiente. No entanto, foi verificado que alguns atores (4) utilizam apenas três ou quatro construtos para avaliar sua empresa e seus concorrentes. Os construtos mais freqüentes em cada setor podem ser verificados na tabela abaixo.

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Tabela 01: Construtos por setor Metal mecânico

(n = 17) Nº. Setor moveleiro

(n = 6) Nº. Setor têxtil

(n = 6) Nº. Setor gráfico

(n = 6) Nº.

Qualidade 11 Customização 4 Produtos atuais 4 Tecnologia 5 Escopo produtos 9 Preço 4 Preço 4 Foco de mercado 4 Porte 9 Numero de lojas 3 Tecnologia 4 Preço 4 Foco de mercado 8 Escopo produtos 3 Escopo produtos 3 Escopo produtos 3 Preço 8 Porte 3 Comercialização 3 Porte 3 Tecnologia 8 Qualidade 3 Porte 3 Outros 14 Escopo serviços 6 Outros 21 Outros 9 Total 33 Agilidade 6 Total 41 Total 30 Outros 46 Total 111

Os dados sugerem, então, que a quantidade e o conteúdo dos construtos utilizados pelo estrategista na avaliação do ambiente competitivo, podem explicar parte da diversidade do comportamento organizacional. Em outras palavras, empresas atuando em um mesmo setor possuem estratégias diferentes em função da construção ambiental que o seu gestor faz. Outro dado que pode enriquecer a discussão sobre a cognição e o comportamento organizacional é a ubiqüidade de alguns construtos. Os elementos: preço, escopo de produtos, porte e tecnologia parecem importantes independentemente do setor. Este dado pode denotar que existe consenso quanto a características necessárias à atuação de pequenas empresas. Como a cognição é uma construção intersubjetiva ela, ao mesmo tempo, preserva a individualidade da cognição de cada sujeito social e, ao mesmo tempo, contém elementos que são reflexos de referências coletivas como educação, cultura e grupos de referência. A freqüência dos construtos similares entre os setores pode, então, ser fruto deste caráter socialmente instituído da cognição. A seguir, na tabela abaixo são apresentados os construtos mais utilizados em todos os setores pesquisados.

Tabela 02: Construtos mais freqüentes Construto Nº. Construto Nº. Construto Nº. Construto Nº. Preço 20 Qualidade 17 Customização 8 Agressividade 5

Escopo produtos 18 Foco de mercado 16 Agilidade 7 Atendimento 5

Porte 18 Escopo serviços 9 Poder econômico 7 Outros 53

Tecnologia 18 Ética 8 Área atuação 6 Total 215 Conclusão O panorama dos estudos organizacionais no Brasil indica que se faz necessária uma aproximação entre o campo de organizações e estratégia, o que proporcionaria melhor entendimento do comportamento competitivo. Especificamente a inserção do tema cognição pode auxiliar na compreensão da formulação das estratégias. A pequena empresa, neste contexto, aparece como um cenário privilegiado para estudos deste tipo, uma vez que é freqüente neste porte haver um único ator como responsável pela interpretação do ambiente e conseqüente formulação de estratégias. Frente ao exposto, buscou-se nesta produção acadêmica a identificação da influência da cognição do dirigente na construção do ambiente competitivo de organizações de pequeno porte. Do universo cognitivo que constitui a mente do dirigente foi delimitado trabalhar com dois elementos: o contexto de referência e o conjunto de construtos que constituem a base da avaliação do ambiente.

