como e por que ler a literatura infantil brasileira
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26634
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REGIN ZILBERM N
OMO E POR QUE LER
LITER TUR INF NTIL BR SILEIR
OBJHIY
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© 2p 4
Regina Zilberman
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA OBJETN
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Rio de Janeiro -
RJ
-
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22241-090
TeI.: 21) 2556-7824 -
Fax:
21) 2556-3322
www.objetiva.com.br
Capa
Glenda Rubinstein
Revisão
Umberto Figueiredo Pinto
Neusa Peçanha
Editoração Eletrônica
FtITURA
Z99c
Zylberman, Regina
Como
e
por
que ler a literatura infantil brasileira / Regina Zilberman _
Rio de Janeiro: Objetiva,
2 5
181
p
ISBN 85-7302-663-4
1 Literatura infantil - Teoria. I
Título
CDD 028.55
À
memória das crianças de Beslan,
para não esquecermos o horror
que
as
privou da vida e da arte.
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,
SuMÁR o
c P Í T U L O 1
O
QUE
É QUE A LITERATURA TEM? 9
C A P Í T U L
2
POR ON E COMEÇAR? 3 é :
C A P
Í
1 U L 3
MONTEIRO LOBATO E SUA FANTÁSTICA
MÁQUINA E CRIAR 2
C A P Í T U L O 4
LOBATO NÃO ESTAVAS6 34
é::
C A P Í T U L
5
A AVENTURA
E
COMEÇAR
E NOVO
44
C A P [ T U L O
6
REIS, FADAS E SAPOS PARA AS CRIANÇAS
BRASILEIRAS 56
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C A P f T U L
?
GENTES E BICHOS 66
CA P Í T U L 8
GAROTAS QUE MUDAM O
MUNDO
8
C A P Í T U L O 9
DOS CONTOS TRADICIONAIS AO FOLCLORE 90
CA P Í T U L
10
MENINOS DE RUA 102
C A P Í T U L O
DETETIVES MIRINS 110
CA P f T U L 12
E PARA A POESIA NÃO VAI NADA? 127
CAP Í TULO
13
YES NÓS TEMOS TEATRO 144
CAP Í TULO
14
QUANDO FALA A ILUSTRAÇÃO 55
C A P Í T U L O
5
PARA ONDE VAMOS? 65
ÍNDICE DE AUTORES CITADOS 173
ÍNDICE DE OBRAS E POEMAS CITADOS 177
C :
O
QUE É QU
A LITERATURA TEM?
m bom
livro é aquele que agrada não
importando se
foi escrito
para crianças ou adultos
homens ou
mulheres brasileiros ou estran
geiros. E ao livro que agrada se costuma voltar lendo-o de novo
no
todo ou
em
parte retornando de preferência àqueles trechos que pro
vocaram prazer particular.
Com a literatura para crianças não é diferente: livros lidos na infância
permanecem
na
memória do adolescente e do adulto responsáveis que
foram por bons momentos
aos
quais as pessoas não cansam de regressar.
Moacyr Sdiar autor de contos e romances lembra
os
que povoaram sua
infância e confessa já
bem
crescido e maduro ter procurado reconstituir
a coleção que consumia
com
avidez
em
seus anos de criança:
Aos poucos
num
sebo e em outro fui refazendo parte de minha
biblioteca de então: Rute e Alberto de Cecília Meireles; Os Nenês
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10
Como e Por
que ler
D Água, de Charles Kingsley; Alice
no
País das
Maravilhas; As
Aven-
turas
de Tibicuera, de Erico Verissimo; Histórias de um
Quebra-nozes,
de Alexandre Dumas; Robin Hood, T arzan, livros sobre piratas ..
Apanho um volume: é a trigésima edição de
Cazuza,
de Viriato
Correa obra concluída
pelo
autor justamente 110
ano em
que
nasci
-
1937. Folheio-a com a mesma sensação que tive pela primeira
vez
a
de descobrir um Brasil que eu não conhecia, o Brasil do Maranhão, o
Brasil
do Pata Choca, do Padre Zacarias, de Luiz Gama. O
Brasil
do
professor João Câncio dizendo - numa época em que o ufanismo era
a tônica: Somos um
país
pobre, um povo pobre
..
Mas justamente
porque a terra não é mais doce nem a mais generosa, nem a mais rica
é que é maior o valor de nossa gente. Humildes livros bravos livros.
Depoimentos dessa natureza são expressos por outros escritores,
como Manuel Bandeira, que recorda ter sido apresentado à poesia por
intermédio dos contos de fadas, guardando profunda saudade de seus
primeiros livros de imagens, entre os quais João Felpudo, Simplício
Olha pro Ar, Viagem
à Roda
do Mundo numa Casquinha de Noz.
João
Ubaldo Ribeiro não faz por menos, confessando que melho r que jogar
bola
ou
subir em árvores era ler os livros que descobria na casa de seus
pais e avós.
3
Reler obras que marcaram
as
lembranças de leituras passadas é sinal
de que aqueles livros foram julgados bons. Não quer dizer que isso só
ocorra com os escritos que compõem a literatura infantil, pois, por toda
a vida, podemos ser convidados a retomar os textos que vieram a cons
tituir nossa biblioteca interior, formada
por
aquilo que as recordações
armazenaram. Aqueles que predominam na primeira década e meia de
vida de cada
um
são chamados de literatura infantil. Poder-se-iam defi
nir os livros para crianças por essa característica: são os que ouvimos ou
a l i teratura Infantil IIrasileira
11
lemos antes de chegar à idade adulta. Não significa que, depois, não
voltemos a
eles;
importa, porém, que o regresso se deva ao fato de terem
marcado nossa formação de leitor, imprimirem-se na memória e torna
rem-se referência permanente quando aludimos à literatura.
Os
primeiros livros brasileiros escritos para crianças apareceram ao
final
do
século XIX, de modo que a literatura infantil nacional con
tabiliza mais de cem anos de história. Por isso, aparece nas recorda
ções de escritores consagrados, como o Viriato Correia citado por
Scliar. A experiência
do
novelista difere, pois,
do
que se passou aos
autores nascidos no começo
do
século XX, como Erico Verissimo,
que reteve na lembrança outros nomes, quase todos nascidos na
Europa, como Júlio Verne, um dos prediletos de sua geração. Jorge
Amado, da mesma época, relembra Viagens de
Gullíver,
de J
onathan
Swift, enquanto Carlos
Drummond
de Andrade tem nostalgia do
Robinson
Crusoé, de Danie l Defoe. Moacyr Scliar, e contemporâneos
seus, como Affonso
Romano
de Sant'Anna, conforme esse declara no
poema O Burro, o Menino e o Estado Novo ,4 fizeram-se leitores a
partir
do
acervo brasileiro, variado e disponível por ocasião das res
pectivas infâncias.
Centenária, a literatura infantil brasileira oferta ao leitor atual
um
acervo respeitável de boas obras, para serem lembradas
por
adeptos
de várias gerações. Vale a pena recapitular sua trajetória, para ent en
der as qualidades
que
exibe aos leitores contemporâneos de todas as
idades.
otas
1 Seliar Moacyr. Mem6rías de um Aprendiz de Escritor. Rio de Janeiro: Agir 1984.
p.
22-4.
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Como e Por
flue
ler
Cf. Bandeira, Manuel. Itinerdrio
de
Pasdrgada. Rio de Janeiro: ornal de Letras 1954.
3 Ribeiro, João Ubaldo. Memória
de Livros.
In:
_ Novas
Seletas. Organização, apresentação
e notas Domício Proença Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
4 Cf. Sant'Anna, Affonso Romano
de
O Burro, o Menino e o Estado Novo . In: Ladeira,
Ju/ieta de Godoy (org.).
Lições de Casa. Exercidos de Imaginação.
São Paulo: Cultura, 1978.
POR ONDE COMEÇAR?
A
iteratura não contraria a velha
lei
de Lavoiser, conforme a qual
nada
se
cria, tudo
se
transforma. Ainda que
se
considere que
um
escri
tor é
um
criador, ele produz
uma
obra a partir de sua experiência, de
leituras e do que esperam dele. Esse ponto de partida é muito amplo,
de modo que
as
variações são infinitas, e
as
obras bastante diferentes
entre
si
O escritor dispõe também de grande liberdade, pois, soman
do experiência e imaginação,
ele
pode ir longe, inventando pessoas,
lugares, épocas e enredos diversificados.
Contudo,
ele
não pode ir longe demais: os leitores precisam
se
reco
nhecer nas personagens, há limites para mexer com a temporalidade,
e a ação precisa ter um mínimo de coerência.
Outra
questão é crucial:
o leitor também traz algum tipo de experiência,
uma
bagagem de
conhecimentos que precisa ser respeitada, caso contrário
se
estabelece
um choque entre quem escreve e quem lê, rompe-se a parceria que
só
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14
Como
e Por
que
ler
dá certo se ambos se entendem.
e
o escritor contradisser demais as
expectativas do leitor esse rejeita a obra que pode ficar à espera de
outra oportunidade
ou
então desaparecer da história.
O mesmo se passa quando se introduz um novo gênero para um
público que começa a
se
formar.
Não
se
trata agora de
uma
questão
particular e sim mais geral: um grupo de leitores se materializa ainda
que de
modo
incipiente requerendo um produto original.
Como
rea
gir a essa situação? É claro cabe oferecer algo não muito distinto do
que o mercado representado por seus consumidores já se acostumou
a receber e aceitar para contar com simpatia e adesão.
o que ocorre no nosso país ao final do século XIX determinan
do o aparecimento dos primeiros livros para crianças escritos e publi
cados
por
brasileiros.
O Brasil daquele período estava mudando de regime político: a
República adotada a partir de 1889 substituía a monarquia após o
longo reinado de D. Pedro II impera dor desde 1840. O Brasil tinh a
sido a única região da América que garantida a independência prefe
rira o sistema monárquico optando por
uma
forma de governo em
grande voga na Europa mas ausente
no
Novo
Mundo
cujas novas
nações livres do domínio colonial prefer iam escolher
por
intermédio
de pleitos eleitorais
os
dirigentes em vez de apostar nos herdeiros da
Família Real.
Nas últimas décadas do século XIX porém mesmo países europeus
em que o Brasil se espelhava começavam a mudar para o regime repu
blicano que à primeira vista parecia mais democrático. Afinal
por
meio de eleições periódicas e livres
os
dirigentes pod iam ser trocados
de modo que a sociedade dispunha de ocasiões mais numerosas para
a
Literatura Infantil llrasileira
15
manifestar insatisfação quando
essa
acontecia. Além disso o regime
republicano quando acompanhado de consulta aos votantes oportu
nizava a um maior núm ero de pessoas declarar sua opinião mostran
do-se pois mais liberal e dinâmico.
No
Brasil do final do século XIX a monarquia cheirava a imobilis
mo e o país estava progredindo a população aumentando as varieda
des culturais e étnicas se exprimindo. Um governante único que reina
va por quase 50 anos não respondia mais a esses anseios e ele acabou
sendo deposto. De forma pacífica como se sabe; mas não houve mais
retrocesso e o país daí para a frente se passou por situações políticas
distintas e conturbadas nunca mais recorreu ao modelo monárquico.
A grande diferença situava-se na nova conformação
da
sociedade
marcada pela ascensão de
uma classe média urbana desejosa de ver
suas reivindicações serem atendidas: maior liberdade política melho
res negócios dinhe iro mais acessível novas oportunidades para educa
ção. Essa classe média responsabiliza-se doravante pelas mudanças
ocorridas no país e em nome dela revoluções avanços e retrocessos
acontecem. O aparecimento dos primeiros livros para crianças incor
pora-se a esse processo porque atende às solicitações indiretamente
formuladas pelo grupo social emergente.
nesse ponto que um novo mercado começa a se apresentar re
querendo dos escritores a necessária prontidão para atendê-lo. O pro
blema é que eles não tinham atrás de
si
uma tradição para dar conti
nuidade pois ainda não se escreviam livros para crianças na nossa
pátria. O jeito então era apelar para uma das seguintes saídas:
- traduzir obras estrangeiras;
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6
Como e Por
que ler
- adaptar para
os
pequenos leitores obras destinadas originalmente
aos adultos;
- reciclar material escolar, já que os leitores que formavam o cres
cente público eram igualmente alunos e estavam
se
habituando a uti
lizar o livro didático;
- apelar para a tradição popular, confiando em que
as
crianças gos
tariam de encontrar nos livros histórias parecidas àquelas que mães,
amas-de-Ieite, escravas e ex-escravas contavam em voz alta, desde
quando elas eram bem pequenas.
Essas
soluções não foram inventadas pelos brasileiros, e é
aí
que se
explicita pela primeira vez com a lei de Lavoiser, mencionada antes. A
Europa, que inspirava a mudança de regime político, oferecia também
os
modelos utilizados para
se
escrever para crianças.
Se
traduções
foram menos freqüentes no Velho Continente, muito se adaptou, a
ponto de certas obras passarem a ser conhecidas quase que exclusiva
mente como infantis. É o caso, por exemplo, de dois romances britâ
nicos que aparecem nos textos memorialísticos de Carlos Drummond
de Andrade
e Jorge Amado,2 respectivamente: Robinson Crusoé de
Daniel Defoe, e Viagens de Gulliver de Jonathan Swift. Publicados
mais
ou
menos
na
mesma época, o primeiro em 1719, e o segundo,
em 1726, foram logo abreviados e simplificados para a leitura dos
meninos ingleses, e até hoje circulam pelo
mundo
com mais facilida
de nesse formato reduzido que na versão integral.
Procedeu, porém, da tradição popular a principal contribuição, a
saber, as histórias conhecidas até hoje como contos de fadas. Aventuras
como as de João e Maria, da Bela Adormecida, da Cinderela, de Cha
peuzinho Vermelho eram contadas por e para adultos, até que homens
a
Literatura Infantil
Brasileira
como Charles Perrault 1 6 2 8 ~ 1 7 0 3 ) , na França, e Jacob 1785-1863)
e Wilhelm 1786-1859) Grimm, na Alemanha, as transcreveram e
publicaram visando ao público infantil. Daí para a frente, foram muito
difundidas, acontecendo com elas o mesmo que ocorrera aos romances
de Defoe e Swift: transformaram-se em sinônimos de literatura infan
til, dificultando o retorno à condição original.
Os candidatos brasileiros a escritores para crianças não fugiram a
essa
regra. Fazendo assim, porém, eles viraram o feitiço contra o feiti
ceiro: repetindo o que ocorrera na Europa, acabaram inventando a
literatura infantil brasileira, abrindo caminho para um percurso que,
como já se observou, conta mais de cem anos.
Vale a pena mencionar os nomes desses pioneiros. Um deles, Carl
Jansen 1823 ou 1829-1889), nasceu na Alemanha, mudando-se, jo
vem, para o Brasil, onde trabalhou como jornalista e professor.
Percebeu logo que, no Brasil, faltavam livros de histórias apropriados
para os alunos
e
entre, aproximadamente, 1880 e 1890, tratou de tra
duzir alguns clássicos, como
os
já lembrados Robinson Crusoé 1885) e
Viagens
de Gulliver
1888), a que somou, por exemplo,
As
venturas
do
Celebérrimo Barão de Münchhausen 1891) e D
Quixote
de la
Mancha
1886).
O outro, Figueiredo Pimentel 1869-1914), era brasileiro
e
como
Jansen, militava na imprensa. Quando decidiu dedicar-se à literatura
infantil, preferiu seguir o caminho sugerido pelos irmãos Grimm. Pu
blicou coletâneas de muito sucesso, como os Contos da Carochinha
1894), onde se encontram as histórias de fadas européias, ao lado de
narrativas coletadas entre
os
descendentes dos povoadores do Brasil.
Há histórias de origem portuguesa e também narrativas contadas pelas
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18
Como
e
Por que
ler
escravas que educavam a infância brasileira no século XIX. Foi como
a tradição popular e oral entrou na literatura infantil brasileira, para
não mais sair.
N O começo, a literatura infantil se alimenta de obras destinadas a
outros fins: aos leitores adultos, gerando
as
adaptações;
aos
ouvintes das
narrativas transmitidas oralmente, que se convertem nos contos para
crianças; ou ao público de outros países, determinando, nesse caso, tra
duções para a língua portuguesa.
Há um
último segmento que vale a
pena citar:
as
obras destinadas à escola.
Na
mesma época em que se inauguravam linhas editoriais brasileiras
de textos para crianças, encaminhadas pelos trabalhos de pioneiros
como Carl Jansen e Figueiredo Pimentel, editavam-se também os pri
meiros livros didáticos. Chamavam-se, muitos deles, Seletas Antologias
ou Livros de Leitura e eram adotados pelos professores, que os reco
mendavam aos alunos ou reproduziam, em voz alta, trechos deles para
todo o grupo. Nem todas
essas
obras restringiam-se à sala de aula, e
alguns tornaram-se a leitura favorita de nossos tataravós. Um dos auto
res mais difundidos foi Olavo Bilac (1865-1918), cujas poesias foram
recitadas e memorizadas por várias gerações. Alguns poemas estão
cheios de civismo, como "A Pátria", que convoca
os
leitores ao brio
nacionalista, dizendo, na abertura:
Ama, com
fé
e orgulho, a terra
em
que nasceste
Criança não verás nenhum país como
este
Outros porém são engraçados e merecem ser transcritos
integralmente:
a LiteraÍlui' Infantil Brasileira
A boneca
Deixando a bola e a peteca,
Com
que inda
há
pouco brincavam,
Por causa de
uma
boneca,
Duas meninas brigavam.
Dizia a primeira:
É
minha '
- É
minha ' a outra gritava;
E
nenhuma se
continha,
Nem a boneca largava.
Quem
mais sofria (coitada )
Era a boneca.
Já
tinha
Toda
a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.
Tanto
puxavam por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.
E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando
à
bola e
à
peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca
..
3
19
Carl Jansen, Figueiredo Pimentel e Olavo Bilac são os desbravado
res
da literatura infantil brasileira. Praticaram, cada um a seu modo, a
lei de Lavoiser, já mencionada . Sem eles, talvez
os
livros nacionais para
crianças demorassem a aparecer; mas "fé e orgulho" teremos em/de
Monteiro Lobato, o sucessor desse núcleo original, aquele que ainda
hoje
se
lê e relê, graças ao patrimônio literário que legou.
- - - - - - - - - ~ - - - - - - - - - - ~
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w
omo e Por
que
ler
Notas
1
Cf. Andrade Carlos Drummond de.
Fim
In: _
Boitempo
6
Falta que Ama
Rio de
Janeiro: Sabiá 196 8. p. 83.
2 Amado Jorge. O
Menino Grapiúna
Rio de Janeiro: Record 1981. p. 101
Bilac Olavo. Poesias Infantis 13. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves 1935. p. 27-28.
ONTEIRO LOBATO E SUA
f NTÁSTIC MÁQUIN DE
CRIAR
m
escritor é muito popular quando o mundo que criou escapa
a seu controle como
se
as personagens vivessem independentemente
dele. Emilia Dona Benta e o Visconde de Sabugosa por exemplo são
frutos da imaginação de Montei ro Lobato assim como o sitio do
Picapau Amarelo onde vivem aqueles seres de fantasia. Hoje porém
vende-se a boneca Emilia em lojas e supermercados e o sitio aparece
diariamente na tela dos aparelhos de televisão. Poder-se-ia contrapor
que nesses casos trata-se de um uso comercial e lucrativo das criatu
ras inventadas pelo escritor; contudo em quantas festas de aniversário
encontram-se paredes e doces decorados com as figuras que habi tam
o sitio? Jogos brincadeiras concursos - eis algumas atividades do coti
diano em que
se
recorre
ao
universo concebido pelo escritor mostran-
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Como e Por
que
Ler
do que a realidade fabulosa que
saIU
de sua cabeça acabou sendo
maior, mais poderosa e mais duradoura do que
ele mesmo cogitou.
De certo modo, nem
se
precisaria ler a obra de Lobato para conhe
cer as principais personagens ou o cenário em que elas viveram. Mas,
se
lida, esclarece-se por que ela ficou famosa
e
de troco, ainda
se
obtém grande prazer pessoal, resultante da qualidade dos livros elabo
rados por ele.
Um elenco permanente de personagens
Nos primeiros livros, Monteiro Lobato preocupou-se em introduzir as
personagens, mostrando-as ao leitor. Reinações de
Narizinho,
por exem
plo, começa pela apresentação da menina Lúcia, a Narizinho do título,
apelido que a consagrou.
Na
mesma página de abertura, informa que
ela mora com a avó Dona Benta, e que Tia Nastácia, a cozinheira, deu
lhe uma boneca de pano, de nome Emília.
Essas personagens, a que logo
se
somaram o menino Pedrinho, o
primo de Narizinho, e outro boneco, o Visconde, feito com sabugo de
milho, popularizaram-se tanto, que apareceram em quase todos
os
livros. À vezes acontece de faltarem algumas dessas figuras; Nari
zinho, por exemplo, fica de fora da aventura narrada em O
Minotau-
ro À
vezes
elas são apenas os ouvintes de enredos contados por ou
tros, como acontece em D.
Quixote d s Crianças
e Peter
Pan,
que
Dona Benta resume para os netos, ou em Histórias da
Tia
Nastácía,
que reúne contos do folclore brasileiro. Mas, de um modo ou de
outro, o núcleo de seres, humanos e não humanos, exibidos nas pági-
a
Literatura
Infantil Brasileira
nas iniciais do primeiro livro de Monteiro Lobato que, aliás
se
cha
mou inicialmente
Menina
do
Nariz
Arrebitado e só depois, com o
acréscimo de outros episódios, denominou-se Reinações
de
Narizinho ,
passa a formar o elenco inalterável das obras que aquele escritor desti
nou
ao público infantil.
A sistemática adotada
por
Lobato mostrou-se, desde o começo,
muito útil. Tal como ocorre nas histórias em série, como as que se
conhece da televisão ou das revistas em quadrinhos, o escritor repetia
as personagens, de modo que não precisava inventar novos indiví
duos a cada vez em que principiava outra narrativa. Era preciso bolar
tão-somente aventuras originais para as mesmas pessoas, o que deu
certo por uma razão: elas revelam, desde o começo, espírito aventu
reiro, gostam de aderir a atividades desafiadoras, estão disponíveis
para o que der e vier. Portanto, trazem consigo a personalidade dos
heróis tradicionais, aqueles que habitam os mitos, as lendas, os con
tos folclóricos, as epopéias,
em
outras palavras, todas
as
narrativas
ouvidas desde pequenos e reencontradas não apenas na literatura,
mas em outros meios de comunicação, sobretudo
os
de massa, como
o cinema, a
TV
a história
em
quadrinhos e atualmente, os jogos de
computador.
Monteiro Lobato pode não ter inventado a técnica de reunir um
grupo de figuras com grande presteza para a ação. Conferiu-lhe, po
rém, uma série de atributos que o particulariza, como:
- Os principais agentes são crianças, como Pedrinho e Narizinho,
ou mimetizam o comportamento delas, como
os
bonecos Emília e
Visconde de Sabugosa; portanto, o universo das personagens aproxi
ma-se do mundo do leitor e permite identificação imediata.
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Como e Por que ler
- Trata-se de
um
conjunto de seres inteligentes e independentes,
dispondo de ampla liberdade para tomar iniciativas, inventar ações
originais e resolver problemas; abordam
os
adultos de igual para igual,
às vezes até com algum desrespeito, como Emília em relação à cozi
nheira Nastácia; mesmo diante da avó,
Dona
Benta,
as
crianças des
conhecem limites, embora aceitem
os
princípios que norteiam a ação
da velha senhora, sobretudo
os
que se referem à justiça, à ética e à fra
ternidade entre
as
pessoas.
- s
crianças, representadas pelos seres humanos, Pedrinho e Na
rizinho, e pelos bonecos, Emília e Visconde, são figuras inseridas
na
vida brasileira, o que lhes confere autenticidade e nacionalidade. Não
quer dizer que representem algum traço
ou
peculiaridade nacional,
porque isso é desnecessário; mas elas integram-se aos problemas do
país, reagem às dificuldades de seu e de nosso tempo, o que mais uma
vez facilita a aproximação entre
as
personagens e o leitor.
Esse
proces
so
como
se
verá, patenteia-se
na
construção de
As Caçadas
de
Pedrinho
uma das mais divertidas histórias criadas pela imaginação de Lobato.
Lobato escreveu o primeiro livro voltado ao público infantil,
Menina
do
Narizinho Arrebitado em 1921, e o último,
Os
Doze Tra-
balhos
de
Hércules
em 1944. Ele faleceu em 1948, e nos derradeiros
anos de vida, após a publicação de
Os Doze Trabalhos de Hércules
dedicou-se a organizar sua obra. Por isso
há
diferenças entre
as
edições
de algumas histórias, a começar pela primeira, que mudou de nome,
quando
ele
agregou, ao Nariz inho Arrebitado original, episódios
como, entre outros,
O
Marquês de Rabicó ,
O
Irmão de Pinóquio
ou O
Circo de Escavalinho , que vieram a compor, em 1931,
Reinações
de
Narizinho com o formato atual.
a
l i teratura
Infantil Brasileira
Ai Caçadas de
Pedrinho também não nasceu com
esse
nome; foi pri
meiramente
Caçada da Onça
narrativa publicada em 1924. Depois,
Lobato acrescentou a história do rinoceronte Quindim, e o livro
aumentou de tamanho e mudou de título.
Esse
processo ocorreu com
outras obras, o que pode confundir
um
pouco o estudioso da história
da produção literária do escritor.
Por que isso nunca confundiu o leitor?
Uma
razão foi dada em pa
rágrafos anteriores: as personagens mantiveram-se inalteráveis, não se
transformando nem
por
dentro - sua personalidade está desenhada
desde a primeira página em que aparecem - nem por fora: no sítio do
Picapau Amarelo, ninguém envelhece, nem mesmo
Dona
Benta e
Tia
Nastácia, senhoras idosas já nos episódios iniciais. Lobato, con
tudo, procedeu a modificações, quando julgou ser necessário: algu
mas personagens entram
e
depois, saem das histórias, como ocorre
ao anjinho, importado para o sítio
em Viagem ao Céu
de 1932, e que,
mais adiante, em
Memórias de
Emília de 1936, retoma ao lugar de
onde partiu; outras,
por
sua
vez
incorporam-se
ao
sítio e pertencem
a
uma
categoria que Lobato somente passou a empregar depois de
As
Caçadas de Pedrinho:
os bichos falantes, como o rinoceronte Quin-
dim, já mencionado, e o burro Conselheiro, que aparece em
Viagem
ao Céu e
depois disso, torna-se residente permanente nas terras de
Dona
Benta.
Há, enfim,
os seres
temporários e esporádicos, como Peninha, versão
brasileira do Peter Pan inglês, e Rãzinha, de
Reforma da Natureza
de
1941. Afinal, Lobato tinha necessidade de variar os enredos, o que deter
minou a interpolação de novos figurantes, com
os
quais interagem
as
personagens principais. Mesmo temporários, contudo,
eles
não alteram
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 14/93
26
Como e Por que Ler
o núcleo essencial, evitando que o leitor
se
disperse e deixe de entender
para quem deve torcer e com quem é chamado a se identificar.
o
sítio é
um
mundo
Outro fator que garante a compreensão das histórias é a unidade de
lugar: o sítio do Picapau Amarelo está presente em todas
elas.
A ação
pode ocorrer em outros locais, e as personagens têm liberdade para se
deslocar no espaço - visitam a Lua e os planetas em Viagem
ao
é -
e no tempo, podendo recuar até o século V
a.c.
época de Pérides,
com quem Dona Benta mantém longas conversas, ou mais para trás,
quando Pedrinho, Emília e o Visconde ajudam Hércules a executar os
trabalhos para os quais tinha sido designado.
De
todo modo, coloca
do no início e no fim dos episódios, ou ocupando posição central, o
sítio é o cenário de recorrência das histórias, garantindo a estabilidade
necessária para a vida e o comportamento de todas as personagens.
O sítio do PicapauAmarelo não é apenas isso porém. Não por acaso
ele se converteu em sinônimo da obra para crianças de Monteiro Lo
bato, aparecendo
num
dos títulos de um dos livros mais conhecidos,
bem como nas várias
séries
de televisão inspiradas na criatividade do escri-
tor. O sítio é um mundo independente e auto-suficiente, e
esse
é outro
grande achado do primeiro grande autor para a infância brasileira.
Para entender o que significa dizer que o sítio é um
mundo
próprio,
basta tentar responder à seguinte pergunta: onde ele se localiza?
Se
ele
estivesse assentado, por exemplo, em São Paulo, estado e cidade onde
Monteiro Lobato viveu boa parte da existência, ele não seria indepen-
a Literatura Infantil Brasileira
27
dente, e sim uma parte daquela região. Se se pensar, por exemplo, no
bairro de Botafogo, onde moraram algumas das personagens de Ma
chado de Assis entende-se imediatamente que aquele local pertence a
qma cidade real, Rio de Janeiro, escolhida pelo romancista para paisa
gem de sua obra.
Monteiro Lobato mesmo faz isso em contos de Cidades Mortas um
de seus livros destinados ao público adulto: Oblivion pode não existir
no mapa, mas corresponde a Areias ou a outra localidade onde ele resi
diu, antes de mudar-se definitivamente para a capital do estado de São
Paulo. Com o sítio, isso não acontece, pois não se pode situá-lo em
alguma geografia regional ou local; o máximo que se pode dizer é que
ele fica no Brasil. Embora também se possa dizer que ele é o Brasil.
Vale a pena ver isso mais de perto, porque poucos escritores conse
guem concretizar o que Lobato teve em mente e converteu em fato
literário.
O sítio do Picapau Amarelo aparece desde o primeiro volume da
obra que Monteiro Lobato destinou à infância, sendo descrito com
detalhes
na
abertura de O Saci 1921). propriedade de Dona
Benta Encerrabodes de Oliveira, que habita lá, na companhia de
uma
cozinheira,
Tia
Nastácia, e da neta. Nas férias, recebe a visita do
neto Pedrinho, filho da filha mencionada algumas vezes, mas pessoa
que deve residir na cidade, de onde provém o garoto. Ignora-se
quem são os pais de Narizinho, mas ninguém se preocupa em per
guntar por eles.
Perto da propriedade de Dona Benta, há a venda de Elias Turco,
freqüentada por desocupados e onde Tia Nastácia abastece a cozinha.
Conforme
se
depreende de obras como O
Poço
do Visconde
e
Chave
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 15/93
8 Como li Por que
ler
do
Tamanho
o Coronel T eodorico é lindeiro de Dona Benta, sendo
que, entre os dois, há mais animosidade que amizade. O Coronel T eo
dorico, conforme as declarações da velha senhora, é pessoa conserva
dora, despreocupada em atualizar-se seja em termos culturais, seja em
termos econômicos.
Dona
Benta, pelo contrário, é mulher moderna. Deveria se susten
tar às custas das rendas proporcionadas pelo sítio, mas somos informa
dos de que
as lavouras de café estão arruinadas, e pouco
se
faz pelo
crescimento econômico da região. A velha seguidamente critica a
situação, embora não
se
queixe de falta de dinheiro; mas, quando per
cebe que é hora de mudar, adere ao ideal de Lobato não por acaso
tem o nome do próprio escritor, José Bento): patrocina a prospecção
de petróleo em suas terras, obtendo grandes lucros e promovendo o
progresso não apenas na área, mas em todo o país.
Esse resumo, ainda que breve, revela que nenhuma fazenda de café,
do interior de São Paulo ou do vale do Parnaíba, poderia correspon
der
ao
modelo proposto por Monteiro Lobato em seus livros. Isso
decorre do fato de que, de um lado, ele deseja que o sítio mostre como
o Brasil é ou foi, nas primeiras décadas do século
XX
- o predomí
nio da economia agrícola, a decadência do
mundo
rural, o atraso da
mentalidade das pessoas que vivem no campo. De outro, o lugar
ex-
pressa o que Lobato deseja para o Brasil inteiro, a saber, a possibilida
de de modernização, crescimento e fortuna graças à exploração das
riquezas minerais, em especial, do petróleo.
O sítio, porém, não é apenas o espaço do enriquecimento da famí
lia Encerrabodes de Oliveira em decorrência do bom aproveitamento
das potencialidades da terra. É também um lugar ideal, porque:
a
l i teratura Infantil
Brasileira
a É dirigido por uma pessoa culta, inteligente, bem-intencionada e
competente, Dona Benta, modelo do político que, segundo Lobato,
deveria governar o Brasil;
b
Dona Benta é igualmente uma pessoa liberal e democrata, escuta
os
demais, acolhe opiniões divergentes, opta pela solução prática que,
ao mesmo tempo, beneficia a todos. Vale lembrar que, quando Lobato
escreveu boa parte de seus livros, o Brasil era vítima de uma ditadura,
a de Getúlio Vargas, assistia-se à ascensão do fascismo e do nazismo, e a
Europa estava sendo devastada por uma guerra brutal; entende-se, pois,
por que Dona Benta representa o melhor dirigente possível, conforme
reconhecem eminentes políticos da época, oriundos de várias regiões
do globo, citados por Monteiro Lobato na abertura de Chave
do
Tamanho narrativa que dá conta da utopia do escritor.
c
O sítio está aberto para todos, sem discriminação. Além dos já
mencionados Quindim e Conselheiro, admite as personagens do mun
do da fábula, como príncipes, princesas e outros
seres
mágicos que
fogem de Dona Carochinha, conforme narra
Reinações
de Narizinho.
Em O Sítio do
Picapau
Amarelo Dona Benta chega a comprar os ter
renos vizinhos, para abrigar as mais variadas personagens e figuras, que
migram para o lugar que consideram o mais perfeito para
se
viver.
O sítio é
uma
espécie de paraíso, mas
um
paraíso muito especial:
em primeiro lugar, porque,
se
tem uma proprietária, não existe um
dono, nem se verifica o exercício do poder autoritário. Não há domi
nadores, o que se encontra até no Jardim do :Éden. Ali podem apare
cer vilões, mas eles jamais levam a melhor, e isso é outro po nto a favor
do sítio,
se
comparado com outros espaços ideais, imaginados pela
raça humana. Por último, mas não menos importante: o sítio é brasi-
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 16/93
Como
e Por
que
ler
leiro, como se fosse uma representação idealizada de nossa pátria. Em
outras palavras, é o Brasil conforme o desejo de Lobato,
um
Brasil
sonhado, mas sempre
um
Brasil.
É interessante o nacionalismo de Monteiro Lobato: o escritor foi,
desde
os
primeiros livros, como
Urupés
de 1918,
um
ferrenho crítico
das mazelas nacionais; mas nunca deixou de colocar o país no centro
de seu pensamento, procurando verificar o que era melhor para a
população. Foi até mais além: em Chave do Tamanho fez do Brasil
o coração do
mundo
capaz de propor alternativas a problemas cru
ciais e com isso, tornar-se um exemplo para todos.
Alguns dos livros esclarecem
essas
aspirações, como
As Caçadas de
Pedrinho.
Como
se
anotou antes, essa obra não foi escrita de
uma
vez
só: em 1924, foi publicada a história da caçada da onça; em 1933,
Lobato acrescentou a segunda parte, relativa à fuga do rinoceronte,
que se esconde na propriedade de Dona Benta. É nesse formato que
permanece até hoje.
Os nove anos que separam a redação da primeira e da segunda parte
não alteram alguns dados fundamentais. O primeiro deles diz respei
to ao cenário
da
ação, que
se
passa inteiramente no sítio do Picapau
Amarelo. Aqui aparece a onça, perseguida
por
Emília, o Visconde e
Rabicó, o porquinho até agora não mencionado, mas que pertence à
constelação de personagens secundários de Monteiro Lobato.
