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História Leite CondensadoTRANSCRIPT
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COMPANHIA ARARENSE DE LEITERIA (19091920): LOUIZ NOUGUS E A REALIZAO DE UM SONHO1
Gustavo Pereira da Silva2 Armando Dalla Costa3
RESUMO: O leite e seus derivados sempre se constituram em um dos elementos essenciais na alimentao humana. Um dos desafios na histria deste produto consistiu em conserv-lo e fazer um nmero cada vez maior de sub-produtos a partir da matria-prima animal. Tal busca fez nascer muitas empresas e empreendedores, tanto no que se refere pesquisa e inovao de produtos, como no fato de combinar novos fatores de produo e captar investimentos que viabilizassem os empreendimentos. O objetivo do texto mostrar a trajetria da Companhia Ararense de Leiteria (19091920), uma das indstrias que se formaram com tais objetivos, situada em Araras, interior de So Paulo e analis-la dentro do conturbado contexto de formao das indstrias na Primeira Repblica. Para atingir este objetivo, o artigo resgata a literatura que trata da polmica da industrializao brasileira a partir do final do imprio. Em seguida, destaca-se a formao da empresa, atravs do empreendedor Louiz Nougus e de sua luta para viabilizar o projeto, conquistando a confiana dos cafeicultores para investirem na indstria nascente. A seqncia esclarece como um imigrante colocou em prtica os saberes tcnicos que trouxe e combinou fatores de produo na fabricao de um produto at ento importado, justamente da empresa que viria, em 1920, adquirir o prprio empreendimento, a Nestl and Anglo-Swiss Condensed Milk Co. Palavras-Chave: Leiteria; Leite; Indstria; Leite Condensado; Empresrio.
DAIRY COMPANY ARARENSE (1909-1920): LOUIZ NOUGUS AND THE ACCOMPLISHMENT OF A DREAM Abstract Milk and its derivatives had always consisted in one of the essential elements in the feeding human being. One of the challenges in the history of this product consisted of conserving it and making a number each bigger by-product time from the animal raw material. Such search made to be born many companies and entrepreneurs, as much as for the research and innovation of products, as in the fact to combine new factors of production and to catch investments that made possible the enterprises. The objective of the text is to show the trajectory of the Ararense Company of Dairy (1909-1920), one of the industries that if they had formed with such objectives, situated in You plough, interior of So Paulo and to inside analyze it of the disturbed context of formation of the industries in the First Republic. To reach this objective, the article rescues the literature that deals with the controversy of Brazilian industrialization from the end of the empire. After that, it is distinguished formation of the company, through the entrepreneur Louiz Nougus and of its fight to make possible the project, conquering the confidence of the cafeicultores to invest in the rising industry. The sequence clarifies as an immigrant placed in practical to know technician to them who brought and combined factors of production in the manufacture of an imported product until then, exactly of the company who would come, in 1920, to acquire the proper enterprise, Nestle' and Anglian Condensed Milk Co. Key-words: Dairy; Milk; Industry; Condensed milk; Entrepreneur.
1 Artigo publicado na Revista Histria Econmica & Histria de Empresas. So Paulo: ABPHE. Vol. X, no 1, p. 117-
141, jan.jun. 2007. 2 Graduado em Histria pela UNESP e Mestrando em Histria Econmica pela UNICAMP. Bolsista do CAPES.E-mail:
[email protected] 3 Doutor pela Universit de Paris III (Sorbonne Nouvelle). Professor no Departamento de Economia e no Programa de
Ps-Graduao em Desenvolvimento Econmico da UFPR. Coordenador do Ncleo de Pesquisa em Economia Empresarial (http://www.empresas.ufpr.br)
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Classificao JEL: L22, L25, L66.
1 Introduo
O que j foi feito tem a realidade aguda de todas as coisas que vimos e experimentamos; o novo apenas o fruto de nossa imaginao. Levar a cabo um plano novo e agir de acordo com um plano habitual so coisas to diferentes quanto fazer uma estrada e caminhar por ela.
Joseph Schumpeter
Analisar a indstria brasileira do incio do sculo XX defrontar-se com a realidade de um
setor que ainda era incipiente no pas. Na poca a economia nacional baseava-se na produo e
exportao de caf. Esse produto, cultivado principalmente em So Paulo, possibilitou a ascenso
econmica e poltica daqueles que o cultivavam, mantendo-os no poder poltico nos primeiros 40
anos de Repblica. Mas o caf tambm fomentou outras formas de atividade econmica, com
destaque para os servios pblicos em geral e, sobretudo, a indstria, maior beneficiada com
investimentos originrios dos lucros com as exportaes cafeeiras. A indstria do perodo,
concentrada na produo de bens no durveis, foi se fortalecendo na medida em que empregava
boa parte dos imigrantes que chegavam e, ao mesmo tempo, comeava a suprir o incipiente
mercado interno.
Como a produo de caf estava situada no interior paulista, onde tambm se intensificaram
os investimentos em infra-estrutura (entre eles, as ferrovias, com destaque para a Companhia
Paulista de Estradas de Ferro, a Paulista) para dar conta do escoamento desta produo, tais
condies permitiram o florescimento industrial em todo o Estado, inclusive no seu interior, e no
apenas na capital, como o caso da empresa em discusso.
A Companhia Ararense de Leiteria, a Leiteria, fundada em 1909, no municpio de Araras
(aproximadamente 170 quilmetros da capital), uma destas empresas. A fbrica passou a produzir
um produto at ento importado, o leite condensado, que a Nestl vendia no mercado brasileiro sob
o nome de Milkmaid. A multinacional sua, ao resolver instalar sua primeira filial no Brasil, em
1921, escolheu justamente o municpio de Araras. O motivo bvio, uma vez que era ali que
funcionava a nica empresa com instalaes industriais capazes de despertar o interesse da empresa
estrangeira.
Desta forma, o texto tem como objetivo analisar a histria da Companhia Ararense de
Leiteria em seu curto perodo de existncia, que vai de 1909 at 1920. Para tanto, alm desta
introduo, est dividido em outras trs partes. Na primeira, trata da fundao da empresa no
contexto da polmica da industrializao na Velha Repblica. A segunda parte destina-se a analisar
a relao entre Louiz Nougus e a implantao de seu sonho, que d origem firma. Na terceira o
assunto em questo passa a ser o crescimento e expanso da Leiteria, entre seu incio at o comeo
dos anos 1920. A parte que vem em seguida refere-se venda da empresa e chegada da Nestl, em
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1921. Por fim, so apresentadas as concluses, buscando relacionar a histria da Leiteria no
contexto da industrializao de nossa Primeira Repblica e a discusso que esta originou entre
economistas e demais cientistas sociais preocupados em explicar a industrializao incipiente do
perodo.
