communicare – volume 11, edição 1

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communicare Revista do Centro Interdisciplinar de Pesquisa — Faculdade Cásper Líbero Volume 11 Edição 1 1º Semestre de 2011 www.casperlibero.edu.br ISSN 1676-3475 Nesta edição: revista communicare Centro Interdisciplinar de Pesquisa — Faculdade Cásper Líbero Volume 11 – Edição 1 – 1º Semestre de 2011 Faculdade Cásper Líbero Av. Paulista, 900 - 6º Andar 01310-940 - São Paulo (SP) - Brasil Tel.: (0xx11) 3170-5878 [email protected] Entrevista com Ignácio Ramonet Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política Estudo da telenovela brasileira: questões de método Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente Pesquisa qualitativa – caminho para uma análise complexa da comunicação organizacional Dossiê Comunicação e política na era digital Entrevista com Lourival Sant’anna Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística Capital, habitus e as redes no ciberespaço Iniciação Científica Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil A popularidade e a influência no Twitter Resenhas Webjornalismo - Magaly Prado The big picture: money and power in Hollywood - Edward Jay Epstein Relações Públicas Estratégicas: Técnicas, conceitos e instrumentos - Luiz Alberto de Farias

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Page 1: Communicare – Volume 11, Edição 1

communicareRevista do Centro Interdisciplinar de Pesquisa — Faculdade Cásper Líbero

Volume 11Edição 1

1º Semestre de 2011

www.casperlibero.edu.br

ISSN 1676-3475

Nesta edição:

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Faculdade Cásper Líbero Av. Paulista, 900 - 6º Andar

01310-940 - São Paulo (SP) - BrasilTel.: (0xx11) 3170-5878

[email protected]

Entrevista com Ignácio Ramonet • Cadernos de

1844: crítica originária de Marx à economia política • Estudo

da telenovela brasileira: questões de método • Emissoras

e teles: esferas de disputa de um terreno convergente •

Pesquisa qualitativa – caminho para uma análise complexa

da comunicação organizacional • Dossiê Comunicação e

política na era digital • Entrevista com Lourival Sant’anna

• Fatodifusores digitais e os novos modos de produção

jornalística • Capital, habitus e as redes no ciberespaço •

Iniciação Científica • Da leitura crítica dos meios de

comunicação à Educomunicação no Brasil • A popularidade e

a influência no Twitter • Resenhas • Webjornalismo - Magaly

Prado • The big picture: money and power in Hollywood

- Edward Jay Epstein • Relações Públicas Estratégicas:

Técnicas, conceitos e instrumentos - Luiz Alberto de Farias

Page 2: Communicare – Volume 11, Edição 1

revista

communicare

Volume 11 – Edição 11º Semestre de 2011ISSN 1676-3475www.facasper.com.br/cip

Page 3: Communicare – Volume 11, Edição 1

Communicare: revista de pesquisa / Centro Interdisciplinar de Pesquisa, Faculdade Cásper Líbero. —v. 11, nº1 (2011). — São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2011.

SemestralISSN 1976-3475

1. Comunicação social periódicos I. Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero

CDD 302.2

revista

communicareFaculdade Cásper LíberoFundação Cásper Líbero

Presidente da Fundação Cásper Líbero: Paulo CamardaSuperintendente Geral: Sérgio Felipe dos SantosDiretor da Faculdade: Tereza Cristina VitaliVice-Diretor: Welington Andrade

Centro Interdisciplinar de PesquisaCoordenadora Geral do CIP: Maria Goreti Juvencio SobrinhoMonitoria do CIP: Avana França Salles, Gabriela Soutello Mendonça Ferreira e Maria Cortez Salviano.

Revista CommunicareFaculdade Cásper Líbero

Editora: Maria Goreti Juvencio Sobrinho

Conselho Consultivo:Adriano Duarte Rodrigues (Universidade Nova de Lisboa), Alessandra Meleiro (UFF e CEBRAP), Alfredo Dias D’Almeida (FAPSP), Ana Maria Camargo Figueiredo (PUC-SP), Beatriz Dornelles (PUC-RS), Claudia Braga (UFSJ/UNICAMP), Cláudio Novaes Pinto Coelho (FCL), Cristiano Ferraz (UFPE), Dimas Antonio Künsch (FCL), Eneus Trindade (USP), Ernani Ferraz (PUC-Rio), Ivone Lourdes de Oliveira (PUC-MG), Joana Puntel (Sepac), João Alegria (PUC-Rio), Liana Gottlieb (FCL), Lucilene Cury (USP), Luiz Carlos Assis Iasbeck (UPIS-DF e UCB-DF), Magda Rodrigues da Cunha (PUC-RS), Manuel Dutra (UFPA), Marcus Bastos (PUC- SP), Maria Aparecida Baccega (USP e ESPM), Maria Helena Weber (UFGRS), Mauro de Souza Ventura (UNESP), Monica Mata Machado de Castro (UFMG), Monica Rebecca Nunes (FAAP), Roseli Fígaro (USP), Sueli Galego de Carvalho (MACK) Teresinha Maria de Carvalho Cruz Pires (PUC-MG), Umberto de Andrade (UNIFESP), Walter Lima (FCL) e Wilson da Costa Bueno (UMESP).

Pesquisadores do CIP que colaboraram para a esta edição: Bruno Hingst, Caio Dib, Daniela Osvald Ramos, Else Lemos Inácio Pereira, Gilberto Maringoni de Oliveira, Igor Fuser, Liráucio Girardi Jr, Mariana Pascutti, Maurício Marra, Pedro Ortiz, Rodrigo Esteves de Lima Lopes e Sônia Breitenwieser Castino.

Professores e pesquisadores que colaboraram como pareceristas ad hoc desta edição: Ninho Moraes (FCL) e Sandro Assêncio (FSA, ECA).

Comissão Editorial desta edição:Versão para o inglês: Rodrigo Esteves de Lima Lopes.Versão para o espanhol: Antón Castro Míguez e Avana Salles.Revisão: Else Lemos Inácio Pereira e Sônia Breitenwieser Castino. Projeto gráfico: Danilo BragaArte e Editoração: Núcleo Editorial Cásper Líbero / Renan Goulart, Petrus Lee e Mariana AlvesTiragem: 1.000 exemplares.

RedaçãoFaculdade Cásper LíberoAv. Paulista, 900 - 6º andar - São Paulo - SP - CEP: 01310-940Telefax: (11) 3170-5878E-mail: [email protected] / [email protected]

www.casperlibero.edu.br

Page 4: Communicare – Volume 11, Edição 1

Pesquisadores do Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP) e projetos em desenvolvimento durante 2011

Pesquisadores docentes Pesquisadores discentes

Magaly Parreira do PradoPublicidade no Rádio – Mapeamento e investigação do processo de produção e criação das peças de áudio co-merciais

Mauricio Luis MarraCrise de Confiança: as Relações Públicas (re)construindo imagem e reputação no mercado de capitais e nas relações com investidores

Newton Duarte MolonEleições presidenciais de 2010 e as novas mídiasObservatório de Mídia Cásper Líbero

Pedro Henrique Falco OrtizDocumentário telejornalismo – interações e diálogos pos-síveis nas narrativas das grandes reportagens para a TV

Rodrigo Esteves de Lima LopesA questão da multimodalidade em vídeos distribuídos via internet.

Sabina Reggiani Anzuategui Teatro, telenovela, política: 1969-1980

Sandra Lucia GoulartO Tema das Drogas na Mídia Escrita BrasileiraObservatório de Mídia Cásper Líbero

Sonia Breitenwieser A. S. Castino A literatura brasileira vista pela imprensa alemã Observatório de Mídia Cásper Líbero

Andréa Florentino BarlettaO não dito nas imagens da campanha presidencial de 2010 - Um estudo dos veículos Carta Capital e Veja durante a campanha política

Bruno HingstUm panorama da trajetória do filme de gênero histórico no Brasil

Daniela Osvald RamosPortal da Faculdade Cásper Líbero: Gestão de Conteúdo Digital

Dirce Escaramai da SilvaCorrelações entre a tipologia psicológica do aluno de gra-duação em Relações Públicas e as exigências do mercado de trabalho Contemporâneo

Else Lemos Inácio PereiraFaculdade Cásper Líbero e o professor do futuro: Estudo sobre a formação inicial do professor para cursos de gra-duação em comunicação.

Ethel Shiraishi PereiraMegaeventos esportivos no Brasil e seu comprometimen-to com a sustentabilidade

Genilda Alves de SousaA Publicação dos resultados de pesquisas eleitorais e sua influência na intenção de voto para as eleições presiden-ciais de 2010Observatório de Mídia Cásper Líbero

Gilberto Maringoni de OliveiraComunicações na América Latina: avanço técnico, difu-são e concentração de capital (1870-2010) 2ª. Parte

Igor FuserOs movimentos sociais em favor da “democratização dos meios de comunicação”: atores, objetivos e estratégias.

Irineu Guerrini JuniorA obra do Túlio de Lemos no rádio paulista: consciência social e refinamento estético

Liráucio Girardi Junior A política de rede/política em rede (contribuições para a construção de um observatório de mídias sociais) Observatório de Mídia Cásper Líbero

Felipe BianchiControle, poder e democracia na sociedade informacional

Isabella Carrera AlvesObservatório de Mídia Cásper Líbero

Isabella Maria dos Santos Oliveira RosaEditores de Imagem no Fotojornalismo: A influência do Photoshop na mídia

Jeferson Ulir HirtSaia Justa, mas do tamanho ideal: estudo acerca do perfil do público do programa Saia Justa

Letícia DongoObservatório de Mídia Cásper Líbero

Lucas CampacciObservatório de Mídia Cásper Líbero

Lucas Lazarini ReginatoObservatório de Mídia Cásper Líbero

Luis Felipe da SilvaA homogeneização dos portais de internet no Brasil

Marcela Aparecida de MarcosSARAVIRTUAR: A contribuição das Redes Sociais para a Umbanda

Natália AlvesA Produção Cultural da TV Pública: uma análise da programação jovem da TV Cultura de São Paulo

Paulo Barros do BemDesterritorialização da informação: computação em nuvem e a nuvem pública

Pedro DebsO campo da Educomunicação no Brasil e sua configuração no ciberespaço

Pedro Veríssimo FernandesObservatório de Mídia Cásper Líbero

Talles BragaObservatório de Mídia Cásper Líbero

Talula Silva MelObservatório de Mídia Cásper Líbero

Page 5: Communicare – Volume 11, Edição 1

Sumário85

Apresentação: EditorialMaria Goreti Juvencio Sobrinho

Entrevista: Ignácio RamonetDaniela Osvald Ramos e Igor Fuser

Comunicação, tecnologia e política

Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia políticaIvan Cotrim

8

Pesquisa qualitativa – caminho para uma análise complexa da comunicação organizacionalMarlene Sólio

Entrevista: Lourival Sant’Anna - Ecossistema de mídias na primavera digital

Daniela Osvald Ramos

Dossiê

Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalísticaCristiane Lindemann e Danielle Sandri Reule

Capital, habitus e as redes no ciberespaço Liráucio Girardi Jr

Relações Públicas EstratégicasTécnicas, conceitos e instrumentos

Maurício Luis Marra

Jornalismo MutanteWebjornalismo

Daniela Osvald Ramos

Resenhas

Artigos

16

27

95

113

161

165

45 Estudo da telenovela brasileira: questões de métodoSabina Reggiani Anzuategui

Comunicação, meios e mensagens

Comunicação e política na era digital

57 Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergenteChalini T. Gonçalves de Barros e Graça Penha do Nascimento Rosetto

Comunicação e Mercado

Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no BrasilCaio Dib de Seixas e Pedro Ortiz

Iniciação Científica

A popularidade e a influência no TwitterMariana Pascutti e Luis Mauro Sá Martino

O grande filme: dinheiro e poder em HollywoodThe big picture: money and power in Hollywood

Bruno Hingst

16971

127

143

Page 6: Communicare – Volume 11, Edição 1

Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 09

Maria Goreti Juvencio Sobrinho

Docente e Coordenadora Geral do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero e doutoranda no curso de Ciências Sociais da PUC/SP.

Pioneira no ensino de jornalismo na América Latina e tradicional na área da Co-municação, no Brasil, a Faculdade Cásper Líbero vem se notabilizando pela promoção da excelência acadêmica, ao fomentar, desde 2001, o Centro Interdisciplinar de Pesqui-sa, CIP, voltado para a produção científica e interlocução dos professores e alunos dos cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas e Rádio e TV. Ao longo desses dez anos, os pesquisadores docentes e discentes do CIP têm desenvolvido seus projetos de pesquisa em diversos campos da comunicação e áreas afins; promovi-do, ao lado dos programas de pós-graduação e mestrado da Instituição, os Fóruns de Pesquisa Cásper Líbero; organizado Mesas Redondas em torno de temas candentes da realidade nacional e Oficinas de Iniciação Científica que estimulam o corpo discente a trilhar o caminho da pesquisa científica. Durante o último biênio, o CIP empreendeu atividades de pesquisa que resultarão, em breve, na criação do Observatório de Mídia Cásper Líbero.

Com esta edição, a Revista Communicare também completa dez anos de existên-cia, como um dos principais veículos de difusão das pesquisas desenvolvidas no Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero e como espaço de diálogo com os pesquisadores das demais instituições de ensino.

A busca do aperfeiçoamento e consolidação desse espaço de pesquisa deve ser uma constante, a fim de evitar o caminho do alheamento da vida social que tem trilhado a maioria das universidades privadas no país.

Como foi assinalado em outros momentos1, é preciso levar em conta as vicissitu-des por que passa o capitalismo mundial e, especialmente, o brasileiro, que, notadamen-te nos últimos vinte anos, atravessa uma intensa e contraditória internacionalização de suas formas de existência, renovando seus padrões de produção e de consumo e mesmo o seu patrimônio cultural e científico; renovação essa que, todavia, mostra-se insuficiente ante a concorrência global e a ampliação das carências sociais. Nesse perí-odo, a educação superior no Brasil passou por grandes transformações que resultaram, basicamente, em dois modelos institucionais: um voltado para ensino de massa e outro voltado para a educação com excelência na qualidade. A necessidade imperiosa para o futuro das instituições de ensino no país é a da renovação com qualidade, que pressupõe investimentos na qualificação docente e discente. A opção por investimento em pesqui-sa científica não é, portanto, do ponto de vista institucional, uma escolha de natureza

Apresentação

Comunicação e política na era digital e os novos desafios para o mundo acadêmico

Maria Goreti Juvencio Sobrinho

Editorial

1. Conforme Editorial da coordenação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa, de fevereiro de 2009 e artigo de coautoria, COELHO, C. Juvencio Sobrinho, M. G. “O Fórum de Pesquisa Cásper Líbero e os Desafios da Pesquisa em Comunicação na Era do Capitalismo Global”, Líbero (FACASPER), v. XIII, p. 9-20, 2010.

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 1110 Revista Communicare

Maria Goreti Juvencio SobrinhoApresentação: Editorial

ética e moral apenas. Trata-se de um imperativo para a sobrevivência dessas instituições no cenário global.

Todavia, os desafios e imposições sociais para o mundo acadêmico não são so-mente esses. O recrudescimento do movimento contraditório da globalização do capi-tal, a recente crise de acumulação mundial, os levantes e movimentos sociais no Oriente Médio, Europa, América Latina, entre outros, atestam a urgência de empreender, rigo-rosamente, o saber do mundo e o saber de si.2

Sob a lógica da globalização do capital, força esta propulsora e contraditória do desenvolvimento histórico dos últimos seis séculos, assiste-se à universalização da ex-clusão social e, ao mesmo tempo, o aumento da potência do trabalho, objetivada no inaudito desenvolvimento das forças produtivas (sinônimo da capacidade humana de objetivação material do mundo e plataforma para produção de si) demonstradas, por exemplo, nas múltiplas potencialidades da tecnologia digital e da cultura de rede, explo-radas recentemente pelos movimentos de jovens e de outros agrupamentos nas praças de Trípoli, Londres, Damasco, Cairo, Atenas, Tel-Aviv, Madri, Santiago. A apreensão das determinações e alcances desses movimentos em curso apenas começou; a sua efe-tivação dependerá, evidentemente, da maturação desses processos, em cada situação específica, como também dos instrumentais teóricos utilizados para a empreitada, po-rém, desde já, aflora o fato de que jamais estiveram disponíveis, para os homens, tantas formas de conexão com o mundo. Não se trata de atribuir a determinação desses mo-vimentos às novas tecnologias da comunicação, tampouco abstraí-las da complexidade do que está em jogo. Todos esses movimentos expressam, de alguma maneira, a lógica da globalização do capital; e a multiplicidade de formas de conexão com o mundo per-mite o compartilhamento das ideias que se formam em meio às experiências reais e específicas dessa tendência mundial.3

Alguns aspectos desse ambiente contraditório da comunicação e da política na era digital, o qual, inclusive, é tema do pequeno dossiê desta edição, são abordados ou, ao menos, tangenciados por boa parte dos artigos e entrevistas das seções que compõem a presente publicação, ainda que guiados por diferentes preocupações e examinados sob ângulos de análise diversos.

A partir da edição 9.2, em 2009, a Revista Communicare iniciou a construção de um novo projeto gráfico e também editorial, cujos norteamentos foram delineados no editorial da edição 10.1. Foi criada a seção Dossiê, a fim de estimular a ampliação do campo de reflexão da Comunicação, abordando temas específicos de diversas áreas do conhecimento.

A presente edição dá continuidade a esse processo de reformulação, ao lançar

mais uma seção, Iniciação científica, especialmente voltada para a publicação das pes-quisas discentes desenvolvidas no âmbito do CIP.

Em entrevista publicada na abertura desta edição, o ex-diretor do Le Monde Diplo-matique, Ignacio Ramonet, detentor de larga experiência jornalística e como militante, revela alguns resultados de suas recentes pesquisas acerca do impacto das novas tecnolo-gias da comunicação sobre o jornalismo e fala sobre a emergência de uma nova imprensa, que, a seus olhos, dá passos importantes para a construção de um “quinto poder”.

A redução do número de jornais no mundo, a migração dos sobreviventes para a internet, que, por sua vez, não forneceu, conforme Ramonet, “nenhum modelo econô-mico rentável”, e outras tendências da sociedade fizeram com que surgisse uma impren-sa que pode produzir “informação de grande qualidade, sem depender demasiadamente da publicidade, porque pode viver da contribuição dos cidadãos”, como atesta a experi-ência norte-americana, sem fins lucrativos, ProPublica. Segundo o jornalista, há várias experiências desse gênero sinalizando que, diferentemente dos anos noventa, em que mesmo a internet estava sob o jugo dos grandes grupos midiáticos, começa a emergir uma nova realidade no campo da comunicação e da sociedade, posto que houve uma implosão da tecnologia digital num movimento caracterizado, por ele, de “enxame de informação”. Essas e outras experiências, não somente no campo da comunicação, cha-mam especialmente atenção por estarem diretamente relacionadas ao novo patamar de desenvolvimento das forças produtivas e às novas relações e atividades humanas corre-latas, e parecem reforçar a ideia de que estamos diante de um saber e de formas de sua apropriação que prescindem da mediação produtiva da propriedade privada. Formas de apropriações sociais da riqueza social que seguem em contradição com as relações sociais mediadas pela propriedade privada.

Ao estimular a ampliação da reflexão no campo da comunicação, abrindo espaço para as diferentes vertentes do pensamento social, da comunicação e de áreas afins, o artigo da seção Comunicação, tecnologia e Política, de Ivan Cotrim, “Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política”, traz à tona um texto marxiano pouco pesquisado e, dessa forma, colabora para a apreensão de um pensador que muitas vezes é evocado no campo da comunicação por meio da chamada Escola de Frankfurt.

Na seção Comunicação, meios e mensagens, Sabina Anzuategui detecta vários óbices quando se busca empreender uma investigação das telenovelas brasileiras, em especial as chamadas produções alternativas ou experimentais da década de setenta, a exemplo de “O grito”, de Jorge Andrade. Um dos graves problemas com que a autora se depara, e que passou ao largo em boa parte das publicações que tentaram historiar o tema, é a ausência de uma análise propriamente do objeto telenovelas, pois poucos es-tudos, diz Anzuategui, “passaram à etapa de análise do objeto, imprescindível para o es-tudo de um trabalho audiovisual: observação, descrição e compreensão da obra em sua 2. Chasin, J. Poder e miséria do homem contemporâneo, 1999.

3. Como assinalou a socióloga Saskia Sassen, em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, 13/8/11.

Page 8: Communicare – Volume 11, Edição 1

Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 1312 Revista Communicare

Maria Goreti Juvencio SobrinhoApresentação: Editorial

materialidade (texto, som e imagem)”. Todavia, como informa a autora, os pesquisadores preocupados com essa questão se deparam com a dificuldade, entre outras, de acesso aos arquivos do conteúdo completo das telenovelas pertencentes às emissoras privadas.

No artigo da seção Comunicação e Mercado, “Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente”, as autoras Chalini T. Gonçalves de Barros e Graça Penha do Nascimento Rosetto também abordam problemas decorrentes da era da comunica-ção digital, em torno do fenômeno da convergência, e atualizam o leitor interessado nos recentes embates entre as empresas de radiodifusão e de telecomunicações no Brasil. Esta seção é encerrada com texto “Pesquisa qualitativa; caminho para a uma análise complexa da comunicação organizacional” de Marlene Branca Sólio, que sugere uma nova abordagem da comunicação organizacional”.

Outra entrevista inicia a seção Dossiê – Comunicação e política na era digital. Desta vez com o correspondente internacional Lourival Sant’Anna, que discorre sobre as suas recentes experiências no Egito, Tunísia e Síria. Sant’Anna aponta inúmeros as-pectos e problemas relativos aos meios de comunicação nesses países, e também certos condicionantes sociais e políticos de cada um deles. O jornalista lembra episódios que atestam que, ao contrário do que é difundido na mídia, “a revolução egípcia é um fenô-meno anterior ao tunisiano”. Sant’Anna não ignora o potencial das redes sociais nesses levantes, mas enfatiza: “as coisas nascem no mundo real”.

No artigo, “‘Fatodifusores digitais’ e os novos modos de produção jornalística”, as autoras Cristiane Lindemann e Danielle Sandri Reulle avaliam a circulação de notícias nos novos formatos de autopublicação e de redes sociais; destacam, ainda, o problema da credibilidade, também abordado na entrevista de Ignacio Ramonet.

Fecha o dossiê o texto “Capital, habitus e as redes no ciberespaço”, de autoria do pesquisador do Centro Interdisciplinar de Pesquisa, Liráucio Girardi Jr, que, com base no instrumental teórico do sociólogo francês Pierre Bourdieu, entre outros, discorre sobre algumas questões relacionadas aos “mitos da construção do self”- subjetividade – no chamado ciberespaço.

Os dois artigos que inauguram a seção Iniciação Científica são resultado das pes-quisas dos alunos da graduação, Caio Dib e Mariana Pascutti Zacarias. Ao submeterem os seus artigos à revista, esses alunos contaram com a supervisão dos professores dou-tores Pedro Ortiz e Luís Mauro S. Martino, respectivamente, e tiveram a anuência para publicação do conselho consultivo desta Revista.

Em “Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil”, Caio Dib oferece um bom roteiro para uma aproximação com a trajetória intelectual e prática da chamada educomunicação. Remonta algumas experiências e proposituras do célebre educador Paulo Freire e das Comunidades eclesiais de base, no contexto social das décadas de sessenta e setenta, e ainda destaca recentes experiências com os meios

de comunicação vividas em alguns colégios da cidade de São Paulo. A questão que pode ser suscitada em estudos da chamada educomunicação é a de como e até que ponto as diversas formas de utilização dos novos meios de comunicação contribuem para uma ação transformadora não apenas no campo da educação, mas da sociedade.

As redes sociais estiveram no centro da “Primavera árabe”, como instrumento de organização e mobilização das massas, ao passo que a busca por prestígio pessoal, noto-riedade ou publicidade foi o mote para outro contingente de usuários do Twiter. É sobre essa forma de utilização das ferramentas do Twiter (que já conta com mais de trezentos milhões de usuários no mundo) realizada por algumas personalidades que se debruça Mariana Pascutti Zacarias em seu artigo “A popularidade e a influência no Twiter”.

O Centro Interdisciplinar de Pesquisa e a Communicare agradecem a todos que colaboraram para esta edição e convida o leitor a contribuir com as próximas publica-ções que manterão a interlocução e o diálogo com o mundo acadêmico e com aqueles interessados a abraçar o trabalho, cada vez mais coletivo, de entender efetivamente o mundo e buscar respostas para as suas contradições.

Page 9: Communicare – Volume 11, Edição 1

“Acabou-se o tempo em que a informação era monopólio dos jornalistas”

Por Daniela Osvald Ramos e Igor Fuser

Entrevista

Entrevista com Ignacio Ramonet

Page 10: Communicare – Volume 11, Edição 1

Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 17

Ignacio Ramonet

16 Revista Communicare

Entrevista

Professor de Sociologia na Universidade Dennis Diderot (Paris VII), o semiólogo e jor-nalista Ignacio Ramonet é uma das principais referências no debate mundial sobre a mercantilização dos meios de comunicação e a submissão da imprensa aos interesses do capitalismo global. Suas principais ideias sobre o assunto estão sistematizadas no livro A Tirania da Comunicação (Vozes, 1999). Como diretor de redação do Le Monde Di-plomatique entre 1990 e 2008, Ramonet denunciou o papel de domesticador das cons-ciências que a mídia desempenhou no período do auge das reformas neoliberais – uma prática que entrava em absoluta contradição com o conceito de “quarto poder”, presente no senso-comum. Em um famoso editorial, escrito em janeiro de 1995, ele cunhou o termo “pensamento único”, para denunciar o desaparecimento da diversidade ideoló-gica sob a hegemonia liberal-conservadora. Nesse período, engajou-se ativamente no movimento contra a globalização neoliberal e destacou-se como um dos organizadores do Fórum Social Mundial. Tornou-se conhecido também pelo livro de entrevistas Fidel Castro: Uma Biografia a Duas Vozes, a obra mais importante sobre a trajetória política e o pensamento do líder cubano. Nos últimos três anos, Ramonet tem se voltado para a análise do fenômeno das mídias digitais e seu impacto sobre a cena política e os mo-vimentos sociais. Esse é o tema do seu novo livro, A Explosão do Jornalismo, lançado recentemente na França e que será publicado no Brasil pela Editora da UNESP. Em entrevista concedida por telefone a Communicare, ele expõe as principais ideias desen-volvidas nessa obra.

Communicare — No seu novo livro, você compara o impacto da internet sobre o jornalismo ao meteoro que, segundo algumas teorias, fez desaparecerem os dinos-sauros. No seu ponto de vista, a internet significa o fim do jornalismo tal como o conhecemos nos últimos duzentos anos?Ignacio Ramonet - Sim, esse jornalismo está próximo de terminar o seu ciclo de exis-tência como jornalismo de massas, tal como se desenvolveu a partir do final do século XIX. Ele será totalmente transformado, não tanto em consequência da internet em si mesma, mas principalmente como efeito das redes sociais do tipo Facebook e Twitter, do Google , do Youtube, da telefonia 3G – os telefones inteligentes. Tudo isso está transfor-mando radicalmente a maneira de fazer jornalismo, porque hoje o jornalista já não tem o monopólio da informação. Na atualidade, um cidadão comum, com acesso a tecnolo-gias relativamente leves e baratas, possui um equipamento semelhante ao que a CNN tinha há 15 anos. Ou seja, com seu telefone inteligente ele pode captar as imagens em vídeo, escrever textos e enviar seus textos e imagens ao outro lado do mundo.

Communicare — Podemos dizer que a principal diferença entre o momento atual e as épocas anteriores é o fato de que hoje assistimos a uma explosão de dados, ou

seja, temos acesso a um volume de informações incomparavelmente maior do que antes?IR — Existe uma explosão de dados, sem dúvida, mas a novidade mais importante é que hoje as informações existentes estão sob o controle de toda uma massa de cidadãos que podemos definir como web-atores. Ou seja, a informação evidentemente vai circular, mas muitas pessoas hoje podem corrigi-la, complementá-la, prolongá-la e até contestá--la. Por isso, o jornalista já não é mais o dono da informação, ao mesmo tempo em que passa a se integrar a todo um trabalho de colaboração coletiva em torno da tarefa de informar. Por outro lado, a singularidade do trabalho do jornalista está em oferecer uma garantia para essa informação. Uma informação verificada, aquela que pode ser apresentada ao cidadão como verdadeira, é a que passou antes por um processo de ve-rificação para garantir que o que está sendo transmitido está desprovido de erro. Mas, como a informação hoje tem a dimensão da urgência, ou seja, o imediatismo do fato, o papel do jornalista em garantir que algo é verdade já não aparece tão forte quanto antes. O jornalista já não pode assegurar que a informação que ele mesmo está difundindo seja uma informação verificada. O resultado é que estamos agora em um sistema em que o jornalista não perde apenas o monopólio da informação, mas perde também a confiabi-lidade, a credibilidade que conquistou ao longo dos últimos cem anos.

Communicare — Se qualquer pessoa pode assumir funções tradicionais do jorna-lismo, qual será o futuro da profissão de jornalista?IR — Esta pergunta indica bem a perda de identidade desse profissional. Se todo mundo é jornalista, o que um jornalista faz? Hoje não se sabe exatamente para que serve essa profissão. Entretanto, a sociedade evidentemente precisa do jornalista. Nós sabemos que as democracias modernas funcionam com quatro poderes: os três poderes tradicio-nais – Legislativo, Executivo e Judiciário – e o quarto poder, que é a imprensa, os meios de comunicação. São eles que criam a opinião pública. E a opinião pública é hoje em dia um dos poderes que garantem o bom funcionamento da democracia. Por isso, se o jor-nalismo não funciona, a democracia também não funciona. Essa é a raiz da grande crise atual do jornalismo, que não é necessariamente uma crise da informação. Trata-se de uma profissão que está em crise e que precisa adaptar-se à informação em um contexto no qual existe mais informação do que nunca. O problema é que nós nunca estamos seguros de que essa é uma informação de boa qualidade. Hoje em dia os cidadãos vivem em um estado de insegurança informacional, uma situação de incerteza. Quando rece-bem uma informação, não estão seguros de que ela é verdadeira, confiável, de que está verificada. Essa certeza não existe.

Communicare — Neste contexto de hiper-abundância de informação, como seria

Page 11: Communicare – Volume 11, Edição 1

Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 1918 Revista Communicare

Ignacio RamonetEntrevistaEntrevista

possível oferecer essa garantia? Você já ouviu falar no papel de curador da infor-mação?IR — A novidade importante é que o jornalista precisa trabalhar em colaboração com os web-atores. Estou convencido de que um meio de comunicação hoje em dia deve fazer parte desse novo ecossistema em que estamos. E nesse novo ecossistema os cida-dãos informadores exercem um papel muito importante. Por isso é necessário contar com a colaboração deles. O jornalista não pode ter a arrogância de dizer que ele sabe e que os demais não sabem. Como eu disse antes, esse monopólio já foi perdido. Antes, na relação de informação, havia um emissor ativo e um receptor que era um cidadão pas-sivo. Essa situação mudou. Hoje em dia os dois são ativos. Os cidadãos são, ao mesmo tempo, receptores passivos e também produtores ativos da informação. É necessário integrar essa dimensão à realidade do trabalho jornalístico. A prova de que o novo sis-tema é capaz de informar de uma maneira mais completa do que a anterior – embora não sempre, mas em algumas situações, sim – é o caso do WikiLeaks, que eu estudo no meu livro. Até recentemente, nós pensávamos que estávamos muito bem informa-dos, em um sistema muito sofisticado, tecnológico, com um jornalismo de investigação muito importante. Mas, na realidade, não sabíamos nada do que estava acontecendo. Ignorávamos o tipo de informação que circulava pelas embaixadas dos Estados Unidos. Ou seja, o WikiLeaks demonstrou que existiam continentes inteiros de informação aos quais nós não tínhamos acesso. O WikiLeaks funciona porque existem cidadãos que lhe fornecem essa informação e esse tipo de colaboração entre um meio de comunicação e os cidadãos é um fenômeno que deve ser estudado para que se possa entender como se estabelece a articulação. Não tenho dúvidas de que isso modifica o funcionamento geral da informação.

Communicare — Você mencionou a atual crise de credibilidade dos meios de in-formação, mas vivemos também em um tempo de crise econômica muito inten-sa, principalmente na Europa. Em uma situação de crise, a responsabilidade da imprensa e do jornalismo são maiores do que nos tempos considerados normais. Como você avalia a credibilidade da mídia realmente existente neste tempo de cri-se econômica?IR — A mídia encontra-se atualmente sob o domínio de grupos econômicos muito im-portantes, tanto na escala nacional ou continental quanto na escala global. Esses grupos midiáticos dominantes atuam, em minha opinião, como ferramentas ideológicas da glo-balização. Eles são o braço ideológico do poder financeiro que domina o mundo de hoje. Por isso é necessário analisar com muita atenção o seu papel na atual crise financeira global. Essa crise é mais importante do que a de 1929, porque tem uma natureza total-mente diferente. Nesse contexto, a imprensa dominante, ou seja, aquela que pertence a

esses grupos, não está ajudando os cidadãos a tomarem consciência do problema. Ao contrário, está fazendo com que os cidadãos acreditem que, em definitivo, esta é uma situação que está controlada e que vai permitir a construção de uma “melhor economia”, entre aspas. A informação que se difunde sobre a crise é uma informação confusa, ma-nipulativa e, muitas vezes, errada.

Communicare — Então a imprensa está deixando de cumprir o seu papel como quarto poder?IR — Trata-se de um quarto poder que passou a atuar como aliado do poder econômico e isso tornou necessária, hoje em dia, a criação de um quinto poder. Esse é o poder dos cidadãos que criticam os meios de comunicação para construir um sistema midiático mais justo, no qual o setor público tenha um papel muito importante, do mesmo modo que os veículos de informação mais sérios e mais críticos.