Os
heróis conseguem vencer o animal, mas, a seguir,
os
companheiros da
onça juntam-se, para retribuírem a agressão que sofreram. O núcleo
principal do enredo da primeira parte de
As Caçadas de Pedrinho
é for
mado pelos estratagemas bolados
por
Emília, que consegue evitar o
-
Literi ltura Infantil Brasileira 31
perigo e salvar a pele da turma, inclusive a dos adultos, as velhas teme
rosas da reação das feras vingativas.
A segunda parte é mais original, porque começa com o aparecimen
to
de um
rinoceronte nas terras de Dona Benta. Emília, que o encon
tra, não
se
perturba com a descoberta, tratando de tirar vantagem do
acontecimento: atiça a curiosidade de Pedrinho, que compra o animal.
Acontece que o rinoceronte dera com
os
costados ali por ter fugido de
um circo, onde era maltratado. O dono do circo não se conforma e sai
em busca da propriedade perdida, contando, para tanto, com a ajuda
do governo.
É quando Mo ntei ro Lobato exerce, com grande habilidade, a verve
cômica, denunciando a incompetência do aparato governamental para
resolver
um
problema que, a rigor,
nem
era de sua alçada. Aliás,
as
medidas tomadas pelo poder público dizem bem da atualidade da crí
tica de Lobato: primeiro, cria-se o belo Departamento Nacional de
Caça ao Rinoceronte , conforme conta o narrador; depois, aparecem
os
cargos, preenchidos por burocratas bem remunerados, que nada
fazem: o chefe de serviço ganha um bom salário, dispõe de doze auxi
liares , afora grande número de datilógrafas e 'encostados ' . O narra
dor lembra que essa gente perderia o emprego
se
o animal
fosse
encontrado ,
l
de
modo
que
eles
fazem de tudo para fracassar a busca
do rinoceronte. Por fim,
as
ações executadas
são
caras e ineficientes,
gastando-se o dinheiro público em ações impróprias e inadequadas.
Ao final,
os
homens do governo desistem e vão embora, sendo o
rinoceronte adotado pelos habitantes do sítio, graças às suas virtudes -
é sábio, experiente e erudito, fazendo, de certo modo, parceria com
Dona
Benta. É nesse sentido que o sítio constitui
uma
espécie de repú-
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http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 17/93
32
Como e Por que leI
blica ideal, que admite
seres
dotados de qualidades positivas e expulsa
o julgado negativo, como o próprio sistema governamental. Note-se
que Lobato assume atitude corajosa,
à
época em que, no Brasil, esta
belecera-se despótica ditadura, avessa a críticos e opositores, fossem
eles
políticos de partidos diferentes, intelectuais
ou
artistas. Note-se
também que sua república adota
um
sistema muito original: dispõe de
dirigentes, como Dona Benta, mas não conta com
um
aparelho esta
tal, isto
é, uma
burocracia que impede o
bom
funcionamento da socie
dade e o convívio democrático entre
as
pessoas.
Transformado em regime ideal para viver e residir, o sítio torna-se
modelo para outras nações, como mostra
A
Chave
do
Tamanho, já
mencionada. A ação passa-se agora
numa
época datada: a Segunda
Guerra Mundial. Londres está sendo bombardeada pela aviação nazis
ta, depois de
os
demais países europeus terem sido vencidos pelo exér
cito alemão comandado por Adolf Hitler. Os principais dirigentes do
mundo decidem reunir-se para dar fim ao morticínio e acabam ape :
lando para a ajuda de Dona Benta e sua turma. O modo como o pro
blema
se
resolve acaba sendo bem complicado, porque Emília se intro
mete e quase põe tudo a perder. Contudo, fica o fato de Monteiro
Lobato chegar aonde queria:
fez
do espaço onde localizou
os
heróis
um
exemplo para todo o planeta, sem que
ele
deixasse de ser brasileiro.
Referimo-nos até aqui
à
porção principal da obra de Monteiro Lo
bato. Ficaram muitas realizações de lado, como as adaptações de clás
sicos da literatura
Dom
Quixote
das Crianças,
de 1936 e de obras
européias destinadas à infância Peter Pan, de 1930 , as incursões no
folclore Histórias de Tia Nastácia, de 1937 e na mitologia ocidental
O
Minotauro, de 1939 , o aproveitamento da história História do
I
I
33
Mundo para Crianças,
de 1933 , da geografia
Geografia de
Dona
Benta, de 1935 , da matemática Aritmética
da
Emília, de 1935 e da
ciência
Serões
de Dona Benta, de 1937 , que aparecem em muitos dos
títulos. Ele só não fez poesia para criança, tornando-se assunto de fil-
mes, peças de teatro, histórias em quadrinhos e seriado de televisão.
É
bastante, não? Por
essas
e por outras, é que, sozinho, é quase
um
sis-
tema literário inteiro. Mas, na época, não estava isolado, como
se
verá
adiante.
Notas
1
Monteiro Lobato.
s Caçadas de Pedrinho.
São Paulo: Brasiliense, 1956.
p.
84.
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LOBATO NÃO ESTAVA SÓ
o
livros que Monteiro Lobato escreveu com o pensamento nas
crianças obtiveram grande sucesso. Sinal de que rendiam o suficiente
para o autor viver quase que exclusivamente da literatura é a observa
ção dirigida, em carta, a Godofredo Rangel, seu amigo desde a juven
tude, em que compara cada obra a
uma
vaca holandesa que me dá
leite de subsistência . Depois, completa: o
meu
estábulo no Brasil
conta com 23 cabeças no Otales [proprietário da Companhia Editora
Nacional], mais 12 na Brasiliense e mais
as
30 Obras Completas.
Total 65 vacas de 40 litros .l
Graças à atividade de escritor em tempo integral, a literatura infan
til apareceu
no
horizonte das editoras como um negócio rentável,
razão
por
que elas se sentiram à vontade para publicar outros autores
nacionais. Não
fosse
assim, elas abrigariam apenas autores estrangeiros
em tradução
ou
facilitariam
as
adaptações de obras consagradas, como
Literatura Infantil rasileira
aconteceu no inicio do século XX. Como vender livros para a infância
dava lucro, as editoras procuraram investir em outros nomes, fato que
conferiu consistência e durabilidade à literatura destinada às crianças
do Brasil.
Vale a pena lembrar
os
nomes dos que atuaram no período media
do pela vida e influência de Monteiro Lobato, nomes que formaram
o time de autores da época e seus companheiros de profissão.
o realismo de Viriato Correia
. Talvez o principal concorrente de Monteiro Lobato tenha sido Viriato
Correia, não no sentido do antagonismo, mas de intensidade de produção.
No
depoimento de Moacyr Scliar citado no começo deste livro Viriato é
lembrado a propósito de
Cazuza
história publicada em 1938 que
se
tor
nou uma d s obras mais populares da
ficção
nacional destinada à infância.
Mas o autor não escreveu apenas esse livro redigindo grande número de
narrativas que têm como assunto episódios da história do
Brasil.
Esse foi um tema que deu muitos frutos: a história do país deveria
estar cheia de eventos marcantes, que podiam ser traduzidos
na
lingua
gem da literatura - como personagens e muita ação - para o público
infantil. Viriato dedicou-se a essa tarefa, publicando História
do Brasil
para Crianças Meu Torrão Descoberta
do Brasil
e
Bandeira
das
Esmeraldas
por exemplo. Foi, porém, com Cazuza que se consagrou,
e até hoje
esse
livro pode ser lido com a mesma satisfação que levou
Moacyr Scliar a tent ar recuperá-lo, para voltar a fazer parte de seu acer
vo pessoal de literatura infantil.
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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omoe POi que Ler
Cazuza
telu uma particularidade pouco utilizada por Monteiro
Lobato: o entedo é narrado em primeira pessoa recurso que só apare
ce em Memórias de
Emília
e ainda assim de modo parcial. Não é fácil
escrever em primeira pessoa principalmente quando o autor é um
adulto e o leitor uma criança. Corre-se o perigo de tentar imitar a lin
guagem infantil e abusar da puerilidade. O risco aumenta quando o
narrador apresenta-se como uma criança cujos vocabulário e domínio
da sintaxe são ainda relativamente reduzidos. O resultado pode ser um
texto simplório se o escritor quiser facilitar demais;
ou
inverossímil se
o narrador revelar um conhecimento lingüístico impróprio para a
idade.
O melhor é fazer como Viriato Correia: o narrador é um adulto que
recorda a infância. Só isso porém não basta: ele precisa mostrar fami
liaridade diante do assunto repetindo à sua maneira o gesto do lei
tor que também chega perto pelo lado da emoção do mundo exibi
do pela narração. Assim estabelece-se certa intimidade entre quem
conta a história e quem a lê intimidade garantida principalmente pelo
tema da obra e a perspectiva com que ele é oferecido.
O tema está bem próximo da experiência da maior parte das crian
ças
urbanas pois relatam-se
as
diferentes etapas da escolarização do
narrador e personagem principal. Esse tópico determina outra carac
terística da obra - seu realismo - e que a diferencia de Lobato. Como
se observou antes Monte iro Lobato criou um mundo imaginário o
sítio do Picapau Amarelo e dentro desse espaço aboliu todas as fron
teiras - entre seres humanos e não humanos pessoas e animais reali
dade e fantasia. O
Cazuza
de Viriato Correia está do outro lado: não
há heróis dotados de poderes extraordinários nem acontecimentos
l
I
a Literatura
Iri fanti l
Eln lsileir<l
3
fantásticos.
É
da vida cotidiana e dos problemas do dia-a-dia que
se
fala;
e mesmo assim o livro é encantador o que sinaliza a variedade
que a literatura infantil brasileira ia alcançando já na década de 1930.
. A ação do livro começa no interior do Maranhão onde vive o pro
tagonista quando pequeno.
Tem um
grupo de amiguinhos com
os
quais compartilha brincadeiras e o gosto de ouvir histórias. O menino
está ansioso para ir para a escola mas quando isso acontece sofre
grande decepção: o colégio onde estuda é pobre o professor castiga as
crianças e todos aprendem pouco.
À
medida que o enredo avança o narrador vai passando por outras
experiências estudantis até chegar a São Luís onde freqüenta uma
escola de elite. Vivencia momentos desagradáveis e difíceis mas apren
de a confiar em
si
nos professores nos colegas e nas possibilidades da
terra e do país. Descobre principalmente como se tornar atento e crí
tico perante as manifestações de ufanismo barato de racismo ou de
militarismo.
Cazuza
é
à sua maneira um romance de
formação
empregado aqui
o conceito aplicado
às
obras de ficção em que a personagem principal
passa por um processo interno e externo de crescimento na direção da
maturidade e da sabedoria.
É
o que ocorre nesse livro sem que ele
se
mostre didático - Viriato Correia não quer transmitir nenhuma lição
- ou cansativo. O resultado é um texto cheio de vivacidade que vale a
pena ler hoje e sempre ou então reler se ele constituiu uma de suas
preferências juvenis como ocorreu a Moacyr Scliar.
Publicado em 1938 azuza foi por um longo tempo um best-
seller garantindo uma fatia do mercado editorial para a literatura
infantil. Na época em que foi lançado outros autores escolhiam redi-
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8
Como
e Por
que ler
gir textos para crianças, como forma de ampliar seu público, destacan
do-se, dentre
eles os
que estavam
se
consagrando como romancistas
voltados à produção de uma literatura comprometida com intuitos
políticos e vontade de mudar a sociedade. Vale a pena mencionar dois
deles, Erico Verissimo e Graciliano Ramos, responsáveis por obras que
acabaram se enraizando na tradição da literatura infantil brasileira.
Dos adultos para cl'ianças
Quando
Graciliano Ramos decidiu escrever livros para crianças,
ele
já
era
um
novelista aclamado pela crítica e pelo público nacional. Pelo
menos duas criações importantes já tinham sido lançadas, São Ber-
nardo de 1934, e Angústia de 1936, obras que, sozinhas, bastariam
para afiançar ao autor alago ano um lugar no panteão dos grandes
nomes da nossa literatura.
Em
1937, residindo no Rio de Janeiro e livre do encarceramento
político a que o regime Vargas o submeteu, Graciliano Ramos resol
veu concorrer a
um
prêmio literário proposto pelo Ministério da
Educação. Inscreveu uma história não muito longa e bastante original,
chamada
Terra dos Meninos
Pelados publicada em 1939. Embora
vencedora, a narrativa não contou logo com muitos apreciadores; ho
je, porém, reconhecem-se seus méritos.
O livro narra a história de Raimundo, um menino que tem a cabe
ça pelada e
os
olhos de cores diferentes,
um
preto e o outro, azul. Po r
causa disso, sente-se discriminado e inferior às demais crianças de sua
idade, até que, de modo mágico, chega a um lugar, Tatipirun, onde
Literatlu'a Infant i l Bl'asileit'
todas as pessoas são como
ele.
Descobrindo sua turma, Raimundo
passa a acreditar em
si
próprio, retornando a casa, em Cambacará,
dotado de energia suficiente para enfrentar situações adversas.
.
De
certa maneira, a narrativa
foge às
características da obra que
Graciliano escreveu para o público adulto, pois, em
Terra
dos
Meni-
nos Pelados predomina a fantasia e o fabuloso. Mas ela carrega traços
tanto do estilo sintético, quanto da visão de mundo do autor, porque,
como ocorre a Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos, filhos do
casal, personagens de obra da mesma época,
Vidas Secas
de 1938,
deparamo-nos com uma pessoa que não pertence aos grupos domi
nantes da sociedade e sofre muito com a exclusão de que é vítima.
Só
que Raimundo tem a oportunidade de dar uma virada em sua vida,
apresentando-se como exemplo de auto-afirmação perante o leitor.
Nos dias atuais, Terra
dos Meninos
Pelados pode ser julgado texto
politicamente correto , ao falar de pessoas perseguidas pelos precon
ceitos da sociedade, que sabem dar a volta por cima, não p or se adap
tarem aos valores predominantes, mas po r se aceitarem como são.
Graciliano é responsável por outros dois textos de excelente quali
dade. Num deles, Pequena História da
República
aborda fatos do pas
sado e da atualidade do Brasil de seu tempo. O adjetivo pequena ,
que acompanha o título, vale apenas para a extensão da obra, bastan
te curta; de resto, ela é grande , porque, em plena ditadura de Ge
túlio Vargas, o escritor usa e abusa do
humor
para falar dos políticos
brasileiros que fizeram a história republicana e recente do país. À épo
ca
a república era já
um
regime consolidado, mas o sistema presiden
cialista tinha sido interrompido pela implantação do Estado Novo,
governado por Vargas. Raros historiadores se atreviam a abordar o
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4
Como o Por que ler
assunto por temerem a repressão o que não ocorre com Graciliano
que enfrentou o touro à unha. A publicação do livro acabou sendo
sustada e a obra veio a ser conhecida apenas na década de 1950. Ela
continua sendo exemplar pois o escritor oferece uma visão crítica e
audaciosa de
um
importante período da trajetória nacional nem sem
pre suficientemente discutido.
O outro texto de excelente qualidade pertence a gênero oposto. Na
Pequena História da República Graciliano trabalha com fatos históri
cos que devem ter acontecido e sobre os quais dá sua interpretação
seguidamente em desacordo com a versão proposta pelo poder consti
tuído. Nas Histórias de Alexandre
ele
recorre
ao
folclore recolhendo
narrativas da extração popular apresentadas pela personagem referida
no título da coletânea.
O folclore foi desde o começo da literatura infantil brasileira um
dos tesouros de que os escritores se socorreram quando queriam
produzir textos capazes de atrair o novo público. Mas em obras
como os Contos da Carochinha de Figueiredo Pimentel mistura
vam-se histórias da mais variada procedência predominando o
material trazido pelos colonizadores europeus sobretudo os portu
gueses.
Na
época em que Pimentel lançou a antologia não podia ser
muito diferente porque ainda não vigorava a noção de que cabia
prestigiar a tradição nacional. Foi preciso aguardar a explosão
modernista na década de 1920 e depois para
se
entender que os
diferentes grupos de brasileiros nas regiões em que haviam se loca
lizado tinham sido capazes de criar e difundi r seus próprios relatos
ainda quando mesclados àqueles recebidos durante o período da
colonização e da imigração européia.
a Literatura Infantil Brasileira
41
O Modernismo soube valorizar o material de origem popular;
mas somente
essa
medida não era suficiente. Cabia buscar um modo
próprio de expô-lo ao leitor que lhe desse a impressão de estar con
vivendo com os contadores originais. Monteiro Lobato tentou con
cretizar
esse
objetivo em
Histórias
da
Tia Nastácia
fazendo a cozi
nheira do sítio do Picapau Amarelo em tese a representante da
camada popular no universo criado pelo escritor narrar contos fol
clóricos às crianças.
É contudo Graciliano que com as
Histórias
de Alexandre alcança
o resultado modelar ao criar um narrador original profundamente
vinculado ao meio onde ocorrem
as
tramas e que
se
imiscui nelas
como se tivessem acontecido com ele. As intrigas são todas fantásti
cas e inacreditáveis de modo que Alexandre além de narrar aventuras
fabulosas tem de convencer os ouvintes - as pessoas que gostam de
ouvi-lo - de que o relatado efetivamente aconteceu por mais absurdo
que pareça. O uso
desses
recursos - integração do narrador aos acon
tecimentos contados; busca da credibilidade da audiência que repre
senta no interior do texto o leitor que está fora - torna
Histórias
de
Alexandre
produto original e engraçado. O resultado final é uma
das
principais obras elaboradas para crianças e jovens da literatura brasilei
ra e outro daqueles livros que diverte grandes e pequenos.
Erico Verissimo não contava com reconhecimento semelhante ao de
Graciliano quando escreveu os livros que dedicou a crianças e jovens.
A maioria foi redigida durante a década de 1930 quando o romancis
ta já tinha sido premiado por
Caminhos
Cruzados em 1935 mas ainda
não tinha lançado obras mais importantes como O Resto
Silêncio
de
1942 e O Tempo
o Vento
trilogia produzida entre 1949 e 1962.
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 22/93
Como e I or
que
Ler
Para crianças, Erico dirigiu
um
grupo de seis histórias curtas, como
Aventuras do Avião
Vermelho 1936), O Urso com
Música na
Barriga
1938) e
A Vida do
Elefonte Basílio 1939). Algumas são entrelaçadas,
como Os Três Porquinhos Pobres 1936) e Outra Vez s Três Porquinhos
1939), mas a sexta é totalmente independente e a única protagoniza
da por uma menina,
Rosamaria
no
Castelo Encantado
1936). Pode-se
concluir, pelos títulos, que o romancista preferiu distribuir os papéis
principais entre figuras originárias
do
reino animal, como
os
porqui
nhos, urso e elefante citados. Mesmo
As Aventuras
do
Avião
Vermelho
cuja personagem central é o menino Fernando, exibe uma série de
bichos na situação de auxiliares ou antagonistas do herói. Entende-se
por
que agiu assim: narrativas
em
que aparecem bichos são muito bem
aceitas pelas crianças, haja vista o exemplo de tantos desenhos anima
dos e personagens de histórias em quadrinhos, co mo as que, desde a
década de 1930, Walt Disney popularizou.
Erico propõe igualmente enredos para jovens leitores, escolhendo
assuntos menos fantásticos: Viagem Aurora do
Mundo
1939) usa a
fic-
ção para explorar matérias de interesse científico, como as descobertas re
lativas
à
pré-história.
As
Aventuras e
Tibicuera
1937) elege como tema
a história do Brasil, relatada e vivenciada pelo indiozinho do título.
A
Vida
e
Joana
D Arc
1935), dedicada
à
biografia
da
heroína fran
cesa que ajudou a França a
se
liberar do jugo inglês
no
século XIV, é
seu
produto
mais
bem
acabado. Relatado em terceira pessoa, não
esconde a simpatia para com a menina e depois,
moça
que desafia
preconceitos e instituições para realizar o ideal de independência pes
soal e política. Obra datada do período da ditadura de Getúlio Vargas,
manifesta a crença do autor nos ideais libertários então em falta, mas
fundamentais para a existência de uma nação,
onde
quer que ela fique.
a Literatura Infantil
Brasileira
Contemporâneos de Monteiro Lobato, Graciliano Ramos e Erico
Verissimo, assim como o antes mencionado Viriato Correia, não são
propriamente seguidores do criador do sítio do Picapau Amarelo. Dos
três, o mais original é Graciliano Ramos, também o mais distante da
lição de Lobato. Os outros dois mostram características próprias, em
obras que ainda revelam grande interesse para o público leitor.
Continuadores de Monteiro Lobato são os escritores que começa
ram a publicar a partir da década de 1940. Éramos Seis de Mar ia José
Dupré, impressionou bastante o autor paulista,
mas foram
as
histórias
protagonizadas pelo Cachorrinho Samba que se adequaram com mais
propriedade ao público jovem. Francisco Marins, t ambém de São Pau
lo, adotou uma das principais idéias de Lobato, a de inventar
um
espa
ço imaginário, mas não menos brasileiro, para acolher as personagens e
desenvolver as ações. Chama-o de Taquara-Poca, e é lá que
os
heróis
vivenciam aventuras instigantes.
O melhor, dentre
os
continuadores de Monteiro Lobato, é Jerôni
mo Monteiro, mas seus livros, que apareceram na década de 1950, são
hoje bastante raros. Contudo quem
se
deparar com
A Cidade Perdi-
da ou Três
Meses
no
Século
81, lerá certamente obras de ação e aventu
ra da melhor qualidade, equivalente
à
que, nas primeiras décadas do
século XX, fizeram a alegria dos novelistas citados no início deste livro.
otas
1 Monteiro Lobato.
A
Barca de
Gleyre.
14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. p. 373.
2 Cf. os elogios que o escritor dirige ao romance de Maria José Dupré, em Monteiro Lobato.
A
Barca
de
Gleyre.
14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. V. 2, p. 356-359.
a
l i teratura Infantil
Brasileira 45
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http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 23/93
AVENTURA DE
COMEÇAR DE NOVO
o
escritores mencionados ao final do capítulo anterior elabora
ram seus principais livros entre 1945 e 1960, numa época em que a
literatura brasileira já se ressentia da falta de Monteiro Lobato. Os oze
Trabalhos de Hércules sua derradeira obra para a infância, ti nha sido
publicada em 1944;
e
embora
as
crianças brasileiras tivessem amplo
acesso à saga do sítio do Picapau Amarelo nos anos 50, poucas foram
as
histórias originais lançadas nesse tempo.
A situação era paradoxal: o Brasil ia bem, obrigado, graças
ao
surto
desenvolvimentista que se seguiu ao final da Segunda Guerra. O país
havia passado por
um
período de agudo nacionalismo, de que é
ex-
pressão a campanha do Petróleo é nosso , como
foi
conhecida, resul
tando dela conquistas mui to importantes, sendo a mais significativa a
fundação da Petrobras. Lobato provavelmente aderiria
aos
promoto
res da política nacional de exploração das riquezas naturais, assim
como talvez se solidarizasse com ] uscelino Kubitschek, que prometeu
fazer o Brasil progredir cinqüenta anos durante
os
cinco de seu man
dato presidencial. O mineiro de Diamantina que conquistou o cora
ção dos eleitores brasileiros deve ter exagerado
um
pouco; mas, levan
do a capital brasileira para o planalto central, com a construção de
Brasília, a judou a domar as fronteiras nacionais e a promover o cresci
mento da região Centro-Oeste, até então pouco povoada.
A literatura infantil, contudo, não ia bem, faltando-lhe a centelha
de imaginação que animou a escrita dos artistas citados antes. Curio
samente, foi preciso o Brasil ir mal para então a literatura infantil cres
cer e aparecer, ajudando o país a
se
recuperar dos percalços políticos e
culturais.
De
fato, o Brasil que crescia nos anos 50 começou a década de 1960
em alta. Ganhou até
Copa
do Mundo e por duas
vezes
seguidas. Mas
a economia tinha sido forçada demais, e o desenvolvimento acelera
do cobrava o preço: inflação, restrição de crédito, agitação urbana e
reivindicações no campo e na cidade. O governo tinha dificuldade
para lidar com isso, e acabou perdendo credibilidade entre as classes
dominantes. A desconfiança gerou o desejo de mudar de governan
tes, o que é legítimo; mas isso aconteceu da pior forma possível: o
Exército tomou a frente e responsabilizou-se por
um
golpe de Estado,
derrubando o presidente então no poder e colocando outro no lugar,
um
general fardado.
O Brasil começou nova fase da história, que, no início, autodeno
minou-se revolucionária, mas que,
aos
poucos, foi-se mostrando con-
46
Como e Por que Ler
l i teratura
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I
11
i
i
:''
I
servadora autoritária e coercitiva. A degringolada final acontece em
1968 com a promulgação do AI-5. Proibiu-se o que fosse contrário
ao
regime e
os
desobedientes podiam sofrer toda sorte de punição
desde a perda do emprego até a prisão e a tortura.
Diante desse quadro as pessoas se encolheram e tal repressão
afe-
tou a cultura sobretudo o cinema e o teatro artes que mais direta e
imediatamente dependem de público. O acanhamento cultural não
foi
vivenciado logo pois as ações iniciadas nos anos 50 tinham acu
mulado tanta energia que seu impacto repercutiu até a segunda meta
de da década de 1960. Depois disso tudo
foi
ficando mais difícil e
os
artistas tiveram de mudar de país como o cineasta Glauber Rocha e o
dramaturgo Augusto Boal ou então silenciar por algum tempo.
A literatura não escapou da repressão no entanto sofreu menos. E
a literatura infantil que talvez por não ser vista não era lembrada
pôde se apresentar como uma dessas válvulas de escape por onde os
produtores culturais - escritores ilustradores artistas em
geral
tive
ram condições de manifestar idéias libertárias e conquistar leitores.
A transformação por sua vez não
se fez
tão-somente por obra e
graça dos agentes envolvidos com a literatura. Certas mudanças pro
postas pelo Estado tiveram repercussões no campo cultural e literário
beneficiando a arte destinada a crianças e jovens.
A principal mudança disse respeito
à
organização do ensino. Até o
final dos anos 60 a escolarização da infância e da juventude dividia-se
entre o ensino primário obrigatório com a duração de cinco anos e
o ensino secundário em duas etapas conhecidas como ginásio em
quatro anos e colégio em três anos. A essa
etapa seguia-se o ensino
superior ministrado pela universidade.
a Infantil Ilrasileira
A partir da reforma implantada no começo da década de 1970 o
ensino passou a repartir-se em fundamental obrigatório como o anti
go
primário; mas com a duração de oito anos médio em três anos e
superior. A principal providência em termos organizacionais disse
respeito ao ensino fundamental pois a
faixa
de escolarização obrigató
ria estendeu-se de cinco para oito anos fazendo aumentar numerica
mente o número de alunos na escola.
A outra modificação adotada afetou a docência da disciplina que dá
conta da aprendizagem da língua portuguesa. Essa disciplina passou
por várias denominações ao longo do século XX e vale a pena lembrar
algumas delas porque dizem respeito não apenas
ao
período que há
muito ou
há
pouco tempo passamos pela escola.
Quando o ensino primário tornou-se obrigatório na década de
1930 a disciplina relativa ao estudo da língua e da literatura chama
va-se Português const ituindo os
principais conteúdos a aprendiza
gem da gramática e o conhecimento dos escritores mais importantes
da literatura em língua portuguesa. Esclareça-se que desde o século
XIX os livros de leitura adotados na escola incluíam trechos selecio
nados de vultos do passado literário sem distinguir entre os autores
de Portugal e do Brasil. A diferenciação entre nacionais e estrangeiros
começa a se acentuar após o Modernismo
na
década de 1920 de
modo que os livros didáticos que substituíram as seletas utilizadas até
então passaram a incorporar maior quantidade de textos brasileiros
que portugueses. Um fato não
se
altera porém: a preferência recai
sobre
os
considerados clássicos ou canônicos isto
é os
que já haviam
sido matéria do crivo da crítica e da história da literatura logo julga
dos modelares.
48
Como e Por lue Ler
a
Literatura
Infantil
8rasileira
49
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A disciplina Português foi conhecida nas décadas seguintes também
sob a denominação de Língua Nacional
ou
de Língua Portuguesa sem
que s alterações afetassem a escolha de textos: estudantes dos cursos pri
mário e secundário nos anos 40 e 50 e mesmo nos anos 60 depararam
se
com nomes de valor indiscutível e comparecimento necessário no
panteão de nossa literatura como Gonçalves Dias Casimiro de Abreu
Olavo Bilac ou Afonso Celso conforme exemplifica uma seleção data
da de 1951.
Mas esses foram escritores que falavam a linguagem do pas
sado e dirigiram-se a leitores adultos não os pequenos estudantes que
começavam a vida escolar com seis ou sete anos.
Alteração significativa ocorreu no começo da década de 1970 quan
do se adotaram duas medidas inovadoras: valorizaram-se os autores
contemporâneos e não necessariamente os canônicos; e estimulou-se
a presença em sala de aula de obras literárias liberando os professo
res do uso exclusivo do livro didático. Não que este tipo de publica
ção tenha desaparecido da escola; pelo contrário como aumentou o
tempo de permanência do aluno nos colégios cresceu na mesma - ou
até
em
maior - proporção a quantidade de obras destinadas ao profes
sor
na
condição de instrumento auxiliar de ensino.
A reforma
da
educação brasileira introduzida
em
1970
por
inter
médio da seguidamente citada Lei 5.692 trouxe algumas conseqüên
cias complicadas: com tantos novos alunos
na
escola foi necessário
recrutar mais professores. O país não estava preparado para isso e al
guns docentes foram instruídos de modo apressado através de cursos
intensivos patrocinados pelos governos federal e estadual. A seguir na
esteira desse processo estabeleceram-se muitos cursos superiores
em
faculdades particulares encarregados de diplomar professores
em
pou-
co tempo graças às então implantadas licenciaturas curtas de apenas
dois anos de extensão.
Mesmo éom regulamentações posteriores a situação não mudou
muito: até hoje muitos professores não estão suficientemente apare
lhados para assumir tarefas didáticas razão por que tendem a
se
esco
rar no livro didático que lhes oferece lições acabadas. Além disso os
salários para quem trabalha sobretudo em escola pública não são re
compensadores fazendo com que
os
profissionais do ensino tenham
de assumir aulas em demasia decisão que lhes rouba o tempo de estu
dar ou de planejar
s
classes mais adequadamente. Também esse fator
f z com que ele prefira materiais que já se oferecem prontos ou que
facilitem a ação pedagógica.
Não podemos nos iludir: os resultados
da
reforma de 1970 mesmo
que lembradas s tentativas de reparar erros cometidos ou compensar
decisões impróprias trouxeram alguns malefícios de que ainda padece
a educação brasileira. Contudo
nem
tudo deu errado e o incentivo
conferido à literatura infantil considerada doravante material adequa
do à docência nos primeiros anos de freqüência à escola foi
um
dos
benefícios evidentes da nova estruturação do ensino em nosso país.
2
Uma
pesquisa realizada na segunda metade dos anos
7
informa
como andava na época o estudo da literatura nos primeiros anos da
educação fundamental e da adoção dos novos parâmetros pedagógi
cos. Esse trabalho foi realizado em Porto Alegre ou seja
em
meio ur
bano numa região onde predomina a classe média a atividade indus
trial e que apresenta bom nível de escolarização. A amostra pode ser
considerada representativa porque não provém de uma zona muito
desenvolvida e rica como seriam pesquisas aplicadas em São Paulo ou
50
Como
e Por
que
l r
a
Literatura
Infantil Brasileira
51
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Rio de Janeiro,
nem
de um local distante dos grandes centros ou exces
sivamente rural, como seriam, na época, investigações que escolhessem
o Norte ou o Nordeste como espaço de conhecimento.
A pesquisa gaúcha evidencia, pelo menos, dois aspectos interessantes:
3
a
Os
professores utilizavam
em
sala de aula
um
misto de literatura
infantil destacando-se, por exemplo, a adoção,
em
larga escala, de s
venturas
de Tibicuera de Erico Verissimo - com narrativas dirigidas
originalmente ao público adulto. Assim, verificava-se a escolha de tre
chos
ou
obras inteiras de José de Alencar e Machado de
Assis,
por
exemplo.
b Quando optavam por livros dirigidos às crianças, os professores
preferiam, muitas vezes, obras de Monteiro Lobato, fato que sinaliza
va, de um lado, a permanência do grande escritor no horizonte da in
fância brasileira daquele tempo; de outro, que
os
docentes faziam elei
ções motivados não pelo que teriam aprendido nos cursos de magisté
rio, mas pelo que sugeria a memória das próprias leituras. Ao lado des
sas predileções, vinham outras, como as de Erico Verissimo, citada
antes, e de Maria José Dupré, apontando para a persistência de auto
res atuantes nos anos 40 e 50, agora desatualizados, no universo das
escolhas de alunos e professores.
A primeira constatação indicava que os professores oscilavam ainda
entre literatura para crianças e para adultos, porque, sendo recente, a
reforma do ensino ainda não tinha estabilizado
um
procedimento
constante de eleição de livros ou leituras a serem utilizadas em sala de
aula. Similar pesquisa, se realizada hoje, chegaria provavelmente a resul
tados diferentes, pois os chamados clássicos da literatura brasileira,
como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo
ou
Machado de
Assis, não são mais acolhidos no nível fundamental, mesmo na sétima
ou oitava séries, não porque devamos descartá-los da história da litera
tura, mas por se mostrarem leituras impróprias formação de leitores
jovens e crianças. Essa alteração afetou significativamente o mercado
editorial brasileiro, com conseqüências benéficas para o crescimento do
público da literatura infantil.
A segunda constatação indicava que os professores estavam desatua
lizados em termos de produção de livros para crianças. Não se pode
condená-los, porém: no começo dos anos 70, a literatura infantil bra
sileira apresentava visível estagnação, resultante dos problemas arrola
dos: repetição dos modelos criados, então com grande originalidade,
por Monteiro Lobato; visão conservadora do país; predominância de
perspectiva moralista
ou
pedagógica nos textos literários. Autores bas
tante populares ainda nos anos
70,
como a mencionada Maria José
Dupré ou o Vovô Felíci0
4
(provavelmente um dos maiores
best-sellers
do período), tinham público certo, valorizados por professores e,
quem sabe, escolhidos pelos alunos.
Esse quadro
se
alterou, de modo que, relativamente ao tópico em
questão, pesquisa similar encontraria resultados distintos. A literatura
infantil exibe
uma
fisionomia completamente diferente na atualidade,
porque não se submeteu aos paradigmas representados pelos escritores
que dominavam a cena literária no começo dos anos 70 e que vieram
a constituir as primeiras opções dos professores e estudantes.
A razão se deve a uma circunstância: os autores que começaram a se
destacar na mesma época não elegeram o caminho fácil de responde
rem
à
expectativas dos professores, oferecendo-se como alternativa às
obras adotadas
em
classe. Pelo contrário, trataram de contrariar o pa-
5
omo Por que Ler
a literatura
Infantil Brasileira
53
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norama vigente em, pelo menos, três aspectos: por proporem uma lite
ratura de contestação, mesmo quando, durante
os
anos 70, o país pas
sava pelo pesado processo da repressão política; por preferirem dialo
gar diretamente com o leitor criança, seu destinatário por excelência;
por proporcionarem a ele formas novas de narrar e de lidar com a tra
dição, dentro
da
qual os adultos t inham feito sua formação.