2 A Leiteria frente polmica da industrializao
Antes de adentrar naquilo que h de especfico na histria da Companhia Ararense de
Leiteria, necessrio posicion-la no contexto do debate que ocorreu sobre a indstria brasileira em
seus primrdios. Claro que difcil falar de um processo de industrializao, antes de 1930, no
Brasil. O principal motivo que nosso crescimento econmico era induzido pelas exportaes
juno de uma pequena atividade industrial e de uma agricultura de subsistncia incapazes de
dinamizar a atividade interna que visava atender demanda externa por produtos primrios, o que
tornava nossa economia dependente (Tavares, 1977:31)4. Porm, o fato que existiram indstrias
no Brasil no incio do sculo XX, dentre as quais queremos destacar a Leiteria e o contexto em que
surgiram e se desenvolveram as pequenas indstrias que atendiam sobretudo um mercado local.
Durante a Primeira Repblica, mas no somente neste perodo, a economia brasileira
apoiou-se na exportao do caf, cultura que apesar de conviver com crises internacionais e fortes
alteraes nos preos, fez crescer os setores que estavam envolvidos nesta atividade como o
ferrovirio, o de seguros e o porturio. O caf que, segundo Caio Prado Jnior (1969, p. 223), no
conjunto dos produtos exportados poca, tinha [...] o primeiro e soberano lugar [...], no era a
nica cultura que o Brasil enviava ao mercado externo havia tambm a borracha no norte, o
acar no nordeste, por exemplo, (Villela; Suzigan, 1975:9), no entanto, apesar dos demais
produtos, era o caf que articulava o Brasil dinmica capitalista mundial, pois nossa economia
[...] sempre cresceu para dentro e ao mesmo tempo esteve inserida de forma perifrica e
dependente na ordem econmica internacional (Tavares, 1999:456)5.
A despeito das subidas e descidas do preo internacional do caf, nasceram indstrias,
principalmente as de bens de consumo no-durveis, como a indstria alimentcia, o que causou
grande polmica quanto ao seu entendimento.
O problema est em compreender os efeitos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) sobre
a industrializao: teriam sido positivos ou negativos? Dessa questo vem a Teoria dos Choques
4 Celso Furtado (2003:226) tambm no cita um processo de industrializao anteriormente a 1930. Segundo ele, neste
perodo a economia brasileira era refm das variantes externas, ou seja, o centro dinmico de nossa economia era voltado para fora da nao.
5 Esta viso de crescimento perifrico e dependente da economia brasileira, ligada CEPAL, ser criticada por Joo Manuel Cardoso de Mello em sua obra O Capitalismo Tardio.
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Adversos e a tese da industrializao induzida pelas exportaes polmica que esteve em
evidncia nos anos 1970 (Saes,1989:25).
Os que defendem a Teoria dos Choques Adversos afirmam que a Primeira Guerra
impulsionou e, foi primordial, indstria nacional de transformao, pois, apoiou a primeira onda
de industrializao atravs da substituio de importaes. Um dos que concordam com esta idia
Fishlow (1972:8) ao afirmar que o processo de substituio de importaes que o conflito
possibilitou teve grande relevncia devido aos saltos nos indicadores da demanda, apesar de no ter
havido uma seqncia em relao capacidade de produo, que no teve grandes aumentos.
Contudo, os lucros criados por este processo incentivaram novos investimentos. Fishlow (1972:19)
cita o caso dos produtos txteis para ilustrar o crescimento da produo no perodo da Primeira
Guerra. Em 1918, a produo de tecidos superou a de 1914 em 57%, isto devido, principalmente
substituio de importaes, que fez com que a produo interna de tecidos consumidos no mercado
nacional aumentasse de menos de dois teros para 85% ao final do conflito. Por fim, o choque
exgeno que a guerra causou foi de grande importncia ao possibilitar que a capacidade industrial j
instalada levasse frente o processo de industrializao brasileira, atravs da substituio de
produtos importados que, antes de 1914, competiam com as manufaturas nacionais pelo nosso
mercado (Fishlow, 1972:20).
Outro que seguiu este pensamento foi Baer (1966:16), quando disse que os surtos de
industrializao que se manifestaram nas primeiras dcadas do sculo XX tiveram por motivo
principal choques oriundos do setor externo, como foi o caso da Primeira Guerra. A indstria
anterior guerra aumentou sua produo devido a um maior protecionismo, atravs das tarifas
aduaneiras, das facilidades para a compra de mquinas, instrumentos e matrias-primas,
possibilitadas pela Caixa de Converso6, mo-de-obra imigrante que no encontrava emprego nas
lavouras cafeeiras e ao aumento do nmero de usinas eltricas e ferrovias. Porm, todos esses
fatores tm suas dimenses reduzidas quando comparados ao estmulo que a guerra proporcionou
indstria brasileira. O conflito gerou uma carncia de produtos importados, o que atraiu o interesse
para a criao de novas indstrias que preenchessem esta lacuna no mercado brasileiro,
possibilitando a criao de 5.936 novas indstrias e o aumento do valor da produo de alimentos
(alimentos bebida e fumo), cuja participao na produo industrial era de 26,7% em 1907 e
alcanou a marca de 40,6% em 1920.
Porm a estrutura econmica do Brasil pouco mudou com este surto industrial. A maioria
das indstrias que surgiram no perodo da guerra eram pequenas e, na indstria pesada, a 6 A Caixa de Converso, criada em 1906 pelos cafeicultores reunidos no Convnio de Taubat, era um fundo de
estabilizao cambial. Atravs da promoo de uma ligeira valorizao inicial e estabilizao da taxa de cmbio depois, a caixa foi importante fator de proteo riqueza dos plantadores de caf. Oferecendo cambiais a uma taxa ligeiramente acima da taxa de mercado, a Caixa evitou que a forte presso para a valorizao cambial existente at 1912 diminusse a lucratividade da cultura cafeeira (Villela; Suzigan, 1975:97).
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importao de mquinas e peas ainda era necessria s atividades industriais. Alm disso, com o
fim da guerra e a recuperao da produo industrial na Europa, aliada aos produtos norte-
americanos, ficou ntida a pouca competitividade dos produtos brasileiros em relao aos
concorrentes estrangeiros os bens nacionais eram caros e de menor qualidade. Assim, na dcada
de 1920, muitas das indstrias nacionais que foram instaladas durante a guerra passaram a ter
grandes dificuldades, retrocedendo na maioria das vezes (BAER, 1966:17 e 19).