Communicare — Você poderia desenvolver essa ideia? Concretamente, você já consegue vislumbrar sinais dessa nova imprensa destinada a cumprir o papel de quinto poder?IR — Sim. Isso está acontecendo em muitos países da América Latina onde existia um monopólio da imprensa privada ou algo que se pode chamar de uma hegemonia dos la-tifúndios midiáticos. Hoje em dia os governos de vários países, como Argentina, e estou chegando agora de Buenos Aires, Bolívia, Equador, Venezuela e Brasil, estão facilitando a criação ou a consolidação, dependendo do país, de um importante setor público da informação. O surgimento desse setor público é indispensável para introduzir um ele-mento de pluralidade na informação, a partir da ideia de que os veículos de comunica-ção não devem pertencer unicamente a uns quantos grupos privados. Sem a presença de um setor público não se pode garantir a existência de outro tipo de aproximação à in-formação. No atual momento, é necessário reconhecer que em diversos países da Amé-rica Latina esse setor público tem funcionado apenas como uma mídia governamental que não favorece a objetividade e o rigor da informação. Trata-se de meios públicos que se limitam a expressar a opinião do governo, contra a opinião dos grupos financeiros que se expressam pelos meios privados. Mas, apesar dessas práticas distorcidas, estou convencido de que a criação de serviços públicos midiáticos, em particular no campo da televisão e do rádio, é um passo muito importante. Acredito que, pouco a pouco, sairemos da fase atual de confronto para construir um setor público que será realmente estatal e não governamental e, portanto, será gerido a partir de critérios profissionais dos jornalistas e não em função da ação governamental. Outro aspecto importante na América Latina é que neste continente inteiro está ocorrendo uma tomada de consci-ência coletiva de que é necessário que os cidadãos se interessem pelo funcionamento

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midiático. Isso significa que os cidadãos, através dos observatórios de mídia e de outros instrumentos de estudo e de ação coletiva, estão procurando entender como funcionam os veículos de comunicação e denunciar o fato de que muitos veículos privados estão apenas a serviço dos seus proprietários ou dos grupos financeiros dominantes, e não a serviço da cidadania em geral. Dessa maneira, com o setor público e a ação dos cida-dãos, vai se configurando esse quinto poder que é importante para que nas democracias exista uma opinião pública não manipulada, uma opinião pública consciente, livre, crí-tica, capaz de participar do debate democrático com, digamos, uma maior possibilidade de enriquecer esse debate.

Communicare — Há quem diga que os cidadãos precisam se alfabetizar para as mídias. Você concorda? E como seria essa alfabetização voltada para ler e criticar os meios de informação?IR — Sim, creio que isso é indispensável. Efetivamente, hoje em dia é necessária uma educação para o funcionamento dos meios, como parte de educação cidadã. Se os ci-dadãos são educados para entender, digamos, o funcionamento da história, da filosofia, das ciências, da natureza, também é importante dar a eles uma educação específica para que possam se proteger das manipulações da mídia. Essa é uma questão de higiene mental, e é única maneira de proteger-se contra a manipulação ideológica, contra a introdução nos nossos cérebros de ideias tóxicas que vão contra a nossa saúde mental e intelectual. Do mesmo modo que os cidadãos precisam conhecer as leis da higiene nor-mal que nos protegem contra as bactérias e os vírus, e da mesma maneira que é preciso ensinar as crianças a lavarem as mãos antes de comer, é necessário que os cidadãos, antes de ligarem a televisão, conheçam o funcionamento dos meios de comunicação.

Communicare — Mas como é possível, fora do setor público, existir uma outra imprensa que tenha viabilidade econômica sem depender da publicidade?IR — Essa é uma questão teórica importante. Na prática, neste exato momento, os veículos de comunicação estão em crise econômica no mundo inteiro. Há uma forte queda da publicidade, que ocorre não só em função da crise, mas também devido ao ingresso da internet no mercado publicitário. O resultado é que hoje em dia o modelo econômico midiático já não funciona mais, nem mesmo para os veículos tradicionais. Ou, se vocês preferirem, funciona pior do que antes e vai passar a funcionar pior a cada dia. Já falamos aqui do desaparecimento dos dinossauros e, neste momento, estão de-saparecendo dezenas e dezenas e dezenas de publicações da imprensa em papel. Nos Estados Unidos, nos últimos três anos, desapareceram 120 jornais, alguns deles muito importantes, com mais de um século de existência. As publicações sobreviventes estão se transferindo para o setor imaterial, ou seja, a internet. E na internet ainda não existe

nenhum modelo econômico rentável. Esse é o problema que temos hoje. O resultado é que hoje qualquer grupo de jornalistas pode criar na internet, sem muito capital, uma imprensa que produza informação de grande qualidade, sem depender demasiadamen-te da publicidade, porque pode contar com a contribuição dos cidadãos. No meu livro, que brevemente será publicado também em português, dou muitos exemplos dessas soluções já existentes. Nos Estados Unidos, está se desenvolvendo em grande escala o que se chama de jornalismo sem fins lucrativos, ou seja, um jornalismo que não busca gerar lucros, mas apenas se autossustentar. Existe, em especial, uma instituição que se chama Pro Publica. Qualquer pessoa pode ter acesso aos seus conteúdos por meio do Google. A Pro Publica recebe doações de fundações de direita e de esquerda, de republi-canos e de democratas, para financiar investigações jornalísticas feitas por profissionais que não sofrem a pressão da publicidade nem, tampouco, a pressão política dos poderes públicos. Dessa maneira, podem fazer as apurações necessárias, que são imediatamente publicadas. Esse material é difundido gratuitamente, por que é necessário para o bom funcionamento da democracia. A Pro Publica existe há apenas quatro anos e já ganhou dois prêmios Pullitzer nos Estados Unidos.

Communicare — Ignacio, pode-se perceber um tom otimista na sua fala. Eu li o seu livro A Tirania da Comunicação e lá você dizia que mídias eletrônicas que na-quela época ainda eram novas, como a internet, cairiam também sob o controle dos grandes grupos empresariais, como já acontece com a televisão e com a im-prensa escrita. No seu novo livro, porém, há uma visão mais otimista da mídia digital, como um instrumento que aumenta a pluralidade de atores no campo co-municacional. Você poderia nos contar o que o levou a mudar seu ponto de vista sobre os novos meios de comunicação? IR — O atual fenômeno é recente. Estamos falando de algo que começou em 2003. Quando eu escrevi A Tirania da Comunicação, no final da década de 1990, a internet ainda estava bastante concentrada. O suporte tecnológico ainda não estava tão desen-volvido e não existiam esses instrumentos sobre os quais vínhamos falando antes, as redes sociais, os telefones inteligentes. Naquela fase inicial, a internet estava, mesmo, nas mãos dos grandes grupos midiáticos. Quem já dominava a informação, dominava também a internet, em qualquer país. No Brasil, por exemplo, quem detinha o site de informação mais frequentado era a Rede Globo. Acontece que hoje em dia essa tecno-logia se espraiou por setores muito amplos da sociedade, produzindo uma explosão, como eu digo no meu novo livro. Em consequência, hoje existem probabilidades muito maiores de que se constitua o que podemos chamar de enxame. Vocês sabem o que é um enxame, certo?

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Ignacio RamonetEntrevista

Communicare — As abelhas…IR — As abelhas, exatamente. Cada indivíduo com seu blog ou site de informação pode contribuir para constituir um enxame de informação que é muito mais importante que o meio dominante. O Huffington Post começou como uma aglomeração de 600 blogs de personalidades e existe somente na web. E se transformou no jornal digital mais influente dos Estados Unidos. Hoje muitos jornais estão fechando, sobretudo aqueles impressos em papel e pagos, mas há muitas oportunidades para a sociedade emitir e re-ceber informações, que estão sendo, ao mesmo tempo, postas à prova a todo momento. Dou muitos exemplos no meu novo livro.

Communicare — O que você diria para os jovens jornalistas que estão começando a trabalhar neste novo cenário de informação? Quais são as qualidades que eles precisam desenvolver?IR — Primeiramente, eu diria que eles têm muita sorte, porque é um momento de opor-tunidades que não existiam no jornalismo há muito tempo. Digamos que as oportu-nidades que havia antes eram do tipo político. Quando cai uma ditadura, há muitas oportunidades para os jornalistas porque se criam muitos jornais. Agora não se trata de um acontecimento político, mas sim tecnológico; um novo sistema tecnológico está se desenvolvendo em detrimento de um antigo. Então, é importante que os jovens encon-trem as possibilidades que esse novo sistema oferece, que são muitas. Hoje se necessita de menos capital para se desenvolver. Segundo, é importante ser produtor de informa-ção nova e não somente reproduzir, algo que a internet fornece. Nesse sentido, os jovens precisam retomar as qualidades do jornalismo tradicional. Um jornalista é uma pessoa que produz informação porque sai em busca dela.

Communicare — Muito foi dito do papel das novas mídias nos recentes protestos e revoltas populares no mundo árabe e também na Europa. O que você pensa da influência dos novos meios nesses fenômenos de mobilização social? IR — Sim, provavelmente a Primavera Árabe não teria sido possível sem as redes so-ciais. Tudo começou na Tunísia, porque o WikiLeaks revelou a corrupção que existia na ditadura do general Zein-al-Abidin Ben Ali. Evidentemente a população suspeitava disso, mas uma coisa é criticar e outra é ter provas. Essa informação circulou e permitiu que a exasperação, a irritação e a ira das pessoas se manifestasse. As redes sociais per-mitiram uma coisa muito importante na luta contra a ditadura, que proibiu os partidos, as organizações políticas, que foi a ida de 30 mil pessoas às ruas. Através do Twitter se comunicou a hora exata e o slogan da manifestação e isso foi o que permitiu sua organização. Também a informação chegou pela TV a cabo, como o canal Al-Jazira. A comunicação desempenha um papel muito importante nesses movimentos, que têm

como característica não haver um líder, nem uma organização que dirija o movimento ou um programa a seguir. Tradicionalmente não se derruba uma ditadura dessa forma. Logo esse processo se repetiu no Egito, Líbia, Síria, Iêmen.

Communicare — Mas você acredita que os recursos digitais são fundamentais para mobilizar as pessoas? O governo pode tomar medidas repressivas e facilmen-te tirar o Twitter do ar, por exemplo. IR — Claro, isso foi o que o sistema fez no Egito. Eles simplesmente “desligaram” a in-ternet, mas, se isso acontece, a economia não funciona, os bancos e o próprio aparato do governo entram em colapso. Lá a polícia também se comunicava por celulares, que foram cortados. Ao final de dois dias tiveram que restabelecer a internet. Ou seja, a censura foi contra o próprio sistema. Hoje em dia é dif ícil desconectar na medida em que o sistema repressivo também está utilizando as redes. Além disso, os insurgentes encontraram meios de burlar o corte, além de usarem telefones comuns, as notícias das TV´s por satélite. Até agora, nenhum governo autoritário conseguiu impedir que as pessoas se organizem para se manifestarem. Veja na Líbia, apesar da terrível repressão de Kadafi, as pessoas se organizaram e enviaram documentos para o mundo sobre o que está acontecendo. O que demonstra que não é fácil, hoje em dia, cortar a comunicação.

Communicare — Na Inglaterra o governo também cogitou controlar a troca de mensagens por celular e as redes sociais. É um sinal que mesmo as democracias podem ser repressoras? IR — Na Inglaterra não cortaram as redes sociais, mas rastrearam a conversação. Mas o problema é que os jovens ingleses não utilizaram o Facebook ou Twitter, mas troca-ram mensagens pelo BlackBerry (aparelho celular), que tem um dispositivo e não deixa nenhum rastro, e isso só essa marca de celular garante. É um recurso que os traficantes usam. A troca de mensagens que importava ao governo estava nos celulares BlackBerry e não nas redes sociais.

Communicare — Como você avalia o desempenho da imprensa nesse caso? IR — A imprensa tradicional foi muito hostil, teve uma atitude de incompreensão na medida em que o fenômeno é dif ícil de entender, sobretudo o grau de violência que existiu. Também o fato de os jovens terem saqueado as lojas e não expressarem nenhu-ma reivindicação política, social ou econômica. Atacaram as lojas de roupas esportivas, como Nike e Adidas, mas não atacaram os bancos. Surpreendente, pois os bancos são símbolos do poder econômico. É uma maneira desconcertante de uma geração mostrar sua frustração por não estar integrada com a sociedade de consumo e pela falta de pers-pectivas com o futuro.

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Entrevista

Communicare — Se compararmos o que acontece na Europa com o que acontece no mundo árabe, à parte de todas as diferenças da imprensa nessas duas regiões, vemos que a imprensa tradicional está um tanto desconectada da realidade so-cial. O mesmo ocorre com o “Movimento dos Indignados”, na Espanha. Mas você falou que a imprensa inglesa ainda não sabe compreender os motivos mais pro-fundos das rebeliões na periferia de Londres e interior do país e eu acompanhei os noticiários da BBC e me parecia que não havia intenção de discutir seriamente o problema, mas, ao contrário, criminalizar os jovens. Parece um pouco o papel da imprensa nas ditaduras, como na Líbia. O que você acha disso? IR — Houve uma incompreensão geral do fenômeno e até agora não vimos uma análise mais profunda. Sobre o movimento espanhol eu diria que a imprensa reagiu com curio-sidade, na medida em que o “Movimento dos Indignados” teve repercussão em todo o mundo, em Portugal, Grécia, muitos países, e agora em Israel. A personalidade que ci-tam é Gandhi e, ainda que as reivindicações sejam muito radicais, especialmente contra o poder econômico e político, elas são feitas com criatividade. Sem dúvida, os grandes meios cobriram esse movimento, que expressa a falta de esperança de uma geração de jovens diplomados e estudantes que vê um futuro sem perspectivas.

Communicare — Uma última pergunta. Trabalhei mais de vinte anos nas editorias de Internacional da imprensa brasileira e todo esse tempo minhas fontes de in-formação foram agências como Reuters, AP, France Presse, ou canais de televisão como a CNN. Agora, com a explosão das novas mídias, é possível obter informa-ções e imagens, sem passar pelas agências e canais de TV, o que vai acontecer com essas grandes empresas de comunicação?IR — A CNN está em crise, e é possível que feche daqui a dois anos. Quem diria, pois em 1989, quando caiu o Muro de Berlim, a CNN foi a primeira a transmitir “a história em marcha”, como diziam os apresentadores. Hoje todos os meios estão em crise e perdem muito dinheiro. Em meu livro lembro que vários canais de informação já fecharam, como o CNN Plus, na Espanha, que transmitia de forma contínua, deixando centenas de jorna-listas na rua. Seguramente algumas agências vão continuar existindo, mas hoje, quando acontece algo, os meios se dirigem aos cidadãos que vivem nesse local para que mandem fotos, vídeos, testemunhos. Quando aconteceu o tsunami e o terremoto em Fukushima, antes dos jornalistas chegarem ao Japão, os grandes canais de TV já tinham informações enviadas por franceses que viviam lá, através de webcams, diretamente ao vivo. Com isso, acreditavam que já tinham feito a cobertura. Estamos hoje em pleno terremoto, não sabemos como isso vai se desenvolver. O que sabemos é que o antigo ecossistema está de-saparecendo e o novo está permitindo a aparição de entidades informativas e jornalísticas que se adaptem melhor à nova atmosfera que se está criando atualmente.

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Artigos

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Comunicação, tecnologia e política

1844’s Notebooks - Marx’s original criticism of political economy This article examines

categories that are originally approached and critically considered by Marx in his “Paris Notebooks”, written in 1844. We

make reference to some scholiasts who studied the period of formation of young Marx’s thought and their standpoints on

political economy. We point out the main points raised by those writings, presenting the critical treatment Marx gives them

and the conclusions he derives from it. We seek to demonstrate that alienation and estrangement are nuclear categories in

Marx critique, as well as that private property and division of labour are set on the basis of those categories, which result in

the exclusion of man from their own universe in favor of capital. At last, we indicate Marx account on the category of labour

as subsumed by estrangement and alienation, while these categories dominate the selfish community, commercial society, or

capitalism.

Keywords: Bewildering, alienation, private land, labor division, mediator, mean community or selfish community, value, work

Neste artigo expusemos as categorias que são originariamente abordadas e criticamente tratadas por Marx em seu texto “Cadernos de Paris” de 1844. Indicamos alguns analistas que estudaram o período de formação do pensamento do jovem Marx, e suas posições sobre a economia política. Apontamos os temas de maior evidência, dentro do texto, expondo sua forma de tratamento crítico, bem como as conclusões daí retiradas. Buscamos mostrar que a alienação e o estranhamento nuclearizam suas críticas, assim como a propriedade privada e a divisão do trabalho encontram-se na base de susten-tação dessas categorias, o que resulta na exclusão do homem de seu próprio universo em favor do capital. Indicamos por último a compreensão demonstrada por Marx sobre a categoria trabalho que se encontra subsumida ao estranhamento e alienação, enquanto essas categorias dominam a comu-nidade egoísta, a sociedade comercial, o capitalismo.

Palavras-Chave: Estranhamento, alienação, propriedade privada, divisão do trabalho, mediador, co-munidade egoísta, valor, trabalho.

Ivan Cotrim Prof. Dr. Ivan Cotrim da Fundação Santo André e do Instituto Presbiteriano Mackenzie.

Cadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 3130 Revista Communicare

Ivan CotrimCadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política

Introdução

Tratamos aqui por crítica originária à economia política o período bem anterior às con-creções encontradas sobre esse tema, na Contribuição à Crítica da Economia Políti-ca, de 1859, e em O Capital, período em que Marx iniciou seu enfrentamento com os pensadores clássicos da economia política, provido de postura crítica visando desvelar, por meio de seu procedimento ontoprático, a base de sustentação tanto dos fenômenos reais quanto das articulações ideológicas que permitiram emoldurar tal ciência. O perí-odo em que essa crítica originária transcorre tem início com os apontamentos de seus estudos analíticos, registrados para publicação somente no século XX, sob o título de Cadernos de Paris, produzidos anteriormente aos Manuscritos Econômico-Filosóficos, embora no mesmo ano, 1844.

Procuramos indicar, resumidamente, algumas das abordagens que remetem a esse período, presentes nos analistas do pensamento marxiano, observando, antes de tudo, a escassez de referências aos Cadernos de Paris pela maior parte deles.

Tendo sido publicado pela primeira vez em MEGA (Marx Engels Gesamtausgabe), com o título de Estudos Econômicos – Extratos, em 1932, e traduzido do alemão para o espanhol por Bolívar Echeverria, recebeu de Adolfo Sanchez Vasquez, para a publica-ção em 1972, a denominação de Cadernos de Paris (Notas de Leitura de 1844). Em sua avaliação geral sobre a produção teórica de Marx desse período, apresentada em seus estudos sobre os Cadernos, Vasquez indica que sua redação antecede a dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, embora ambas datem do mesmo ano, o que explica a forte afini-dade teórica entre os textos, especialmente no que respeita à economia política clássica.

As referências a esse período inicial de abordagem dos clássicos da economia po-lítica têm sido feitas por inúmeros estudiosos da obra de Marx, analistas dos variados temas de sua produção, revelando importância indiscutível para a compreensão de seu pensamento. Sem qualquer possibilidade de esgotar o quadro dessas referências, da-mos, a seguir, um panorama de alguns dos pensadores que tiveram como objetivo o estudo desse período originário de Marx, que inclui certamente os “Cadernos”.

Num trabalho bastante difundido no Brasil, em que a questão da alienação encon-tra-se no centro de sua análise, Mészáros2 expõe seu entendimento sobre o “encontro de Marx com a economia política”, título de um dos capítulos de seu livro em que trata dessa questão. Nesse, os Manuscritos Econômico-Filosóficos figuram como objeto prin-cipal de seu trabalho. Mészáros analisa esse trabalho em que, sem dúvida, o pensador alemão reúne um intenso questionamento sobre o tema, revelando nexos, significados

1. Vasquez, A. S.. Economia y Humanismo, in Marx, K., Cadernos de Paris (Notas de Lectura de 1844). México: Era, 1974. Observe-se também que esse manuscrito foi conhecido e tratado por alguns analistas por “Extratos de James Mill”.2. Mészáros, I. Marx: A Teoria da Alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.3. Ib., p. 73.

e os sentidos da alienação.Ter partido dos Manuscritos significa, para Mészáros, que a preocupação com as

atividades econômicas encontra-se já exposta desde esse período por Marx. Mészáros destaca nesse texto uma frase em que a divisão do trabalho e as trocas são postas como “as expressões alienadas mais perceptíveis da atividade humana e do poder humano essenciais da espécie”. Vê-se que, na ótica de Mészáros, o encontro de Marx com a eco-nomia política funde-se acertadamente com as críticas à alienação. Avançando em sua exposição sobre as críticas originárias, Mészáros cita os textos Sobre A Questão Judaica e Crítica da Filosofia do Direito de Hegel - Introdução, de 1844, como sinalização dos primeiros momentos de crítica à economia política, mas restritos ainda ao plano polí-tico, “dentro do espírito de um programa segundo o qual a crítica da religião e a da teo-logia devia ser transformada em crítica do direito e da política”3. Mészáros cita também o texto de Engels, escrito em finais de 1843 e inícios de 1844, Esboço de uma Crítica da Economia Política, para indicar a importante influência para o encaminhamento de Marx na direção da economia.

Os Manuscritos Econômico-Filosóficos são, porém, o texto em que, conforme Mészáros, as críticas às mediações alienadoras do homem serão levadas a cabo. Com base na atividade trabalho, determinação ontológica do ser social, Marx empreende sua primeira grandiosa crítica às categorias fundantes da economia política: proprieda-de privada, divisão do trabalho e troca. Mészáros se moverá teoricamente preocupado mais com as formas das mediações e menos com os fundamentos históricos e objetiva-ção dessas categorias da economia política, na busca de explicar o mais adequadamente possível o fenômeno da alienação, que ocupou o pensamento marxiano.

Observamos aqui que Mészáros articula um conjunto de textos do período de crítica originária de Marx, com vistas ao domínio e ampliação na explicação de novos nexos que o tema alienação vai enredando. Mas também é preciso indicar que, embo-ra seu trabalho contemple amplamente a problemática da alienação, Mészáros não faz alusão aos Cadernos de Paris como apoio ou sustentação do “encontro de Marx com a economia política”, texto que, embora da fase originária, mostra-se fundante em sua crítica à economia política, conforme veremos à frente.

Avançando mais nos empreendimentos analíticos da fase crítico-originária de Marx, consideramos incontornável a abordagem da crítica da economia política efetiva-da por Mandel, em seu A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx. Essa obra registra um consolidado reconhecimento internacional da importância de seus estudos sobre a obra de Marx, e, sobretudo, do seu esforço em acompanhar a realidade político-econômica do imperialismo posterior à Segunda Guerra Mundial, expresso nos elevados padrões intelectuais-revolucionários certamente apreendidos do pensador alemão.

3. Ib., p. 73.

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Ivan CotrimCadernos de 1844: crítica originária de Marx à economia política

Mandel compreende que Marx assume posicionamentos críticos desde 1843, e que esse movimento se completa, na fase que tratamos aqui por crítica originária, com a crítica da economia política. Em suas próprias palavras, esclarece-se que Marx vai “da crítica da religião à crítica da filosofia; da crítica da filosofia à crítica do estado; da crítica do estado à crítica da sociedade, isto é, da crítica da política à crítica da economia polí-tica”4. Eis, portanto, a exposição sintética de uma trajetória que, tendo como suporte a crítica da especulação filosófica e da politicidade, culmina com o enfrentamento crítico das teorias construídas pela economia política.

Procurando identificar o interesse de Marx pelas questões econômicas mais di-retamente, Mandel remete-se a fatos que desencadearam a indignação de Marx, como a miséria dos trabalhadores nas vinhas de Mosela e os debates concernentes ao roubo de lenha, e a partir dos quais, ainda que se posicionasse como democrata, já punha em questão os limites do estado quando se trata da solução da vida material dos trabalha-dores. Além disso, diz ele, Marx conclui que esse estado em que se encontra o trabalho imediato constitui pré-condição para a existência da sociedade burguesa. Com isso ele já se proclama, conforme Mandel, um adversário da propriedade privada, qualificando-a como fonte de toda injustiça. Porém, somente após sua chegada a Paris, em outubro de 1843 – continua –, é que Marx se defrontará diretamente com as produções teóricas dos economistas clássicos. Mandel, com justa razão, insiste na influência de Engels so-bre a formação do pensamento marxiano crítico à economia, citando o famoso texto Esboço de uma Crítica da Economia Política, ao qual Marx sempre se referiu como sendo uma “genial crítica” à economia política. No entanto, é preciso observar que o percurso do filósofo alemão, com toda a influência já considerada, é original e próprio, tendo seus primeiros traços peculiares, conforme indicamos, anotados nos Cadernos de Paris. Mandel toma como ponto de partida de sua abordagem do pensamento crítico à economia política de Marx os Manuscritos Econômico-Filosóficos:

Redigidos depois da leitura de uma série de economistas de primeiro plano e consistindo, aliás, parcialmente em longas citações extraídas de Adam Smith, de Pecqueuer, de Loudon, de Buret, de Sismondi, de James Mill e de Michel Chevalier, esses três manuscritos econômico-filosóficos representam o primeiro trabalho econômico propriamente dito do futuro autor do Capital. Uma crítica da filosofia de Hegel constitui a quarta parte. Eles tratam sucessivamente do salário, do lucro, da renda fundiária, do trabalho alienado em relação com a propriedade privada, da propriedade privada em relação com o trabalho e com o comunismo, das necessidades, da produção e da divisão do trabalho, assim como do dinheiro.5

De maneira que Marx se depara com a necessidade de estudar os materiais de conteúdo econômico para orientar-se na condução de sua crítica à sociedade civil, à vida privada, à situação de penúria dos trabalhadores. Conforme Mandel, no momento em que os Manuscritos Econômico-Filosóficos estão sendo elaborados, descobertas fun-damentais são postas à luz:

Ora, estudando os economistas clássicos, Marx descobre que estes fazem do trabalho a fonte última do valor. A síntese se fez em um clarão, as duas noções foram combinadas, e se crê verdadeiramente assistir a essa descoberta examinando as notas de leitura de Marx, sobretudo o célebre comentário das notas de leitura de James Mill (registradas nos “Cadernos de Paris)”, onde Marx parte do caráter da moeda, meio de troca, instrumento de alienação, para chegar às relações de alienação que substituem as relações humanas.6

Observe-se de passagem que Mandel constitui um dos raros pensadores a se re-ferir aos “Cadernos”, utilizando a denominação de “Extratos de James Mill”, e, tendo-o por parâmetro, ele observa que embora Marx tenha partido das formulações filosóficas de Hegel, ele compreende seus limites e adverte que Hegel considera “a alienação como fundada sobre a natureza do homem”, natureza essa engendrada pela lógica filosófi-ca hegeliana, mas jamais constatada na realidade mesma, além disso, Hegel constata a miséria a que estão submetidos os trabalhadores sem fazer qualquer menção às possi-bilidades de sua superação, muito embora reconheça que “a riqueza nasce em meio à miséria”. Por fim Mandel expõe a radical diferença com que Marx aborda as questões econômicas em relação a Hegel, insinuando que desde já se esboça uma reorientação de perspectiva ontológica frente a este:

O seu ponto de partida nessa crítica não é de modo algum o ‘conceito’ de trabalho alienado; o seu ponto de partida é, ao contrário, a constatação prática da miséria operária, que cresce na mesma medida em que crescem as riquezas que essa mesma classe operária produz. A sua conclusão não é, de modo algum, uma solução filosófica ao nível do pensamento, da idéia, do trabalho intelectual. Ele conclui, ao contrário: ‘Para superar a idéia da propriedade privada, o pensamento comunista é amplamente suficiente. Para superar a propriedade real, precisa-se de uma verdadeira ação comunista.7

Com o objetivo explícito de demarcar a postura teórica do pensador alemão,

expor o construto de suas próprias concepções, e explicar o fundamento da nova posição onto-prática marxiana, Chasin, em seu texto Marx – Estatuto ontológico e Resolução Metodológica8 inicia por afastar os tratamentos responsáveis por uma difusão do pensamento de Marx em radical desacordo com sua própria perspectiva

4. Mandel, E. A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx. De 1843 até a redação de “O Capital”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. p. 13.5. Ib., p. 30.

6. Ib., pp. 31-32. Observe-se que as notas de leitura de James Mill estão contidas nos Cadernos de Paris.7. Ib., pp. 161-162.8. Chasin, J. Marx – Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.

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edição do mesmo livro, vinte anos depois, afirma:O subtítulo que introduzi nesta segunda edição de meu livro – única modificação significativa em relação à primeira – deve ser entendido como uma tentativa no sentido de evitar os mal-entendidos que têm atrapalhado sua leitura. De novo venho salientar o caráter lógico deste texto, meu interesse fundamental em compreender a viabilidade da dialética. Se passo por uma leitura do jovem Marx, é para investigar a validade duma dialética que toma como ponto de partida a categoria do homem como ser genérico na qualidade de universal concreto.11

Portanto, ele se dirige à dialética como método e foco de análise, reafirmando seu objetivo e o conteúdo de seu trabalho, bem como aquela suposta ruptura dos escri-tos de Marx: “Não estou com isso negando a enorme continuidade temática dos escritos de Marx. Se há ruptura ela é lógica e ontológica – e isso precisa ser entendido”12. Quanto aos Cadernos, especificamente, queremos aditar apenas um esclarecimento que Gian-notti apresenta logo no início de suas análises:

Os textos, cuja tradução daremos a seguir, devem ser anteriores ao que acabamos de estudar. São igualmente trechos do comentário ao tratado de economia política de James Mill, e, como é de supor que Marx resumia e comentava conforme progredia na leitura devem ter sido escritos antes da passagem já analisada, que se encontra quase no fim do extrato.13

E mais adiante, depois de indicar tratar-se de leituras imediatamente comentadas por Marx, Giannotti explica que, embora formalmente dispersas, não perdem o nexo interior, pois

Na verdade, Marx lançava no papel suas idéias conforme lhe advinham da leitura de Mill, desordenadamente e sem se preocupar com seu encadeamento num sistema teórico. Isso não significa, porém, que objetivamente as idéias não se engrenem e não se completem mutuamente.14

Certamente Giannotti soube explorar o conteúdo dos Cadernos com adequa-ção às finalidades a que se propôs. Contudo, não cabe aqui, nem para Giannotti, nem para os demais comentadores mencionados, uma análise do material que apresentam sobre esse período e texto, pois nosso objetivo, antes de tudo, é o de indicar a importân-cia dos “Cadernos” e o contexto teórico da formação crítica originária de Marx sobre a economia política.

e tessitura, procedimentos analíticos que, ao contrário de evidenciar as qualidades e novidades e destacar o padrão ontológico desenvolvido pelo pensador alemão, diluem suas diferenças revolucionárias e inovadoras na imputação de um método prévio de análise do real, a exemplo do procedimento hegeliano. De forma resumida, aludimos aqui ao fato de que Chasin se volta aos textos originários de Marx para enfrentar essa problemática, deixando exposto o caminho necessário para explicitação da última crítica ontológica marxiana, a crítica à economia política. Conforme Chasin, Marx iniciara por submeter tanto a volumosa produção filosófica quanto política a uma análise crítica, mas, frente às dificuldades materiais da vida societária e à ausência de canalização política resolutiva para tanto, Marx se dá conta do significado da vida econômica na totalidade social, avançando, então para a crítica da economia política. Destaque-se que essa abordagem de Chasin recupera a integridade do pensamento marxiano, afastando as imputações metodológicas e indicando que a complementação de sua análise crítica se volta para a “anatomia da sociedade civil”, como dirá bem mais tarde (1859) o próprio Marx. Ou seja, Chasin demonstra que a trajetória de seu pensamento resolve-se, ou melhor, encontra fundamentos na economia política, daí ser essa sua última abordagem crítica, o que permitiu a Chasin afirmar que tal empreendimento só pode efetivar-se pelo procedimento ontoprático operado por Marx, procedimento esse que implica verificar a produção teórico-ideológica no mundo real e concreto.

Outro autor, com distinta abordagem, José Arthur Giannotti, em 19659, irá ter nos Cadernos de Paris, que ele trata por Extratos de James Mill, sua atenção, dando-nos uma aproximação de seu conteúdo e importância. Contudo, sua análise vale-se dos Cadernos na pretensão de demonstrar sua própria tese: a determinação da negatividade histórica do trabalho, e ao mesmo tempo defender uma disjuntiva epistemológica entre a produ-ção do jovem Marx e do Marx de maturidade. Ele observa que:

Nosso primeiro projeto compreendia um balanço geral da dialética marxista e foi somente no curso do nosso estudo, quando nos convencemos da radical oposição epistemológica entre os textos de juventude e de maturidade, que nos decidimos analisar a dialética primitiva, preparando o terreno para um livro posterior. De outra forma, se juntássemos num mesmo escrito a discussão dos dois procedimentos, a todo o momento, deveríamos recorrer a universos diferentes do discurso, criando uma confusão indecifrável.10

Essa observação é feita no prefácio à primeira edição, de 1965, do trabalho citado. Ou seja, ele busca, por meio das análises metodológicas, explicitar uma suposta ruptura epistemológica entre os escritos do período originário da produção de Marx e os de maturidade. Sua preocupação com o plano epistemológico permanece, e na segunda

9. Giannotti, J. A. Origens da Dialética do Trabalho. 2ª Ed. Porto Alegre: L&PM, 1984.10. Ib., p. 10.

11. Ib., s/ pag12. Ib. (Prefácio à 2ªedição). 13. Ib., p.161. 14. Ib., pp.161-162

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humana. Porém, na sociedade mercantil o dinheiro assume o papel daquele dinamismo relacional expressando, ao contrário, que a atividade mediadora social, esse ato huma-no, “encontra-se estranhado e convertido em atributo do dinheiro, de uma coisa mate-rial, exterior ao homem” (CP, p. 126), e isso obviamente numa sociedade regida pelas trocas, pelo mercado; esse é motivo que conduz Marx a reafirmar a atividade humana como atividade estranhada, alienada, já que seus verdadeiros atributos aparecem como atributo do mediador, no dinheiro.

Depois de avançar na crítica às formulações de Mill sobre o dinheiro, Marx extrai consequências nem de longe percebidas por aquele, como, por exemplo, o fato de que, diante do dinheiro, o homem “se aliena desta atividade mediadora, ele é ativo apenas como um homem que se perdeu a si mesmo, desumanizado”, pois, continua Marx, “o homem mesmo deveria ser o mediador para os homens” (CP, pp. 126-7), confirmando assim sua posição de como deveriam ocorrer as relações homem a homem, na comu-nidade, numa sociedade humana verdadeira, em que sua atividade pudesse manifestar verdadeiramente sua essência, sua generidade ativa e autoconstrutora. Esse mediador, sendo “o poder real sobre aquilo com que me ponho em relação, é claro que se converte no Deus efetivo” (CP, p. 127).