Durante
os
anos 70, foi como
se
a literatura infantil brasileira co
meçasse a recontar a história, rejeitando o que a antecedeu e recusan
do mecanismos simplórios de inserção e aceitação social. Graças a essa
empreitada arriscada, ela ganhou, sem barganhar, espaço na escola e
junto
ao público. A recompensa foi seu crescimento qualitativo, que a
coloca
num
patamar invejável, mesmo se comparada ao que de me
lhor
se faz
para a criança
em
todo o planeta.
Um exemplo talvez seja suficiente para que se concorde com a afir
mação colocada
no
parágrafo anterior.
Em
1978, Ana Maria Machado, conhecida pelas crianças graças à
participação
na
revista
Recreio
e
à
publicação de obras como
Bento-que
bento
Frade Severino
Faz
Chover
e CU11 UpaCO
Papaco
lança
História
Meio
ao Contrário. O título da narrativa é desde logo, desafiador: his
tórias podem ir
numa
direção, digamos, direta
ou na
contramão, atro
pelando hábitos
ou
rotinas. Meio ao contrário soa esquisito, porque
não
se
compromete com um lado, nem com outro, contradizendo,
pois, qualquer uma das maneiras a que
se
está acostumado.
É
o que
faz
Ana Maria Machado:
em
vez de começar contando
uma
história pelo início, toma como ponto de partida a frase final da maio
ria dos contos de fadas: e viveram felizes para sempre .5 Depois é que
ela explica que viver feliz para sempre era um pouco excessivo, de
modo que se
faz
necessário expor o que foi acontecendo após
um
prín
cipe e uma princesa, apaixonados um pelo outro, casarem: tiveram
uma filha, educaram-na e prepararam-na para sucedê-los.
O sumário indica como a frase de abertura contraria o começo dos
contos de fadas, mas a seqüência retoma a continuidade da vida matri
monial. O mesmo se passa
na
sucessão do texto: o rei, acostumado a
dormir cedo, antes de o dia acabar, fica acordado até mais tarde e assis
te
à
chegada
da
noite. O fato, para ele incomum, é mal interpretado:
pensa que o dia fora roubado e
sai
à procura dos culpados.
Como
o
problema não se resolve, decide convocar o convencional herói busca
dor das histórias de fada: um príncipe que se encarregue de resolver o
problema; bem-sucedido, ganhará a princesa em casamento.
Outra
vez
a escritora segue o modelo do gênero, mas surpreende
quando apresenta as soluções: o príncipe não resolve nada, porque a
troca do dia pela noite faz parte do ciclo natural, e o rei, até então
alheado da realidade do reino, descobre que está na hora de conhecer
os
súditos e
os
problemas vigentes. Por sua vez a princesa não aceita a
escolha do noivo e sai a cuidar da vida, enquanto o príncipe percebe
que está interessado mesmo numa camponesa, e não na aristocrata que
lhe era oferecida. Acaba também seguindo seu destino, ao lado da
moça que ama.
Provavelmente teria sido mais fácil para Ana Maria Machado escre
ver uma história de fadas que acompanhasse as manhas do gênero.
Mas a solução de algibeira não lhe convinha, razão por que preferiu
inovar, buscando alternativas para a narrativa que são, ao mesmo
tempo, contestadoras e divertidas, agradando, pois, o leitor habituado
ao estilo dos contos de fadas. A contestação não fica evidente no resu-
54
omo Por
que
Ler
a
literatura Infantil
Brasileira
55
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mo formulado antes, mas está presente
na
história sob vários ângulos:
o denunciar o alheamento dos responsáveis pelo poder, que ignoram
o que se passa fora do palácio, seja o ritmo da natureza, sejam s neces
sidades da população; e o sugerir às pessoas, mesmo quando muito
jovens, como os leitores de História Meio
ao
Contrdrio seguirem o que
manda o coração
ou
a inteligência, não, porém, obrigações
ou
manda
dos vindos de fora.
Publicado numa época em que o Brasil ainda estava submetido
o
jugo de um governo ditatorial, História Meio
ao Contrdrio
dá um reca
do claro a crianças e adultos, estimulando a busca de uma existência
independente, do ponto de vista pessoal, e o desagrado perante
um
sis-
tema político autoritário e distanciado da população.
A obra de Ana Maria Machado sinalizava,
na
virada dos anos 70
para os anos 80, que a literatura infantil não apenas se insubordina
va contra o sistema vigente, fosse ele o literário, o político
ou
o eco
nômico. Revelava igualmente que era hora de se fazer
uma
nova his
tória, meio ao contrário , porque,
se
dava seguimento o que de
melhor a literatura infantil fornecera até então, tinha, na mesma
proporção, de procurar seu
rumo
e traçar os caminhos da estrada
que
se
abria à frente, conforme
uma
aventura inovadora e plena de
desafios.
otas
1 Cf. Mendes, Orlando e Morais, Ligia Mendes de. Seleta
Infontil
Rio de Janeiro: Gráfica
Editora Aurora, 1951.
2 Cf. Soares, Magda.
Comunicação e Expressão. Emino
da
Língua
Portuguesa no l Grau.
Cadernos da PUC RS23:
11-36, 1974.
3 Cf. Aguiar, Vera Teixeira de.
A
Literatura
Illfimtílllo Rio Cmnde
do Sul.
Correio
do
Povo.
Porto Alegre, 3. dez. 1977. Cad erno de Sábado. 8 (495): 7. Wagner, Elísia da Silva.
Literatura
Infontil na Sala de Aula. Letras de Hoje
36: 56-73, 1979.
4
Pseudônimo de Vicente Guimarães (1906-1981).
5
Machado, Ana Maria. História Meio ao
Contrdrio.
São Paulo: Ática, 1979. p. 4.
a litel atura Infantil Brasileira
51
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REIS FADAS E SAPOS PARA
AS CRIANÇAS BRASILEIRAS
t ó r i a
Meio ao Contrdrio
apresenta novidades formais e narrat i
vas que surpreendem quem lê o livro. Por outro lado, lida com o que
existe de mais tradicional das narrativas para crianças, tais como reis,
príncipes, gigantes. Ficam faltando
as
fadas, mas o mundo encanta
do dos contos que
elas
denominam ali está. Escolhida para represen
tar o que de mais revolucionário acontecia na literatura brasileira para
crianças, pode dar a entender t ambém que não
se estava avançando,
e sim regredindo.
O processo, porém, é compreensível, pois foi como se a literatura
infantil precisasse retornar aos inícios - do conto de fadas, nascido na
Europa; dos Contos da
Carochinha
como os que Figueiredo Pimentel
narrou, nos primeiros anos da história do gênero no Brasil - , para
tomar o impulso necessário para cruzar fronteiras e impor novas regras
de criação e leitura de textos destinados à infância.
De fato, foi
isso
mesmo que aconteceu, pois, entre 1975 e 1985,
apareceram livros que
se
valem de personagens similares, como fadas,
bruxas, madrastas, príncipes e moças pobres, para discutir temas con
temporâneos que interessariam as crianças brasileiras, dentro e fora da
escola ou em família.
Destaque-se primeiramente Fada que Tinha
Idéias
de Fernanda
Lopes de Almeida, publicado em 1971. A protagonista da história é a
fada do título, Clara Luz, que, como toda menina criativa, não aceita
as
idéias prontas contidas no Livro das Fadas, a que deve obedecer. A
rebeldia
se
manifesta de modo simpático e conquista, de imediato, o
leitor, que, como ela, é levado a contradizer a autoridade e a questio
nar a tradição.
O que a garota do título deseja é dar vazão à inventividade e abrir
caminhos, graças à imaginação e ao gosto de viver. Sozinha
ou
contan
do com o apoio de outros, como o da professora de Horizontologia,
Clara Luz mostra-se independente e desafiadora, a ponto de ser cha
mada às falas pelas fadas que exercem o governo no mundo em que
vive As
últimas cenas do livro assemelham-se
aos
episódios de
Alice
no
País das Maravilhas
em que a menina inglesa
se
depara com a Rainha
de Copas, mandona e poderosa; como a precursora, Clara Luz não se
perturba, acabando por modificar importantes regras do sistema polí
tico em sua terra.
Fadas ocupando o título de narrativas brasileiras para crianças tor
nam-se mais freqüentes na passagem dos anos 70 para
os
anos 80:
Eliane Ganem publica Fada Desencantada 1975) e Bartolomeu
Como
e Por
que
ter
a
Literatura
Infantil Ilrasileira
9
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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Campos Queirós, Onde Tem Bruxa
Tem
Fada (1979), dois exemplos
da tendência a recorrer ao tradicional imaginário da literatura infantil
para apresentar temas novos e inquietantes. O primeiro conta a traje
tória de uma fada que quer renunciar à condição dentro da qual nas
ceu: recusa a obrigação de fazer magias, ajudar
os
outros, defender
um
desvalido a quem protege.
Quer
mudar de vida e de profissão, o que
consegue graças
à decisão de
se
transferir para uma cidade moderna, o
Rio de Janeiro, e atuar da mesma maneira que as pessoas desprovidas
de poderes sobrenaturais.
Onde Tem Bruxa Tem Fada compartilha o cenário urbano viven
ciado pela protagonis ta de Fada Desencantada e como os anteriores,
atualiza espaço e personagens para exibir temas contemporâneos e
controversos. O texto, de linguagem lírica e metafórica, se comparado
com
os
anteriores, revela como o materialismo e o pragmatismo das
pessoas expulsam
as
fadas, ou entes imaginários similares, do mundo
moderno. É como se não houvesse mais lugar para figuras da imagi
nação, porque as pessoas preocupam-se unicamente em ganhar
dinheiro, mesmo que à custa dos ideais ou dos valores positivos que a
educação e a sociedade transmitem.
O Fantdstico
Mistério de
Feiurinha (1986), de Pedro Bandeira,
inverte
essa
equação, lidando com
os
mesmos termos. A protagonista
do título é a figura esquecida dos contos de fadas, que precisa ser
relembrada para não desaparecer.
Na
companhia das personagens tra
dicionais dos contos de fadas, como Branca de Neve ou Chapeuzinho
Vermelho, Feiurinha representa a memória do passado que, mesmo
filtrado pela desmitificação e atualização, igualmente presentes na nar-
rativa de Bandeira, precisa ser mantido, porque constitui a tradição e
a história a que pertence o leitor.
Escolhendo fadas para protagonizar as histórias, os autores mencio
nados conferem importante lugar para a personagem feminina, como
se
passa no já citado
História Meio
ao
Contrdrio
de Ana Maria Ma
chado. Essa opção indica que os textos são renovadores não apenas
porque temas e seres tradicionais da literatura infantil aparecem numa
condição diferente e transformadora, mas também porque
as
mudan
ças são lideradas por mulheres que, de
um
jeito ou de outro, se rebe
lam contra papéis previamente fixados, situações convenientes ou
deveres consolidados pelo tempo.
Às histórias de fadas protagonizadas por moças contrapõem-se as
narrativas em que
as
personagens predominantes são reis ou príncipes
ainda meninos ou já muito velhos. Pioneiro dessa tendência foi Eliar
do França, escritor e ilustrador que publicou, em 1974, O
Rei
de Quase-
tudo.
Este é o herói do livro, fábula que conta a história de um monar
ca que, tendo poder, nunca
se
contenta com suas posses, desejando
sempre mais. Acumula terras, dinheiro, os produtos da natureza, pla
netas e estrelas; mesmo assim, nunca se sente satisfeito, até descobrir
que a conseqüência de seus atos apenas gerara tristeza, feiúra e dor.
Devolve então o que conquistara aos donos, fossem pessoas
ou
a natu
reza, alcançando então a paz. Deixa, assim, de ser o rei de quase-
d
d
1
u o , para ter tu o .
Pode-se entender por que a narrativa traz marcas da fábula: a per
sonagem, que não tem nome, sendo apenas designada pela função
política, passa por uma lição de vida, transmitida por tabela ao leitor.
Além disso, o rei de quase-tudo pode representar várias pessoas, al-
I '
60
Como
e
Por
que
leI
a l i teratura Infantil
Brasileira
61
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 31/93
cançando a generalidade prevista por aquele gênero literário. Corno é
um
rei , pode representar
as
figuras que detêm o poder e desejam
sempre mais; corno alcança riquezas e propriedades, pode simbolizar
o capitalismo, sistema econômico apoiado na acumulação de bens;
mas, como demonstra comportamento caprichoso, pode igualmente
se
confundir com a criança mal-educada, que não conhece limites
e,
de alguma maneira, precisa aprender a conviver com
os
outros.
Não
significa isso que o texto seja pedagógico
ou
educativo, conclu
são que
as
palavras anteriores poderiam sugerir.
Em
primeiro lugar,
porque o texto não conclui
por
urna afirmativa, ao modo da moral
da história , que induziria a interpretação e fecharia a narrativa
num
sentido único. Pelo contrário, desde a leitura inicial, O
Rei
de
Quase
tudo
propicia urna compreensão aberta; além disso, propõe urna expe
riência com a qual o leitor
se
identifica por já ter passado po r situação
semelhante.
Em
segundo lugar, porque a fábula não é
um
gênero edu
cativo, e sim literário, e
só
é eficaz quando tem meios de apresentar
temas que só
se
podem entender graças ao poder de simbolização do
texto. E,
se
o texto está apto a representar idéias de modo simbólico,
ele requer interpretação, vale dizer, participação do leitor, que o absor
ve conforme suas experiências, gostos e preferências.
Outros reis
se
seguiram a este, escolhidos para liderar narrativas
em
que pudessem exprimir
um
posicionamento diante do exercício do
poder e do modo como
um
sistema autoritário era exercido, quando
os militares ainda governavam o Brasil.
O mais popular desses membros da realeza deve ter sido O Reizinho
Mandão
(1978), de
Ruth
Rocha, escritora que, quando publicou
esse
livro, era já conhecida por obras marcantes como Marcelo Marmelo
Mttrtelo (1976). Tal
COino
Eliardo França que, em O
Rei
de
Qjtase-tudo
moderniza um gênero clássico, a fábula, para discutir
um
tema contem
porâneo,
Ruth
vale-se do estilo do cordel para narrar a trajetória do
menino nascido na corte, herdeiro do trono e autoritário, como todo
sujeitinho muito mal-educado que pensa ser o dono do mundo .2
O Reizinho
Mandão
não é, pois, contado, e sim cantado, e esta esco
lha é importante, porque, na abertura, o narrador chama a atenção para
as
condições - todas impossíveis, como nas
vezes
em que o atrás for
c I b h I d
a
ll'ente
,o
prego
01
marte o
ou
co ra usar c me o - que po
em
fazer um cantador se calar . O que está em jogo, pois, é a hipótese de
uma pessoa dar livre curso não apenas a seus pensamentos, mas tam
bém
à
possibilidade de exteriorizá-los verbalmente.
É
o que o herói do
título quer
fazer,
até conseguir, primeiramente, que o reino se torne
infeliz e amargurado, já que todos estão proibidos de falar.
Quando
quer reverter a situação, é tarde: acaba sendo alvo da reação da menina
que exprime contrariedade, gritando, para todos ouvirem, que nin
guém controla sua fala. A explosão de liberdade modifica a situação do
reino, que redescobre a voz e provoca a fuga do indesejado governante.
Ruth
Rocha vale-se de
uma
alegoria para representar o Brasil dos
anos 70, dominado
por um
regime autoritário que calava a oposição e
que buscava encontrar meios de expressão para furar o bloqueio da cen
sura e da repressão.
Não
quer dizer que o livro tenha ficado datado
ou
que, hoje, não tenha sentido, uma vez que a livre manifestação das
idéias e da arte está com freqüência sob a ameaça dos meios de contro
le,
não necessariamente
os
policiais:
os
controles po dem estar corpori
ficados no aumento do número de mecanismos de fiscalização, bem
como no seu aperfeiçoamento tecnológico. Além disso, crianças e adul-
i
62
Como e
j or
que ler
a Literatura Infantil Brasileira
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 32/93
tos
mandões
estão sempre presentes na vida cotidiana, e nunca é demais
lembrar que a submissão gera silêncio e infelicidade. Tais temas, encon
tráveis no livro de Ruth Rocha, comprovam que a autora, se não
se
calou na época
em
que lançou o livro, continua declarando, de modo
eloqüente, a inconformidade com
as
formas de dominação.
Na
esteira do sucesso de O
Reizinho Mandão Ruth
Rocha publicou,
em 1979, O
Rei que
não Sabia
de Nada
de teor igualmente alegórico.
Como
o título sugere, o governante de um país imaginário é iludido
pelos ministros, que apresentam a ele a imagem de
um
país progressis
ta, onde inexistem preocupações econômicas e sociais.
Quando
desco
bre a verdade, o rei não tem mais meios de mudar a situação e foge.
Alertado por
uma
menina, que não tem papas
na
língua, ele renuncia
ao poder e deixa a tarefa de solucionar os problemas para a população.
A alternativa democrática dá certo, garantindo a melhora geral.
O
Rei
que não Sabia de
Nada
dá continuidade a um dos temas de
O
Reizinho Mandão:
indicando que o governante desconhece
os
pro
blemas e dificuldades do povo, porque ninguém lhe confessa o que
acontece, a história chama a atenção para a necessidade de
se
expres
sar diante do poder.
Outra
vez
uma
menina, agora nomeada Cecília,
é a agente da transformação.
Sapo
Vira Rei
Vira Sapo
ouA Volta
do
Reizinho M andão
(I982) com
pleta a trilogia, desdobrando outra vertente sugerida pela narrativa-mãe
e que o subtítulo
da
obra revela.
De
novo, estamos perante
um
gover
nante caprichoso, mal-educado e autoritário, que quer impor a vonta
de sobre todos os
outros, até ser derrubado pelo povo e posto a correr.
A história, porém, não se limita a esse resumo, pois o título sugere
de antemão que
uma
narrativa tradicional vai ser desmentida, no caso,
a do príncipe sapo . A versão canônica desse conto centra-se no dile
ma
da princesa, que, após ter perdido uma bola de ouro
no
fundo de
um
lago, pedé auxílio a
um
repugnante anfíbio para recuperar o pre
cioso brinquedo. Ele aceita a tarefa em troca de
um
beijo, prometido
pela jovem; obrigada a cumprir a palavra, ela tem uma agradável sur
presa, pois, conforme o enredo dos Grimm, o animal metamorfoseia
se num
belo príncipe, seu futuro esposo.
Ruth
Rocha desconstrói a seqüência original desde o começo, que
abre com o aparecimento do animal, introduzido por versos que in
corporam o posicionamento bem-humorado e paródico do poema
modernista de Manuel Bandeira, Os Sapos :
Vinha o sapo pela estrada
Avançando
passo
a
passo.
Pula, pulando
seus
pulos,
Recitando no compasso:
- Meu pai foi rei
Foi, não
foi
Meu pai
foi
rei
Foi, não
foi 3
Dialogando com o poema de Bandeira, que assume atitude irreve
rente diante dos representantes da tradição e do conformismo,
Ruth
antecipa que a personagem não conta com sua simpatia. A suposição
se
confirma mais adiante, quando a autora
dá
continuidade
à
intriga
original. Evitando encerrá-la logo após o conhecido desencantamento
do sapo e metamorfose
em
príncipe, ela relata o que acontece quando
64
Como e Por que L er
I
Uter ltur l
Infant i l IIrasileim 65
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 33/93
o marido da princesa ascende ao trono e toma
as
rédeas do governo.
Os desmandos marcam sua administração, a ponto de gerar descon
tentamento e conseqüente perda do poder.
s
providências tomadas pela escritora, apoiando o texto não ape
nas
num
conto de
fadas
tradicional, mas também no projeto moder
nista, indicam que não cabe reduzir Sapo Vira Rei Vira Sapo a uma
continuação de O
Reizinho Mandão.
É como se ela mesma se apro
priasse de
seus
temas, estabelecesse os necessários cotejos - por exem
plo, o título aproxima a obra de textos anteriores, um deles sendo o
seu -, para contrariá-los. Eis por que a interlocução com o poema de
Manuel Bandeira se apresenta; com similar propósito, rechaça a con
clusão de O
Rei que
não
Sabia
de
Nada,
segundo representante da tri
logia, já mencionado. Nesse, o final acomoda conflitos e promete
feli-
cidade perene; em
Sapo
Vira Rei Vira Sapo, o parágrafo final, após
lembrar que a história
se
repete, / Como
se
fosse um gracejo , adver
te, como que convocando o leitor
à
permanente vigilância diante da
hipótese do retorno dos governantes opressivos e indesejados:
Lá
vai um
sapo na
estrada
Procurando seu
desejo:
Encontrar uma menina
Que queira lhe dar
um
beijo
...
O
Príncipe Sapo rendeu ainda outras
revisões
como a versão pro
posta por Cora Rónai, em
Sapomoifose,
o
Príncipe que
Coaxava
1983).
A narrativa não tem cunho político, nem propõe uma alegoria ou fábu
la como nos livros examinados. Porém alinha-se ao grupo aqui esbo-
çado por
se
tratar de
um
texto que questiona convenções e lugares
comuns, isto
é
o conformismo, presente também
nas
atitudes das per
sonagens coadjuvantes nos relatos de Ruth Rocha.
O
herói não é o príncipe que virou sapo, e sim o contrário: trans
formado em ser humano, o animal nunca
se
sente adequado ao papel
esperado dele, embora cumpra com denodo
as
tarefas que lhe
são
atri
buídas. o r é m ~
só
alcança a felicidade e a tranqüilidade quando retor
na
à
condição de sapo, ao final da intriga.
Sapomoifose
busca contrapor-se
à
noção de que
as
pessoas devem
procurar realizar expectativas da sociedade por causa de alguma razão
superior, e não em decorrência da vontade de fazê-lo. Nem todos que
rem ser príncipes, milionários, profissionais bem-sucedidos, pessoas
belas
ou
famosas - podem desejar ser apenas seres comuns, simples,
mal vestidos ou feios, conforme aponta Cora Rónai, participando de
modo original em
um
ciclo da literatura infantil nacional em que
velhos mitos e a nova sociedade brasileira
se
encontravam para ofere
cer
à
criança
um
melhor conhecimento de si mesma e do mundo que
a rodeava.
otas
1 França, Eliardo. O
Rei de
Quase-tudo. 7. ed. Rio de Janeiro: Orientação Cultural, 1983.
2 Rocha, Ruth. O Reizinho
Mandão.
Ilustrações de Walter Ono. 4. ed. São Paulo: Pioneira,
1984. p. 5.
3 Rocha, Ruth. Sapo Vira Rei Vira Sapo ou
Volta
do Reizinho Mandão. Ilustrações de Walter
Ono. 2. ed. São Paulo: Salamandra, 2003. s. p.
a
literatura nfimtil
Brasileira
6
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GENTES E ICHOS
apos podem ser animais de estimação, porém, contam entre as
escolhas menos prováveis de crianças e adultos. Pior ocorre aos porcos,
cujos hábitos e aparência não ajudam a transformá-lo em seres predi
letos. Se os sapos, porém, serviram para protagonizar fábulas políticas
numa época de controle
da
expressão literária, um porco ajudou a
mudar radicalmente a representação
da
criança na literatura infantil
brasileira. Referimo-nos a
um
dos heróis de Angélica
em
que Porto, o
herói, luta para se aceitar como tal e encontrar seu lugar no mundo.
Livro lançado
em
1975 pela então pouco conhecida Lygia Bojunga,
Angélica e a obra que o precedeu, Os
Colegas
de 1972, constituíram
outros dos marcos das novas tendências assumidas pela narrativa
nacional que visava, primeiramente, aos pequenos leitores.
Um marco anterior, porém, precisa ser lembrado, não apenas porque
antecedeu cronologicamente as publicações de Lygia Bojunga, mas tam-
t
bérn porque sintetizou os rumos doravante adotados pela vertente a ser
agora analisada: trata-se de Flicts de Ziraldo, de 1969.
Quando publicou
Flicts
Ziraldo era já um nome conhecido do
público brasileiro. Criador da
Turma do Pererê, originalmente
uma
revista de quadrinhos, nos anos 60, encantou a meninada com humor ,
variedade de personagens e inventividade das histórias, todas de sua
lavra. O ponto de partida era
uma
personagem fortemente enraizada
no folclore brasileiro, o Saci Pererê, figura introduzida na literatura
por Monteiro Lobato, que,
em
1917, fez uma pesquisa entre os leito
res paulistas para verificar o que se sabia sobre aquele ente fantástico.
Lobato ainda não escrevia para crianças, quando promoveu o inqué
rito sobre o saci e publicou-o na gráfica do jornal O Estado de S. Paulo.
Talvez já pensasse no assunto, mas somente em 1921 fez daquela per
sonagem folclórica um dos auxiliares de Pedrinho na busca da seqües
trada Narizinho,
em
O
Saci. Os
modernistas também valorizaram o
menino de uma perna só, capaz de proezas mágicas e dotado de uma
moral muito própria, nem sempre pautada pela decência e pelos bons
costumes. Cassiano Ricardo denomina artim
Pererê
o poema
em
que
o saci representa, como diz ele, as três raças de nossa formação inicial",
entendendo-o como "o Brasil-menino". Ziraldo estava, pois, bem
ancorado na trajetória modernista da cultura brasileira, quando trans
formou a personagem em herói de histórias em quadrinhos.
Por sua vez, ao eleger uma figura originária do folclore e da tradição
popular, conferiu teor nacionalista à sua criação, complementado pelas
outras criaturas pertencentes àTurma do Pererê: o jabuti Moacir, a onça
Galileu, o coelho Geraldinho, o tatu Pedro Vieira e o macaco Alan,
todos eles animais associados
à
natureza brasileira e
aos
valores prezados
6 omo e Por
que
L.er
69
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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I
I
I
pelos modernistas, como sugere, para citar um único exemplo, C/tm do
Jaboti título do livro de Mário de Andrade, um dos principais líderes do
movimento. Compõem o quadro de personagens outras personalidades
também fortemente vinculadas à tradição local, como o par de indiozi
nhos Tininim e Tuiuiú, além de Boneca de Piche.
Na década de 1960, a sociedade brasileira dividia-se: de um lado,
a influência dos meios de cultura de massa produzidos sobretudo
nos Estados Unidos, sendo os cartoons oriundos da Walt Disney
Co. um dos principais esteios da dominação cultural; de outro, a
aspiração
à
manifestação de uma arte autenticamente nacional, vol
tada
à
expressão dos problemas do país. Ziraldo opta por
um
cami
nho original e único: cria histórias em quadrinhos nos moldes da
indústria cultural mais avançada de então; confere-lhes, porém,
tom brasileiro, não apenas
por
força das personagens escolhidas,
mas também porque elas se movem num cenário reconhecido pelos
leitores, a Mata do Fundão, com características locais, sem deixar de
ser atual e divertido.
Flícts desvela outra faceta do artista, não o desenhista da
Turma
do
Pererê ou o chargista, que ocupava, entre
os
anos 60 e 70, as páginas
de revistas femininas como
Cláudia
ou
de jornais de contestação como
O
Pasquim
e sim o pintor. Flicts é primeiramente, um livro sobre as
cores, como destaca a abertura, em que o narrador refere-se à persona
lidade do Vermelho, do Amarelo e do Azul, designados com letras
maiúsculas, para afiançar que se trata de substantivos próprios, e não
de adjetivos. Mas Flicts é igualmente um texto sobre a exclusão, já que
o protagonista do título não encontra
um
lugar para ele: Não existe
no mundo nada que seja Flicts. 2
,t
A busca do herói nasce do desejo de preencher essa carência, que
significa descobrir que espaço lhe compete no universo. As várias ten
tativas são seguidas de negação, aumentando o isolamento da persona
gem, que, no texto, é representada tão-somente por um nome e uma
cor. Não há
seres
vivos em Flícts apenas cores e tons, combinando-se
e no entanto, recusando o protagonista, até
ele
sumir por completo.
O desaparecimento, porém, é relativo: o narrador denuncia, na pági
na final, que, sim, Flicts achou seu lugar, pois a Lua é flicts .
Ao concluir o relato, a cor sem dono transforma-se em adjetivo,
porque encontrou sítio apropriado. Deixa então de ser personagem,
para se converter em qualidade de
um
ser, alcançável se o vemos de
perto, como ocorre, segundo as palavras do narrador, aos astronautas.
É
o que soluciona o conflito proposto pela história, solução mágica
e
ao mesmo tempo, simbólica: o excluído acaba
se
revelando o conteú
do mais profundo e secreto das coisas, conteúdo vazio, porém, por
que compete ao leitor preenchê-lo com o sentido que lhe parecer
mais adequado.
Flícts tornou-se, assim, metáfora não apenas do excluído, mas do
reprimido que cada
um
deve aceitar, se quiser conviver melhor consi
go
mesmo. A riqueza das imagens tornou a narrativa paradigmática
das possibilidades de representar o mundo interior das criaturas de
modo compreensível, sem ser simplista. O sucesso de vendas, que se
verifica até hoje, evidencia como Ziraldo soube at ingir públicos de ida
des distintas e de vários períodos, no Brasil e no exterior.
A obra traz igualmente uma lição para quem desejar falar do mundo
interior de uma criança para um leitor de pouca idade: é preciso encon
trar formas de representação da intimidade, que
se
exteriorizem por
7
Como e Por que ler
a litemtum
Infantil
Brasileira
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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meio de figuras de fácil tradução. Monteiro Lobato não
se
deparou
com essa questão, porque as personagens são seres resolvidos, não
vivem conflitos internos e agem sempre de modo decidido e direto. A
contribuição de Lygia Bojunga à história da literatura infantil brasilei
ra advém de ela ter alcançado apresentar, ao leitor, a criança por den
tro, levando adiante a proposta contida no Flicts de Ziraldo.
Lygia Bojunga estreou na literatura infantil em 1972 com Os
Cole-
gas obra que antecipa várias características do texto dessa autora que,
dez anos depois, viria a receber um prêmio literário consagrador, o
Hans Christian Andersen. Uma dessas características é a abertura, que
vai direto ao ponto, como no trecho reproduzido a seguir:
No
princípio eram
só
dois.
Tinham se
encontrado pela primeira vez
revirando a mesma lata de lixo.
- Esse osso que tem
aí é
meu
É
meu
-
Já disse que
é
meu
3
Vê-se aqui como o narrador não foge a
um
padrão da literatura
infantil, iniciando a narrativa por uma marca de tempo. Só que o "era
uma vez", que aponta para a atemporalidade do mito ou do conto de
fadas, converte-se em "no princípio", sinal de que uma história vai
começar no presente. Daí para a frente, o estilo só pode mudar radi
calmente: não há caracterização prévia das personagens, e ninguém
explica ao leitor que se trata de dois
cães.
o diálogo que encaminha
o destinatário para a compreensão do que se passa, exigindo dele, pois,
comprometimento com a leitura
e
ao mesmo tempo, maior liberda-
de de ação. O estilo implica agilidade por parte do narrador, rapidez
na comunicação e interação com o leitor, características que desenham
o relacionamento da escritora com a literatura infantil e com suas
expectativas perante o público.
Os dois cães da abertura da história não formam as figuras exclusi
vas da história. Aos poucos,
eles
encontram outros animais que, por
alguma razão, estão marginalizados ou sentem-se infelizes, vindo a agre
gar-se
ao
grupo de amigos, de que nasce
um
conjunto musical.
Eis
a
segunda característica de Os Colegas desenvolvida em outras narrativas
da escritora: as personagens, como Flicts, estão em busca de lugar na
sociedade, que resulta - e essa é a peculiaridade da temática de Lygia -
da descoberta da vocação artística. Os Colegas tais como seus precurso
res
de Bremen,
na
história dos irmãos Grimm, são cantores; Angélica,
do livro com esse título, faz teatro; Raquel, protagonista de
Bolsa
Amarela escreve; Maria, de Corda Bamba seguindo a carreira dos pais,
é equilibrista
num
circo. A arte
é
nesses livros, fator importante para a
liberação das personagens, escolha que
se
coaduna com o teor dos livros
onde as personagens aparecem, já que também eles provam-se inova
dores e inconformados com a tradição da literatura infantil.
Angélica que se segue a Os Colegas não narra apenas a história da
cegonha que
se
descobre artista, rompendo com os padrões predeter
minados esperáveis dela. Animal em princípio previsível e previamen
te destinado a preencher
um
papel no imaginário ocidental, a cegonha
é uma figura de quem não se esperam novidades ou questionamentos
sobre a função a desempenhar no conjunto do arranjo social. o que
Angélica rejeita, na busca da identidade. Contudo, ao lado dela, de
senvolve-se uma segunda personagem, o porco Porto, que aparece já
Como e Pot que Ler
a L.itet atul a Infantil
rasileira
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no primeiro capítulo e cuja história denota maior complexidade inte
rior: não se conforma com a aparência, a ponto de fugir de casa alte
rar o nome e tentar escapar a seu destino.
Sua trajetória corresponde à inversão desse projeto, pois ele tem de
trilhar o caminho de volta: ao contrário de Angélica, para o pequeno
porco, descobrir a identidade é aceitar-se como tal, e esse é um difícil
itinerário. Para tanto, a convivência com a cegonha rebelde é impor
tante, porque significa o encontro do amor e da autoconfiança. Ao
lado disso, Porto conhece seu pendor artístico, e a possibilidade de se
expressar por intermédio da criação dramática completa o processo de
liberação interior.
Bolsa
Amarela
de 1976, parece completar uma trilogia, porque
também narra o percurso de uma personagem na direção da segurança
pessoal e da criatividade. Contudo, processa-se uma alteração: Raquel
é uma menina, de modo que a criança passa a ser traduzida por uma
pessoa, e não mais por um animal, a simbolizar comportamentos ou
problemas íntimos. A mudança não tem apenas cunho externo, pois
representa outra forma de compreender o papel da literatura infantil e
ocorre
num
momento em que
os
escritores estão procurando alternati
vas eficazes para a consolidação da escrita para crianças.
Clarice Lispector, por exemplo, a quem se deve a projeção interna
cional do romance brasileiro nos anos 70, dedicou-se também à lite
ratura infantil e em
Vida
Íntima
de Laura
de 1974, vale-se de pro
cedimentos que a aproximam de Lygia Bojunga. A romancista lança
ra antes daquele livro, duas outras histórias - O Mistério do Coelho
Pensante em 1967, e Mulher que Matou
s Peixes
em 1968 - que,
conforme sugerem os respectivos títulos, tinham ligação com a litera-
tura policial, ainda quando são os dilemas da narradora adulta que
prevalecem, sobretudo no segundo texto.
Vida
Íntima de
Laura
e o livro subseqüente,
Quase de Verdade
de
.1978, portam características distintas, afinadas, por sua
vez
ao que
Lygia Bojunga vinha fazendo até então: as personagens principais são
animais domésticos - Laura é uma galinha, e Ulisses, de Quase
de
Ver-
dade um cachorro - que vivem dilemas interiores, conforme um pro
cesso de deslocamento de propriedades humanas para um bicho.
Edy Lima, que, nos anos 70 e 80, celebrizou as histórias protagoni
zadas por uma vaca voadora e a família com que o animal extraordi
nário vivia, deu continuidade ao pendor que a literatura infantil vinha
assumindo no período. É sob esse aspecto que se pode entender por
que
Bolsa
Amarela
altera os padrões vigentes e impõe outros modos
de trabalhar com livros para crianças.
Não
que crianças não pudessem ser personagens de livros para o
público infantil. Afinal, Monteiro Lobato tornou famosos
os
meninos
Pedrinho e Narizinho, ainda que eles disputem a primazia das narra
tivas com os bonecos, Emília e Visconde de Sabugosa. Mas Lobato
não introduz o leitor na intimidade daquelas figuras, a não ser para
entender suas idéias, como
faz
em
Memórias
de
Emília ou
em
Chave
do Tamanho.