Contrria a esta idia a anlise que Dean faz sobre os efeitos da Primeira Guerra na
industrializao. Atrelando a industrializao exportao e aos lucros gerados pelo caf, Dean
(1972:93) afirma que evidente que o crescimento continuado da indstria paulista resultou do
crescimento do comrcio do caf. Esta indstria expandiu-se, entre 1889 e 1913, apoiada na fcil
obteno de crdito bancrio, na expanso geogrfica do mercado paulista, tornando-se
independente do Rio de Janeiro e atraindo os importadores cariocas, na construo de ferrovias, nas
isenes fiscais para a importao de maquinaria e em outras medidas, como plano de Valorizao
do Caf7, em 1906, que fez os preos do produto subirem novamente, o que possibilitou tambm
uma melhora no comrcio e na indstria, com os empresrios paulistas comprando mquinas e
expandindo as fbricas. Com o advento da Primeira Guerra, as indstrias passaram a ser
prejudicadas com as dificuldades em importar seus bens de capital e matrias-primas. Apesar disso,
houve um crescimento da produo industrial paulista, baseado fortemente no parque industrial que
existia antes da guerra 721 firmas paulistas fundadas antes de 1905 ainda existiam em 1920
(Dean, 1972:101). Baseando o crescimento da produo numa capacidade j instalada, que atendia
ao crescente mercado consumidor de So Paulo proporcionado pelas exportaes de caf Dean
(1972, p.107) afirma que [...] a Primeira Guerra no foi, por si mesma, particularmente estimulante
para a indstria paulista.
Quem tambm questionou os benefcios da Primeira Guerra Mundial indstria brasileira
foram Villela e Suzigan, apesar de no atrelarem totalmente o crescimento industrial ao setor
cafeeiro. A Guerra fez com que os pases aliados envolvidos nela passassem a importar uma
quantidade maior de gneros alimentcios essenciais. Deste modo, as exportaes brasileiras de
acar, carnes, banana e tecidos de algodo aumentaram entre 1914-18 (Villela; Suzigan,
1975:130). Por outro lado, as importaes de bens de capital, matrias-primas e combustveis
tiveram uma drstica reduo durante o mesmo perodo fato que inviabilizou a nica fonte de
suprimento de maquinaria industrial e impediu a expanso na capacidade produtiva alm do
declnio no consumo aparente de ao e cimento, indicadores da formao de capital na indstria.
7 O Plano de Valorizao, acertado em 1906 no Convnio de Taubat, arquitetado pelos cafeicultores e pelo Estado de
So Paulo tinha os seguintes propsitos: manter os preos do caf entre 55 e 66 francos a saca; negociar um emprstimo externo de 15 milhes de libras para viabilizar a interveno no mercado; taxar o plantio de novos cafeeiros; criar a Caixa de Converso; e proibir a exportao de cafs de menor qualidade (Mello, 1998:146-47).
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Estes fatores mostram que difcil acreditar num surto industrial ocorrido durante a Primeira
Guerra; tal surto parece ter existido entre 1905-1912, quando os mesmos indicadores demonstram
um forte crescimento, que foi bloqueado pelo conflito. Na realidade o que aconteceu foi um
crescimento da produo industrial baseado na melhor utilizao da capacidade produtiva j
instalada, e, por isso Villela e Suzigan (1975:132) perguntam ao final, [...] talvez o correto seja
indagar se o surto industrial que parece ter ocorrido nos anos 1905-1912 no teria levado a um
processo de industrializao na ausncia da Guerra de 1914-1918.
Ambas as explicaes, Teoria dos Choques Adversos e Industrializao induzida pelas
Exportaes, no conseguiam apreender em sua totalidade o crescimento industrial brasileiro do
incio do sculo XX. Flvio e Maria Teresa Versiani exemplificam este dilema em sua anlise sobre
a evoluo da indstria txtil brasileira, quando mostram que a crise externa, ao derrubar o cmbio,
estimulava a produo industrial e reduzia o investimento. J a expanso das exportaes, por outro
lado, ao subir o cmbio impulsionava o investimento, mas cerceava o aumento das exportaes
atravs do declnio nos preos dos importados, resultando em uma ambigidade entre exportaes e
indstria, assim resumida:
[...] o incio da industrializao surge como resultado dos estmulos produzidos pela conjugao de perodos de dificuldades no setor externo com perodos em que a economia voltou-se mais para o exterior. De um lado, evidencia-se o fato de que os choques adversos no teriam tido o impacto que tiveram na ausncia de fases anteriores de formao de capacidade produtiva. De outro lado, a interpretao da industrializao como um resultado direto da expanso das exportaes aparece como notoriamente insuficiente e simplista (Versiani; Versiani, 1977:141).
A histria da Companhia Ararense de Leiteria evidencia tal impasse nas explicaes, pois
fica difcil caracteriz-la somente em uma das vises da indstria brasileira do incio do sculo XX.
Esta firma, como ser evidenciada em seguida, nasce na onda do crescimento industrial anterior
Primeira Guerra Mundial, em 1909, ligando-se aos elevados ndices de exportao cafeeira. Mas
nota-se, tambm, uma expanso de suas atividades e de seu capital no perodo da Guerra, o que
mostra que o conflito lhe foi benfico. Mais interessante para elucidar a formao e o
desenvolvimento da Leiteria so as interpretaes da gnese da indstria brasileira que fundam suas
origens no desenvolvimento capitalista da economia cafeeira, tratando imigrao europia, trabalho
assalariado, formao de mercado de trabalho, constituio da burguesia cafeeira e sua
predominncia mercantil como caractersticas do desenvolvimento capitalista no Brasil (Saes,
1989:30). Um dos autores que analisa a relao entre caf e indstria Joo Manuel Cardoso de
Mello em seu clssico O Capitalismo Tardio. Em sua obra fica claro que a economia cafeeira
fomentou o nascimento do capital industrial, com o deslocamento de recursos, porm, mostra que
h uma relao que se torna contraditria entre o caf e a indstria. Alm disso, indica a
importncia dos fatores externos como os determinantes em ltima instncia do movimento da
economia brasileira no incio do sculo XX, ao dizer que A posio subordinada da economia
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brasileira na economia mundial capitalista est duplamente determinada: pelo lado da realizao do
capital cafeeiro e pelo lado da acumulao do capital industrial (Mello, 1998:115).
Apoiado na relao caf-indstria scios da Leiteria eram fazendeiros de caf o estudo
desta firma vai apresentar este e outros traos que se coadunam com a anlise de Joo Manuel
Cardoso de Mello. Passemos agora abordagem de tal firma para neste contexto de discusso.
3 Louiz Nougus implanta sua idia, dando origem Leiteria
Tratar da histria da Companhia Ararense de Leiteria , ao mesmo tempo, percorrer a
trajetria de vida do francs Louiz Nougus. Este nasceu na Frana, em 1878, formou-se na
Sorbonne e, com conhecimentos em qumica e agronomia, alm de ter recebido uma bolsa de
estudos, veio para Araras a fim de trabalhar na Escola de Trabalhadores Rurais, em 1908.
