como areia e vento o nÚ dÁ forma · na compreensão da formação do corpo é que se torna...
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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013
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COMO AREIA E VENTO... O NÚ DÁ FORMA
LELA QUEIROZ (UFBA)
RESUMO O artigo convida a uma reflexão a cerca da emergência do padrão e da forma, apoiando-se na somática e embodiment BMC. Entendendo corpo como sistema de mediação (Katz&GReiner,2001), e movimentos, como primeiro sistema perceptivo, reflexos replicados com rotinas internalizadas, manifestam movimentos mais e mais elaborados; cada vez que um padrão integra, traços anteriores que participaram de sua cadeia se tornam invisíveis no novo padrão. (COHEN, 1993). Como lado visível, o reconhecimento das informações no ambiente pertencentes a escalas temporais múltiplas, num processo dinâmico enredando os processos de significação. Testada no corpo da artista, como ação de pesquisa, “Corpulações” enraiza a discussão dos princípios de movimentos evolutivos como funcionais e criativos para processos de criação e procedimentos artísticos improvisacionais em performance. PALAVRAS-CHAVE: Corporalização/Embodiment, BMC, Movimento, Improvisação, Padrão.
WIND AND SAND ... NUDE FORMS
ABSTRACT This article presents a reflection upon the emergence of pattern and form, in somatics and Embodiment in BMC. Understanding the body as a system of mediation (Katz&GReiner,2001), and movements as the first perceptual system, replicated reflexes in internalized routines manifest as more and more elaborate movements, each time a pattern integrates previous steps participating in its chain become invisible in the new pattern. (Cohen, 1993). As it’s visible side, the recognition of information in the environment belonging to multiple temporal scales, in a dynamic process of emergency of signification. Tested in the artist's body, as a research action, “Corpulation” discusses evolutionary movement principles as functional and creative processes for artistic procedures within the field of improvisation in performance. KEYWORDS: Embodiment, Movement, BMC, Improvisation, Pattern.
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Esta proposta de artigo dá continuidade à pesquisa prática que realizou
uma ação de pesquisa durante o III Seminário de Pesquisa do PPGDANCA
UFBA, dez 2012. Um desdobramento de uma experiência teórico prática e
prática teórica. Em primeiro lugar deu-se o III seminário de pesquisa do
PPGDANÇA-UFBA em dezembro 2012 na Escola de Dança da UFBA, quando
me inscrevi para um compartilhamento demonstrativo de pesquisa – em
andamento no projeto Corpulações inscrito no Grupo de Pesquisa DC-3 CNPQ,
ao invés de comunicação oral teórica sobre o tema, que estava intitulada no
programa do evento como “comunicação demonstrativa”. Na ocasião foram
utilizados um gigantesco pano preto comigo por baixo em avanços irregulares
por movimentação imprevisível a partir de BNPs - padrões neurológicos basais
e reflexos baseados nos processos de corporalização/embodiment do BMC.
Ali eu quis mostrar o invisível que se dava por baixo do extenso pano preto,
que se tornava visível apenas num sombreamento forma não forma de
motivacionais de consciência. Escuro-claro, o ambiente favorecia a não
definição por muito tempo das formas esboçadas pelas diversas
movimentações em suas variáveis. Intervalos entre ação não ação, repetições
isoladas ou conjuntas de partes do corpo indiciando o que buscamos
evidenciar em parte neste texto.
Tendo por base noções da teoria evolutiva e das ciências cognitivas
aplicadas, convidamos a uma reflexão a cerca da emergência do padrão e da
forma. Levando-se em conta que a natureza opera por padrões dinâmicos (
KELSO, 1995, 1997), da cosmologia à micro física das partículas, salienta-se o
muito complexo funcionamento do cérebro, como sistemas como o
imunológico, de natureza interacional no ambiente, para um mergulho sobre
corpo e configuração. Para existir, a vida requer uma série de requisitos, fonte
de energia (S0L), reações químicas vitais, carbono, oxigênio, fotosíntese,
abundância, meio favorável fértil, e a capacidade de auto-replicação, entre
outros. Nesses ciclos de expansão e crescimento, a emergência de
propriedades da forma, entre tais, a distribuição espacial, ação espiralada para
fora, e a transferência de informação.