Marx procura explicar sua conceituação sobre a alienação e o estranhamento ob-servando a assemelhação existente entre dinheiro e divindade, formas distintas, históri-ca e socialmente, mas igualmente reveladoras de uma mesma fenomênica. Desta forma, diz Marx, “[Cristo representa originalmente: 1] os homens frente a Deus; 2] Deus para os homens; 3] os homens ante o homem” (CP, p. 128). E continua em seguida: “[De igual maneira, o dinheiro representa originalmente, segundo seu conceito: 1] a propriedade privada para a propriedade privada; 2] a sociedade para a propriedade privada; 3] a pro-priedade privada para a sociedade” (CP, p. 128), para completar afirmando que: “Cristo é tanto o Deus alienado como o homem alienado. Deus só tem valor na medida em que representa Cristo, o homem só tem valor na medida em que representa Cristo. O mesmo sucede com o dinheiro” (CP, p. 128).

Desta forma, ao renunciarem à atividade mediadora como prática direta, homem a homem, ao aceitarem o dinheiro na forma em que se encontra, os homens mantêm-se envoltos no estranhamento que o dinheiro manifesta e colocam-se em posição subor-dinada aos seus insondáveis desígnios, a uma sociabilidade por eles não controlada nem compreendida, a exemplo de sua subsunção religiosa.

Importa afirmar também que Marx busca especificar o mediador, e como tal re-fletir sobre sua negatividade ao reafirmar seu caráter alienado e estranhado. Além do cotejo entre dinheiro e divindade, Marx colocará em pauta a política, destacando o es-tado como encarnação de mesma fenomênica: assim como o dinheiro encarna a forma do mediador, o estado cumprirá em sua efetividade papel semelhante:

II

As anotações iniciais de Marx nos Cadernos formam um conjunto de temas cujas críticas serão desenvolvidas ao longo do texto. Marx destaca as categorias que se encon-tram disponibilizadas nas teorias da economia política. Ele põe em evidência a proprie-dade privada, indicando ser esta, no âmbito dessa ciência um fato carente de necessida-de. Muito embora a economia política tenha como base de sustentação exatamente essa categoria, afirmando que não há riqueza sem propriedade privada, não explica a neces-sidade dessa forma social, não identifica qualquer demanda dessa categoria que não seja para o capital, o que leva Marx a afirmar que se trata de um “ser sem carência”. Desta for-ma, as relações humanas que emergem mediadas pela propriedade privada convertem os objetos representantes desta em um meio de dominação de seus possuidores; Marx observa numa espécie de “diálogo reflexivo” que “O verdadeiro poder sobre um objeto é o meio; por esta razão, tu e eu vemos reciprocamente em nosso objeto o poder de um sobre o outro e sobre si mesmo. Quer dizer, nosso próprio produto se voltou contra nós” (CP, p. 153)15, pois ele, objeto, se converte em meio de dominação, e como tal sua posse, ao contrário de proporcionar o gozo recíproco e completo, promove a exclusão recíproca dos indivíduos. Marx indica a complementação dessa inversão observando que o objeto “parecia ser propriedade nossa, porém, na verdade somos nós sua proprie-dade. Estamos excluídos da verdadeira propriedade porque nossa propriedade exclui ao outro homem” (CP, p. 153). Isto é: esse poder era supostamente sua propriedade e, no entanto, cada um o reconhece como poder do objeto sem, contudo, compreender a mágica dinâmica que transfere esse poder para o objeto.

Desde a abordagem inicial de Marx que ele põe em evidência o conceito de di-nheiro formulado por Mill, tratado como a mediação, como inversão das relações so-ciais. Mill afirmara ser o dinheiro intermediário das trocas, a o que Marx observa que ele não consiste em ser alienação da propriedade privada, mas, sim, que a atividade mediadora encontra-se nele alienada e convertida em atributo deste, isto é, um atributo do homem se torna uma coisa exterior ao homem, fora dele e não controlada por ele. De maneira que o dinheiro se converte em mediador e seu pressuposto é que as relações humanas encontram-se nele alienadas, portanto não são relações homem a homem, homem e natureza. Observe-se antes de qualquer coisa que essa atividade mediadora significa para Marx o dinamismo relacional, o ato humano, ato social, produtivo, (inter-câmbio entre homens e homens e natureza) mediante o qual os produtos dos homens se completam uns aos outros, pois os homens em suas individualidades produzem uns para os outros, desde que se encontrem numa forma social humana, na comunidade

15. Daqui em diante todas as notas citadas em C.P., seguidas do número da página referem -se ao texto: Cuadernos de Paris [Notas de Lectura de 1844]. México: Ediciones Era, 1974. Tradução de Adolfo Sanches Vasquez.

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mediação alienada de si no interior das relações consigo mesma, é porque essas relações avançaram até a forma do mediador. É óbvio também que a presença do mediador só tem sentido real sobre a base da existência da propriedade privada. Assim, quando se questiona: “Por que tem a propriedade privada que avançar até a instituição do dinhei-ro?”, Marx de pronto responde que “como ser social [o homem] tem que avançar até o intercâmbio, e /.../ o intercâmbio – sob as condições da propriedade privada – tem que avançar até o valor” (CP, p. 128). Desta maneira, o acabamento da forma alienada que assume a atividade humana sob a propriedade privada, sua reafirmação e reprodução configuram-se no mediador, no dinheiro como determinante dessa forma social.

Não é dif ícil notar a exclusão humana que vai sendo processada no movimento e dinamismo de sua própria atividade, e a expressão cada vez mais negativa das relações humanas que se operam sob essa forma; e, sob o prisma dessa negatividade; Marx afirma:

Com efeito, o movimento mediador do homem que intercambia não é um movimento social, um movimento humano, uma relação humana; é a relação abstrata da propriedade privada com a propriedade privada, e esta relação abstrata é o valor, cuja existência efetiva como valor é o dinheiro (CP, p. 129).

A ontonegatividade do valor revela-se aí sob a forma dessa relação abstrata, pois não se trata de relação humana, de “um movimento social, um movimento humano”, já que os indivíduos se encontram sob seu controle, sob o “Deus efetivo”; o caráter nega-tivo se especifica por converter a atividade humana à forma valor, do dinheiro, forma exterior aos homens que os submete. Assim, a alienação e o estranhamento a que são submetidos os homens em suas próprias atividades encontram significado apenas nas relações da propriedade privada consigo mesma, e na sua conversão em dinheiro, pois a atividade humana está nela convertida.

Repondo a expressão de Marx na qual afirma que: “como ser social [o homem] tem que avançar até o intercâmbio, e porque o intercâmbio – sob as condições da pro-priedade privada – tem que avançar até o valor”, entende-se que a natureza do inter-câmbio nessa forma social encontra seu significado na propriedade privada, e é nessa condição que o valor se põe, é nessa condição que a atividade humana toma a forma de valor, cuja existência como tal, diz Marx, é o dinheiro; porém, para ser dinheiro, é preciso ser antes uma relação não-humana, “uma relação da propriedade privada com a propriedade privada”, uma relação abstrata, que se define como valor, uma relação negativa, pois externa aos indivíduos e suas necessidades, uma relação contingencial que não é efetiva para a essencialidade mesma do homem.

Na sua trajetória crítica, Marx vai delineando a forma social sob a qual se encon-tram as categorias de alienação e estranhamento surgidas nos processos de produção para troca, na sociedade mercantil (capitalismo). Sua crítica torna-se fundamental para

O estado é o mediador entre o homem e a liberdade do homem. Assim como o Cristo é o mediador a quem o homem confia toda sua divindade e toda sua servidão religiosa, o estado é o mediador a quem o homem confia toda sua não-divindade, e toda sua limitação humana.16

A limitação humana aqui é referente a seu ser-terreno, mundano; implica diretamente o desenvolvimento ou não das suas forças produtivas. De forma que o estado e a política permanecerão presentes na medida em que tais forças produtivas se mostrem incapazes de efetivar sua autoconstrução, efetivar a objetivação da essencialidade humana.

É esta forma social, a comunidade egoísta, que a economia política tem como ob-jeto científico, a sociedade da propriedade privada, pois é esta a categoria que sustenta tal sociedade, já que para essa ciência não existe riqueza sem propriedade privada. Con-tudo, vale reafirmar a posição de Marx em dizer que a economia política não explica a necessidade dessa categoria central deixando sem fundamento sua teoria; a propriedade privada aparece, nesse âmbito, como um fato carente de necessidade. A economia não a fundamenta, não a explica, mas a torna coisa determinante a todo o agir humano, enquanto que posicionado criticamente Marx demonstra ser essa categoria a base da alienação e do estranhamento sociais.

Ele observa, adiante, que as relações sob a comunidade egoísta, sob a propriedade privada, convertem a reciprocidade do intercâmbio humano em relações mercantis de troca, reafirmando o atributo humano nos objetos que resulta por conferir a essa forma relacional uma recíproca alienação: “O verdadeiro poder sobre um objeto é o meio; por esta razão, tu e eu vemos reciprocamente em nosso objeto o poder de um sobre o outro e sobre si mesmo. Quer dizer, nosso próprio produto se voltou contra nós” (CP, p. 153), pois ele se converte em meio de dominação, e, como tal, sua posse, ao contrário de pro-porcionar o gozo recíproco e completo, promove a exclusão recíproca dos indivíduos. Marx indica a complementação dessa inversão expressando que o objeto “parecia ser propriedade nossa, porém, na verdade somos nós sua propriedade. Estamos excluídos da verdadeira propriedade porque nossa propriedade exclui ao outro homem” (CP, p. 153). Isto é: esse poder era supostamente sua propriedade e, no entanto, cada um o re-conhece como poder do objeto, sem, contudo, explicar a mágica dinâmica que o trans-feriu para o objeto.

Por outro lado, o produto da atividade social, ou genérica, a propriedade privada alienada do homem, expressar-se-á, concomitantemente, como atributo do mediador, do dinheiro; o mediador converter-se-á na essência alienada da propriedade privada, uma forma exterior a ela, de existência independente. Se a propriedade privada expõe-se como

16. Marx, K. Sobre la Cuestión Judía, in Marx – Escritos de Juventud., México: Fondo de Cultura Económica, 1987.

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singular, senão a essência de cada indivíduo, sua própria atividade, sua própria vida, seu próprio espírito, sua própria riqueza (CP, p. 137)

Atentemos para o fato de que o autor, aqui, está expondo a forma essencial dessa comunidade, desse ser, de como se põem os indivíduos, que, antes de tudo, são essa própria comunidade, e não forma invocada pela idealidade abstrato-uni-versal, como ele já apontou. Portanto, trata-se de “comunidade verdadeira [posta] em virtude da necessidade e do egoísmo de cada indivíduo; quer dizer, é produzida de maneira imediata na realização de sua própria existência” (CP, p. 137). E avan-çando nessa direção, diz ele: “Esta essência são os homens, não em uma abstração, senão como indivíduos particulares, vivos, reais. E o modo de ser deles é o modo de ser daquela” (CP, p. 137).

Por outro lado, a comunidade posta sob o efeito determinante da proprieda-de privada, das categorias sociais características da economia política, a comuni-dade estranhada não pode ser outra coisa senão o repositório de indivíduos estra-nhados, ou seja: “é exatamente igual dizer que o homem se estranha de si mesmo e dizer que a sociedade deste homem estranhado é a caricatura de sua comunidade real, de sua verdadeira vida genérica” (CP, p. 137). Vê-se então que a alienação dos indivíduos lhes confere uma comunidade igualmente alienada; que a verdadeira vida, o seu ser genérico, seu gênero é sua comunidade, mas, uma vez alienada, converte-se em caricatura da comunidade verdadeira.

Assim, essa deformidade que acomete a comunidade corresponde à deformi-dade do indivíduo, cujo sofrimento se explicita no âmbito de sua vida real:

Sua atividade se lhe apresenta como um tormento, sua própria criação como um poder estranho, sua riqueza como pobreza; /.../ o vínculo essencial que o une aos outros homens se lhe apresenta como um vínculo inessencial, e melhor, a separação com respeito aos outros homens como sua existência verdadeira; /.../ sua vida se apresenta como sacrif ício de sua vida, a realização de sua essência como desrealização de sua vida, sua produção como produção de seu nada, seu poder sobre o objeto como poder do objeto sobre ele; /.../ ele, amo e senhor de sua criação, aparece como escravo desta criação (CP, pp. 137-138).

Essa longa citação serve-nos na captação e compreensão do significado que tem, em Marx, a alienação da comunidade, e ao mesmo tempo sua radical diferenciação em relação aos moldes daquela sociedade despojada da alienação.

Outro tema que é posto de manifesto nos “Cadernos” é o valor trabalho que abrirá outra polêmica com os clássicos autores da economia política. Ele aborda a problemática do valor, com base no trabalho, para comentar um tema comum

a compreensão de que a forma social, a generidade ativa do homem, sua essenciali-dade, estão submersas àquelas categorias que Marx trata como caricaturas da ver-dadeira sociedade, categorias que emolduram a comunidade egoísta, em oposição radical ao que seria a comunidade humana, verdadeira, integral. Essa comunidade não é produto de qualquer idealidade marxiana, visto sua constante indicação de que a verdadeira essencialidade humana se revela na externalização relacional do homem, na sua generidade. Assim, mesmo que o intercâmbio entre os homens tenha sido substituído pela relação de troca, pela propriedade privada, pelo media-dor, diz Marx, persiste algo na sociedade que permite vislumbrar a indissolubili-dade de indivíduo e gênero: a necessidade humana como elo insuprimível, isto é, a necessidade como manifestação externalizada, objetivada nos atributos humanos. A necessidade de algo externalizado posto pela produção humana é a “prova irre-futável de que ele pertence a minha essência”, confirmando ser o gênero a própria essência do indivíduo.

Como foi visto, as relações de estranhamento e alienação assumidas pelos proprietários privados se generalizam obrigatoriamente, implicando na constata-ção de que a comunidade mercantil é a encarnação dessa fenomênica. A funda-mentação de Marx ao refutar a comunidade egoísta vai à seguinte direção: “en-quanto o homem não se reconheça como homem e, portanto, organize o mundo de maneira humana, esta comunidade aparecerá sob a forma do estranhamento” (CP, p. 137). Portanto, a forma social própria da economia política, com intercâm-bio, propriedade privada etc., não é e nem pode ser uma comunidade humana, é a manifestação de uma comunidade estranhada. Marx contrapõe a essa comunidade outra, despojada da alienação, do estranhamento, das condições fundantes dessa forma social de existência da economia política, para mostrar que, na comunidade verdadeira, “o verdadeiro ser comunitário é a essência humana”, pois é resultado e projeto da atividade dos homens:

O intercâmbio, tanto da atividade humana no próprio processo de produção como dos produtos humanos entre si = a atividade genérica e ao desfrute genérico, cuja existência real, consciente e verdadeira é a atividade social e o desfrute social (CP, pp. 136-137).

Ou seja, o “modo de existência real, consciente e verdadeiro” dos homens, que se objetiva por seu dinamismo social, tem que reverter-se na fruição social dos próprios indivíduos. Pode-se vislumbrar aqui que o centro de sua atenção é o ser social. Mas que ser é esse?

Os homens, ao pôr em ação essa essência, criam, produzem a comunidade humana, a entidade social, que não é um poder abstrato-universal, enfrentado ao indivíduo

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Referências

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Capital’. São Paulo: Ensaio, 1995.

tanto a Ricardo quanto a Smith, que é o capital como trabalho acumulado. Destaca esse ponto afirmando que tal posição só pode ter como significado que a economia política reconhece o trabalho “como o único princípio da riqueza”, tema que ele já havia sublinhado em sua abordagem do pensamento de Smith; contudo, continua ele, essa postura teórica “denigre e empobrece o trabalhador e faz do próprio tra-balho uma mercadoria; e isto é tanto um axioma teórico necessário de sua ciência como uma verdade prática da vida social atual” (CP, p. 160). Marx reconhece a compatibilidade teórica e prática dessa formulação, mas chama a atenção para o fato de que tomar o trabalho como único princípio de riqueza dissimula o caráter inumano que essa realidade imprime sobre o trabalho humano. E, na complemen-tação de seu comentário, aprofunda criticamente essa posição, ao indicar que a abordagem da economia política que toma o trabalho acumulado como funda-mento da origem do capital desabona ainda mais o trabalho, que aparece agora “sob a figura de um capital e não como atividade humana” (CP, p. 161).

Marx evoca insistentemente a realidade viva para indicar a desumanidade com a qual a economia política estrutura sua fundamentação, escavando nas for-mulações dessa ciência o conteúdo humano que está dissimulado, expondo-o em sua imanência. Isso lhe permite sempre acrescentar as consequentes inumanidades que decorrem do procedimento real da economia política, como, por exemplo, o caso do equilíbrio entre oferta e procura suposto naquele corpo teórico: “O equilí-brio é somente um equilíbrio entre capital e trabalho como entidades abstratas, um equilíbrio que não tem em conta nem o capitalista nem a pessoa do trabalhador” (CP, p. 163), indicando, também, a forma especulativa que resulta das abstrações manipuladas pela economia política.

Por fim, Marx segue criticamente afirmando que a economia política, tendo em Ricardo um de seus maiores representantes, move-se de forma contraditória, pois, ao excluir o caráter intelectual do trabalho, Ricardo justifica a diferença de classe, e tudo o mais que dela provém. Neste ponto, é possível vislumbrar a me-diação positiva do real nas suas argumentações críticas em que reafirma o caráter contraditório daquela ciência: a economia política defende não ser sua finalidade reduzir-se a bens materiais imediatos, contudo, é o que resta para o trabalhador; que, na prática, a economia política, para alcançar a liberdade, lega à maioria a servidão; que as necessidades materiais não são o único fim desejado, mas as con-verte em fim único para a maioria; da mesma forma, se o fim é o matrimônio, a realidade da economia política lega a prostituição para a maioria; e, por último, diz Marx, sendo o fim a propriedade privada, ela lega a carência de propriedade para a maioria.

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Comunicação, meios e mensagens

Estudo da telenovela brasileira: questões de método

Sabina R. Anzuategui Faculdade Cásper Libero (docente), ECA-USP (doutoranda, orientação Esther Hamburger)

Este artigo discute o estudo da história da telenovela brasileira, analisando obras de referência e apre-sentando um estudo preliminar da telenovela O grito, de Jorge Andrade. Procura-se analisar as fontes e metodologia das pesquisas, e apontar novas abordagens possíveis.

Palavras-chave: Telenovela; dramaturgia; história; Jorge Andrade.

Study of Brazilian telenovela: questions of method This article presents a critical study of cur-

rently available publications on the history of Brazilian so-

apopera. It also presents a preliminary study of O grito, writ-

ten by Jorge Andrade. Keywords: Soapopera; dramaturgy;

history; Jorge Andrade.

Lo estudio de la telenovela brasileña: cuestiones de método En este artículo se pre-

senta un estudio crítico de las publicaciones disponibles

en la actualidad sobre la historia de la telenovela brasileña.

También se presenta un estudio preliminar de la telenovela O

grito, escrita por Jorge Andrade. Palabras clave: Telenovela;

dramaturgia; historia; Jorge Andrade..

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 47

Sabina R. Anzuategui

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Introdução

O termo “televisão experimental” tem sido usado recentemente para designar certa produção televisiva que não se enquadra nos padrões habituais do meio, em seus vá-rios gêneros. Em 2008 foi lançado o livro Experimental British Television, organizado por Laura Mulvey e Jamie Sexton, com artigos sobre história e estética dessa produ-ção na Inglaterra. No Brasil, alguns pesquisadores começam a usar esse conceito, que entretanto continua pouco conhecido.

O que seriam programas de TV experimentais? A introdução de Experimen-tal British Television traz algumas considerações, destacando a extrema variedade de recursos formais usados nos programas de televisão, em sua curta história, por mudanças de tecnologia, contexto social, leis e normas institucionais. Paralelamente a essa variedade, argumenta-se, houve sempre um modo específico de recepção no ambiente doméstico, que por vezes teve mais atenção dos estudiosos que os próprios recursos formais. Seguindo esse diagnóstico, Mulvey conclui que o conceito de expe-rimentalismo, na TV, deve encontrar suas bases próprias de análise.

O conceito de estética experimental, em todas as artes, desenvolveu-se a partir da questão da especificidade dos meios. No caso da televisão, a ‘especificidade’ se complica não apenas por sua tecnologia inconstante, mas também pela grande estabilidade nos locais de recepção. (Mulvey & Sexton 2007: 2)2

Apesar das dificuldades de definição, os autores insistem na validade do termo (mais evocativo que definitivo, em suas palavras), como estímulo a novas abordagens nos estudos sobre televisão. Ressaltam ainda diferentes interpretações do que seja ex-perimentalismo: para os autores, o enfrentamento da suavidade doméstica – espaço habitual de recepção da TV – pode tornar um programa mais “experimental”, mesmo que este permaneça convencional no modo de encenação.

Programas experimentais ampliaram os limites de aceitação, não apenas por inovações estéticas mas também por desafiar – na tradição da estética negativa – a complacência do próprio meio. (Mulvey & Sexton, 2007: 3)3

Tal abordagem pode ser inspiradora para compreender algumas telenovelas da década de 1970, já mencionadas na bibliografia especializada como “alternativas” ou “experimentais” (Campedelli, 1985: 34). Tal grupo inclui as novelas exibidas às 22h

na TV Globo, e algumas poucas exibidas às 20h na mesma emissora4. Foram projetos ousados por sua temática e aspectos formais, como O cafona (1971)5 e O rebu (1974)6, de Bráulio Pedroso; Bandeira 2 (1971)7 e O espigão (1974)8 , de Dias Gomes; Espelho mágico (1977) , de Lauro Cesar Muniz; O grito, já mencionada, de Jorge Andrade.

A leitura das sinopses dessas obras é bastante estimulante. Tais resumos indi-cam um período de criatividade poucas vezes repetido no formato. Mas, depois de consultar as informações básicas disponíveis em dicionários e almanaques, é dif ícil aprofundar o conhecimento sobre tais novelas. Há breves cenas disponíveis em sites de vídeo, e é possível comprar alguns capítulos avulsos oferecidos por colecionadores na internet. Mas a fruição da obra completa é bastante dif ícil. Não há cópias para venda, não há o texto publicado, nem um museu com esse tipo de acervo aberto ao público. Além disso, a bibliografia especializada raramente oferece análises interpre-tativas mais detalhadas, no aspecto estético. Os principais estudos concentram-se em questões sociais, e a discussão dos aspectos formais poucas vezes ultrapassa conside-rações generalistas baseadas em sinopses.

A partir dessa constatação, uma questão se apresenta: é possível avançar nos estu-dos do formato sem enfrentar as questões formais? E como elas devem ser enfrentadas? A aproximação com outras áreas, como os estudos literários e a teoria do cinema, seria um caminho natural. Buscando algumas obras de referência, encontramos o excelente artigo de Hans Robert Jauss, A história da literatura como provocação à teoria literária, publicado originalmente em 1967. Ele apresenta considerações teóricas importantes, a partir de um debate que houve entre diferentes correntes nos estudos de literatura. Jauss defende o projeto de uma história da literatura “estético-recepcional”:

Tal projeto tem de considerar a historicidade da literatura sob três aspectos: diacronicamente, no contexto recepcional das obras literárias (...); sincronicamente, no sistema de referências da literatura pertencente a uma mesma época, bem como na sequência de tais sistemas (...); e, finalmente, sob o aspecto da relação do desenvolvimento literário imanente com o processo histórico mais amplo. (Jauss, 1994: 40)

A perspectiva de relacionar questões históricas e formais na produção brasileira de telenovelas, seguindo as considerações de Jauss, é sedutora. Mas esbarra em um pro-blema primário: Jauss escreve sobre literatura, propondo novas abordagens para textos

2. No original, “The concept of experimental aesthetics, across the arts, has evolved particularly around the question of medium specificity. In the case of television, ‘specificity’ is complicated not only by the medium’s fluctuating technology but also by its, largely stable, site of reception.”3. No original, “Experimental programmes have pushed at the boundaries of acceptability, not only positively through aesthetic innovation but also, in the tradition of negative aesthetics, as a challenge to the complacency of the medium itself ”.

4. Há também experiências em outros canais, que não foram consideradas neste artigo por dois motivos. Primeiro, por concisão. Segundo, porque apenas na TV Globo essas produções se aglutinaram numa faixa de horário estável e contínua, por um período longo de dez anos.5. Dirigida por Daniel Filho e Walter Campos.6. Dirigida por Walter Avancini e Jardel Mello.7. Dirigida por Daniel Filho e Walter Campos.8. Dirigida por Régis Cardoso.9. Dirigida por Daniel Filho, Gonzaga Blota e Marco Aurélio Bagno.

Estudo da telenovela brasileira: questões de método

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 4948 Revista Communicare

Sabina R. AnzuateguiEstudo da telenovela brasileira: questões de método

de história literária já existentes. No caso da telenovela brasileira, não há um texto histó-rico abrangente e atualizado, que situe as modificações temáticas e formais, comparan-do autores, diferentes estilos, mudanças estéticas no correr das décadas, realizado com método de pesquisa criterioso.

Existe naturalmente muita coisa escrita sobre aspectos particulares; a pesquisa em telenovela foi muito rica nos anos recentes. Mas não existe uma visão geral e atualiza-da: o texto mais próximo desses parâmetros foi realizado em 198810. Além disso, mui-tos artigos mais recentes11, quando se dedicam às questões formais, mantêm a mesma metodologia da década de 1980: baseiam-se em depoimentos, sinopses e material de imprensa. Poucos passaram à etapa de análise do objeto, imprescindível para o estudo de um trabalho audiovisual: observação, descrição e compreensão da obra em sua ma-terialidade (texto, som e imagem).

O pesquisador Arlindo Machado destaca essa questão há muitos anos, como, por exemplo, na introdução de seu livro A televisão levada a sério, publicada em 2000. En-tretanto, pouco se avançou nesse aspecto.

Telenovela experimental da década de 1970

Iniciei meu doutorado em 2008, escolhendo como objeto de estudo a telenovela O grito, de Jorge Andrade12. Como base para essa pesquisa, dediquei o ano de 2009 a um estudo crítico da bibliografia disponível13 sobre a história da telenovela brasileira14. O objetivo era organizar os dados disponíveis, e levantar questões teóricas e metodoló-gicas para meu doutorado.

O livro analisado em mais profundidade foi a obra de Ortiz, Borelli e Ramos, que consideramos ainda a mais abrangente para nossa abordagem (especialmente o capí-tulo A telenovela diária, escrito por Ramos e Borelli, que trata das décadas de 1960 a 1980). Lendo com atenção sua bibliografia de referência, percebem-se as fontes princi-pais: livros, matérias de imprensa e monografias realizadas com o apoio de fundações culturais. Destacam-se três desses projetos: o primeiro, sobre televisão, realizado pela Funarte em 1981-82; outro, sobre telenovela, desenvolvido no Idart a partir de 1979; e o terceiro, também sobre telenovela, apoiado pela Finep em 1986.

Tais projetos geraram algumas monografias, além de registrar depoimentos de

profissionais de TV e dramaturgia. Foram basicamente essas fontes – livros, reporta-gens e depoimentos – que fundamentaram o livro publicado em 1989.

Na leitura atenciosa do capítulo mencionado de Ramos e Borelli, suspeita-se que poucas telenovelas foram de fato assistidas. Das obras, são mencionadas sinopses (p. 94) e referências genéricas. Não fazemos aqui uma exigência anacrônica à pesquisa pioneira, realizada há mais de vinte anos. Mas, hoje, é evidente a insuficiência dessa abordagem.

Para detalhar a argumentação, concentro meus comentários no período de 1969 a 1977, em que se estabeleceram as relações mais tensas entre autores, governo militar e empresas de televisão. Em junho de 1969, meses depois do AI-5, Dias Gomes escreveu sua primeira telenovela na TV Globo, com o pseudônimo de Stela Calderon. Em 1977, Lauro Cesar Muniz criou Espelho mágico, a experiência formal mais ousada em teleno-velas no horário das 20h. A radicalização política ocorrida a partir de 1968 deu início ao período de maior experimentação na história da telenovela brasileira. A partir do fracasso de audiência de Espelho mágico, esse ciclo foi logo encerrado.

No capítulo de Ramos e Borelli, esse momento é comentado em menos de 20 pá-ginas (pps. 80-98), e boa parte do texto se dedica à conjuntura política – especialmente à relação de autores e emissoras com as propostas de cultura do governo militar. Das nove-las, propriamente, mencionam-se os títulos, estatísticas e traços gerais de tema ou estilo:

Contradições na metrópole, conflitos políticos e cultura popular num clima fantástico, atores e atrizes enfocados ‘simplesmente’ como seres humanos, valores sociais e morais em choque. A preocupação norteadora é o ‘retrato da realidade’, ‘espelho da realidade’, ‘fidelidade à realidade’. Tarefa dif ícil, inserir a forma realista, com pretensões críticas, no interior do principal produto da indústria cultural. (Ortiz, Borelli & Ramos, 1989: 94)

Sobre Dias Gomes, um dos principais autores do período, comenta-se:A partir daí temos um escritor que, no interior do gênero, procura se diferenciar como antinovelístico. Em suas estórias circulam temáticas e personagens como: ‘o preconceito de cor, coronelismo, dinheiro como força corruptora, divórcio, celibato de padres, zona sul do Rio de Janeiro, jogadores de futebol, retirantes e marginais do jogo do bicho e contrabando’. Ideário ficcional também presente no cinema, na música e no teatro dos anos 50 e 60. (Ortiz, Borelli & Ramos, 1989: 93)

Tais passagens resumem questões importantes de tal produção, mas dizem mui-to pouco sobre a forma dessas novelas. Afinal, como eram elas? Quais os recursos de câmera, a formação dos atores, a construção literária dos diálogos, o conteúdo e a di-nâmica das cenas? Quem não vivenciou o período não tem como saber. No capítulo O produto telenovela, Ortiz e Ramos usam uma página para descrever a melhoria nas

10. Telenovela, história e produção, de Ortiz, Borelli e Ramos.11. Ver lista de artigos comentados em Malcher (2002) e Figueiredo (2009).12. Exibida entre 1975 e 1976 na TV Globo, às 22h. Dirigida por Walter Avancini, Roberto Talma e Gonzaga Blota.13. Refiro-me a pesquisas históricas de produção e exibição. Abordagens mais direcionadas a questões sociais (recepção e mercado) não foram incluídas nessa etapa.14. Pesquisa apoiada pelo Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 5150 Revista Communicare

Sabina R. AnzuateguiEstudo da telenovela brasileira: questões de método

condições de produção das novelas da TV Globo, entre Selva de pedra (1972)15 e Roda de fogo (1986-1987)16. Avaliam que uma “sequência de fuga” é “tosca em termos de to-madas” (Ortiz, Borelli & Ramos, 1989: 124), que a cidade de Paris, numa cena, aparece “numa precária back projection que se resume a uma imagem do Arco do Triunfo”, e que algumas aberturas são realizadas com “desenhos” e “gravuras” (Ortiz, Borelli & Ramos, 1989: 125). Nessa página, pode-se visualizar algumas cenas, fornecendo ao leitor fun-damentos mais concretos para a argumentação dos autores. Mas é apenas uma página, que trata de cenas de efeito (acidentes, cenários internacionais). E as outras cenas, que formam a maior parte de uma novela, com os personagens dialogando em cenários internos, como casas, escritórios, restaurantes, etc. Sua realização é tão óbvia que não precisa ser descrita? Não existem recursos específicos, variações e nuances que mere-cem alguma atenção?

O grito de Jorge Andrade

Comentários sobre um exemplo específico devem ilustrar melhor o problema.A telenovela O grito, já mencionada, é assim resumida no Dicionário da TV Globo:

Ambientada na cidade de São Paulo, a trama retrata o crescimento célere e desordenado das grandes cidades e os problemas de seus habitantes, abordando os conflitos entre os moradores do Edif ício Paraíso. O prédio foi construído no terreno da mansão de uma família paulista quatrocentona, cujos remanescentes, Edgard e Mafalda, moram na cobertura. Os outros apartamentos, menores, são habitados por pessoas da classe média e baixa. Num deles vive Marta e Paulinho, seu filho deficiente mental que costuma gritar à noite, incomodando os vizinhos. O conflito principal gira em torno da mobilização de alguns moradores para expulsar o menino. (Projeto Memória Globo, 2003: 59)17

A sinopse apresenta temas, e sugere a trama central. Não há menção ao modo narrativo. No Almanaque da telenovela brasileira¸ de Nilson Xavier, surge um indício:

Sem ser informado sobre a unidade de tempo da história, o telespectador foi surpreendido no final de O grito ao descobrir que a trama toda se passou em uma única semana. O autor teve o cuidado de não deixar o público perceber esse detalhe durante os seis meses de exibição da novela. (XAVIER, 2007: 162)

Informação breve, mas fundamental: uma narrativa com tempo diegético de uma

semana, exibida em capítulos diários durante seis meses, sem que os espectadores percebam? Como isso foi realizado? Objetivamente: que estratégias narrativas foram usadas para que o tempo cronológico de sete dias se estendesse por sessenta horas de dramaturgia, divididas em cento e vinte cinco capítulos de trinta minutos?

Nada responde essa pergunta, a não ser a estratégia óbvia: assistir à obra completa, ou ler os roteiros.