Entendendo, como afirma Schumpeter (1982:54), que chamamos empreendimentos
realizao de combinaes novas; [e] chamamos empresrios aos indivduos cuja funo realiz-
las, Nougus encaixa-se perfeitamente no papel do empresrio schumpeteriano. O francs que
sempre gostou de novidades cientficas, conheceu na Europa uma tcnica inovadora que permitia a
conservao do leite atravs de sua condensao. Esta tecnologia j estava disponvel nos Estados
Unidos desde meados do sculo XIX e, na Sua, tinha sido implantada pelos pesquisadores Henri
Nestl e George Page (Matthiensen, 2003:106-7). O fato de Nougus no ser o inventor da idia no
deve diminuir sua importncia, pois:
A liderana econmica em particular deve, pois, ser distinguida da inveno. Enquanto no forem levadas prtica, as invenes so economicamente irrelevantes. E levar a efeito qualquer melhoramento uma tarefa inteiramente diferente da sua inveno e uma tarefa, ademais, que requer tipos de aptido inteiramente diferentes. Embora os empresrios possam naturalmente ser inventores exatamente como podem ser capitalistas, no so inventores pela natureza de sua funo, mas por coincidncia e vice-versa. Alm disso, as inovaes, cuja realizao a funo dos empresrios, no precisam ser invenes (Schumpeter, 1982:62).
Aps conhecer a tcnica, Nougus passou a analisar a viabilidade de implant-la em seu
novo lugar de moradia, o municpio de Araras, que no possua nem 20 mil habitantes. Neste
momento foram primordiais algumas caractersticas que, segundo Schumpeter, diferenciam a
atuao do empresrio, como intuio, liderana, desejo de conquista, autoridade, iniciativa e
previso. Estes atributos o ajudaram a vencer os obstculos financeiros para a implantao da
Leiteria.
De um lado, Nougus era estimulado em sua iniciativa pelo fato de Araras ter algumas
vantagens: boa produo de leite nas fazendas do municpio e da regio (Leme, Conchal, Mogi-
Guau), proximidade da capital do Estado (Araras fica a 170 quilmetros de So Paulo) e o fato do
municpio pertencer malha ferroviria da Paulista desde 1877, o que facilitava a chegada da
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matria-prima lembrando que o leite vinha de pequenas fazendas da cidade e da regio,
comprovado pelo grande nmero de paradas do trem, muitas das quais tinham no caf sua principal
atividade e o escoamento da produo (Matos, 1974:66-7). Por outro, o problema estava na
obteno do capital necessrio implantao da indstria o que, segundo Penrose, deveria ser
solucionado pela astcia do empresrio:
La afirmacin de que la escasez de capital es causa de la quiebra de las empresas pequeas, solo indica que se requiere un tipo muy particular de habilidad empresarial para poner en marcha una nueva empresa o para mantener el ritmo de inversiones necessarias hasta que la empresa alcanza una situacin y un tamao tales que haga posible obtener facilmente nuevos crditos (Penrose, 1962:44).
O desafio de Nougus estava em vencer a resistncia dos capitalistas, entendidos como
[...] proprietrios de dinheiro, de direito ao dinheiro, ou de bens materiais (Schumpeter, 1982:
54), em financiar esta novidade. Era necessrio inspirar confiana aos mesmos sobre a viabilidade
deste empreendimento industrial. Keynes resume bem esta aposta:
Em outros tempos, quando as empresas pertenciam, quase todas, aos que as tinham fundado ou aos seus amigos e scios, o investimento dependia de um nmero suficiente de indivduos de temperamento entusistico e de impulsos construtivos que empreendessem negcios como uma maneira de viver, sem realmente tomar como base os clculos precisos de lucros provveis. Os negcios eram, em parte, uma loteria, embora o resultado final fosse, predominantemente, determinado pelo fato de serem as aptides e o temperamento dos dirigentes superiores ou inferiores mdia. Uns fracassariam, outros seriam bem sucedidos (Keynes, 1982:125).
Para entender como Nougus convenceu os capitalistas em questo, neste caso, os
fazendeiros de caf, deve-se olhar para a economia brasileira poca. No incio do sculo XX a
exportao de caf era o motor de nossa economia. Este capital foi se metamorfoseando em
capital industrial, ao concentrar grande montante de liquidez nas mos dos fazendeiros, ao passar do
escravismo ao trabalho assalariado transformando a fora de trabalho em mercadoria e assim,
criando um mercado consumidor (Mello, 1998:105). Esta passagem no deve ser associada, no
entanto, exclusivamente uma crise no complexo exportador cafeeiro.
Superficialmente, o capital cafeeiro, que era dominantemente mercantil e ligado aos
interesses dos grandes mercadores internacionais pelo lado da realizao, teve como razes para
invadir a indstria: uma boa taxa de rentabilidade esperada, condies favorveis de financiamento
vindas da poltica econmica do Estado como a reforma da Lei de Sociedades Annimas e uma
disponibilidade de mo-de-obra proveniente da grande imigrao s lavouras cafeeiras. Mas,
estruturalmente, necessrio atentar ao grande acmulo de liquidez que no podia ser empregado a
todo o momento na compra de terras; aos custos da produo cafeeira: depreciao do capital fixo,
custos comercial-financeiros, custos de transportes e impostos e, sobretudo, o pagamento de salrios
e sua subordinao aos preos internacionais atravs da importao de alimentos e bens de consumo
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assalariados. Alm disso, preciso mencionar os custos de manuteno de mo-de-obra empregada
nas indstrias nascentes que eram, pelos mesmos motivos, condicionados importao. Era
interessante aos manipuladores do capital cafeeiro diminuir os seus custos e sua dependncia do
mercado externo, por isso, o investimento na indstria tornava-se interessante ao atender estas duas
reivindicaes. Ademais, os cafeicultores, ao diversificarem seu capital nas atividades industriais,
podiam lucrar na forma desta associao, pois, como no caso da Leiteria, uma parte do leite que a
fbrica utilizava vinha da fazenda de um dos acionistas, a Baronesa de Arary proprietria da
fazenda Montevido. Tudo isto, aliado a uma expanso da agricultura de alimentos, pois:
A prpria expanso da agricultura de alimentos, por sua vez, estimula a acumulao industrial e o investimento pblico, ao suprir abundantemente este componente dos salrios, no exercendo qualquer presso no sentido de elevar o custo da reproduo da fora de trabalho urbana; reversamente, o setor industrial estimula o investimento pblico e a agricultura de alimentos ao prover wage goods industriais a preos quase constantes. Quer dizer, devido ao abundante suprimento de fora de trabalho, conjugado ao crescimento harmnico da agricultura de alimentos e do setor industrial, no houve qualquer presso para a subida tanto dos salrios monetrios quanto dos salrios reais, uma vez que o nvel de renda de preos manteve-se praticamente constante entre 1903 e 1905, e subiu em 1906 para se estabilizar da por diante (Mello, 1998:162).