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Apresenta-se a questão da comunicação como comportamento dos
sistemas (SEBEOK,1991,1995), entendendo corpo como sistema de mediação
(KATZ&GREINER, 2001), tendo os movimentos, como primeiro sentido
perceptivo, na base dessa mediação (COHEN, 1993). Entendemos movimento
como meio capaz de transmissão de informação, como principal operador na
geração, gestação, formação e desenvolvimento dos organismos.
Esther Thelen, cientista dinamicista do desenvolvimento com atuação no
campo da psicologia, apresenta movimento como um sistema perceptivo, e o
grande ponto de sua teoria que se liga a movimento é a constatação da
integração intermodal e do movimento “auto-produzido” / self produced motion,
para criação de categorias dinâmicas.
Segundo então as evidências dinamicistas (THELEN, 1995, 1999) a
contradança do auto-movimento requer auto-organização (PRIGOGINE,
1984,1988), que se dá complexamente, segundo e por meio de movimentos e
contato, apoiando-se na proposta de embodiment/corporalização BMC,
educação somática de dança pela exploração dos sistemas corporais. Num
sentido amplo, BMC não é uma técnica, mas um sistema de aprendizagem que
se vale de uma cosmologia para o entendimento corpo mente.
O artigo trata do corpo entre biologia e cultura, como combinatórias no
fluxo de corporalização/embodiment em tempo real. A proeminência da vida se
deve por sua capacidade de auto-replicação, reprodução, habilidade de
interagir no ambiente e com outros organismos de modo não trivial. É
infundada a divisão que mantém os processos biológicos separados dos
sociais, com uma dimensão cultural apartada. Ao contrário, a vida só se torna
possível por seu entrelaçamento no ambiente, designado por Varela (1991,
2002) como acoplamento estrutural. Sem este o organismo sucumbe. Por outro
lado, sem o genoma, (com rna antes do dna) os traços morfológicos do
organismo não irromperiam.
Estes resultam em grande parte da implantação dos processos de
desenvolvimento do organismo, ancorados no sistema sensório-motor. Essa
compreensão conjunta de ambos tecendo o perceptuo-motor, desestabiliza
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irreversivelmente a compreensão de movimentos como tão somente fruto da
alça motora por trajetórias movidas por forças externas. É que se excluía ou se
esquecia de grande parte ou boa parte dos acionamentos em jogo.
Através das direções espaciais, já estão veiculando metáforas
fundantes, em que o movimento amalgama uma série de informações do
ambiente disponibilizando conhecimento que se complexifica em níveis e
graus, conferem redirecionamento espaciais que lançam ao corpo desafios e
instauram possibilidades de investigação de significações sucedâneas em
aberto... O reconhecimento das informações no ambiente ganha dimensão com
movimentos.
Entre vários círculos grafáveis de movimentos ocorrem aqueles que
escapam ao recorte a olho nú em que se dá sua exteriorização, como sendo o
seu lado invisível. As rotinas internalizadas se manifestam na forma de
movimentos mais e mais elaborados, no entendimento de desenvolvimento de
padrões de movimento, apoiando-se na proposta de BMC (COHEN, 1993).
Cada vez que um padrão integra, traços anteriores que participaram de sua
cadeia se tornam invisíveis. Como lado visível, o reconhecimento das
informações no ambiente. Emergências no caminho: replicados, princípios de
movimentos geram predições específicas. Os movimentos conformam o fluxo
dentro-fora e acoplam a informação, pertencentes a escalas temporais
múltiplas, num processo dinâmico enredando os processos de significação.
Dessa forma, enraizamos a discussão do que se torna visível ou invisível na
Dança.
Dentro do pensamento dinamicista, Esther Thelen aponta que o
“movimento desempenha um papel crítico em aprendizagem e
desenvolvimento por seleção” e segue “é o movimento que fornece a amostra
dinâmica dos atributos do estímulo.” Exatamente como na afirmação de Bonnie
B. Cohen, “…é movimento…” o caminho da informação adentro
(aferente/imput), da sensação para a percepção, “ …que ajuda a estabelecer o
processo de como percebemos”. E por isso o primeiro e mais importante para a
sobrevivência.