Bolsa
Amarela comporta essa inovação: são as insegu
ranças e temores de Raquel que sobem para o primeiro plano, tradu
zidos por suas palavras
ou
pelos objetos que a menina, compulsiva
mente, carrega consigo, dentro da bolsa do título da obra.
É como se Lygia apontasse ser possível desvendar o universo inte
rior da criança, por esse ter um conteúdo próprio, com imagens e aspi
rações, impossíveis de serem simplesmente reduzidas a noções de psi-
4
Como
e Por
que
le r
a
Literatura Infantil Brasileira
5
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 38/93
cologia infantil ou de psicanálise. A via de criação inaugurada pela
escritora revelou-se fértil, vindo a ser enriquecida com a contribuição
de outras notáveis escritoras.
Ana Maria Machado, de História Meio ao Contrdrio lembrada antes,
é uma das responsáveis pelo aparecimento de personagens que se apro
ximam de Raquel por força de sua natureza e da temática desenvolvida
nos livros em que aparecem. Seguidamente essas personagens perten
cem ao sexo feminino, mas referir-nos-emos primeiro a
um
menino.
Trata-se de Lucas, o garoto que espiava para dentro , no livro
publicado em 1983. Embora acostumado a prestar a atenção em tudo,
ele prefere mesmo o mundo imaginário em que se isola, já que esse lhe
apresenta uma realidade muito melhor e superior: a rede onde se balan
ça transforma-se no barco que enfrenta
um
mar agitado ou perigosos
piratas; se fica junto à janela, pensa viajar em naves espaciais a distantes
galáxias, e assim sucessivamente. A fantasia suplanta a realidade, que
Lucas povoa com
um
amigo imaginário, Talento, com quem dialoga,
confessando o plano de converter-se em personagem de conto de fadas.
Mesmo imaginário, Talento não
se
submete
ao
programa bolado
por
Lucas e acaba conduzindo-o de volta à realidade, ajudando-o a
superar a solidão e a amadurecer. Por isso, quando o menino recebe
um
cãozinho, acaba dando-lhe o nome do amigo fantástico, como que
expressando o reconhecimento pela ajuda prestada.
O Menino que Espiava pra
Dentro
fala da criança urbana, que, em
bora apoiada pela família, carece de espaço para expandir a imagina
ção. Contudo, a narrativa não rejeita as soluções buscadas por Lucas,
já que correspondem a tentativas de ultrapassar etapas e aperfeiçoar-se.
Por isso, o amigo imaginário denomina-se Talento, sinalizando não
apenas a engenhosidade com que Lucas dá vazão a seu sonho e aos
modos de resolver problemas; indica também que o processo desen
volve-se de modo gradual, razão por que o protagonista decifra o
nome do companheiro de maneira diversa: para ele o amigo tá
lento ..
,4
isto é ele tem um ritmo demorado, sintoma do crescimen
to peculiar
à
personagem central.
Está em questão nesse livro, como em Bolsa
Amarela
de Lygia
Bojunga, a tradução do mundo interior de uma criança segundo um
procedimento narrativo que facilite a compreensão, pelo próprio lei
tor, daquilo que é representado. O escritor precisa mudar o registro,
sem cair em simplificações reducionistas, nem tender
à
transmissão
de lições, seja para a criança, seja para o adulto que igualmente conhe
cerá a história. O
Menino que Espiava
pra Dentro
lida com
esses
ingre
dientes e resolve-os muito bem: Lucas é ensimesmado e gosta de viver
aventuras fantásticas, e ninguém pode condená-lo por causa disso.
Quem lê a história, entende a trajetória vivida pela personagem, tra
jetória que ocorre apenas na intimidade do garoto; e identifica-se com
o herói, seja por experimentar comportamento similar, seja, quando
for o contrário, por conviver com alguém com
essas
características.
O Dia de
Ver
Meu Pai de Vivina de Assis Viana, trabalha com in
gredientes semelhantes, para abordar questões mais domésticas. Outra
vez a narrativa conta com
um
menino no papel de personagem prin
cipal, Fabiano, que narra em primeira pessoa, como faz Raquel em
Bolsa
Amarela. O tema da história talvez tenha perdido a contundên
cia com o passar do tempo: em 1977, quando apareceu a primeira edi
ção do texto, o divórcio ainda não constituía matéria do Código Civil
7 Como e Por
que Ler
iI
Literatura
Infant i l rasileira
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 39/93
Brasileiro, e a separação dos casais era considerada um problema, com
conseqüências para a vida dos filhos e da família em geral.
Transcorridos 25 anos e consolidada a emenda constitucional que
aprovou a lei do divórcio, o assunto pode parecer ultrapassado
ou
ba
nal. Não, porém, o livro de Vivina de Assis Viana, porque, ao atribuir
o principal papel narrativo ao menino que percebe
os
sentimentos da
mãe, a situação da nova família do pai e a própria condição, a autora
faculta a imersão
no mundo
interior da personagem. O leitor acom
panha, pois, o amadurecimento da figura central, os percalços íntimos
e
sobretudo,
as
fragilidades. A exposição franca da alma do protago
nista faz com que a narrativa não perca vigor e atualidade, reforçando
o grupo de livros dedicados ao público infantil que não se preocupa
em
mascarar fatos da vida cotidiana, fornecendo ao leitor alternativas
de representação que coincidem com seu próprio mundo e atitudes, e
colaborando para a maturação dele.
Os livros relacionados até aqui podem sugerir que apenas persona
gens oriundos das camadas brancas e urbanas
podem
ocupar a posição
principal na narrativa. O urumim que Vírou Gigante de J oel Rufino
dos Santos, desmente essa impressão e representa
um
importante alar
gamento do tema.
O texto versa sobre a infância de T arumã, um índio que vive com
a tribo num cenário natural. Deste modo, a história de Joel Rufino
dos Santos rompe os limites da representação do mundo contíguo ao
do leitor, sugerindo elementos para
uma
ampliação das questões até
aqui descritas. A intriga, centralizada tão-somente no menino, desen
volve-se a partir do conflito decorrente das expectativas frustradas.
\
Almejando uma irmã,
Tarumã
é contrariado pelos pais; não desiste do
desejo, mas é obrigado a preenchê-lo por intermédio da fantasia:
o piá Tarumã queria que queria ter uma irmãzinha.
Mas não nascia. Ele pedia pro pai dele, pedia pra mãe. Até que desis
tiu.
Não
é bem que desistiu. Ele pegou a imaginar como seria a irmã
zinha que
ele
queria. Imaginou, imaginou, imaginou.
5
A imaginação ocupa, neste primeiro momento, o lugar do desejo
insatisfeito; porém, ao contrário do que ocorre ao Lucas que espiava
para dentro , T arumã se frustra, ao tentar converter a fantasia em rea
lidade. Não consegue convencer os amiguinhos de que a irmã existe,
pois eles descobrem a mentira do menino. Envergonhado, foge pelo
mundão afora, sem coragem de voltar (p. 20); chega junto ao mar
e sofre
uma
transformação:
Na beira-beira do mar, Tarumã deitou de costas. Esticou os pés, as
mãos, o pescoço. Virou
um
gigante.
Quando você chega no Rio de Janeiro, você não vê um gigante deita
do, não? Os pés são o Corcovado.
É
Tarumã. Bem em cima da cara
dele tem uma estrela. Mas não é estrela não, gente. O que Tarumã está
olhando é a irmãzinha dele.
6
Como
se
vê, neste segundo momento, a fantasia retoma, agora
reforçada: o menino se confunde
à
natureza onde residia, agiganta-se
e encontra a irmã com que sonhava. A metamorfose
em
gigante tem,
pois, sentido simbólico: a criança cresce e se engrandece, quando ruma
na direção da realização dos anseios interiores, independentemente da
18
Como
e
Por
lUe
Ler
a
Literaturél Infélntil
B r l ~ i i e i r a
19
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 40/93
colaboração dos demais - sejam outras crianças
ou
adultos compa
nheiros
ou
parentes.
Tal
como acontece a Lucas o socorro não pro
vém de fora mas da interioridade do menino que aprende a conviver
com os desejos mesmo quando insatisfeitos pelos outros.
Narrativas como Bolsa
Amarela
O
Menino que
Espiava
pra Den
tro ou
O
Curumim que Virou Gigante
preferem focar o
mundo
interior
da criança para dar vazão às fantasias compostas de vontades irrealiza
das reprimendas recebidas de fora e ânsia de liberação. Nenhuma delas
contraria o comportamento e
as
decisões das personagens mesmo
quando podem parecer escapistas conforme exemplifica a solução
encontrada
por
Tarumã. E todas julgam válido o
modo
como
os
pro
tagonistas encontram saídas - sejam
as
imaginárias como procedem
Lucas e o indiozinho sejam
as
artísticas experimentadas por Angélica
e Porto
-
porque resultam da int imidade dessas pessoas e não de
sugestões provindas de outros sejam
esses
grandes
ou
pequenos. Por
isso o final dos enredos coincide com um tipo de amadurecimento
simbolizado na obra de Joel Rufino dos Santos pela metamorfose do
garoto em gigante.
O trajeto que
se
desenha aqui começou com a referência a sapos e
a porcos passando depois a outros seres não humanos como Flicts
humanizados como a cegonha Angélica e os amigos do Pererê
ou
humanos propriamente ditos como os meninos e meninas citados an
tes. Há
os
domésticos e conhecidos como os cães de
Os
Colegas
ou
as galinhas de Vida Íntima de Laura mas
há
igualmente os selva
gens ou repulsivos. A protagonista de
Lúcia á Vou-Indo
uma peque
na
lesma
na
obra de Maria Heloísa Penteado pode pertencer
à
últi
ma espécie lembrada mas não
se
mostra menos interessante.
A lesma do título está ali porque o texto deseja focalizar determina
do comportamento
infantil
a lentidão própria
às
crianças com difi
culdades motoras. E pode fazê-lo de
modo
espontâneo porque ape
sar
da
desvantagem e da forma
do
animal o tema aparece segundo
uma
perspectiva favorável
à
protagonista apresentando a morosidade
como decorrência esperável de sua natureza física:
Lúcia Já-Vau-Indo não sabia andar depressa. De maneira nenhuma.
Andava devagar
falava
devagar chorava e ria devagarinho e pensava
mais devagar ainda. Muito natural pois
ela
era uma lesma?
A conversão do possível deficiente em herói sem considerar
suas
carac
terísticas como prejuíw comprova
ser
uma estratégia
eficaz
pois evita a dis-
criminação ou o descrédito da protagonista sem ter de contradizer
suas
qualidades específicas. Sob este aspecto Maria Heloísa Penteado aborda
um assunto complexo de modo simples usando a estratégia da fábula com
seu alto poder de sintetização para alcançar um resultado de alto
nível.
Dos animais
aos
humanos e retornando a
eles
a literatura infantil bra
sileira deu
um
grande passo ampliando
as
possibilidades de representa
ção do
mundo
interior da criança sem ter de renunciar à comunicabili
dade com o leitor
nem
ter de apelar ao socorro dos adultos
na
condição
de auxiliares mágicos
ou decifradores dos sentidos ocultos dos textos.
otas
Ricardo Cassiano. Martim Cererê. Rio de Janeiro: José Olympio 1972. p. 163.
2 Ziraldo. Flicts. 16. ed. São Paulo: Melhoramentos 1984. s. p.
3 Bojunga Lygia. Os
Colegas.
50. ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga 2004. p.
9.
80
Como e Por que t r
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4
Machado Ana Maria. O
Menino que
EspialJa
pra
Dentro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira
1983.
5 Santos Joel Rufino dos. O
urumim que
Virou Gigante. São Paulo: Ática 1980. p. 3 e 5
6
Id p
22-24.
7
Penteado Maria Heloísa.
Lúcia
d Vou-Indo. 4. ed. São Paulo: Ática 1980. s páginas não
trazem números.
.
G ROT S
QUE
MUD M
O MUNDO
Personagens
femininas no papel de figuras centrais não são novida
de na literatura infantil podendo-se até dizer que foi nos livros para
crianças que moças e mulheres alcançaram proeminência fama e po
pularidade. Uma das mais antigas é Chapeuzinho Vermelho que abre
os Contos id Mamãe
Gansa publicados em 1697 por Charles Perrault
na França. A mesma garota reaparece nos contos de fadas recolhidos
pelos irmãos Grimm que colocam ao lado de figuras originárias do
livro de Perrault - a Bela Adormecida do Bosque e Cinderela sendo
provavelmente as mais conhecidas - outras meninas que
se
tornaram
famosas como a Maria irmã de João e vencedora da Bruxa
Má
que
almejava devorar a dupla.
No
Brasil foi Monteiro Lobato - de novo ele - quem conferiu pri
meiro plano a personagens femininas. Lúcia a Menina do Narizinho
82 Como POi que lei
a
Uteratura
Infantil
Brasileira
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 42/93
Arrebitado, nomeou o livro de estréia do escritor paulista, em 1921;
mas foi Emília quem tomou conta da saga do sítio do Picapau Ama
relo, boneca que, de certo modo, virou gente, liderou aventuras por
todas
as
partes do
mundo
(veja-se Geografia de Dona
Benta
de 1937)
e varou o tempo, deslocando-se para a Antigüidade clássica com a
maior desfaçatez (vejam-se, neste caso, O Minotauro de 1939, e Os
Doze Trabalhos
de
Hércules de 1944).
Herdeira de Emília talvez tenha sido Clara Luz, a fada que tinha
idéias e comanda o livro com esse titulo. Outra figura feminina impor
tante, entre as que apareceram nas obras mencionadas em capítulos
anteriores, é a garota que desafia o reizinho mandão, no texto de Ruth
Rocha.
Mulheres fazendo história parecem não ser novidade, o que coloca
ria sob suspeita o tema doravante proposto. Há porém, uma diferen
ça nas tramas destacadas a seguir: as personagens femininas relaciona
das antes têm algumas particularidades que as tornam mágicas, como,
por exemplo, a Chapeuzinho que dialoga com o lobo, a Cinderela que
conta com a ajuda de uma Fada Madrinha, a Bela, que, embora tenha
permanecido dormindo por cem anos, não envelhece. A magia é igual
mente compartilhada por Clara Luz, fada de nascença; e o próprio
Lobato considerou Emília
uma
fada moderna , titulo de
uma
peque
na narrativa incluída no volume das
Histórias Diversas.
As jovens que, daqui para a frente, passam para o primeiro plano, não
têm qualquer atributo mágico, não dispõem de auxiliares capazes de
ações
sobrenaturais, e vivem a mesma realidade cotidiana e problemáti
ca experimentada pelo leitor. Seu mundo é digamos, normal , igual ao
nosso, em que
os
bichos não falanl, mortos não ressuscitam, príncipes
não aparecem subitamente para mudar o curso da existência.
No
entan
to, elas são insubmissas e ensinam amigos ou companheiros a atuar de
maneira diferente, encontrando, assim, alternativas de vida ou compor
tamento que podem torná-los mais felizes ou, pelo menos, mais cons
cientes do que acontece em volta de
si.
aul
da
Ferrugem zul de Ana Maria Machado, pode ser o primei
ro exemplo do grupo de obras a referir. Obra publicada em 1979, é
contemporânea de História Meio
ao
Contrdrio já mencionada; com
esta narrativa, compartilha um
fato de natureza sobrenatural, a saber,
o aparecimento das manchas azuis na pele de Raul, o protagonista do
entedo.
As
manchas têm, contudo, caráter alegórico, porque represen
tam a falta de ação do menino, quando se depara com uma injustiça
ou uma
atitude que não considera correta. Raul, da sua parte, não
reage, aceitando, de forma conformista e como
se
estivesse enferruja
do, o que vê a seu redor, embora fique incomodado com o que acon
tece consigo.
A primeira tentativa corresponde à busca de uma solução mágica
para
os
problemas que testemunha, decisão, de certo modo, coerente
com o universo da literatura infantil precedente ao lançamento do
livro. A conversa com o Preto Velho, porém, não o ajuda, ao contrá
rio do que se passa quando
se
depara com Estela, a menina que enfren
ta
os
garotos mais velhos na defesa de seus principios. A conversa com
a personagem feminina modifica o comportamento de Raul, que, em
situação similar, também trata de defender os mais fracos, ainda que
arriscando a pele. O resultado é o desaparecimento das manchas, re
sultado . que representa a recuperação da capacidade de protesto e
revolta, até então reprimida pelo herói.
84
Como e Por flue ter
a
literatura Infanti l rasileira
85
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Em Raul da
Fenugem
Azu o lugar de protagonista é preenchido
pelo menino indicado no título; mas Estela prefigura o tipo de perso
nagem que predominará em vários enredos da literatura infantil: ainda
que pequena e oriunda das classes populares, ela não se deixa dobrar,
manifestando indignação e autonomia quando ameaçada pela força
ou pelo poder. Torna-se paradigmática não apenas de uma atitude,
mas também de um período, pois, à época, o país tentava liberar-se da
ditadura imposta pelo golpe militar de 1964.
As
pessoas, após 15 anos
de repressão, oscilavam entre conformar-se ou declarar rebeldia; Raul
representa a passividade inicial; Estela, da sua parte, a importância de
soltar a voz e expressar insubmissão. A passagem de Raul, de uma
situação para outra, indica
um
caminho, a ser perseguido não apenas
pelos leitores de literatura infantil, mas também pela sociedade nacio
nal. Por esta razão, Estela simboliza não apenas uma criança que não
teme o enfrentamento dos mais fortes, mas o fato de que, mesmo apa
rentemente fraco - afinal, ela é
uma
menina pobre
-
o ser humano
tem condições de mudar o mundo em volta, desenferrujando os
músculos e encarando a poderosa engrenagem que o oprime.
isa ia isa
Bel
de 1982, apresenta outro desenvolvimento para
as
questões relacionadas a personagens femininas. A narrativa abre com a
descoberta, pela narradora, Bel de uma foto da bisavó, Beatriz, que
passa a carregar consigo. Menina independente e criativa, Bel relata
as
andanças pela escola, amizades e interesses pessoais. Após o encontro
do retrato e a incorporação desse objeto a seu cotidiano, a garota conta
igualmente
as
conversas com a Bisa Bia, interlocutora que passa a inter
vir em seu comportamento, chamando a atenção da narradora, que,
segundo ela deveria adotar atitudes mais compatíveis com a condição
feminina.
Do
diálogo entre a bisavó e a bisneta, nasce o cotejo entre
dois tempos e duas visões da mulher, a antiga e convencional, represen
tada por Bia, e a moderna e descontraída, encarnada por Bel.
A originalidade
da
obra nasce da introdução de uma terceira
perspectiva, a da Neta Beta, de quem Bel é bisavó. A voz do futu
ro é interpolada à narrativa, para dar conta das transformações que
afetam as concepções da mulher. Assim, nenhum ponto de vista -
seja o do passado, o do presente
ou
o do futuro - é definitivo, con
clusão a que chega Bel, após a experiência tridimensional do
tempo.
isa ia isa
el é o que se poderia chamar um livro feminista, não
apenas porque traduz o processo de independência da mulher ao lon
go da história, marchando do convencionalismo e obediência de Bia à
completa auronomia e autoconfiança de Beta. Mas também porque
elege um ângulo feminino para traduzir
essas
questões, revelando
como o processo de liberação nasce de dentro para fora, não por ensi
namento, mas enquanto resultado das experiências vividas. o que se
passa com Bel, a menina que se transforma internamente, sem deixar
de ser ela mesma, ou, em outras palavras, o que ela poderia ser, consi
derando as coordenadas de seu tempo.
Nos dois livros tratados até agora, a narração incorpora elementos
de certo modo sobrenaturais:
as
manchas de Raul podem ser alegóri
cas porque não resultam de
um
problema dermatológico; e Bel tem
acesso
às
vozes do passado e do futuro por efeito de propriedades
extraordinárias, não em razão da invenção de um sistema novo de
transmissão de ondas magnéticas. Por outro lado,
os
acontecimentos
extraordinários são vividos internamente, e não presenciados por tes-
6
Como e Por que
ler
Literatura Infantil rasileira
7
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tem unhas, de mod o que não contaminam o contexto externo onde
vivem
as
personagens.
Assim, Raul da Ferrugem Azule Bisa
Bia
Bisa Bel ficam
na
frontei
ra entre o gênero realista e a literatura fantástica, afastando-se, de
uma
parte, das obras citadas no começo deste livro, plenamente integradas
ao
mundo
da magia, mesmo quando não
se
confundem com o conto
de fadas, como é o caso dos livros de Montei ro Lobato. De outra
parte, porém, não coincidem com o verismo, que evita qualquer com
promisso com elementos de existência puramente imaginária. Nas
obras examinadas a seguir,
as
meninas que
as
protagonizam aparecem
em
obras de teor realista, o que confere novas características ao tema
proposto e oferece outros desafios ao escritor.
A primeira dessas meninas aparece
em
obra de Fernanda Lopes de
Almeida, a autora que introduziu aos leitores brasileiros A Fada
que Ti-
nhaldéias.
Em
Curiosidade Premiada
de 1978, o inconformismo pe
rante
as
convenções e
as
regras
fixas
é manifestado
por
Glorinha, a me
nina que não aceita respostas definitivas, indagando sempre"por quê?",
após cada afirmação das pessoas
ou
depois de cada ação que presencia.
Graças
ao
comportamento permanentemente questionado
r
a menina
provoca modificações nas atitudes dos adultos, que, como
os
conheci
dos de Raul o da "ferrugem azul", estavam imobilizados pela apatia e
a resignação.
A personagem principal de
Nó
na
Garganta
(1980), de Mirna
Pinsk:y participa desse grupo de garotas que reage a situações e proble
mas que prejudicam a existência dos indivíduos. Mas a au tora introduz
um
dado ainda ausente: Tânia, a figura central da narrativa, é negra,
representando, portanto, uma etnia que, até então, não tinha tido
oportunidade de protagonizar uma narrativa para crianças.
Não
que
pretos não tivessem aparecido em livros destinados ao público infantil;
porém,
em
posição preferentemente secundária, como
Tia
Nastácia, no
sítio do Picapau Amarelo,
ou
Estela, em Raul da
Ferrugem
Azul
Tânia representa, pois, importante mudança, mas não apenas por
causa da origem étnica, e sim por experimentar problemas com
os
quais qualquer leitor
se
identificaria. Preocupada com a aparência,
como ocorre a todo adolescente,
Tânia
sente-se infeliz; a família não
consegue transmitir-lhe a sensação de segurança de que careceria;
por
isso
precisa encontrar dentro de
si os
elementos necessários
ao
forta
lecimento do ego, que lhe facultam pronunciar a frase mais importan
te do livro, colocada ao final:
E pensou: puxa, como eu sou bonita
E disse alto:
_
Eu sou bonita Como eu sou bonita 1
Elegendo a representação de cunho realista, Eliane Ganem,
em
Coi-
sas
de Menino (1980), centraliza o enredo da narrativa na ação de Cla
rice, que, como
as
garotas citadas antes, não aceita
as
regras domésti
cas. O conflito familiar é apresentado de modo mais contundente
nesse livro, que documenta brigas entre irmãos e conflitos entre pais e
filhos. O cotidiano da classe média compõe o pano de fundo da intri
ga facultando
um
reconhecimento mais fácil do assunto de que
se
fala
e que, provavelmente, o leitor - criança ou adulto - experimenta.
Esse horizonte burguês é contraposto, na obra, a outro contexto fami
liar, o do grupo favelado a que pertence Nezinho, que
se
converte no
Como Por
que leI
a
Literatura
Infantil Brasileira
9
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pivete Olho de Boi e que Clarice conhece primeiro por acaso depois
porque deseja ajudar o menino. A atuação da garota tem pois um esco
po mais amplo porque ela deseja intervir não apenas nos comportamen
tos socialmente aceitos mas na organização
da
sociedade. Acaba fracas
sando porque agora não se trata apenas de mudar internamente como
ocorre a Tânia criação de Mima Pinsky; é preciso interferir no sistema
social econômico e ideológico que rege a vida nacional.
Fosse Clarice bem-sucedida o livro falsearia a realidade brasileira e
de certo modo ofenderia o bom senso do leitor. A opção pela escrita
realista impõe limites à criação literária; mas ao mesmo tempo pode
ampliar as dimensões do mundo oferecido ao conhecimento do desti
natário. O fato de que aumentou o número de Olhos de Boi na socie
dade comprova que Eliane
Ganem
estava
no
caminho certo:
as
Cla
rices se revoltam e tentam mudar; mas as fronteiras a ultrapassar são
mais rígidas que
as
convenções restando a conscientização do proble
ma bem como a denúncia e legando para o conjunto da sociedade o
convite
à
busca de soluções.
Da Clara Luz de Fernanda Lopes de Almeida a Clarice de Eliane
Ganem a literatura infantil brasileira viveu uma década de mudanças
lideradas
por
representantes do sexo feminino que reproduziam
no
âmbito
da
narrativa destinada a crianças e adolescentes o que se pas
sava na sociedade e na cultura.
Em
ambos os casos as mulheres reivin
dicavam reconhecimento e retribuíam com ações transformadoras. A
literatura infantil não apenas mostrou-se coerente com o que ocorria;
ela assumiu
em
certo sentido papel de vanguarda pois foi naquele
gênero de livros que apareceu o maior número de escritoras e de per
sonagens femininas no lugar de protagonistas.
Poder-se-ia dizer que
foi
uma revolução em dobro: a literatura se
modificou e isso ocorreu por força da liderança de meninas e moças.
Fadadas pela tradição a traduzir fragilidade e dependência
elas
come
çaram por romper esse padrão; e acabaram por introduzir outro para
digma na condição de porta-vozes da liberdade e da rebeldia mesmo
quando conscientes de que os limites acabariam por dobrar e vencer
algumas das iniciativas tal como acontece a Clarice
em
Coisas de
Menino O insucesso parcial não invalidou a luta determinando a
consolidação do tema e do tipo de personagem feminino de que fala
aqui até os dias de hoje.
Notas
1
Pinsky Mima.
ó
na Garganta
2.
ed. São Paulo: Brasiliense 1980. p. 66.
a
Literatura Infantil
Brasileira
91
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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Dos
CONTOS TR DICION IS
O FOLCLORE
o
primeiros livros que, quando foram editados, destinavam-se
principalmente às crianças continham histórias recolhidas da tradição
oral e redigidas agora com o olho nas potencialidades do novo públi
co. Originalmente, narrativas como Chapeuzinho Vermelho
ou
João e Maria eram ouvidas por adultos, que as herdaram dos ante
passados, também maiores de idade. Desse tempo,
os
textos guardam
vários resíduos, tais como:
- a ambiência rural das histórias, pois quase todas as personagens
vivem
ou
pertencem
ao
campo;
- a alusão a animais, como o lobo, por exemplo, que deviam cau
sar medo nas populações que moravam em regiões isoladas, como
ocorre à mãe e à avó de Chapeuzinho;
- a ameaça da fome e da morte, como experimentam as duas crian
ças abandonadas pelos pais na floresta.
Dois outros componentes pertencem a esses relatos, conhecidos por
contos de fadas
Um
deles é a violência, pois, além dos perigos, que
nem sempre
se
concretizam (Chapeuzinho sobrevive ao lobo, e João e
Maria escapam da bruxa), presenciamos acontecimentos decorrentes
do uso da força, movidos seja por maldade, seja por necessidade de
sobrevivência. Envenenamentos, devoração de
seres
humanos por ani
mais, automutilação, dilaceramento de órgãos - eis algumas das ações
que encontramos em contos como Branca de Neve , Chapeuzinho
Vermelho , Cinderela e A Bela Adormecida , provavelmente as his
tórias mais conhecidas do gênero.
O outro fator advém da presença da magia, resultante da ação de
seres dotados de propriedades sobrenaturais, como fadas, bruxas, feiti
ceiros.
Nem
sempre o componente mágico coincide com uma perso
nagem; pode provir, por exemplo, do fato de animais falarem, como
em Chapeuzinho Vermelho , das metamorfoses experimentadas por
seres vivos, como em
O
Príncipe Sapo ,
ou
do ambiente fantástico
por onde circulam heróis e antagonistas, como o palácio encantado de
A Bela e a Fera .
Ambos os componentes, decisivos para a constituição do conto de
fadas, já foram objeto de contestação: a violência por se evidenciar ina
dequada para
os
leitores, supostamente ainda pouco habituados às
rudezas da existência humana; a magia, por parecer uma alternativa
compensatória
à
fragilidade e inferioridade dos heróis. Incapazes de
enfrentar perigos e desavenças, eles dispõem da alternativa de apelar
9
Como e
Por
que
ler
a Literatura Infantil Brasileira
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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para a ajuda de auxiliares dotados de habilidades mágicas, safando-se,
assim, das piores encrencas.
Em nossos dias, esse posicionamento não é mais aceito, porque, se
é certo que a violência efetivamente se verifica nos contos, sabe-se que,
por outro lado, ela não atinge a personagem, que, de algum modo,
não apenas escapa do perigo, como acaba lucrando algo com isso: João
e Maria descobrem um tesouro, a Branca de Neve encontra o prínci
pe e assim por diante. Por sua
vez
a magia não produz dependência,
como se poderia pensar. Bruno Bettelheim, em Psicandlise do Conto
de
Fadas procurou deixar claro como o auxiliar mágico nunca perde
a função de coadjuvante, importando mesmo a transformação por que
passa o herói
na
direção da maturidade. Assim,
os
contos de fadas aca
bam
por
reforçar a auto-imagem do leitor, colaborando para seu cres
cimento interior e autonomia, o que justifica não apenas a populari
dade que detêm até nossos dias, como também a permanência das
figuras principais, convertidas, de certo modo, em simbolos de com
portamentos e idéias, ultrapassando, portanto, o âmbito primeiro den
tro do qual foram criados.
Não por outra razão a história da literatura infantil brasileira recor
reu
à
temática, figuras e processos do conto de fadas desde seus come
ços. Figueiredo Pimentel valeu-se de um acervo conhecido para pro
duzir compilações como Contos
da Carochinha
e
Histórias
da vozi-
nha
que se situam nas bases
da
trajetória
da
produção nacional volta
da à criança. Contudo, na seqüência,
os
escritores começaram a pes
quisar caminhos menos dependentes da tradição européia, como que
nacionalizando a vertente. Afinal, se esse veio se consolidou
na
Europa
graças ao olhar i r i g i ~ à matéria folclórica, os autores, com razão,
resolveram encaminhar a atenção para mesmo elemento, só que pri
vilegiando o que estava enraizado
em
nossa própria história.
Figueiredo Pimentel, ainda no século XIX, transpôs para coletâneas
aJgumas dessas narrativas. Em 1885, Silvio Romero, interessado em
valorizar o folclore nacional, publicara Contos Populares do Brasil anto
logia que reunia as várias expressões da tradição oral do pais.
Não
cons
tituia, por uma grande dificuldade, apropriar-se desse material e vertê
lo
para um tipo de linguagem adequado
aos
pequenos leitores.
Não
é contudo, Pimentel quem mais se apóia na pesquisa de Ro
mero, e sim Monteiro Lobato, cujas Histórias
de Tia
Nastdcia em
1937, estão profundamente calcadas nos
Contos Populares
do
Brasil
Curiosamente, porém, Lobato não é grande admirador de nosso fol
clore, posição que transfere aos habitantes do sitio do Picapau Ama
relo. Liderados por Emilia, todos eles declaram insatisfação perante a
ingenuidade
da
expressão popular, que consideram atrasada e carente
de imaginação.
Na época
em
que publicou o livro, provavelmente Lobato tinha
razão. O Brasil vivia um periodo de euforia nacionalista, estimulado
pelo Estado Novo, regime ditatorial imposto por Getúlio Vargas. O
governo incitava a propaganda de elementos nacionalistas do passado,
incluindo
ai
as criações populares, consideradas expressivas da brasili
dade. O procedimento, emanado do Estado, aproveitava
as
conquis
tas do Modernismo, que levara os artistas brasileiros a procurar ele
mentos em nossa cultura não (ou menos) contaminados pela influên
cia européia, para torcê-las a seu favor. Assim, o governo tornou-se um
importante fomentador da cultura, desde que ela se mantivesse sob
controle e ainda por cima, tomasse o partido de suas idéias.
94
Como e Por que le r
I literatUi il
Infantil Ilrasíleit <I 95
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Nem todas as obras de literatura infantil, que se valiam do folclore
ou de histórias originárias da tradição popular, caminhavam na dire
ção desejada pelo poder dominante. Porém, elas reproduziam uma
visão conservadora da cultura popular, mesmo quando os autores
tinham participado direta ou indiretamente do movimento modernis
ta, como se verifica em coletâneas como as deJosé Lins do Rego,
His-
tórias
da
Velha Totônia (1936), ou de Luís Jardim, O BoiArud 1940).
Lobato manifestou contrariedade em relação às orientações dadas à
representação do povo , criticando a leniência e benignidade com
que sua criatividade e personagens eram entendidos. Talvez Histórias
da
Tia
Nastdcia, encarado na perspectiva da correção política , im
portante
aos
olhos de hoje, pareça preconceituoso e cruel; mas, andan
do
na
contramão das idéias vigentes no final da conturbada década de
1930, talvez Lobato tenha-se arriscado mais e desafiado com mais
vigor o poder do Estado que seus confrades, ainda quando as persona
gens populares encontráveis nas obras
desses
pareçam ter sido objeto
de maior simpatia e consideração.
As
décadas subseqüentes não trouxeram contribuições dignas de
menção, exceto, é bom lembrar, as Histórias de
Alexandre,
já comen
tadas, de autoria de Graciliano Ramos.
Um
nome, porém, não pode
ser esquecido, Orígenes Lessa; contudo, as narrativas protagonizadas
pelo moleque
jabuti
(animal que veio a constituir um dos principais
ícones da modernidade cultural brasileira, como já
se
observou),
datam dos anos 70, aparecendo em contexto diferente daquele experi
mentado p or Monteiro Lobato, por exemplo.
O fato é que também no que diz respeito à tendência de que
se
fala
aqui, foi preciso aguardar a chegada da geração de 70. Grande parte
dos escritores orientou-se para a temática urbana, que toma feições
bem diferenciadas, seja por valorizar o mundo interior da criança, seja
por atribuir
opapel de protagonista a uma criança decidida, seja por
discutir problemas contemporâneos da sociedade nacional. Contudo,
o folclore se apresentou alternativa atraente, e alguns escritores soube
ram extrair o melhor das histórias originalmente transmitidas por in
termédio da oralidade, fertilizando o veio até então pouco explorado
na literatura infantil.
Cabe destacar primeiramente Joel Rufino dos Santos, que, com
História
de
Trancoso,
abriu, em 1983, a Coleção Curupira, cujo obje
tivo
foi
reunir histórias do fabulário popular brasileiro. Gonçalo Fer
nandes Trancoso (1515-1596) foi
um
escritor português que juntou,
em coleção famosa, narrativas lusitanas e ibéricas que circulavam oral
mente na Idade Média. A denominação, história de trancoso , supe
rou, porém, o autor da antologia, passando a designar contos de ima
ginação e exagero, em que o extraordinário sobrepuja o verídico ou o
verossímil; assim, com o passar do tempo, o substantivo próprio tor
nou-se substantivo comum.