Essa primeira dúvida se refere à organização global da trama; prossigo com outros aspectos. Lendo a sinopse, nada se deduz sobre o estilo dos diálogos. Eram realmente “coloquiais”, como descreve repetidamente a bibliografia especializada?18

A leitura dos roteiros desmente parcialmente essa noção. Entre diversas passagens notáveis, sugiro como exemplo as falas da personagem Kátia – jovem secretária, solteira e impetuosa, sobrevivente do incêndio do edif ício Joelma19. No meio da trama, ela se comove com a solidão de Agenor – executivo mal visto pelos moradores, pois sai escon-dido à noite, vestindo roupas “extravagantes”. Kátia resolve ajudá-lo, ou seja: seduzi-lo, trazê-lo de volta à “normalidade”. Um amigo e eventual amante, o jovem médico Or-lando, considera a ideia descabida. Diz a ela: “Não adianta bancar a samaritana sexual!” (Andrade, 1976: capítulo 58, Cena 6). A conversa prossegue:

Kátia – Existem homens, mulheres, homossexuais e lésbicas! Não posso crer que alguém não seja nada, não tenha feito uma opção.Orlando – Pois há!Kátia – Quero ver para crer! Depois, sou assim. Tenho muita pena dos que sofrem. E deve ser um sofrimento horrível viver tão só, tendo a solidão como única companheira! (Andrade, 1976: capítulo 58)

A mesma personagem declara, sobre a mesma situação, no capítulo 99: “É real-mente fantástico o que se pode fazer neste mundo com um busto aerodinâmico!”20

Como sugere a bibliografia, há realmente recursos coloquiais nesses diálogos. Há marcas de oralidade (“depois, sou assim”), mas se mantém certo respeito à norma culta. Quanto ao vocabulário, há uma alternância entre expressões antiquadas e modernas. Por exemplo, “realmente fantástico” e “busto aerodinâmico” se misturam a “não posso crer” e “solidão como única companheira”. Um estudo sobre as variações históricas e estilísticas no texto de Jorge Andrade pode mostrar aspectos interessantes. Há tantas perguntas possíveis: quando o adjetivo “fantástico” passou a ser usado com o sentido de “admirável”? Seria possível pesquisar o uso dessa palavra na época de exibição da nove-

15. Escrita por Janete Clair, dirigida por Daniel Filho e Walter Avancini.16. Escrita por Lauro César Muniz e Marcílio Moraes, dirigida por Dennis Carvalho e Ricardo Waddington.17. Na citação, omiti os nomes dos atores para facilitar a leitura.

18. Entre muitas referências, ver Ortiz, Borelli & Ramos, 1989: 78.19. Tragédia ocorrida na cidade de São Paulo, em fevereiro de 1974, em que morreram 187 pessoas (Caversan, 2003).20. Todas as citações de diálogo foram extraídas dos roteiros microfilmados, consultados no Centro de Documentação da TV Globo, conforme indicado na referência bibliográfica.

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la, levando em conta que o programa dominical Fantástico estreou poucos anos antes, em 1973? Existe, nos estudos sobre a obra do dramaturgo, alguma referência às expressões inventivas e inusitadas, com toque de humor, como a excelente “samaritana sexual”?

Numa análise atenta, tais características formais poderiam ser estudadas detalha-damente, em busca de interpretações. Uma hipótese: um tema constante na obra teatral de Jorge Andrade é a tensão entre o mundo das grandes fazendas (anterior à crise de 1929) e o novo capitalismo financeiro. O tema repete-se em O grito. Não poderíamos interpre-tar que tal tensão se manifesta nas variações linguísticas de seus diálogos? Em muitas peças, Jorge Andrade dramatiza a memória individual e histórica por meio de recursos formais do teatro moderno. Não seria a mesma angústia entre o arcaico e o moderno?

Existe complexidade comparável no título na novela. Ao contrário do que diz a sinopse, a mobilização dos moradores para expulsar a criança não é o conflito principal da obra. Marta e o filho aparecem pouco: sua função é importante como elemento ca-talisador, não como protagonistas da ação. Os capítulos se dedicam majoritariamente a dramas individuais ou familiares dos outros personagens.

Os gritos noturnos têm - com muito destaque no texto - intenção alegórica. Em vários momentos o diálogo explicita esta metáfora: o grito do menino ecoa gritos inter-nos de cada morador do edif ício e, por extensão, de cada morador da cidade. A tentativa de expulsar o menino seria a recusa de aceitar as próprias angústias.

Dois trechos de diálogo ilustram essa estratégia. O primeiro, entre Marina e Lúcia, no capítulo 6, referindo-se a Bento (o filho mais novo desta família):

Marina – Será que ele acordou? Ele costuma ter medo à noite.Lúcia – As crianças têm sono profundo. (meio amarga) Ainda não têm nada que atormente a consciência... Só as crianças e os inconscientes não acordam fácil.Marina – Que quer dizer, mamãe?Lúcia – Um grito como este deve lembrar a cada um... alguma coisa capaz de fazer acordar! (Andrade, 1976: capítulo 6)

Outra conversa, no capítulo 125 (último):

Lúcia – (pensativa) E de certa maneira... os gritos do filho de Dona Marta fizeram com que cada um ouvisse seus próprios gritos! Isto é o mais importante!Marina – Por quê?Lúcia – Porque suportam tudo: os uivos da cachorra do síndico, o barulho infernal da motocicleta, do carro, da vitrola, do trânsito, do rádio, da serra elétrica, da sirena da ambulância... de tudo! Mas não queriam suportar os gritos de uma criança doente! (Andrade, 1976: capítulo 125)

Essa forma de simbolismo – eleger um motivo que fornece determinada interpre-tação à ação dramática, explicitada no diálogo – foi muito usada no teatro naturalista. As contradições de tal estratégia são analisadas por Raymond Williams, ao comparar The wild duck, de Ibsen, e A gaivota, de Tchekhov:

A função é clara. A gaivota enfatiza como símbolo visual – um objeto de cena – a ação e a atmosfera. (…) Funciona com precisão, num plano simplesmente ilustrativo. As correspondências, como vimos, são estabelecidas cuidadosa e explicitamente [nos diálogos]. Mas em qualquer outro plano, e justamente no plano simbólico que se costuma considerar, o recurso torna-se essencialmente impreciso; uma análise séria deve considerá-lo basicamente um gesto lírico (Williams, 1969: 103-104)21.

Os procedimentos dramáticos têm sua história, discutida nos estudos literários e teatrais. O estudo formal da dramaturgia é um aspecto importante na biografia de Jorge Andrade, que se formou na EAD (Escola de Arte Dramática de São Paulo)22. Não é possível excluir tais questões na análise de uma telenovela escrita por ele. São aspectos centrais de sua obra teatral, e estão evidentes também nos textos para TV.

A lista algo vertiginosa de possibilidades para o estudo de O grito serve como demonstração de uma riqueza potencial: a investigação formal e detalhada de uma tele-novela. A observação da obra completa (em vídeo, nos roteiros, ou comparando os dois materiais, conforme a abordagem escolhida) abre perspectivas admiráveis. Sinopses, críticas e depoimentos não podem nunca substituir esse exame.

Propostas de teoria e método

Concluindo a argumentação, apresento um resumo das questões levantadas. Primei-ro, ressaltamos que o conceito de televisão experimental – ainda que de forma vaga e incipiente – traz a primeiro plano um aspecto pouco estudado da produção televi-siva brasileira: as estratégias formais de discurso (verbal e audiovisual). Ao destacar a importância de programas que destoam dos formatos recorrentes (ainda que tenham impacto social mais restrito e baixa audiência), o estudo da TV experimental revela que a programação televisiva de maior repercussão (experimental ou não) é de fato pouco conhecida em seus recursos de linguagem. A ideia de que a TV é um meio cultural com produção organizada em grande escala – repetitiva e padronizada – obstruiu o olhar

21. No original, “The function is surely clear. The seagull emphasizes, as a visual symbol – a piece of stage property – the action and the atmosphere. (…) At a simple illustrative level it is precise. The correspondences, as we have seen, are established explicitly and with great care. At any other level, and at the symbolic level at which it is commonly assumed to operate, it is essentially imprecise; any serious analysis must put it down as mainly a lyrical gesture”. 22. Ver Azevedo, 2001.

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 5554 Revista Communicare

Sabina R. AnzuateguiEstudo da telenovela brasileira: questões de método

dos primeiros pesquisadores, criando certa cegueira acadêmica23. Acreditamos assim que: a) é necessária uma renovação na pesquisa histórica so-

bre telenovela; b) não é possível prosseguir sem a observação extensiva das obras, e sua análise formal; c) esta análise formal deve ser relacionada às questões temáticas e ao contexto histórico e social de cada época; e) pela complexidade dessa análise, o pesqui-sador deve se apoiar na tradição teórica de outras áreas, como os estudos literários e a dramaturgia teatral.

Como já mencionado, muitos aspectos da telenovela brasileira podem ser estuda-dos historicamente: a formação dos atores e os diferentes modos de interpretação; os modos de encenação, gravação e edição; os diferentes efeitos gráficos; a mudança nos modos de recepção; a relação com outras artes e a produção de outros países. Somen-te o enfrentamento desses aspectos, compreendidos interna e externamente (dentro de seus próprios sistemas, e relativamente às mudanças no contexto histórico, como sugere Jauss) pode trazer novas interpretações ao fenômeno específico da telenovela brasileira. Para isso, é preciso enfrentar o desafio f ísico de encontrar e conhecer as obras com-pletas. O trabalho é grande: os principais acervos pertencem a emissoras privadas, que estabelecem regras de acesso, dificultando e encarecendo as consultas; e – vencidas essas etapas – chega-se a outra tarefa que exige esforço: milhares de páginas para lei-tura, centenas de horas a serem assistidas, dezenas de personagens para sistematizar e interpretar em cada obra.

Estudos com essa abordagem demandam humildade do pesquisador. Uma dis-posição serena para observar o detalhe, como se faz nos estudos de obras de arte. Pro-vavelmente, nem todas as telenovelas merecem essa atenção. E mesmo nas melhores obras, há capítulos com grandes momentos, e outros nem tanto. Mas, entre as novelas experimentais que pesquisei nos últimos anos, muitas são admiráveis. Elas certamente merecem um estudo atento e objetivo, que pode revelar qualidades, hoje parcialmente esquecidas, da criação audiovisual e artística no Brasil das últimas décadas.

Referências

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23. Sobre essa questão, ver Moreira (2000), Machado (2005) e Rodrigues & Saraiva (2009).

Page 30: Communicare – Volume 11, Edição 1

Comunicação e Mercado

A convergência é marca inegável das transformações que a digitalização foi capaz de trazer para as comunicações. Condicionadas pela tecnologia, empresas passam a transpor a barreira de seus negócios tradicionais e invadem os mercados umas das outras, como acontece com os radiodifu-sores e as teles. O presente artigo procura equacionar a situação de defasagem normativa do setor de comunicações brasileiro com pressões mercadológicas e democráticas trazendo a avaliação da situação recente.Palavras-chave: radiodifusão, telecomunicações, convergência.

Chalini Torquato Gonçalves de Barros Doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Professora do Centro Universitário Jorge Amado. Salvador/ BA.

Graça Penha do Nascimento RossettoDoutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Salvador/ BA.

Radiodifusión y las telecomunicaciones: las categorías de la competencia en un campo de convergencia La convergencia es la

marca indiscutible de las transformaciones que la digitalización

fue capaz de llevar al campo de las comunicaciones. Impulsadas

por la tecnología, las empresas empiezan a superar la barrera

de sus negocios tradicionales e invadir los mercados de la otra,

como sucede con los organismos de radiodifusión y telecomu-

nicaciones. Este artículo constituye un intento de equiparar la

situación de vacío normativo en el sector brasileño de las comu-

nicaciones con las presiones del mercado y de la democracia,

orientado para traer la evaluación de la situación actual. Pal-

abras clave: radiodifusión, telecomunicaciones y convergencia.

Emissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente

Broadcasting and telecommunications: categories of competition in a conver-gent field Convergence is unquestionable mark of the

transformations that the digitalization was able to bring to

the field of communications. Conditioned by technology,

companies will overcome the barriers of traditional busi-

ness and invade the spaces of each other, as happens with

broadcasters and telecommunications companies. This ar-

ticle analyzes the situation of normative gap in the Brazil-

ian communications industry in the face of democratic and

market pressures, bringing the recent assessment of the

situation. Keywords: broadcasting, telecommunications

and convergence.

Page 31: Communicare – Volume 11, Edição 1

Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 5958 Revista Communicare

Chalini Torquato Gonçalves de Barros e Graça Penha do Nascimento RossettoEmissoras e teles: esferas de disputa de um terreno convergente

Convergência tecnológica

A transformação das diversas formas de comunicação em uma linguagem comum foi tecnologicamente proporcionada pela digitalização. Com isso, o código binário trouxe a representação de diversas formas de serviços de informação em arquivo digital, o que abria inúmeras possibilidades de utilização. Aliado a isso, deve-se considerar o aperfei-çoamento de redes de fibra ótica e satélite que modernizavam as redes capazes de fazer fluir tais dados digitais. Diversos serviços passaram a compartilhar um único suporte interpenetrando informática, telecomunicações e radiodifusão, fazendo surgir um novo campo em que confluem diferentes setores econômicos (Miguel, 2010).

Além disso, a “tradução” para o código binário potencializa o conteúdo como arqui-vo no que se refere à velocidade, flexibilidade e reprodução em alta qualidade. O Livro Verde da Convergência da Comissão Europeia define convergência como “a capacidade de diferentes plataformas de rede servirem de veículo a serviços essencialmente seme-lhantes ou a junção de equipamentos terminais para uso do consumidor, como o telefone, televisão e o computador pessoal” (União Europeia, 1997: 1).

É justamente essa característica integradora, representada essencialmente pela Inter-net, que permitirá inúmeras formas de transmissão por redes de terminais passíveis de re-cepção e de interatividade nos mais variados meios como cabo, difusão terrestre e satélite.

Em termos conceituais, a convergência define-se como sendo a homogeneização dos suportes, produtos, lógicas de emissão e consumo das indústrias info-comunicacionais. Inicialmente tecnológico, esse processo, também chamado “revolução digital”, supõe impactos em cenários relacionados com as culturas de produção, as formas de organização, as rotinas de trabalho, os circuitos de distribuição e as lógicas de consumo de bens e serviços info-comunicacionais. Impulsionada pelos processos de globalização capitalista, está ancorada na incessante busca da velocidade, ou seja, a frenética mobilidade dos capitais (Miguel, 2010: 50).

O fenômeno da convergência envolve, pois, uma combinação de transformações interligadas e interdependentes, de natureza tecnológica, industrial/comercial, cultural e social, que não está desvinculada da práxis capitalista. Ele se revela, essencialmente, como uma inovação permanente pertinente à maximização acumulativa. Como pontua Albornoz (1998),

(...) quando falamos de convergência estamos nos referindo a um dos processos do que se conhece como reestruturação capitalista. É um fenômeno possibilitado por certos avanços tecnológicos e que está dominado por uma forte reconversão dos modelos produtivos ocidentais, a partir da crise do modo fordista de regulação (Albornoz et. al. 1998 s/p, tradução nossa).

A convergência de redes, equipamentos e serviços é uma realidade cada vez mais presente na configuração da dinâmica mercadológica do setor de comunicação. Mar-ca inquestionável de um condicionamento de pulsão capitalista, esse movimento é materializado pelo crescimento dos conglomerados internacionais que se rearranjam para a cobertura de novos setores. Empresas de infraestrutura invadem barreiras da produção de conteúdo ao passo que empresas de comunicação investem massiva-mente na exploração de novas formas de contato com o público, oferecendo serviços mais interativos, partindo cada vez mais para as redes de dados. Tal dinâmica atua para a complexificação de plataformas, criando o ambiente multimídia, e questiona de forma agressiva, não somente as barreiras tecnológicas, mas, principalmente, os regimentos normativos que dão conta da conformação regulatória do setor.

A necessidade de se enfrentar uma ampla revisão legislativa é algo apontado por diversos países em matéria de comunicação. Em nações de economia central, e de democracia já mais consolidada, a estrutura institucional que rege o setor de co-municação geralmente possui instrumentos capazes de defender o caráter de bem público da informação. Por conta disso, a revisão nesses países tem sido para estimu-lar a competitividade e a convergência, uma vez que o setor é identificado como eco-nomicamente bastante promissor. Já em países como os da América Latina, nos quais governos autoritários até um passado ainda recente trouxeram atrasos democráticos significativos, a revisão normativa do setor vem acompanhada de lutas políticas e da mobilização de entidades da sociedade civil que, amparadas pela circunstância de mandatos presidenciais de partidos progressistas, têm acumulado alguns avanços, como a quebra de oligopólios consolidados (Barros, 2011).

No caso do Brasil, a legislação do setor de comunicação é marcada por uma se-paração entre telecomunicações (incluindo aí as TVs por assinatura) e radiodifusão. Tal distinção é paradigmática da forma oficiosa com que a legislação das comunica-ções é historicamente dispersa e conivente com interesses poderosos (Ramos, 2000). O fato é que essa distinção torna-se incoerente não somente com a realidade conver-gente, como se prova cada vez mais insustentável, mas especialmente porque marca o aprisionamento do setor de radiodifusão ao Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) de 1952. Trata-se de um consenso a defasagem de tal arcabouço.

O presente artigo procura equacionar a situação de defasagem normativa do se-tor de comunicações brasileiro com as pressões externas e internas (tanto as de cunho mercadológico, quanto as de caráter democratizante) no que diz respeito aos reajustes de convergência que geram o embate entre empresas de radiodifusão e de telecomunicação.

Introdução

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Como resposta a um momento de crise, portanto, a inovação proporcionada pela convergência sustenta a promessa de uma guinada de crescimento da economia como forma de substituir, em alguma proporção, o que foi a indústria automobilística no perí-odo pós-guerra ou, num menor grau, a informática nas décadas de 70 e 80 (Rallet, 1998: 399). Os produtos e serviços de comunicação têm ampla demanda e assumem o lugar dos mercados relativamente saturados. Como consequência de uma tendência mundial, “tanto o mercado televisivo como o das telecomunicações estão em vias de saturação [...] Como consequência, as telecomunicações buscam saídas no campo do audiovisual e a televisão no das telecomunicações.” (Richeri, 1993: 36, tradução nossa).

A produção e o consumo de bens culturais são diretamente afetados por essa di-nâmica, uma vez que a busca por novas possibilidades de mercado torna-se bastante atrelada ao desenvolvimento cada vez maior de tecnologias convergentes e ao surgi-mento constante de novos dispositivos. Segundo o raciocínio de Dantas (2010), a con-vergência tecnológica deve ser compreendida em sua relação com a horizontalização da cadeia produtiva da indústria cultural.

Definimos esse fenômeno que costuma ser denominado “convergência tecnológica” como um processo econômico, político e cultural que está fazendo convergir para um mesmo regime de negócios e de práticas sociais, o conjunto da cadeia produtiva da indústria cultural suportada em meios eletro-eletrônicos de comunicação. Onde, até algumas poucas décadas atrás, tínhamos cadeias produtivas claramente diferenciadas e verticalizadas em função de seus negócios, práticas sociais e tecnologias apropriadas, tendemos a ter, de uns anos para cá e cada vez mais daqui para a frente, uma única cadeia horizontalizada, indiferente às distintas plataformas de comunicação ou transporte, mas segmentada conforme a divisão de trabalho, ou de valor, ao longo de todo o processo de produção, distribuição ou recepção de bens e serviços culturais mediatizados (Dantas, 2010: 44)

A horizontalização da cadeia produtiva dá-se entre produtores, programadores e distribuidores de conteúdo, tendo como espinha dorsal a indústria fabricante de equi-pamentos e sistemas presentes em todas as etapas. As funções passam a ser comparti-lhadas de forma que a antiga distinção entre telecomunicações e radiodifusão deve ser desconsiderada em nome de operações convergentes de comunicação que oferecem seus pacotes de serviços e possibilidades.

Todo esse cenário irá configurar uma coerção tecnológica e econômica exigente de uma base regulatória que a sustente, assimilando, inclusive, sua relativização de antigos conceitos e barreiras. Além disso, faz-se essencial que tal estrutura institucionalizada su-porte não apenas um modelo de negócio que ora se configura, mas que se torne imune a velozes obsolescências causadas pela dinâmica evolução tecnológica nos próximos anos.

2. A realidade convergente versus a desvinculação normativa

As exigências por uma nova conformação regulatória para o setor de comunicação são uma dinâmica mundial (especialmente quando se considera o entrelaçamento das eco-nomias nacionais proporcionado pela globalização) que encontra forte discrepância na legislação brasileira. Isso não somente porque o arcabouço regulatório do setor encon-tra-se disperso e defasado, mas especialmente porque ele é marcado pelo que Murilo Ramos (2000) chamou de o “paradoxo da radiodifusão”. Trata-se de uma dissociação normativa que retirou as telecomunicações da regência pelo CBT e da incumbência direta do Ministério das Comunicações, à época de sua privatização em 1995, quando a Emenda Constitucional n° 8 alterou o texto da Carta Magna para retirar do Estado a exclusividade de sua exploração. Naquele momento, as telecomunicações viriam a ser orientadas por uma legislação própria materializada numa Lei Geral de Telecomuni-cações (LGT) e ficaria sob administração da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Além, portanto, de permitir a privatização das telecomunicações, a emenda ex-cluiu a radiodifusão aberta de toda a revisão institucional por que estava passando o setor. Isso impediu que a regulamentação que estava sendo criada englobasse as mo-dalidades de telecomunicação caracterizadas pela transmissão de sons e imagens por radiofrequência. A partir dessa cisão, os radiodifusores brasileiros tiveram garantida a perpetuação de estrutura bastante conivente com seus interesses, ou seja, os líderes do setor não teriam a interferência no seu status quo, nem mesmo qualquer ameaça à estrutura concentrada que durante décadas foi capaz de consolidar (Barros, 2010).

A busca pelas possíveis explicações para esse feito passa pela interferência do co-ronelismo eletrônico e clientelismo político no estabelecimento dessa separação. Aqui, torna-se peça-chave a influência de interesses de empresários da radiodifusão, especial-mente os reunidos sob a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert), na formula-ção de políticas públicas para o setor de radiodifusão (Ramos, 2000).

Dessa maneira, de acordo com Barros (2010), é possível afirmar que, se o paradoxo da radiodifusão persiste na atualidade, é exatamente porque cumpre o papel de barrei-ra de proteção para os líderes de mercado e porque o poder político do empresariado assume proporções suficientes para condicionar as ações do Estado nesse setor. Uma legislação determinada por essas necessidades estratégicas funciona como barreira po-lítico-institucional na medida em que barra a entrada de novos agentes no sistema e não oferece condições de sobrevivência aos que conseguem entrar, reduzindo severamente a possibilidade de concorrência no setor e favorecendo os que o dominam (Brittos, 2004).

Essa, no entanto, é uma realidade que tem se alterado nos últimos anos. Espreitados pela possibilidade concorrencial das empresas de telecomunicação - organizações que re-

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presentam tentáculos de alguns dos maiores conglomerados de comunicação do mundo – os empresários de radiodifusão passam a considerar uma revisão legislativa que não apenas enquadre a ação desses novos concorrentes, mas que também seja capaz de lhes preservar, da alguma forma, as vantagens com que estão historicamente acostumados.

3. Emissoras e teles: um terreno de disputas

Ao enxergar o campo das telecomunicações com todas suas possibilidades e realidade de convergência, verifica-se a riqueza por ele produzida, bem como o terreno de disputa que dele se forma – realidade que não data de agora e que tem sua raiz, sobretudo, no modelo de negócio empregado pelo setor em meados dos anos 80 (Rossetto, 2008).

Na época, a globalização impunha mudanças nas atuações do Estado e das cor-porações privadas frente à abertura de mercados e desregulamentação, e assim a oligo-polização dos media insere-se num cenário de forte concentração de comandos estra-tégicos e de mundialização de conteúdos, mercadorias e serviços, tudo facilitado pelo modelo neoliberal, pela supressão de barreiras fiscais, acumulação de capital nos países mais desenvolvidos e pela desterritorialização geográfica e o crescente espaço de fluxos.

Nesse cenário são as joint ventures, grandes fusões e incorporações que passam a ser recurso de fortalecimento para competição. O território brasileiro, assim como a maioria dos países latinos, torna-se um polo de atração, entre outras motivações, pela amplitude de seu mercado consumidor. Porém, nesses países o predomínio das razões de mercado muitas vezes leva a sérias distorções e infrações por essas megafirmas. Aqui, a principal delas é o descumprimento de dispositivos legais que visam impedir a concentração de propriedade.

Gradualmente as operadoras de cabo, de forma legal, foram entrando nos novos negócios com o objetivo de aumentar sua produtividade utilizando a infraestrutura já existente, até se tornarem empresas de telecomunicações2. Por outro lado, agora dota-das de capital econômico e crescente apoio político, as empresas de telefonia, exploran-do brechas legais, também ingressaram no setor de TV paga.

A interpenetração dos mercados é a causa direta do acirramento de disputas no mercado entre empresas concessionárias de serviços de telecomunicações e de radiodi-fusão. Ampliam-se as novas formas de exploração dos serviços, sem que a ausência de regulação constitua qualquer impeditivo.

Operadores de radiodifusão, em particular, estão urgentemente à procura de uma resposta para a pergunta de como serviços interativos podem ser ativados. Estes

serviços interativos são reconhecidos como os serviços de valor agregado para redes de transmissão que vai garantir a lucratividade no longo prazo. A combinação dos sistemas de transmissão com um canal de retorno de telefonia móvel poderia permitir novos modelos de serviços, especialmente se a mobilidade também é levada em conta no sistema de transmissão (Keller et. al., 2004: 279).

Numa estrutura de mercado na qual o controle de redes de informação se torna essencial, a estratégia de negócios indispensável consiste em dominar uma plataforma que combine suporte para informação multimídia e produção de conteúdo. As companhias de comunicação passaram, então, a buscar o controle dos canais de distribuição eletrônica a fim de melhor disponibilizar o acesso de seus produtos aos consumidores, mas, também, na procura de novos investimentos e da redução de riscos, encontram uma solução viável na expansão de suas atividades convergindo os serviços que oferecem.

3.1 Força política versus força econômica

Se o poder de barganha dos empresários de radiodifusão é essencialmente político (principalmente por se tratarem de formadores de opinião pública), o poder das em-presas de telecomunicação que se dedicam a novos investimentos no setor é fundamen-talmente econômico. Falando-se em números, essa perspectiva torna-se bastante clara:

Comparado com o setor de comunicação social, o setor de telecomunicações é um monstro de mais de quase R$ 100 bilhões de reais de receitas totais ao ano. Só as receitas totais do mercado com telefonia fixa e móvel superam os R$ 85 bilhões. Para se ter uma ideia, somando-se todo o mercado publicitário brasileiro, mais as receitas com assinaturas de TV por assinatura e Internet, mais as vendas de bancas de jornais e revistas, mais o setor de cinema, chega-se perto de R$ 26 bilhões ao ano (Possebon, 2007: 298).

Ou ainda, como colocado por Görgen.Em termos gerais, o montante arrecadado pelo setor de telecomunicações supera em cinco vezes o bolo publicitário brasileiro, incluindo os valores investidos na produção publicitária – mesmo que o rádio e a televisão alcancem 90% dos lares, e as redes de companhias telefônicas, apenas 60% (Görgen, 2008: 213).

A bandeira argumentativa de defesa dos empresários de radiodifusão não deixa de ser nobre. Eles afirmam que a entrada desses empresários no setor se constituiria num perigo ao conteúdo nacional e às expressões regionais que não teriam como competir com concorrentes tão ameaçadores. De fato, há o perigo de uma internacionalização do

2. Caso da Net Serviços manifestado em entrevista com o diretor da empresa, Rodrigo Duclós (Rossetto, 2008).

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conteúdo televisivo, uma vez que “qualquer empresa de conteúdo nacional não conse-gue fazer frente aos grandes grupos de entretenimento como Time Warner, News Corp. e Disney. Se toda a indústria nacional se juntasse em um único grupo, não chegaria a 17ª do mundo” (Dantas, 2011 Apud Giancoli, 2011: 13).

Acuados pelo declínio gradativo de sua audiência, consequência da multiplicidade da oferta que pulveriza o público em novos aparelhos eletrônicos de entretenimento e informação, esses empresários veem o mercado de TV aberta, da forma como ele se conforma hoje, não se sustentar da mesma maneira e, até mesmo, se desvalorizar. Por conta disso, desesperam-se em novos investimentos, como o foi a digitalização da TV – e para isso se utilizaram de todo o poder político que tinham para definir o padrão que lhes fosse conveniente - e a ampliação de formas paralelas de distribuição da produção.

A entrada das teles pode gerar impactos agudos nessas empresas radiodifusoras de conteúdo nacional, causando certa inversão da postura política dos movimentos pela democratização do setor, como afirma a cineasta Berenice Mendes, integrante da Coor-denação Executiva do FNDC.

Se por um lado essas empresas (radiodifusão) representaram, em muitos momentos, o papel de nossos adversários imediatos, dificultando a democratização da comunicação, por outro lado elas são importantes para o setor, precisam existir – de forma menos hegemônica, claro. Por isso, precisamos nos posicionar quanto aos limites da entrada das teles neste negócio [...] Porque as matrizes das teles são internacionais. São megacorporações. A sociedade ficará ainda mais sujeita aos interesses do capital transnacional (Apud Marini, 2010, s. p.)

Hoje as empresas de telecomunicações em atuação no Brasil estão divididas em três grandes conglomerados: Telefônica/ Vivo/ Terra; NET/ Embratel/ Claro; Portugal Telecom/ Oi/ TIM. Além disso, o grupo Vivendi, controladora da GVT, acaba de com-prar a Nextel (Giancoli, 2011). São conglomerados bastante dispostos a competir no segmento da radiodifusão, pois já avançam na disputa por uma fatia do mercado de TV por assinatura. A Telefônica, por exemplo, já adquiriu parcela da TVA com permissão da Anatel (Idem).

Segundo o ex-ministro Franklin Martins, “É urgente que o país pactue um novo marco legal para o setor de comunicação, pois, sem regulação, o setor de radiodifusão será atropelado pela ‘jamanta’ das empresas de telecomunicações” (Sem regulação..., 2010, s.p.). O equilíbrio de relações deve se dar, portanto, pela regulação do setor na de-fesa, inclusive, de uma bandeira legítima dos radiodifusores, que é o conteúdo nacional.

3.2 Arena legislativa de disputas

Esse embate materializa-se claramente na arena legislativa, na busca por apoio e no lobby realizado sobre essa instância pelas grandes empresas. Se a radiodifusão histori-camente comanda a portas fechadas a elaboração das políticas de comunicação, agora ela ganha um competidor à altura: as concessionárias de telecomunicações.

Exemplo claro é o caso do PL 29/2007, que até 2010 tramitava na Câmara conco-mitantemente a um similar no Senado e desde junho daquele ano foi para esta última Casa definitivamente, ficando conhecido como PL 116. O Projeto de Lei número 29 foi uma iniciativa do deputado Paulo Bornhausen (PFL/SC) em 2007, que se propôs a regulamentar o mercado de TV paga brasileiro, revogando a Lei n 8.977, de 1995, a chamada Lei do Cabo, e permitindo a entrada das empresas de telefonia no setor para oferecimento de serviços relativos a conteúdo.

Na Câmara foram pelo menos quatro substitutivos (Rossetto, 2008) com uma in-finidade de emendas, ora que agradassem aos lobbistas da radiodifusão, ora que agra-dassem à força econômica das teles. Chegou-se, portanto, a um momento em que os agentes políticos e econômicos envolvidos no processo de negociação eram os órgãos ligados ao governo (Anatel e Ancine), além dos parlamentares relatores e os mais ativos nas discussões; e o empresariado, por basicamente três vertentes: a Associação Bra-sileira de TV por Assinatura (ABTA, representando os interesses de suas operadoras afiliadas), os radiodifusores de emissoras abertas e as telefônicas.

Enfim no Senado, o PL 116/2010 (...)define o objeto e especifica termos técnicos e legais relativos à comunicação audiovisual de acesso condicionado; estabelece princípios fundamentais que regem a referida atividade de comunicação audiovisual de acesso condicionado; determina regras para a prática das atividades de produção, programação e empacotamento de conteúdo; obriga a veiculação de conteúdo brasileiro nos canais de espaço qualificado; altera a regulamentação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica nacional - CONDECINE para estimular a produção audiovisual; estabelece regras para o exercício da atividade de distribuição de conteúdo pelas prestadoras do serviço de acesso condicionado; assegura direitos aos assinantes do serviço de acesso condicionado; define sanções para as empresas prestadoras do serviço de acesso condicionado que não cumprirem as obrigações a elas imposta pela presente lei (Brasil, 2010).

Há uma fundamental positivação de regras ainda correndo em lenta tramitação, enquanto a dinâmica de mercado não se inibe e há uma expansão técnica, marcada por constante inovação, a despeito de sua ilegalidade. Por mais arriscado que possa ser para os players em atividade, essa lógica pode também acelerar algumas tomadas de decisão.

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É o caso recente da liberação pela Anatel da entrada das teles no mercado de TV a cabo. No começo do mês de junho de 2011, a Agência aprovou o novo regulamento do setor, que estabelece a concessão de outorgas de forma limitada e a um preço fixo, sem licitação (Mendes, 2011). Apesar de uma política incomum, de venda de concessões, essa decisão desfaz o último obstáculo para a abertura do mercado de cabodifusão e de forma deliberada no que concerne à discussão até então estagnada no Senado.

Na prática, isso significou a ampliação da área de cobertura do serviço e os primei-ros indícios da entrada das empresas de telefonia no setor. Pesadelo para os radiodifu-sores e operadoras atuais de cabo, essa realidade pode, porém, alavancar o mercado de banda larga em pelo menos 4,4 milhões de clientes e trazer uma receita adicional de R$ 4,8 bilhões para o setor (Mendes, 2011).

A essa decisão a resposta da ABTA foi imediata, colocando-se contra, apon-tando ilegalidades e temendo a entrada do capital das telefônicas no setor. Isso acontece sem que se esteja definida a lei que vai reger o setor, passando por cima de toda discus-são legal travada desde 2007 nas casas legislativas (Monte, 2011).

A questão mais inquietante aqui não é o congelamento do processo ou diferentes posições e atitudes tomadas por diferentes atores envolvidos nessa discussão, mas o seu porquê. É fato que o jogo em disputa é entre atores de grande poder econômico e político, num patamar tão elevado que pequenos atores não conseguem alcançar, e assistem atônitos esperando a repercussão das prováveis resoluções. O que se vê é uma invencibilidade ora ameaçada e que reflete num confronto de interesses muito claro, entre os velhos radiodifusores e as novas empresas de telefonia. Adversário à altura, com poder econômico e político aos poucos sendo conquistado, para aqueles que antes dominavam o lobby dos corredores.

Ocorre ainda que hoje, de toda forma, a prática de muitas empresas é ilegal. A ausência de regras claras e de fiscalização permite que as telefônicas ofereçam TV paga e que algumas TVs por assinatura agreguem em seus pacotes serviços de telefonia. A verdade é que a história da regulamentação das políticas de comunicação no Brasil é marcada por uma desorganização crônica, sendo efetivadas somente depois dos servi-ços em funcionamento e discutida por poucos atores sociais.

Assim o foi também a recente aprovação do PL116. No dia 12 de setembro de 2011 o PL foi promovido a Lei 012.485/2011, sancionada pela presidente Dilma Rousse-ff. A nova regulamentação do setor, chamada de Serviço de Acesso Condicionado, teve apenas dois vetos: um para adequação ao Código de Defesa do Consumidor e outro que tirou a responsabilidade pela classificação indicativa da Ancine, como proposto, e a manteve sob responsabilidade do Ministério da Justiça (Possebon, 2011).

