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INSTITUIES
PENSAM
MARY DOUGLAS
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AS INSTITUIES OPERAM CLASSIFICAO
Quando as instituies operam classificaes para ns, parece que
perdemos parte daquela independncia que, concebivelmente, poderamos
ter tido. Enquanto indivduos, possumos todos os motivos para nos
contrapormos e resistirmos a esse pensamento. Vivendo juntos, assumimos
uma responsabilidade individual que se estende a todos os membros dacomunidade. Assumimos a responsabilidade por nossos atos e ainda mais
voluntariamente por nossos pensamentos. Nossa interao social consiste em
boa parte em comunicarmos uns aos outros o que estvamos pensando
naquele determinado momento e em censurarmos os pensamentos
equivocados. Com efeito, assim que construmos as instituies, amoldando
nossas idias e as dos outros em um formato comum de tal modo que
possamos provar nossa correo simplesmente por meio das cifras querevelam uma aquiescncia independente. A tal ponto esta reivindicao
independncia intelectual reconhecida como base de nossa vida social, que
a filosofia moral toma uma posio exatamente a. Por isso to repugnante
o conceito de Durkheim, segundo o qual o grupo social age como uma nica
mente.
Aqui o julgamento da histria encobre um paradoxo. Quanto mais se
demonstra que um pensador influente vem repetindo os lemas favoritos de
sua poca, mais severamente ele ser denunciado por esse mesmo motivo
pela prxima gerao. Sua altissonante grandeza no passava de um simples
eco do que todo mundo estava dizendo. Ele no era um original,
simplesmente copiava. Ele deveria ter-se contraposto sua poca. No
passava de uma simples flauta, um instrumento passivo no qual o esprito de
seu tempo soprava sua balada. O desprezo revestido particularmente de um
julgamento moral; no depunha a seu favor o fato de aderir passivamente s
ltimas mudanas da opinio sobre a escravido, a insanidade, a eugenia ou
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o imprio colonial. a postura de superioridade moral mais fcil de se adotar
porque a crtica das instituies do passado est ajudando as estruturas
institucionais nascentes da poca desse autor a estruturar sua prpria defesa
contra o passado. Esta a crtica marxista razo, que resulta
freqentemente em relativismo histrico. Cada perodo marcado por seu
prprio estilo de pensamento, ajustado s preocupaes da classe dominante.
Em cada perodo, uma determinada histria do gnero humano abafa verses
mltiplas e contraditrias. No mesmo esprito crtico, Michel Foucault, em sua
arqueologia do pensamento ocidental, atacou todas as instituies
significativas, demonstrando como elas aprisionavam as mentes e os corpos
em camisas-de-fora (1970). Ele demonstrou como o pensamento
transferido diretamente para as instituies ou vice-versa, e como as
instituies passam por cima do pensamento individual e adaptam a forma do
corpo a suas convenes.
Uma instituio, entretanto, no pode ter propsitos. J vimos isto nas
crticas do ensaio de Fleck sobre a gnese de um fato. Somente os indivduos
podem intentar, planejar conscientemente e elaborar estratgias oblquas.
Para que o insight de Foucault retenha seu vigor necessrio que ele seja
elevado a um novo patamar. No estgio da pertinncia, quando a soberania
espria de um estilo de pensamento do passado demonstrado, a opinio
crtica perde seus fundamentos, a menos que possa encontrar um modo de
distinguir a influncia do atual estilo de pensamento sobre seu prprio
pensamento e ainda justificar seus prprios julgamentos. As instituies
dirigem sistematicamente a memria individual e canalizam nossas
percepes para formas compatveis com as relaes que elas autorizam.
Elas fixam processos que so essencialmente dinmicos, ocultam a influnciaque eles exercem e suscitam emoes relativas a questes padronizadas e
que alcanam um diapaso igualmente padronizado. Acrescente-se a tudo
isso que as instituies revestem-se de correo e agem no sentido de que
sua mtua corroborao flua por todos os nveis de nosso sistema de
informao. No de admirar que elas nos recrutem facilmente para que nos
juntemos sua autocontemplao narcisista. Quaisquer problemas sobre os
quais tentemos refletir so transformados automaticamente nos prpriosproblemas organizacionais dessas instituies. As solues que elas
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oferecem provm unicamente da limitada gama de sua experincia. Se a
instituio daquelas que dependem da participao, nossa frentica
interrogao ela responder: "Mais autoridade!". As instituies tm a pattica
megalomania do computador, cuja nica viso do mundo seu prprio
programa. Para ns, a esperana de uma independncia intelectual est na
resistncia e o primeiro passo necessrio na resistncia est em descobrir
como o controle institucional imposto nossa mente.
A teoria social de Max Weber e a de Durkheim ilustram respectivamente
as vantagens mistas de se deixar as instituies operar suas prprias
classificaes (Weber) e as dificuldades de inspecionar como elas o fazem
(Durkheim). Weber exerceu mais influncia do que Durkheim. Ele estabeleceu
os termos para que se pudesse pensar sobre o modernismo e o
psmodernismo. Seu sucesso se deve principalmente ao amplo quadro no
qual sintetizou aquilo que j era o pensamento de sua gerao. Ele ofereceu
aos intelectuais de sua poca uma viso da histria de outras grandes
civilizaes em termos das prprias instituies familiares desses mesmos
intelectuais. Durkheim e Weber focalizaram sua investigao na racionalidade
e, especificamente, na relao entre idias e instituies. Para ambos o
interesse principal era a emergncia do individualismo enquanto princpio
filosfico. No caso de Durkheim a tarefa consistia em explicar a indagao
geral do comprometimento com a ordem social, isto , a questo da
solidariedade, que a mesma que a ao coletiva. Ele descobriu a resposta
na classificao compartilhada. O trabalho de Durkheim sobre a origem social
da classificao possibilita um mtodo independente de auto-inspeo. Ele
proporciona uma tcnica para a anlise que poderia constituir-se em uma
prova contra a distoro institucional. Para Weber, a tarefa consistia emexplicar o predomnio de determinadas idias e ideais em um determinado
estgio de desenvolvimento institucional. Estas observaes j mostram que
Durkheim havia situado sua investigao em um nvel mais elevado de
abstrao. Na poca de Weber, as opes intelectuais institudas eram ou de
um tipo hegeliano de idealismo (difcil e implausvel, dado o clima de opinio
existente na sociologia) ou de um tipo marxista de determinismo sociolgico.
Ele escolheu um meio caminho entre o idealismo e o determinismo. Tendo emvista sua monumental contribuio compreenso da racionalidade e das
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formas institucionais, no deixou a seus seguidores um mtodo sistemtico
que possibilitasse analisar essa relao com maior sutileza. Na realidade,
legou-Ihes muitssimos problemas relativos ao que queria dizer realmente
com o esprito do protestantismo ou o esprito da poca.
O modelo bsico da sociedade em Weber um equilbrio entre os
diferentes setores institucionais. Sua principal explicao para a mudana a
descrio das foras histricas que contribuem para o desequilbrio. O
pensamento secular divide-se em dois setores, um deles dominado pelas
instituies do mercado e o outro pela burocracia. A racionalidade do mercado
caracteriza-se por um raciocnio prtico, individual, em torno dos meios e dos
fins; a racionalidade burocrtica caracterizada pelo pensamento
institucional, isto , pela abstrao e o estabelecimento de uma rotina. A
dicotomia de Weber ainda domina a teoria poltica e conferiu um vis
inamovvel a nossas maneiras habituais de refletir sobre as organizaes (ver
Douglas 1986). Em se tratando da sociologia da religio, Weber estabelece
uma distino entre a vida religiosa e a vida secular. Ele aparta o
comportamento secular do comportamento religioso, situando-o em um
compartimento institucional prprio. A classificao weberiana da religio
sempre segue a classificao tradicional dos papis religiosos, que faz parte
da diferenciao regular, da vida real, das instituies religiosas. Um
pensador que classifique os fenmenos para que sejam examinados de
acordo com instituies conhecidas e visveis poupa-se o trabalho de justificar
a classificao. J o esquema conceitual normal para aqueles que vivem e
pensam por meio de semelhantes instituies. Entretanto, ao proceder assim,
Weber nos prope um intricado problema relativo sociologia da religio.
Como a religio tem sido definida institucionalmente, e a secularizao pelodesengajamento da religio em relao s instituies, a secularizao
implica ntida perda para a religio. No entanto, retirar a vida religiosa das
instituies seculares pode acontecer sem perda da f de cada um. O ganho,
em se tratando da f particular, e a perda da cerimnia pblica no
acontecem necessariamente no mesmo processo, conforme assinalaram
muitos comentaristas. Ao abordar a histria religiosa de Israel, China e ndia,
Weber emprega a estrutura institucional da sociedade ocidental. Isto lhepossibilita recorrer ao nosso atual conceito de nossa experincia histrica em
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vez de reportar-se a qualquer teoria causal da mudana. No panorama das
grandes civilizaes cada uma delas comea em uma comunidade primitiva
(que continua no sendo examinada). Em seguida, todas elas, em diferentes
perodos, atravessam os mesmos estgios: o estgio feudal, no qual o
equivalente da nobreza se distingue dos equivalentes do campesinato e do
qual um setor comercial emergente acabar por desviar todo o sistema para
uma cena urbana. O incio revestido de sacralidade e pasmo; a urbanizao
introduz os mercados, a intelligentsia, a burocracia, o sacerdcio e tambm os
grupos de prias. As instituies crescero e convergiro para aquele ponto
que agora vivenciamos e deploramos. A histria se conclui com o rasgar dos
vus, a perda do encantamento, o questionamento e o fim da legitimidade. A
inverossmil narrativa proposta por um pensamento institucional como este
que a legitimidade sempre existiu sem ser questionada, onde quer que fosse.
Que outrora tenha havido um perodo de legitimidade inquestionvel uma
idia que nossas instituies usam para estigmatizar os elementos
subversivos. Por meio desse esperto recurso passa a idia de que a
incoerncia e a dvida algo que acaba de chegar, juntamente com os
bondes e a luz eltrica; so intrusos nada naturais naquela confiana primeva
na pequenina comunidade idlica, porm mais plausvel que a histria da
humanidade esteja repleta, desde o incio, de pregos cravados nos caixes
locais da autoridade.