Neste quadro vale ressaltar que a indstria que o capital cafeeiro escolheu para adentrar foi a
de bens de consumo assalariado, como a de alimentos e no a de bens de produo. Esta ltima
havia acabado de passar pela Segunda Revoluo Industrial, caso da siderurgia, o que implicava
[...] uma profunda mudana tecnolgica que aponta para gigantescas economias de escala e,
portanto, para um grande aumento das dimenses da planta mnima e do investimento inicial
(Mello, 1998:109). Para dar conta desta nova modalidade era necessrio grande mobilizao e
concentrao de capitais, porm nada compensadores quando comparados aos riscos do
investimento numa economia frgil como a brasileira, alm do difcil acesso a tal tecnologia.
Porm, tais empecilhos no atrapalhavam a indstria de bens de consumo corrente, onde a
tecnologia simples no necessitava de grandes conhecimentos para o uso, e era facilmente
encontrada no mercado internacional. Por fim, o tamanho do estabelecimento e o montante do
investimento inicial eram compatveis realidade brasileira (Mello, 1998:109).
Desta forma, associaram-se ao empreendimento de Nougus os fazendeiros Jos de Souza
Queiroz, proprietrio da fazenda Cresciumal, e Joo de Lacerda Soares, filho de Joo Soares do
Amaral, proprietrio das fazendas Palmeiras e Santa Maria que, em 1913, foram avaliadas em Rs.
941.241$000 (novecentos e quarenta e um contos e duzentos e quarenta e cinco mil ris)8. Assim,
em uma assemblia na casa de Nougus, no dia 31 de novembro de 1908, surgia a Companhia
Ararense de Leiteria. Na prtica, s passou a funcionar aps a autorizao, que veio com o decreto
presidencial n 7279 de 7 de janeiro de 1909. Na mesma assemblia foram eleitos para os
8 A Tribuna do Povo, Araras, SP, 15 Jun. 1913.
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respectivos cargos na indstria: Jos de Souza Queiroz para a presidncia, Joo de Lacerda Soares
como diretor comercial e Louiz Nougus como diretor tcnico. Alm deles, formavam o conselho
fiscal: o Baro de Tatu, Visconde de Nova Granada e Arthur de Moraes Jambeiro Costa. A
Leiteria, de razo social Lacerda, Soares & Nougus, cujo capital inicial era de Rs. 66:800$000
(sessenta e seis contos e oitocentos mil ris) em aes de Rs.200$000 (duzentos mil ris), tinha
como objetivo:
[...] Adquirir o leite na zona circunvizinha e, depois de o fazer passar por operaes de uma technica especial de accordo com os processos mais recentes neste gnero de indstria, vendel-o directamente aos consumidores em So Paulo. (Companhia..., 1908:1).
4 Crescimento e expanso da Leiteria (19091918)
No h como negar que a Companhia Ararense de Leiteria cresceu vertiginosamente entre
1909 e 1918. Tal perodo foi marcado pela Primeira Guerra Mundial, o que ter um peso na anlise
da expanso da Leiteria. Em termos blicos, sua repercusso no Brasil foi diminuta, devido
pequena participao do pas que se restringiu entrega de navios alemes aos aliados, mais
especificamente aos franceses, somada ao envio de uma diviso naval, de um grupo de dez
aviadores navais e uma misso mdica militar (Vinhosa, 1984:165). J no que diz respeito
economia a discusso grande, como visto, em torno da repercusso do conflito (sobretudo nas
temticas de Teoria dos Choques Adversos e Industrializao por Substituio de Importaes).
Para a finalidade deste texto, a Guerra algo que deve ser analisado dentro do contexto da histria
da Leiteria, assim como o que aconteceu a esta indstria, tanto antes quanto depois do conflito.
A anlise deve comear por definir a empresa em questo como [...] tanto una organizacin
administrativa como un conjunto de recursos productivos. Tiene como fin organizar el empleo de
los recursos propios y adquiridos con objectivo de producir y vender ciertos bienes y servicios y
obtener un beneficio [...] (Penrose, 1962:36). Como tal na indstria leiteira que ir batalhar por
seu espao, principalmente atravs da produo do leite condensado. Porm isto gerava um
problema, pois teria que concorrer com uma empresa, cujas notcias de presena no mercado
brasileiro datam de 28 de outubro de 18769, com um anncio de Farinha Lctea. Empresa que j
havia passado pelo processo de departamentalizao e centralizao integrao horizontal
seguiu-se a vertical onde as funes mais importantes, como fabricao, vendas e finanas, eram
gerenciadas pelos diretores ou gerentes, sendo estes subordinados ao presidente (Chandler,
9 A PROVNCIA DE SO PAULO. So Paulo, 28 out. 1876.
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1998:48-9). Tal corporao era a multinacional10 sua Nestl and Anglo-Swiss Condensed Milk
Co. que, alm de farinha lctea, colocava no mercado brasileiro o seu leite condensado, o Milkmaid.
Apesar de toda fora da multinacional sua, possvel que a demanda do mercado
brasileiro por leite condensado, lembrando que ele no serve apenas para rechear o bolo, sendo uma
boa maneira de conservar o laticnio por mais tempo, tenha aumentado consideravelmente na
dcada de 1910, o que pode ser corroborado pela diminuio nos bens de consumo importados
como um todo mesmo que os ndices dos produtos alimentcios no tenham cado tanto.
BRASIL IMPORTAES POR TIPOS DE BENS, 1911-1918.
Indicadores da Formao de Capital na Indstria
Bens Mdia de Matrias- Combus Bens de Consumo Consumo Consumo -Primas tveis Capital Aparente Aparente de
para Industria de Ao Cimento
1911-1913 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 1914-1918 45,1 47,8 65,0 22,2 38,5 35,0
FONTE: Villela & Suzigan. Poltica..., 1975:128.
Importaes atravs do porto de Santos, 1909-1918 (milhares de toneladas mtricas)
1909-1913 1914-1918 Declnio (%)
Produtos alimentcios 1008 943 6 Papel e produtos do papel 48 45 6
10 Multinacional a estrutura bsica do capitalismo dominante nos pases altamente industrializados; caracteriza-se por
desenvolver uma estratgia internacional a partir de uma base nacional, guiada por uma direo central (Sandroni, 2001:45).