Até o fechamento deste artigo a nova norma ainda precisava ser regulamentada pela Anatel, mas algumas mudanças de ordem prática são imediatas para o mercado.

A primeira é a mudança de controle societário no caso da Net Serviços, que será assu-mida, e agora devidamente sob a lei, pela tele Embratel. O mesmo deve acontecer com a Telefônica, acionista da TVA. Já para a realidade imediata do assinante as mudanças começam a chegar 180 dias depois da sanção. A primeira delas deve ser a adequação às regras de cotas de programação (Possebon, 2011).

Se a complexidade legal do setor vai aumentando com o surgimento das inova-ções tecnológicas, a rapidez com que se tomam as decisões se mostra historicamente orquestrada pelos mais influentes nos jogos de interesse. É esse o caso em questão. Bur-lado pela diplomacia burocrática, é como se o processo democrático travasse o próprio exercício da democracia. Mas o fato é que, enquanto os atores que realmente interessam não têm seus anseios atendidos, pouco se evolui para a consolidação de políticas.

Conclusão

As emissoras encontram-se acuadas pelo mercado desregulado que elas próprias cria-ram. Na ausência de regras, vale a lei do mais forte, algo que, enquanto se é líder, torna-se oportuno manter. A ameaça é economicamente assustadora. E a ausência de regras tor-nou-se inconveniente. Enquanto as empresas de telecomunicação têm um faturamen-to invejável no mercado nacional, as emissoras de TV aberta se esforçam para tentar manter a duras penas o antigo público, que agora se encanta com novas possibilidades tecnológicas e se dispersa daquela tecnologia tradicional. Já não gasta mais tanto suas horas de horário nobre na frente da televisão. O resultado é um índice de audiência que declina ano após ano, algo que se tentou reverter com o maior investimento da TV aberta nas últimas décadas: a digitalização da TV. No entanto, passados quase quatro anos de seu lançamento no Brasil, a penetração da TV digital é algo ainda razoável, e o retorno publicitário disso não parece ter sido tão real quanto foi promissor.

Hoje o terreno de disputas é, acima de tudo, legislativo. E a expectativa é que na gestão de Paulo Bernardo no Ministério das Comunicações, a discussão sobre uma lei geral para o setor seja levada adiante, o que historicamente nunca foi possível por con-ta, principalmente, de uma dispersão ocasionada pela pressão dos radiodifusores. Qual sua postura agora diante de tal realidade? A espera é que no bojo dessa imensa disputa venham os tão sonhados avanços democráticos para o setor, considerando, principal-mente, os acordos alcançados entre os diversos atores na realização da Conferência Na-cional de Comunicação.

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Comunicação e Mercado

Pesquisa Qualitativa: Caminho para uma análise complexa da comunicação organizacionalMarlene Branca Sólio Doutora em Comunicação pelo PPG PUCRS; mestre em Comunicação pelo PPG Unisinos; Graduada em Jornalismo pela Unisinos professora e pesquisadora na UCS; editora da Revista Conexão (UCS) e autora do livro Jornalismo organizacional – produção e recepção (Educs). [email protected]

Este trabalho é parte de pesquisa em que buscamos mostrar que as relações capital/ trabalho se dão na instância da subjetividade, exigindo que as Organizações desenvolvam uma “escuta” na direção de seus Sujeitos. A pesquisa integral defende tese de que elas precisam perceber sua relação com os empregados como algo que se alimenta recursivamente da própria qualidade, o que exige perma-nente espaço para a transformação. Para o cotejo entre fundamentação teórica, nossa experiência vivencial e o material, obtido em campo, adotamos o Paradigma da Complexidade. O objetivo do artigo é analisar a metodologia da coleta de dados aplicada na pesquisa: Pesquisa Qualitativa com entrevistas de profundidade, base para a análise de discurso.

Palavras-chave: Organização. Comunicação Organizacional. Pesquisa Qualitativa.

Qualifying Research: Path for a complex analysis of the organizational communi-cation This work is part of a research in which we looked

after showing that the relations between capital and work

are given in the instance of subjectivity, demanding that

the Organizations develop a “hearing” in the direction of its

subjects. It defends the thesis that these organizations need

to realize its relations with the employees as something that

feeds recursively of its own quality what demands perma-

nent space for transformation. To the confrontation between

theoretical ground, vivencional experience, and material ob-

tained in field, we adopt the Paradigm of Complexity. The

article analyses the methodology of the data collection: Qual-

itative Research wirth depth interviews, base to the analyses

of the speech.

Keywords: Organization. Organizational Communication.

Qualifying Research

Investigación Cualitativa: Camino para una análisis complejo de la comunica-cion organizacional Este trabajo es parte de una

investigación donde buscamos mostrar que las relaciones

capital y trabajo llévanse en la instancia de la subjetividad,

exigindo que las organizaciones desarrollense una “escucha”

en la dirección de sus sujetos. Defende la tesis de que ellas

necesitan percibir su relación con los empleados cómo algo

que alimentase recursivamente de su propia calidad lo que

exige permanente espacio para transformación. Para la con-

frontación entre fundamentación teórica, experiência viven-

cial, y material obtenido en campo, adoptamos el Paradigma

de La Complejidad. El artículo analiza la metodología de la

colecta de dados: Investigación Cualitativa con entrevistas de

profundidad, base para la análisis del discurso.

Palabras clave: Organización. Comunicación Organizacio-

nal. Investigación Cualitativa

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Marlene Branca SólioPesquisa Qualitativa: Caminho para uma análise complexa da comunicação organizacional

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Na pesquisa da qual este artigo é apenas uma parte, evidenciamos que as relações entre capital/trabalho se atualizam na instância da subjetividade e são mais complexas do que podem aparentar, exigindo que as Organizações desenvolvam uma “escuta” na direção de seus Sujeitos. Defendemos a tese de que as Organizações precisam perceber sua rela-ção com os empregados como algo complexo e que se alimenta recursivamente da pró-pria qualidade, o que exige diálogo permanente e espaço para transformação.

Para desenvolver a grande pesquisa, buscamos fundamentação na comunicação e nos estudos organizacionais, apropriando-nos de pensadores como Srour (1998), Freitas (1991; 2002), Chanlat (1996; 2001), Pagès (1993), Dejours (2006) e Antunes (2005), e na Psicanálise. Para o cotejo entre a fundamentação teórica, uma experiência vivencial de mais de 20 anos como consultora de comunicação e o material obtido em dois Grupos de Organizações, adotamos o Paradigma da Complexidade, de Morin (2002a, 2002c, 2005b).

Para a coleta de material, com a metodologia de Estudos de Caso Múltiplos (YIN, 2005), utilizamos a pesquisa qualitativa, e, para a interpretação de dados, re-corremos à Análise do Discurso, com base na corrente francesa desses estudos e a estudos de Psicanálise, fundamentados em Freud e Lacan.

Como o comportamento dos Sujeitos Organizacionais, se considerarmos as-pectos psíquicos, pode estar relacionado ao “desenho” das relações dos públicos nas Organizações? Essa era a questão inicial para nossas reflexões e que se desdobrou em outras três: Qual é o papel dos aspectos psíquicos e de personalidade dos Sujei-tos das Organizações, na “leitura” que farão, bem como na resposta que darão aos apelos e às premissas da Cultura das Organizações? Como as Organizações podem modificar e melhorar processos comunicacionais, qualificando processos relacionais? Elas consideram, nas relações com os Sujeitos Organizacionais estudados, os aspectos psíquicos?

Ao refletir sobre a Pesquisa Qualitativa: caminho para uma análise complexa da Comunicação Organizacional, talvez seja importante frisar que o estudo dos proces-sos de Comunicação Organizacional contempla, cada vez mais, vieses polissêmicos e interdisciplinares. Pensamos, portanto, com Chanlat (1996, p. 33, v. 1), que só o conjunto interdisciplinar de abordagens poderá delinear imagem menos parcelada do indivíduo na Organização, porque somente cruzando e multiplicando diferentes níveis se poderá interpretar o observado, buscando reconstruí-lo em sua integridade.

É importante pensar os vários discursos presentes no cotidiano das Organiza-ções, numa perspectiva de circularidade de causa e efeito: eles revelam uma prática das relações/Comunicação, que materializa-se em novo Discurso, sempre numa rela-ção dissimulada de forças/enfrentamentos/contradições. Assim, vemos crescer a im-portância da escuta/análise, que implicam mais do que quantificar, computar, relatar,

diagnosticar, descrever.Chanlat (1996, v. 1) lembra que a riqueza do universo mental do homem perma-

nece exageradamente simplificada, dando lugar a uma visão mecanicista da natureza humana, o que leva a uma profusão de abordagens sobre a motivação, ao custo de uma baixa compreensão. E Dejours (2006, p. 38) traz à discussão aspecto fundante, ao dizer que “tudo que dizia respeito à subjetividade, sofrimento subjetivo, patologia mental, tratamentos psicoterápicos suscitava desconfiança e até reprovação pública, salvo em certos casos notórios”.

É fundamental, em nossa perspectiva, o paradigma da Complexidade. Morin defende que a necessidade histórica da sociedade contemporânea é encontrar um método que evidencie, ao invés de ocultar (como faz o racionalismo), as ligações, articulações, solidariedades e implicações, enfim, as complexidades e, nos atrevemos a dizer, conspirações. “A aceitação da confusão pode se tornar um meio de resistir à simplificação mutiladora.” (MORIN, 2002a, p. 29). Trata-se, portanto, de ligar o que estava separado, por meio de um Princípio de Complexidade, que é

um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela [a complexidade] coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos que constituem nosso mundo fenomênico. (MORIN, 2005b, p. 13).

Acreditamos, como Morin, que ordem e desordem se confundem, se chamam, se requerem, se combatem, se contradizem. “Esse diálogo se dá no grande jogo feno-menal das interações, transformações, organizações em que trabalham cada um por si, todas contra uma, todas contra todas ...” (MORIN, 2002a, p. 106).

O paradigma materialista sofre abalos significativos a partir dos anos 60, quando Edward Lorenz1 descobriu que acontecimentos simples tinham um comportamento tão desordenado quanto a vida. Chegou a essa conclusão após testar um programa de computador que simulava o movimento de massas de ar. Lorenz teclou um dos nú-meros que alimentava os cálculos da máquina com algumas casas decimais a menos, na expectativa de que o resultado tivesse poucas mudanças.

Esse rearranjo amplia fronteiras epistemológicas. Procura-se, em diferentes campos, noções teóricas que permitam um saber como gerador de um campo sui ge-neris, pronto a buscar, em áreas já estabelecidas, fragmentos que lhe confiram hibri-dismo. Toma corpo a multiplicidade de vieses/olhares. Entendemos que os aspectos biopsicossociais são indissociáveis e desenham a relação Sujeito/objeto, num perma-

1. LORENZ, Edward N. Disponível em: <http://www.exploratorium.edu/complexity/CompLexicon/lorenz.html>. Acesso 25 nov. 2009.

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pretativo e crítico”. A AD buscou contemplar questões nele implícitas, mais do que as explícitas, “uma vez que se preocupa com as condições de produção do discurso, com sua crítica a partir de pressupostos externos”. (MORAES; GALIAZZI, 2007, p. 148).

Em nossa pesquisa, o oculto, o não dito, foi a preocupação central da AD. Ao analisar as entrevistas em profundidade, desenvolvidas com o grupo de trabalhado-res selecionado, dedicamos especial atenção ao que classificamos de “não ouvido”, ou seja, as demandas expressas sob as mais diversas formas (com o corpo, com a fala, com significantes, com sintomas).

Propostas de teoria e método

Na pesquisa de campo, trabalhamos com a Pesquisa Qualitativa (entrevistas em pro-fundidade), apoiando-nos, também, na técnica de Pesquisa Psicanalítica. Nossa inten-ção, nessa abordagem, é ressaltar a importância desse tipo de pesquisa nos estudos organizacionais e, ao retraçar o caminho que desenhamos, oferecer uma modesta contribuição aos pesquisadores que repitam essa escolha metodológica.

Entrevistamos vinte2 trabalhadores nas duas Organizações selecionadas, com questões abertas, servindo apenas como pontos de referência. Para a seleção dos entrevistados, estipulamos critérios como: gênero; idade (trabalhadores com menos de 30 anos e trabalhadores com mais de 45 anos); tempo de casa (trabalhadores com menos de cinco anos de casa, com mais de 10 anos de casa e com até 25 anos de casa); cargo de chefia na administração; cargo de chefia na produção; função sem chefia na produção e função sem chefia na administração. No decorrer do diálogo, estabelece-mos questionamentos da maior relevância. Como diz Haguette (1997, p. 97), “além dos dados ‘previstos’ para obtenção por meio do roteiro, existem muitos outros, talvez mais importantes, que poderão ser coletados mediante a habilidade e o sexto sentido do entrevistador para aproveitar os ‘pontos cegos’ e as ‘deixas’ do entrevistado.”

Gill ressalva quequando um analista de discurso discute o contexto, ele está também produzindo uma versão, construindo o contexto como um objeto. Em outras palavras, a fala do analista de discurso não é menos construída, circunstanciada e orientada à ação que qualquer outra. O que os analistas de discurso fazem é produzir leituras de textos e contextos que estão garantidas por uma atenção cuidadosa aos detalhes, e que emprestam coerência ao discurso em estudo. (2005, p. 255).

nente movimento de retroação. A lógica do ser é, assim, dialética, complexa. O olhar para um objeto demanda contemplar a ambiguidade, a ambivalência, variáveis não passíveis de mensuração linear. Daí buscarmos relação entre o Paradigma da Comple-xidade de Morin e a teoria psicanalítica, quando pensamos o Sujeito Organizacional.

Morin nomeia sete Princípios básicos em seu paradigma, sem valor hierárquico: Sistêmico ou Organizacional, Hologramático, Retroativo, Recursivo, da Auto-organi-zação: autonomia/dependência, Dialógico e da Re-introdução do conhecimento em todo o conhecimento. Em sintonia com a Complexidade, parece-nos fundamental que as Organizações vejam seus Sujeitos não apenas como seus “meios/produtos”, mas também como seus produtores. Ao reconhecê-los como individualidades, mais do que apenas como “unidades produtivas”, elas estarão atualizando um espaço para a renovação. Entendemos que as Organizações precisam dar-se conta de que, na mes-ma medida em que exploram o meio ambiente, dependem dele para sobreviver. O patrimônio ambiental de que elas se apropriam pertence ao conjunto da sociedade. As Organizações devem reconhecer a dependência como premissa para a conquista da independência.

Não há como traçar fronteira estanque entre o Sujeito do conhecimento, o co-nhecimento e o objeto. Como isolar valores, posturas, saberes que o Sujeito Organi-zacional traz e, isolando-o, conseguir que contribua para o desenvolvimento de uma Organização, quando ela se comporta como um sistema fechado, com uma Cultura cristalina, que paira sobre seu próprio contexto? Parece-nos que a tentativa de olhar para a relação/interação Organização/ator por meio da complexidade, tende a enri-quecer a análise.

Ao pensar as questões propostas sob a ótica do Paradigma da Complexidade, procuramos metodologia coerente com a análise que pretendíamos. Assim, chega-mos à Análise do Discurso (AD), hoje aglutinados em duas grandes gerações: aquela que vai da sua constituição ao final dos anos 70, que “procurava essencialmente colo-car em evidência as particularidades de formações discursivas, consideradas espaços relativamente auto-suficientes, apreendidos a partir de seu vocabulário” (MAINGUE-NEAU, 1997, p. 21) e aquela que aparece “ligada às teorias enunciativas, [que] pode ser lida como uma reação sistemática contra aquela que a precedeu.” (p. 21). “A AD é, com efeito, pluridisciplinar, já que, de um lado, o discurso integra as dimensões sociológicas, psicológicas, antropológicas... e, de outro lado, está no coração dessas mesmas disciplinas...” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 15).

Nossa perspectiva de análise buscou explorar as condições de produção do dis-curso, ou seja, o contexto e, como evidenciam Moraes e Galiazzi (2007, p. 144), “tem como preocupação primeira a interpretação, especialmente uma interpretação críti-ca, fundada em alguma ‘teoria forte’ [...] e assumida a priori como referencial inter-

2. Gaskell argumenta que “há um limite máximo ao número de entrevistas que é necessário fazer, e possível de analisar. Para cada pesquisador, este limite é algo entre 15 e 25 entrevistas individuais, e ao redor de 6 a 8 discussões com grupos focais.” (GASKELL, George Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER; Martin, GASKELL, George. Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 4. ed. 2005, p. 71. Cap. 3).

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Parece-nos fundamental refletir sobre a especificidade da metodologia de traba-lho adotada, na medida em que buscamos, nos dados manifestos, o conteúdo latente, fa-zendo uso da interpretação e da construção de um conteúdo subjetivo. Isso não significa afastarmo-nos dos procedimentos revestidos de cientificidade, na medida em que, do ponto de vista epistemológico, amparamo-nos em conceitos tomados de empréstimo da psicanálise.

Por experiência, optamos por aplicar as entrevistas fora do contexto da Organiza-ção. O fato de o entrevistado estar em seu ambiente de trabalho pode funcionar como inibidor sob vários aspectos, destacando-se a pressão de tempo para o retorno à produ-ção e a autocensura.

Nossa experiência vai ao encontro do que afirmam alguns teóricos: a necessidade de o entrevistador desmitificar qualquer ideia de sua superioridade, usando vocabulário simples, bem como portando-se e vestindo-se com simplicidade. Parece-nos importan-te lembrar que “além do poder econômico, existe o poder do ‘saber’ que tem se tornado, através dos tempos, monopólio dos grupos dominantes. Isso não significa que os opri-midos não possuam saber, eles o possuem, mas não têm consciência do valor que este saber representa”. (HAGUETTE, 1997, p. 156).

É importante enfatizar que esse tipo de entrevista requer do entrevistador que: a) estimule a fantasia do entrevistado, quando poderá perceber/registrar aspectos que de outra forma não seriam atualizados (insights); acesse o imaginário do entrevistado por meio do simbólico (linguagem), algo que se apresenta dif ícil, na medida em que, como já referimos, o imaginário está associado a situações de medo, de ansiedade e mesmo de ameaça; b) separe suas impressões subjetivas do conteúdo trabalhado, fazendo uma autocrítica permanente; c) exercite sua capacidade de ouvir (principalmente, como diz Lacan, o que a palavra não diz; d) identifique os momentos de resistência do entrevista-do, dimensionando a riqueza do material ali depositado; e) determine a hora de concluir a entrevista; f ) deixe o entrevistado à vontade.

As entrevistas, gravadas, foram transcritas, tomando-se o cuidado de omitir dados que personalizassem o entrevistado, bem como a empresa na qual trabalhava. Segundo Goldenberg (1999, p. 34), “não é possível formular regras precisas sobre as técnicas uti-lizadas em um estudo de caso porque cada entrevista ou observação é única: depende do tema, do pesquisador e de seus pesquisados”.

Na pesquisa, as entrevistas não tinham limite máximo de tempo, mas sabíamos que demandam a média de uma e meia a duas horas de diálogo. Outro aspecto impor-tante foi incluir, no encontro, um familiar, mas que fosse, também, trabalhador. Essa triangulação propiciou comparações, novas questões, críticas e, em algumas situações, tira o entrevistador do foco, permitindo maior descontração e uma abordagem mais profunda e “sincera” do entrevistado, que tem com seu interlocutor uma relação de

intimidade e confiança. Com isso, pretendemos também levar em consideração o que destaca Goldenberg):

Um dos principais problemas enfrentados na pesquisa qualitativa diz respeito à possível contaminação dos seus resultados em função da personalidade do pesquisador e de seus valores. O pesquisador interfere nas respostas do grupo ou indivíduo que pesquisa. A melhor maneira de controlar esta interferência é tendo consciência de como sua presença afeta o grupo e até que ponto este fato pode ser minimizado ou, inclusive, analisado como dado da pesquisa. (1999, p. 55).

Entendemos que a entrevista em profundidade pode trazer vantagens importan-tes para a pesquisa, na medida em que permite entrevistar analfabetos; propicia o en-volvimento do entrevistado, motivando-o muito mais do que o faz a entrevista escri-ta; permite que o entrevistado repita/corrija/volte atrás e reflita ao longo diálogo, bem como esclareça dúvidas ou lacunas; permite que o entrevistador faça uma leitura da linguagem corporal, bem como de atos falhos, detectando conteúdos latentes; permite a correção de rumo da própria entrevista, pois há muitas situações em que o entrevistado traz questões ignoradas ao entrevistador; estabelece vínculo entre pesquisador e pes-quisado, o que leva à minimização do medo/insegurança com relação ao uso/aplicação dos dados obtidos; dá ao entrevistado a sensação de valorização, por ser ouvido em suas demandas.

Muitos dos dados obtidos com pesquisas quantitativas acabam por compor es-tatísticas das Organizações, sem que seus resultados considerem a subjetividade, e os processos de computação/análise raras vezes são interpretativos. Em grande número de casos, os dados são vistos de forma isolada, ou seja, dissociada do conjunto daquele ambiente/contexto. “[...] A gente acha que isso não seria muito confiável, porque se eu tenho um problema com o meu chefe, na medida que eu falo isso claramente, eu não sei até que ponto eu posso ser bem ou mal-interpretado”, justifica a entrevista F, o que deixa à mostra a falta de confiança do trabalhador na relação com a Organização e a consciência da Organização sobre esse fato: “[...]Se eu respondo uma pesquisa, eu não me identifico, e ninguém pode me identificar, eu posso ser mais fiel”, argumenta F, sem considerar que o anonimato também pode acolher a má-fé e a distorção. “Então, nós usamos mais a ouvidoria, no sentido de, assim: ¬– eu tô mal com o meu chefe, eu posso procurar, tu me ouve, eu te ouço e tudo mais.”

A fala põe na berlinda a relação chefia/subordinado, o que pode ser indicativo de ponto nevrálgico, se recorremos ao processo de livre associação da Psicanálise, pois, ao falar sobre o assunto, foi isso que emergiu na fala do entrevistado. Além disso, se a ouvidoria é acionada, o processo para a pesquisa qualitativa teoricamente está aberto e, ainda, ao justificar que “[...]Fazer pesquisa perguntando para as pessoas as perguntas

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que a gente faz na pesquisa de clima, a gente acha que não seriam respondidas”, o en-trevistado mostra desconhecimento sobre o que seja uma Pesquisa Qualitativa.

Ao analisar a entrevista S, temos pistas em outra direção. Ao ouvir a questão: “Hoje ainda resiste o medo, entre o funcionário e a empresa?” A resposta é imediata: “[...] com certeza, medo de perder o emprego. As pessoas calam para não perder o em-prego. Porque, com certeza, nós teríamos muito para falar, se não fosse este medo. Mas vai do teu dia também, porque tem dias que tu não está de bom humor e sai alguma coi-sa, sem querer”. A entrevista evidencia a necessidade de olharmos para a subjetividade no momento da relação com o Sujeito Organizacional, quando traz à tona a latência do recalcado e o medo de que ele possa se precipitar.

A entrevista O é esclarecedora quanto ao tipo de leitura que a recepção faz da pesquisa quantitativa, que vem de encontro ao que foi dito na entrevista F: “[...] Eles fazem a pesquisa de satisfação. Mas é obscura esta pesquisa. Quando eles veem que não está bem para eles, eles não dão bola, eles querem ver o que eles apontam para se levar a sério. E ao invés de arrumar o que foi pedido, eles ignoram a pesquisa. Eles sonegam os defeitos da empresa.” Está clara, na fala, a polifonia do discurso.

Parece-nos importante ressaltar a especificidade de análise que buscamos fazer em nossa pesquisa, o que justifica apoiarmo-nos, também, na pesquisa psicanalítica, de que fala Iribarry. O autor explica que

a pesquisa psicanalítica, justamente por trabalhar com a impossibilidade de previsão do inconsciente, não poderia jamais exigir uma sistematização completa e exclusiva. [...] Ela é sempre uma apropriação do autor que depois de pesquisar o método freudiano descobre um método seu, filiado a essa vertente e o singulariza na realização de uma pesquisa. (2003, p. 117).

Comparado a outros modos de abordagem, o psicanalítico não busca ou pretende estabelecer inferência generalizadora, tampouco suas estratégias de análise dos resul-tados trabalham com o signo, mas, sim, com o significante, que está sempre aberto a novos sentidos. Como explica o autor acima ( p. 121), a “pesquisa psicanalítica deseja encontrar suas formulações essenciais na experiência, que é significante para o sujeito e desligada da antecipação prevista pelo signo”.

O pesquisador psicanalítico está implicado como um participante importante na investigação que realiza. É preciso deixar de lado, portanto, a objetividade higienizante e utópica defendida em alguns modelos de pesquisa, como é preciso, também, manter um aguçado senso ético. O entrevistador deve estar disposto a repetir as entrevistas quantas vezes se fizerem necessárias, sob pena de comprometer o resultado se incluir na análise uma ou mais entrevistas que não tenham se desenvolvido satisfatoriamente.

Iribarry sinaliza que, na pesquisa psicanalítica,

o campo será o inconsciente; o objeto será o enfoque ou perspectiva a partir de uma posição em que é colocado o pesquisador psicanalítico com o fim de aceder ao inconsciente e o método será o procedimento pelo qual ele se movimenta pelas vias ou perspectivas de acesso ao inconsciente. (2003, p. 117).

O pesquisador psicanalítico movimenta-se por meio das suas impressões trans-ferenciais sobre o texto examinado e fica atento ao rol de significantes que formam sua tessitura.

Essas impressões transferenciais resultam do modo como o pesquisador faz sua leitura dos dados, o que faz com que surja a pergunta: mas, então, o pesquisador psicanalítico é movido por sua subjetividade ao analisar o dado de pesquisa? Sim, esta é a contribuição mais legítima que podemos extrair do percurso de Freud, pois este sempre esteve movido por suas inclinações pessoais diante dos dados de sua pesquisa, e foi graças à sua interferência subjetiva que a psicanálise nasceu como uma teoria, um método e uma técnica de tratamento. (FÉDIDA, 1992 apud IRIBARRY, 2003).

Um momento importante é o da análise criteriosa dos dados obtidos, comparan-do-os e cotejando os resultados com a fundamentação teórica e com as reflexões dela consequentes, para, então, confirmar ou repensar questões de pesquisa e voltar a cam-po. É importante, nesse momento, trazer para a discussão a questão da neutralidade/objetividade tanto do entrevistador quanto do quadro de entrevistados.

Para isso, recorremos a Haguette quando diz:Não acreditamos que o real possa ser captado “como um espelho”, ao contrário, assumimos a postura relativista, de cunho weberiano, de que fazemos “leituras” do real. Esta postura, entretanto, não exime de dedicar atenção a todas as possíveis limitações inerentes ao método científico nas ciências sociais porque nos parece que é a partir da aceitação de cada limite do método que o cientista social pode ter a condição, também de entender os limites do dado que ele colhe do real. (1997, p. 87).

Na América Latina, podemos relacionar o medo dos entrevistados aos possíveis/prováveis usos dos dados revelados a um contexto político-econômico específico: o de um ciclo de ditaduras militares. Até esse período, esse tipo de pesquisa é referido como investigação alternativa, investigação participante, autossenso, pesquisa popular, pesquisa dos trabalhadores, pesquisa-confronto, investigação militante, pesquisa-ativa, estudo-ação, investigação sociológica, enquete-participação. Kurt Lewin cunhou o ter-mo, nos Estados Unidos. Ele e seus discípulos se orientaram para a solução de proble-mas sociais que a população americana viveu durante a e depois da Segunda Guerra Mundial. A partir desses estudos, configuraram-se a pesquisa-ação de diagnóstico, a

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pesquisa-ação participante, a pesquisa-ação empírica e a pesquisa-ação experimental, com metodologia própria, que começa a firmar-se e a aperfeiçoar-se.

Considerações finais

Encontramos questionamentos quanto à cientificidade desse tipo de pesquisa, que adota técnicas como a história de vida, a história oral e a entrevista em profundidade. O fato é que, independentemente da técnica empregada, a escolha de um paradigma e o “procedimento científico” são uma definição pessoal, com a qual o pesquisador se identifica e na qual impregna suas marcas, o que significa dizer que neutralidade e obje-tividade são utopias a perseguir, não garantias de consecução.

Bauer e Gaskell (2005) mostram que a fonte de dados na Pesquisa Qualitativa são textos que, no caso de nosso projeto, se atualizaram por meio de entrevistas em pro-fundidade, desenvolvidas com 20 trabalhadores de três Organizações. A análise volta-se à interpretação dos dados, e a entrevista é a forma usual de construção do objeto. A Pesquisa Qualitativa exige, justamente por isso, flexibilidade e criatividade (GOLDEN-BERG, 1999), buscando estabelecer um método que lhe ofereça credibilidade. Parece importante lembrar que, de modo geral, as Pesquisas Qualitativas se caracterizam pela imersão do pesquisador no contexto do objeto de pesquisa, balizando-se pela perspec-tiva interpretativa. O pesquisador tem espaço para a interpretação, a partir da análise/descrição de fenômenos/comportamentos; da citação direta de experiências de Sujei-tos/atores entrevistados; de partes de documentos, da transcrição de entrevistas e/ou discursos (falas). A Pesquisa Qualitativa leva em consideração aspectos de subjetivida-de, ao contrário da Quantitativa, que trabalha com assertivas com valor de lei. Na Pes-quisa Qualitativa, o pesquisador considera a realidade como algo da ordem do subjetivo e socialmente construído, o que leva a pensar as noções de relatividade/complexidade e cultura. Acreditamos que as Pesquisas Qualitativa e Quantitativa sejam complemen-tares e, dependendo do problema a abordar, andam juntas. Bryman (1988) enfatiza que alguns autores associam a Pesquisa Quantitativa ao positivismo e a Qualitativa à feno-menologia, considerando, assim, os dois paradigmas inconciliáveis. Ao optar por essa linha de trabalho, buscamos uma perspectiva que mostrasse um caminho, principal-mente aberto à critica e à revisão, a partir de outros vieses.

As Organizações são uma instituição cada vez mais presente no cotidiano social, com implicações socioeconômicas e políticas. Não podemos esquecer que essa insti-tuição se autoeco-organiza com a ingerência de Sujeitos, que, recursivamente, buscam imprimir-lhe suas características (aqui pensamos que características sejam o modo de atuar das suas estruturas psíquicas). E todos sabemos que o Sujeito convoca o Outro a

“entrar no seu sintoma” (dele Sujeito), o que efetivamente introduz a relação. Pensamos ter cumprido o objetivo deste artigo e respondido às questões que de-

ram início a nossas reflexões: como o comportamento dos Sujeitos Organizacionais estudados, se considerarmos aspectos psíquicos, pode estar relacionado ao “desenho” das relações dos públicos nas Organizações? Questão ilustrada quando entrevistados da Organização A1 fazem comentários em relação à personalidade, forma de ser e de relacionar-se de determinado gerente, responsável pela [injusta na visão dos trabalha-dores] demissão de um supervisor. Os comentários dos entrevistados mostram que os dois Sujeitos (gerente e supervisor) “desenhavam” relações diferentes com a população em questão, o que levou, naturalmente, a outro aspecto importante: a disputa de poder e a consequente demissão do supervisor. E isso somente foi possível captar/compreen-der por meio das entrevistas em profundidade.

No que diz respeito ao papel dos aspectos psíquicos e de personalidade dos Su-jeitos das Organizações, na “leitura” que farão, bem como na resposta que darão aos apelos e premissas da Cultura das Organizações? recorremos ao exemplo do supervisor mencionado em uma das entrevistas, cujo critério para a seleção de trabalhadores era serem dóceis. Temos, com esse exemplo, a perspectiva de quem contrata e a perspecti-va de quem é contratado, cuja postura será, evidentemente, a de submissão.

Ouvimos relato de como, em muitos casos, chefias imprimem às relações com os subordinados o seu modo de ser/perceber. Vieram à tona situações em que elas convo-cam o Outro a responder ao seu sintoma, assim como ficaram evidentes mecanismos de defesa, grupais e individuais, que os Sujeitos acionam ao estabelecer relações. Ficou evidente, também, principalmente se olharmos para os excertos de algumas das entre-vistas, a importância do “não-ouvido” ao lado dos bem-ditos, mal-ditos e não-ditos de que fala Roman (2009).

Com essa pesquisa, buscamos entender como as Organizações podem modificar e melhorar os processos comunicacionais, investindo na qualificação dos processos rela-cionais. Queríamos saber, também, se elas consideram, nos seus processos relacionais com os Sujeitos Organizacionais estudados, os aspectos psíquicos. Afirmações definiti-vas e generalizações são perigosas quando se trabalha com seriedade, e, na maior parte das vezes, segundo entendemos, inconvenientes. No momento das Organizações que acompanhamos, podemos dizer que elas não consideram aspectos psíquicos dos Su-jeitos Organizacionais estudados. Percebemos, também, que os dois Grupos estão em momentos distintos com relação a esse aspecto, havendo, de parte do Grupo B, mesmo que incipiente e, diríamos, quase mecânico, ainda, o desejo de andar nessa direção. E somente pudemos fazer essas inferências a partir da escuta cuidadosa efetivada por meio das entrevistas em profundidade, ou seja, da pesquisa qualitativa.

Entendemos, agora ainda mais, que a escuta é imprescindível no desenho das re-

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Marlene Branca SólioPesquisa Qualitativa: Caminho para uma análise complexa da comunicação organizacional

lações em qualquer tipo de Organização. Um exemplo simples ilustra isso com riqueza: quando um líder, com características paranoides, convoca seus liderados a entrarem no jogo de uma fantasia de perseguição, o Sujeito de seu inconsciente não medirá esforços para que o grupo entre em seu sintoma.

O Sujeito do inconsciente de alguns integrantes desse grupo, com certeza, ficará preso ao sintoma desse líder, e o próprio grupo poderá desenvolver uma “estrutura/personalidade paranoide”, o que levará a problemas de relacionamento/ comunica-ção. Esses problemas poderão vir a ser, inclusive, muito mais sérios em relação a(os) integrante(s) do grupo que se recuse(m) a “entrar no sintoma”, na medida em que há grandes chances de ser eleito(s) “bode(s) expiatório(s)” na relação, tanto com o líder quanto com o próprio grupo. Parece-nos fundamental que a Organização desenvolva escutas na direção de seus Sujeitos/grupos, e que ela “faça uma escuta de si” como insti-tuição. E um saudável caminho para isso é, efetivamente, a Pesquisa Qualitativa.