Ao retomar o acervo de narrativas, J oel Rufino dos Santos não
se
contentou com a denominação em uso e anexou a ela um significado
a mais. Conforme define na última página do livro, T rancoso corres
ponde a
um
herói popular que
se
vinga dos ricos e poderosos através
da astúcia'? como que fazendo em parte o caminho de volta, pois o
substantivo comum torna-se, outra vez nome próprio.
A obra segue estrutura narrativa linear, contando como um fazen
deiro e um padre, depois de desdenharem a companhia e a ajuda do
matuto Trancoso, acabam enganados por ele que se adona do único
96
Como e Por que ler
pedaço de comida com que o grupo de andarilhos é contemplado.
a literatura Infantil Brasileira
97
livros, como
Festa no Céu
(1980), além
das
outras narrativas que com
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Reconhecem-se,
no
texto, elementos característicos do relato popular:
o herói é pobre e feio:
O
roceiro tinha
um
só dente na frente. E cara
de bobo'? conforme descreve o narrador, definição que não apenas
aponta, de imediato, para
um
tipo de representação das
classes
mais
humildes da população brasileira, como t ambé m para sua inferiorida
de e submissão. Por sua vez,
os
adversários, que hostilizam o roceiro,
são grandes e fortes, simbolizando
os
grupos elevados,
no
plano social
o
fazendeiro) e político
o
padre). Contudo, aquele, enganando-os de
mod o sutil e inteligente, vence
os
adversários, embora
esses se
julguem
superiores ao matuto. Assim, o menor acaba suplantando o aparente
ment e maior, valendo-se da astúcia e provando que, apesar da exterio
ridade à primeira vista rebaixante, está acima dos outros.
Como
é próprio ao relato de extração popular, História
de Trancoso
sugere que não
se
subestimem
os
pequenos, sejam pobres, homens do
campo
ou
crianças, figura que o roceiro igualmente metaforiza. Desse
modo, a narrativa, de
um
lado,
mantém
as características do gênero de
onde provêm, exibindo
as
oposições entre o pobre e o rico, e entre o
opressor e o oprimido, oposições que
se
resolvem quando o menor
derrota o maior; sob
esse
aspecto, ela
se
mostra fiel às origens.
De
ou
tro lado, ela transita com sucesso para a literatura infantil, porque pro
põe, como figura central, uma personagem fragilizada
por
sua condi
ção social, mas que, graças
às
qualidades intelectuais, pode ultrapassar
os
problemas, encontrando soluções adequadas para
eles.
História de
Trancoso
não é o único texto em que Joel Rufino dos
Santos transpôs a tradição popular brasileira para a literatura infantil.
Histórias bastante conhecidas foram igualmente assunto de
um dos
põem o ciclo da Coleção Curupira. O mérito está
em
não ceder ao
apelo de repetir experiências convencionais, mas corriqueiras,
nas
quais
um
narrador que representa o povo e mantém-se subalterno expõe
os
relatos a uma platéia constituída de representantes - crianças
ou
adul
tos - originários dos grupos dominantes.
Mesmo Mon teiro Lobato recorreu a
esse
expediente narrativo, que
assimila a inferioridade social do narrador à ingenuidade e simplicida
de das histórias. Joel Rufino inverte o modo de contar as histórias,
alcançando efeitos originais, de
um
lado, por não minimizar
as
perso
nagens e
os
temas das histórias, de outro, por modernizar a linguagem
e a maneira de transmiti-las.
Não
foi esse o único autor a resgatar a validade e riqueza do folclo
re
brasileiro. Hatoldo Bruno,
em
1979, publicou
O
Misterioso Rapto
de Flor-do-Sereno
história, narrada nos moldes da literatura de cordel
nordestina, do resgate da amada de
Zé
Grande, o herói que salva a
moça das garras do demônio.
Da
sua parte, Ricardo Azevedo, ao igual
mente
se
abeberar dos valores populares, propôs outro modo de lidar
com ele,
em Meu
Livro
de Folclore
(1997).
O termo folclore, de que
se
vem falando até aqui, pode ser enten
dido, de uma parte, como Conjunto de costumes, lendas, provérbios,
manifestações artísticas em geral, preservado, através da tradição oral,
por
um
povo , quanto como a ciência
das
tradições, dos usos e da arte
popular de
um
país
ou
região , conforme define o dicionário.
Presume,
por uma parte,
um
patrimônio popular já existente, veiculado sobretu
do pela forma oral, composto principalmente
por
contos, como se
enfatizou até agora, mas também
por
frases, canções, danças, atitudes;
omoe Por que
ler
de outra parte, supõe a descrição desse material, responsabilidade assu
porém, que manifestações populares associadas a outras regiões geográ
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mida
por uma
ciência e pelos estudiosos que se dedicam a ela, como
fizeram, no Brasil, por exemplo, Mário de Andrade ou Luís da
Câmara Cascudo, modernistas que nunca deixaram de examinar com
carinho nossa cultura e tradições.
Ricardo Azevedo, ao propor o Meu Livro
de
Folclore coloca-se entre
essas duas opções: incorpora, na obra, a produção folclórica em todas
as suas perspectivas, a saber, contos, adivinhas, trovas, trava-línguas,
parlendas, ditados;
por
outro lado, sugere que o material colocado
no
texto corresponde à sua versão do folclore, vale dizer, a seu modo de
encarar a tradição popular. O resultado fica, por conseqüência, à meia
distância entre reprodução e criação, liberando o escritor, de um lado,
da exigência de novidade
ele
pode reproduzir frases feitas, sem ser
condenado por isso), de outro, do quesito observância rigorosa ao
original , condição imposta habitualmente aos pesquisadores
da
cul
tura do povo.
Meu
Livro
de Folclorepode ser valorizado por suas facetas: para o lei
tor que desejar buscar nele material folclórico autêntico e em estado
praticamente puro , encontra as frases feitas, os ditados populares, as
histórias várias
vezes
narradas por escritores de todo tipo, como a do
macaco e a velha, fábula clássica do imaginário nacional. Para quem
aspirar a
um
texto criativo, bem escrito e divertido, dirigir-se-á à adi
vinhas, aos contos variados, ao estilo empregado pelo narrador.
Na busca da tradução, para a literatura, da expressividade popular e
anônima, reproduzindo, de certo modo, o processo ocorrido na Eu
ropa, os livros para crianças enfatizaram contos, provérbios, adivinhas,
canções que jamais poderiam negar as raízes nacionais. Não quer dizer,
ficas oU outras etnias deixassem de ter lugar na literatura infantil pro
duzida em nosso país. Exemplar é o trabalho de Malba T ahan, pseudô
nimo do brasileiríssimo Júlio César de Mello e Souza (1895-1974),
res
ponsável por compilações de narrativas originárias da tradição oriental,
algumas extraídas dos contos das Mil e uma Noites outras não, como é
a provavelmente mais célebre obra sua, O Homem
que
Calculava de
1938. Seus livros ainda freqüentam, com sucesso, os catálogos das edi
toras nacionais, sobressaindo-se
Maktub
e
Lendas
do Céu
e
da Terra
publicados pela primeira
vez
em 1935.
Se, ao começar, este capítulo recapitulou o papel dos contos de
fadas na formação da literatura infantil européia, é preciso, ao termi
ná-lo, lembrar que aquele gênero passou
por
um
processo de renova
ção nas mãos de alguns escritores brasileiros. Chico Buarque de
Holanda fez sua
Chapeuzinho
Amarelo de 1979, desafiar o estereóti
po da menina medrosa, ao dessacralizar o lobo mau. Marina Cola
santi, com Uma Idéia Toda zul de 1979, e
Doze
Reis e a Moça
no
Labirinto do Vento de 1982, revolucionou a concepção sobre o conto
de fadas, sem deixar de ser fiel
às
características do gênero.
Antes de examinar uma das narrativas de Uma
Idéia
Toda
zul
cabe
diferenciar os livros de Marina Colasanti dos que foram mencionados
antes, escritos por Fernanda Lopes de Almeida, Ana Maria Machado,
Ruth Rocha e Cora Rónai. Estes foram elaborados a partir do mode
lo tradicional do conto de fadas, com o intui to de, valendo-se de uma
estrutura e personagens conhecidos, desmitificar modelos convencio
nais de comportamento e discutir temas políticos candentes e atuais,
num
período em que estavam em conflito a repressão oriunda do
sis-
1
Como e Por que Ler
tema governamental e a aspiração à liberdade e liberação por parte dos
a Literatura Infantil
IIrasileira
1 1
quer compensar a solidão da menina com presentes e riquezas. A garo
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membros da sociedade brasileira, representada, nos livros destinados à
infância,
por
crianças, principalmente. Marina Colasanti lida com o
conto de fadas em outra direção: adota as personagens tradicionais,
como reis, princesas, fadas, animais dotados de propriedades mágicas,
para extrair delas situações novas, que traduzam o mundo interior e os
desejos profundos dos seres humanos.
A Primeira Só , de Uma Idéia Toda
Azul
pode ilustrar o procedi
mento peculiar
à
escritora. O conto narra a história de uma princesa,
filha única de
um
rei que tudo faz para satisfazer suas vontades. De
sejosa de
uma
amiga, a menina ganha do pai
um
espelho onde encon
tra a companhia almejada. A imagem duplica a princesa, que, assim,
não
se
queixa mais da solidão. A alegria volta
à
casa real, até que o
espelho quebra; à beira de nova crise nervosa, a menina reencontra a
amiga multiplicada nos inúmeros cacos em que o vidro se estilhaçara.
De
novo, a princesa se satisfaz, mas
por
pouco tempo: descobrindo
que pode quebrar os pedaços em fragmentos menores, aumentando,
de cada vez o número de companheiras iguais, ela
se
põe frenetica
mente a esmigalhar
os
cacos, até nada mais restar, e ela deparar-se ou
tra vez com a solidão.
Rei e princesa pertencem ao universo do conto de fadas, embora,
nessa história, não apareçam figuras dotadas de propriedades extraor
dinárias,
nem
eventos maravilhosos, o que ocorre em Além do Basti
dor , outro conto de
Uma
Idéia Toda
AzuL
A ambiência, porém, absor
ve a magia própria ao gênero, conferindo a necessária verossimilhança
ao enredo. Por isso, o leitor aceita com facilidade a situação inusitada
da criança - filha única e caprichosa - e a preocupação paterna, que
ta, porém, só deseja encontrar a si mesma, sem
se
dar conta que a iden
tidade não
se
encontra na imagem espelhada, e sim na ruptura com o
narcisismo dentro do qual vive e que é estimulado pela família, repre
sentada pelo pai dadivoso.
Da
circunstância de que a busca fracassa,
resulta a falta de
happy end
na narrativa.
Recorrendo ao universo do conto de fadas, Marina Colasanti pode
contrariar a tendência ao conformismo que marca o gênero tradicio
nal. Renova-o, pois, ao mesmo tempo preservando conquistas obtidas
por
esse
tipo de história, assegurando, dessa maneira, lugar na trajetó
ria da literatura infantil nacional.
otas
Cf. Bettheim, Bruno.
A Psicanálise
dos Contos
de Fadas
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
2 Santos, Joel Rufino dos.
Rist6ria de Trancoso
11
José Flávio
de
Carvalho. São Paulo: Ática,
1983.
3 Id
p. 9.
4
Houaiss, Antônio e Villar, Mauro Salles. Dicionário
Rouaiss
da
Lingua
Portuguesa Rio de
Janeiro: Objetiva,
2001.
a Literatura Inhmti l rasileira
103
ao texto, mas importantes para o livro enquanto produto final desti
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ENINOS DE RU
o
enino e o Pinto
o
Menino
de Wander Piroli, provocou em
1975, ano em que foi publicado, celeuma até então rara
na
critica lite
rária nacional. O autor pertencia à geração dos contistas mineiros que
renovavam a ficção brasileira, ao lado de Luís Vilela, Elias José e Ro
berto
Drummond entre outros. Por sua vez a obra era lançada pela
Comunicação, de Belo Horizonte, cujo proprietário, André Carvalho,
alinhava-se
ao
grupo de escritores e intelectuais que compunha a linha
de frente do projeto de mudança e atualização da nossa literatura. Não
surpreendia o fato de a proposta de vanguarda
se
estender
à
literatura
infantil, cujo mercado consumidor crescia, mas que apresentava, aos
novos leitores, obras provenientes de décadas anteriores
ou
então com
prometida com uma ideologia passadista e conservadora.
A discussão motivada pela obra de Wander Piroli não ficou sem
frutos; e teve suas causas, duas delas decorrentes de questões externas
nado
ao
público leitor.
Uma
delas relacionou-se
ao
título, ambíguo,
porque indiretamente alude à genitália da personagem principal da
narrativa. A segunda decorreu do desenho da capa da frente, que refor
ça a impressão de que o pinto do título é efetivamente o órgão re
produtor do protagonista. A quarta capa desfaz, de certo modo, o
impacto inicial, mas não in teiramente.
Com
o texto de Wander Piroli,
a literatura infantil parecia romper fronteiras, e as hostes mais tradicio
nais não aceitaram com facilidade a proposta formulada pelo editor e
pelo escritor, procedentes, ambos, de Minas Gerais.
Lida atualmente, a narrativa de
Wander
Piroli declara que veio
para ficar, pois oferece a comovente história do menino que, tendo
recebido
um
inusitado presente da professora - o pinto do título da
obra - não tem condições de manter o pequeno animal no aparta
mento onde mora. O relato é simples e linear, evidenciando
os
pro
blemas domésticos experimentados pela classe média brasileira, com
primida num pequeno imóvel, com falta de dinheiro e excesso de tra
balho. Mas o texto não se limita a fotografar o cotidiano da popula
ção brasileira residente nos grandes centros urbanos; ele traduz a pers
pectiva com que a criança percebe o aperto dos pais, a boa intenção
da professora, a fragilidade de sua condição pessoal, razão
por
que
pode ser entendida e admirada por pequenos leitores.
A singularidade da obra consiste, por
um
lado, no registro escolhi
do, objetivo e direto, como é próprio
à
literatura de pendor verista.
Não há lugar para soluções mágicas
ou
grandes viradas, que resolvam
os
problemas das personagens: o pinto não sobrevive, e o protagonis
ta precisa aceitar a perda. Mas a novidade advém igualmente da habi-
1 4
Como e Por que
ler
lidade de expressar o universo das figuras fictícias por meio da percep
a l i teratura Infantil Brasileira
1 5
vista desloca-se do menino para o adulto que não pode legar ao filho
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ção do menino fazendo-o o porta-voz não apenas de sua fragilidade
pessoal mas do grupo social a que pertence. Por efeito de
um
proces
so de transferência o garoto possibilita a representação e compreensão
dos problemas discutidos
no
enredo de modo que o texto se adequa
a todo tipo de leitor seja
os
que pertencem à faixa etária considerada
infantil como previsto pelo editor do livro seja o público de qualquer
idade ou procedência.
A minimização da representação - a personagem de menor idade
exprime o drama por que os adultos também passam - não diminui a
obra mas a engrandece. E alcança um resultado suplementar: o pinto
o mais frágil dos seres que aparecem na obra simboliza o conjunto
pois sua delicadeza física sintetiza a precária situação de todos no livro.
Não
espanta que O Menino
e
Pinto do Menino tenha agradado a
uns e desagradado a outros pois tal como obras anteriormente desta
cadas de Ana Maria Machado Ruth Rocha e Lygia Bojunga corres
pondeu a um caminho sem volta.
Esse
alargou-se e assumiu a dimen
são de uma estrada trilhada por escritores que a povoaram com obras
importantes e atuais.
Wander Piroli ele mesmo publicou em 1976 Os Rios
Morrem
de
Sede curta narrativa que dá conta de uma pescaria frustrada. Pai e filho
são
agora companheiros mas o resultado da aventura não é melhor por
que a poluição
das
águas afastou os
peixes
dos
rios
e afetou as fontes natu
rais impedindo às personagens reviverem bons momentos da infância do
mais velho e na atualidade reforçar
os
laços de afeto e camaradagem.
De novo os problemas sociais intensificados pela devastação do
meio ambiente embasam o andamento do enredo. Porém olponto de
as alegrias que experimentou com a família. Como em O enino e o
Pinto
do
Menino o final não é feliz nem a narrativa tranqüilizadora.
Eis
outro elemento inovador importado para a literatura infantil por
Wander Piroli: as intrigas não apresentam soluções apenas diagnósti
cos dos fatos que transtornam a vida cotidiana da classe média brasi
leira. O leitor pode aceitar e incorporar o conhecimento adquirido a
seu repertório de saberes mas também ser convidado a algum tipo de
ação que transcenda o imobilismo a que são jogadas as
personagens
que protagonizam as histórias de Piroli.
As figuras que dominam a cena nos dois textos citados pertencem
aos grupos urbanos deslocando-se da moradia para o trabalho no
caso dos adultos
ou
para a escola como ocorre
às
crianças.
Os Rios
Morrem
de
Sede int roduz o espaço do lazer mas o malogro da expedi
ção programada pelo pai sugere as limitações
físicas
e pecuniárias da
classe social a que se vinculam
os
atores da narrativa. Oscilando entre
a família o colégio e o serviço as personagens dispõem de todo mo
do de casa para morar unem-se pelo afeto e projetam ainda que pre
cariamente um futuro qualquer.
Pivete
de Henry Corrêa de Araújo publicado no mesmo periodo e
também pela editora Comunicação de Belo Horizonte avança um
passo na escala social introduzindo personagens originárias dos segmen
tos mais despossuídos. Datado de 1977 não
foi
o primeiro a introduzir
o menino de rua na condição de protagonista precedendo-o Lando das
Ruas
de Carlos de Marigny de 1975. Mas atesta tal como a novela de
Marigny o foco inovador: a literatura infantil não mais se conforma
com figuras convencionais pertencentes
aos
setores dominantes da
1 6
Como e Por que ler
sociedade, habitantes do campo ou da cidade. Nem com a perspectiva
a Literaturil Infantil Brasileira 1 1
e inevitável opção que lhe resta. Não há recuperação, mesmo quando
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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paternalista que faz dos meninos abandonados candidatos passivos
à
benevolência dos ricos, dos adultos ou dos bem-intencionados.
Menores desamparados fizeram, por largo tempo, a alegria de folhe
tins e de romances para adultos ou para jovens. Charles Dickens cele
brizou
Oliver
Twist
1838), o órfão maltratado que, depois de muitas
desventuras, descobre seu lar e a riqueza. No cinema, Charles Chaplin,
em 1921, eternizou a imagem em O Garoto o menino sem família que,
protegido pelo vagabundo Carlitos, acaba reencontrando seu lugar na
sociedade. tema se revela fértil e atraente, mas raramente escapa
à
solução milagrosa que recoloca a criança perdida no rumo da boa con
duta e da vida aprazível, após percalços e desenganos. Exemplo de seu
desdobramento na literatura infantil é o Pinóquio 1883), de Carlo
Collodi, relato da trajetória do boneco de madeira seduzido pela vida
fora da família que recupera a felicidade e se humaniza, quando aceita
a opção doméstica oferecida pelo pai simbólico, o marceneiro Gepeto.
Lando das Ruas representa uma primeira tomada de posição frente
ao tema: o jovem do título não tem família e precisa sobreviver, con
tando apenas com o próprio esforço. Mas não sai do bom caminho,
tratando o enredo do acerto das decisões do protagonista, que não
apenas soluciona o roubo que testemunha, como
se
converte em herói
para os companheiros com que convive.
Pivete é mais radical e menos reconfortante, pois o garoto do títu
lo, menino de rua, adota o lado da transgressão, não acreditando na
hipótese de progredir ou melhorar, se se mantiver junto à família ou
residindo na favela onde nasceu. Sozinho ou com a cumplicidade dos
parceiros, trombadinhas como
ele
sabe que a marginalidade é a única
tenta largar o mundo do crime; acaba retornando às ruas e levando
avante a trajetória da contravenção, cujo resultado nunca coincidirá
com a reintegração
à
sociedade, o reencontro da família ou a riqueza
legalmente consentida.
Pivete
declara-se
um
livro amargo, que complementa o malogro
interior experimentado pelas personagens de O
Menino
o Pinto
do
Menino
e de
Os
Rios Morrem de
Sede
com o fracasso dos programas
de regeneração ou readmissão propostos pela sociedade brasileira. Não
há o que prometer para Pivete e seu grupo, além da revolta interna e
a rejeição externa, simbolizada pelo linchamento que sacrifica Dispa
rada, um dos companheiros do protagonista. História sem heróis, Pi-
vete
estende ao máximo as possibilidades de representação dos proble
mas sociais e econômicos pela literatura infantil; depois dele,
só
a
busca de solução adotada por personagens oriundos de outros segmen
tos sociais, de que são exemplo
as
meninas figurantes em narrativas
examinadas em capítulos anteriores.
O livro de Sérgio Capparelli, Os Meninos da Rua da Praia de 1979,
alinha-se ao grupo cujo perfil se desenha aqui. Tal como em Pivete
um núcleo de garotos protagoniza a trama, mas, no texto de Cappa
relli, eles têm
uma
profissão: são jornaleiros, o que significa inserção
no mundo do trabalho e expectativa de aceitação pela sociedade. O
universo da marginalidade ronda
os
garotos, sintetizada nas persona
gens que se aproximam dele, como a mulher sem-terra que vem à
cidade, por falta de
um
lugar na região onde nasceu.
Por intermédio dos contatos com outras pessoas e situações, os garo
tos alargam a compreensão do mundo circundante, possibilidade com-
1 8
omo
Por que Ler
plementada pela estratégia narrativa empregada pelo escritor: ele intro
a l i teratura Infantil
Brasileira
1 9
De
um lado
ao
conformismo decorrente da impossibilidade de
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 55/93
duz uma personagem externa aos acontecimentos a tartaruguinha mas
que os testemunha e analisa. Os comentários são internos pensamen
tos expressos pelo animal e que o narrador transmite ao leitor.
Por intermédio do recurso adotado Sérgio Capparelli estabelece
um
pacto com o leitor diverso daquele proposto por autores como
Wander Piroli e Henry Corrêa de Araújo. Nesses o conflito oferece
se
como
uma
fratura exposta deixando a critério do leitor a com
preensão dos eventos. Cabe
ao
destinatário levar adiante a interpreta
ção dos fatos o que garante o efeito elucidado r e emancipador da
obra; por outro lado como não há saída para
os
problemas vividos
pelas personagens evidencia-se a impossibilidade de mudança. O in
sucesso das personagens pode coincidir com a frustração do leitor
e
se
for o caso com a imobilidade outra faceta do conformismo.
Capparelli alarga
as
possibilidades de compreensão dos aconteci
mentos pois interpola comentários esclarecedores ainda que
eles
pro
cedam das personagens que estão aprendendo a conhecer o mundo.
Contudo para chegar a esse resultado precisou incluir no enredo a
tartaruguinha figura pertencente
ao
reino animal dotada porém de
pensamento e razão. O testemunho e o raciocínio ainda que acessíveis
tão-somente
ao
leitor por intermédio da fala do narrador garantindo
a verossimilhança do enredo facultam o esclarecimento dos fatos; por
outro lado
ao fazê-lo o autor rompe o pacto de fidelidade ao verismo
a que induzia sua opção ficcional.
Henry
Corrêa de Araújo e Sérgio Capparelli correspondem pois
aos
pontos extremos a que pode conduzir a tendência inaugurada por
Wander Piroli com O Menino o
Pinto
do
Menino:
alterar a situação adversa das personagens. Essa alternativa abriga um
componente contraditório pois se se rende à resignação do ponto de
vista ideológico lembra que seus praticantes escritores como Wander
Piroli e
Henry
Corrêa de Araújo abriram caminho inovador e radical
na literatura infantil brasileira contestando e rejeitando a trajetória
até então fértil que conferiu aos menores abandonados a oportunida
de de encontrarem um lar e
se
reintegrarem à sociedade a exemplo
na Europa dos heróis de Charles Dickens e Carlo Collodi respectiva
mente Oliver Twist e Pinóquio.
_
De
outro ao alargamento pelo leitor
do
conhecimento de situa-
ções que ele porventura não experimenta por pertencer a outra cama
da social via de regra mais bem aquinhoada financeiramente. Con
tudo a ampliação dos horizontes
se faz
à custa do abandono parcial da
proposta de narrativa verista e a reintrodução de recursos narrativos
filiados
ao
universo da fantasia e da imaginação como é o animal dota
do de raciocínio e opinião no
caso
de
Os
Meninos
da
Rua
da Praia
Desde 1975 a narrativa para crianças vem ensaiando a ruptu ra com
os limites da representação verista desafio permanente porque envol
ve
não apenas as expectativas do público e das instituições literárias
mas igualmente
as
possibilidades de adequação do tema
às
disposições
do leitor ainda criança
ou
adolescente. A experiência bem-sucedida
mesmo quando expondo
os
limites da representação deu margem ao
aparecimento de novos gêneros literários colocou heróis mirins na
posição de protagonistas e direcionou a literatura para horizontes mais
amplos como o da narrativa policial e de investigação como se verá a
segUIr.
a
Literatura
Infantil Elrasileira
111
o
gênero policial não apresenta facilidades, mesmo quando
se
trata
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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DETETIVES MIRINS
Qa n d publicou a primeira edição de
O G2nio
do Crime o autor
do livro, João Carlos Marinho, informou, após o título e entre parên
teses, que
se
tratava de uma história em São Paulo .
Em
1969, histó
rias escritas para crianças que se passassem na capital paulista eram
muito raras, pois, ainda sob a sombra de Monteiro Lobato, os escrito
res
enviavam
s
personagens para sítios, terras distantes e tempos pas
sados, dificilmente escolhendo
s
grandes cidades e a atualidade para
sediarem a ação das narrativas e demarcarem a época
em
que ocorriam.
Não foi apenas esse o aspecto renovador do livro, mesmo porque a
cidade aparece de modo ainda fugaz na obra, ao contrário do que
ocorre nos textos subseqüentes de Marinho, como O
Caneco
de Prata
(1971) e O
Livro da Berenice
(1984). A inovação relaciona-se
à
esco
lha do gênero a que pertence, a narrativa policial, envolvendo a reso
lução de
um
mistério e a descoberta de
um
criminoso.
de ficção para crianças, pois é preciso seguir, de
um
lado, algumas regras
próprias o modelo literário escolhido, de outro, garantir o interesse
específico do destinatário da
f ix
etária a que o livro
se
dirige.
Um
dos
princípios básicos da literatura policial é a consumação do crime já nas
primeiras páginas, que,
no
caso
da
narrativa dirigida
à
infância, precisa
se
relacionar a
um
assunto conhecido pelo leitor e que o atraia.
Marinho resolve a questão com maestria em O
Gênio do Crime.
logo
no capítulo de abertura, o narrador enfatiza que
uma
mania tomara
conta da criançada paulista: o concurso das figurinhas de futebol ,
que conquistara
os
meninos, levando-os a completar
os
álbuns a serem
trocados por
um
jogo de camisetas do clube predileto do coleciona
dor.
O assunto, próprio
à
faixa etária visada pelo livro, captura de ime
diato a atenção, alimentada pelo acontecimento seguinte: os vencedo
res
não recebem o prêmio, porque o fabricante das figurinhas não
dá
conta dos pedidos; revoltados,
os
torcedores mirins depredam a fábri
ca promotora do concurso.
Logo
se
descobre a causa do problema:
s
figurinhas estavam sendo
clonadas por meliantes, que, de modo clandestino, vendiam-nas dire
tamente aos colecionadores. Os álbuns eram aprontados, e a dívida
cobrada ao Sr. Tomé, dono
da
fábrica e promotor do concurso. Cri
me, mistério e necessidade de investigação armam-se
em
poucas pági
nas, e o leitor está fisgado, até porque o assunto, envolvendo
s
figuri
nhas e futebol, pertence a seu universo de experiências e granjeia ime
diata simpatia.
A segunda regra peculiar
à
história policial relaciona-se
à
investiga
ção, conduzida
por um
detetive habilitado. Cabe, também no que diz
112
omo
Por quo Lor
respeito a
esse
critério, escolher um sujeito relacionado ao mundo do
a Literatura Infantil Brasileira
113
lectuais, capacitando-os à participação na intriga c resolução dos pro
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leitor, o que significa atribuir o papel a uma criança ou, no máximo, a
um
adolescente. Resolver
esse
problema requer alguma cautela, pois
detetives mirins apresentam limitações de toda ordem, a começar pelas
de natureza jurídica, já que a legislação protege a infância. Mais impo
sitiva é a limitação de ordem narrativa, pois o autor não pode perder de
vista a verossimilhança: meninos e meninas dispõem de poucos recur
sos materiais e flsicos para enfrentarem inimigos que, por serem crimi
nosos, não precisam respeitar normas éticas, técnicas
ou
legais.
Em
O Gênio
do
Crime Marinho encontra algumas boas soluções,
começando pelo motivo pelo qual Edmundo,
um
dos meninos que
conduzem a investigação, é procurado pelo Sr. Tomé: ele evitara que
os rebeldes dessem fim à fábrica de camisetas. Estava, pois, familiari
zado com o problema e sua origem, o mesmo interesse que o levara a
colecionar
as
figurinhas e a desejar o conjunto de camisetas de futebol
a que tinha direito o premiado. Edmundo porém, não age sozinho,
nem
comanda
as
diligências que levam à identificação do mandante
do crime. Introduzem-se outras personagens que acabam
por
tomar
conta do enredo nesse livro e nos que
se
seguem: o gordo Bolacha e a
pequena Berenice.
A Bolacha e Berenice compete a pesquisa intelectual, pois
eles
não
se
envolvem propriamente no movimento de busca, ação desempe
nhada pelo diligente
Edmundo
e o amigo Pituca. Bolacha, gordo e
comilão, prefere pensar a agir, e só atua quando se infiltra
na
escola
onde são transmitidas
as
encomendas de figurinhas aos bandidos. Lá
conhece Berenice, cuja inteligência se
evidencia desde a primeira par
ticipação na trama. Assim, a dupla logo
se
identifica pelos dotes inte-
blemas mais importantes.
Raramente saindo do quarto e nunca deixando para trás
uma
refei
ção, o gordo corresponde ao tipo de detetive que deslinda o crime gra
ças ao raciocínio. O modelo é Nero Wolf, protagonista das histórias
assinadas pelo norte-americano Rex Stout, que, a partir das informa
ções transmitidas pelo assistente, Archie Goodwin, não precisa aban
donar o escritório para resolver
os
mistérios mais intrincados. O gordo
não chega a
esse
ponto, mas prefere recorrer à inteligência, não
às
per
nas, pois, para isso, dispõe de
Edmundo
e Pituca.
A fórmula, contudo , não basta para conferir densidade e verossimi
lhança à história, razão
por
que
se
incorpora Berenice, que, relativa
mente ao emprego da inteligência, duplica o papel do gordo, acrescen
tando, da sua parte, a agilidade flsica que o outro não tem. Em O
Gênio do Crime o grupo de detetives conta com
um
último auxiliar,
Mister
John
Smith Peter Tony, o escocês importado pelo gerente do
Sr.
Tomé
e auto designado detetive invicto, por ser invariavelmente
bem-sucedido quando da descoberta e identificação de criminosos.
A presença dessa personagem completa o processo de estruturação
da narrativa policial. Integrando
um
adulto, o autor fortalece a verossi
milhança, pois a clonagem das figurinhas é contravenção a ser comba
tida com recursos mais consistentes que a disposição de ajudar mani
festada pelas crianças; contudo,
se
Mister J
ohn
descobrisse
os
bandidos
e sozinho, prendesse a quadrilha, a história perderia interesse. Por isso,
ele corresponde, ao mesmo tempo, a
um
auxiliar e a
um
contraponto,
valorizando a ação investigativa dos garotos, fato que o escocês reconhe
ce ao final, ao abrir mão do cognome detetive invicto , até então uti-
114
omo
o Por quo Ler
lizado junto
aos
clientes. Além disso, Smith garante o lado cômico da
a Literatura Infantil Brasileira
me
que estimulou a construção de estádios de futebol em todas
as
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narrativa, expressando-se em português macarrônico e valendo-se de
estratégias extravagantes quando da perseguição dos bandidos.
Publicado em 1969, O
Gênio
do Crime inaugura a trajetória
do
grupo de meninos e meninas paulistas que não apenas resolvem mis
térios insolúveis pelos adultos, como
se
mostram independentes e
decididos. Com o livro, João Carlos Marinho abriu
um
veio
na
litera
tura infantil brasileira, optando por um gênero até então pouco fre
qüentado por nossos escritores. Contudo, o escritor não se acomodou,
e
na seqüência, optou por continuar inovando, de que resultou
O
Caneco
de
Prata de
1971.
O ano
em
que o livro foi publicado sugere algo sobre o tema: em
1970,
o Brasil vencera a copa do
mundo
de futebol, conquistando o
tricampeonato e trazendo para o país a Taça Jules Rimet. A bem
sucedida campanha esportiva estimulara disposição nacionalista entre
a população, sufocada pelo regime militar e sem chance de expressão
O governo aproveitou a ocasião, transformando o sentimen
popular
em
propaganda ideológica. O otimismo parecia tomar
de todos, como
se
pudesse compensar a repressão policial, in
c,-, , U. ' '-<lUd desde 1969, com a concretização do prometido milagre
Os
slogans se
repetiam: Brasil, ame-o
ou
deixe-o era um deles,
U ~ ~ U l l l U , U
que as pessoas que precisaram
se
exilar no exterior eram
patriotas que
os
que ficaram e sobretudo, os que aderiram ao
Dom e Ravel cantavam Eu te amo, meu Brasil, eu te amo ,
a multidão a esquecer a falta de liberdade e o recrudescimen
da tortura. O futebol vitorioso de 1970
foi
uma das armas do regi-
capitais do país e converteu o campeonato nacional em principal atra
ção da cultura nacional.
Ao redigir O Caneco
de
Prata Marinho não desafiava a ditadura
diretamente. Soube, porém, utilizar seus principais símbolos para des
mitificar
os
intuitos que
os
recobriam.
O enredo gira em torno da disputa entre duas
escolas
a Três Ban
deiras, freqüentada por Bolacha e sua turma, e a Garibaldi do Cam
buci, pela conquista da taça de campeão do torneio de futebol interco
legial.
Comandada pelo professor Giovanni, a Garibaldi do Cambuci,
vitoriosa nos últimos sete campeonatos, parece imbatível; deve, porém,
a invencibilidade
à
dedicação total ao esporte, conforme declara o trei
nador, assim que é publicada a tabela dos jogos:
De hoje em diante
não se faz mais nada. Só futebol. 2
Da sua parte, o grupo adversário não está disposto a ser derrotado,
e outra
vez
é o gordo que soluciona o problema. Tal como no livro
anterior, atua desde a poltrona de casa: de posse de um supercompu
tador, comanda
à
distância a vitória de seu time, compensando por
meio da tecnologia a fraqueza dos jogadores, debilitados por força da
ação malévola do professor Giovanni, que desejava vencer a qualquer
preço.
O enredo, aqui simplificado, indica de antemão a intenção desesta
bilizadora do livro: Giovanni transforma
os
estudantes em máquinas
de jogar futebol, enquanto que
os
atletas do time da Três Bandeiras
são
desnutridos e intelectuais, primeiros da
classe
pernetas, enfim .3
O grupo do Garibaldi de Cambuci é formado de vencedores, porque
o treinador é fanático, conforme sugere o diálogo de Giovanni com a
116
Como e
Por
que
ler
esposa, Filomena, cuja atitude espelha o comportamento da socieda
a Uteratura Infantil
IIrasileira
evento culminante, o jogo entre
as
equipes das duas escolas, em que os
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 59/93
de brasileira no começo dos anos 70, entorpecida pelo nacionalismo
ferrenho imposto pelo governo. A derrota, ao final, quando o cora
ção dele [Giovanni] estourou de raiva de perder ,4 processo que se
reproduz na imagem de
uma
bomba explodindo, revela o desejo de
alterar essa mentalidade, apontando a megalomania de que
se
nutre.