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Substncias qumicas e farmacuticas 58 33 43 Tecidos de algodo 13 5 62 Ferro e ao 98 33 66 Produtos de ferro e ao 536 148 70 Mquinas 136 37 73 FONTE: Dean. A Industrializao ..., 1991:98
Este corroborado pela idia de interstcios de Penrose, que trata das oportunidades
abertas nos mercados entrada de novas firmas:
Si el crescimiento de la economia en general va acompaado de la geracin de nuevas industrias y campos tecnolgicos no dominados por grandes empresas, ser posible que otras nuevas ingresen en dichas industrias obteniendo aquellas mejor dotadas y de ms pronto establecimiento una posicin dominante. En los primeros momentos de un desarrollo industrial rpido, los insterstcios pueden ser muy amplios y numerosos, debido a que las empresas establecidas son escasas y a que hay muchas nuevas industrias nacientes. (Penrose, 1962: 242).
O crescimento da Leiteria, baseado nas brechas deixadas pela Nestl no mercado leiteiro,
que aumentaram com a Primeira Guerra Mundial, poderia ter sido bloqueado pela dificuldade desta
nova firma em obter capital para sua expanso, pois as oportunidades de novos investimentos
ligavam-se ao acesso s bases tecnolgicas, ao comportamento da direo da empresa e,
principalmente, ao volume de capital envolvido (Guimares, 1987:108). Quanto ao ltimo item, era
necessrio dar motivos para outros capitalistas investirem na Leiteria. Era importante transmitir a
idia de que ao investir nesta empresa, o aumento nos lucros se traduziriam em benefcios queles
que nela colocassem seu dinheiro. E uma forma para a empresa conseguir tais fundos era o
pagamento de dividendos aos acionistas a Leiteria, desde seu incio, constituiu-se em uma
sociedade por aes os quais serviam para [...] mantener la reputacin de la empresa y en
particular, su atractivo frente a los inversionistas como fuente de fondos futuros [...] (Penrose,
1962:31).
Desta forma, atraindo cada vez mais investidores para se tornarem acionistas por exemplo,
em 1917, a Leiteria pagou Rs. 20$000 (vinte mil ris) por ao referente ao ano de 191611 a
indstria ararense cresceu robustamente. Se, em 1909, a empresa nascia com um capital de
Rs.66:800$000 (sessenta e seis contos e oitocentos mil ris), j em 191512, realizou-se uma
assemblia (noticiada tambm pelo jornal O Estado de So Paulo) que determinava o aumento de
capital da Leiteria para Rs. 350:000$000 (trezentos e cinqenta contos de ris), divididos em aes
de Rs. 200$000 (duzentos mil ris) cada uma, valor que em nova assemblia no ano de 191713, foi
elevado a Rs. 450:000$000 (quatrocentos e cinqenta contos de ris), em aes de Rs. 200$000
11 A TRIBUNA DO POVO. Araras, 25 mar. 1917. 12 A TRIBUNA DO POVO. Araras, 16 abr. 1916. 13 A TRIBUNA DO POVO. Araras, 28 abr. 1918.
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(duzentos mil ris). Para se ter uma idia, a Companhia Araras Industrial, no ano de 191514,
empresa coureira e contempornea Leiteria e que tinha como um dos scios Andr Ulson Jnior, o
Prefeito de Araras em 1916, tinha um ativo da ordem de Rs. 55:353$029 (cinqenta e cinco contos,
trezentos e cinqenta e trs mil e vinte e nove ris). Outro parmetro, que nos d uma noo do
poderio econmico da Leiteria o Balancete Geral da Receita e Despesa do municpio de Araras15,
onde situava-se sua fbrica, referente ao ano financeiro de 1915. Nele consta que o valor da receita
foi Rs.136:127$181 ( cento e trinta e seis contos, cento e vinte e sete mil e cento e oitenta e um
ris), no mesmo ano, a Leiteria aumentara seu capital para um valor maior que o dobro da receita
ararense. Ainda quanto receita do municpio, nota-se que o valor do imposto pago pela Leiteria
em 1910, pela lei n 25 do mesmo ano16, e em 191217, Rs.120$000 (cento e vinte mil ris), era quase
a metade do que pagava a Baronesa de Arary, Rs. 245$000 (duzentos e quarenta e cinco mil ris),
que era proprietria da fazenda Montevido, uma das fornecedoras de leite e tambm acionista da
Leiteria.
A Companhia Ararense de Leiteria tornou-se um investimento atrativo aos detentores de
capital. Este fato fica exposto na quantidade e na qualidade de seus novos acionistas, muitos deles
apesar de serem ararenses, residentes na cidade de So Paulo, como o caso do fazendeiro Joo
Soares do Amaral, que era pai de um dos fundadores da empresa, Joo de Lacerda Soares. Citar
todos os que tiveram uma porcentagem na empresa seria muito extenso, portanto, nos ateremos a
alguns nomes, baseando-nos no ano de 1917, quando a Leiteria aumentou seu capital e fez uma
reviso de seus estatutos. Na assemblia ocorrida na sede da indstria em Araras, no dia 6 de
novembro de 1917, compareceram os seguintes acionistas: Manoel Monteiro de Araripe Sucupira
(20 aes), poca presidente da Leiteria; Perclio de Carvalho (18 aes); Maria Luiza de Queiroz
(76 aes); Francisco Xavier Paes de Barros (12 aes), Baronesa de Arary (25 aoes); Mrio
Lacerda Soares (18 aes), fazendeiro, membro do conselho fiscal da indstria e irmo de Joo de
Lacerda Soares; Pedro Queiroz Lacerda (1 ao), tambm membro do conselho fiscal; alm
daqueles que ordenavam a Leiteria, como Joo de Lacerda Soares (1.054 aes), que era o segundo
secretrio; Joo Soares do Amaral (120 aes) que, alm de fazendeiro e pai de Joo e Mrio
Lacerda Soares, era Coronel da Guarda Nacional em Araras18; Jos Francisco de Queiroz Telles (18
aes), proprietrio da fazenda SantAnna; e o idealizador Louiz Nougus (500 aes). Esta diviso
dos proprietrios e de suas aes era importante, pois, no artigo 13 do Estatuto da Leiteria de 1917,
constava que cada ao tinha direito a 1 (um) voto nas assemblias, o que demonstrava que o poder
14 A TRIBUNA DO POVO. Araras, 15 ago. 1915. 15 A TRIBUNA DO POVO. Araras, 21 mai. 1916. 16 ATA DA CMARA MUNICIPAL. Araras, 17 out. 1910. 17 LIVRO DE IMPOSTOS. Cmara municipal. Araras, 1912. 18 DALTRO, W. L. Araras 1902: Histria da Primeira Festa das rvores do Brasil. Araras: Topzio, 2002.