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Assim, estados corporais relacionam-se complexamente a estados
mentais. Movimentos e contato caracterizam incessantes transformações nos
estados corporais/mentais.
Segundo os filósofos cognitivos Lakoff&Johnson (1999), a maioria das
correlações pertencem ao inconsciente cognitivo, ou seja propõem que a raiz
do processo de geração da mente se dá com a participação do sistema
sensório-motor espalhado pelo corpo. Edelman também desenvolve uma
premissa para a consciência com a hipótese TGNS, conhecida por
neurodarwinismo, que busca nos contar como eclodem limiares motivacionais
de consciência. Ambas as hipóteses de certo modo correspondem ao
pensamento do corpo de Bonnie B. Cohen, quando fala das correlações
corpomente.
Eu vejo o corpo como sendo a areia. É difícil estudar o vento, mas se você observa o jeito como os padrões na areia se formam e desaparecem e re-emergem, então você consegue seguir os padrões do vento, nesse caso, a mente... O que eu mais observo é o processo da mente (Cohen, 1993: 11).
Tendo o movimento como operador central, em ambos, BMC de Bonnie
B. Cohen, como também no pensamento dinamicista de Esther Thelen, partem
do entendimento dos aspectos biodinâmicos ao invés de biomecânicos, do
aspecto da duração em tempo real em que se dá a auto-organização por
emergência e integração de padrões e a indeterminação, como construção em
linha, em modificação, sem evidências de um desenho prévio da natureza nem
anterior ao corpo. O conhecimento não é nem anterior nem superior, ele é
enraizado no corpo salientando o aspecto multimodal, e da auto-organização
periferia-centro-periferia.
Na compreensão da formação do corpo é que se torna fundamental
pensar em como os movimentos participam da sua implantação, da sua
sobrevivência e como promovem a corporalização/embodiment. O sistema
sensóriomotor é central para o modo como o corpo conhece, atestam os
dinamicistas.
É o salto transcendental de sistemas nervosos simples, em que sinais são trocados de um modo praticamente insulado em subsistemas
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relativamente separados, para sistemas nervosos complexos baseados na dinâmica de sinais reentrantes, em que um enorme numero de sinais são rapidamente integrados em um processo neural único constituindo o âmago dinâmico. Tal integração leva a construção de uma cena relacionando sinais de muitas modalidades diferentes com memória baseada na história evolucionária e na experiência individual – seu presente rememorado. Essa cena integra e gera uma quantidade extraordinária de informação em menos de um segundo. Pela primeira vez em evolução, a informação adquire um novo potencial – a possibilidade de subjetividade. É informação para alguém, isto é, se torna consciente de si (EDELMAN, 1999: 212).
A teoria darwiniana da seleção natural é o caminho legítimo aclamado
pela biologia, como ciência verdadeira.
Com tudo o que aprendemos sobre a estrutura da matéria viva, temos que estar prontos para descobrir que ela opera de uma forma não redutível às leis comuns da física. Não porque exista uma “nova força” ou seja lá o que for direcionando o comportamento dos átomos em um organismo vivo, mas porque a construção dessa matéria é diferente de tudo o que já testamos em um laboratório de física (SCHRÖDINGER– apud Stephen Jay Gould, 1944: 76)
Dentro dessa perspectiva, vamos nos deter um pouco no aspecto da
duração em tempo real em que se dá a auto-organização por emergência e
integração de padrões e a indeterminação. O que significa isso. Significa dizer
que, de forma multireferencial, o corpo encontra soluções que vão
orquestrando as situações que enfrenta para “o bem e para o mal”, sem
distinção prévia; o organismo age por seleção natural entre uma infinitude de
possibilidades de arranjos.
Os autores apontam que o sistema sensório-motor inicia o processo de
modelagem neural de categorias orientado pelas direções dos fluxos do corpo
no espaço-tempo. Está aí implicada a experiência vivida pelo corpo a partir de
sua natureza direcional quando anda para frente ou avança, quando cai ou
levanta, quando anda para trás, se afasta ou recua, quando se aproxima,
encosta e escorrega quando se debate ou é abalroado por um objeto, quando
entra ou sai, etc. Mais que isso. Essas relações se manifestam auto-
organizadas, internalizadas no corpo e externalizadas pelo corpo.