Pensamos essa questão dialética/dialogicamente, o que significa dizer que abri-mos mão de uma solução para o problema que analisamos. Vemos a solução como algo temporário, na medida em que as relações se modificam e, pensando nos significantes da Psicanálise, deslizam permanentemente. Dessa forma, acreditamos que olhar para a Comunicação Organizacional numa transdisciplinaridade Comunicação/Psicanálise seja um passo na direção de encontrar algumas respostas importantes, mas, também, na direção de buscar novas questões, estas, sim, mobilizadoras de transformações im-portantes. Mas, para provocar/aceitar transformações, as Organizações devem estar atentas à forma como buscam analisar/estudar/descobrir/desvelar seus contextos, o que para nós significa investir na escuta por meio da Pesquisa Qualitativa permanente.

Referências

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Ecossistema de mídias na primavera digital

Por Daniela Osvald RamosDoutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP), é professora de Novas Tecnologias da Comunicação na Faculdade Cásper Líbero

Dossiê: A comunicação e a política na era digital

Entrevista com Lourival Sant´Anna

“A responsável pela transformação mental é a televisão, não a internet”, diz o jornalista que, como enviado especial do jornal O Estado de São Paulo,

testemunhou as transformações políticas no Oriente Médio

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Lourival Sant’anna

86 Revista Communicare

Entrevista

Introdução

Graduado em jornalismo pela Universidade Federal de Goiás e mestre pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, o repórter especial Lourival Sant’Anna iniciou sua carreira no O Estado de São Paulo em 1990, como redator de Internacional. Passados 21 anos, sua trajetória compreende a cobertura de conflitos em mais de 40 países, entre eles a Palestina, Afeganistão, Iraque, Irã, Líbano, e, recente-mente, Egito, Tunísia e Síria. Também é autor de dois livros: Viagem ao Mundo dos Taleban (Geração Editorial, 2002) e O Destino do Jornal (Editora Record, 2008), este sua dissertação de mestrado.

A informação é fator decisivo numa guerra. Sant´Anna testemunhou o desenrolar das mudanças políticas no Oriente Médio nesta época na qual a comunicação digital é um elemento cada vez mais determinante em todos as esferas da sociedade. Se a transformação mental foi introduzida nos lares árabes por dois canais de televisão a cabo, principalmente, o Al-Arabiya e Al-Jazeera, foi por meio das redes sociais que os jovens se reuniram para efetivamente mostrarem ao mundo sua insatisfação com as ditaduras. Ou seja, as mídias operam na cultura como sistemas interligados de informa-ção, à semelhança de um ecossistema no qual a introdução de novas espécies altera sua configuração original.

Disseminar correspondências diplomáticas via internet, como fez Julian Assange, é outro exemplo das mudanças pelas quais passamos. “Quando Osama Bin Laden utili-zou aviões como mísseis e os transformou em armas de guerra, ele rompeu limites, um acordo da civilização, de que aviões são meio de transporte. Quando isso acontece, a civilização se modifica, saímos de uma certa ingenuidade que havia antes. Acho que isso aconteceu com a correspondência diplomática”, diz, a respeito do Wikileaks.

E, na era digital, fazer política não difere muito de vender um produto: ”Os candi-datos são como produtos, sabão em pó, e são capazes de se contradizer, se necessário. Eles não têm convicções. O político moderno não tem pensamento, não tem ideias, princípios. Ele se ajusta ao que as pesquisas de opinião pedem. E a internet tem sido um veículo disso”. Leia a seguir a entrevista completa.

Communicare - Como podemos entender o que a internet causou nos países nos quais você cobriu conflitos nos últimos cinco anos, em especial a Primavera Ára-be? Essas mudanças são perceptíveis na prática?Lourival Sant´Anna - Numa ordem cronológica, temos o Irã, com conflitos em junho de 2009, chamados de Primavera do Teerã, e o Iraque em março de 2010. O que acon-tece é que a internet, o Facebook, principalmente, e o Twitter, também, são usados para as pessoas se mobilizarem e se encontrarem. A responsável pela transformação mental

é a televisão, não é a internet. Do ponto de vista do conteúdo, são responsáveis os canais Al-Arabiya e Al-Jazeera, principalmente, e outras dezenas de canais noticiosos, das mais diversas correntes, como o Hezbollah, no Líbano. Esses canais entram nos lares dos árabes, e dos iranianos também. No caso dos árabes, esses canais entraram livremente nas casas na Líbia, Tunísia, Egito e Palestina.

Eles trouxeram a notícia de que existem outras formas de organização política. E, mais que isso, ajudaram a abortar operações de propaganda, que antes transcorriam in-cólumes. Por exemplo, houve um protesto em Londres que foi contra o corte de bolsas de estudo e, principalmente, contra o aumento da anuidade nas universidades. A tele-visão estatal na Líbia pegou essas imagens e disse que os ingleses estavam protestando contra a participação da Inglaterra na operação da Otan. Mas os canais Al-Arabiya e Al-Jazeera mostraram que não era bem assim. Isso é muito importante numa guerra. Isso pode ser decisivo numa guerra. Por exemplo, agora, em Bani Walid, as pessoas esta-vam saindo da cidade, fugindo, porque a rádio estatal local dizia que Bani Walid estava cercada por islâmicos fundamentalistas, que a Al Qaeda estava cercando a cidade. Mas comprando uma antena que custa dez dólares e o sinal é grátis, sabe-se que a cidade é um dos últimos redutos do Kadafi. Isso muda completamente o estado da guerra. E isso tem acontecido.

Communicare - E no Irã?LS - Estive agora por coincidência com o presidente da Press TV, a TV estatal iraniana e ele disse que não existe TV a cabo no Irã. Ele não me falou, mas sei que existem algumas antenas clandestinas, que podem levar a pessoa à morte se forem descobertas. E existe um complicador, que é o fato de os iranianos não falarem árabe. Então, esse fenômeno dos canais árabes não penetra no Irã. Mas lá é possível sintonizar a BBC, a CNN, e a elite iraniana fala inglês. Mas também não é atingindo a elite que se muda a equação política dentro de um país como esse. Mesmo assim, a Primavera de Teerã, em 2009, foi um fenômeno também impulsionado pela classe média, de qualquer maneira.

No início de setembro de 2011, um hacker iraniano entrou no sistema de qua-tro certificadoras de internet, uma delas na Holanda, que reconheceu que foi mesmo invadida. Ele roubou certificadores usados pelo Google, pelo Yahoo, e outros sites e entregou para as autoridades iranianas que, com isso, provavelmente, calcula-se, vão ser capazes de violar o segredo de e-mails de 300 mil pessoas no Yahoo. Isso é muito grave num país como o Irã, pode levar à morte.

Communicare - E no Egito e Tunísia?LS - Tudo começou, no Egito, com uma página do Facebook que dizia “Somos todos Khaled Said”. Porque Khaled foi um rapaz de 28 anos que estava numa lan house quan-

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Lourival Sant’annaEntrevista

do foi abordado por policiais que queriam que ele se identificasse. Ele falou “primeiro vocês precisam se identificar”. Apanhou da polícia até morrer. Então, isso é muito em-blemático na questão da internet, porque a partir daí criou-se essa página no Facebook e começou-se a discutir. Primeiro, o papel da polícia. É claro que isso transbordou para outras questões políticas. Wael Ghonim, egípcio, estava à frente disso, sendo o gerente de marketing do Google para o Oriente Médio. Com relação à mobilização, nessa e em outras páginas do Facebook foi-se falando “vamos fazer uma manifestação”, e isso foi muito antes da revolução na Tunísia. Portanto, a revolução egípcia é um fenômeno anterior ao tunisiano, ao contrário do que se pensa. Mas a manifestação foi marcada para 25 de janeiro e a Tunísia estourou no início de janeiro por causa de um homem que se autoimolou, uma história fortíssima, ele tinha graduação na universidade, não tinha emprego e estava trabalhando como camelô e tomaram as coisas dele. Então ele pôs fogo em si mesmo. Acho que qualquer pessoa compreende por que ele pôs fogo em si mesmo.

O que eu sempre gosto de opinar nessa questão é que as coisas nascem no mundo real. Khaled Said foi espancado até a morte, outro homem se imolou. Na Líbia, parentes dos presos políticos chacinados na prisão de Abu Salim, em 1996, estavam preparan-do uma manifestação quando o advogado dessas famílias todas, Fathi Terbil, foi preso preventivamente, às vésperas do protesto. Essa manifestação foi então engrossada pelos advogados e pelos juízes da Alta Corte de Benghazi, na Praça dos Mártires. São fatos concretos, mas a mobilização para essa manifestação foi feita no Facebook. E, posterior-mente, surgiram muitas páginas no Facebook.

Quando começou a revolução, em Tripoli, nove parentes do rei Idris Sanusi, der-rubado por Kadafi, todos jovens, irmãos e primos entre si, foram presos, para justificar uma das narrativas do regime para essa revolução, que era uma conspiração para trazer de volta a monarquia. Conversando com eles, falei “mas vocês fizeram alguma coisa?”, e eles “eu não fiz nada”, “eu não fiz nada”. Aí um deles falou “ah, eu não fiz nada, eu só tinha uma página no Facebook chamada ‘Fora, Kadafi’”. A minha análise é de que a maior serventia do Facebook e do Twitter é para a organização: “vamos nos encontrar em tal lugar, tal hora e tal dia”. E claro, o Facebook, como todos nós sabemos, é um lugar em que você se coloca. E, naturalmente, as pessoas se colocavam. Eu me lembro de um médico que falou que “no início da revolução, dos protestos, eu escrevi na minha pági-na do Facebook ‘nós precisamos de reformas. Esse regime precisa de reformas’. Eu não queria a queda do Kadafi, eu só achava que precisava de reformas. Depois de tudo o que aconteceu, hoje eu preciso que o Kadafi caia”.

Communicare - É preciso ver que e-mail já proporcionava isso, mas não em escala de rede...

LS - Isso. Acho que o Facebook e o Twitter permitem essa abertura. Enfim, eles são sis-temas mais abertos. As pessoas que se interessam podem buscar, não é fechado. E isso fez uma diferença grande.

Communicare - Você falou da TV, é interessante notarmos esse ecossistema dos meios de comunicação, que é daí que surge o novo.LS - Só mais uma questão: tanto na Tunísia quanto no Egito e na Líbia, a internet foi derrubada e os celulares também. Encontrei com dois jornalistas da revista alemã Der Spiegel, um fotógrafo e um repórter de texto. Eles ficaram duas semanas na Síria, es-condidos (não estavam sendo fornecidos vistos para jornalistas). Perguntei ao fotógrafo: “como você fez com o seu equipamento?”, e ele “não levei equipamento”. “Telefone saté-lite?”, “Não, não levei nada, a gente só publicou depois de sair (da Síria)”. Em revista, você pode fazer isso... Ele falou: “meu plano foi o seguinte: eu levei uma câmera de turista. Estava lá como turista, levei uma câmera pequena. Só que as manifestações são de noite, e existem franco-atiradores no topo dos edif ícios do governo que buscam quem está com uma luzinha, celular ou câmera. Se os vizinhos vissem aquela manifestação, tudo bem, não seria um problema. Mas o resto do mundo seria um problema. Ligava minha câmerazinha e falava ‘agora eu vou morrer’, porque tinha aquela luzinha no meio da escuridão”. Então, existe toda essa questão da fotografia digital, que é viral.

No meio da guerra na Líbia, chegavam homens com celular e falavam “você tem imagens para trocar?”. Trasmitiam-se as imagens por bluetooth de celular para celular. Na Síria, isso é vital, também no Yêmen e Bahrein, que são países fechados para a im-prensa. É a única forma de contrabandear para fora do país imagens do que está acon-tecendo lá. De forma viral, pelo Bluetooth.

Communicare - Você vê, a médio e longo prazo, os governos no mundo querendo ter mais controle sobre a internet? Por exemplo, nos conflitos com os riots na In-glaterra, neste ano, o governo cogitou cortar o acesso à internet e às mensagens enviadas por celular. SL - Vou responder à sua pergunta de uma forma histórica. Nos últimos dez anos, uma parte do orçamento de defesa da China e dos EUA, e de países europeus também, tem sido destinada à guerra eletrônica. Porque, na guerra convencional, o primeiro objetivo é bombardear as salas de controle e comando. É como se você destruísse o cérebro. Na Líbia, algumas brigadas como, por exemplo, em Ashdala, no leste, estavam atuando sem controle e comando, porque a Otan cortou a comunicação. Fazer isso com bombas é mais dif ícil, porque se destroem alvos civis.

O controle de comando do Kadafi estava debaixo de um estacionamento de um bar de Abu Salim. São bunkers. Se é possível atacar os centros de comando eletronica-

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Lourival Sant’annaEntrevista

mente, é muito mais custo-benef ício. Muitos hackers têm sido capturados, cooptados e trazidos para dentro de agências de inteligência militar, que têm atuado nesse sentido. E acho que a gente ainda não viu nada. Acho que isso vai crescer muito. Com relação à In-glaterra, Londres é provavelmente a cidade mais vigiada do mundo. Mas outras cidades do interior da Inglaterra também. Em cada esquina há uma câmera de circuito interno, que é usada pela polícia. Londres foi um dos lugares em que o Google Street começou. Mas os ingleses falaram (em relação à possibilidade de controle da internet): “Já temos invasão de privacidade suficiente”. E há um tremendo problema legal aí.

Communicare - É possível dizer que a digitalização da cultura, no sentido em que estamos falando, muda o jeito de fazer política? LS - Com certeza. Eu cobri a eleição americana, fiquei o segundo semestre de 2008 nos EUA. Até hoje eu recebo e-mails do John McCain, da mulher dele, do Obama, da mulher do Obama, da Hillary Clinton... A campanha, principalmente do Obama, e isso se tornou um caso clássico, foi feita em função da internet. A arrecadação foi recorde. Na época, vinham e-mails em que ele colocava questões políticas do momento, da con-juntura da campanha, isso até na época das primárias, antes de ele ser o candidato. E dizia “olha, está acontecendo isso, isso e isso, você pode dar 50 dólares? É um momento dif ícil”. Deu certo. Na democracia americana há uma tradição de doações, que tem uma conotação política muito forte. Quando os políticos americanos falam em doação na te-levisão, vira uma bola de neve. Tem uma grande repercussão sobre o público americano, que tem orgulho de dizer “eu votei com o meu dinheiro”.

Eu acho que a política continua sendo a política, assim como a guerra continua sendo a guerra. Mas os meios mudam a forma de fazer as coisas. A aceleração da in-formação e do impacto dela ricocheteia e tem muita influência sobre a política, porque antes o discurso era mais vertical. Antes era possível, com um discurso preparado, pas-sar uma mensagem mais homogênea, mais vertical. Hoje interage-se o tempo inteiro.

Communicare - O que é o WikiLeaks?LS - Eu acho que o WikiLeaks é uma quebra nas normas de convívio, nas normas de comportamento. Uma coisa é flagrar um ato de corrupção. Outra coisa é violar uma correspondência diplomática. Mas o WikiLeaks tem vários aspectos. O que mais me impactou até hoje e que considero uma contribuição jornalística muito importante foi o vídeo do bombardeio no Iraque, daquela operação por helicóptero. Aquilo realmen-te desnudou a incrível irresponsabilidade das forças armadas americanas. Teve coisas desse tipo também no Afeganistão. Eu acho que isso é jornalismo, da mesma maneira aquele escândalo da prisão de Abu Ghraib no Iraque, anos antes, aquelas fotos. Isso é muito pertinente, isso é de interesse público.

Tenho dúvidas se está dentro da nossa ética distribuir correspondências diplomá-ticas. Mas, de qualquer maneira, vamos passar a conviver com isso. O mundo ficou tão dependente de todas essas formas de comunicação que se tornou, ao mesmo tempo, vulnerável. Eu faria uma analogia com a questão do avião. Quando Osama Bin Laden utilizou aviões como mísseis e transformou-os em armas de guerra, ele rompeu limites, um acordo da civilização, de que aviões são meio de transporte. Quando isso acontece, a civilização se modifica, saímos de uma certa ingenuidade que havia antes. Acho que isso aconteceu com a correspondência diplomática. É isso que caracteriza o terrorismo, não respeitar normas da guerra. E, propositalmente, atingir um alvo civil. Mas quando se mexe com sistemas de transportes ou com sistemas de comunicação, aí se transpôs um limite. E o WikiLeaks faz isso. E proclama que não há regras. Os fins justificam os meios. Vejo benef ícios no WikiLeaks, mas tenho dúvidas do balanço entre prejuízos e benef ícios. Como é que fica quando alguém fura a fila, quando cruza o sinal vermelho? O que é que ele introduziu na sociedade? Um elemento de barbárie.

Communicare - Barbárie digital, como quando se colocam informações falsas so-bre uma pessoa no Facebook, Orkut? LS - Uma traquinagem. Cobri os vinte anos da queda do muro de Berlim em 2009 e sen-ti dificuldade em fazer entrevistas on the record com jovens entre 18 e 30 anos de idade. É uma coisa que um jornalista nunca enfrenta, você tem problemas em estar on the records com autoridades, diplomatas, militares, empresários falando coisas sensíveis. Uma moça me perguntou: “essa entrevista vai estar na internet?”. Eu respondi como sempre, com todo o entusiasmo: “sim, claro!”, porque achei que ela queria mostrar para os amigos, para a mãe. “Ah, então eu preferiria que não saísse meu nome”. “Estou ten-tando limpar meu nome da internet”. Eu vi isso várias vezes, até que alguém me explicou que, na Alemanha, os jovens não conseguem emprego formal se o recrutador faz uma pesquisa e encontra imagens deles bêbados. O que é uma coisa alemã, beber cantando e fazendo besteira. Mas eles não conseguem tirar isso da internet e não conseguem em-prego formal. Pode acontecer no nosso país, também.

A internet dá ressonância para um tipo de controle moralista e pudico, purita-no. Emoldura a vida pública das pessoas num limite mais estreito, que responda ao conservadorismo mais extremado. Porque a sociedade tem diversos raios de aceitação, de tolerância moral e social. Na medida em que a questão se torna aberta e há um escrutínio milimétrico da vida de todos, a aceitação social se circunscreve ao mínimo denominador comum. E aí se chega a uma situação orwelliana. Há o Grande Irmão que controla. Por que uma pessoa que, na adolescência, foi filmada numa cena de bebedeira, anos depois não pode ser aceita numa empresa? A única diferença entre ela e aqueles outros alemães que trabalham na empresa é que esses outros alemães não têm imagens

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Entrevista

gravadas no YouTube. Se houver preocupação com a questão do alcoolismo, é possível para a empresa colocar um tipo de exame específico, psicológico, em seu processo de seleção. Mas do que é que nós estamos falando, é de alcoolismo? Não, é de imagem. O que essa empresa não quer é que, no mercado, em um momento de vulnerabilidade, se associem essas coisas a ela.

Porque nós não estamos falando sobre o domínio da internet, nós estamos falando sobre o domínio do marketing, inclusive na política. Hoje, a política é dominada por estratégias mercadológicas. Os candidatos são como produtos, sabão em pó, que são capazes de se contradizer se necessário. Eles não têm convicções. O político moderno não tem pensamento, não tem ideias, princípios. Ele se ajusta ao que as pesquisas de opinião pedem. E a internet tem sido um veículo disso. As pessoas que são guiadas por princípios não conseguem se ajustar a esse sistema. Em resumo, nós elegemos atores.

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Dossiê: A comunicação e a política na era digital

Fatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística

Cristiane Lindemann Jornalista formada pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutoranda no mesmo PPG. [email protected]

Danielle Sandri Reule Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora da Universidade Estácio de Sá (Unesa).

A proposta do artigo é refletir sobre o papel de indivíduos que presenciam acontecimentos e, uti-lizando tecnologias digitais, capturam e disseminam globalmente as informações no ciberespaço, sem moderadores. A tendência é que fatos com valor-notícia sejam, em dado momento, também confirmados por autoridades e divulgados pela imprensa oficial. O processo não é novidade, mas a emergência do Twitter e de redes sociais como Orkut e Facebook resultou no surgimento de um novo fenômeno. Sugere-se, então, denominar esses personagens, relevantes aos processos comuni-cacionais, fatodifusores digitais.

Palavras-chave: web 2.0; Twitter; participação; fatodifusor digital; jornalismo

Digital fact-diffusers and new ways of journalistic production This paper proposal is

to reflect on the role of individuals who witness events and,

using digital technology, capture and disseminate overall

information in cyberspace, with no moderators. The ten-

dency is that facts with news value are, at some point, also

confirmed by authorities and published by official media.

The process is not new, but the emergence of Twitter and

social networks such as Orkut and Facebook has resulted in

appearence of new phenomena. Therefore, it is suggested to

call these characters, relevant to communication processes,

digital fact-diffusers.

Keywords: web 2.0; Twitter; participation; fatodifusor digi-

tal; journalism

Fatodifusores digitales y las nuevasformas de producción periodística El ob-

jetivo del trabajo es discutir el papel de los individuos que

presencian eventos y, con el uso de tecnologías digitales, cap-

turan y difunden la información a nivel mundial en el cibe-

respacio, sin moderadores. La tendencia es que los hechos de

valor de noticias sean, en un momento, también confirmados

por autoridades y divulgados por la prensa. El proceso no es

nuevo, pero la aparición del Twitter y las redes sociales como

Orkut y Facebook está dando lugar a fenómenos nuevos. Se

sugiere, por lo tanto, llamar a estos personajes, pertinentes a

los procesos de comunicación, ‘fatodifusores digitais’

Palabras clave: web 2.0; Twitter; participación; fatodifusor

digital o efecto difusor; periodismo

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 9796 Revista Communicare

Cristiane Lindemann e Danielle Sandri ReuleFatodifusores digitais e os novos modos de produção jornalística

96 Revista Communicare

Informação em primeira mão

Web 2.01, celulares, câmeras digitais, redes sem fio. Eis algumas das ferramentas que têm modificado os modos de produção do jornalismo. O modelo tradicional de “co-municação de massa”, baseado na produção e disseminação de notícias padronizadas, a partir de poucos veículos e de profissionais especializados, passou a conviver com tec-nologias digitais que viabilizam a inserção de novos atores nos processos de apuração, construção e distribuição do conteúdo.

Em novembro de 2008, Mumbai, na Índia, foi abalada por tiroteios. As primeiras informações e fotos do ataque terrorista que matou mais de 300 pessoas e deixou outras tantas feridas foram escritas e divulgadas por pessoas comuns que estavam no local.

Poucos minutos após o ataque as seguintes mensagens foram divulgadas pelo Twitter:Urvaksh: “Mumbai está um caos: 18 mortos, 40 pessoas mantidas reféns no Oberoi, hotel cinco estrelas, tiroteio acontecendo no JW Marriott”. 11:33, 26 nov, da web.Fossiloflife: “Batalhas com tiros acontecendo em dois pontos estratégicos do sul de Mumbai”. 10:34, 26 nov, da web. No final, a CNN mostrou uma história intitulada “Twittando o terror: como a mídia social reagiu a Mumbai”. (Comm, 2009: 22)

Em janeiro de 2009, a versão online do jornal Daily News2 falava sobre a fama repentina de Janis Krums, um cidadão americano que publicou no Twitter3 (Figura 1) uma foto do avião da US Airways que pousou no rio Hudson. Tirada momentos após o acidente, antes de a imprensa chegar ao local, a foto de Krums, postada na Web, foi vista por cerca de 40 mil internautas nas quatro horas seguintes, segundo o Daily News. O texto refere-se a Krums como “repórter amador”, dizendo que ele contribui para o “jornalis-mo cidadão”, também chamado de jornalismo participativo.

No mês seguinte outro acidente de avião, desta vez com uma aeronave da Turkish Airlines, na Holanda, teve sua primeira divulgação por meio do Twitter. A própria CNN afirmou que um usuário da rede social foi responsável por publicar a primeira foto do acidente aéreo. Foi só depois de ver a imagem no Twitter que repórteres da rede nor-

te-americana entraram em contato com oficiais holandeses para confirmar o acidente.Os três casos ilustram um processo de comunicação cada vez mais comum: indi-

víduos que, com a ajuda das tecnologias digitais e de canais disponíveis na rede mundial de computadores, capturam e disseminam globalmente as informações, no ciberespa-ço, em tempo real e sem moderadores. A tendência é que, quando os fatos têm o que conhecemos como valor-notícia4, em certo momento, também serão confirmados por autoridades locais e divulgados pela imprensa oficial – configurando um processo de comunicação pretensamente democrático, em que a mediação de jornalistas se faz pre-sente, porém, situada num contexto heterogêneo de fontes.

O processo em si não é uma novidade. Mas a emergência do Twitter – para uns, um serviço em formato de microblog, para outros, uma rede social – e de redes sociais5 como Orkut6 e Facebook7 resultou no surgimento de um fenômeno novo, ainda que tímido. Indivíduos que não têm como profissão o jornalismo e que também não têm a pretensão de fazer parte de um ambiente de webjornalismo participativo; que são mais do que simples testemunhas ou fontes, pois não precisam passar a informação para um “moderador” divulgá-la; e que se utilizam de tecnologias digitais para difundir um fato de relevância social, mesmo sem grandes apurações.

4. Os valores-notícia constituem resposta à seguinte pergunta: que acontecimentos são considerados suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícia? Esses valores variam entre: a) conteúdo: grau e nível hierárquico dos indivíduos envolvidos no acontecimento noticiável, impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional, quantidade de pessoas envolvidas, relevância quanto à evolução futura; b) disponibilidade do material e critérios relativos ao produto informativo; c) público; e d) concorrência. (Wolf, 2003).5. Redes sociais na Internet são constituídas de representações dos atores sociais (geralmente individualizadas e personalizadas) e de suas conexões (elementos que vão criar a estrutura na qual as representações formam as redes sociais (Recuero, 2009: 40).6. http://www.orkut.com.7. http://www.facebook.com.

1. O desenvolvimento da chamada web 2.0 impulsionou ainda mais as “relações horizontais”. De acordo com Primo (2006), a web 2.0 refere-se à segunda geração de serviços online e caracteriza-se por potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações, além de ampliar os espaços para a interação entre os participantes do processo, potencializando o trabalho coletivo, de troca afetiva, de produção e circulação de informações, de construção social e de conhecimento apoiada pela informática. O autor frisa que a Web 2.0 diz respeito não apenas a uma combinação de técnicas informáticas (serviços Web, linguagem Ajax, Web syndication, etc), mas também a um determinado período tecnológico, a um conjunto de novas estratégias mercadológicas e a processos de comunicação mediados pelo computador. A disponibilidade dessas condições faz surgir novas práticas em rede, como o webjornalismo participativo.2. http://www.nydailynews.com/ny_local/2009/01/15/2009-01-15_twitter_user_becomes_star_in_us_airways_.html. Acesso em 10/07/2009, 20:40:30.3. http://www.twitter.com.

Figura 1: Página do Twitter com o tópico publicado por Janis Krums, com link para a foto tirada por ele

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Como lembra Lévy (2005), a emergência da Internet e o surgimento da World Wide Web prolongaram a precedente evolução da esfera pública, introduzindo elemen-tos radicalmente novos, como a interconexão geral, a desintermediação e a comunica-ção de todos com todos (Lévy, 2005: 369). Acrescenta-se aí o desenvolvimento da web 2.0, que potencializa a comunicação horizontal, em caráter colaborativo e aberto.

Partindo dessas considerações, o presente artigo tem o objetivo de analisar este fenômeno, baseando-se em conceitos como jornalismo, webjornalismo participativo e notícia. A intenção é levantar um debate acerca deste novo personagem que passa a integrar os processos comunicacionais digitais.

A essência do jornalismo

Em 1985 José Marques de Melo escreveu que “mais de um século de pesquisa siste-mática sobre os fenômenos jornalísticos não foi suficiente para permitir uma concisão conceitual sobre esta atividade da comunicação coletiva” (Melo, 1985: 7). A dificuldade estaria no descompasso entre o avanço do conhecimento científico e as mutações do próprio campo. É o que se percebe com o avanço da tecnologia, que, inserindo-se no processo produtivo, chega ao ponto de impor dúvidas sobre a própria prática jornalís-tica, exigindo a revisão de conceitos que até então pareciam definidos, mas que agora tomam novos contornos.

Sousa (2004) é um dos estudiosos que explicita a preocupação com o novo cenário imposto pelas tecnologias da comunicação. Ele afirma que, na sua essência, o jornalis-mo corresponde à atividade de divulgação mediada, periódica, organizada e hierarqui-zada de informações com interesse para o público. No entanto, ele ressalta que “as novas formas de jornalismo on-line, de jornais a la carte, de televisão interactiva, etc. colocam em causa alguns dos pressupostos do jornalismo tradicional” (Sousa, 2004: 75).

Neste artigo, o jornalismo será tomado como uma atividade de divulgação de in-formações, com propósito social, que constroi a realidade a partir de inúmeros proces-sos de interação entre os profissionais do campo jornalístico, as fontes, outros jornalis-tas e com a própria sociedade.

O jornalista, no papel de mediador, tem a função de recolher informações, sele-cioná-las e distribuí-las para a sociedade, sempre em sintonia com os bons costumes e a boa conduta (Bucci, 2000), que são as bases da ética. “Desse modo, por sua atividade, o jornalista cria o cidadão e o interesse público” (Vaz, 2004: 220). O profissionalismo jor-nalístico não é, portanto, apenas um exercício técnico que reproduz o senso comum. O conteúdo enunciado tem o “poder” de explicar o mundo e, consequentemente, de formar opiniões e fornecer conhecimento aos cidadãos, por meio de uma representação do real.

Também são levadas em conta duas questões importantes. Primeiro, que os rela-tos veiculados na mídia são uma realidade possível, mas não única, uma vez que pode ser tomada sob diversos ângulos e de várias formas. Segundo, que o repórter, atualmen-te, já não é mais figura centralizadora na produção. Isso porque o processo rígido, de caráter industrial, vem cedendo espaço para modelos descentralizados, que envolvem outros sujeitos – os “cidadãos comuns” – tanto na coleta quanto na construção e dis-tribuição das informações. Muitas vezes, como buscaremos mostrar neste artigo, essas pessoas não têm a intenção de “fazer jornalismo”, mas acabam furando a mídia tradicio-nal e até pautando-a.

Leva-se em conta ainda que, com essa nova realidade – em que as informações fluem sem controle por uma rede de fácil acesso – o próprio conceito de valor-notícia foi ampliado. Se antes cabia ao jornalista a tarefa de escolher o que seria relevante seu público ler, rejeitando determinadas informações por questões ideológicas ou limitação de espaço/tempo, o contexto atual permite uma publicação, a priori, sem limites.

A notícia e o jornalismo móvel

As notícias constituem a matéria-prima do jornalismo contemporâneo. Elas são, segun-do Traquina (2005), estórias que podem ser contadas em várias versões, as quais ajudam a construir a realidade. Contudo, é preciso ressaltar (e isso será mais bem esclarecido adiante), que as atuais tecnologias digitais de comunicação, com ênfase para os disposi-tivos móveis, oportunizam o surgimento de novas formas de apuração das informações, modificando e agilizando todo o processo de construção das notícias. Silva (2009: 93) diz que “tornou-se comum em redes de TV e portais de notícias na Web as reportagens e coberturas com celular banda larga 3G oferecendo visibilidade à operação do jorna-lismo móvel”.

Um internauta munido de celular pode captar a imagem de um acidente e publicá-la no Twitter (como o caso de Janis Krums, que publicou a foto do avião da US Airways que pousou no rio Hudson). A partir daí, se o fato relatado possuir valor-notícia, não apenas as pessoas envolvidas no acidente, mas também ele próprio passa a ser fonte para os jornalistas. Mesmo sem intenção e sem sequer ter conhecimento das técnicas para apurar e redigir uma notícia, esse cidadão comum está fazendo jornalismo ao di-vulgar um fato atual e de interesse social.

Esta é apenas uma entre tantas evidências que mostram que o jornalismo vem passando por mudanças significativas – o que comprova que esta é uma prática so-cial variável e condicionada historicamente, como alerta Rüdiger (2003). A atualidade apresenta não apenas um novo suporte técnico – o computador –, mas também uma

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maneira diferente de produzir, difundir e receber a informação. Esse fator ficou ainda mais evidente após o estabelecimento da rede mundial de computadores (Internet), que potencializou conceitos como memória, hipertextualidade, instantaneidade, interação e hipermidialidade.

A Internet, aliada à Web 2.0, rompe com o processo comunicacional vertical8, de formato um-todos, característico do jornalismo massivo. As tecnologias digitais de comunicação potencializam a interação, as relações recíprocas, de domínio público e caráter colaborativo. Diluem-se as fronteiras de tempo e espaço geográfico, assim como as fronteiras entre emissores e receptores, resultando num espaço público virtual (o ciberespaço) onde novas relações sociais são estabelecidas e onde “veículos e profissio-nais tendem a buscar meios de aproximar, ou mesmo integrar novos recursos e atores às práticas e rotinas do campo jornalístico” (D’Andréa, 2009: 73).

Esse cenário possibilita o surgimento de experiências inovadoras, como o webjor-nalismo – que estabelece uma relação de potencialização e complementaridade em re-lação ao jornalismo tradicional, pois se baseia em recursos tecnológicos que permitem formas diferenciadas de produção, veiculação e recepção de notícias – e o webjornalis-mo participativo (Lindemann, 2008), que serão abordados no próximo item.

Webjornalismo participativo: um ato intencional

O webjornalismo é a prática jornalística em rede, viabilizada graças aos avanços tec-nológicos iniciados na década de 70, que possui características como multimidialidade ou convergência, interatividade, hipertextualidade, personalização, instantaneidade ou atualização contínua e memória (Palácios: 2003). Agregada a esse contexto, a Web 2.0 possibilita o surgimento do “webjornalismo participativo”, que remete à ideia de pro-dução e publicação de notícias na rede mundial de computadores a partir de qualquer usuário. É o que alguns autores chamam de citizen journalism, jornalismo colaborativo, comunitário, cidadão, open source9 (código aberto), peer-to-peer10, etc.

A principal característica dessa lógica de produção de notícias é a superação do

modelo comunicacional emissor-meio-mensagem-receptor – característico, em espe-cial, dos veículos massivos –, uma vez que este último torna-se um produtor de conte-údo em potencial, de modo que a fronteira entre produção e leitura não é nitidamente delimitada ou não existe (Primo e Träsel, 2006).