O pesar de Weber pela passagem da infncia da humanidade adoado
pela exaltao. O movimento moderno em direo liberdade intelectual
significa o desafio colocado por um mundo adulto, livre de sacerdcios, magia
e outras tiranias. Os novos medos, por mais aterrorizantes que possam ser,
so medos reais e no falsas supersties; eles acarretam responsabilidadese privilgios reais e no iluses. A alvorada dourada de Weber uma
contrapartida ao mitolgico livro de Frazer, O Ramo Dourado, e ao modelo
colonial da psique elaborado por River (1920). Se eles falavam em coro
porque as mesmas instituies estavam operando seus pensamentos.
Na introduo tica Protestante (1905), Weber afirmou que havia lido o
mais que pudera para apresentar sua argumentao com o mximo de
clareza, mas desculpou-se por haver negligenciado a etnografia. No contextoparece, com toda certeza, uma omisso bem menor. Como que aquelas
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pequeninas tribos exticas, que tanto intrigaram Durkheim e Mauss, poderiam
apresentar qualquer relevncia para seu tema? Aqui, mais uma vez, ele est
fazendo eco para aquilo que seus leitores sentem ser a verdade. Ele (e eles)
acreditam realmente que uma profunda diviso separa a experincia que
temos da sociedade daqueles povos que existem unicamente nos registros
dos exploradores, missionrios e antroplogos. O mesmo acreditaram os
socilogos desde ento.
A crena criada por uns dois rpidos acenos de mo. No primeiro
aceno Weber nos ensinou a encarar a sociedade em termos dos setores
institucionais que conhecemos; tais setores so povoados por sacerdotes,
juzes, intelectuais, elites, proprietrios de terra, arrendatrios e proscritos.
Nesse cenrio os problemas da racionalidade so colocados como problemas
que apenas surgem com o crescimento e conflito dessas instituies. Assim,
aqueles povos cuja sociedade no diferencia claramente os juzes, os
sacerdotes, os proprietrios de terras e outros setores no podem ser
relevantes para a histria moderna. A ndia, a China e Israel so relevantes
porque sua histria pode ser apresentada em termos de equilbrio ou
desequilbrio entre esses setores institucionais. Os aborgenes australianos e
os esquims apenas escorregam entre as malhas da rede da investigao.
Passemos ao segundo aceno. O arcabouo hegeliano do modelo de
Weber pressupe que a histria das instituies do mundo registra a
constante evoluo da autoconscincia. Benjamin Nelson (1981) apresenta
um srio e claro relato sobre os pressupostos weberianos da conscincia
humana em desenvolvimento. Enquanto nosso interesse girar em torno do
interesse final, ento haver pouco a se ganhar do exame das fases iniciais
do movimento. Aqui oculta-se outra idia convincente, isto , o esnobismo domundo da escrita. Os povos que no registraram por escrito suas meditaes
filosficas no podem possuir princpios articulados que Ihes possibilitem
refletir sobre a ordem social.
Na qualidade de contemporneo, Durkheim caiu em todas essas
armadilhas institucionais. Ele partiu da mesma distino bsica entre
primitivos e modernos, e tambm as encarou pelo emprego que elas fazem de
diferentes procedimentos mentais. Seria uma tolice sugerir que ele,igualmente com sentimentos confusos, tambm no subscrevesse a idia de
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uma alvorada dourada da humanidade. Para ele, a graa salvacionista no
estava no interesse pela reconstruo das vrias fases da evoluo que se
desenrolaram do incio at agora. Assim, sua teoria no to sobrecarregada
de pressupostos institucionalmente estabelecidos. Seu modelo evolucionista
apresenta apenas dois estgios: o estgio primitivo da solidariedade
mecnica, baseada em classificaes compartilhadas, e o estgio moderno
de solidariedade orgnica, baseado na especializao econmica e na troca.
Se retirarmos as escoras evolucionistas da teoria de Weber, no sobra nada,
com exceo das sries hierrquicas de instituies. Se as retirarmos da
teoria de Durkehim, sobram-nos duas formas de comprometimento social,
uma delas cIassificatria e a outra econmica. At mesmo Durkheim no
acreditava que a solidariedade classificatria estava associada unicamente a
estgios subdesenvolvidos da diviso do trabalho, pois dispensava muita
ateno s idias estandartizadas do que certo e do que errado na
sociedade moderna.
Ler isoladamente As Formas Elementares da Vida Religiosa do restante
da obra de Durkheim garantir sua compreenso equivocada, j que o
pensamento deste autor era um arco simples, no qual cada publicao
relevante era um pronunciamento necessrio. Ele batia sempre na mesma
tecla, isto , a perda da solidariedade classificatria. Deplorava a
impossibilidade de a substituir e as crises da identidade individual que
decorrem da ausncia de classificaes vigorosas que prestem apoio
publicamente compartilhadas e particularmente internalizadas. Durkheim
ensinou que as idias publicamente padronizadas (representaes coletivas)
constituem a ordem social. Reconhecia que o domnio que elas exercem
sobre o indivduo varia quanto fora. Denominando-a densidade moral, eletentou medi-Ia e avaliar os efeitos de suas fraquezas. De acordo com
Durkheim, o mtodo sociolgico requer que as reaes individuais sejam
tratadas como fatos psicolgicos a ser estudados em um quadro de referncia
da psicologia individual. Somente as representaes coletivas constituem
fatos sociais e estes contam mais do que os fatos psicolgicos porque a
psique individual constituda por classificaes socialmente construdas.
Como a mente j colonizada, deveramos pelo menos tentar examinar oprocesso colonizador.
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Quando Durkheim escreveu com Marcel Mauss o ensaio sobre a
classificao primitiva (1903), aquilo que j era uma convico a longo prazo
(isto , o ato de que a solidariedade se baseia em classificaes
compartilhadas) comeou a tomar-se um mtodo. verdade que Weber
relacionou estilos diferenciados de raciocnio com tipos diferenciados de
instituies e, portanto, verdade que este tambm seu programa. No
entanto, seus avisos de que o sagrado havia sido afugentado e que agora os
indivduos permanecem em um territrio sem legitimao, bem como seu
tributo ao esprito da poca, exerceram um efeito soporfico. A pesada tarefa
de classificar tipos de sistemas de classificao e as atitudes morais a eles
associadas mal foi encetada. Enquanto todos os demais adotavam posturas
institucionalmente prescritas sobre a modernidade, a perda da legitimidade, o
maravilhamento e a sacralidade, Durkheim e Mauss propunham analisar at
que ponto as classificaes mundanas que empregamos so projees da
estrutura social que participam da aura da sacralidade. O sagrado de que os
weberianos sentiam falta era uma mstica impossvel de se analisar. O
sagrado, para Durkheim e Mauss, eram classificaes mais misteriosas e
ocultas do que compartilhadas, profundamente acalentadas e violentamente
defendidas. Isto no tudo: esse conceito do sagrado passvel de anlise.
Ao escrever sobre o sagrado Durkheim tentava averiguar como as
instituies operam a classificao. No era seu pensamento que o poder
sagrado cintila como uma propriedade inerente s constituies e aos reis,
mas exatemente o contrrio. Os povos que escolheu para representar as
formas sociais elementares no possuem constituies, reis ou qualquer
autoridade coercitiva superordenada. Para os australianos, o sagrado s pode
retirar seu poder de seu prprio consenso. Sua fora coercitiva, que arma ouniverso inteiro com tabus punitivos com o objetivo de reforar o
comprometimento oscilante do indivduo, baseia-se em classificaes
existentes na cabea desse mesmo indivduo. Baseia-se essencialmente em
classificaes que dizem respeito diviso do trabalho. Assim, a teoria do
sagrado em Durkheim no diz respeito apenas a civilizaes que
desaparecem mas tambm se refere aos modernos, j que ns temos uma
sociedade baseada na diviso do trabalho. O livro sobre o suicdio (1897) e odesenvolvimento do conceito de anomia constituem a melhor demonstrao
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de que Durkheim esperava que aprendessemos sobre ns mesmos a partir
das sociedades etnogrficas.
O programa de pesquisa de Durkheim inicia-se com a possibilidade de
que existe uma boa ou m adequao entre as classificaes pblicas e
privadas. Se a adequao m, isto pode ocorrer por dois diferentes motivos:
o indivduo pode rejeitar as classificaes pblicas e recusar a permitir que
elas exeram qualquer domnio sobre seus prprios julgamentos ou pode
aceitar o mrito das classificaes pblicas, mas sabe ser incapaz de dar
conta dos padres esperados. Finalmente as classificaes pblicas podem
ser relativamente coerentes ou estar em estado de incoerncia. De acordo
com Durkheim, essas relaes entre o estado de esprito do indivduo e as
expectativas padronizadas de sua sociedade tm sido muito consideradas
pelos socilogos como fontes de anomia, dando lugar a um comportamento
desviante. Com efeito, o conceito de anomia possui abundante literatura. No
entanto, o desvio geralmente no tem sido identificado pelo exame
sistemtico das normas, mas pelos sinais de rejeio por parte da sociedade
principal. O desvio que resulta em mudana no contado como anomia. Os
socilogos tm demonstrado tendncia para assimilar a complexa
argumentao do livro de Durkheim sobre o suicdio, bem como As Regras do
Mtodo Sociolgico para uma distino, entre os de dentro e os de fora. O
programa de pesquisa relativamente simples: observar os membros de um
grupo reclassificando seus membros desviantes, dando-Ihes o status de quem
est de fora. Em Classificao Primitiva os co-autores sugerem um programa
muito diferente. Aquilo que constitui o desvio no pode ser auferido enquanto
as dimenses da conformidade no forem delineadas. Para avaliar graus de
conformidade entre ns mesmos precisamos fazer a mesma contagemmeticulosa de categorias, verificando como o mundo fsico transforma-se em
uma projeo do mundo social. Para ns o mesmo que ocorre com os
esquims e australianos. Precisamos usar o mesmo mtodo de construir o
norte e o sul, a esquerda e a direita, todos eles repletos de padres de
dominao, congregao e disperso, no apenas para ns como tambm
para os chineses e os ndios zuni.
de se reconhecer que Durkheim jamais articulou semelhante programaa moderna sociedade industrial. O estilo de pensamento de sua poca
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comemorava com tamanha nfase a evoluo social que ele s enxergava em
tomo de si a marca da modernizao com o inevitvel acompanhamento de
uma incoerncia cada vez maior. Aceitava aquela idia popular segundo a
qual o homem moderno escapou do controle das instituies, compartilhada
pela maioria de seus contemporneos. Um discpulo que queira defender a
tese principal de Durkheim, ainda que hesitando em aplic-Ia aos modernos,
pelo menos dispe do mtodo deste autor como um instrumento para a
descoberta de nossas prprias representaes coletivas. O grande triunfo do
pensamento institucional tomar as instituies completamente invisveis.