Vamos usar o termo cognitivo, do modo mais rico possível, para descrever qualquer operação e estrutura mental envolvidas na linguagem, significado, percepção, sistemas conceituais, e razão. Porque nossos sistemas conceituais emergem e nosso raciocínio
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brotam dos nossos corpos, vamos aplicar o termo cognitivo aos aspectos do sistema sensório-motor que contribuem com nossas habilidades para conceitualizar e raciocinar. Já que boa parte dessa operações são inconscientes, o termo inconsciente cognitivo descreve precisamente todas as operações inconscientes mentais, ligadas aos nossos sistemas conceituais, significado, inferências e linguagem (Lakoff & Johnson, 1999: 12).
Lakoff afirma que o inconsciente cognitivo abrange 95% dos processos
que ocorrem conosco. São processos que ocorrem abaixo do nível cognitivo
consciente, em estado de vigília, rápidos demais para prestarmos atenção.
Estes 95% são responsáveis por boa parte dos preparos, conexões e disparos,
mapeamentos e categorizações, antecedendo a margem do que se torna
consciente em nós. São operações vitais e indispensáveis, que se dão em
profusão espalhadas pelo corpo. A hipótese evolutiva de movimentos repensa
o que se inclui e se considera movimentos.
Acompanhando essa perspectiva, o organismo traz geneticamente
informações selecionadas por sua espécie, disponibilizadas para adaptação,
que são a sua herança filogenética e ontogenética que emaranham as cartas
do ambiente (RIDDLEY). O ambiente está repleto de informações (DENNET),
mas o organismo também!
Dessa forma, sequências de movimento pré-vertebradas e vertebradas
confluem da herança filogenética, em progressão evolutiva do reino animal e
ontogenética da progressão evolutiva do bebê e geram padrões. Esses
padrões que se iniciam no corpo atravessam todo o corpo e vão na direção
oposta em que inicia e sempre em pares complementares.
Dada a sua configuração em envoltório, que se tornarão limiares
membranosos, o ambiente interno do organismo se confabula por assimetria, a
partir de um período inicial de conflação, com processos disjuntivos de
movimentos geradores de conexões neuronais em auto-organização.
“Crescer por dentro”, nessa constelação de eventos chamada corpo, de
acordo com Jesper Hoffmeyer, biosemioticista, requer em sua origem, dois
indicadores: a assimetria dentro/fora e a formação da membrana, listados como
dois dos passos fundamentais para a origem da vida.
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Hoffmeyer demonstra que historicamente organismos vivos levaram
bilhões de anos para que as fronteiras abertas dos organismos indeterminados
desse lugar à ação reguladora das membranas. Um organismo em
desenvolvimento gera sua própria forma partindo de um formato simples inicial
com seqüências paralelas bifurcacionais: essa formação que dá origem à
membrana mantém o que está dentro junto. Face ao que está fora surge a
assimetria espacial e temporal – entre dentro e fora. Hoffmeyer aponta a
formação da membrana como foco principal para a explicação internalista. A
assimetria dentro/ fora – se dá pela condição de formação da membrana em
torno de um conjunto complexo de operações moleculares fabricadas por duas
camadas imbricadas. Assim, esta descrição em biosemiótica ecoa a fita de
Moebius, referência-norte explicita em BMC, cuja imagem nos aproxima desse
campo de ocorrências e como podemos buscar entender a intrincada relação
dentro-fora pelo operador dos movimentos.
As movimentações em curso da minha comunicação demonstrativa,
ecoavam a fita de Moebius no sentido de suas aparições relâmpago que
passavam por entre o pano preto, funcionando como uma membrana entre o
meu corpo e seu entorno, envoltório onde irrompiam movimentações, surgindo
ora esparsas ora torrenciais, colocando em evidência o aspecto de assimetria
no surgimento e na duração.
É na assimetria de adentramentos que se dão as interações de
movimentos entre sistemas no organismo, como “hotspots” (Dawkins,
2001:446).
Edelman menciona que, durante a embriogênese, as células de um tecido não migram todas iguais da mesma forma para a formação das camadas. “Apenas aquelas em posições específicas o fazem, e elas só tem esse potencial em certos momentos (THELEN, 1995: 155)..