Com as tecnologias digitais tem-se, portanto, uma nova arquitetura social, que abre os canais de comunicação, permitindo um fluxo diferenciado de informações. Trata-se de um processo de interação em que os envolvidos são, ao mesmo tempo, pro-dutores, emissores e receptores. Em alguns casos, porém, permanece a figura do me-diador, filtrando o conteúdo produzido pelos internautas e impossibilitando a interação mútua (Primo, 2000).

Acredita-se que esse novo modelo de produção pode ir ao encontro da proposta de Gans (2004), de um “jornalismo multiperspectivo”, cujas características são: 1) reali-zação de uma cobertura que vá além das fontes oficiais, ou seja, que mostre o “pano de fundo” ou entorno dos fatos; 2) focalização de notícias mais representativas, relatando as atividades e opiniões de todos os setores e papeis da população. Por “setores”, o autor entende grupos de todas as idades, níveis escolares, etnicidade, religiões, etc. Por “pa-peis”, o que as pessoas fazem, como pais e filhos, empregados e empregadores, vende-dores e clientes, médicos e pacientes; 3) ênfase para as notícias de serviços, fornecendo informações relevantes a setores e papeis específicos, ou seja, pensar no que as pessoas consideram importante para elas mesmas; 4) fontes mais dispersas, evitando-se as de fácil acesso. As fontes devem ser selecionadas em todos os níveis da sociedade. É o que se denomina de modelo two-tier11, ou seja, notícias que representem uma variedade de perspectivas da arena simbólica.

Obviamente, diz Gans (2004), esse modelo produziria uma representação um tanto diferenciada. Isso porque os meios “tradicionais”, mais proeminentes na arena simbólica, também teriam de se tornar mais multiperspectivos. Ele idealiza o jorna-lismo multiperspectivo praticado por jornalistas, não se referindo, especificamente, ao webjornalismo participativo. Acredita-se, no entanto, que essa modalidade possa ir ao encontro de tal proposta – ainda mais se considerarmos o grande potencial das tecnolo-gias móveis, que favorecem e facilitam a participação do cidadão comum nos processos produtivos.

Portanto, mais que ferramentas ao dispor dos jornalistas, as tecnologias digitais de informação e comunicação impõem um novo cenário de trabalho a esses profissio-nais, exigindo-lhes novas habilidades para manter-se no mercado. Conforme Santaella (2003), a sociedade de distribuição piramidal começou a sofrer a concorrência de uma sociedade reticular de integração em tempo real.

8. “Comunicação vertical” seria a comunicação que separa nitidamente emissores de receptores. Pode haver interação entre eles, mas esta não se dá pelo mesmo suporte e raramente resulta em uma produção conjunta de conteúdo.9. Conforme Moura (2002), o termo open source surge aplicado ao software que algumas pessoas criam e disponibilizam gratuitamente na rede para que qualquer usuário possa manipulá-lo, e vem sendo adaptado a outras áreas, como no caso do jornalismo, o que gerou a expressão jornalismo open source. Trata-se, portanto, da união da prática jornalística com a abertura do código-fonte de softwares, ou seja, as ferramentas de publicação. De acordo com Träsel (2007), o espaço do webjornal é aberto para que os leitores possam colaborar enviando suas próprias reportagens, ou mesmo editando as reportagens de outros colaboradores. 10. Segundo Moura (2002), a expressão jornalismo peer-to-peer sugere um jornalismo que envolve a partilha de recursos e serviços pela troca entre sistemas.

11. Modelo two-tier: trata-se de um modelo que se propõe a relatar as notícias para audiências específicas e razoavelmente homogêneas. A ideia é de reavaliar e reinterpretar a notícia divulgada pelos meios “tradicionais”, direcionando-as para audiências específicas.

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Nesse aspecto, vale mencionar Langeveld (2009), que, ao refletir sobre a atual dinâ-mica de produção e circulação de informação de interesse jornalístico, alerta para o fato de que está cada vez mais dif ícil identificar o que é o “fato jornalístico”, ou onde começa e termina a sequência de fatos que deve ser reportada. Segundo ele, o fluxo ininterrupto de informações exige que as redações estejam preparadas para produzir e editar informa-ções de forma contínua, explorando as especificidades de cada meio e agregando dados publicados por diferentes fontes, inclusive aquelas mantidas pelo público.

O cidadão comum passa a exercer a função de gatekeeping12, até então designada aos jornalistas. Esse conceito teve que ser repensado, dando lugar ao que Bruns (2003) definiu como gatewatching. Segundo Primo e Träsel (2006), há um deslocamento da coleta de informação para a seleção. Esse novo jornalista, que combina funções de repórter e biblio-tecário, é o gatewatcher. Do porteiro, assinalam os autores, passa-se ao vigia.

Portanto, o webjornalismo participativo permite novas formas de produção, com potencial para enriquecer o chamado jornalismo tradicional – seja com o fornecimento de informações, seja por seu caráter fiscalizador, que tende a deixar os profissionais alertas, sempre em busca da qualidade, da completude e da verdade. Frisa-se, porém, que esse modelo de produção é alimentado por sujeitos que colaboram intencional-mente com o fornecimento de informações. Já as redes sociais como o Twitter chega-ram para ampliar ainda mais esse leque de opções, gerando outros caminhos para o processo comunicacional em meios digitais. Contudo, nem todos os internautas que postam informações no Twitter têm a intenção de fazer jornalismo. É esse o foco do presente artigo, sobre o qual nos debruçaremos a seguir.

Noticiando sem intenção

Ainda há muita discussão sobre o jornalismo participativo ser ou não jornalismo e sobre a credibilidade desse tipo de produto resultante da produção colaborativa, o que nos leva a comparar a prática e o cotidiano jornalísticos a eventuais contribuições do cida-dão comum com o que ainda se pode chamar de notícias. Como bem lembra Charau-deau (2006: 152), o simples fato de se “relatar o acontecimento tem como consequência construí-lo midiaticamente”.

Pode-se dizer que o ciberespaço é um ambiente em que “comunicadores profissio-nais”15 disputam atenção com “comunicadores eventuais” quando o assunto é notícia. Entretanto, essas pequenas participações de “testemunhas oculares” que, em questão

de minutos, disseminam uma informação factual, sem grande apuração, ainda antes da imprensa ou órgãos oficiais, podem ser encaradas de forma distinta. O que se defende aqui é a possibilidade de se estabelecer uma diferença entre os papeis do jornalismo, do webjornalismo participativo e desse terceiro conceito.

Informalmente, essa questão tem sido levantada no ciberespaço. Em seu blog so-bre cultura Web, tecnologia e mídia, o jornalista Tiago Dória14 já aponta as diferenças citadas neste artigo dizendo que, no caso da foto do avião no rio Hudson, dois pontos devem ser ressaltados: 1) Krums não enviou a foto para nenhum site de jornalismo cidadão/colaborativo/participativo. Ele simplesmente pegou o telefone, tirou a foto e enviou para a sua rede de contatos mais próxima com quem provavelmente troca mais informações no dia-a-dia – Twitter. (...) 2) O Twitter foi muito bom em hospedar os primeiros relatos, mas na hora de saber por que o avião fez esse tipo de pouso, quantas pessoas se feriram, se o piloto fez a coisa certa, se era a primeira vez que acontece esse tipo de acidente na região, o negócio foi correr para a grande mídia, que fez o que sabe fazer melhor – explicar o fato detalhado e trazer informação editada, mais aprofundada.

Fato é que a abundância de informações a que estamos submetidos faz com que o indivíduo prefira que essas informações venham para “consumo imediato”. E as tecno-logias digitais permitem que se produza e se receba de pronto toda e qualquer informa-ção. O Twitter, por exemplo, não foi criado especificamente para a produção de notícias na Web, mas trabalha com o tempo real, conceito permanentemente perseguido pelas redações online. A sugestiva premissa do “O que você está fazendo?” já implica a divul-gação de fatos presentes, instantâneos, o que fica evidente no texto de apresentação do serviço:

Iniciado como um projeto paralelo em março de 2006, o Twitter amadureceu para um serviço de mensagens rápidas em tempo real que funciona sobre múltiplas redes e dispositivos.Em países em todo o mundo, pessoas seguem as fontes mais relevantes para elas e acessam a informação via Twitter no momento em que acontece – de plantões de notícias mundiais a atualizações de amigos. (http://www.twitter.com/about#about)

Além disso, antes de uma era de virtualização, vive-se uma era em que predomina o consumo de imagens. A sociedade é marcada pela força da imagem, pelo poder da mídia, um ambiente em que precisamos constantemente consumir e ser consumidos. Como bem definiu um dia Guy Debord (1997), ainda no contexto dos anos 1960, a “sociedade do espetáculo” é o ponto máximo da cultura de massa somado ao excesso de visibilidade. A Internet e os dispositivos móveis só potencializaram o processo, dan-12. O gatekeeping é exercido pelo chamado gatekeeper – o “porteiro” da redação, ou seja, aquele jornalista

responsável pela filtragem das notícias. É ele quem vai definir, de acordo com critérios editorias (como os valores-notícia, por exemplo), que fatos serão publicados e quais serão descartados.13. Toma-se a palavra “comunicador” no sentido de especialista em comunicação, aquele que comunica, que transmite, que desempenha a função de emissor num processo de comunicação. Para fins deste artigo,

o profissional é, basicamente, o jornalista, com a prática e o cotidiano jornalísticos. O eventual é o que busca exercer, ocasionalmente, o papel desempenhado pelo profissional.14. http://www.tiagodoria.ig.com.br/2009/01/16/a-incrivel-foto-do-twitter/. Acesso em 20/07/2010, 21:24:20.

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do velocidade, alcance global e dinamismo. Assim, nossas experiências cotidianas são moldadas pela espetacularização da mídia, não importa a forma ou a fonte, afinal “o que aparece é bom, o que é bom aparece” (Debord, 1997: 17). Como não há mais distinção entre produtor e consumidor no ciberespaço, veículos oficiais e público em geral pro-duzem para que indivíduos conectados possam consumir, e quem consome também produz para que outro consuma.

Para se ter uma ideia, segundo Bradshaw apud Recuero, existem muitos casos em que as redes sociais estabelecidas na Internet atuam de forma determinante como fontes de informação. Um desses casos é o do blogueiro Salam Pax com as notícias de Bagdá durante a invasão americana do Iraque em 2006.

No caso, o objetivo do blog não era construir um repositório de informações de Bagdá, mas simplesmente, contar o dia a dia do autor e auxiliar em sua busca por Raed. O fato do blog tornar-se uma fonte de informações deu-se, justamente, pela falta delas e pela ação das redes sociais comentando o mesmo. Com o passar do tempo, o blogueiro passou também a preocupar-se com a informação no blog por causa do processo. (Recuero, 2009: 46)

Mas nesse cenário, há ainda a questão sobre os motivos que levam um indivíduo a desempenhar esse papel de comunicador eventual. Existiria aí a necessidade de apenas informar, mostrar-se como uma fonte confiável ou aparecer como alguém relevante à sociedade por prestar um serviço? Ou seria apenas pela fama repentina? Ainda nas palavras de Debord (1997:14), o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”, produzindo, dessa forma, modos de agir, pensar, sentir ou consumir.

O que se tem, então, são indivíduos espalhados pelo mundo que se tornam fonte de informação pelo simples fato de utilizarem a Internet, associada a outras tecnologias digitais, para disseminar uma informação factual com rapidez e sem muitos detalhes. São pessoas que contam com outros fatores, de forte presença na sociedade atual, para que sua mensagem seja repassada. Afinal, um comunicador eventual, mesmo não tendo a intenção de tornar-se um jornalista profissional, almeja ver seu conteúdo dissemina-do. E dentro da questão principal deste artigo, o que melhor explica essa disseminação é a forma como se reage a um rumor – um tipo de informação não confirmada que se propaga em rede e circula com a intenção de ser tomada como verdadeira (Reule, 2008).

De maneira geral, os conceitos para rumor elaborados por diferentes estudiosos seguem uma mesma linha de raciocínio. DiFonzo e Bordia (2007: 13), por exemplo, descrevem os rumores como “declarações de informação não verificada e instrumen-talmente relevante em circulação”15. Entretanto, Renard (2006) ressalta que a palavra

rumor tem, essencialmente, dois sentidos possíveis e diferentes, sendo o primeiro o sentido de informação não-verificada, um ruído que corre, que pode circular pela pala-vra, imprensa ou Internet. Nesse nível, a mensagem pode ou não ser verdadeira. Caso seja comprovada a veracidade, passa a ser uma informação válida. E é nesse sentido que as mensagens usadas como exemplo para a elaboração deste artigo são entendidas e repassadas.

Quem são os fatodifusores digitais?

A partir de uma visão psicológica sobre o assunto, DiFonzo e Bordia (2007) apon-tam para o fato de que a reputação de um indivíduo como uma fonte de informação confiável é vital para sua aceitação em redes sociais. E, segundo os autores, “uma manei-ra de garantir tal reputação é partilhar informação que seja precisa e crível”16 (DiFonzo e Bordia, 2007: 76). A essa afirmação podemos acrescentar as ideias de Charaudeau, ao defender que

O crédito que se pode dar a uma informação depende tanto da posição social do informador, do papel que ele desempenha na situação de troca, de sua representatividade para com o grupo de que é porta-voz, quanto do grau de engajamento que manifesta com relação à informação transmitida (Charaudeau, 2006: 52).

Desse modo, surgem indivíduos que ganham notoriedade no ciberespaço não por fazerem parte de um veículo de comunicação e também não por se colocarem proposi-talmente num ambiente de webjornalismo participativo. Não podem ser considerados apenas fontes ou mesmo testemunhas, porque não serviram somente para passar infor-mações a um interlocutor ou veículo que vai publicá-las. Como já previa Rüdiger (2002: 155), “as próprias pessoas serão fontes de informação para as outras, à medida que se generalizarem tecnologias mais portáteis de comunicação”.

Então, como denominar esse personagem que não é jornalista (ou comunicador profissional) nem fonte, não tem a intenção de apurar ou elaborar uma matéria, mesmo que seja para um espaço de webjornalismo participativo, não é apenas testemunha de um fato, pois dissemina ele mesmo a informação, e recorre a uma rede social com carac-terísticas tão específicas quanto o Twitter? Que papel tem esse indivíduo nesse processo de interação e na esfera da comunicação?

Um primeiro olhar sobre esse personagem, que divulga rapidamente um aconte-cimento, com valor-notícia, porém sem a necessidade de um mediador para isso e sem

15. Do original: “ (...) unverified and instrumentally relevant information statements in circulation.”16. Do original: “One way to ensure such a reputation is to share information that is accurate and believable.”

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aparato tecnológico para facilitar o seu trabalho, os profissionais da mídia ainda têm o desafio de lidar com novos sujeitos que, graças a essas ferramentas, têm autonomia para produzir e publicar seus próprios conteúdos. Cabe então às empresas de mídia definir novas estratégias para acompanhar todas essas novidades.

A proposta deste artigo não é trazer resultados ou apresentar soluções para o tema em questão, mas, sim, abrir o debate (já em voga entre outros pesquisadores) acerca desse novo cenário. Afinal,

A expansão da mobilidade e das tecnologias baseadas em localização tem invertido os processos estabelecidos e consolidados do jornalismo e das pesquisas realizadas ao longo do século XX. Essas possivelmente necessitam ser repensadas ou adaptadas para uma aplicação de forma objetiva aos novos fenômenos vinculados à comunicação móvel. (Silva, 2009: 94)

Devemos considerar que a imersão crescente dos dispositivos móveis, da Web 2.0, das redes sociais e dos microblogs (só para citar alguns exemplos) na sociedade exige reflexões acerca da prática jornalística e do papel desses sujeitos que, cada vez mais, têm participado da produção de notícias – com ou sem intenção.

A arquitetura social em rede abre os canais de comunicação, permitindo um flu-xo diferenciado de informações e de produção, baseado na Web 2.0 e nos processos de interação. Contudo, quando se fala em webjornalismo participativo, há o envolvimento de pessoas interessadas propositadamente em “fazer jornalismo”. Já redes sociais como o Twitter são abastecidas por internautas que não têm a intenção de produzir material jor-nalístico, mas que muitas vezes acabam furando e posteriormente pautando os veículos.

A importância do papel do fatodifusor digital fica evidente justamente quando as informações propagadas globalmente por esse indivíduo atraem o interesse da im-prensa e de órgãos oficiais, que passam a apurar e investigar os acontecimentos comu-nicados. Se a mídia tradicional costumava esperar pelo material enviado pelas agências, agora tem de ficar atenta também a outros canais de disseminação da informação, que, não raras vezes, furam até mesmo as agências.

Portanto, se as notícias são (re)construções de determinados acontecimentos da realidade, resultantes de processos que envolvem fatores como a relação dos jornalistas com as fontes, questões técnicas, ideológicas e econômicas, as rotinas produtivas e os critérios de noticiabilidade (Lindemann, 2008), então é possível afirmar que, mesmo sem intenção, os fatodifusores digitais estão cumprindo um papel social, contribuindo para a disseminação do conhecimento, para a formação da opinião pública e para a ela-boração de uma visão de mundo dos cidadãos.

Os exemplos abordados neste trabalho deixam claro que as redes sociais podem colaborar com a prática jornalística, pautando os veículos, mas é relevante destacar que

a intenção proposta pelo jornalismo participativo, leva-nos a interpretá-lo como um propagador de informações factuais, o que aqui vamos chamar de “fatodifusor”17. O termo difere o indivíduo do jornalista profissional, da fonte, da testemunha e do cola-borador, jornalista-cidadão. Entretanto, o conceito pode ser vago, pois não deixa claro o meio utilizado para essa disseminação, o que é de suma importância para efeitos deste artigo. Portanto, denominamos esse novo personagem “fatodifusor digital”, já que ele dissemina a informação de relevância social por meios digitais, permeando diversos ambientes no ciberespaço.

A relevância da ação desse sujeito quanto se trata de jornalismo está no fato de que ele pode alimentar as edições de jornais, webjornais ou telejornais com notícias em primeira mão. Afinal, o tempo que se leva para deslocar uma equipe até o local do acontecimento muitas vezes impede os jornalistas de flagrar o instante exato em que o fato se deu. Evidentemente, esse processo só é possível graças aos dispositivos móveis, que permitem a captação e distribuição de informações (especialmente imagens) em um curto período de tempo.

Considerações finais

O telégrafo no século XIX, o telefone e o computador no século XX e as tecnologias móveis no século XXI. Eis algumas das ferramentas que transformaram os modos de fazer jornalismo no decorrer do tempo. Atualmente, vive-se o que Jenkins (2008: 27) denomina de “cultura da convergência”, em que velhas e novas mídias colidem, mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, em que o poder do produtor de mídia e do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis.

Para o autor, o conceito de convergência é antigo, mas vem assumindo novos signi-ficados. Enquanto o paradigma da revolução digital presumia que as novas mídias subs-tituiriam as antigas, o paradigma emergente evidencia que novas e antigas mídias estão interagindo de forma cada vez mais complexa. Para Jesse Walker, editor da revista Reason,

Os novos meios não estão substituindo os velhos; estão transformando-os. Devagar, mas de modo perceptível, a velha mídia está se tornando mais rápida, mais transparente, mais interativa – não porque quer, mas porque precisa. A concorrência está apressando o ciclo da notícia, quer se queira acelerá-lo ou não (apud Jenkins, 2008: 278)

Neste cenário, afirma Jenkins (2008), “convergência” é uma palavra que define não apenas as transformações tecnológicas, mas também mercadológicas, sociais e cultu-rais. No jornalismo, ficam evidentes muitas dessas mudanças. Além de terem todo o

17. Entre os termos sinônimos para o ato de espalhar, citados ao longo do artigo (difundir, propagar, disseminar), “difusor” pareceu o substantivo referente com melhor sonoridade.

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SOUSA, J. P. Elementos de teoria e pesquisa da comunicação e da mídia. Florianó-

o trabalho efetivo de checagem de informações, de busca por detalhes e aprofunda-mento acerca dos motivos e consequências dos fatos continua sendo executado por comunicadores profissionais.

Ressalta-se que cada um desempenha seu papel dentro desses processos comu-nicacionais, em diferentes etapas e esferas. É bem possível que, em pouco tempo, seja preciso rever alguns conceitos ou criar subgrupos relacionando novas funções na mídia. É certo que veículos e profissionais de comunicação precisam se adaptar (como já o fazem há mais de uma década) às tecnologias e dispositivos que surgem numa veloci-dade espantosa. Entretanto, o esforço para reconhecer e estudar algumas mudanças e evoluções é vital para que a “máquina” da comunicação funcione harmoniosamente.

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Dossiê: A comunicação e a política na era digital

Capital, habitus e as redes no ciberespaço1

Liráucio Girardi Júnior Doutor em Sociologia pela FFLCH-USP, professor e pesquisador ligado à Faculdade Cásper Líbero e Universidade Municipal de S. Caetano do Sul.

A partir de uma Economia das trocas simbólicas, proposta por Bourdieu, apresento uma breve aná-lise dos modos de abordagem do ciberespaço e das relações estabelecidas entre o mundo on-line e off-line. Por meio de certas categorias-chave como capital social, capital simbólico e habitus, procuroidentificar os problemas relacionados à construção do self no mundo de mediações sociotécnicas contemporâneas.

Palavras-chave: Bourdieu, ciberespaço, sociabilidade, tipos de capitais, habitus

Capital, habitus and networks in cy-berspace From an economy of symbolic exchanges,

proposed by Bourdieu, I present a brief analysis of ways to

approach cyberspace and relations established between the

online and offline world. Through certain key categories such

as social capital, symbolic capital and habitus, I try identify

problems related to the construction of self in the world con-

temporary socio-technical mediations. Keywords: Soapop-

era; Bourdieu, cyberspace, sociability, capital types, habitus

Capital, habitus y las redes sociales en el ciberespacio A partir de una Economía de las tro-

cas simbólicas, propuesta por Bourdieu, presento una breve

análisis de los modos de abordaje de lo ciberespacio y de las

relaciones establecidas entre el mundo online y offline. Por

medio de ciertas categorías-chave como el capital social, ca-

pital simbólico y habitus, procuro identificar los problemas

relacionados a la construcción do self en el mundo de media-

ciones socio técnicas contemporáneas. Palabras clave: Bou-

rdieu, el ciberespacio, sociabilidad, tipos del capital, habitus.

1. Versão ligeiramente modificada do artigo apresentado no Grupo “Redes Sociais, Comunidades Virtuais e Sociabilidade” do IV Simpósio Nacional da ABCiber.

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 115

Liráucio Girardi Júnior

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Capital, habitus e as redes no ciberespaço

Capital, habitus e as redes no ciberespaço

As trocas simbólicas produzidas em um novo ambiente sociotécnico, como o ciberes-paço, geraram o que se poderia chamar de um novo espaço virtual de coalizões. Nes-se novo espaço, torna-se possível a construção de uma série de complexas redes de interagentes em torno do acesso à produção, apropriação e distribuição universal de recursos (bens simbólicos) que, até há pouco tempo, eram mais ou menos escassos.

Se esse fato, por si só, já seria o suficiente para destacar o potencial revolucioná-rio da rede, é preciso observar, também, que a passagem do reino da escassez para o reino da abundância simbólica coloca em questão alguns novos problemas. Gostaria de destacar quatro questões, entre outras.

Uma delas está relacionada às diversas modalidades de recursos disponíveis para acesso f ísico à rede (acesso a diferentes tipos de gadgets, provedores, velocidade de conexão etc.) e ao desenvolvimento de habilidades adequadas para se apropriar desse acesso. Outra questão está relacionada a um melhor entendimento das novas modalidades de escassez no que diz respeito à construção de capital social e capital simbólico nas redes - capitais extremamente valorizados que não são “distribuídos” ou “adquiridos” de modo simétrico por todos. Finalmente, é possível identificar, tam-bém, um problema relacionado à nossa capacidade cognitiva para lidar com o volume gigantesco de informações disponível nos meios digitais e à nossa capacidade para compreender a lógica de seus fluxos (atividade que combinaria a engenharia social e a engenharia de computação no desenvolvimento de algoritmos específicos para os mais diversos tipos de aplicativos e ro-bots).

No entanto, a mais sensível questão que se anuncia desde o final do século XIX – e que se acentua de modo particular em pleno século XXI -, é a delicada relação que passa a existir entre a experiência simbólica construída em um mundo f ísico de copresença e a experiência simbólica construída em um mundo de representações mediadas, sociotecnicamente, por meios analógicos ou digitais. E é, justamente, a par-tir dela que se desenvolve um tema clássico da modernidade: as novas condições his-tóricas (materiais e simbólicas) em meio às quais se produz a subjetividade ou o self .

Essa questão clássica pode ser identificada no modo pelo qual as teorias pós-mo-dernas reelaboraram diversas análises da chamada Escola de Chicago - e do papel que a comunicação desempenhava nela. Para Callero (2003), o interacionismo simbólico tem servido cada vez mais como referência para a produção de uma teoria pós-mo-derna da experiência contemporânea, ao conferir centralidade à linguagem e à comu-nicação na análise do processo de construção social da realidade. No entanto, o pes-quisador citado observa que a compreensão do self no mundo pós-moderno depende, também, de análises que envolvam as relações de poder e um melhor entendimento

da função que a reflexividade2 tem desempenhado nessa experiência (Giddens, 1991, 2002; Beck, Giddens, Lash, 1997).

Nas discussões sobre a unicidade ou multiplicidade das experiências que mar-cam o processo de construção da identidade, o que se constata é que a construção do self parece variar no decorrer da vida e parece estar bem longe de ser completamente unificadora. Somos um e somos muitos, a partir das estórias e narrativas por meio das quais nos construímos2 . Por isso, pode-se dizer que as narrativas são fundamen-tais para que os agentes sociais sejam capazes de se localizar em certas experiências pessoais e coletivas, ao mesmo tempo em que evitam possíveis fragmentações desar-ticuladoras do self.

No entanto, valendo-se de algumas análises de Schwalbe, Callero (2003) observa que o self é vivenciado como uma experiência f ísica e cognitiva de um ser no mundo. Esse mesmo vínculo é identificado por Bourdieu (1998, 2000, 2001, 2007) a partir do seu conceito de habitus. Para este sociólogo, o habitus desenvolve-se em seus aspec-tos f ísicos e cognitivos como disposições ou esquemas práticos de visão e divisão do mundo, percepção e apreciação de si mesmo e dos outros – um esquema prático de localização social dos agentes sociais e de suas práticas. Ele é vivenciado, integral-mente, como uma héxis, uma disposição corporal diante de si mesmo e dos outros. As experiências cognitivas estão ligadas a certos tipos de experiências corporais e sen-soriais importantes para que os agentes sociais possam se localizar e agir no mundo. Deste modo:

(...) os agentes sociais são dotados de habitus inscritos nos corpos pelas experiências passadas: tais sistemas de esquemas de percepção, apreciação e ação permitem tanto operar atos de conhecimento prático, fundados no mapeamento e no reconhecimento de estímulos condicionais e convencionais a que os agentes estão dispostos a reagir, como também engendrar, sem posição explícita de finalidade nem cálculo racional de meios, estratégias adaptadas e incessantemente renovadas, situadas porém nos limites das constrições estruturais de que são o produto e que as definem. (Bourdieu, 2001: 169)

Em algum momento, os estudos avançados sobre as formas de inteligência ar-tificial ou sobre o significado social do uso dos algoritmos nas redes, etc. serão obri-gados a lidar, seriamente, com essa questão. Ou seja, serão obrigados a identificar o que está em jogo nos complexos problemas que envolvem a capacidade humana de construção, identificação e uso padrões sociais e simbólicos.

Quando Johnson (2003) elogia os sistemas emergentes, a partir da criação de algoritmos capazes de gerar padrões de reconhecimento das trocas simbólicas pro-

2. “Sobre a reflexividade ver: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. (orgs). Modernização reflexiva. São Paulo: Editora da Unesp,1997; GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.”

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Capital, habitus e as redes no ciberespaço Liráucio Girardi Júnior

duzidas em rede – padrões do tipo “bottom-up” (de baixo para cima) -, é preciso observar que esses sistemas terão enorme dificuldade para se aproximarem da função produzida pelo habitus no processo de socialização dos seres humanos.

Ao conferir um enorme destaque à descoberta de Holand sobre a existência de uma espécie de algoritmo genético nos processos de seleção natural, Johnson aceita a transferência de um campo semântico das ciências da computação para o campo se-mântico das ciências naturais. Concomitantemente, transfere essa mesma lógica para o estudo das trocas simbólicas – objeto das ciências humanas.

O autor deste ensaio não tem condições de avaliar todas as vantagens e os proble-mas causados por essa importação conceitual ou metafórica. No entanto, em certo as-pecto, ele se torna bastante arriscado. O risco que se corre é o de se produzir uma espécie de “conversão” equivocada, um deslocamento - sem mediações - de análises biológicas ou computacionais para o mundo social. Ou seja, ignora-se completamente o significado que a experiência simbólica (a Cultura) adquire nas sociedades humanas.

De minha parte, daria início a essa discussão com uma questão muito específi-ca: seria possível o desenvolvimento de uma espécie de “algoritmo” das práticas sociais (Johnson, 2003) que simulasse as experiências produzidas pelo habitus (Bourdieu)? O senso prático do mundo, que caracteriza o habitus, pode ser traduzido no senso lógico do modelo matemático?

Lanier (2010), por exemplo, é um dos pesquisadores que preferem criticar as orientações desse tipo no mundo da computação. Reduzir o “senso prático” humano à lógica de um programa obriga os pesquisadores a refletir justamente sobre a pró-pria definição daquilo que qualificam como “humano”. Bougnoux (1994), seguindo a mesma lógica, observou que as máquinas são muito interessantes para resolver pro-blemas, mas bastante limitadas para formulá-los ou reconfigurá-los.

O habitus, que é para os seres humanos uma espécie de organizador de um senso prático do mundo, consegue orientar razoavelmente os agentes sociais em sua vida cotidiana sem que tenha uma “racionalidade” como guia. Sendo assim, a lógi-ca da prática, explorada por Bourdieu (2000), que se “incorpora” nesses esquemas e padrões humanos, não se orienta por uma “lógica da lógica” como aquela que é cons-truída pelos modelos (particularmente, os modelos matemáticos ou inspirados neles). Essa condição humana permite que os agentes sociais sejam capazes não apenas de reconhecer padrões, mas de estabelecer uma relação de jogo com eles. Os padrões humanos são esquemas de reconhecimento, apropriação e invenção, incorporados pela nossa experiência passada no mundo com o qual interagimos. É o que destacam Gebaur e Wolf (2004) no que diz respeito ao significado da mimese na experiência social humana. Não se trata de inviabilizar a discussão em torno da busca de um “algoritmo” da cultura, desde que se tenha cuidado com as mediações necessárias a

serem usadas no uso da metáfora. E isso é fundamental, particularmente, no que diz respeito ao desenvolvimento de uma teoria da ação humana.

O Habitus e o Self

Retornando à argumentação principal sobre a questão do self, pode-se verificar que as novas tecnologias de informação e comunicação (analógicas ou digitais) possibili-taram uma reconfiguração da experiência social, produzindo diversos ambientes de interação – digitais e dialógicos - que não necessitam mais da presença f ísica comum, isto é, da copresença f ísica.

Nesse sentido, alguns pesquisadores acreditam que as novas tecnologias de in-formação e comunicação criaram ambientes de interação em que o corpo poderia ser separado do self, abrindo espaço a uma série de experiências emocionais, cognitivas e sensoriais jamais vistas. Outras vezes, esses pesquisadores acentuam que a possi-bilidade de simulação de um corpo desejado ou imaginado interfere diretamente na “definição de situação” virtual em meio à qual os agentes sociais se encontram e se reconhecem.

No entanto, essas posturas enfrentam severas críticas:Na visão de Turkle, o eu se torna um espécie de plastilina psíquica de total flexibilidade. O que essa visão falseia é a enorme carga de modelação e formação psicológica que é imposta a um indivíduo por sua criação, sua sociedade e seus genes. Essa modelação, que ocorre em grande parte quando somos muito jovens, não pode em geral ser destruída ou rearranjada senão mediante árduo e enorme trabalho psicológico. (...) Brincar de ser um esquilóide ou um Klingon, seja qual for seu valor genuíno, simplesmente não é uma experiência de mudança de identidade. (Wertheim, 2001: 182)

Sobre os mitos da construção do self no ciberespaço, Wertheim (2001) obser-va que ele parece adequar-se a certo espírito universalista do cristianismo, poten-cialmente aberto aos pobres e ricos, desenvolvidos e em desenvolvimento, homens e mulheres, mas não faz qualquer consideração sobre as exigências cognitivas, éticas e espirituais necessárias para ter acesso a esse mundo. Um dos poucos esforços neces-sários para o ingresso nessa nova ordem (que já excluiria um número considerável de pessoas) seria o de pagar a taxa de ingresso e acesso à tecnologia e à rede.

Na crítica a essas posições, Sterne (1999) destaca a importância dos Estudos Culturais no enfrentamento de certas abordagens mecânicas e lineares sobre o cibe-respaço, que relembram posturas milenaristas ou que o tratam como uma espécie de container, a exemplo de um paraíso cibernético.

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O que interessa aos Estudos Culturais não é apenas o que os textos significam para seus participantes, mas quais são as condições nas quais os significados podem ser construídos e compartilhados. Para isso, é necessário observar as dimensões polí-ticas presentes na vida social e cultural, o que significa observar as relações complexas entre pessoas, meios sociotécnicos, os lugares “ocupados” pelos agentes nessas rela-ções, seus rituais e a sua possível institucionalização. A interconexão entre o mundo on-line e o mundo off-line para o entendimento das trocas simbólicas no ciberespaço dependem, para Sterne, de uma teoria da articulação entre o contexto e o texto construído nas múltiplas formas de interação mediada produzidas nesses novos ambientes.

Do modo como são feitas as avaliações do mundo on-line, o novo espaço de cria-ção e fruição virtual é apresentado, então, como uma espécie de panaceia sócio-técnica-simbólica para os males da comunicação. Sem dúvida, no ciberespaço, os interagentes podem estar juntos sem que certas características estéticas, étnicas, de limitação f ísi-ca ou de condição social (em alguns casos) possam ser um fator de desqualificação ou impedimento antecipado para as trocas simbólicas, mas isso está um pouco longe da fartura de relacionamentos, conhecimentos, sensações, imagens, arquivos etc. que se associa ao ciberespaço.