Quando os grandes pensadores de uma determinada poca concordam que
os dias atuais no se assemelham a nenhum outro perodo e que um grande
abismo nos separa de nosso passado, temos um primeiro vislumbre de uma
classificao compartilhada. Como todas as relaes sociais podem ser
analisadas como transaes de mercado, a penetrao deste mesmo
mercado alimenta em ns, com grande sucesso, a convico de que
escapamos dos antigos controles institucionais, que no se referiam ao
mercado, e conquistamos uma liberdade nova e perigosa. Quando tambm
acreditamos que somos a primeira gerao que no controlada pela idia do
sagrado e a primeira na qual seus componentes se vem cara a cara uns com
os outros enquanto indivduos reais e que, em conseqncia, somos os
primeiros a alcanar uma ampla autoconscincia, ento existe,
incontestavelmente, uma representao coletiva. Ao reconhecer este fato,
Durkheim teria de admitir que a solidariedade primitiva, baseada numa
classificao compartilhada, no se perdeu completamente.
Para analisarmos nossas prprias representaes coletivas deveramos
relacionar aquilo que compartilhado em nosso equipamento mental comnossa experincia comum em relao autoridade e ao trabalho. Para saber
como nos contrapormos s presses classificatrias de nossas instituies,
gostaramos de iniciar um exerccio classificatrio independente. Infelizmente
todas as classificaes de que dispomos para pensar so pouco originais,
juntamente com nossa vida social. Para pensarmos sobre a sociedade temos
mo as categorias que empregamos como membros da sociedade, que
dialogam uns com os outros sobre ns mesmos. Essas categorias de atorfuncionam em todos os nveis possveis. No topo se situariam as regras
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sociais mais gerais e, na base, as mais particulares. Quando tentamos
designar itens a esse nvel bsico de classificaes sociais gerais, mnimas,
poderemos surpreender-nos pensando em situaes domsticas e
enumerando os papis das crianas, dos adultos, dos homens e das
mulheres. Partindo desse ponto, reproduziremos automaticamente o esquema
de autoridade e a diviso do trabalho no lar, mas ser muito diferente se um
indiano ou um americano estiver pensando, conforme observou com muita
sagacidade Ravindra Khare, antroplogo indiano que ensina nos Estados
Unidos (Khare 1985, p. 43). Poderemos tambm comear abordando os
papis desempenhados por aqueles menos envolvidos na organizao social,
os vagabundos, por exemplo, e nos deslocarmos da periferia para os centros
de influncia. Poderemos ainda comear pelos bebs e subirmos na estrutura
etria. Em cada caso adotaremos as categorias usadas pelos nossos
administradores para recolher impostos, operar recenseamentos da
populao e avaliar a necessidade de escolas ou prises. Nossas mentes j
estaro percorrendo as velhas trilhas. Como possvel pensarmos sobre ns
mesmos na sociedade a no ser usando as classificaes estabeleci das em
nossas instituies? Se nos voltarmos para os vrios cientistas sociais
verificaremos que suas mentes esto ainda mais profundamente cativas.
Seus objetos de estudo se inserem em categorias administrativas, nas quais a
arte est separada da cincia, o afeto da cognio, a imaginao do
raciocnio. Tendo em vista fins de controle jurdico e administrativo,
encontramos pessoas rotuladas de acordo com nveis de capacidade e
verificamos que o pensamento est classificado como racional, insano,
criminoso e criminosamente insano. A tarefa de classificao, que j
realizada por ns, executada como um servio para profisses institudas.Ao mesmo tempo em que as instituies produzem rtulos, existe um
feedback que se refere ao conceito de auto-realizao, enunciado por Robert
Merton. Os rtulos estabilizam o fluxo da vida social e at mesmo criam, at
certo ponto, as realidades a que eles se aplicam. Ian Hacking abordou a
relao entre o rtulo e a realidade a partir de pistas sugeri das pelo estudo
de Michel Foucault sobre a "constituio dos sujeitos". A este processo
Hacking denomina "a construo da pessoa", ao rotul-Ias e ao assegurar, devrias maneiras, que elas se conformaro aos rtulos (1985). Trabalhando
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com as estatsticas do sculo que focalizavam o desvio e o controle dos
desviantes, ele sugere que a construo das pessoas de origem recente. O
antroplogo inclina-se imediatamente a contestar. As pessoas sempre
rotularam umas s outras, com as mesmas conseqncias ! os rtulos
pegam. Hacking, porm, deve estar com razo ao acrescentar que "a mera
proliferao de rtulos durante o sculo XIX pode ter engendrado, de modo
vasto, mais tipos de pessoas do que o mundo at ento conhecera." Uma
verdadeira avalanche de cifras comeou a surgir nas agncias
governamentais que se dedicavam estatstica na Europa por volta de 1820.
O exerccio da contagem, uma vez iniciado, gerou milhares de subdivises.
Com a mesma velocidade com que novas categorias mdicas, que at ento
no haviam sido imaginadas, ou novas categorias criminais, sexuais ou
morais foram inventadas, novos tipos de pessoas apresentaram-se em hordas
para aceitarem os rtulos e viverem de acordo com eles. A receptividade a
novos rtulos sugere uma extraordinria presteza a se encaixar em novos
nichos e a deixar que o conceito do eu seja redefinido. No como a
nominao que, de acordo com os filsofos nominalistas, cria uma verso
particular do mundo, ao distinguir certo tipo de coisas, por exemplo, dar nome
s estrelas, colocando algumas em primeiro plano e deixando outras
desaparecer de vista. Trata-se de um processo muito mais dinmico, pelo
qual nomes so enunciados e, sem demora, emergem novas criaturas que a
eles correspondem.
A colocao de Hacking que as pessoas no recebem simplesmente
um novo rtulo e voltam a adquirir proeminncia, mas ainda se comportando
como se comportariam caso levassem esse rtulo ou no. As novas pessoas
se comportam de maneira diferente de seu comportamento no passado.
Elaborando a diferena entre as pessoas e as coisas, diremos que aquiloque os camelos, as montanhas e os micrbios esto fazendo nodepende de nossas palavras. O que acontece com os bacilos datuberculose depende se os matamos com a vacina BCG, mas nodepende da maneira como os descrevemos [...] a vacina que mata, nonossas palavras. A ao humana mais estreitamente ligada disciplinahumana do que a ao bacteriana (Hacking 1985. p. 13).
Hacking est estabelecendo uma distino entre o efeito da descrio
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sobre os objetos inanimados e o efeito dos nomes sobre os seres humanos. A
aplicao de injees pode matar os micrbios: "as possibilidades para os
micrbios so delimitadas pela natureza, no pelas palavras." O contraste,
porm, no to claro, pois no so as palavras que fazem as coisas para as
pessoas. O rtulo no motivo para que elas modifiquem sua postura e
recomponham seus corpos. A aplicao de injees txicas tambm poderia
matar as pessoas e os micrbios no so menos receptivos s palavras do
que os seres humanos. Tendo em vista uma comparao justa, o processo de
rotulao, em ambos os casos, faz parte de uma ao coatora mais ampla e
as plantas, os animais e os micrbios reagem ainda mais veementemente do
que os seres humanos. bem verdade que o bacilo pode morrer, mas, em
um perodo muito curto, surgem novas cepas, no para se conformarem com
os rtulos, mas para os desafiarem. Surgem milhes de novos bacilos, jamais
imaginados, mas imunes aos ataques desfechados contra eles e que
recorrem a antigos rtulos. Do mesmo modo que os pervertidos sexuais, os
histricos ou os manaco-depressivos, os seres vivos que interagem com os
seres humanos transformam-se para se adaptar ao novo sistema
representado pelos rtulos. A diferena real pode ser que a vida fora da
sociedade humana transforma-se, afastada dos rtulos, em atitude de
autodefesa, enquanto a vida na sociedade humana transforma-se,
aproximando-se dos rtulos, na esperana de obter alvio ou vantagens.
O mrito especial de se chamar a ateno para a receptividade aos
nomes consiste em convidar os filsofos a modificar seu enfoque. Em vez de
se concentrar na nominao como um modo de indicar determinados itens,
sistemas completos de conhecimento so esclarecidos, mediante a
abordagem de Foucault. A relao entre as pessoas e as coisas que elasnomeiam jamais esttica. Conforme diz Nelson Goodman, a relao ocorre
no interior de um sistema que evolui (1978). A nominao apenas um
conjunto de inputs; ela se situa na superfcie do processo de classificao. A
interao que Hacking descreve d voltas e vai das pessoas que fazem as
instituies para as instituies que operam as classificaes, para as
classificaes que acarretam aes, para as aes que buscam nomes e para
as pessoas e outras criaturas vivas que reagem nominao de modopositivo ou negativo.
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Tendo aceitado que as pessoas classificam, tambm podemos
reconhecer que sua classificao pessoal possui algum grau de autonomia.
As comunidades classificam de maneira diferente. Conforme j vimos, as
instituies sobrevivem atrelando todo o processo de informao tarefa de
se afirmarem. A comunidade instituda bloqueia a curiosidade pessoal,
organiza a memria pblica e impe heroicamente a certeza ou a incerteza.