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de deciso concentrava-se nas mos dos fundadores, Joo de Lacerda Soares, incluindo seu pai e
irmo e, Louiz Nougus, fato que poder explicar os acontecimentos posteriores da Leiteria.
5 Venda da Leiteria e Chegada da Nestl (1921)
Ao analisar a trajetria da Companhia Ararense de Leiteria entre seus pouco mais de dez
anos de atividade fica difcil entender o que moveu seus controladores operao de venda da
empresa multinacional sua do ramo leiteiro, Nestl and Anglo-Swiss Condensed Milk Co., em
1920. A resposta pode estar nos interesses pessoais dos acionistas e o que cada um deles desejava
ao se tornarem scios da Leiteria.
Quase todos os acionistas tinham negcios paralelos Leiteria, inclusive Nougus19, o que
indica que no se dedicavam integralmente aos interesses desta. Alm disto a empresa, apesar do
montante de capital acumulado, tinha um carter familiar, o que fica ntido com os laos de
parentesco entre, por exemplo, dois de seus maiores acionistas, Joo Soares do Amaral e Joo
Lacerda Soares, respectivamente pai e filho. Esta idia do parentesco deve unir-se concepo de
que muitos acionistas, por exemplo, Nougus, juntaram uma quantia de dinheiro em suas mos que
lhes permitiria viver tranqilamente e conduzir seus outros negcios, pois:
Hay excelentes hombres de negocios que pueden tener una escala de valores personal de acuerdo con la cual una renta mayor de aquella que es necessaria para conferirle una situacin confortable en la comunidad, no posee el suficiente atractivo para dedicarle ms tiempo y esfuerzos (Penrose, 1961:40).
Existem vrios atributos citados que valorizam a funo do empresrio, tais como ambio,
versatilidade, previso. Porm, a falta dos mesmos pode tornar-se um empecilho ao crescimento da
empresa. Assim, a falta de ambio, que pode ter advindo da boa condio financeira que gozavam
na poca da venda os acionistas da Leiteria, [...] es la restriccin ms importante [...] (Penrose,
1962:40). necessrio notar tambm que a oferta feita pela Nestl para comprar a indstria foi bem
sedutora e, com certeza, vinha ao encontro dos objetivos daqueles que investiam na empresa
ararense, uma vez que, as incertezas do mercado quanto ao futuro dos negcios faziam de cada
investimento uma aposta. Assim:
[...] mesmo no sendo compelida a retirar-se da indstria, uma firma pode mostrar-se disposta a abandon-la quando a taxa de lucro, embora positiva, cair abaixo de determinado nvel, se achar um comprador para seus
19 Louiz Nougus fundou um Internato de Cincias e Letras em 1912, onde ministrava aulas para os filhos da elite
ararense.
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ativos fixos vinculados a essa indstria. Essa transferncia de ativos pode corresponder aquisio da firma como um todo ou meramente compra da quase firma no-lucrativa. (Guimares, 1987:30).
Tais fatores proposta de venda tentadora, falta de ambio, boa condio de vida j
alcanada e incertezas impeliram a Companhia Ararense de Leiteria em seu processo de venda
Nestl, j que, a una empresa muy prspera puede resultarle ms lucrativo fundirse con otra
empresa, perdiendo as su identidad, que no continuar independientemente(Penrose, 1961:26). A
data oficial do fechamento do negcio entre a Companhia Ararense de Leiteria e a multinacional
sua 22 de janeiro de 1921, porm, pode-se considerar que a vida til da Leiteria tenha se
extinguido no ano anterior.
Outra controvrsia girou em torno do valor que a Nestl pagou pela Leiteria. Na escritura
consta que foram pagos Rs.800:000$000 (oitocentos contos de ris), verso que, na cidade de
Araras, contestada, pois afirmava-se que haviam sido pagos Rs.1.200:000$000 (mil e duzentos
contos de ris)20.
A Nestl, desta forma, instalava-se definitivamente em um mercado onde j era conhecida,
mas, principalmente, fugia das agruras que o ps-guerra havia deixado na Europa, onde os sistemas
monetrios estavam desorganizados, houve forte queda do poder aquisitivo das pessoas, os
embargos, as novas tarifas e as animosidades criadas pela Primeira Guerra Mundial atrapalhavam a
ao comercial das grandes indstrias (Hobson, 1983:338). Alm disto, dizer quais eram as
estratgias da Nestl, e das outras multinacionais, ao investir no Brasil simples:
[...] 1) O processamento de matrias-primas locais com vistas exportao do produto final [...] 2) A obteno da primazia no abastecimento dos mercados locais, mediante a antecipao entrada dos concorrentes ou o afastamento dos mesmos da competio interna [...] 3) A substituio parcial das importaes de produtos industrializados [...] e 4) O aumento da participao no abastecimento do mercado interno atravs da produo local de bens anteriormente importados, baseada na disponibilidade de matrias-primas a baixo custo e na existncia de uma demanda interna compatvel com a obteno de certas escalas mnimas de produo [...] (Suzigan; Szmrecsnyi, 2002:236).
A negociao da Lacerda, Soares & Nougus, razo social da Companhia Ararense de
Leiteria, com a Nestl and Anglo-Swiss Condensed Milk Co. foi selada entre os representantes de
cada empresa: Joo de Lacerda Soares e Louiz Nougus, os maiores acionistas, em nome da
indstria ararense e, pelo lado da multinacional sua, Edouard Dutilh. Assim, a Nestl adquiria
uma indstria forte que havia lucrado muito com o leite condensado [...] os lucros espantosos que
tem auferido desde a Guerra, o aumento do custo de cada caixa de leite condensado, que era a
princpio de Rs. 33$000 e actualmente [1921] de Rs. 75$000 [...] (Desfazendo..., 1921:1); pagava
um imposto, at certo ponto, baixo em relao s outras indstrias do municpio, da ordem de
Rs.1:220$000 (um conto e duzentos e vinte mil reais). Situada a 170 quilmetros da capital do
20 A TRIBUNA DO POVO. Araras, 9 jan. 1921.
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Estado, tinha facilidades para obteno da matria-prima e escoagem da produo, pelo fato de
fazer parte da malha ferroviria da Paulista. Outro atrativo para os compradores eram todas as
instalaes prontas e o grande patrimnio que a Leiteria possua em sua sede na cidade de Araras:
havia uma represa que abastecia atravs de suas canalizaes toda a fbrica, mquinas para a
fabricao de latas para leite condensado, alm da fbrica do leite condensado em si, mquinas para
a fabricao de manteiga, entre outras e, alm delas, uma vasta quantidade de terras no entorno da
Leiteria.