Outros aspectos caracterizam a proposta revolucionária contida em
O Caneco de Prata O mais evidente diz respeito à diagramação, que
alterna o texto impresso com imagens próprias
às
revistas em quadri
nhos, como o desenho, citado no parágrafo anterior, da explosão do
coração do professor Giovanni. Os recursos visuais estendem-se ao uso
das letras
em
caixa alta, para enfatizar afirmações ou situações das per
sonagens, assim como a distribuição gráfica busca reproduzir a dispo
sição dos jogadores em campo.
Contudo, o elemento mais desafiador das disponibilidades do leitor
decorre da inserção de situações surrealistas na narrativa. Elas aparecem
desde a primeira página, quando Berenice e o gordo atraem a atenção
de um marciano, piloto de um disco voador, oferecendo-lhe um prato
de morango com chantílly Situações como essas se sucedem nas pági
nas subseqüentes: no gabinete de seu psicanalista, o gordo, sentindo
uma
angústia muito profunda'',5 transforma-se
num
gato;
uma
aranha
estroboscópica aparece na narrativa tão-somente para comer um mos
quito;6 um leopardo verde devora um prefeito
e,
impregnado do ácido
ribonude ico da vítima, não consegue parar de fazer discurso?
As
inserções de non sense narrativo não perturbam o andamento
da
narrativa, mas conferem sentido lúdico aos acontecimentos e
às
perso
nagens, tornando aceitável tudo o que for apresentado, tal como o
,
,
gols
se
sucedem, as personagens, sob o efeito do equipamento moni
torado pelo gordo, agem como bonecos, a torcida, formada por tre
zentas mil pessoas que ocupam o Maracanã, enlouquece. Embora a
ação transcorra no presente e
em
cenários conhecidos, como a cidade
de São Paulo, o texto
se
aproxima da literatura fantástica, impregnado de
atos prodigiosos e de magia.
Uma obra dirigida à infância não recusa a presença de eventos
extraordinários, de que se alimenta, por exemplo, o conto de fadas,
um de seus gêneros mais característicos. João Carlos Marinho não ino
varia, se tivesse se limitado a enxertar na intriga personagens dotados
de propriedades sobrenaturais, que alteram os acontecimentos, favore
cendo ou não o protagonista. A originalidade decorre, primeiramen
te, de que
as
ações que poderiam ser consideradas maravilhosas advêm
do uso da tecnologia, fazendo a máquina o papel do auxiliar mágico
as fadas,
por
exemplo)
comum
às narrativas tradicionais. A máquina,
por sua
vez,
é manipulada pelas crianças mais sabidas, como, de novo,
Bolacha e Berenice, qualificando a autonomia de suas atividades e
auto-suficiência de seu desempenho. Dominando mecanismos que
poderiam submeter os indivíduos, os dois heróis patenteiam superio
ridade e capacidade de
se
alçar acima dos adversários.
A originalidade decorre ainda de um segundo aspecto: a perspecti
va carnavalizada com que acontecimentos e pessoas são apresentados.
A fantasia, aqui, não significa apenas recurso ao maravilhoso, como
ocorre na ficção latino-americana na mesma época, de que são exem
plos os romances de Gabriel García Márquez
8
e Juan Rulfo, publica
dos e difundidos neste período, abrigados sob o rótulo de Realismo
118
Como
e Por que ler
Mágico. A fantasia é igualmente a máscara que recobre
as
personagens,
conferindo-lhes faceta caricata, como acontece ao professor Giovanni,
a
litemtura
Infantil Brasileira
119
mesmo os vilões sobre os quais a turma do gordo triunfou. Em O Livro
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http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 60/93
treinador e comedor compulsivo de macarrão,
ou
ao pai do gordo,
consumidor obcecado por dispositivos eletrônicos.
O
Caneco
de
Prata
mistura elementos díspares
numa
narrativa única
e bem-humorada, que se destacou pelo teor experimental. João Carlos
Marinho parecia ter chegado a
um
extremo de onde não
se
retornava.
Mas o escritor não esmoreceu: retomou
as
personagens e continuou
oferecendo livros instigantes e inovadores ao leitor brasileiro.
Soube esperar
um
tempo, porém.
Sangue
Fresco em que reaparece
a turma do gordo, foi publicado em 1982, sendo que
no
intervalo
os
dois livros anteriores, O
Gênio
do Crime e O
Caneco de Prata
foram
se
popularizando entre o público brasileiro.
Quando Sangue Fresco
foi
publicado, autor e personagens já estavam consagrados e eram aguar
dados
por
seus apreciadores.
Sangue Fresco revela que João Carlos Marinho extraiu de Monteiro
Lobato algumas boas lições. Admi rador do criador do sítio do Picapau
Amarelo, o escritor dedicou-lhe,
em
1977,
um
ensaio
em
que subli
nha as qualidades da sua prosa.
9
Entre essas está a de aproveitar o
núcleo de personagens das obras anteriores, pois pou pa o aut or de pro
por novas figuras ao leitor.
Como
esse já está conquistado por
um
grupo de crianças cativantes, o melhor é inventar novos enredos para
os
mesmos atores: o reconhecimento acontece de imediato, se ele já foi
apresentado às tramas anteriores; caso contrário, interessar-se-á
por
chegar a
elas
ampliando o círculo de divulgação de
uma
obra.
Marinho adota a técnica com intensidade: a cada novo livro, aumen
ta o número de personagens, pois retornam quase todos
os
anteriores,
da Berenice
na seqüência de
Sangue Fresco
até o filho do cambista que
vendia figurinhas falsificadas, em O
Gênio
do
Crime
comparece ao ani
versário da menina; o narrador complementa: Ship O Connors e o
anão Gênio do Crime tiveram licença para sair da cadeia e ir à festa. lo
Graças ao expediente, intensifica-se a tendência à carnavalização, pró
pria à escrita de João Carlos Marinho, pois as personagens constituem
um grande bloco de companheiros que não perdem a oportunidade de
protagonizar
as
situações mais extravagantes.
Sangue Fresco
lida com
uma
dessas situações ao mesmo tempo ve
rossímeis e exageradas, peculiares à ficção de Marinho. A ação, inicia
da em São Paulo, concentra-se
na
Amazônia, onde
um
médico mal
intencionado, Ship O Connors, reúne crianças seqüestradas, transfor
madas em doadoras de sangue, sendo o precioso líquido vendido a
consumidores ricos e doentes, que requerem transfusão e cura.
A trama parte, pois, de
um
dado simultaneamente realista e simbó
lico. O sangue é matéria cobiçada, mas não pode ser comercializada, a
não ser pela via da contravenção, como
faz
Ship O'Connors; e crianças
não podem ser doadoras,
por
motivos éticos e físicos, contrariados tam
bém pelo inescrupuloso vilão. O ângulo simbólico advém do conflito
criado: a juventude brasileira está sendo sugada em nome do lucro a ser
obtido junto a clientes poderosos; e a extração se faz num espaço signi
ficativo, a selva amazônica, pulmão do Ocidente, que purifica o ar do
planeta, mas que vem sendo dilapidada por malfeitores tão carentes de
senso moral como o cientista norte-americano do livro.
Ship O'Connors, porém, comete
um
erro: seqüestra o gordo, que
não
se
conforma com o encarceramento, por mais confortável que seja
12,0
omo
Por que Ler
a vida no local escolhido para acolher as crianças. Ao lado dos compa
a
literatura
Infantil rasileira
Tem razão falou Edmundo. Diário de jovenzinho é pior que pur
gante. Bó
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 61/93
nheiros, fura o cerco e adentra a selva, na busca de salvação. O suces
so
deve-se, ou tra vez, ao uso da inteligência, que não pode mais depen
der das engenhocas eletrônicas disponíveis em obras anteriores. Bo
lacha mostra a que veio, liderando a expedição que, se passa trabalho,
não apenas alcança seu objetivo, como ainda liberta os demais prisio
neiros de O Connors .
Menos detetive e mais aventureiro, Bolacha é o herói de
Sangue
Fresco; mas, em O Livro da
Berenice
perde a posição para a moça, per
mitindo que a literatura infantil avance na direção da narrativa meta
lingüística, outro procedimento que remonta a Monteiro Lobato,
mas que assume coloração especial nas mãos de João Carlos Marinho.
No
texto, a menina do título resolve escrever
um
livro,
à
moda de
Emília, que, em 1936, decide redigir suas memórias. Em Sangue Fres-
co
a garota já expusera o desejo de ser ficcionista, mas a intenção é
interrompida; a obra seguinte apresenta a resolução de Berenice nas
primeiras páginas.
O capítulo terceiro relata o projeto da namorada do Bolacha, acom
panhado da discussão sobre as possibilidades de uma criança ter sufi
ciente autonomia para ser autora de uma boa obra literária.
É
a turma
do Bolacha que leva adiante o debate, mas o linguajar é adulto e com
penetrado:
- Nenhum livro de criança de dez ou quatorze
anos
conseguiu nada
em
literatura -
falou
Hugo Ciência. - Teve aí umas memórias, tipo
diário,
um vomitório
da alma, dumas
menininhas,
mas
literatura
nunca.
_ Falta experiência, falta leitura, falta distanciamento - explicou Hugo
Ciência.
(
..
)
S
· . . f -I B . 11
-
erei
a pnmeira -
alOU
ereOlce.
Quem leu Memórias
de mília
reconhece na
fala
de Berenice simi
lar determinação. Outro traço é compartilhado pelas duas: a menina
paulista dita o texto a Edmundo, que o transcreve na máquina de
escrever. Nesse quesito, contudo, Marinho acrescenta outros elemen
tos à intriga, discutindo, no Capítulo 5, o processo de produção indus
trial de uma obra impressa. Assim, um tanto
à
maneira de Paulo
Honório, personagem de Graciliano Ramos, na abertura do romance
São
Bernardo
(1934), as tarefas
são
divididas, competindo o desenho
da capa e
as
ilustrações a Mariazinha, uma
das
amigas da autora e
membro da turma do gordo.
O Livro da Berenice transforma-se em obra que discute a própria
natureza, pois a trama depende não apenas do desdobramento do
projeto de Berenice, mas também do intento do arquicriminoso
Papoulos Scripopulos, que deseja roubar o texto redigido pela garo
ta, publicá-lo
em
seu nome, ganhar muito dinheiro com a renda dos
direitos autorais e,
ser premiado internacionalmente. O plano do
facínora fracassa, enquanto Berenice termina sua obra, edita-a e
lança-a numa livraria. Marinho acaba por circunscrever o processo
empresarial completo, que começa pela intenção do autor e conclui
quando a obra é vendida, para gerar rendimentos para o escritor, o
editor e o livreiro.
22
Como e Por que ler
escritor, porém, não tem ilusões a respeito das chances de a lite
ratura fazer alguém enriquecer. Embora Papoulos Scripopulos acredi
a literatura Infantil Brasileira
No
caso da turma do gordo, não
se
trata apenas de não existirem pro
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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te ser possível
um
autor ganhar mu ito dinheiro com a venda de livros,
Berenice, que representa a categoria dos escritores, tem dificuldades
para encontrar editor; quando consegue publicar a obra e lançá-la em
tarde de autógrafos programada
em
encantadora livraria da cidade,
recebe apenas
os
amigos, não obtendo maior repercussão. Em Berenice
Detetive 1987), texto subseqüente de João Carlos Marinho, reapare
ce a questão relativa à pouca rentabilidade gerada pela comercialização
de livros: a menina comenta ter vendido unicamente trinta exempla
res; e as crianças estranham quando, investigando o assassinato da es
critora Rosinha, matéria do enredo, descobrem a conta bancária da
morta, engordada não pela literatura, mas pela contravenção.
O conjunto de obras protagonizadas pelo gordo Bolacha e a turma,
inaugurado com O Gênio do Crime em 1969, e que se estende até os
anos 90, propõe um paradigma para a literatura infantil brasileira que
encontra eco
em
outros escritores. A
esse
padrão pertencem as seguin
tes características:
-
as
personagens são crianças ou jovens bastante inteligentes;
- o grupo é misto e une-se
por
laços de amizade;
- cada
um
dos participantes exibe
uma
qualidade
ou
atributo que
o particulariza;
- dificilmente as personagens sofrem problemas econômicos;
- o grupo encarrega-se de denunciar alguma ação criminosa nem
sempre percebida pelos adultos ou pela polícia; a ação criminosa atin
ge-os particularmente, fato de que nasce a determinação por solucio
nar o problema.
blemas econômicos: o pai do Bolacha é bastante rico, tem mordomo, a
residência é luxuosa, e
os
automóveis
são caros.
A riqueza é ostensiva em
seu caso como se o autor estivesse fazendo blague da burguesia endinhei
rada brasileira. Cabe lembrar ainda, a propósito do paradigma que
os
livros vão esboçando, que
as
meninas têm
um
papel importante na
trama, a ponto de Berenice acabar por aparecer no título das mais recen
tes. A presença feminina em enredos pertencentes ao gênero policial não
deixa de apontar a crescente participação da mulher na sociedade e na
constituição do público leitor, que irá preferir obras que oferecem
padrões fáceis de identificação, representados aqui pelas garotas detetives.
Marcos Rey é
um
dos adeptos do paradigma proposto. Escritor que
começou a carreira de ficcionista na década de 1950, ele conheceu o
êxito literário com obras audaciosas, como Café
na
Cama O Enterro
da
Cafetina
e
Memórias
de
um Gigolô
que desafiam o
pudor
e o reca
to dos leitores brasileiros. A partir dos anos
80,
dedicou-se igualmen
te à literatura infantil, publicando O Mistério
do
Cinco Estrelas 1981),
que se inscreve com facilidade no gênero literário conhecido como
romance policial.
A narrativa não é caudatária dos livros de João Carlos Marinho, mas
acompanha o paradigma citado: o crime, que
se
passa
num
luxuoso
hotel paulista, é desvendado por Leo e sua turma, de que participam
Gino e Ângela. O Rapto do Garoto de Ouro na seqüência, confirma a
tendência: o enredo conta o criminoso seqüestro de que é alvo o cantor
de sucesso Alfredo, amigo dos heróis detetives. Os jovens decidem cola
borar com a investigação, desenvolvida graças à ação de Léo e Ângela,
por quem o rapaz nutre silenciosa paixão, e
à
inteligência de Gino.
124
Como e Por que ler
Gino
faz
o papel do gordo nas tramas de Marcos Rey: impossibili
tado de andar e movimentando-se
numa
cadeira de rodas, o garoto
a
l i teratura
Infantil rasileira
os Karas devem desvendar o que está provocando o desaparecimento
de estudantes em várias das escolas da cidade.
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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decifra os mistérios graças às informações trazidas de fora e ao raciocí
nio. E assim como o gordo de, sobretudo, O Gênio do Crime aproxi
ma-se de Nero Wolf, personagem de Rex Stout, Gino aparenta-se a
Robert lronsine, o detetive paraplégico de prestigiado seriado de tele
visão nos anos 60.
O mundo retratado por Rey apresenta, porém, outro recorte social,
pois
as
personagens pertencem à
classe
média paulista, jovens como
Léo precisam trabalhar, o dinheiro falta no final do mês. As possibili
dades de ascensão estreitam-se, razão por que o sucesso de Alfredo, o
garoto de ouro raptado, é celebrado pelos amigos e cobiçado pelos ini
migos. O encolhimento das hipóteses de mudar de vida por parte das
figuras humanas em cena
faz
com que
as
narrativas elejam perspectiva
mais realista para o desenvolvimento das tramas.
Pedro Bandeira, em Droga da Obediência participa do time de
escritores que prefere o paradigma da narrativa policial, somando no
vos dados à sua configuração. A novela inaugura a série de aventuras
vividas por um grupo de jovens estudantes, os Karas, assim denomi
nados por contrariarem
os
coroas e os caretas . A equipe compõe
se
originalmente de três rapazes - Miguel, o líder, Crânio, o cérebro,
e Calú, o ator - e uma moça, Magrí, ágil e desenvolta como uma
ginasta olímpica. Mas, já nos capítulos iniciais, adota-se novo mem
bro, Chumbinho , que, aparentemente sem nenhum atributo especial,
acaba por descobrir o caminho para a solução do mistério.
Droga da Obediência desenvolve-se de modo rápido e expedito,
porque o narrador abre a história antecipando o problema a resolver:
A abertura traz elementos conhecidos desde O Gênio do Crime. o
mistério relaciona-se ao universo das personagens, pois é o sumiço de
um
dos colegas que alerta Miguel para o problema; como os heróis são
jovens e não investigadores profissionais, precisam agir coletivamente,
para compensar
as
insuficiências individuais. Bandeira acrescenta al
guns ingredientes à receita: à carência pessoal, contrapõe-se a habilida
de de que cada
uma
das personagens é dotada, como a liderança de
Miguel ou a inteligência de Crânio. A este compete o papel antes exer
cido pelo gordo ou por Gino, resolvendo enigmas por raciocínios;
porém, não incorpora a imobilidade dos antecessores, podendo parti
cipar dos acontecimentos ao lado dos amigos, embora prefira ficar em
casa pensando.
Outro ingrediente incorporado por Bandeira é sugerido pelo título
do livro, que contesta a noção de que garotos insubmissos devam ser
amansados por efeito de alguma poção especial. Miguel e seu time des
mantelam a quadrilha que, comandada pelo
Doutor
Q L, tinha delí
rios de dominar o
mundo
graças
ao
efeito da droga química testada
nos jovens. Tal qual as personagens, o autor também torce a favor da
rebeldia, mas sabe que a contestação está permanentemente ameaçada
pelos detentores do poder. O final é altamente expressivo, pois, embo
ra o problema tenha sido solucionado, a droga da obediência não desa
parece, sendo até louvada por aqueles que esperam chegar ao contro
le dos comportamentos sociais indesejados.
É sintomático que, no livro, o professor Cardoso encubra o malva
do Doutor Q
L
diretor do Colégio Elite, onde estudam os Karas, e
omoe Por que
Ler
seja responsável por um projeto revolucionário de ensino, em que pri
mam o diálogo e a co-participação dos alunos. A fachada é contudo,
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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desmascarada por Miguel que, além de liderar os I<aras preside o grê
mio de estudantes. Seja no papel de diretor da escola, seja na pele do
Doutor Q
L Cardoso tem
um
plano para a elite, a de reprimi-la e
submetê-la.
Os
I<aras
representam outra faceta da elite, não a do
dinheiro
ou
do poder, mas a da ética e da inteligência, que prevalece
- só
em
parte, porém - ao final. O livro, discutindo as alternativas
com que a sociedade lida com os jovens, abre-se para a interpretação
que
se
estende para além da trama policial, ampliando seu horizonte.
O gênero policial, que nasceu para divertir crianças e adolescentes,
leva-os igualmente a refletir sobre sua condição e posição na sociedade,
proporcionando leitura agradável, mas também conhecimento e
reflexão.
otas
I
Silva, J.
C
Marinho. O Gênio do
Crime
Uma história em São Paulo . 18. ed. Rio de
Janeiro: Ouro, s. d. p. 9.
Silva, João Carlos Marinho. O Caneco de Prata. 5. ed. São Paulo: Obelisco, s. d. p. 10.
3Id p. 86
4Id
p.
104.
5 Id. p. 3.
6Id p. 20.
7 Id.
p. 29.
8
Vale lembrar que,
em
O
Outono
do Patliarca de 1975, García Marques satiriza a tendência dos
ditadores a ocuparem o povo com futebol, construindo estádios em todos os recantos do pais.
9
Cf. Silva João Carlos Marinho.
Conversando
de Monteiro
Lobato.
São Paulo: Obelisco, 1977.
10
Marinho João
Carlos. O
Livro da Berenice.
5. ed. São Paulo: Global, 1993. p. 70.
llId p. 15-16.
E
PARA A POESIA,
NÃO VAI NADA 1
A
oesia esteve presente desde o começo d a literatura infantil bra
sileira, tendo sido Olavo Bilac
um
de seus principais expoentes, no iní
cio do século
XX.
A seu Poesias Infantis de 1904, seguiu-se Alma
Infantil
de 1912, escrito por Francisca Júlia que, como Bilac, acom
panhava a estética parnasiana, pouco afeita ao gosto da criança. Talvez
essa razão explique por que a maioria dos livros de versos dedicados
ao
público infantil tenha aparecido
na
segunda metade daquele século,
quando o Parnasianismo havia sido plenamente suplantado pelo pro
grama modernista, lançado a partir da década de 1920.
Uma
breve relação cronológica evidencia como o gênero poético,
quando dedicado a crianças, floresceu nas últimas décadas, quando
técnicas e princípios de criação artística adotavam parâmetros
maiS
livres e libertários:
I
28
Como e Por que ler
1943
O
Menino
Poeta
Henriqueta Lisboa
1962
A
Televisão
da
Bicharadll
Sidônio Muralha
1964
Ou Isto 11
Aquilo
Cecília Meireles
a literatura Infantil Brasileira
129
c
a cronologia não apenas avança no tempo mas revela determina
da concentração nos últimos vinte anos quando foi lançada muito
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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1968 Pé
de Pilão
Mário
Quintana
1974
A
Arca
de
Noé
Vinicius de Moraes
1976
A
Dança dos Picapaus
Sidônio Muralha
1983
Boi da Cara
Preta
Sergio Capparelli
1984
O
Menino Rio
Carlos Nejar
Classificados
Poéticos
Roseana Murray
É
Isso
Ali José Paulo Paes
1986 Um Rei
e seu Cavalo de Pau Elias José
1987
Lua
no
Brejo
Elias José
1989
Olha
o Bicho José Paulo Paes
1990
Poemas para Brincar José Paulo Paes
1993
Lécom
Cré José Paulo Paes
1996
Ciberpoemas e uma
Fdbula Virtual
Sérgio Capparelli
1997
Um Passarinho me Contou José Paulo Paes
1997
Viva
a
Poesia Viva Ulisses Tavares
1998
Receita de Olhar Roseana Murray
2000 Um Gato Chamado Gatinho
Ferreira Gullar
2001
O
Fazedor
de Amanhecer
Manoel de Barros
A relação permite algumas conclusões iniciais:
a quase todos os poetas modernos brasileiros escreveram para
crianças seguindo de certo modo a lição de Olavo Bilac no começo
do século XX. Estão aí citados Vinicius de Moraes Cecília Meireles e
Mário Quintana pertencentes à chamada Geração de 30 assim como
os concretistas José Paulo Paes e Ferreira Gullar ou Manoel de Barros
um
dos mais importantes poetas nacionais nesse começo de milênio;
b
por outro lado enquanto
os
poetas digamos canônicos publi
caram apenas
um ou
dois livros dedicados exclusivamente ao leitor
infantil outros como Sérgio Capparelli Roseana Murray ou Elias
José autores também de ficção dirigida à criança profissionalizam-se
no gênero variando temas formas e formatos mas não o público
visado;
mais da metade de toda a produção em versos para crianças no Brasil.
Poder-se-ia arriscar uma afirmação: depois de 1980 descobriu-se a
poesia para crianças.
Não
que ela faltasse antes: o já citado Olavo Bilac
é autor de
um
dos mais antigos livros que o gênero conheceu
em
nosso
país. Mas talvez por causa do próprio Bilac certas características se
impuseram - como a temática de orientação cívica - e determinados
objetivos predominaram - como a adequação dos textos a intuitos di
dáticos - que afastaram os criadores mais ousados mesmo os que
estavam acostumados a escrever para crianças fazendo com que a poe
sia demorasse a se sobressair entre nós.
Poemas
para Brincar
de José Paulo Paes talvez seja o texto que me
lhor esclarece o que significa escrever versos para crianças e esperar que
o leitor aprecie pois o escritor estabelece
uma
conexão entre brincar e
escrever.
1
O conceito que formula destaca o ângulo lúdico presente
em todo o poema não apenas naquele dirigido à criança; mas as com
parações propostas referem-se ao universo infantil pois são os
pequenos que brincam com bola papagaio
ou
pião sugerindo que a
diversão e o jogo se evidenciam melhor em textos orientados para eles.
O autor exercita-se na brincadeira que no caso aparece por meio da
repetição das consoantes bilabiais oclusivas - o b e o p - de brincar
bola papagaio e pião. Como o poeta está fazendo poesia ao falar dela
emprega conscientemente os recursos que reconhece como próprios
ao gênero em que se exprime.
A valorização do lado lúdico da linguagem propiciou a expansão da
poesia endereçada
à
infância a partir dos anos 80. Introduzindo nos
130
Como e Por
que
Ler
versos e nas estrofes, a perspectiva da diversão, do jogo e da brincadei
ra, o gênero poético pôde se livrar dos problemas que experimentou
Literatura Infantil
rasileira
Os adultos aparecem pouco
e,
quando o fazem, são representados
sobretudo por velhos. As duas velhinhas , Mariana e Marina, des
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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principalmente na primeira metade do século
XX.
O elenco de auto
res diversificou-se, e várias possibilidades expressivas apareceram, ex-
postos nos textos relacionados no começo, em ordem cronológica, e
passaram a constituir
as
características mais importantes da poesia di
recionada prioritariamente
ao
público formado por meninos e meni
nas brasileiras.
Destaque-se primeiramente o tipo de indivíduo que predomina
nos poemas para a infância. Como seria de se supor, são mais assí
duas
as
próprias crianças, cuja faixa etária oscila entre o recém-nas
cido e o pré-adolescente. Henriqueta Lisboa dedica ao primeiro a
Cantiga de Neném , que vai dormir / sob a carícia da lua / neste
bercinho de
nuvens'?
enquanto Vinicius de Moraes elege o peque
no infante , em O Poeta Aprendiz ,
que
anos tinha dez .
3
Cecília
Meireles coloca meninas, como Laura e Carolina, Dulce e Olga, a
protagonizarem os versos, mas, como nos casos anteriores, a apresen
tação é feita
em
terceira pessoa, pois raramente o texto elege o
ponto
de vista interior.
Henriqueta Lisboa, porém, contraria a regra em Consciência , em
que
uma
narradora fala de
si
em primeira pessoa e
na
atualidade:
Ho-
je completei sete anos , diz, para confessar pequenos pecados e afirmar
sua personalidade:
Fazer p ~ c d o é feio.
Não quero
fazer pecado,
juro.
Mas
se
eu quiser, eu
faço.4
pontam no poema de Cecília Meireles, de Ou
Isto ou
Aquilo onde se
encontra também A avó do meninó [sic] a que vive só , a não ser
quando recebe a visita do neto Ricardó , para jogar dominó.
5
Ma
noel de Barros dedica
um
poema ao avô, que experimenta solidão
similar, compensada pela companhia dos seres da natureza. Nos ver
sos de Barros, o isolamento é vivido de modo simultaneamente épico
e melancólico:
Meu avô dava
grandeza ao
abandono.
Era com ele que vinham os ventos conversar
Tenho
certeza
que o meu
avô
enriquecia
a
palavra
abandono.
Ele ampliava a solidão dessa palavra.
6
Se o universo de representação humana parece bastante limitado,
pois faltam a vida cotidiana, o mundo do trabalho
ou
os conflitos
internos, estão presentes, e com grande assiduidade, os elementos da
natureza.
Os
versos de Manoel de Barros antecipam
essa
propensão,
ao falarem do velho que, no quintal, conversa com
as
pombas e
os
gatos. Na maioria dos textos, por sua vez, predominam estrofes que se
referem diretamente
aos
animais, de preferência
os
domésticos.
Como se
observou antes, bichos são apropriados à literatura infan
til, porque, a part ir de algumas de suas características, possibilitam sim
bolizar a própria criança. O animal, enquanto personagem, remonta às
primeiras obras do Ocidente, como a Batracomiomaquia paródia da
32
omo
e
Por que
ler
epopéia de Homero, ou as comédias do dramaturgo grego ArIstófanes.
A fábula, na Antigüidade, e as sátiras zoomórficas da Idade Média, de
a litereltura Infelntil Brasileira
a exploração do lado cômico das situações, favorecendo o ludismo espe
rado da poesia para crianças.
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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que é exemplo o
Livro cú ts
Bestas de Raimundo Lúlio, poeta catalão do
século XIII, ajudaram a consolidar a hipótese que àqueles seres pode ser
conferido status artístico, aparecendo em obras de todo o tipo.
Nas narrativas destinadas à criança, eles respondem a uma série de
intuitos: podem sintetizar o mundo interior da criança, como em
Vida
Íntima de Laura de Clarice Lispector, substituí-la, como em Os
Colegas ou Angélica de Lygia Bojunga, ou alegorizar, em decorrência da
forma física ou atuação, virtudes ou comportamentos dos homens,
como nas fábulas, de Esopo a La Fontaine e Monteiro Lobato.
Presentes também nos poemas orientados para o público infantil,
os animais correspondem, em primeiro lugar, ao esforço de aproxi
mar leitor e tema do texto. Por isso, predominam bichos domésticos,
como cães e gatos, embora nem todos, como os bastante citados
patos, participem usualmente da experiência da garotada de hoje, que
vive nos grandes centros urbanos, de preferência em apartamentos ou
condomínios.
Patos, porém, são assíduos, porque contam com um precursor ilus
tre, o protagonista do conto de Hans Christian Andersen, portanto,
vinculam-se ao acervo e à tradição da literatura infantil. Além disso, a
palavra, em português, é facilmente assimilável por qualquer ouvinte
ou leitor, outro fator que carreia para dentro da poesia ainda outros
bichos, tais como tatus ou pica-paus. Os animais, cujos formatos po
dem ser estranhos, como girafas, apresentar peculiaridades físicas como
zebras, mimetizar atitudes das pessoas, como macacos, ainda facultam
Os títulos de muitos dos livros em versos antecipam a incorpora
ção de componentes da fauna à literatura: Televisão da Bicharada
Arca de
Noé Dança dos Picapaus Boi
da Cara
Preta
Olha o
Bicho Um Passarinho me
Contou
-
eis
uma
quantidade respeitável
de obras a ilustrar as observações anteriores.
Em
grande parte delas,
os animais suscitam o tema das estrofes;
num
deles em particular, Pé
de Pilão de Mário Quintana, um pato é guindado à condição de
herói de uma narrativa.
Este não constitui o único aspecto que particulariza a obra do poeta
sulino.
Pé
de
Pilão
relata uma história que traz vários atributos do
conto de fadas, pois o protagonista, no começo o pato que quer ser fo
tografado de sapato novo, revela-se ao final o menino Matias, até en
tão enfeitiçado por
uma
bruxa malvada e metamorfoseado em bicho.
Nossa Senhora desencanta o pequeno animal e garante a reconciliação
das personagens, favorecendo o final feliz.
O mérito do poema não
se
situa, porém, na história relatada, mas
na observação de situações insólitas, decorrentes da mistura entre fatos
próprios ao cotidiano dos seres humanos e o comportamento ou a rea
ção dos animais.
Os
versos de abertura, por exemplo, referem-se a
um
pato tirando retrato, porque calça sapatos novos; e a confusão se arma,
quando o passarinho da câmera fotográfica foge para fora da máqui
na, provocando uma briga que suscita a presença da polícia. A ação
avança com rapidez, sendo a agilidade narrativa reforçada pelo proce
dimento poético escolhido pelo autor, que se vale de estrofes de dois
versos, em redondilha maior e rimados entre si; o acento final recai
134
Como
e Por
que
Ler
sobre
as
palavras paroxítonas ou oxítonas, opção que facilita a dicção
do texto e acelera o relato:
a
Uteratura Infantil ilrasileira
135
librando, também, situações conhecidas e próprias ao cotidiano infan
til com o insólito e cômico:
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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o
pato ganhou sapato,
Foi logo tirar retrato.
o
macaco retratista
Era mesmo um grande artista.
7
Os patos, porém, podem suscitar também a percepção lírica com
que os enxerga Henriqueta Lisboa, percepção acentuada pelo empre
go das sílabas longas e dos sons nasais, capazes de mimetizar o deslo
camento das aves no céu ou nas águas:
Chegam de manso, de manso,
finos pescoços esticam,
deslizando, deslizando, ferem o espaço com o bico,
deslizando
na superfície de vidro.
8
Sidônio Muralha, em "Alegria", emprega outro tipo de registro,
próximo da oralidade, graças aos versos de, no máximo, cinco sílabas,
às rimas e
ao
uso do diminutivo:
o
patinho
amarelo
saiu do ovo
de manhã cedinho.
9
Sérgio Capparelli, valendo-se das imagens sonoras e visuais suscita
das pelo mesmo ser, enfatiza o lado lúdico, à moda de Quintana, equi-
A patota
do pato
quis fazer
de pato
o ganso.
o
ganso
que era manco
mas pateta
não era
deu no pé
de bicicleta.
1
Os trechos citados são expressivos da variedade e riqueza que pode
alcançar a exploração de
um
único motivo, quando são mestres da
poesia que o manejam. Mas os poetas brasileiros sabem igualmente
lidar com temas mais abstratos, traduzindo-os por intermédio de re
cursos visuais, de modo a facultar o entendimento pelo leitor. Hen-
riqueta Lisboa, em O Tempo é um Fio", aborda questão de teor filo
sófico, valendo-se da imagem da teia e do tecido para aconselhar o lei
tor a tirar o melhor proveito da existência:
o tempo é um fio
Tecei Tecei
Rendas de bilro
com gentileza.
136
Com mais empenho,
franças espessas.
Malhas e redes
Conto e Por que
ler
a
Literatura nfantil
IlI'asileir 131
mostrarem adequados à memorização e à repetição, imprimindo-se
nas lembranças agradáveis do leitor.
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 69/93
com mais astúcia.
Cecília Meireles, por sua
vez,
refere-se à efemeridade das coisas, em
decorrência da mudança permanente dos seres. Mas traduz a idéia por
meio de uma imagem, o vestido de Laura, cujo tecido, bordado de flo
res, aves e estrelas, se esvairá a nossos olhos, se não formos depressa .
Como tudo que é passageiro, o vestido, embora todo bordado e flo
rido ,12
acaba-se rapidamente.
De
mais difícil abordagem, em poemas para crianças, é o tema da
morte, ao qual Cecília Meireles dedica
Uma
Flor Quebrada . Quatro
estrofes tratam da flor amarela , resultante do trabalho penoso da
raiz, escrava e descabelada negrinha que trabalhava para a outra.
Bela, a flor é pedida em casamento pelo vento, que, porém, provoca o
fim da pretendida parceira: era
um
vento tão forte / que em vez de
amor trouxe morte / à airosa flor tão leve .
13
A imagem, sutil e delica
da, encobre a questão da perda e oportuniza
à
criança a reflexão sobre
a fragilidade da vida e os perigos que envolvem a existência.
Nesses poemas, o humor é substituído pela reflexão, e o ludismo
cede lugar à seriedade. Por sua
vez, os
recursos desencadeadores do
humor e da comi cidade não decorrem apenas da ênfase conferida ao
ângulo engraçado das personagens, de que são exemplos os patos cita
dos antes. A labilidade da língua portuguesa oportuniza a incorpora
ção de inúmeros recursos sonoros, propícios à expressão que provoca
a graça, o riso
ou
a piada, além de
se
aproximarem da oralidade e
se
Uma das possibilidades de aproveitamento dos recursos sonoros
aparece no poema
As
Abelhas , de Vinicius de Moraes, em que o
autor
se
vale da repetição
das
vogais, alongando a sílaba, para lembrar
ao leitor os sons que deve repetir, favorecendo o efeito cômico.