Então, o organismo, como sistema de mediação, tem por um lado
informações apreendidas e captadas por seus sensores guiados por estímulos,
por outro lado internamente as células por intermédio de seu dna/rna guiam a
construção dos tecidos que o formam. Construção em linha significa dizer num
processo em contínuum para o organismo em sua sobrevivência, ou seja, o
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embate do organismo com o ambiente é permanente para a sua sobrevivência.
Esse intercâmbio de adentramentos é vital no ciclo dentro-fora. O autor chama
atenção, contudo, que há um processo de seleção natural corrente, uma vez
que apenas certas células em certas posições estratégicas desencadeiam
certas ocorrências geralmente invisíveis para o organismo.
Curioso cruzar essa dimensão com a de onda-partícula, descrição
vigente na ciência contemporânea da relação observador-mundo,
percebendo/sentindo/vendo ora uma coisa, ora outra, que nos permite
relacionar ao binômio desaparecimento/aparecimento, ou seja, o que surge e
fica visível e o que some na experiência do observador, torna-se invisível para
ele.
Os movimentos da ação de pesquisa no pano preto ajudavam a
desenhar o alcance de possibilidade de um movimento, recorrentemente se dar
enquanto pulso, enquanto reverberação, repetidamente nas ignições
trabalhadas enquanto BNps, enquanto reflexos, reações, espasmos como
atratores e zonas de convergência.
Bonnie . B. Cohen do BMC, nos explica que os processos no organismo
de movimentos e contato se dão nessa dupla face tangendo interno/externo
intercambiando camadas de informação no organismo. Em meu artigo, A
CORPORALIZAÇÃO NOS TRABALHOS da somática SBMC, (2004), eu
explico detalhadamente essa questão mostrando que BMC tem como hipótese
propor a dupla via presente no processo, cujo parâmetro é a interação entre os
diversos sistemas compondo dentro/foras relativos no organismo.
A teoria evolutiva vai apontar a assimetria e tendencialidade envolvida,
sinalizando a sua importância para a compreensão de fatores de dominância
nos fenômenos. atratores e zonas de convergência, comungam da assimetria
como condição inicial remarcável. A palavra chave para a assimetria parece ser
a de sensitividade contextual (SEBEOK, 1991) com que o sistema abarca,
reage ou restringe sua ação. O sistema evolui sempre na dependência de
fatores que giram em torno do atrator principal e recai em modos de
comportamento em função da afinidade com aquele estado.
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Debaixo do pano preto, o que se nota na evolução das movimentações é
a tendencialidade das mesmas e como irradiam reverberações no tempo-
espaço, dimensionada pelo papel do pano preto, membrana em minha pele,
linha contínua, dando magnitude a mínimas oscilações e fazendo ampliar um
pequeno desvio, uma pequena variação. Procurei me aproximar dessas
relações, pautada na exploração multimodal para dar visibilidade a diferenças,
quando surgiam dobras e se refaziam os intervalos, a questão da
direcionalidade também se fez presente.
xxx
Os sistemas-vidas não partem do zero, não jogam um a um e não
prescindem da experiência. A teoria de sistemas contribui aqui com a definição
técnica de informação e a teoria dinamicista aplica esse entendimento aos
sistemas-vidas, dando relevância ao caráter dinâmico das mudanças dos
fenômenos tratados em tempo real.
Seguindo a teoria evolutiva, o desenvolvimento embriológico atesta
relações de crescimento já antes do nascimento, mas que são ocultadas com a
maturidade do organismo. É esta fase embriológica que sugere o entendimento
mais ajustado ao que ocorre para corporalização à luz das práticas no BMC,
entendendo que o fenômeno da corporalização entremeia o ‘dentro-fora’ no
organismo. Um período de conflação com crescimento de organização interna
que resulta numa nova ordem. Por instinto de sobrevivência, aparecem
inúmeras ocorrências de movimentos, inescapáveis, a motilidade, os refluxos,
os reflexos. etc. em que as inferências centrais são gravidade, peso, força e
energia.