Ao delimitar suas prprias fronteiras, ela afeta todos os nveis inferiores de
pensamento de tal modo que as pessoas se do conta de suas prprias
identidades e classificam umas s outras por meio da afiliao comunidade.
Como ela usa a diviso do trabalho como fonte de metforas no intuito de
afirmar-se, o autoconhecimento e o conhecimento que a comunidade tem do
mundo deve passar por mudanas quando a organizao do trabalho muda.
Quando ela alcana um novo nvel de atividade econmica, novas formas de
classificao devem ser conceituadas, mas as pessoas no controlam
individualmente a classificao. Trata-se de um processo cognitivo que as
envolve da mesma maneira com que elas so envolvidas com as estratgias
e resultados finais do cenrio econmico na constituio da linguagem. As
pessoas, individualmente, fazem escolhas no interior das classificaes. Algo
mais governa suas escolhas, isto , alguma necessidade de uma
comunicao mais fcil, um impulso para um novo enfoque, tendo em vista a
preciso. A mudana ser uma rplica viso de um novo tipo de
comunidade.
Por exemplo, por que motivo os vinhos tiveram seus rtulos subitamente
modificados? Os fregueses do Chesse Cellar, em Evanston, selecionam
agora seus vinhos de acordo com os nomes das variedades de uva. Ser esta
uma escolha autntica? Ser que algum restaurateur tomou a deciso de nomais oferecer os vinhos de Bordeaux, Bourgogne, Loire ou Reno, St. Emilion
ou Sauterne? O que significa para a teoria da classificao que os fregueses
agora estejam solicitando o Zinfandel, o Gamay e o Sauvignon, embora o
vinho possa proceder de Bordeaux?
A mesma moda deu novo nome aos tecidos. Eles costumavam ser
classificados pelos nomes dos lugares de sua provenincia: o xantungue e o
crepe da China vinham da China, o paisley, de Paisley, a popelina, deAvignon, a cambraia, de Cambrai, a Iila, de Lille, o cashmere, da Caxemira, a
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seda de Macclesfield, de Macclesfield. Agora eles so rotulados como
algodo puro, seda pura, l pura, nilon, polister ou rayon. Os sinestes de
ouro e de prata baseiam-se em seu lugar de origem, mas hoje o simples peso
muitas vezes nos diz mais. Os livros de zoologia destinados s crianas ainda
classificam as aves e os animais por regies, as enciclopdias de mitologia
apresentam os mitos como provenientes de Grcia, Roma, da orla celta ou da
ndia. A estatstica global, um sofisticado exerccio interpretativo, ainda em
sua infncia, recorre abordagem do atlas mundial. Na Bblia os rtulos
judeu, nazareno ou samaritano diziam muito sobre a pessoa. Agora, porm,
as classificaes baseadas na constituio gentica e status educacional,
psiquitrico ou ocupacional fazem uma diferena. Lawrence Rosen expressou
claramente o contraste no conceito da pessoa como uma identidade
negociada no mbito de uma comunidade. No Marrocos, a identidade social
comea com a idia do lugar, no simplesmente o lugar de origem, mas
tambm a soma total das negociaes e redes espacialmente delimitadas que
uma pessoa estabeleceu.
Uma parte muito considervel do carter de um indivduo constituda
pelo meio social do qual ele retira sua formao. Para os marroquinos, asregies geogrficas so espaos habitados, domnios nos quais ascomunidades se organizam para ganhar a vida e forjar um grau desegurana [...] seu principal enfoque est na identidade das pessoas insitu porque o prprio lugar um contexto social atravs do qual oindivduo acostuma-se aos meios de criar um espao vivido. Estar ligadoa um lugar significa, portanto, no s ter um ponto de origem, mastambm possuir aquelas razes sociais, aquelas realizaes humanasque so distintivas para o tipo de pessoa que algum (1984, p. 23).
Em outra passagem, Rosen contrasta esta viso da pessoa como algumque tem razes em um grupo e em um lugar com uma viso moderna.
Assim, quando um americano pode, antes de mais nada, querer situarum outro, perguntando o que ele faz (isto . a que ocupao se dedica)porque tal informao transmite todo um conjunto de implicaes para asatitudes econmicas, sociais e polticas, no Marrocos a principalindagao "onde esto suas origens?", pois essa informao que,inicialmente, transmite um grau de previsibilidade sobre os tipos de laospossveis de se estabelecer com esse homem.
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Alguma coisa acontece dentro de nossas cabeas quando um diferente
tipo de organizao tornou obsoletas as antigas classificaes segundo os
lugares. A mudana no uma escolha proposital ou consciente. As
instituies ocultam sua influncia de tal maneira que mal notamos qualquer
mudana.
Uma dessas modificaes do pensamento se acha registrada na
trajetria do Dictionnaire Universal du Commerce, de Savary des Bruslon.
Savary era um funcionrio da real alfndega, no reinado de Lus XIV. Seu
dicionrio do comrcio foi a primeira tentativa de sistematizar o conhecimento
acumulado pelos mercadores, produtores, funcionrios do governo e
consumidores. A partir dela, William Reddy tenta compilar "a paisagem mental
do comrcio txtil no incio do sculo XVllI" (Reddy 1986). "Editado pela
primeira vez entre 1723 e 1730 e reeditado, pirateado e traduzido pelo menos
mais seis vezes, entre 1741 e 1784," obteve um sucesso inicial extraordinrio,
mas, por volta de 1784, a nova edio era pouco mais do que uma
inconsistente colcha de retalhos, tantas haviam sido as revises. Tantas
coisas aconteceram em 43 anos que se necessitava de um dicionrio
completamente novo, organizado de acordo com um novo esquema racional,
correspondente s mudanas ocorridas no comrcio e na manufatura. No
entanto, s vsperas da revoluo, uma tal mudana era impensvel.
Para escrever esses documentos cIassificat6rios como guias e
dicionrios, as instituies que esto a postos operam elas mesmas as
classificaes. Para descrever os meandros do comrcio txtil no sculo
XVIII, Savary necessitou toda a percia de um entendido. Toda pessoa que se
dedicava ao comrcio exercia um conhecimento complexo, focalizado na
comunidade, baseado nos nomes dos lugares, das guildas e dos selos graasaos quais seus produtos podiam ser reconhecidos e ter sua qualidade
garantida.
Aps a revoluo fracassaram vrias tentativas no sentido de editar e
atualizar um dicionrio at 1837, quando Guillaumin Publishers lanou um
novo dicionrio, escrito por uma grande equipe de professores, comerciantes
e banqueiros. Aps 50 anos de experincia com o livre comrcio, a
regulamentao j no se apresenta mais como um problema: "nada seinterpe entre o produtor e o comprador; o prprio processo de produo ,
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portanto, a nica possvel fonte de distines para determinar o que um
tecido". A essa altura as guildas j no existiam mais. Os resultados que elas
garantiam e que constituam a principal preocupao de Savary foram
substitudos no dicionrio por processos, materiais e custos, organizados
alfabeticamente. Novas categorias foram designadas e pginas e mais
pginas so dedicadas s matrias-primas, s plantas, a seus lugares de
origem e fibra (suas propriedades qumicas e mecnicas e o estgio de sua
transformao em fio). Algumas categorias de tecido foram ampliadas; h
menos a se dizer a respeito de variedades especficas de tecido. A produo
constitui a principal preocupao. Reddy descreve o dicionrio de 1837 como
uma imensa tarefa de reelaborao do pensamento. O prprio conceito de
mercadoria havia mudado e cada mercadoria especfica usada na Europa
tinha de ser concebida novamente. medida em que Reddy analisa as
diferentes categorias nos dois dicionrios, ele pe a nu um determinado tipo
de mudana na economia. A fabricao do tecido h muito foi desligada das
instituies do antigo regime. J no corresponde mais ao gosto, no trajar, de
uma sociedade estratificada, nem s regulamentaes e privilgios de um
corpo de teceles e comerciantes urbanos, nem aos hbitos de produtores
camponeses que trabalham no interior, nem aos mtodos operacionais do
governo em Versalhes. As instituies da indstria txtil alcanaram um nvel
de organizao tal que um dicionrio pode organizar uma lista de seus
processos e materiais independentemente daqueles pertencentes ao setor
manufatureiro de uma economia de mercado.
E o que dizer do comrcio de vinhos franceses? Foi a indstria de vinhos
da Califrnia, seguindo semelhantes processos de industrializao, que forou
de tal modo a mudana da nomenclatura que a abordagem da classificaodo vinho, em forma de atlas, que funcionou bem na Europa, j no mais
apropriada. Os dois diagramas a seguir mostram a diferena. Seis dos mais
renomados produtores de Bordeaux e seis dos mais ambiciosos produtores
de vinhos do Vale de Napa, na Califrnia, foram escolhidos para se comparar
um com o outro, no apenas quanto qualidade de seus vinhos mas tambm
no que se refere escala. Do lado francs, a escala da produo vai de 3750
a 30000 caixas por ano. Alguns estabelecimentos vincolas da Califrniaproduzem acima de 1.000.000 caixas anualmente, mas no difcil
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emparelhar-se com a escala francesa de produo. Isso demonstra que a
escala no constitui uma diferena decisiva na mudana a ser descrita.
A produo californiana altamente diferenciada. Cada estabelecimento
vincola produz uma grande variedade de vinhos, cada um de uma diferente
uva, enquanto os produtores franceses tendem a especializar-se em um ou
dois vinhos e em uma mistura de uvas.
Na classificao francesa o fator geogrfico proeminente. Pode-se
comear afirmando que Bordeaux uma regio da Frana; no territrio de
Bordeaux existem regies menores (Mdoc, St. Emilion, Graves, Ctes); os
crculos concntricos focalizam os chateaux. Surge ento um princpio de
qualidade. Mdoc tem uma classificao baseada no preo mdio alcanado
pelo vinho ao longo dos cem anos anteriores a 1855. fora de dvida que
essa classificao identificava a terra mais apropriada aos vinhedos. A
classificao de acordo com a qualidade reconhece a primeira, a segunda, a
terceira e a quarta safra e, na base da escala, est um Cru Bourgeois. Abaixo
desse nvel situam-se safras sem classificao. Seguindo esse critrio de
qualidade, o chateau considerado no tanto uma propriedade rural quanto
uma certa marca, de cuja reputao o proprietrio extremamente zeloso.