14
A
reiteração, por sete vezes, da mesma vogal sugere que o texto deva ser
lido coletivamente, como agem, da sua parte, as próprias abelhas.
Essas como que
se
manifestam na estrofe seguinte, quando a sonori
dade peculiar produzida por elas determina a escolha das palavras,
começadas pela consoante fricativa dental sonora
z.
Cecília Meireles explora outro tipo de recurso sonoro peculiar à
poesia: a aliteração, vale dizer, a repetição de fonemas sobretudo no
início dos vocábulos. Procedimento difundido, no Brasil, desde os
tempos da escola simbolista, no final do século XIX, a aliteração veio
a ser encampada pela poesia para crianças. Em Colar de Carolina , é
a repetição da consoante oclusiva velar surda
k
presente em quase
todas
as
palavras dos versos, que sustenta a figura de estilo, como se
verifica em versos como: o colar de Carolina, / colore o colo de cal, /
torna corada a menina .
5
Moda da Menina Trombuda cede a vez à consoante oclusiva bila
bial sonora
m
que aparece nos substantivos, adjetivos e verbos: É a
moda / da menina muda / que muda / de modos / e já não é trombu-
d
16 C ' . d l' 'b' l'd
.
orno a autora recorre a nma, os
versos
up lcam
as pOSSl
1 1 a-
des sonoras; mas não
se
confundem com a música - como ocorre nos
poemas de Vinicius de Moraes - porque os vocábulos, ainda que sejam
Como e Por que ler
de apenas duas sílabas, empregam, na sílaba átona,
um
fonema duro, a
consoante oclusiva dental sonora
d
que dificulta a dicção e a entonação.
a
Literatura
Infantil rasileira
como o dia
- de cristal.
20
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 70/93
A mescla de sonoridade e musicalidade aparece em outros dois poe
mas de Cecília Meireles, A Chácara do Chico Bolacha e Procissão.
de Pelúcia .
No
primeiro, a aliteração deve-se à adoção da fricativa
palatal surda
x
que aparece
no
início, no meio e
no
final das palavras:
Dizem que a chácara do Chico / só tem mesmo chuchu / e
um
ca
chorrinho coxo / que
se
chama Caxambu. 17
Em
Procissão de Pelú
cia , a aliteração depende do aproveitamento de duas consoantes em
constante oposição: de
um
lado, a oclusiva bilabial surda
p;
de outro, a
fricativa alveolar surda s. A oclusiva, produto do fechamento dos lábios,
supõe, por natureza, a dificuldade de dicção, enquanto que a fricativa,
por ser sibilante, facilita a passagem do
ar. Da
oscilação, emerge a musi
calidade dos versos, que, do ponto de vista fônico, reproduzem o cicio
e a solenidade da procissão descrita pelas estrofes: Há
uma
procissão /
que passa / que passa na praça / só com preces de pelúcia ..
18
Quando
o jogo sonoro é travado entre
as
consoantes oclusivas, o
texto incorpora características do trava-língua, o gênero que
se
define
pela habilidade de dizer, com clareza e rapidez, versos ou frases com
grande concentração de sílabas difíceis de pronunciar, ou
de sílabas
formadas com
os
mesmos sons, mas em ordem diferente
19 Hen-
riqueta Lisboa, em Caixinha de Música , vale-se do recurso na pri
meira estrofe do texto:
Pipa pinga
pinto pia
Chuva clara
Sérgio Capparelli emprega a mesma sugestão para extrair dela todas
as
potencialidades fônicas,
em
Pintando o Sete :
Um
pinguço pega o pito
e pita debaixo da pita.
A pita, com muita pinta,
pinta uma dúzia de pintos,
com pingos pretos de tinta.
- Pita pinto pinga pita
pia pintos pingos pingam
pia pia pinto pinto pinto
pinga pito pinto pinga
pingo pinga pin ta pia.
21
Em
O
Barbeiro e o Babeiro , o autor explora
os
recursos sonoros
da consoante bilabial sonora
b
somando-os
às
possibilidades cômicas
resultantes da confusão do sentido das palavras que utiliza,
por
exem
plo, n a primeira estrofe:
o
barbeiro comprou um babeiro
para a baba de seu filho:
- Baba agora, bebê babão,
de babeiro, babar é bom.
Nos poemas citados, de autoria de Cecília Meireles, Henriqueta
Lisboa
ou
Sérgio Capparelli, verifica-se a exuberância com que as po-
140 Como e Por que l r
tencialidades acústicas da língua portuguesa são trabalhadas. Levam
nas a seus limites, a ponto de poderem prescindir da rima, outro dos
a literatura Infantil BmsileÍl'a
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamento de poetas
141
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 71/93
recursos próprios à poesia e associados à sonoridade. E, em alguns
casos, aproximam-se do non
sense
abrindo novos espaços à imaginação.
Eis outra faceta da poesia destinada
às
crianças: o autor pode esten
der ao máximo a criatividade,
propondo
situações fantásticas
ou
inve
rossímeis, aceitáveis, porém, graças ao intuito de divertir o leitor.
Paradigmático é o conhecido poema de Vinicius de Moraes, A Casa ,
que encanta ao lidar com a descrição do lugar que não tinha teto/não
tinha nada . 23
Ao potencializar a fantasia
na
direção do absurdo, o
poema
torna
se surrealista e mágico, como nos versos de Sérgio Capparelli, que con
cebe a seguinte situação
em
Guaraná
com
Canudinho :
Uma vaca entrou num bar
E pediu um guaraná.
24
Manoel de Barros, em O Fazedor de Amanhecer , atribui a um
inventor a capacidade de criar engenhocas estranhas
e
como ele diz,
imprestáveis; dentre elas, salienta-se a que utiliza o poeta, justificando
o teor surrealista dos versos até aqui citados e adotados
também por
aquele autor:
Sou leso em tratagens com máquinas.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei 3 máquinas
Como sejam:
E um platinado
de
mandioca para o fordeco de meu irmão.
25
No entanto, os poetas que escrevem para crianças não precisam
necessariamente fazer o amanhecer; eles podem também se apropriar
das formas populares, conhecidas do público, ajudando a conservá-las
e
ao mesmo tempo, inovando-as. O recurso ao trava-língua lembra
como é possível incorporar uma forma tradicional e adicionar-lhe con
teúdo, significado ou procedimentos originais. O mesmo se passa com
as adivinhas, como pratica José Paulo Paes,
em
é com ré (1993), e
as parlendas, recicladas por escritores como Elias José, em História
Embrulhada
Atirei o pau
no gato-tô
mas acertei no pé
do pato-tôo
Dona Chica-ca
admirou-se-se
do berrô, do berrô
que o pato deu.
Ouvindo de Dona Chica
a risada-da
o pato ficou pirado-dô
e atacou Dona Chica
de bicada-da.
26
142 Como e 1'01' que ler
Os leitores brasileiros de todas as idades conhecem a canção infan
til Atirei
um
Pau no Gato , de.,fí:Í.odo que aceitam facilmente os ver
a Literatura Infantil I Irasileira
143
Notas
1 Paes, José Paulo. Poemas
para Brincai:
São Paulo: Ática, 1990.
2
Lisboa, Henriqueta. O
Menino
Poeta Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. p. 7.
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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sos iniciais do poema de Elias José. A partir desse ponto,
ele
propõe
variações, aceitáveis, primeiramente, porque não altera o pendor do
texto original, com o jogo de repetições da última sílaba, depois, por
que não perde de vista a comicidade resultante da confusão gerada e
antecipada pelo título do texto.
Roda , de José Paulo Paes, por sua vez, l11corpora Ciranda
Cirandinha à estrofes, obtendo resultado inovador, fruto da retoma
da dos vocábulos com sentido novo e do desenvolvimento da pers
pectiva surrealista, já mencionada a propósito de poemas antes exami
nados. Assim, a ciranda se desdobra no ciro que não anda e a
. I . d fu I
eIa-vo ta torna-se tanto a meIa que po e rar, quanto a vo ta
sem meia ou sapato dos últimos versos.
27
Ciranda Cirandinha é provavelmente a cantiga de roda mais po
pular do Brasil, tendo possibilitado variações e incorporações que
se
estendem da música erudita
à
popular, da literatura aos meios de
comunicação de massa, do brinquedo à reflexão filosófica. José Paulo
Paes, nas estrofes, respeita a tradição e tira partido da ambigüidade das
palavras, da possibilidade de desmembrá-las, criando novas significa
ções, da sonoridade das rimas provocadas pelas palavras paroxítonas e
da inventividade da situação surrealista em que coloca os praticantes
da ciranda em versos.
Nada melhor que a mescla de procedimentos utilizada por José
Paulo Paes para concluir o panorama de alternativas que se
abrem a todos que quiserem se expressar
em
versos para a infân
cia brasileira.
Moraes, Vinicius de. O Poeta
Aprendiz
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 48.
4
Lisboa, Henriqueta.
Op
ito
p.
13.
5 Meireles, Cecília.
Ou
Isto ou
Aquilo
3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
p.22.
6 Barros, Manoel de. O
Fazedor
de Amanhem: Rio de Janeiro: Salamandra, 2001.
s.
p.
7
Quinrana, Mário.
Pé
de Pilão 5. ed. Porto Alegre: L PM, 1980. p. 7.
8
Lisboa, Henriqueta. Op ito p. 11.
9
Muralha, Sidónio.
A Televisão da Bicharada
São Paulo: Global Editora,
12
ed., 2003.
10
Capparelli, Sérgio.
Boi da Cara Preta
Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 10.
11 Lisboa, Henriqueta. Op ito p. 35.
12
Meireles, Cecília.
Op
ito p. 14.
3Id p. 79.
14 Cf. Moraes, Vinicius de. A Arca de Noé Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
15 Meireles, Cecília. Op ito p. 11.
6Id p. 12.
7 Id p.
21.
18 d p. 65.
9
Diciondrio
Houaiss
de
Língua
Portuguesa
20
Lisboa, Henriqueta. Op ito p. 6.
21
Capparelli, Sérgio.
Op
ito p. 7.
22
Id p.
18.
23 Moraes, Vinicius de. Op ito p. 219.
24 Capparelli, Sérgio. Op ito p. 28.
25 Barros, Manoel de. Op ito S. p.
26 José, Elias.
Lua
no Brejo Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. p. 11.
27
Paes, José Paulo.
Um
Passarinho
me
Contou
5. ed. São Paulo: Ática, 1998.
a Uteratura Infantil rasileira
145
tas em princípio para o palco, isto é que não resultem do ajuste de
uma
trama conhecida
às
disponibilidades dos atores e
às
condições do
fazer dramático.
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http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 73/93
í
YES NÓS TEMOS TE TRO
F
zer teatro para crianças pode ser fácil
e
ao mesmo tempo, difícil.
É
comum aos grupos de teatreiros apresentarem no palco narrativas
conhecidas do público, por pertencerem à tradição da literatura infan
til, como contos de fadas,
ou ao
folclore nacional. A história do maca
co que roubava bananas no quintal de uma velha e que fica preso
numa
boneca de piche, por exemplo, já foi encenada várias
vezes
algu
mas delas sendo identificada a autoria, como na versão assinada por
Ivo Bender, outras resultando do t rabalho da equipe responsável pela
montagem do texto.
Boa parte das histórias endereçadas à infância pode ser adaptada
para o tablado, pois
se
baseia
na
ação de
um
herói imediatamente reco
nhecível. Assim, os encenadores dispõem de um acervo duradouro de
temas e enredos, garant indo a contínua produção teatral. A facilidade
tem conseqüências: é relativamente pequeno o número de obras escri-
Resulta da peculiaridade do teatro dirigido a crianças uma situação
muito própria: enquanto atividade, ele se mantém vivo e ininterrupto;
só
que o público
é
na
maioria dos casos, local, porque
as
representa
ções de textos destinados à infância raramente migram de uma cidade
para outra, muito menos
se
deslocam para regiões distintas daquelas
onde foram realizados os espetáculos dramáticos. Esses
se
caracterizam
pela individualidade
e
de certo modo, pela irrepetibilidade, podendo
ser considerados únicos, embora múltiplos, porque aparecem na maio
ria dos centros urbanos brasileiros.
Por outro lado, se entendemos o teatro desde a perspectiva dos
textos originais criados por artistas brasileiros, deparamo-nos
com
uma
produção não
muito
numerosa.
Não por eles
não terem sido
escritos, mas porque nem todos chegam a ser publicados. Os que
passaram pela imprensa e transformaram-se em livros, porém, bas
tam para garantir
que
dispomos de uma tradição de textos dramá
ticos dirigidos ao público mirim, o qual, graças à freqüência aos
espetáculos, vai-se constituindo espectador e participante da ação
teatral.
Não
seria exagerado afirmar que, se a narrativa para crianças con
tou
com
um
Monteiro Lobato para dar início a
uma
produção inde
pendente destinada à infância brasileira, o gênero dramático dispôs de
artista equivalente - Maria Clara Machado. Os dois autores, contudo,
não atuaram na mesma época, pois, no Brasil, o Modernismo chegou
tarde
ao
teatro.
146
Como e Por que ler
o fato histórico é consensual: em 1922, com a Semana de Arte
Moderna, o país afinava-se às tendências de vanguarda que experi
mentava a arte na Europa e em várias partes da América. Monteiro
a Uteratura Infantil Ilrasilei, a
ças
e jovens tenha-se desenvolvido apenas a partir da década seguinte,
quando Maria Clara Machado (1921-1981) encenou suas primeiras
p r o d u ç õ e s ~
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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Lobato não participou do movimento modernista, nem aceitou
al-
guns de seus resultados, como a pintura expressionista de Anita Mal-
\
fatti. Porém, mesmo na
c o n t r n i ~ o
do grupo paulista, Lobato adotou
técnicas, estratégias e pressupostos da modernidade, de que é sintoma
o estilo coloquial dos textos, a apropriação de registros da indústria
cultural, a discussão de questões sociais e políticas em obras de ficção.
Foi igualmente um homem de ação, industrial e batalhador pela
modernização das relações entre escritor e público, bem como entre
escritor e editor. Assim, podemos alinhá-lo ao Modernismo, aceitan
do que a proposta é controversa e que isso não significa transformá-lo
em parceiro ou partidário de intelectuais e poetas como Mário de
Andrade e Oswald de Andrade.
O fato é que, na década de 20, quando começa a redigir os primei
ros livros destinados aos pequenos leitores, inaugurando a série com
Menina do Narizinho
Arrebitado
Monteiro Lobato está acompa
nhando o processo de modernização por que passa a literatura brasi
leira na época.
O teatro recebeu pouca atenção durante a Semana de Arte Mo
derna, ao contrário da poesia, música e pintura, as artes que mais atraí
ram o interesse de criadores e público. Oswald de Andrade é autor de
algumas obras destinadas à encenação, como O Rei da Vela (1937), mas
é Nelson Rodrigues que, entre
1943
e
1944,
revoluciona a cena brasi
leira, graças
a
Vestido de
Noiva drama dirigido por Zbigniew Ziem
binski. Não espanta, pois, que o teatro cujo público previsível são crian-
Ela é autora de um grande número de peças, tendo produzido a pri
meira, O Rapto das Cebolinhas em 1954. A consagração acontece logo
em seguida, decorrente da apresentação, em 1955, de
Pluft o
Fantas-
minha. Também suas, e datadas da década de
1950, são Bruxinha
que Era
Boa
O Cavalinho
zul
e
Menina e o Vento.
ação de Pluft o
Fantasminha
concentra-se
num
único cenário, a
casa mal-assombrada habitada pelo herói, a mãe, uma viúva saudosa do
marido, e
um
tio, Gerúndio, sempre com sono e que dorme no baú
ambicionado pelo vilão. intriga acompanha, pois, as noções básicas
do teatro: há unidade de espaço, de tempo, pois os acontecimentos
limitam-se a uma noite, e de ação. Durante
esse
período, a menina
Maribel é seqüestrada pelo pirata Perna de Pau, que deseja encontrar o
tesouro escondido na
casa
pertencente ao avô da garota, o Capitão
Bonança. Três marinheiros amigos de Maribel tentam ajudá-la, mas
quem a salva dos perigos e resolve o problema é a criatura indicada no
título.
Pluft é um sujeito bastante peculiar: não é humano, pois nasceu
fantasma, mas
se
comporta como pessoa; pertencente a uma espécie
conhecida por assustar e assombrar, tem medo de gente ; ocupando
o papel de protagonista, mostra-se seguidamente tímido e inseguro.
É
induzido pela mãe a
se
corrigir e a mudar; mas somente a necessidade
de enfrentar o perigo, a aliança com a menina, representante do grupo
humano, e o sentimento de que tem condições de triunfar garantem
sua afirmação pessoal e o final feliz
Como e 1 01
que
l r
Pluft
O
Fantasminha
revela, pois, muitos dos medos infantis e
os
modos de vencê-los. A superação das lacunas pessoais depende da ini
ciativa do herói, que, s i m b o l i c a m e n t ~ \ passa por um ritual de inicia
a
Uteratura Infantil Brasileira
149
A comi cidade aparece de várias maneiras: o sono de Gerúndio
constitui uma de suas manifestações, complementadas pelas reações
da mãe dePluft cujas conversas telefônicas com a prima Bolha
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ção, conforme o qual o ser medroso e ~ r e n t e de proteção transforma
se numa figura confiante e amistosa. Não por outra razão a mãe de
Pluft,
ao
incentivá-lo a participar da ação de salvamento de Maribel,
insiste para que o filho se revele
um
fantasma de verdade , de quem
o pai
se
orgulharia.
A intriga remonta, pois, a um tema de origem mítica, que, na
passagem da religião para a literatura e a arte, fecundaram a poesia,
o drama e as histórias populares, de que são exemplos os contos de
fadas. Maria Clara Machado,
ao
compor a narrativa básica de
Pluft
o antasminha retoma, pois, às origens do teatro e da literatura
infantil, coerente com os gêneros a que filia a obra. Ao mesmo
tempo, confere-lhe teor próprio e original, não apenas por combi
ná-los num único texto, mas por avizinhá-los da criança contempo
rânea. A aproximação decorre da apropriação dos elementos pecu
liares ao mundo da magia, representado pelo pequeno fantasma
protagonista da intriga e, ao mesmo tempo, pertencente ao univer
so imaginário da criança moderna, que transfere para seres sobrena
turais como ele
os
temores e a vontade de suplantar receios que a
intimidam.
A peça, trabalhando com questões pertinentes ao universo infantil,
não constitui, porém, manual de psicologia ou de tratamento de defi
ciências individuais. Preocupa-se em primeiro plano com o andamen
to e a eficácia da ação, traduzidos por meio de
um
conflito e os modos
de superação, marcados sobretudo pelo apelo ao humor e ao riso.
D'Água atrasam o desenvolvimento da ação e aumentam a
n s i e d ~
de e o suspense do público. Os sustos que experimentam
as
diversas
personagens, seja
os
do herói, seja
os
dos três marinheiros que ten
tam auxiliar Maribel, seja os do adversário Perna de Pau, completam
a idéia de tornar a peça atraente para o auditório, além de colaborar
com o propósito de dominar o medo pela exposição de seu lado
cômico. Importam também para motivar o riso e a diversão algumas
alusões que podem não ser compreendidas por todos, mas que per
manecem nas
falas
da personagens esperando quem
as
entenda; é o
caso da menção ao pai de Pluft, que fora o fantasma da ópera e que
se orgulharia do rebento, se tivesse tido a oportunidade de ver o filho
em ação. Fantasmas supostamente não morrem, e também
essa
situação absurda é razão para que a intriga não perca em graça e
divertimento.
Maria Clara Machado estabeleceu importantes paradigmas para o
fortalecimento de uma dramaturgia nacional dirigida à infância brasi
leira. Os enredos privilegiam personagens crianças no papel de prota
gonistas e valorizam a trama, baseada
num
conflito solucionado por
efeito do engenho das personagens, que, graças às iniciativas tomadas,
amadurecem e contribuem para a sociedade a que pertencem. A noção
de espetáculo que adotou apóia-se no desdobramento da ação, conforr-
me a lição do gênero,
mas
não abre mão do humor, ponto de partida
para o envolvimento do espectador, que se delícia com o non sense de
algumas figuras e compartilha as soluções propostas.
15
Como e Por que
ter
Os assuntos propostos pela dramaturga variaram bastante, destacan
do-se as tramas inventadas por ela como é o caso de Plufi sua criatura
mais conhecida. Valeu-se também de personagens oriundos da tradição
a
Uteratura
Infantil
I' rasileira
A intriga, calcada na trajetória dos músicos de Bremen, destaca a
importância da solidariedade, da amizade e da resistência. Os animais
que protagonizam o enredo, fadados à destruição, unem-se para, pri
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popular, como bruxas e dragões, e adaptou para a cena histórias de fadas
de extração européia. Tal como Monteiro Lobato
fez
no âmbito da
fic-
ção, mostrou que todos
os
temas podem ser encenados e apreciados pelo
público infantil, desde que não se perca a perspectiva da audiência,
amante da diversão e capaz de identificar-se com as figuras apresentadas.
Os sucessores de Maria Clara Machado não perderam de vista as
propostas da dramaturga; ao mesmo tempo, trataram de integrar a elas
sua contribuição pessoal. Exemplo disso é o espetáculo provavelmen
te mais popular da década de 1970:
Os
Saltimbancos de Chico Buarque
de Holanda.
O músico e letrista brasileiro era já bastante conhecido, quando, em
1977, traduziu o texto de Sérgio Bardotti, baseado
numa
das histórias
dos Irmãos Grimm, a dos músicos de Bremen. O fato de que a auto
ria do original pertence a um escritor italiano pode colocar em dúvida
a relação de
Os
Saltimbancos com a literatura dramática nacional.
Contudo, Bardotti,
ele
mesmo, apoiou-se numa narrativa que remon
ta à coletânea dos Grimm, que, da sua parte, recolheram-na da tradi
ção popular do centro da Europa.
Os
Saltimbancos
sintetiza,
na
sua
composição, a máxima de Lavoisier, citada no começo desta obra,
colocando sob suspeita a noção de originalidade e de propriedade. Se
Chico Buarque de Holanda não inventou a obra,
ele
a incorporou ao
cenário brasileiro, respondendo a questões experimentadas nos anos
70, e suscitando uma tradição e
um
impacto que perduraram por
muito tempo.
meiramente, manterem-se vivos, depois, para não cederem
ao
poder,
enfim, para derrubá-lo. Encenado pela primeira vez à época em que o
regime militar vigorava e ainda vitimava a população brasileira, repre
sentou a expressão da discordância e da necessidade de união, para
combater a violência e a opressão, matéria de uma das canções inter
pretadas pelo grupo central de personagens.
Os Saltimbancos não perdeu a atualidade com o passar do tempo,
haja vista
as
sucessivas encenações até os dias de hoje e a permanência
da popularidade da maioria das canções. Enquanto teatro, explora
possibilidades que ajudaram a dramaturgia brasileira endereçada a
crianças a crescer e consolidar-se. Patenteia, primeiramente, a valida
de de se lidar com temas conhecidos pelos espectadores, que, assim,
acompanham a história com mais facilidade. Insere a música ao espe
táculo, valorizando recursos cênicos originários de outras expressões
artísticas.
Por último, frise-se que introduz figuras de animais na condição de
personagens principais, agindo e manifestando-se como seres h u m ~
nos. O processo, usual na ficção e na poesia, como se explanou antes,
apresenta maior dificuldade quando transposto para o palco, porque
supõe dos atores a ambigüidade de parecerem bichos e expressarem-se
como homens. Plufi Fantasminha de Maria Clara Machado, ante
cipava essa dificuldade, pois o protagonista não pertence à raça huma
na, mas não pode se afastar d ~ m i s dela, para ser entendido pela au
diência e provocar a identificação entre a personagem e o público.
52
Como
e
Por
que
le r
Os
Saltimbancos lida com questão similar e prova que a dramaturgia
endereçada
à
infância precisa supor tanto textos divertidos e verossímeis,
quanto diretores, encenadores e atores capazes de lidar com a duplicida
a
literatura
Infantil B rasileira
53
uma mulher, o segundo, a luta entre uma mãe e o seqüestrador da filha,
o terceiro, o permanente conflito entre o cachorro, o gato e o rato, o
último, o combate entre Lampião e os demônios.
As
pelejas,
por
sua
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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de própria do gênero, que,
se
começa com
um
texto, revela eficácia por
intermédio do espetáculo público, e não por meio da leitura.
A peça de Chico Buarque de Holanda aparece no cruzamento de
duas tendências que, doravante, trilham caminhos próprios.
Uma
delas
caracteriza-se pela ênfase na temática contestadora, de que é exemplo
As Cartas não Mentem Jamais , de Ana Maria Machado, publicada
no volume Hoje Tem Espetáculo de 1984. A outra apóia a construção
dos enredos na exploração de histórias populares, pertencentes
ao
fabu
lário nacional, como
faz
Ivo Bender
na
trilogia O Macaco
e a Velha
de
1978, e Raimundo Matos Leão,
em
Quem
Conta um
Conto umenta
um Ponto
de 2003.
O t ítulo desse último trabalho, apropriando-se de um dito popular,
sugere que a base
da
ação são
as
histórias folclóricas, exibidas
à moda
das feiras populares, com o cantador tomando a palavra e declaman
do versos. Assim, embora
as
falas
sejam ditas e não entoadas, como
na
música, a poesia está presente, como
no
anúncio do locutor:
Sou cantador de muita prosa,
faço verso e
reverso.
Conto um conto, aumento um ponto.
l
Tal como nos exemplos anteriores, o espetáculo inclui boas doses de
humor, decorrentes da colagem de episódios que compõem a obra,
todos de extração popular. O primeiro narra a rixa entre
um
macaco e
vez, contêm importante peculiaridade:
os
que parecem mais fracos ven
cem os mais fortes, graças
à
astúcia ou
à
agilidade, permitindo que o
espectador tome o part ido daqueles que, de certo modo, representam a
situação
da
criança, seguidamente o ser mais frágil na cadeia do poder.
No
meio do caminho, sem
se
preocupar, de
um
lado, com o tema,
nem, de outro, buscar apoio na tradição popular, está Sylvia Orthof,
que depende sobretudo da capacidade de invenção, como exemplifica
Eu Chova tu Chaves
ele
Chove um
de seus primeiros textos para tea
tro, premiado
em 1976 em
concurso realizado
no
Paraná. Seu propó
sito desafiador patenteia-se desde o título, que conjuga o verbo chover
em
primeira, segunda e terceira pessoa, quando, na gramática, é con
siderado forma impessoal.
Por sua vez, lidando com seres do mundo
aquático, a maioria deles inanimados, como o Chuveiro
ou
a
Nuvem
a autora desafia
os
limites
da
imaginação.
Não perde, contudo, o
fio
da meada, pois une
as
situações absurdas
decorrentes da
~ t u r e z
das personagens
(a
tromba-d'água que aparece
sob a forma do Príncipe Elefântico) a uma narrativa dotada de princí
pio, meio e fim. Tal como em
Pluft o Fantasminha
de Maria Clara
Machado, Pingo, o protagonista, é encarregado de uma tarefa, cujo
cumprimento provoca transformações no
mundo
representado. Tal
como nas histórias de Chico Buarque de Holanda e Raimundo Matos
Leão, a personagem mais frágil deve suplantar obstáculos e afirmar-se
perante
os
demais.
Como
parece ser próprio do teatro destinado
à
infân
cia, haja vista o conjunto examinado de obras, o ludismo e o
humor
154
Como
e
Por que lei
constituem fatores fundamentais para conquistar o interesse do público,
freqüentemente levado a participar das cenas com que a ação conclui.
Na
peça de Sylvia Orthof, o humor
s s º ç i a ~ s e
ao absurdo e sobretu
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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do,
às
metamorfoses experimentadas pelos figurantes, produzidas mui
tas vezes pelo processo de associação de idéias. Por isso a mencionada
tromba-d água pode
se
transformar no Elefante, e o Chuveiro dar
ordens ao Pingo, seu subalterno e herói da trama. O non
sense
por sua
vez não rompe com o universo infantil, pois, partindo dos elementos
do cotidiano, recorre ao imaginário na forma como atua a criança, capaz
de conferir vida a seres inanimados, quando deseja brincar e
se
divertir.
De Maria Clara Machado a Sylvia Orthof, a dramaturgia infantil
construiu
uma
trajetória e mostrou a encenadores, atores e diretores os
caminhos possíveis para encantar, e ao mesmo tempo formar, o públi
co constituído de crianças.
Uma
trama, marcada por problema e solu
ção, constitui requisito indispensável; entre
os
dois pontos, cumpre
incluir personagens que suscitem a identificação e o apoio do público,
provoquem o riso e envolvam os espectadores.
Os autores vocacionados para o teatro souberam realizar a tarefa e
assim, conferiram consistência à tradição dramática destinada à infân
cia brasileira.
otas
Leão Raimundo Matos.
Q}lem
Conta
um Conto umenta um
Ponto
2
ed,
São
Paulo:
Saraiva, 2003,
4
o
~ a n d o
lançou
Flicts
em 1969, Ziraldo talvez não previsse a
revolução que provocava na ilustração de livros infantis brasileiros.
Naquela obra, as imagens, não figurativas, não correspondem a um
ornamento do texto, complementando as informações escritas; pelo
contrário, as cores é que falam, compet indo à expressão verbal esclare
.cer o assunto e explicar o conflito, vivenciado pelo herói, ele mesmo
um
pigmento que não encontra lugar no universo dos tons pictóricos.
Flicts
não seria
um
livro sem
as
imagens que o compõem, efeito da
inspiração artística que levou Ziraldo a produzi-lo. Esse, porém, não
restringiu a criatividade apenas à obra em questão. O
Menino
Malu-
quinho
de 1980, acrescenta mais um sucesso àcarreira do aut or e pro
põe outra modalidade de formulação revolucionária.
Entendido da perspectiva da ilustração, O Menino
Maluquinho
não
parece tão inovador, pois Ziraldo emprega seu traço característico em
56
Como
e
Por
que
ler
figura desenhada em preto, sobre o fundo branco onde coloca o texto.
O livro, porém, não conta
uma
história, embora
se
apóie sobre a tra
jetória de
uma
personagem que
se
tornou paradigmática e bastante
a
l i teratura Infantil Brasileira
57
um
e outro banho, mostram-se cenas internas - um dormitório,
uma
sala de jantar,
um
vestíbulo - e externas, como a rua ou a praia. O mo
vimento depehde, de um lado, da mudança das páginas, pois os am
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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popular, haja vista o êxito do livro, das histórias em quadrinho prota
gonizadas pelo garoto e enfim, do filme dedicado a ele.
O
Menino
Maluquinho constrói-se, pois, a partir do ângulo da ima
gem figurativa do herói, estando cada página dedicada a
um
recorte de
seu cotidiano. A proposta, hoje aparentemente óbvia, dada a grande
difusão e aceitação da obra, era inusitada quando do lançamento do
livro, colocando seu criador na vanguarda de nossa melhor literatura
infantil. Ziraldo não se limitou a publicar
os
títulos até agora menciona
dos, contribuindo ainda com obras do porte de
O Planeta Lilás 1979),
Bela Borboleta
1980)
ou
O Bichinho
da Maçã
1982), atuando como
escritor e ilustrador, sempre de modo inventivo e bem-humorado.
Não apenas Ziraldo conferiu status artístico à ilustração, entenden
do-a como
uma
linguagem auto-suficiente, ainda que vinculada
ao
universo da literatura infantil, por aparecer em materiais impressos,
como livros, e não em pinturas
ou
outra categoria de arte visual. Com
efeito, a ilustração, nesses casos, substitui a linguagem verbal, o texto,
mas não
os
elementos próprios literatura, como a narrativa, a opção
por personagens humanos
ou
humanizados, a adoção de
um
ponto de
vista.
Ida
e Volta
1976), de Juarez Machado, exemplifica
as
proprie
dades da ilustração em livros para crianças, constituindo-se ao mesmo
tempo em obra modelar do gênero.
O livro é formado por 32 páginas e capas, estando representada
uma
figura diferente em cada
uma
delas. Cada quadro apresenta
um
cenário estático, sendo o primeiro e o último deles um banheiro; entre
bientes são substituídos, para sugerir o deslocamento no espaço.
De
outro, decorre
na
inserção, a cada página, de marcas de pés, descalços,
depois calçados
e
de novo, descalços.
Nenhuma
palavra explica o texto, embora apareça o anúncio de
um
circo, por exemplo. A narrativa, porém, não fica excluída, porque
as
marcas dos pés vão contando a história que se segue a cada página,
além de introduzirem um sujeito humano, responsável pelos passos
que deixam sinais visíveis ao leitor. Este pode traduzir o enredo em
palavras, completando com a linguagem verbal o que
as
imagens suge
riram. Estas falam, mas a expressão é quase que unicamente visual. O
que impede que o produto seja inteiramente visual é a necessidade de
adotar
um
título -
Ida e Volta -
sugestivo, ele mesmo, do assunto da
obra e de que nenhum livro pode prescindir.
Eis por que Ida
e Volta
é criação inovadora e sugestiva, comprome
tida, porém, com o gênero de que
faz
parte. Proporciona caminhos
possíveis não apenas para o leitor ainda não alfabetizado, pois a busca
do entendimento da ação por intermédio das figuras pictóricas envol
ve
todo e qualquer interessado na obra. E oferece alternativas também
para
os
autores que acreditam que a comunicação se engrandece,
quando recorre
à
possibilidades da imagem. Angela Lago é
uma
das
autoras mais fecundas no que diz respeito ao acatamento da proposta
de Juarez Machado.
Os primeiros livros,
Sangue de Barata
1980) e Uni
Duni e Tê
1982), introduzem a autora, responsável pela narrativa e pela ilustra-
153
Como
e
Por que
Ler
ção, Em ambos, a ilustração está, como
é
usual em livros para crian
ças
a serviço do texto, que, da sua parte, paga
uma
siívida
à
tradição
popular, sobretudo
às
frases feitas e
às
parlendas, éomo exemplificam
a
l i teratura Infantil
I'lt'asileira 159
conteúdo importado de sua existência e a novidade decorrente da
fic-
ção narrativa.
Como
a experiência extraliterária provém da brincadei
ra o elemento lúdico migra para a obra lida, que
se
apresenta enquan
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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os títulos das obras. O segundo livro, confirmando o nome, utiliza, na
página inicial, o quarteto de versos bastante freqüente nas brincadei
ras
de crianças:
Uni duni e tê
salamê mingüê
um sorvete colorê
uni duni e tê.
1
As
parlendas aparecem em outros momentos, como em:
Dizei, senhora viúva,
com quem quereis se casar.
Se é
com o filho do conde,
ou
se
é com o senhor general.
A obra, contudo,
se
soma a
essas
cantigas,
os
versos de
O
Cravo e
a Rosa , D. Xica , Samba Lelê , não constitui uma coletânea da tra
dição popular: é produto da criatividade da escritora, que amarra o
material de extração folclórico a uma seqüência narrativa de desenvol
vimento lógico e fundamentado nos princípios da intriga policial, com
início, meio e fim. A peculiaridade de trama decorre, assim, da cir
cunstância de o livro estabelecer o diálogo entre
um
conhecimento
adquirido fora da literatura e uma experiência nova, propiciada pela
história contada, facultando ao leitor vivenciar simultaneamente um
to jogo e divertimento.