Tais ocorrências surgem como necessidades básicas para dar conta do
processo adaptativo do organismo passando do meio acquoso para o meio
atmosférico, do organismo em formação para o organismo em ação.
O conceito corpomídia apresenta a questão da comunicação como
comportamento dos sistemas, entendendo corpo como sistema de mediação.
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Tem-se, nessa constelação de processos relacionais, movimentos e
contato, dentro da visão de sistemas do BMC, como uma extensa e sofisticada
rede de comunicação intra-extra organismo.
O conjunto de informações chamada reflexos torna visível o que se dá
com o organismo, voltado para fora, na categoria de reações à estímulos, os
mais diversos possíveis.
Entendendo que fazemos uma aproximação destes processos pela
característica de movimentos intra-extra organismo que se interpõem, ligam,
contactam e relacionam os sistemas corpóreos. Segundo Thelen, do
desenvolvimento dinamicista, considerar reflexos meramente domínios
estereotipados da alça reflexa entre estímulo-resposta não procede. Ao
contrário, os reflexos são processos que se auto-organizam e é possível que
venham de vales atratores próximos, convergindo de ramificações jorrando de
mesmas fontes primitivas. (THELEN, 1995: 123). Eles fazem parte do campo
cognitivo, neste sentido, uma vez que desencadeiam processos que de
primários, incidem em movimentos que participam da cadeia evolutiva e
participam da cadeia de desenvolvimento de padrões de movimentos mais
complexos.
Reflexos são o conjunto de padrões que operam no limiar de respostas
mais automáticas de movimentos que, quando integradas, vão se tornando o
campo de deliberação do organismo na direção de autodomínio dos
movimentos, chamado auto-movimento. Formam padrões primitivos, que agem
como domínio fonte de domínios alvos diretos e indiretos na organização de
padrões de movimento mais complexos e processos metafóricos.
A massa corpórea do meu organismo, encoberta pelo pano preto dava
vasão a formas com padrões primitivos, esboçava esculpir o espaço, dando
vasão a uma máscara do corpo em seu contorno, emaranhando a visão entre o
que vê e o que não vê, permitindo aflorar alvos diretos e indiretos na
organização de padrões de movimento mais complexos e processos
metafóricos. Eis que em meio a isso surge, por exemplo, a imagem de uma
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cabeça burca com somente pés e mãos recortados com um imenso véu negro.
Isso brota como ressignificação na improvisação cênica em curso.
xxx
Os reflexos agregam valores motivacionais que irrigam e nutrem
“investidas” do organismo no campo da exploração.
Como exemplo disso, desfeito após a parede intrauterina, e agora, fora
dela, o bebê não encontra a resistência nem conta com a anulação em parte da
gravidade em seu peso na água mais, e movimentações explosivas eclodem
incontroláveis e irregulares, que irradiam forças em jogo no organismo. Quando
ele sai do meio aquoso para o atmosférico, a relação de zona limítrofe
intrauterina imersa em líquido desaparece, mas a marca do comportamento
não.
Ao espernear, os bebês chutam quando alegres e excitados, mas
também quando desnorteados e desconfortáveis. Em princípio, espernear
surge como uma “excitação comportamental inespecífica” (THELEN: 1995, 78),
pode-se dizer em conflação, que aos poucos, pela ação de forças diversas e
sensitividade contextual (SEBEOK), por exploração, se diferenciam em grau,
assumindo novas correlações, das quais os reflexos primitivos participaram
mas não seguem, pois com a tomada dessas correlações eles são elaborados
em padrões que se complexificam.
Essa simples demonstração de sensitividade contextual – essa abertura do sistema ao seu entorno – é o atributo para o desenvolvimento de sistemas que proporciona o motor para processos de mudança ( THELEN, 1995: 83).
A regularidade das flexões e extensões nos chutes deve-se ao fato das
trajetórias cíclicas virem à tona como atratores estáveis que encontram seu
estado ótimo de existência de modo similar, como variáveis coletivas nos
deslocamentos dos chutes (levados em conta sua relação velocidade x
variedade). Por tudo isso, o espernear do bebê é dinamicamente auto-
organizado, resultante não de ação planejada, nem de relógio marcador, mas
como emergência no sistema. E tem forte implicação para a compreensão
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dinamicista do desenvolvimento “em tempo real”. Em relação a estes, que
surgem já no útero, são “reflexos primitivos”.