Como os proprietrios do Mdoc herdaram sua posio hierrquica da
classificao de qualidade efetuada em 1855, eles esto sujeitos a padres
auto-impostos. Em St. Emilion, a qualidade verificada por um comit; alguns
dos chateaux mais famosos, os Premiers Grands Crus, tm de renovar seu
direito a um posto mais elevado na classificao a cada dez anos. Outros, os
Grands Crus, tm de submeter cada safra aos provadores de vinho. Nos dois
casos, a grande preocupao em se manter a qualidade e em se manter um
nome assemelha-se preocupao, nesse mesmo sentido, das guildas detecidos. E, a exemplo das guildas, cada chateau fabrica seu prprio produto.
Dar o nome ao vinho, segundo a regio e o chateau, significa condensar uma
informao que s pode ser desvendada por quem conhecedor do assunto.
O nome traz em si um processo que j foi experimentado, uma mistura
tradicional de uvas, um solo, o declive de um vale e um clima. Ele desafia
qualquer outra racionalizao. E, a exemplo das guildas de tecidos, uma
instituio monopolstica que protege o produtor. Ela pertence a um sistemade controle alfandegrio e tributrio. Na Califrnia, o chateau e os nomes
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regionais no poderiam ser ligados aos vinhos sem violar um direito de
propriedade.
Foi esse um dos motivos pelos quais os vinhos da Califrnia s poderiam
denominar-se do tipo Bordeaux ou Bourgogne. Eles, porm, no se viram
tentados a estabelecer um vinho do tipo Vale de Napa. Com toda certeza
teriam tido condio de agir assim, se o vinho californiano tivesse sido
desenvolvido em um perodo anterior, antes da comercializao em larga
escala, abrangendo todo um continente, fizesse parte de seus objetivos.
Quem poder afirmar se, a exemplo dos vinhos Bordeaux, seu produto teria
sido capaz de firmar uma identidade em tomo do Napa, inconfundvel,
padronizada e, ainda assim, variada? Em vez disso eles escolheram, ou
foram levados a percorrer, a trilha da diversificao. Sua classificao baseia-
se no tipo de uva. Em nosso diagrama, dois estabelecimentos vincolas usam,
cada um, trs tipos de uva para trs tipos de vinho. Um deles usa doze. A
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amplitude da variedade dos tipos na indstria vincola da Califrnia muito nos
diz a respeito da especializao de um estabelecimento vincola.
Se acompanhssemos os mtodos de vinicultura ou o tratamento do vinho
nos vrios estgios ou as tcnicas de engarrafamento e arrolhamento, a
mesma exibio de processos experimentais e a produo de tipos
especializados de vinhos seria colocada a nosso alcance. Surgiu aquilo que
Weber denominou um tipo de racionalidade pragmtica, que envolve meios efins, orientada para o mercado. Cada estabelecimento vincola est
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procurando um espectro diversificado de vinhos especializados, em um
mercado altamente diversificado. The World Atlas of Wines (Johnson 1981),
que usa to bem a questo do lugar para explicar os vinhos franceses, to
irrelevante para o cenrio californiano quanto o dicionrio de comrcio de
Savary o era para descrever os txteis franceses na estrutura ps-
revolucionrio do sculo XIX, e pelos mesmos motivos. Os processos
industriais em larga escala so suas prprias instituies. Eles no podem ser
encaixados nos padres de um controle local, da comunidade.
assim que os nomes se modificam e assim que as pessoas e as
coisas so remodeladas para se adequarem a novas categorias. Inicialmente
as pessoas so tentadas a sair de seus nichos devido s novas possibilidades
de se exercer ou evitar o controle. Em seguida elas elaboram novos tipos de
instituies, as instituies elaboram novos rtulos e os rtulos elaboram
novos tipos de pessoas. O prximo passo na compreenso de como
entendemos a ns mesmos consistiria em classificar tipos de instituies e
tipos de classificaes que elas usam de maneira muito prpria. provvel
que haja um tipo de processo classificatrio distinto, que pertence a
instituies religiosas, alm de outros tipos distintos, que se prendem a
instituies mdicas, pedaggicas, militares e a outras instituies. Os
dicionrios da indstria txtil francesa mostram que as classificaes que
emanam das instituies administrativas possuem uma base territorial,
enquanto aqueles que emanam das instituies manufatureiras focalizam a
produo. O que as classificaes podem ou no fazer e a que objetivo elas
atendem algo diferente, em cada caso que se apresenta. Uma classificao
de estilos classificatrios seria um primeiro passo positivo para se pensar
sistematicamente sobre os distintos estilos de raciocnio. Seria tambm umdesafio soberania de nosso prprio estilo de pensamento institucionalizado.
A comparao das classificaes como um ndice de outras coisas que esto
acontecendo em nossa sociedade propicia uma pequena e provisria rota de
fuga do crculo de auto-referncia. Podemos observar nossas prprias
classificaes da mesma forma que podemos observar nossa prpria pele e
nosso sangue em um microscpio. Podemos reconhecer as regularidades que
surgem em conjuntos inteiros de operaes classificatrias do mesmo modoque os gramticos podem estudar as regularidades nas mudanas da sintaxe
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e da fontica. No existe nada autocontraditrio ou absurdo em lanar um
olhar sistemtico nas classificaes que ns mesmos operamos. As
dificuldades lgicas comeam quando tentamos desenvolver idias, livres de
valor, sobre a boa sociedade. Tais dificuldades, porm, precisam ser
enfrentadas se no quisermos deixar nossas buscas mergulhadas em um
caldo de relativismo filosfico. No de modo algum objetivo deste livro
postular que devido ao fato de as instituies elaborarem uma parte to
grande de nosso pensamento, no possa haver comparaes entre diferentes
verses do mundo, e muito menos se pretende ensinar que todas as verses
so igualmente certas ou erradas.
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AS INSTITUIES TOMAM DECISES DE VIDA E MORTE
Uma idia reconfortante, porm falsa, sobre o pensamento institucional
adquiriu recentemente certa aceitao. Trata-se do conceito de que as
instituies apenas realizam o pensamento rotineiro, de baixo nvel, do dia a
dia. Andrew Schotter, que descreveu to bem as instituies como mquinas
para pensar, acredita que as decises de menor importncia soencaminhadas para um processamento institucional, enquanto a mente do
indivduo fica livre para ponderar questes importantes e difceis (Schotter
1981, p. 149). No h motivos para se acreditar em to benevolente iseno.
mais provvel que prevalea o contrrio. O indivduo tende a deixar as
decises importantes para suas instituies, enquanto se ocupa com as
tticas e os detalhes. Para demonstrar este fato melhor reformular a
questo inicial.Insistimos acima que altamente improvvel que as instituies
poderiam emergir, sem empecilhos, de uma uma situao momentnea de
interesses convergentes e de uma mescla, no especificada, de coero e
convenes. A experincia, alis vasta, nos mostra o quo facilmente elas se
fragmentam e entram em colapso. O que resta a ser explicado como as
instituies comeam a se estabilizar. Tornar-se estvel significa assumir
alguma forma reconhecvel. admirvel como as instituies passam a
apresentar tipos estveis que podemos reconhecer em diferentes pocas e
circunstncias. O fato de podemos falar de uma burocracia de complexidade
bizantina ou de que podemos reconhecer os instrumentos monetrios sob
uma forma extica a prova da existncia de tipos de instituies resistentes.
A economia institucional sugere por que uma determinada forma institucional
faz mais sentido para os indivduos racionais em determinado entorno
econmico do que em outro. Ela no explica o processo mediante o qual a
instituio se mantm, bem como aquilo que a cerca, com suficiente
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estabilidade para ser reconhecida pelo indivduo que faz uma escolha
racional.
A teoria da informao chama particularmente nossa ateno para os
padres divergentes. Ela pressupe que para qualquer padro toma-se
necessria uma base anterior de energia. Um padro de determinada
complexidade, uma vez estabilizado, emprega menos energia do que aquela
de que se necessitava para faz-lo existir. Vejamos, por exemplo, o que
acontece com o calor por debaixo de uma vasilha com gua: decorre algum
tempo antes que a gua comece a rodopiar e borbulhar. Se mais energia for
empregada, ela ter de ser usada por novos padres de complexidade. Deve
existir algum meio de dissipar qualquer energia que se mostre excessiva em
relao quilo que necessrio para manter o padro (Prigogine 1980).
Acima e abaixo de certo ponto, o aporte extra de energia no conseguir ser
absorvido por uma complexidade cada vez maior e haver uma mudana
radical em todo o padro. Por exemplo, a gua se transformar em vapor.
Escrever sobre as instituies como padres complexos de informao, como
faz Schotter, e pensar na relativa eficincia de seus canais de comunicao, a
exemplo do que faz O. E. Williamson, deveria fazer com que se levasse em
conta a quantidade de energia usada para estruturar determinado tipo de
instituio e como ela distribuda em um padro mais ou menos complexo.
A partir disso, chegar-se-ia a avaliar o volume de transaes que essa energia
capaz de manejar. Caso contrrio a teoria da informao, na cincia poltica,
ser meramente um objeto de decorao de vitrina, uma nova metfora em
voga, que substituir a metfora funcionalista datada dos anos de 1950.
Qualquer instituio que vai manter sua forma precisa adquirir
legitimidade baseando-se de maneira muito ntida na natureza e na razo.Ento ela propiciar a seus membros um conjunto de analogias por meio das
quais se poder explorar o mundo e com as quais se justificar a naturalidade
e a razoabilidade dos papis institudos, e ela poder manter sua forma
contnua, identificvel.
Assim, qualquer instituio comea a controlar a memria de seus
membros; ela os leva a esquecer experincias incompatveis com aquela
imagem de correo que eles tm de si mesmos e traz para suas mentesacontecimentos que apiam uma viso da natureza que lhe complementar.
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A instituio propicia as categorias dos pensamentos de seus membros,
estabelece os termos para o autoconhecimento e fixa as identidades. Tudo
isto no basta. preciso garantir o edifcio social sacralizando os princpios
de justia.