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Um dos pressupostos do referencial adotado é a idéia de que o ambiente é construído. Assim, ele é fruto da percepção e organização das informações pelos atores sociais em função de características coletivas, tais como: grupos de referência, cultura e educação, e de elementos individuais, como estilo cognitivo e personalidade. Outro fator aqui utilizado para a compreensão da estruturação da cognição é o contexto de referência, pois ele delimita o foco da atenção do ator organizacional. Neste estudo foi adotada a divisão em quatro níveis (internacional, nacional, regional e local) como proposto por Machado-da-Silva e Fonseca (1999). O contexto de referência auxilia no entendimento da cognição porque pode ser origem de viés cognitivo ao levar o indivíduo a não perceber pressões provenientes de outros níveis. Este fator tem sido amplamente utilizado nos estudos organizacionais para proporcionar melhor entendimento do comportamento estratégico de organizações (BARBOSA, 2001; COCHIA, 2002). Outro elemento que fundamenta a investigação proposta é o conjunto de construtos pessoais que o indivíduo utiliza para interpretar e organizar seu ambiente. Eles podem explicar parte da diversidade do comportamento face a situações semelhantes. Os métodos utilizados têm estreita relação com o objetivo proposto. Os construtos pessoais foram levantados por meio da utilização da Grade de Repertório delimitada por Kelly (1963) e o contexto de referência foi investigado por meio de questionários. Os resultados podem ser divididos em dois grupos: contexto de referência e construtos e ambos auxiliam no entendimento da importância da cognição na construção do ambiente. Em relação ao contexto de referência foi possível observar que existe uma alocação das variáveis em níveis diversos. Explicando melhor, ao refletir sobre concorrência, mercado futuro e buscar fontes de informação como cursos, congressos, feiras e encontros setoriais, o estrategista da pequena empresa reporta-se ao nível local. Por outro lado, para lidar com regulações e ações governamentais, ele concentra sua atenção no nível nacional. O nível internacional aparece como referência para perceber e interpretar tendências futuras e impacto de mudanças ambientais. A principal conclusão que se pode relatar é que a utilização de um contexto restrito pode levar à perda da competitividade pela dissociação entre a organização e o ambiente competitivo. Além disso, a utilização de um contexto restrito pode causar miopia estratégica pela não percepção de pressões provenientes de contextos mais amplos. Outro resultado que corrobora a afirmação de que a utilização de um contexto de referência restrito pode causar miopia, é a constatação de que a maioria das empresas (18) possui contexto de referência local e nenhuma apresentou o nível internacional. Para Farah Jr. (2004), as organizações que deixam de aprender com experiências internacionais, perdem oportunidades de consolidação de modernas formas de gestão e organização produtiva, o que limitaria sua competitividade e expressividade no mercado internacional. Em relação aos construtos, houve expressiva variação na quantidade elicitada. Desta forma, pode-se concluir que aquele que usa maior número de construtos pode perceber com mais detalhes o ambiente a sua volta e construir um número maior de alternativas estratégicas. O uso de um número restrito de construtos pode levar o estrategista a ignorar elementos importantes para avaliação de seu ambiente competitivo e dificultar a interpretação da realidade. É possível ainda apontar que a elicitação dos construtos corroborou a idéia de que a cognição é constituída por elementos de ordem coletiva e individual. A constatação de que o conjunto de construtos apontados pelos estrategistas é único (não houve repetição dos conjuntos) reforça a percepção que o ambiente é elaborado cognitivamente. Por outro lado, a presença de construtos que se repetiram em todos os setores, aponta para a idéia de que a socialização cria comunalidades cognitivas. Esta investigação contribuiu com a compreensão dos processos utilizados na construção do ambiente por pesquisar pequenas empresas de forma não determinística e

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apontar como a cognição do estrategista se constitui, sem definir como ela deveria acontecer. Como contribuição adicional, tem-se a utilização de técnica de pesquisa estruturada (Grade de Repertório de Kelly) que tem se mostrado compatível com os pressupostos dos estudos cognitivos. Pode-se ainda argumentar que este artigo auxilia na aproximação dos campos de estudos organizacionais e estratégia, ao utilizar os pressupostos da Escola Cognitiva como fonte de investigação.

Além dos resultados apontados, esta investigação gerou novos questionamentos que podem servir como recomendações de pesquisas futuras. Avaliar se o contexto de referência e o conjunto de construtos são estáveis para o indivíduo independente do setor de atuação pode auxiliar no entendimento das características constantes da cognição. Além disso, a investigação da existência de associação entre estilo cognitivo e contexto de referência pode auxiliar na formulação de modelo explicativo para o comportamento de gestores de pequena empresa. Entender melhor a relação entre o conjunto de construtos e as opções estratégicas da pequena empresa pode contribuir para entender as estratégias adotadas.

Retomando o objetivo deste artigo e por meio do conjunto de dados apresentados e subseqüentes discussões, pode-se afirmar que a cognição representa parte importante da constituição do ambiente competitivo. O foco de atenção do estrategista e o conjunto de construtos utilizados para leitura da realidade influenciam na maneira como este formula as opções estratégicas e molda o comportamento organizacional.

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