Desenvolvimento não ocorre numa progressão linear mas em ondas que se interpõem com cada padrão sendo integrado e modificado pela emergência de novos padrões. A princípio, todos os padrões
estão contidos em cada um dos outros... (COHEN, 1993).
Durante a apresentação da comunicação demonstrativa, testando estas
ideias no corpo da autora, muitos dos movimentos surgiam como excitação
comportamental inespecífica, arremessando o corpo com permanências
variadas, sem progressão linear, reflexos primitivos revisitados, espernear
incontidos de várias partes distintas do corpo como fontes dos mesmos.
Emergências no caminho: replicados, princípios de movimentos geram
predições específicas. Os movimentos conformam o fluxo dentro-fora e
acoplam a informação, pertencentes a escalas temporais múltiplas, num
processo dinâmico enredando os processos de significação.
xxx
A SBMC relacionou os padrões de movimento de desenvolvimento do
organismo e classificou os padrões de organização desses padrões.
Cada um desses padrões opera como zona limítrofe na aquisição de
outro padrão. Eles se dão de modo dinâmico somando novas especificidades
de movimento. A transição entre padrões se dá por corporalização. Os padrões
são recorrentes na história do organismo e tramam suas características gerais:
Cada padrão dá seguimento a uma série de ocorrências que integra um
novo comportamento do organismo frente ao meio.
Quando o processo de corporalização/embodiment de um novo padrão
está em andamento, todos os passos de vinculação ficam em evidência.
Quando se leva a cabo a corporalização daquela ocorrência, a transformação
que se dá dentro, se expressa fora, num novo padrão de organização.
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As duas características distintas do tratamento que o BMC atribui ao tato
são: (1) movimentos, especificamente pelo (2) contato sensível através do
sistema sensório-motor entre sistemas no organismo e do organismo no
entorno. A partir do contato, nas relações entre corpos e seus sistemas,
constroem-se diferentes qualidades de movimento. Movimentos e contato são
conhecimento de outra ordem e constituem uma classe especial de linguagem
e formam o primeiro vocabulário repertorial do organismo em vida.
O BMC tem por hipótese que movimentos surgem por herança
filogenética, como mecanismos evolutivos, e agem, desde a primeira gama
embriológica, como parte da sua ontogênese. A arquitetura de conhecimentos
de BMC propõe que a filogênese, a embriogênese e a ontogênese do
organismo se ligam em um contínuum evolutivo, através de uma metodologia
aplicada em que movimentos e contato facilitam a corporalização/embodiment
de novos processos de desenvolvimento, entrelaçados ao longo da vida em
nível de complexidade sempre crescente.
Isso significa deslocar o entendimento de movimentos como trajetória
medida - vista a olho nu - para um raio de compreensão mais amplo: no
domínio das relações internas do organismo, em nível microscópico, e no
domínio da experiência de exploração de movimentos. Também significa
considerar entre organismo e ambiente dentro-foras dinamicamente
constituídos.
Oferece uma hipótese singular de corporalizar/embody pela anatomia
experiencial do movimento como a sua proposta de aprendizagem: pelo auto-
conhecimento pormenorizado de como se constroem os sistemas-corpo as
estruturas neuro-anatômicas, reconhecendo no corpo os processos que
habitam estes mapas e seus conceitos.
Esta proposta vem sendo testada no corpo da artista, enraizando a
discussão dos princípios de movimentos evolutivos como funcionais e criativos
para processos de criação e procedimentos artísticos dentro do campo da
improvisação cênica contemporânea.
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Referências
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Lela Queiroz Artista performer e Educadora SomáticaBMC Certificada Internacional, pesquisadora na área de dança: cognição, consciência e embodiment/corporalização.Bolsa recém doutor CAPES 2008-2009 Programa FAPERGS–PPGACUFRGS. Profª Dra Adj. II PPGDANÇA – UFBA. Graduação PUCSP Tradução 1986 /Intérprete de Conferências 2006. Prêmios em dança SESC 1989/1993 e SMC 2003. Residência e performance no CID/Chipre 2005 e FSM 2006. [email protected]