Esta a doutrina do sagrado tal como enunciada por Durkheim. Todos
os demais controles exercidos pelas instituies so invisveis, mas no o
sagrado. De acordo com Durkheim, o sagrado deve ser reconhecido por estas
trs caractersticas: em primeiro lugar, ele perigoso. Se o sagrado for
profanado, coisas terrveis acontecero. O mundo explodir e o profanador
ser esmagado. Em segundo lugar, qualquer ataque ao sagrado suscita
emoes em sua defesa. Em terceiro lugar, ele invocado explicitamente.
Existem palavras e nomes sagrados, lugares, livros, bandeiras e totens
sagrados. Tais smbolos tomam o sagrado tangvel mas, de modo algum,
limitam seu alcance. Firmado na natureza, o sagrado reluz a partir de pontos
proeminentes para defender todas as classificaes e teorias que sustentam
as instituies. Para Durkheim o sagrado essencialmente um artefato da
sociedade. um conjunto necessrio de convenes que repousam sobre
determinada diviso do trabalho e que, claro, produz a energia
indispensvel para esse tipo de sistema (Durkheim 1893). O sagrado oferece
um esteio no qual a natureza e a sociedade se equilibram, refletindo-se
mutuamente e mantendo aquilo que se conhece de cada uma delas.
Ningum tem muitos problemas com este conceito do sagrado. Reflita-se
sobre os totens australianos e os emblemas sagrados dos reis medievais.
Porm, de modo inconsistente, o ensinamento de David Hume, segundo o
qual a justia uma virtude artificial, leva a muita confuso. O conceito de que
a justia uma construo social, necessria, apresenta um paralelismoexato com o conceito que Durkheim tem do sagrado, mas Hume refere-se
claramente a ns, a nossas pessoas. Ele submete nosso conceito do sagrado
a um exame minucioso. Nossa reao defensiva contra Hume exatamente
aquilo que Durkheim teria previsto. No podemos permitir que nossos
preceitos de justia dependam do artifcio. Semelhante ensinamento imoral,
constitui uma ameaa a nosso sistema social, com todos seus valores e
classificaes. A justia aquela instncia que firma a legitimidade.Por este mesmo motivo difcil pensar nela imparcialmente. Apesar de
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uma ampla crena na moderna perda do mistrio, o conceito de justia ainda
permanece, at os dias de hoje, obstinadamente mistificado e recalcitrante
anlise. Se fosse o caso de pensarmos contra as presses exercidas por
nossas instituies, este o espao mais difcil de se fazer essa tentativa,
pois nele que a resistncia mais forte. Em relao a isso, os antroplogos
ocupam uma posio privilegiada, pois eles registram muitas formas sociais
diversas, cada uma delas venerando seu prprio conceito de justia.
O conceito das virtudes artificiais em Hume fundamental para seu
programa ctico (1739, 1751). Fazia parte de seu ataque todas as teorias de
conceitos inatos, quer se referissem causalidade, lei natural ou propriedade
privada. Seu construtivismo radical faz dele exatamente o filsofo dos
antroplogos. Quando se trata da questo de encontrar estruturas lgicas na
natureza, Hume afirma que tudo que vemos so freqncias e, a partir delas,
criamos hbitos e expectativas. Quando se trata da justia natural, tudo o que
podemos saber que precisamos de interaes regulamentadas; para
satisfazer a essa necessidade, desenvolvemos princpios. Do mesmo modo o
conceito de justia no a mesma reao natural que se tem em relao a
uma emoo ou a um desejo. Enquanto sistema intelectual, possui uma
espcie de naturalidade de segunda categoria, pois uma condio
necessria para a sociedade humana. Elaborado precisamente com o objetivo
de justificar e estabilizar as instituies, esse conceito baseia-se em
convenes, exatamente de acordo com o mesmo sentido acima citado
encontrado em David Lewis (1969). Assim, nenhum nico elemento da justia
possui uma correo inata; para ser correto ele depende de sua generalidade,
de sua coerncia esquemtica e adequa-se a outros princpios gerais aceitos.
A justia um sistema intelectual mais ou menos satisfatrio, cujo propsito garantir a coordenao de um determinado conjunto de instituies.
Se isto acabar se revelando ser logicamente incontestvel e, ainda
assim, inaceitvel para os filsofos que, por outro lado, so muito consistentes
no que se refere lgica, enxergaremos nesse fato uma outra instncia do
poder que tem o sagrado de suscitar uma defesa emocional. Por exemplo, o
filsofo vitoriano que editou com dedicao as obra Inquiry e Treatise, de
Hume, rejeitou sem a menor hesitao seu conceito de justia, tratandoocomo uma aberrao, como a travessura provocadora de um enfant terrible
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L.A. Selby-Bigge achou que a argumentao de Hume em relao justia
era inbil, desajeitada, ininteligvel e desnecessria: "Fica bem claro sua
pretenso de que essa argumentao fosse ofensiva" (Selby-Bigge 1893 p.
XXVIII).
A abordagem de Hume no nos permite recusar o nome de justia a um
sistema simplesmente porque no se harmoniza com nosso sistema. Sob o
risco de parecerem preconceituosos, dificilmente os filsofos podero descartar
todas as civilizaes que precedem a nossa, considerando-as carentes de
julgamento moral. Em outros contextos eles no permitem uns aos outros
recorrer intuio ou a um inefvel senso de retido. Quando Hercules Poiret
surpreendeu a Condessa Rossakoff com jias roubadas, ela negou qualquer
justia intuitiva inerente propriedade privada: "Eis o que sinto: por que uma
pessoa deve possuir algo mais do que outra?" (Christie 1935). O problema, ao
se tentar defender um princpio imutvel da justia, no est no fato de que
todo mundo enxerga uma coisa auto-evidente. Regras que para ns,
modernos, hoje parecem monstruosamente injustas no chocavam nossos
ancestrais como sendo algo errneo. A escravido e a sujeio das mulheres
so vulnerveis aos mesmos argumentos que Hume empregou contra o direito
intuitivo propriedade.
A posse j no mais a questo poltica proeminente em nossos dias.
Nossas prprias instituies colocaram a igualdade como uma prioridade
suprema. Como seria o contrrio, numa sociedade que dispersou os direitos
propriedade privada entre acionistas e companhias de seguro e est
caminhando para uma organizao vertical das profisses? Os segmentos
verticais necessitam recrutar e promover o talento: a igualdade de
oportunidades constitui sua condio necessria (Perkin 1969). As instituiesrequerem que a igualdade de acesso seja incorporada aos princpios
fundamentais, legitimadores. Elas invocam a falta da igualdade para
deslegitimar os regimes rivais. Elas enumeram sociedades odiosas,
estratificadas segundo camadas horizontais, que se dispem como uma
pirmide, com seu topo. Este , no entanto, outro modo de organizar,
recorrendo a outra energia e a outra base de comunicao, com seus prprios
princpios legitimadores apropriados.Sempre que as naes ocidentais colonizam uma antiga civilizao, este
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conflito entre conceitos de justia acarreta tenses. Em Bali, os colonizadores
holandeses se depararam com dois sistemas de justia: ao nvel das aldeias a
igualdade era mantida pelo antigo sistema balins; em outros nveis os cdigos
legais expressavam a influncia de um sistema hindu hierrquico. O primeiro
exemplo era aceitvel para os administradores holandeses e o ltimo era
horrendo. Em se tratando dos cdigos legais, algum que:
cometesse uma ofensa contra algum de uma casta elevada engendravacircunstncias agravantes, ao passo que na situao oposta presumiam-se circunstncias atenuantes. Um sudra que ofendesse seriamente umbrahmana era condenado morte; a um brahmana que ofendesse umsudra simplesmente se solicitava o pagamento de umas poucas moedas.
Se um inferior causa um dano corporal a um superior, disso resulta umapunio por meio da mutilao, tal como cortar as mos ou os ps (Boon1977, p. 49, citando a Encyclopedia of the Dutch East lndies, publicadaem 1917).
James Boon observa que essas punies severas e prejudiciais
consternavam os observadores ocidentais e que:
lendo nas entrelinhas dos relatrios posteriores a 1849, torna-se bvio que
nenhuma explicao simples em torno de uma opresso cega poderiaexplicar o apoio plebeu a tais diferenas. Os estratos mais baixospareciam acreditar que seus superiores meceriam penalidades maisamenas ao praticarem ostensivamente a mesma ofensa. Osadministradores holandeses em Bali poderiam ter tido a capacidade deaceitar uma hierarquia radical no que se referia aos ttulos, instruo, propriedade, ao mrito religioso e assim por diante, porm jamais aaceitariam em se tratando de procedimentos legais, sobretudo oscriminais. No conflito entre dois sistemas legais que podemos sentirmelhor a comoo provocada por aquele relato histrico e pelo fracasssomtuo em compreender, por parte do Antigo Oriente e do Novo Ocidente
(p. 49).
Posto que a qualidade, como um direito natural ou como um princpio
universal, ainda constitui a mais destacada diferena entre o sistema ocidental
e muitos outros sistemas de justia, no basta simplesmente deixar os ltimos
de lado, considerando-os obviamente injustos. E, no entanto, existem muitos
filsofos proeminentes que agem exatamente assim.
Consideremos a tentativa de Alan Gewirth no sentido de estabelecer um
supremo princpio de moralidade, do qual dependem todos os demais
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princpios morais, e de recorrer a esse princpio para provar que a
desigualdade injusta. A argumentao de Reason and Morality (1978)
acadmica, impressionante e verdadeiramente sedutora. Sua estratgia
consiste em desencavar aquilo que est logicamente embutido no conceito de
um agente racional. Os agentes querem alcanar seus objetivos e, portanto,
querem liberdade para agir e o bem-estar necessrio ao. As carncias so
intrnsecas ao conceito de ao e, assim, as carncias dos agentes
transformamse em reivindicaes. Reconhecendo que suas prprias
reivindicaes so vlidas em contraposio aos demais agentes, o agerite
racional, tendo em vista a consistncia, precisa admitir que as mesmas
exigncias, feitas por outros agentes, so vlidas em relao s suas. No
reconhecer aquilo que est implicado em uma ao natural significa agir contra
a razo. A partir desta base lgica, o esquema de Gewirth estende-se a
princpios morais substantivos, incluindo a qualidade necessria dos agentes.