Em Uni
uni
e
Tê o texto predomina sobre a ilustração, que, por
sua vez não pode ser julgada meramente decorativa. Os desenhos, a
bico-de-pena, tendem ao surrealismo, endossando e sublinhando o
non sense
que funda
as
letras das cantigas e parlendas, de modo que
interage de modo harmônico com a história.
utra Vez
de 1984,
que, contudo, revela a ruptura da autora com o discursivo da lingua
gem verbal.
Como Ida e
Volta
de Juarez Machado, a exclusividade conferida à
ilustração não afasta a obra do campo da literatura. A adoção de um
título, o modelo de diagramação, que aponta para a preferência pelo
livro enquanto produto destinado a divulgar a criação da escritora, a
opção pela seqüência narrativa reforça a noção de que a literatura in
fantil foi o gênero escolhido e aprovado por Angela Lago. Mas a ima
gem
se
sobrepõe à palavra a cada página de
utra
Vez.
A narração propõe, de certo modo,
uma
releitura do livro de Juarez
Machado, cujos títulos remetem, ambos, para a circularidade da ação.
Aliás,
utra
Vez enquanto título, pode significar também a confissão
de dívida para com a criação de Machado, já que indica indiretamen
te que volta àquela obra, a quem visita de novo.
As
semelhanças devem-se também à construção do enredo, pois
ambas
as
histórias encetam por um trajeto que conclui quando
as
per
sonagens
ou as
situações retornam
ao
começo. O leitor, acompanhan
do a seqüência com o virar das páginas, é convidado a voltar ao prin-
160
Como
e
Por que
ler
dpio, revendo as figuras e acrescentando outros sentidos
à
interpreta
ção inicial dos eventos.
Chiquita
Bacana
e
as Outras PequetitaJ; de 1986, retoma experiên
a
l i teratura
Infantil
Bt'asileira
161
resposta
às
descobertas da psicanálise, ciência que privilegiou
as
mani
festações do inconsciente, dentre essas especialmente o sonho. A lin
guagem do sonho, primariamente simbólica, encontrou terreno fértil
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cias narrativas e pictóricas alcançadas em Outra Vez mas, ao mesmo
tempo, libera Angela Lago da dívida para com os bons resultados
alcançados por Juarez Machado e reiterados naquele livro.
Chiquita
Bacana
constitui-se de dois movimentos diferentes, decorrente, o pri
meiro, do texto, e o segundo, das imagens.
O texto organiza-se em quintilhas rimadas, que narram, na perspec
tiva de uma primeira pessoa, o aparecimento das cinco pequetitas ,
comandadas por Chiquita e provenientes da Martinica. As visitantes
noturnas são surpreendidas pela narradora, que procura aprisioná-las;
pensa ter conseguido, mas acaba cedendo liberdade às invasoras, que
desaparecem
na
noite.
No
dia seguinte, o quarto onde elas haviam
aparecido está desarrumado, e os pais atribuem à desordem à menina
que conta a história.
As figuras, da sua parte, não replicam o texto, e sim relatam uma ação
paralela, pois expõem cenas do dormitório da narradora, vistas de cima,
como se um ente superior acompanhasse as reações da criança amedron
tada. A adoção dessa perspectiva torna a narrativa cinematográfica,
como se uma câmara aérea acompanhasse os atos das personagens.
A descrição acima não esgota os recursos pictográficos aproveitados
pela autora. Primeiramente, cabe ressaltar que
as
imagens, mais do que
em
Uni uni e
Tê incorporam componentes surrealistas, como
se
veri
na pintura de espanhol Salvador Dali ou do alemão M. C. Escher,
padrões geométricos desafiam a lógica e o racionalismo. O Sur
' '-CUh''' como se sabe, expandiu-se na pintura e na poesia enquan to
nas artes plásticas, que, assim, romperam com os limites da representa
ção e procuraram exteriorizar imagens produzidas pelo psiquismo
humano, de
modo
independente da coerência, verossimilhança ou
racionalidade.
O mundo dos sonhos aparece na narrativa de Angela Lago, traduzido,
de um lado, pelas visões oníricas sugeridas pelo estilo surrealista, de outro,
pela situação da personagem, amedrontada, que expõe temores por meio
das figuras que povoam seu imaginário e que, na sua concepção, apare
cem de modo inusitado à noite. O ângulo com que o tema é traduzido,
por sua
vez
não enfatiza o medo, e sim o humor, graças às rimas e ao pro
cesso de associação de palavras com que o texto é construído:
Uma noite, lua
cheia
Taquetaque sapateia
e Tiquetique saltita,
Chiquita saracoteia
e subtrai minha fita.
Mas enquanto
as
capetas
pipocavam em piruetas,
preparei a arapuca,
com chicletes e chupetas,
e biscoitos de araruta.
2
O temor expressado pela narradora é contrabalançado pela comici
dade, abrandando a atmosfera experimentada pela personagem. O
162
Como
e
Por que ler
humor
consti tui assim outro dos fatores de distanciamento do leitor
perante o texto complementando o artifício representado pela focali
zação da cena exibida de cima como se observou antes.
a
Literatura Infantil Brasileira
163
rado e o vendedor pobre seja por colocá-la num espaço caracterizado
pela agitação o movimento intenso e o risco permanente. A esquina é
igualmente significativa enquanto cenário da ação por traduzir a
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Um
último processo pode ser ainda mencionado relativo ao esta
belecimento de uma distância entre o que é exposto em
Chiquita
Bacana e as
Outras
Pequetitas
e a atitude do leitor.
Como
se constata
nas páginas iniciais o texto formado pelas quintilhas aparece dentro
do desenho de um livro; depois são folhas soltas e espalhadas pelas
peças da casa que reproduzem estrofes. Assim a linguagem verbal está
integrada a
um
objeto visual que compõe o cenário transformando-se
em parte da ilustração. Além disso
ele
sugere que há por trás das pági
nas reproduzidas contendo
os
versos um enunciador sobrepondo-se
à personagem narradora.
O efeito duplica a narração pois à personagem que conta seus
medos e o confronto com
as
invasoras comandadas po r Chiquita Ba
cana soma-se
um
sujeito que lê o livro materializado pelas ilustrações.
Resulta um paulatino descolamento do leitor em relação à narradora
original facultando que aquele usufrua livremente as cenas cômicas
proporcionadas pela obra.
Angela Lago exercita a inventividade ainda em outro livro Cena
de
Rua,
de 1994. Essa é uma obra dominada exclusivamente pela imagem
que narra o cotidiano de
um
menino de rua vendedor de frutas em
esquina movimentada. O resumo sugere de imediato a passagem para
um tema de orientação
social .
pois o herói é a criança trabalhadora que
enfrenta
os
perigos do trânsito e o mau humor dos possíveis clientes.
A violência exercida sobre a criança esboça-se desde a primeira ima
gem seja por contrapor o adulto e a criança o comprador endinhei-
encruzilhada vivenciada pelo herói que da sua parte não dispõe de
muitas escolhas haja vista a última página e imagem da narrativa que
repete a primeira. Cena
de Rua
retoma o processo narrativo de
Outra
Vez,
mas a circularidade expressa no caso que à personagem faltam
alternativas de mudança
ou
melhoria.
Não
apenas Angela Lago dedicou-se nos últimos vinte anos a fazer
falar a ilustração. Elvira Vigna deu mostras de criatividade
na
série de
histórias que narram as aventuras de Asdrúbal o terrível. Em Viviam
como
Gato
e Cachorro,
de 1979 a autora vale-se da tradicional dispu
ta entre
os
animais para manifestar
os
conflitos perenes entre
os
seres
humanos dentro e fora da família.
Eva Furnari por sua
vez
enfatizou preliminarmente a narrativa em
quadrinhos protagonizadas pela bruxinha misto de feiticeira e crian
ça travessa que lidera histórias originais e divertidas.
Bruxinha tra-
palhac ., de 1982 inaugura a série a que se seguiram livros entre 1983
(A
Bruxinha Encantadora e seu
Secreto
dmirador Gregório)
e 1997
(Bruxinha e as Maldades da
Sorumbática).
A ilustração é parte constituinte das publicações endereçadas
às
crianças. Nos exemplos citados ela suplanta essa condição apresen
tando-se como a matéria principal do livro a que se subordinam a
palavra e a temática. A produção brasileira representada por artistas
como Ziraldo Juarez Machado Angela Lago Elvira Vigna e Eva
Furnari chegou a um nível de excelência que a faz merecedora de toda
a consideração.
64
Como
e POi
que
l r
Notas
1 Lago Angela. Uni
uni
e Tê 7. ed. Belo Horizonte: Comunicação s. d. s. p.
2 Lago Angela. hiquita Bacana
as
Outras Pequetitas Belo Horizonte:
Lê,
1986. s. p.
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PARA ONDE
VAMOS
m 1982 Ricardo Azevedo publ icou instigante livro desde o pro
jeto editorial pois a primeira página traz o algarismo 30 daí para a
frente decrescendo a numeração até chegar à primeira. A proposta é
igualmente singular: as frases de abertura reproduzem-se no fim só
que dentro do desenho das folhas de um livro duplicando o processo
da leitura.
Conforme o processo o que se lê ao final ainda que coincida com
o começo pertence agora ao livro que o protagonista redigiu. Como
porém segundo a numeração trata-se da página de abertura o leitor
se
depara com um movimento circular que o impede de decidir
se
está lidando com o livro original ou com o que o escritor-protagonis-
ta escreveu.
o modo como o escritor-protagonista chega à redação do texto é
igualmente desafiador.
No
princípio
ele
se encontra sem inspiração
166
Como
e
Por
que
Ler
como ocorrerá, alguns anos depois, ao narrador de O
Fantdstico
Mis-
tério
de
Feiurinha de Pedro Bandeira, mencionado antes. Resolve, de
toda maneira, dar partida à elaboração da narrativa, apelando para per
sonagens e situações conhecidas, como são os patinhos, na primeira
a
Literatura
Infanti l
rasileira
161
nos ültimos anos. Assim, explicita a direção tomada pela ficção e poe
sia endereçada à criança, indicando que rumos toma no presente
e,
provavelmente, assumirá em futuro próximo.
Amigos
Secretos
de Ana Maria Machado, aponta que caminho vem
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tentativa,
ou
Chapeuzinho Vermelho, na segunda. Um fato então o
surpreende: as figuras criadas por ele saltam para fora da história e
queixam-se do destino que lhes é conferido, de preferência invariável.
À dificuldades de criação somam-se
os
problemas experimentados
com a revolta das personagens, que requerem tratamento inovador por
parte do artista. Quando ele, enfim, consegue liberar a inventividade,
escolhe escrever o que lhe aconteceu, razão por que a história conclui
por uma retomada no princípio, ainda que o leitor possa hesitar dian
te do fato de ter de definir onde mesmo a narração começa.
A resolução do escritor-protagonista vem acompanhada de uma refle
xão, que o leva a perguntar: Quem sabe não fosse hora de parar, mudar
um
pouco de assunto." A seguir, formula
um
programa de ação:
Quero escrever o que me der na telha, mas sem esquecer o lugar onde
estou, as pessoas daqui, a
vida
que a gente
leva,
.. Vou olhar um pouco,
inventar um pouco, lembrar um pouco, fazer uma misturada daquelas
e pronto .. Tem muito pano pra manga .. É assunto a dar com
pau
2
O programa de ação do homem no sótão" não esclarece apenas o
projeto da personagem, podendo ser aplicado à literatura infantil bra
sileira das últimas décadas. Não somente
isso:
pode-se afirmar que ele
emoldura a produção mais recente, que abrange tanto
os
autores que
estrearam entre as décadas de 1970 e 1980, quanto
os
que apareceram
sendo
esse.
A narrativa, publicada
em
1996, centra-se
num
grupo de
meninos que, por força de eventos fantásticos, vem a conviver com as
personagens do sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. For
ma-se uma imbatível equipe de companheiros, pois, além de figuras
produzidas pela imaginação do escritor brasileiro, somam-se as que ele
inseriu nas terras de Dona Benta, como Peter Pan, ou verteu para a
língua portuguesa, como
Tom
Sawyer, aliados para ajudar o necessi
tado Durval.
A obra, de certo modo, carnavaliza o processo utilizado por Lobato
na composição dos textos, pois, ao congregar,
num
único espaço, per
sonagens da literatura brasileira e estrangeira, criações importadas,
próprias e de outros autores, Ana Maria Machado duplica e, ao mes
mo tempo, revela o modo como
os
escritores trabalham. A criativida
de joga com o conhecido, para formular o desconhecido, numa ação
permanente e contraditória de espelhamento e invenção. Tal como na
obra de Ricardo Azevedo, a autora não reproduz o já feito, mas utili
za-o para implantar sobre ele a novidade.
O
déjà
vu no caso de migos Secretos inscreve-se sobre a obra de
Monteiro Lobato, que, da sua parte, tinha procedido dessa maneira a
partir da literatura estrangeira, sobretudo européia. Agora, é ele quem
fornece
os
padrões a serem incorporados pelos autores nacionais, ofe
recendo-se como modelo e espaço de intertextualidade. O espelho uti
lizado para os novos autores
se
mirarem não mais provém de fora, mas
68
Como
e
Por
que
ler
de dentro de nossa tradição, aparecendo o criador de Narizinho e
Emília como o clássico a reverenciar
e
ao mesmo tempo, transgredir.
Eis o fato revelado r da maturidade da literatura brasileira destinada
às
crianças, fato que não
se
restringe ao texto de Ana Maria Machado.
a
Literatura Infantil Brasileira
69
no título, tem como assunto o caso do livro , única vez em que
as
duas, até então sempre divergentes, chegaram a um acordo .3 O li
vro, matéria da discussão das duas, é a obra em que cada uma encon
tra a história de que gosta: Manuela,
as
narrativas românticas com
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 85/93
Em
1997, Luciana Sandroni publicou
Minhas
Memórias
de Lobato
biografia do autor escrita por duas de suas criaturas, Emília e o Vis
conde, conforme uma inovadora técnica de produção.
Em
vez de o
autor discorrer sobre
as
personagens, são
elas
que contam a história de
seu criador.
Não
apenas
isso:
o modo de redação apóia-se sobre
um
livro do próprio Lobato, Memórias
de Emília
em que a boneca pro
põe relembrar suas principais aventuras. Só que ela não escreve o texto,
transferindo a tarefa ao Visconde, que resmunga e protesta, mas dá
conta do trabalho.
inhas
Memórias de Lobato
joga com estratégia similar: a boneca
aceita fazer o serviço, mas delega-o ao Visconde, fator que garante à
obra
uma
dinâmica própria, apoiada sobre o diálogo: de
um
lado,
entre
as
personagens responsáveis pela feitura da biografia; de outro,
com o paradigma representado pelo escritor paulista, imitado
na
esco
lha do gênero memorialista, mas, ao mesmo tempo, negado, porque
ele
passa da condição de criador para a de criatura.
O procedimento é próprio de
um
gênero literário, a paródia, a quem
compete garantir a dinamicidade da literatura, capaz de propor a novida
de sem abolir a tradição, mas não deixando de simultaneamente, violá
la a cada passo. Eis o que pode ser considerado o estágio atual da litera
tura infantil brasileira, revelando-se ainda em outros textos e autores.
O primeiro a ser lembrado é Manuela
eFloriana
de Luciana San
droni, publicado
em
1997. Protagonizado pelas heroínas designadas
final
feliz;
Floriana,
as
tramas de ação e suspense que provocam medo
no leitor. O acordo a que chegam é o de que elas viveram
felizes
lendo histórias para sempre , encontrando
na
literatura a realização
das aspirações enquanto leitoras, base da harmonia e da amizade.
Os modelos de narrativas preferidos pelas duas personagens dife
rem, mas ambos decorrem de
uma
tradição conhecida: no de
Manuela, estão presentes Chapeuzinho Vermelho e príncipes encan
tados, enquanto o de Floriana conta com dragões famintos e perigo
sos
que atacam a população de uma desprotegida aldeia.
Como
nos
casos mencionados, elas apresentam
um
imaginário povoado de figu
ras e situações decorrentes de um conhecimento da literatura, mesmo
quando caracterizadas, como acontece no enredo de Luciana Sandro
ni, como não alfabetizadas.
O fato de as personagens ainda não saberem decifrar as palavras
impressas no livro não impede que pertençam ao
mundo
da leitura,
configurado aqui pelo fato de Manuela aparecer com
um
livro e pôr
se
a tentar adivinhar o que está ali escrito. Essa é a condição da crian
ça contemporânea, imersa desde cedo no universo da leitura, a que
chega por força das narrativas e canções que ouve, do cenário urbano
em que habita, dos meios de comunicação de massa que povoam seu
cotidiano.
Manuela
e
Floriana sugere como essa criança relaciona-se com seu
universo, que,
por um
lado, absorve, e a que, por outro, reage, não de
11
Como
e
Por
ql le
Ler
modo passivo, e sim participante, elaborando o imaginário'que espe-
ra reencontrar
na
obra publicada. Por
isso as
duas personagens desco
brem, cada uma e
num
mesmo livro, sua história pessoal, constituída
em parte da tradição recebida, em parte da contribuição eminente
a
Literatura
Infantil
BrasileÍl a
111
também ele a partir da proposta do mencionado Juarez Machado em
da e Volta:
a figura colocada na última página remete à da primeira,
sugerindo uma leitura circular e de certo modo, continuada da mes
ma
obra.
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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mente individual e intransferível, o que não significa que não pode ser
comunicada e discutida, como elas fazem.
Leo
Cunha, em Joselito
e
seu
Esporte Favorito
assinala também
como a criatividade do autor está formada tanto pela incorporação de
um padrão consolidado pela literatura, quanto, a partir daí, pela cria
ção de uma linguagem revolucionária. O livro elege como interlocu
tora a obra de Sílvia Orthof, transformada em referência dos poemas
protagonizados por Joselito, o admirador da autora e que a busca ao
longo do texto, para conseguir uma dedicatória.
Os poemas, por sua
vez
intertextualizam textos de Sílvia de que são
exemplos versos como: Se a cortina fosse mãe, /
se
amarrava no meni
no. / Se o relógio fosse mãe, / cantava mais do que um sino. E reite
ram o estilo resultante do
non sense
marca registrada daquela escritora,
como em: Sílvia gritou de repente / e deu uma cambalhota / pra trás
e outra pra frente ,5 amplificando o significado da homenagem presta
da à sua criatividade. Nem por isso deixam de ser igualmente inventi
vos e engraçados à sua própria maneira, como se espera de uma obra
desafiante e inovadora.
Se
Luciana Sandroni e Leo
Cunha
elucidam o modo como, em
nossos dias, se processa a renovação e a expansão da literatura infantil
brasileira no âmbito da narrativa e da poesia, Roger Mello dá conti
nuidade às experiências com o uso da ilustração na condição de mate
rial principal do relato. O Próximo Dinossauro de 1994, constrói-se,
O autor, porém, introduz duas importantes modificações, sinto
máticas dos novos tempos: a bola vermelha da primeira página, com
que jogam os dinossauros, está na mão do menino que, na última
página, visita um museu de história natural. Assim, se
se
repete uma
imagem, não se estabelece
uma
circularidade reiterativa, ou seja, ao
se retomar o começo, não
se
lê
mais a mesma história. Os dinossau
ros passam a ser entendidos como fruto da imaginação do garoto,
presente no museu, que,
ao
invés de parecer o espectador de
um
pas
sado ossificado, mostra-se criativo e pron to a dar respostas inéditas a
velhas questões.
Não
por
acaso as figuras representadas são dinossauros, represen
tantes contumazes de um tempo perdido e irrecuperável, talvez por
que indesejado
na
atualidade. Pela mesma razão, o menino encon
tra-se
num
museu, espaço destinado a preservar o que já não se vive
mais. Diante de tais seres e cenário, ele não reage de modo reveren
te, mas invoca a imaginação, atitude que simboliza a do escritor bra
sileiro que dialoga
com
a infância de nosso país. Tal como a perso
nagem de Roger Mello, nossos autores apresentam-se como inova
dores diante de uma tradição sólida que, se lhe oferece modelos,
pede igualmente para ser permanentemente desconstruída e recons
truída, conforme
um esforço que justifica a leitura deles por todos,
hoje e sempre.
Como
e
Por
que
ler
Notas
1 Azevedo, Ricardo. Um Homem no
S6tão
São Paulo: Melhoramentos, 1982. p. 2. Trata-se
da penúltima página do livro, cuja numeração, como se observou, está invertida.
Id p. 1.
3 Sandroni, Luciana. Manuela e
Floriana
Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 8.
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 87/93
4
Id
p. 22.
5 Cunha, Leo.
Joselito
e
seu Esporte Favorito
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. s. p.
ÍNDICE EAUTORES CITADOS
A
Affonso Romano de Sant Anna, 11
Afonso Celso, 48
Alexandre Dumas,
10
Ana Maria Machado, 52-4, 59,
74 83 99 104 152 167-8
André Carvalho, 102
Angela Lago, 157, 159-63
Aristófanes, 132
Bartolomeu Campos Queirós,
57-8
Carl Jansen, 17-19
Carlo Collodi, 106, 109
Carlos de Marigny, 105
Carlos Drummond de Andrade,
11, 16
Carlos Nejar, 128
Casimira de Abreu, 48
Cassiano Ricardo, 67
Cecília Meireles,
9
128, 130-1,
136-9
Charles Dickens, 106, 109
Charles Kingsley,
10
Charles Perrault, 17 81
Chico Buarque de Holanda, 99,
150, 152-3
Clarice Lispector, 72, 132
Cora Ronái, 64-5, 99
D
Daniel Defoe, 11, 16-17
E
Edy Lima, 73
Eliane Ganem, 57, 87-8
Eliardo França, 59,
61
Elias José, 102, 128, 141-2
Elvira Vigna, 163
Erico Verissimo, 10-11 38 41-
3 50
Esopo, 132
Eva Furnari, 163
114
Fernanda Lopes de Almeida 57
86 88 99
Ferreira Gullar 128
Figueiredo Pimentel 17-19 40
Como
e
Por que
ler
Jerônimo Monteiro 43
João Câncio 10
João Carlos Marinho 110-2
114-5 117-21 123
João Ubaldo Ribeiro 10
a
l i teratura
Infantil Brasileira
Marcos
Rey
123-4
Maria Clara Machado 145 147-
51 153-4
Maria Heloísa Penteado 78-9
Maria José Dupré 43 50- 1
Roberto Drummond 102
Roger Mello 170-1
Roseana Murray 128
115
Ruth Rocha 60-3 65 82 99 104
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 88/93
56 93
Francisca J úlia 127
Francisco Marins 43
Gabriel García Márquez 117
Godofredo Rangel 34
Gonçalo Fernandes Trancoso
95
Gonçalves Dias 48
Graciliano Ramos 38-41 43
94
121
Grimm irmãos 17 63 71 81 150
H
Hans Christian Andersen 132
Haroldo Bruno 97
Henrique ta Lisboa 128-9
133-5 138-9
Henry Corrêa de Araújo 105
108-9
Homero 132
I
Ivo Bender 144 152
Joaquim Manuel de Macedo 50
Joel Rufino dos Santos 76 95-7
Jonathan Swift 11 16-17
Jorge Amado 11 16
José de Alencar 50
José Lins do Rego 94
José Paulo Paes 128-9 141-2
Juan Rulfo 117
Juarez Machado 156-7 159-60
163 171
Júlio César
de
Mello e Souza 99
Júlio Verne 11
L
Leo Cunha 170
Luciana Sandroni 168-70
Luís da Câmara Cascudo 98
Luís Jardim 94
Luís Vilela 102
Luiz Gama 10
Lygia Bojunga 66 70-1 73 75
104 132
M
Machado de
Assis
27 50-1
]
Malba T ahan 99
Jacob Grimm v r Grimm irmãos Manoel de Barros 128 131 140
Jean de La Fontaine 132 Manuel Bandeira
10 63
Marina Colasanti 99-101
Mário de Andrade 68 98 146
Mário Quintana 128 133-4
Mirna Pinsky 86 88
Moacyr Scliar 9 11 35 37
Monteiro Lobato 19 21-32
N
34-6 41 43-45 50-1 67
70 73 81-2 86 93-4 97
110 118 120 132 145-6
150 167-8
Nelson Rodrigues 146
o
Olavo Bilac 18-19 48 127-9
Orígenes Lessa 94
Oswald de Andrade 146
p
Padre Zacarias 10
Pedro Bandeira 58-9 124-5
166
R
Raimundo Lúlio 132
Raimundo Matos Leão 152-3
Ricardo Azevedo 97 165 167
S
Sérgio Bardotti 150
Sérgio Capparelli 107-8 128
133-4 139 140
Sidônio Muralha 128 133-4
Sylvia Orthof 153-4 170
Silvio Romero
93
U
Ulisses Tavares 128
v
Vicente Guimarães verVovô
Felício
Vinicius de Moraes 128-9 137
140
Viriato Corre
a
10-11 35-7 43
Vivina de
Assis
Viana 75-6
Vovô Felício 51
W
Wander Piroli 102-5 108-9
Wilhelm Grimm v r Grimm
irmãos
Z
Ziraldo 67 69-70 155-6 163
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
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ÍNDI E DE OBRAS E POEMAS CITADOS
A
Abelhas,
As ,
137
Alegria , 134
Alice no Pais das Maravilhas, 10,
57
Alma Infontil 127
Amigos
Secretos
167
Angélica
66, 71,
132
Angústia
38
Arca de
Noé 128, 133
Aritmética da Emília 33
Aventuras
de
Tibicuera As 10,42
Aventuras do Avião
Vermelho
42
Aventuras do
Celebérrimo
Barão
Münchausen 17
Bandeira das Esmeraldas 35
Barbeiro e o Babeiro,
0 ,139
Batracomiomaquia
131
Bela
Adormecida A 16, 91
Bela
Borboleta A 156
Bela
e a
Fera
A 91
Bento-que-bento É
o Frade
52
Berenice Detetive 122
Bichinho
da Maçã 0
156
Bisa Bia Bisa Bel 84-6
Boi
Arud
0 94
Boi da Cara Preta 128, 133
Bolsa Amarela A 71-3, 75, 78
Boneca, A , 19
Branca
de
Neve
91
Bruxinha Atrapalhada A
163
Bruxinha e as
Maldades
de
Sorumbdtica 163
Bruxinha
Encantadora
e
Seu Secreto Admirador
Gregório A
163
Bruxinha
que Era
Boa A 147
Burro, o Menino e o Estado
Novo,
O
C
Caçada
da
Onça
A
25
Caçadas de
Pedrinho As 24-5, 30
Café
na Cama 123
Caixinha de Música , 138
Caminhos Cruzados 41
118
Caneco
de
Prata 0
110, 114-6,
118
Cantiga de Neném , 130
Cartas não
Mentem
Jamais As
152
Como
e
Por
que
Ler
D
D.
Quixote
das Crianças
22 32
D. Quixote
de la
Mancha 17
Dança
dos
Picapaus
128, 133
a
Literatura
Infantil
rasileira
Geografia
de
Dona
Benta 33, 82
Guaraná com Canudinho , 140
H
L
Lando
das
Ruas
105-6
Lê
com
Cré
128
Lendas do Céu
e
da Terra
99
Livro
das Bestas
132
119
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 90/93
Casa, A , 140
Cavalinho
AzulO
147
Cazuza 10 35-7
Cena de
Rua
162-3
Chácara do Chico Bolacha,
A ,
138
Chapeuzinho Amarelo 99
Chapeuzinho Vermelho
16, 90-1
Chave do
Tamanho A 27-30
32, 73
Chiquita Bacana e
Outras
Histórias 160, 162
Cidade Perdida A 43
Cidades Mortas 27
Cinderela 91
Clan
do
Jaboti 68
Classificados
Poéticos 128
Coisas
de Menino
87, 89
Colar de Carolina , 137
Colegas
Os 66, 70-1, 78, 132
Contos d Carochinha
40, 56, 92
Contos da Mamãe Ganso 81
Contos
Populares do
Brasil
93
Corda Bamba
71
Curiosidade Premiada A 86
Currupaco
Papaco 52
Curumim
que Vírou
Gigante
76, 78
Descoberta
do
Brasil A
35
Dia
de
Ver Meu
Pai
0, 75
Doze
Trabalhos
de
Hércules
Os
24 44 82
Droga da Obediência
A 124
E
É
Isso
Ali 128
Enterro
da
Cafetina
0 123
Eu Chovo tu
Choves
ele Chove
153
F
Fada Desencantada A
57-8
Fada que Tinha
Idéias
A
57, 86
Fantdstico
Mistério
de
Feiurinha
0 58 166
Fazedor de Amanhecer, O
(poema), 140
Fazedor
de
Amanhecer
0 128
Festa no
Céu
A
97
Flicts
67-70, 155
Flor Quebrada, Uma , 136
G
Gato Chamado Gatinho
Um
128
Gênio do Crime
0
110-4,
118-9, 122, 124-5
História
de Trancoso
95-6
História
do
Brasil para
Crianças
35
História do Mundo para
Crianças
33
História Embrulhada
141
História Meio ao
Contrdrio
52
54 56 59 74
Histórias
d
Avozinha 92
Histórias da Tia Nastdcia
22, 32,
41 93-4
Histórias
da Velha Totônia
94
Histórias
de
Alexandre
40-1, 94
Histórias de
um
Quebra Nozes
1
Histórias Diversas 82
Hoje Tem
Espetdculo
152
Homem que Calculava 0,
99
I
Ida e
Volta 156-7, 171
Idéia
Toda Azul Uma 99-100
]
João
e Maria
16 90-1
João Felpudo 10
Joselito
e seu Esporte Favorito 170
Livro
de
Berenice 0 110, 119-21
Lua
no
Brejo 128
Lúcia-Jd-Vou-Indo 78
M
Macaco
e a Velha 142
Maktub 99
Manuela eFloriana 168-9
Marcelo Marmelo Martelo 60
Martim
Pererê
67
Memórias
de
Emilia
25, 36, 73,
121, 168
Memórias
de
um
Gigolô 123
Menina do Narizinho
Arrebitado A
ver
Reinações de
Narizinho
Menina e o
Vento
A 147
Menino e o Pinto
do
Menino
0
102, 105, 107-8
Menino Maluquinho
0 155-6
Menino
Poeta
0
128
Menino
que
Espiava para Dentro
74-5 78
Menino
Rio
0
128
Meninos
da
Rua
da Praia Os
107, 109
Meu Livro
de Folclore 97-8
Meu Torrão
35
um
Mil e Uma
Noites,
99
Minhas Memórias de Lobato,
168
Minotauro, 0, 22, 32, 82
Mistério
do
Cinco
Estrelas,
123
Como
e
Por
que
le r
Pinóquio,
106
Pintando o Sete , 139
Pivete,
105-7
Planeta
Lilds,
O, 156
Pluft, o Fantasminha, 147, 148,
Reinações de Narizinho, 22-4, 29,
146
Reizinho Mandão, 0,60-2,64
Resto
é
Silêncio,
0
41
Rios Morrem de Sede, Os,
Tempo
é
um Fio, 0 ,135
Terra dos Meninos Pelados,
A,
38-9
Três Meses no Século,
81, 43
181
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 91/93
Mistério do
Coelho
Pensante, 72
Misterioso
Rapto
de
Flor-do-Sereno,
97
Moda da Menina Trombuda ,
137
Mulher que Matou
os
Peixes, A,
72
N
Nenês D Agua, Os, 9-10
Nó
na Garganta,
86
o
Olha o Bicho, 128, 133
Oliver Twist, 106
Onde
Tem
Bruxa, Tem Fada,
58
Ou Isto ou Aquilo, 128, 131
Outra
Vez s Três
Porquinhos,
42
Outra Vez, 159-60, 163
p
Passarinho
me Contou,
Um, 128,
133
Pátria, A , 18
Pé
de
Pilão,
128, 133
Pequena História da República,
39-40
Peter Pan, 22, 32
150-1, 153
Poço do Visconde, 0, 27
Poemas para Brincar, 128
Poesias
Infontis,
127
Poeta Aprendiz, O , 130
Príncipe
Sapo,
91
Procissão de Pelúcia ,
138
Próximo Dinossauro,
0,
170
Psicandlise
dos Contos de
Fada, A,
92
Q
Quase
de
Verdade,
73
Quem Conta
um Conto
Aumenta
um Ponto,
152
R
Rapto das Cebolinhas, 0, 147
Rapto do Garoto de Ouro, 123
Raul
da Ferrugem
zul
83-4,
86-7
Receita
de
Olhar,
128
Reforma
da Natureza,
A,
25
Rei
da Vela, 0, 146
Rei
de
Quase-tudo, 0, 59-61
Rei
e
seu Cavalo de Pau, Um,
128
Rei que não Sabia de
Nada, 62, 64
104-5, 107
Robinson
Crusoé,
11, 16-17
Roda, 142
Rosamaria no Castelo Encantado,
42
Rute e
Alberto,
9
S
Saci, 0,27,67
Saltimbancos, Os, 150-1
Sangue
de
Barata, 157
Sangue Fresco, 118-20
São
Bernardo, 38,
121
Sapo Vira Rei
Vira
Sapo, 62, 64
Sapomorflse, o Príncipe que
Coaxava, 64-5
Sapos, Os ,
63
Serões
de Dona Benta, 33
Severino Faz Chover, 52
Simplício Olha pro Ar,
10
Sítio do PicapauAmarelo, 0,29
T
Televisão da Bicharada, A, 128,
133
Tempo e o Vento,
0
41
33
Ciberpoemas e uma Fdbula
Virtual,128
U
Uni Duni e Te, 157, 159-60
Urso com Música na Barriga, 0
42
Urupês, 30
V
Vestido
de
Noiva,
146
Viagem à
Aurora
do
Mundo, 42
Viagem
à
Roda
do
Mundo numa
Casquinha de Noz, 10
Viagem
ao
Céu, 25-6
Viagens de Gultiver, 11, 16-17
Vida
de
Joana D
Are, A
42
Vida
do
Elefante Basílio, A, 42
Vida
Íntima
de
Laura,
A, 72-3,
78,132
Vidas Secas, 39
Viva a Poesia
Viva,
128
Viviam como Gato e Cachorro,
163
Volta
do Reizinho
Mandão, A, 62
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 92/93
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m
em ,
Zilberman l i e n i o u ~ s e
em
Letras pela
UFRGS
d l l t o r o u ~ s e em Romanística pela
Universidade de Heidelberg,
na
Alemanha,
fez pós-doutorado em Rhode
Island,
nos
7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira
http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 93/93
Impressão e Acabamento;
Estados
Unidos. Professora
de Teoria da
Literatura
e
Literatura Brasileira,
na
PUC/RS
Regina
Zilberman
é
hoje
uma das
maiores
especialistas
em
literatura infanto-juvenil.
Possui mais de 20 livros publicados
e
premiados
na
área pedagógica.
Atualmente coordena também
o
curso de
Pós-Graduação
em Letras
e o
Centro
de Pesquisas Literárias da PUC/RS.
Este
é o
quarto
volume da
coleção Como
e
Por que
Ler .
Os dois primeiros
Como
e
Por
que
Ler
os Clássicos Universais desde Cedo ,
de Ana Maria Machado,
e
Como
e
Por que
Ler
a
Poesia Brasileira do
Século
XX ,
de
Italo
Moriconi
receberam
em
2002
o
prêmio
altamente recomendável pela FNLlJ na
.
categoria
livro
teórico. Em 2003, o
livro
de
Ana
Maria
Machado ganhou
o
prêmio
Cecília
Meireles da FNLlJ.
O
erceiro volume Como
e
Por que Ler
o
Romance
Brasileiro ,
lançado
em
2004,
é
da conceituada professora
e
escritora Marisa
Lajolo.