Desta maneira, a Nestl que nos idos de 1900 tinha apenas um escritrio de representao na
cidade do Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, a 23 de dezembro de 1920, pelo decreto
Presidencial n 14.567, recebeu autorizao para funcionar no Brasil. O primeiro produto feito no
municpio de Araras foi o Milkmaid, leite condensado j consagrado no mercado, que no Brasil,
teve seu nome mudado para Leite Moa.
6 Concluso
Em que pese toda a polmica que foi travada sobre o incio das indstrias no Brasil, no
comeo do sculo XX, o objetivo do texto foi abordar como era possvel a uma pessoa detentora do
chamado esprito empreendedor, pr em prtica suas idias e conseguir transform-las em
realidade. Nosso personagem, o francs Louiz Nougus, deu uma boa noo daquilo que era
necessrio fazer no incio do sculo passado para tornar-se um empresrio e posteriormente, um
industrial.
A Companhia Ararense de Leiteria, fundada em 1909, sob a razo social de Lacerda, Soares
& Nougus, foi obra do sonho de Nougus, mas deve ser compreendida, tambm sobre a luz do
grande capital cafeeiro. Este, cada vez mais se aventurando em novas reas, em busca de diminuir
seus custos de manuteno e oportunidades lucrativas de investimento, foi se metamorfoseando em
capital industrial, no s nos momentos de crise do setor cafeeiro e, dando origem burguesia
industrial paulista. Os fazendeiros que Nougus procurou para fomentar sua empresa, Joo de
Lacerda Soares, Joo Soares do Amaral e Jos de Souza Queiroz, ilustravam bem esse tipo de
capitalista que viabilizava a implantao de novas indstrias.
Com o crescimento da Leiteria, novos scios adentraram na Companhia na busca de
dividendos. Esta ascenso pode tambm ser creditada Primeira Guerra Mundial (1914-1918), pois
o conflito prejudicou a importao de diversos produtos que abasteciam o mercado brasileiro,
inclusive o leite condensado, que a Leiteria produzia no Brasil. O fato que houve uma expanso,
denotada pelas operaes de aumento do capital da empresa, e que a Lacerda, Soares & Nougus
estava fortalecida no ps-guerra.
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Contudo, parece que o montante ganho por aqueles que representavam a empresa, Joo de
Lacerda Soares e Louiz Nougus possuam a maior parte das aes, aliado s incertezas do
mercado, s dificuldades em concorrer com um poderoso rival e possibilidade de lucrar ainda
mais com uma tima oferta feita pela multinacional sua, fizeram com que se concretizasse a venda
da Companhia Ararense de Leiteria Nestl and Anglo-Swiss Condensed Milk Co., no dia 22 de
janeiro de 1921, data do registro em cartrio.
O saldo h de ser positivo quando pensarmos em Nougus e na Companhia Ararense de
Leiteria. Ele que tinha apenas uma boa idia nas mos, conseguiu transform-la numa grande
indstria que atraiu novos e fortes investidores, gerou dividendos e pode ser considerada a
precursora de uma multinacional alimentcia no Brasil, a maior do mundo, que at hoje ocupa a
mesma planta que adquiriu da Leiteria a Nestl Araras apenas ampliou o espao, mas ainda
possvel notar os traos da primeira fbrica da Leiteria.
7 Fontes e referncias 5.1 Jornais A PROVNCIA DE SO PAULO, So Paulo, 28 out. 1876. A TRIBUNA DO POVO, Araras, SP, 15 jun. 1913. A TRIBUNA DO POVO, Araras, SP, 19 abr. 1914. A TRIBUNA DO POVO, Araras, SP, 31 out. 1915. A TRIBUNA DO POVO, Araras, SP, 16 abr. 1916. A TRIBUNA DO POVO, Araras, SP, 6 jun. 1916. A TRIBUNA DO POVO, Araras, SP, 25 mar. 1917. A TRIBUNA DO POVO, Araras, SP, 28 abr. 1918. A TRIBUNA DO POVO, Araras, SP, 15 dez. 1918. A TRIBUNA DO POVO, SP, Araras, 9 jan. 1921.
5.2 Documentos da Companhia Ararense de Leiteria
COMPANHIA ARARENSE DE LEITERIA. Ata da Dcima Segunda Assemblia Geral extraordinria. So Paulo: Junta Comercial do Estado de So Paulo, 28 ago. 1915.
COMPANHIA ARARENSE DE LEITERIA. Ata da Dcima Oitava Assemblia Geral Extraordinria. Araras, SP: Junta Comercial do Estado de So Paulo, 6 nov. 1917.
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DECRETO PRESIDENCIAL. Companhia Ararense de Leiteria. Rio de Janeiro: Dirio Oficial, n. 7279, 7 jan.1909. DECRETO PRESIDENCIAL. Companhia Ararense de Leiteria. Rio de Janeiro: Dirio Oficial, n. 11883, 12 jan.1916. DECRETO PRESIDENCIAL. Agricultura, Indstria e Comrcio. Rio de Janeiro: Dirio Oficial, n. 14567, 23 dez.1920. COMARCA DA CIDADE DE SO PAULO. Escritura Pblica de compra e venda da Companhia Ararense de Leiteria Nestl and Anglo-Swiss Condensed Milk Co. 5.3 Documentos do Municpio de Araras-SP CMARA MUNICIPAL. Ata da sesso extraordinria. Araras, SP, 17 out. 1910. CMARA MUNICIPAL. Alistamento eleitoral da 3 seco. Araras, SP, 20 mai. 1893. CMARA MUNICIPAL. Alistamento eleitoral da 2 seco. Araras, SP, 1898. CMARA MUNICIPAL. Balancetes gerais da receita e despesa. Araras-SP: 1915, 1916 e 1917. CMARA MUNICIPAL. Lanamento dos contribuintes do imposto de indstrias e profisses. Araras-SP: 1912 e 1913. 5.4 Referncias Bibliogrficas BAER, W. A. Industrializao e o desenvolvimento econmico no Brasil. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1966. CAMARGO, J. F. Crescimento da populao do Estado de So Paulo e seus aspectos econmicos. So Paulo: FIPE, 1981. CANO, W. Razes da concentrao industrial em So Paulo. Campinas, SP: UNICAMP/IE, 1998. CHANDLER, A. D. Alfred Chandler: Ensaios para uma teoria histrica da grande empresa. Thomas K. Mc Craw (org.). Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998. DALTRO, W. L. Araras1902: Histria da primeira Festa das rvores do Brasil. Araras: Topzio, 2002. DEAN, W. A. Industrializao de So Paulo. So Paulo: Difel, 1991. FISHLOW, A. Origens e conseqncias da substituio de importaes no Brasil. Estudos Econmicos, vol. 2, n. 6, p. 7-75, 1972. FURTADO, C. Formao Econmica do Brasil. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003. GUIMARES, E. A. Acumulao e crescimento da firma. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1987.
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