Tomando como premissa os desejos de um agente racional, Gewirth
formulou uma argumentao baseada em carncias logicamente derivadas e
em uma adequao semelhante quela empregada pelos telogos do sculo
XII. Com a finalidade de resolver uma controvertida questo - teria a Virgem
Maria nascido sem o pecado original? - eles propuseram em primeiro lugar que
Deus haveria de quer-Ia concebida sem mcula, como algo incrustado no
conceito de Deus; em segundo lugar, recorreram argumentao de que Deus
onipotente, e da decorre que teria sido perfeitamente possvel para Ele fazer
o que queria. Isto levou triunfal concluso de que Ele agiu nesse sentido.
Uma forma enfatiza seu desejo: potuit, voIuit, fecit. Outra enfatiza a adequao
implcita no esquema lgico: potuit, decuit, ergo fecit. J se afirmou que Alan
Gewirth refratrio a objees padronizadas ao argumento ontolgico quepostula a existncia de Deus (Nielson 1984). Ele e os escolsticos possuem
uma argumentao que depende de se desvelar as implicaes lgicas de
certas palavras - o que mais a lgica poderia fazer? Dissemos, porm, o
suficiente em captulos anteriores para demonstrar que o conjunto de idias
que constituem o significado de uma palavra o produto do pensamento
institucional.
A partir de sua publicao PrincipIe of Generic Consistency, Gewirthespera elaborar no s apenas a correo da igualdade mas tambm deixar
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patente o erro que o assassinato e a escravido (1978). Mas a que se refere
o assassinato? O autor afirma que ele diz respeito ao ato de matar seres
humanos inocentes que tem por motivo ou como natureza apenas o proveito e
a gratificao do desejo. E a que se refere a inocncia? Se as outras
categorias do pensamento so culturalmente definidas, ento permite-se que a
culpa, a inocncia, a opresso e a coero constituam excees? Conforme
assinala Lena Jayyusi, as categorias da lei se inserem em um quadro
normativo e moral, ligado a responsabilidades, e imersos na ordem prtica
cotidiana (Jayyusi 1984, p. 4). Ela argumenta, por exemplo, que
descontextualizar os conceitos de coero e opresso, tais como foram
desenvolvidos no Ocidente, e aplic-los s instituies soviticas uma
colocao fora do lugar, sob o ponto de vista da lgica. O emprego do termo
"coero" pressupe a relevncia de direitos cuja infringncia motiva a
descrio. Se um sistema poltico e social nega direitos acumulao privada
do capital, ento o fato de uma pessoa ser privada daquilo para o qual no
existe um direito anterior no se configura como algo opressivo ou coercitivo no
mesmo sentido que esses termos assumiriam em outros contextos. O
programa que Jayyusi advoga estudar a prtica ligada ao dilogo e as regras
que apresentem relevncia. uma lstima que isso dependa tanto da fala e
no inclua as estruturas de poder e os padres de interao. Sem essa
dimenso, a construo moral presente nos conceitos verbais no pode ser
atribuda a outra fonte de evidncias e, assim, a interpretao de tais conceitos
no pode ser validada de maneira independente. Lena Jayyusi est dando
apenas um passo preliminar em direo classificao dos sistemas de
categoria. Um exerccio de maior abrangncia classificaria ao mesmo tempo a
ordem social.Sem recorrer religio, ao intuitivismo ou s idias inatas, muito difcil
defender um princpio substantivo de justia como algo universalmente correto.
Brian Barry outro conhecido filsofo que quer defender o princpio da
igualdade e discorda do conceito de justia tal como elaborado por Hume,
que v nela uma virtude artificial. De acordo com a teoria de Hume, a
necessidade de um conceito de justia surgiria apenas sob certas
circunstncias. Ele jamais se faria presente em condies de perfeitatranqilidade e afluncia, pois no haveria necessidade de um princpio
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regulador universal. Ele jamais despontaria quando um dos lados fosse
detentor de um poder irresistvel, pois os poderosos no se dispem a permitir
que princpios gerais afetem suas aes motivadas pelo auto-interesse. Para
Hume, os padres formais e padronizados de justia somente so exercidos
entre iguais e que se encontram em situao de proximidade. Barry verifica
que pode aplicar de maneira expressiva tais padres a relaes desiguais e
que sua aplicabilidade demonstra que a justia se baseia em princpios, no
em convenes.
Quando tomamos padres de justia em relao aos quais haveriaconcordncia por um grupo de iguais e os aplicamos para condenarmos
uma sociedade permeada por sistemtica discriminao grupal, estamos,em certo sentido, fazendo uso de critrios externos e independentes(Barry, 1978, p. 225).
Para Barry, a possibilidade de podermos discutir a explorao desenfreada
em termos de justia constitui um ponto decisivo contra Hume. O fato de
podermos aplicar o conceito de injustia demonstra, em sua opinio, que esse
conceito universal e independe de circunstncias locais. Algum poder, por
exemplo, consentir livremente em um acordo injusto por acreditar, de modo
incorreto, que ele exigido pela justia.
Suponhos que, em determinada sociedade, fosse universalmente aceitoque algumas pessoas, devido ao nascimento, tivessem direito a privilgioseconmicos e sociais. No haveria conflitos em torno da distribuio e, noentanto, diramos, com toda certeza, que esse sistema social era injusto(Barry 1978, p. 219).
Nessas opinies, Barry est expressando os princpios legitimadores dasconvenes criadas para manter um determinado conjunto de instituies, isto
, aquelas da sociedade ocidental industrial. Para ns, entretanto, que
internalizamos a justia dessas instituies, essa desigualdade claramente
injusta. Quanto maior for a discriminao causada pelo nascimento e a brecha
que separa os interesses das diferentes classes, mais condenaremos sua
desigualdade. No entanto, por maior que seja a veemncia com que
sustentamos nossos princpios de justia, eles ainda so os princpios que se
fizeram presentes nos ltimos duzentos anos, ao lado da emergncia de um
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sistema econmico baseado no contrato individual. Voltando-se de um padro
horizontal de integrao para um padro vertical, que depende de elevar os
indivduos independentes da base para o topo, todo o sistema de informao
tem de ser transformado. Quando a perturbao atingiu determinado ponto, as
estruturas dissipadoras j no conseguem mais manter o padro. Em primeiro
lugar, as analogias fundantes precisam ser revistas. Louis Dumont detectou os
esforos realizados no sculo XVIII no sentido de reenfocar sua ideologia,
afastando-a das metforas orgnicas. Ele mostra que a parbola da abelha
industriosa, que se encontra em Mandeville, significou um marco, em se
tratando de subtrair o pensamento ocidental aos modelos hierrquicos da
sociedade, direcionando-o para uma justificativa do individualismo (Dumont
1977, pp. 83-104).
Quando a analogia com a natureza modificada, o sistema de justia
tambm necessita uma reviso. Agora ele tem de promover o movimento
vertical dos indivduos, em vez de cont-Ios em suas camadas horizontais. O
resultado foi a sacralizao de uma sociedade baseada num uso extravagante
da energia, sem precedentes na histria mundial. Trata-se de uma sociedade
que usa a igualdade dos indivduos para justificar-se, mas nas comparaes da
justia, efetuadas em mbito mundial, sua ascendncia econmica e seus
esforos para manter sua vantagem desigual tomam-se difceis de justificar
pelos seus prprios princpios de legitimao. Podemos juntarnos a Barry no
sentimento da indignao, da pena e da vergonha diante da explorao dos
fracos. Nossos sentimentos humanos nada fazem para deixar de lado a
argumentao de Hume.
De acordo com Hume, as virtudes artificiais sero conhecidas por sua
coerncia interna em um sistema abstrato que harmoniza as interaescotidianas em determinada sociedade. Barry est defendendo um conceito
absoluto de justia. Onde mais se poder encontr-Io, a no ser na intuio?
Ele afirma:
Se algum conseguir ler uma histria da colonizao europia na Austrliae nas Amricas ou uma histria da escravido negra sem admitir que estlendo a histria de uma injustia monstruosa, duvido que qualquer coisa
que eu possa dizer ter a possibilidade de convenc-Io (Barry 1978, p.22).
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Em outras palavras, esse sentimento , em ltima anlise, incomunicvel.
Se Gewirth recorreu ao argumento ontolgico em nome da igualdade, Barry,
em se tratando da mesma causa, adotou algo muito semelhante justificativa
de Rudolph Otto, quando esse se refere experincia mstica. Se o leitor
jamais passou por uma experincia mstica, se jamais sentiu o Mysterium
Tremelldum, se o sentido do numinoso lhe estranho, ento, declara Otto, o
telogo luterano, nada do que eu puder dizer o convencer: o sentimento
incomunicvel. A resposta de Hume Condessa Rossakoff, bem como a
resposta dada aos filsofos que tinham intuies contrrias, seria a de recordar
que o funcionamento de uma sociedade depende, at certo ponto, da
coerncia, e que um resumo abstrato dos princpios interligados sobre os quais
ela repousa promove a coordenao. Uma vez formulado, o artifcio adquire
venerabilidade. Durkheim conseguia explicar por que, a exemplo de um muro
coberto de hera, em uma universidade nova, a justia parece estar presente
desde sempre. Ela teria de existir muito antes que os seres humanos viessem
ao mundo e, assim, ela parece antiga e imutvel, como um dos artefatos da
natureza, e acima dos desafios.
A essa altura a questo relativa ao relativismo moral torna-se urgente.
Teria essa argumentao destrudo os alicerces em que se apia? Colocando a
coisa em termos bem crus, o fato que as opinies morais so preparadas
pelas instituies sociais. muito raro e difcil para um indivduo escolher uma
postura moral a partir de uma base racional individual. Nesse caso, nossos
prprios julgamentos esto igualmente preparados em nossas prprias
instituies sociais. Assim, a questo que no temos como comparar seu
valor: tudo o que podemos fazer descrever. Jamais podemos afirmar que a
justia requer a igualdade, defende a propriedade privada ou censura aescravido. Reduzimos todos os julgamentos morais a expresses das
diferentes sociedades.
Vrias questes parecem estar misturadas. O pior de tudo a
responsabilidade de se cair em contradies e absurdos. Ainda em termos de
negatividade segue-se o conceito de que a total tolerncia a qualquer tipo de
comportamento surgiria em uma seqncia lgica. O menos prejudicial o
conceito de que, por termos afirmado que as idias morais constituem parteessencial das instituies sociais, elas no podem ser comparadas ou
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julgadas, o que tambm no verdade.
Baseando-nos nos princpios de Hume, podemos dizer que um sistema
mais justo do que outro. Podemos afirm-lo a partir de duas avaliaes, uma
delas lgica e a outra, prtica. De acordo com seus ensinamentos, um sistema
de justia concebido expressamente para proporcionar princpios coerentes a
partir dos quais se possa organizar o comportamento social. Assim, podemos
comparar sistemas de justia em relao sua coerncia. Esta a tarefa
habitual da jurisprudncia histrica. A reforma judicial freqentemente
justificada sob o pretexto da incoerncia entre os princpios que esto sendo
usados. De acordo com Hume, a arbitrariedade derrota o objetivo essencial da
justia. Podemos comparar a quantidade de regras arbitrrias. Assim, no h
problema quanto a esta questo. Quanto avaliao prtica, podemos
comear indagando com que eficincia um sistema de justia realiza a tarefa
de proporcionar princpios abstratos para regulamentar o comportamento. Ele
seria por demais misterioso, secreto e ramificador para ser compreendido.
Mediante testes simples podemos decidir se o sistema de justia de
determinado pas, digamos de uma potncia colonial, se relaciona com
suficiente preciso ao contexto de outro lugar, digamos a frica. Por exemplo,
ser que a antiga lei da era Tudor, relativa prtica da bruxaria na Inglaterra,
ajudava os policiais locais a lidar com acusaes de bruxaria no Sudo? As leis
ocidentais contra a bigamia funcionam bem no sentido de regrar questes
entre os poIgamos muulmanos em Londres? Ou, em outro tipo de teste
prtico, ser o sistema de justia eficiente? Os tribunais no sero por demais
distanciados dos centros da populao? Os juristas fazem estas e outras
comparaes de sistemas de justia o tempo todo. Ao agir assim no so
obrigados, em absoluto, a aplicar os princpios corroborantes de suas prpriasinstituies. Os testes de coerncia e no arbitrariedade, complexidade e
praticidade, no so preferncias subjetivas. to correto estudar
objetivamente os sistemas humanos de justia quanto medir o comprimento do
p humano, desde o calcanhar at o dedo. Os sistemas podem ser
comparados como sistemas. A nica coisa impossvel de se fazer atribuir
determinadas virtudes; a bondade, por exemplo, aos animais ou aos idosos, ou
ento a igualdade e encontrar um meio de provar que ela sempreindiscutivelmente certa e melhor.
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Finalmente, reconhecer a origem social dos conceitos de justia no nos
obriga a deixarmos de estabelecer julgamentos entre os sistemas. Eles podem
ser julgados melhores ou piores, de acordo com a compreenso que tivermos
de seus pressupostos. Suponhamos que um sistema de justia presumisse que
apenas um tero da populao que se submetesse a suas regras fosse
inteiramente humano. Seramos objetivos em se tratando dos motivos que
teramos para pensar que os outros dois teros eram seres humanos. A essa
altura a questo do relativismo moral fundiu-se com indagaes sobre o que
real e o que ilusrio no mundo. Espero que no haja necessidade de recorrer
argumentao sobre o realismo. O que foi dito acima no coloca em dvida
que se trata de testes objetivos das verses certas e erradas do mundo e como
ele funciona. Por exemplo, imagine-se um sistema de justia que punisse as
pessoas por aquilo que se afirmou que elas fizeram nos sonhos de outras
pessoas. No seria difcil demonstrar que semelhante sistema delimita as
responsabilidades de acordo com uma verso errnea da realidade e uma
verso errnea da responsabilidade humana, a tal ponto que no poderia ser
organizado coerentemente em torno de qualquer questo prtica. O modo
como os seres humanos so, o fato de que eles caminham eretos e no podem
estar em dois lugares ao mesmo tempo, so incorporados como parte de
qualquer sistema de justia. Algumas experincias e o estudo das condies
da vida se reportaram ao plano de fundo da existncia. Tudo o que est sendo
colocado aqui e em todo este livro que a experincia cumulativa do mundo
deveria incorporar explicitamente a natureza social da cognio e do
julgamento.
O pressuposto preferido, que sugere que os seres humanos no so
essencialmente seres sociais, suficientemente forte para impedir-nos de vercomo eles se comportam de fato. O que acontece quando a lei revogada? A
natureza assume tudo? Temos dito que a natureza culturalmente definida,
que as mentes individuais so povoadas com atitudes culturalmente
determinadas. E ento o que acontece? O prprio Hume sups que, por
ocasio de uma situao em que a fome reinasse, cada um se apropriaria
daquilo de que necessitasse para sobreviver, mandando s favas o conceito de
propriedade privada. Parte da demonstrao que Hume fazia de suaartificialidade consistia em demonstrar que os critrios de justia seriam
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suspensos, em se tratando de uma situao de inanio. Outros filsofos
concordam. No entanto, as pessoas famintas no se sublevam e se apoderam
do alimento que est diante delas. A mera existncia da fora no tudo que
as impede de saquear as lojas. Em uma famlia ou em uma aldeia que passa
por semelhante crise quem passa fome e morre, ou quem come e vive, no
algo inteiramente fortuito, nem depende da fora. As pessoas mais fortes e
mais numerosas nem sempre se apoderam de tudo quando chegam as crises
trgicas. A histria mostra que a fome no revoga automaticamente as
convenes. Ela no introduz algo como uma lei natural de direitos iguais. Ao
adotarmos semelhante pressuposto, explicamos pelas leis naturais nossas
prprias idias de eqidade. como se admitssemos que, quando a natureza
se impe, faz aquilo que sabamos que deveramos ter feito o tempo todo, isto
, distribuir igualmente. O comportamento, numa situao de crise, depende de
quais padres de justia foram internalizados, do que as instituies
legitimaram.
Algumas vezes se observou um conflito entre agncias internacionais de
ajuda e funcionrios locais. Os agentes internacionais do Ocidente
industrializado tentam distribuir alimentos de maneira eqitativa. A igualdade
dos direitos sobrevivncia um princpio inquestionvel. Consternados, eles
verificam que no conseguem recrutar representantes das instituies locais
para ajud-los em seu trabalho. Para dar a comida to rapidamente quanto
possvel os existentes canais de distribuio seriam os mais eficientes e os
mais aceitveis para um pas atingido pela fome. Mas no! Assim que os
habitantes locais so includos no esquema que Ihes proporcionar alvio, o
alimento desviado. Os mais pobres sempre so os mais vulnerveis em uma
situao de fome. A comida, porm, no chega at eles. O aambarcamento, oroubo, a explorao, a recriminao e a indignao hipcrita fazem parte da
sinistra histria do socorro fome.
William Torry um antroplogo que vem estudando respostas e reaes
fome (Torry 1984). Ele observou-a em contextos de aldeias ou provncias
isoladas, onde nenhuma ajuda estrangeira disponvel. Tal experincia levou-
o a questionar se a crise calamitosa est provocando uma ruptura das normas.
Em vez disso ele verificou que a comunidade deixa de lado seu conjuntoregular de princpios morais e adota um conjunto regular de emergncia. O
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sistema de emergncia no uma revogao de todos os princpios. Torry no
v um colapso das convenes. Pelo contrrio, o sistema de emergncia
comea por um gradual tensionamento e estreitamento dos princpios
distributivos normais. J se antev que no haver comida suficiente para todo
mundo. O sistema de emergncia comea a dar raes diminutas aos que se
encontram em desvantagem, aos marginais, aos politicamente ineficazes.
Proteger aqueles que esto no comando e aqueles que j gozam de vantagens
resulta em que as instituies fundamentais sero preservadas e os habituais
canais de comunicao sero mantidos abertos. O efeito conservar alguns
nveis mnimos de operaes. medida que a crise se aprofunda, e Torry
observa, ele testemunha, horrorizado, uma destruio sistemtica de certas
categorias de pessoas. Ele consegue reconhecer quem est predestinado a
morrer de inanio, o mesmo acontecendo com as vtimas. Ele percebe como
se dar a vitimao pelos processos de seleo do sistema social existente.
Quaisquer que sejam os princpios normativos de excluso dos privilgios ou
da segurana - seja devido ao nascimento, profisso, ao sexo, ou por
definies em torno do desvio e da criminalidade essas excluses habituais
apontam para quem receber menos, medida que os recursos diminuem, e
quem finalmente ser excludo ou deixado para trs, a fim de morrer de fome.
Para grande surpresa de Torry, as vtimas pr-estabelecidas aceitam seu
destino com docilidade. Quando a carestia chega ao fim, algumas dentre elas
podem ter sobrevivido, mas, com toda certeza, tero perdido filhos e parentes.
Torry observa como a vida comunitria retomada. Dada a cruel iniqidade do
que aconteceu, ele se pe a imaginar se os sobreviventes demonstraro
ressentimento contra quem os explorou. No o caso. Eles reconhecem que o
fado de suas famlias adequado e parte normal das condies de crise.Compreendem que a elite jamais correu perigo. Retomam com gratido seus
antigos relacionamentos de prestao de servios, sem ressentimentos. A
aceitao de que foram vtimas indica, para Torry, que ele testemunhou no a
destruio da ordem social, mas sua afirmao.
Ser esta uma histria sinistra? Torry fica a imaginar se a moralidade
dessa crise tomou o desastre maior ou menor do que seria, caso tivesse
acontecido o contrrio. O fato de parecer que a recuperao foi mais rpidaexpressa um dilema favorito dos filsofos morais. Deveramos atentar para as
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