O que Wertheim (2001) procura destacar em suas análises é que o significado das trocas simbólicas em rede não pode ser creditado, simplesmente, ao surgimento ou disponibilidade de uma tecnologia, mas ao seu engendramento a interesses e dese-jos intensos, que são colocados em ação, de alguma forma, por algum tipo de domínio que os agentes sociais adquirem, assimetricamente, com relação a essas tecnologias.

Para mostrar como a construção social do self não se trata apenas de uma expe-riência cognitiva, Callero (2003) destaca as reflexões sobre o processo de subjetiviza-ção que marcam os estudos de Michel Foucault:

For Foucault, the self is the direct consequence of power and can only be apprehended in terms of historically specific systems of discourse. So-called regimes of power do not simply control a bounded, rational subject, but rather they bring the self into existence by imposing disciplinary practices on the body. Through the ‘technologies’ of surveillance, measurement, assessment, and classification of the body, technocrats, specialists, therapists, physicians, teachers, and officers serve as vehicles of power in diverse institutional settings (prisons, schools, hospitals, social service agencies). (Callero, 2003: 117)

O destaque conferido a Foucault nessa passagem – sobre uma questão que atra-vessa suas obras (Foucault, 1979, 1986, 1987, 2005) - ressalta que é preciso integrar os processos de subjetivação no mundo contemporâneo aos dispositivos e agencia-mentos sociotécnicos. Com isso, o que se procura é esboçar, de algum modo, é uma

Liráucio Girardi JúniorCapital, habitus e as redes no ciberespaço

genealogia das linhas de força que anunciam as formas históricas das possibilidades e das formas de controle da experiência, dos discursos e da intersubjetividade.

Kendall (1999) chama atenção para um tipo de discurso sobre o ciberespaço que pretende se desfazer, de um modo um tanto apressado, dos limites impostos pela presença do corpo f ísico. Esse discurso parece reduzir sensivelmente a complexidade das experiências no espaço virtual. Assim:

Descriptions of cyberspace as a separate reality depict participants’bodies as left behind tediously typing, while their personas cavort in cybespace. This fails to capture the complexity and diversity of relationships between on-line and off- line experiences. The degree of immersion in on-line ‘spaces’ varies considerably, depending on myriad factors, including type of forum and participant interest. (Kendall, 1999: 61)

Muitos consideram a experiência com o ciberespaço como a possibilidade de vivência de um self múltiplo. Mas, como observa a pesquisadora, apesar de todas as possibilidades de fratura e multiplicidade disponibilizadas pelo ciberespaço, o que se vê é ainda a sensação de que os agentes se identificam como portadores de um self mais ou menos contínuo e integrado.

Com certeza, a construção de si mesmo pode variar no decorrer da vida. O mundo contemporâneo tem levado os agentes sociais a experimentar situações com-plexas com as quais procuram dar sentido às suas experiências, rejeitando-as, incor-porando-as, reelaborando-as a partir de imagens, objetos, situações que vivenciam ou fruem. Além disso, o fato de se desvincular o corpo da ação discursiva no ciberespaço não impede que essas ações discursivas, de um modo ou de outro, reproduzam algu-mas marcas de identificação.

Os fóruns virtuais, muitas vezes, podem reproduzir um ambiente de dominação masculina. A presença feminina envolve, quase sempre, lutas por reconhecimento. Na maioria das vezes, as mulheres precisam desenvolver estratégias para se movi-mentar nesses ambientes. Elas negociam seus discursos a partir de ou contra um pa-drão de interação masculina que gira, muitas vezes, em torno de referências sexuais, recursos de sedução ou insultos ritualizados.

O mesmo pode ser dito das diferenças raciais ou étnicas e a sua representação indireta no ciberespaço. Embora os “protocolos”, a “etiqueta” de comunicação virtual tendam a diminuir bastante a influência da identificação “racial” para que a conver-sa se inicie, não deixa de ser importante observar que, muitas vezes, determinados grupos tornam-se capazes de reconhecer o que chamam de “conversa de branco”. A composição dos fóruns exige, então, um complexo processo de negociação, mesmo que discursiva:

On-line anonymity does not represent an absence of identity, providing instead a set

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 121120 Revista Communicare

of assumed identity facts. Anonymous participants are assumed to be white and male until proven. But in any case, on-line forums do not provide contextless spaces free from expectations about identity or from challenges to identity claims. (Kendall, 1999, p. 66)

O que se pode observar é que existem vários contextos sociais que interligam experiências on-line e off-line. A dinâmica social nos fóruns do ciberespaço depende do tempo de familiarização com a tecnologia, do modo de interação desenvolvido em seus fóruns e dos desejos e motivações de seus participantes. Mas, no fundo, todos que estão ali sabem, de algum modo, que ninguém vive no ciberespaço.

A questão é entender como os recursos e as performances construídas nos ambien-tes on-line são utilizados como estratégias de negociação e conversão de capitais (cultu-rais, econômicos, sociais e simbólicos) pré-existentes no mundo off-line ou vice-versa. Sterne (1999) chama atenção justamente para o fato de que o uso da internet é parte do tecido social do cotidiano dos internautas e que seu uso social pressupõe sua inte-gração ao modo de vida e às rotinas e exigências do mundo off-line.

O mesmo pode ser encontrado no artigo de Golder, Wikinson e Huberman (2007), intitulado “Rhythms of social interaction: messaging within a massive online network”, em que os autores estudam os usos do Facebook, valendo-se de recursos de medição em larga escala dessas interações em busca de alguns padrões e regularidades. O acesso de universitários ao Facebook assume importantes padrões que podem variar durante a semana e durante o próprio dia. A preocupação dos pesquisadores era entender o porquê, com quem e quando os estudantes faziam uso das plataformas de comunicação eletrônica. No desenvolvimento de suas análises, os pesquisadores mostram como é dif ícil responder à questão: O que é “a” Internet? .

Estamos diante de um vasto grupo de definições de “coisas e processos” . E isso tem consequências na própria metodologia utilizada para os estudos da rede. Do ponto de vista metodológico, a etnografia do ciberespaço tem se revelado grosseira demais. No que diz respeito ao pouco tempo de observação das redes sociais, Kendall observa que, com isso, perde-se muito no entendimento do modo como múltiplos pontos de interação são criados, mantidos e recriados entre o mundo on-line e off-line. E conclui:

Finally, using participant observation to take account of various social contexts of on-line interaction can high light the politics of identity. Participants come to on-line forums from different positions of power within society, which affects both their own actions on-line and their interpretations of others’actions. (Kendall, 1999: 69)

Como já foi visto, Sterne (1999) chama atenção justamente para o fato de que o uso social da rede pressupõe sua integração ao modo de vida e às rotinas, aos problemas e às exigências do mundo off-line. Do mesmo modo, pode interferir nele. Essas intera-ções podem variar durante a semana e mesmo durante o próprio dia, de acordo com os

ritmos da vida cotidiana familiar, escolar e profissional, além do modo pelo qual essas práticas de relacionamento estão interconectadas a esses ambientes. Podem variar, ain-da, segundo a conjuntura.

Entender os usos sociais do ciberespaço a partir dos ritmos da vida cotidiana re-toma a interconexão entre o mundo off-line e on-line e permite pensar, por exemplo, a complexidade da produção de novos ambientes que possam integrar a experiência da privatização móvel centrada no lar (Williams, 1979) aos padrões de conectividade, mobilidade e controle das redes (Lemos, 2004).

Os capitais e as trocas simbólicas em rede

Na análise das trocas simbólicas em rede é muito comum encontrar entre os pesqui-sadores a referência à importância do capital social na estruturação (concentração e hierarquização) dos nós que a compõem. Embora essa discussão já tenha sido desen-volvida por Coleman, Putnam e outros (Matos, 2009), gostaria de explorar a ideia de que uma Economia das Trocas Simbólicas, desenvolvida por Bourdieu, seria fun-damental para a identificação das estruturações produzidas pelos interagentes nesses novos espaços (sociotécnicos).

Cada vez mais, nas análises de rede, fala-se em capital humano, social, tecnoló-gico, comunicacional, mas não se explicita, com maior clareza, o porquê de se fazer uso da noção de “capital” e nem o modo pelo qual esses capitais tornam-se importantes para a “localização” dos agentes no espaço social, no espaço de estilos de vida, ou mesmo, no espaço de fluxos (Castells, 2003) formado por redes dos mais variados tipos.

É preciso estar atento para o fato de que valer-se da noção de “capital” pressupõe ajustar-se a um campo semântico estritamente vinculado a uma economia das trocas simbólicas que, para ser coerente, deveria abarcar a noção de “lucro”, “mercado”, “taxa de conversão”, “desvalorização” etc. É, justamente, esse vínculo a um campo semânti-co muito particular (categorias) que confere uma razoável coerência às análises bour-dieusianas sobre as trocas simbólicas (Girardi Jr, 2007).

Para Bourdieu, a “localização” das redes de relações entre os agentes no espaço social indica possibilidades de experiências cognitivas, de sociabilidade e de acesso a recursos de um modo diferenciado. As ciências sociais e da comunicação devem lidar com o trabalho de identificação das estruturas de diferenças e os princípios gera-dores dessas diferenças, produzidas nesses novos espaços. Embora a rede tenha pos-sibilitado avanços e modificações impressionantes na relação escassez/abundância no que diz respeito ao acesso e à produção de bens simbólicos, é preciso entender que novas modalidades de recursos escassos e distintivos podem aparecer.

Liráucio Girardi JúniorCapital, habitus e as redes no ciberespaço

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 123122 Revista Communicare

Da mesma forma que a língua não é um tesouro universal capaz de produzir, por si só, um comunismo linguístico, a rede e sua estrutura distribuída não é capaz de garantir, por si só, o comunismo cibernético.

Apenas para lembrar alguns aspectos das análises de Bourdieu sobre os proces-sos de produção da “distinção” social, poderia ser destacada aqui a complexa combi-nação entre capital econômico e o capital cultural, apropriados pelos agentes sociais, e a sua relação com os gostos e os estilos de vida. As diversas combinações entre esses capitais criam certas condições de distribuição assimétrica dos agentes no espaço. A partir dela, torna-se possível esboçar determinados “mapas” capazes de identifi-car “regiões” ou redes de interação (mais ou menos hierarquizadas) que qualificam socialmente esse espaço. Transversalmente, aos capitais econômicos e culturais, já indicados, os agentes sociais são capazes de produzir capitais simbólicos e sociais, indispensáveis para a formação de suas redes de relações sociais.

O capital social pode ser definido como:(...) conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis. (...) O volume do capital social que um agente individual possui depende então da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do capital (econômico, cultural e simbólico) que é posse exclusiva de cada um daqueles a quem está ligado. (Bourdieu, 1998: 67)

Assim, a obtenção de certos “lucros” sociais que advêm das relações construídas em rede (nem sempre de maneira consciente ou instrumental) constitui a base das regras de solidariedade e reciprocidade que mantém essas mesmas relações. Além disso, o capital social não é estático, ou melhor, ele é o produto de “estratégias” de-senvolvidas pelos agentes sociais. Ele é o produto de um “trabalho de instauração e de manutenção”, ou seja, estratégias de investimento social (consciente ou inconsciente) na manutenção de vínculos e recursos que podem ser mobilizados para atender aos mais diversos tipos de necessidades sociais (redes de apoio, organização de encontros sociais, festas etc.).

Para Recuero (2009), é possível encontrar uma variedade de redes de filiação e redes emergentes (ou, até mesmo, formas híbridas) na Internet. A diferença entre elas consiste nos tipos de interação que pressupõem, no grau de bidirecionalidade e na densidade das trocas simbólicas elaboradas entre seus membros.

Nesse sentido, o capital social identifica os tipos de trocas simbólicas necessá-

Capital, habitus e as redes no ciberespaço Liráucio Girardi Júnior

rias para que se produzam determinadas relações de conhecimento e reconhecimen-to entre os interagentes no interior dessas comunidades. E essas relações passam a carregar o custo simbólico de manutenção dessas mesmas comunidades.

São essas relações multiplexas (Recuero, 2009) que ajudam a construir signos legítimos de identificação do grupo (certo modos expressivos, símbolos, estética etc), territórios, lugares de encontro (festas, congressos, blogs, sites, perfis etc.), práticas e estilos distintivos capazes de produzir uma espécie de “dispersão homogênea” dos interagentes pela rede, ou seja, verdadeiros campos de forças, adensamentos ou con-centrações, constelações significativas no ciberuniverso.

O capital social pressupõe, então, o exercício da sociabilidade, do conhecimento das regras de reconhecimento dos iguais, um dispêndio de tempo e envolvimento, além de certa criatividade na manutenção dos vínculos. Muitas vezes, esse capital so-cial é herdado do passado por meio de relacionamentos familiares e por meio de redes de relacionamentos nas quais os filhos ingressam desde muito cedo (festas, escolas, cursos, aniversários etc). Outras vezes, ele é fruto do próprio processo de sociabilida-de vivido pelos agentes sociais no decorrer de sua vida. Como observa Wellman:

Given assymmetric ties and bounded network clusters, resources do not flow evenly or randomly in a structure. The density of clusters, the tightness of boundaries between them, and the patterns of ties within and between cluster all structure resource flows. Because of their structural locations, members of a social system differ greatly in their access to these resources. Indeed, unequal access to scarce resources may lead to greater asymmetry in ties. (…) Asymmetric ties between nodes and clusters concatenate into hierarchical networks and engender cumulative differences in access to resources. (Wellman & Berkowitz, 1991: 45)

Quando se destaca que a grande vantagem da rede é a sua capacidade de reduzir os intermediários no processo de produção, circulação e consumo de bens simbólicos, não se pode cair no equívoco de se acentuar, demasiadamente, uma análi-se individualista da ação social. Castells (1999, 2003) chega a denominar a experiência dos agentes sociais na sociedade contemporânea como um “individualismo em rede”. No entanto, não se pode deixar de notar que esse “indivíduo” é socializado e tem uma história.

Boa parte das análises sobre a rede parte de um indivíduo em interação sem qualquer consideração sobre as condições sociais, políticas e ideológicas em meio às quais se tornou um “indivíduo”. Tratam-no como uma entidade socialmente fic-tícia. As análises que se concentram no ciberespaço como uma espécie de container ignoram que as liberdades e potencialidades da rede são vividas por “indivíduos” so-cializados em meio a capitais culturais, econômicos e sociais muito diferenciados no

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 125124 Revista Communicare

mundo off-line.A questão da barreira digital ou da exclusão digital não é simplesmente uma

questão de acesso tecnológico, mas de acesso a um conjunto de capitais em meio aos quais as novas tecnologias são apropriadas e funcionam como marca de distinção simbólica e social.

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Liráucio Girardi Júnior

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Iniciação Científica

Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil

Caio Dib de Seixas Graduando da Faculdade de Jornalismo da Cásper Líbero, pesquisador em Educomunicação e integrante da equipe de Novos Negócios, Pesquisa & Desenvolvimento do setor de Tecnologia de Educação da Abril Educação.

Neste artigo, caracterizamos o termo Educomunicação e apresentamos contextualização histórico-sociológica da Educomunicação no Brasil. Partimos da década de 1950, falando dos cineclubes da Igreja Católica até as atuais possibilidades de trabalho na área. Também abordamos o tema da perda da identidade do sujeito na pós-modernidade e como a Educomunicação trabalha com essa questão.

Palavras-chave: Educomunicação, perda de identidade na pós-modernidade, mercado de trabalho.

From media criticism to Educommuni-cation in Brazil In this article we define the term Edu-

communication and reflect upon its historic and sociologic

contextualization in Brazil. We studied the subject since de

50ths, discussing the cinema clubs of Catholic Church, up to

the current possibilities of work in the field. We, also, studied

the loss of identity of the subject at the post-modernity as

well as the way Educommunication deals with this fact. Key-

words: Educommunication, the loss of identity of the subject

at the post-modernity, labor market.

Desde la lectura crítica de los medios de comunicación a la Educomunica-ción en Brasil El artículo describe la palabra Educo-

municación y presenta el contexto histórico y sociológico

de la Educomunicación en Brasil. Partimos de la década de

1950, hablando de los “cineclubs” de la Iglesia Católica hasta

las actuales posibilidades de trabajo en el área. También se

analiza la cuestión de la pérdida de la identidad del sujeto

en la postmodernidad y como la Educomunicación trabaja

con el tema. Palabras clave: Educomunicación, pérdida de la

identidad en la postmodernidad, mercado laboral.

Pedro Ortiz Jornalista, diretor da TV USP, professor da graduação e da pós-graduação em Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero.

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1. Entendemos Educação tradicional principalmente como uma Educação de tendência liberal tradicional, na qual “os conteúdos e procedimentos didáticos, a relação professor-aluno não tem nenhuma relação com o cotidiano do aluno e muito menos com as realidades sociais dos estudantes. O papel da escola é meramente preparar intelectual e moralmente o jovem para assumir uma posição social” (Luckesi, 1994:55-57). Esta formação é baseada em conteúdos - que são “os conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações adultas e repassados ao aluno como verdades” - transmitidos dos professores para os alunos como verdades a serem absorvidas. Pressupõe-se que a aprendizagem consiste apenas em repassar os conhecimentos para o estudante, que tem uma capacidade de assimilação similar à do adulto, apenas menos desenvolvida (Luckesi, 1994:55-57). Geralmente, não há espaço para questionamentos e debates, e menos ainda para a socialização e aceitação de diferenças sociais e culturais.

Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz

128 Revista Communicare

Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil

Educomunicação: conceito e caracterização

Educomunicação, termo provavelmente criado pelo Prof. Dr. Ismar de Oliveira Soares (NCE-ECA/USP), é “forma de conhecer e compartilhar o conhecimento usando estra-tégias e produtos de comunicação” (Rede CEP, 2010:11). Em sua vertente metodológica, procura-se garantir o acesso à comunicação e o uso democrático da comunicação para ampliar a capacidade de expressão e de conhecimento de si mesmo e do outro.

Para entender como o conceito de Educomunicação foi construído no Brasil, apresentaremos um panorama histórico-sociológico dos métodos de ensino-aprendi-zagem desenvolvidos no país. O campo é vasto e trata de temas como a leitura crítica da mídia, a comunicação comunitária, a tecnologia sendo usada em prol da Educação e a resolução de conflitos de diversas espécies no ambiente escolar. Muitas vertentes da Educação e da Comunicação contribuíram para o desenvolvimento da Educomu-nicação. No artigo, são apresentadas contribuições que pensadores e atores das duas áreas deram para esse campo do conhecimento e para as práticas educomunicativas; a intenção é traçar um panorama geral da história da Educomunicação no Brasil, pois o aprofundamento sobre o tema ficará para futuras pesquisas.

É importante esclarecer que a Educomunicação não surgiu no Brasil. Vem sendo desenvolvida por diversos educadores ao redor do mundo, iniciando-se com o francês Célestin Freinet - que criou a Escola do Trabalho e introduziu a imprensa na escola, no início de 1920. No contexto brasileiro, a Educomunicação surgiu calcada nos va-lores e projetos desenvolvidos no decorrer dos movimentos alternativos de Educação realizados desde a década de 1950 pela Igreja Católica e intelectuais ligados à área da Educação. Segundo Gottlieb, é “decorrência natural de todo o movimento de leitura crítica dos meios de comunicação” (Gottlieb, 2010:107).

Até a década de 1950, o ensino tradicional1 predominava nas escolas. Paulo Frei-re o classificou como “educação bancária”. Nela, “o educando é um banco de dados sempre disponível para extrair ou colocar cifras, dados, informação e conhecimento solicitados no momento que assim deseje o professor” (Sierra apud Alves, 2007:27). Freire propôs um método de ensino-aprendizagem no qual o diálogo e a participação fossem valores fundamentais no processo de aprendizagem: a Educação Popular, que é baseada na Comunicação Dialógica e Libertadora.

Cineclubismo, Comunicação Libertadora e Educação Popular

No final da década de 1950, foi criado movimento de leitura crítica dos meios de comunicação a partir do trabalho desenvolvido pelo cineclubismo católico, baseado em valores morais da teologia cristã. As paróquias montavam salas de exibição de películas e, depois de os grupos assistirem aos filmes, os coordenadores dos cineclu-bes iniciavam debates sobre a obra. O advento da televisão fez com que os cineclubes perdessem a força. Sobre o cineclubismo católico, Gottlieb esclarece que seus coor-denadores analisavam, além da linguagem dos filmes e das características de cada diretor, aspectos morais das obras “que ocorriam, quase sempre, de forma descontex-tualizada, com a exaltação da virtude e a condenação do vício, sempre sob o aspecto da obrigação moral individual” (Gottlieb, 2010:102). A partir dos cineclubes católicos, iniciou-se um movimento concretizado e disseminado de leitura crítica da mídia que incentivaria outros movimentos ligados à educação e comunicação.

Houve outras maneiras de os sujeitos interagirem com sua realidade e interpreta-rem de maneira crítica o meio em que vivem. A Comunicação Dialógica e Libertadora, desenvolvida por Paulo Freire, defendia o diálogo e a participação como valores fun-damentais para a construção do entendimento entre os universos da Comunicação, da Educação e da Cultura. Freire desenvolveu o projeto de Educação Popular no Nordes-te brasileiro que utilizava uma metodologia que ficou conhecida como “Método Paulo Freire”. Valoriza-se o diálogo, a participação e os aspectos locais e cotidianos presentes na vida do indivíduo. “É um trabalho coletivo, co-participativo, de construção do co-nhecimento da realidade local” (Brandão, 1982:24).

Nesse método, o trabalho de alfabetização é feito em círculos de cultura, em substi-tuição da sala de aula tradicional. O animador cultural é mais do que um professor: tem o papel de incentivar e orientar os participantes, fazer com que exista um pensar coletivo.

Freire foi além da alfabetização. O educador realizou trabalho político com o povo. A missão do animador cultural também era “a de ajudar na criação das condições de surgimento, e apoiar as condições de fortalecimento, dos movimentos populares” (Brandão, 1982:90-93). Com a Educação Popular, ampliou-se a liberdade de expressão dos indivíduos e de suas organizações e aguçou-se a reflexão da ação popular. Brandão diz que “o povo começa a saber e a poder fazer” (Brandão, 1982:98).

A Educomunicação como se conhece hoje está muito ligada ao trabalho de Freire, principalmente pela preferência da substituição da sala de aula tradicional por círculos de discussão e pela tentativa de aproximação do cotidiano dos educandos, utilizando te-mas comuns à comunidade e fortalecendo a expressão, o debate e o trabalho em grupo.

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Ações da Igreja Católica nas décadas de 1960 e 1970

Em 1965, no Concílio Vaticano II, a Igreja afirmou seus ideais de justiça, solidariedade e diálogo. Alves acredita que as mudanças decididas no evento aumentaram a atuação da Igreja na questão social e no campo da mídia. (Alves, 2007:29). O principal resultado foi a criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que marcaram a presença da Igreja Católica nos movimentos populares que se formaram no País. Soares diz que nas CEBs, pela leitura da Bíblia, “foi possível assimilar os ensinamentos do Concílio dentro da pedagogia democrática e dialógica da comunicação interpessoal e grupal sugerida por Paulo Freire no final da década de 50 e início de 60” (Soares apud Alves, 2007:30). Alves defende que a Comunicação Popular “reflete no trabalho das CEBs ao propiciar um espaço que privilegia a fala, valoriza as relações interpessoais e dinamiza a formação de seus participantes” (Alves, 2007:34).

As CEBs, por meio do Movimento Eclesial de Base (MEB), utilizaram o rádio como ferramenta educativa. Melo mostra que o MEB serviu como ferramenta alfabetizadora de adultos por ter custo baixo para montagem de emissora de rádio e também porque era po-liticamente fácil conseguir concessões para essa atividade. Porém, havia interesse da Igreja em conseguir concessões radiofônicas para reforçar a evangelização rural (Melo, 2010:45).

Peixoto Filho acredita que o rádio era instrumento dinâmico e pedagógico para a Educação Popular, principalmente quando se tratava de alfabetização de adultos e das mobilizações sociais dos setores rurais. Por intermédio dos meios de comunicação, a Igreja pôde realizar projeto de educação para as comunidades mais necessitadas. Além de alfabetizar e fornecer dados acerca da realidade social do trabalhador rural na socie-dade brasileira, o projeto desenvolvia atitude crítica diante do processo de exploração e dominação (Peixoto Filho, 2010:35). A Educomunicação pode ser método eficiente para abordar os temas de exploração e dominação ao dar voz aos explorados nos meios de comunicação. Ao utilizar o rádio, a televisão ou um veículo que usa linguagem escrita, o indivíduo consegue expressar seus sentimentos, enxergar-se, questionar a situação em que se encontra e, muitas vezes, descobre formas de deixar de ser dominado.

Quanto à eficácia da ferramenta radiofônica, alguns autores, como Peixoto Filho, acreditam que havia envolvimento com a comunidade local por meio de sua história, de temáticas conhecidas e da interação com as atividades locais. O autor defende que, com a utilização dos meios de comunicação, havia o “reconhecimento de uma linguagem própria, de formas de comunicação e de aspectos culturais de uma região historicamen-te contextualizada” (Peixoto Filho. op cit., 2010:30). Porém, autores como Freire - que, segundo Melo, recusava o uso dos meios de comunicação para fins educacionais - não acreditavam na eficácia deste método educativo. Freire acreditava que conscientizar é ato de mão dupla (dialógico, aberto, criativo), e não unidirecional. O educador temia que os meios de comunicação na Educação se tornassem meros impositores de conhe-

cimento. Em Diálogos sobre educação, Guimarães mostra citações que Freire fez sobre o tema e as comenta:

“O problema não está apenas em trazer os meios de comunicação para dentro das escolas, mas em saber a quem eles estão servindo”. A propósito dos computadores, sua manifestação é coerente com os receios precedentes. “Eu não sou contra o uso dos computadores.” Mas, em tom de advertência, perora: “O meu receio [...] é que a introdução desses meios mais sofisticados no campo educacional [...] vá trabalhar em favor dos que podem e contra os que menos podem (Guimarães apud Melo, 2010:50).

No entanto, Peixoto Filho acredita que, no modelo de ensino-aprendizagem apli-cado na metodologia do MEB, o ouvinte era considerado ator importante no processo. Para ele, não era transmissão de mão única. Além de constante diálogo entre a Equipe Central do MEB e os monitores locais, havia a preocupação do entendimento do con-teúdo como a fala das personagens com características próprias da comunidade e a importância das questões locais.

Em 1979, a União Cristã Brasileira de Comunicação Social (UCBC) iniciou o Pro-jeto de Leitura Crítica da Comunicação (LCC). O LCC pretendia demonstrar o poten-cial dos meios de comunicação em massa para fins comunitários e pastorais e tinha como meta a Comunicação Libertadora. A abordagem consistia em utilizar produtos relacionados com o cotidiano dos atores envolvidos no processo e em desenvolver ati-vidades baseadas no diálogo e na participação – intenção também muito presente em projetos educomunicativos hoje -, inclusive por meio de feiras de Comunicação desen-volvidas nas escolas participantes.

Além do LCC, outros projetos relacionados à leitura crítica dos conteúdos difundi-dos pelos meios foram introduzidos ao longo da década, principalmente em comunidades com menor representatividade social e que sofriam maior exploração da força de trabalho.

Estudos Culturais

No final da década de 1970, alguns pensadores latino-americanos, como Canclini e Martín-Barbero, passaram a estudar o problema da recepção em lugar dos estudos dos “meios”. O receptor passou a ser visto como sujeito capaz de realizar críticas aos conte-údos que recebe dos veículos de comunicação em massa, estabelecer relações das infor-mações veiculadas neles com aspectos presentes em seu cotidiano, e até de elaborar pro-postas de contracultura - formas de cultura paralelas à cultura de massa - que abordam

2. Centro Internacional de Estudos Superiores de Comunicação para América Latina. Criado em 1959 pelo governo do Equador, Universidad Central Del Equador e Unesco com a missão de posicionar a comunicação como um direito social imprescindível para o desenvolvimento e fortalecimento da democracia.

Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil

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as questões culturais e sociais de grupos que não pertencem ao circuito main stream. Desde a década de 1960, no Ciespal2 - Equador, Mario Kaplún e Juan Diaz Borde-

nave desenvolveram os conceitos de Comunicação Participativa e Comunicação Popu-lar. Ambos acreditavam que a participação dos atores envolvidos é determinante para a prática da Comunicação Popular e da Educação Transformadora.

Para Bordenave, os sujeitos “organizam-se e adquirem poder coletivo; resolvem seus problemas comuns e contribuem para a transformação da estrutura social de modo que ela se torne livre, justa e participativa” (Bordenave apud Alves, 2007:31). O autor diz que o sujeito desenvolve a capacidade de autoexpressão e de criação conjunta do saber através do próprio raciocínio, do relacionamento e da elaboração de sínteses. Também analisa como a participação pode ser benéfica à escola e à comunidade.

Kaplún defende a educação que enfatiza o processo de ensino-aprendizagem – e não os conteúdos a serem ensinados ou os resultados obtidos. Acredita que nesse mo-delo há “possibilidade de plena participação do sujeito na construção de uma educação problematizadora” (Alves, 2007:34). O educando é o sujeito da ação e, por meio do diálogo e da participação, busca o conhecimento.

O que importa - mais do que ensinar coisas e transmitir conteúdos - é que o sujei-to aprenda a aprender; que seja capaz de raciocinar por si mesmo, de superar as consta-tações meramente empíricas e imediatas de seu entorno e desenvolver sua capacidade de relacionar e elaborar sínteses (Kaplún apud Alves, 2007:34).

Século XXI: crise na escola e na identidade

A partir dos anos 1990, há forte crise de paradigmas na sociedade ocidental e redução no status de excelência das instituições de ensino, que deixaram de ser o lugar privi-legiado para a aquisição e produção de saber (Alves, 2007:47). A escola não é mais o principal player na Educação e nem a única fonte legítima de saber, perdendo lugar principalmente para o mundo pós-moderno: ágil, instantâneo e superconectado. Jovens podem aprimorar seus conhecimentos sobre temas de interesse na internet, com sites como Google, Youtube e Wikipedia, de maneira muito mais rápida e fácil do que o uso de livros e cadernos (que continuam sendo ferramentas fundamentais para o aprendiza-do). Ademais, podem produzir conhecimento, contando com a colaboração de pessoas em outras partes do planeta.

Os indivíduos ganharam oportunidade de buscar informação em outros lugares fora da sala de aula. Freinet dizia, no início do século XX, que as técnicas tradicionais de ensino, isoladas da vida cotidiana, causam o desinteresse dos alunos. Ele propunha “res-tabelecer o circuito para ligar a escola à realidade” (Rede CEP, 2008:123) e pretendia fazer

esta ligação estabelecendo e interpretando a dialética instaurada entre o comportamento psicológico das crianças e o meio social delas, que, no caso, era o meio rural (Freinet, 1998:IX). Na abertura do livro de Freinet, A Educação do Trabalho, Jacques Bens conta que “Freinet não costumava tomar ao pé da letra o que encontrava nos livros: gostava de pô-lo à prova na vida cotidiana” (Freinet, 1998:I). Era exatamente isso que o educador fazia com seus alunos: através da produção de jornal escolar, as crianças interagiam com o conteúdo estudado nos livros e também com as comunidades às quais pertenciam.

Assim, a possibilidade de ver sentido no que é estudado no banco escolar aumen-tava, já que o conteúdo aprendido misturava-se com a realidade dos estudantes. Um exemplo real disso é a produção de blogs por jovens do colégio Bandeirantes. No curso extracurricular de mídia para jovens chamado Idade Mídia, os estudantes debatem so-bre mídia, aprendem a teoria do jornalismo em sala e produzem uma revista no final do ano. Em 2007, por exemplo, alguns jovens criaram, junto com a escola, o Blog do InterBand (www.interband.colband.blog.br); um projeto no qual os próprios alunos do Idade Mídia e colegas do Bandeirantes que não fazem o curso se envolvem com a pro-dução jornalística ao cobrirem o campeonato esportivo interescolar. No blog, os jovens praticam o que aprenderam na sala de aula e constroem, juntos, um produto multimídia em tempo real com o auxílio de editores que já participaram do blog, do educador do Idade Mídia e dos professores do departamento esportivo. O blog já tem cinco anos de existência e continua se modernizando.

O sociólogo Zygmunt Bauman (2001) acredita que a sociedade pós-moderna é ca-racterizada por processo contínuo de integração e desintegração em todos os aspectos (político, econômico, social, cultural) por causa da enorme circulação de capitais, bens e ideias. Costa (2009) analisa a obra de Bauman e aponta que isso gera, no ser humano, a sensação de que tudo é muito instável, provisório e descartável.

Costa faz análise sobre o pensamento de Bauman perante a Educação. O sociólo-go, segundo ela, vê a Educação na modernidade sólida (o que várias vertentes de pes-quisa chamam de “modernidade”) como um projeto de longo prazo, com fundamentos duráveis e realizada por sujeitos com identidade estável. A Educação na modernidade líquida (a “pós-modernidade”, para muitos estudiosos) exige rapidez, instantaneidade e descartabilidade; a solidez é ameaça para seus sujeitos (Costa, 2009:60-75). Bauman (2001) argumenta que essas diferenças educacionais dos dois períodos são um dos prin-cipais fatores da crise no ensino. Costa, ao analisar a obra de Bauman, aponta que a es-cola de hoje não comporta os sujeitos com características da pós-modernidade – “ágeis, instáveis e mutantes (...) e em permanente mutação” (Costa, 2009:72).

As instituições de ensino, em vez de incorporarem os novos valores e atenderem às necessidades da sociedade pós-moderna, relutam em alterar sua estrutura hierárqui-ca e pouco dinâmica, segundo Alves. A autora argumenta que ainda há resistência da

Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz

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escola em deixar de ser a única fonte legítima de saber. O que deveria ser “um ambiente que assume a forma de um ‘ecossistema comunicativo’ dinâmico, indiferente aos ritmos institucionais e que faz circular grande multiplicidade de saberes e proporciona diferen-tes formas de aprender”, na verdade, é um lugar de resistência às novas necessidades da sociedade. Há resistência da escola “no sentido de manter-se como o único lugar legí-timo de produção do saber” (Alves, 2007:47). A escola deveria preparar sujeitos ativos e participantes na sociedade e, principalmente, pessoas capazes de construir relações lógicas e, assim, conhecimento, através das informações que recebem em seu cotidiano.

Alves concorda com o ponto de vista de Martín-Barbero, ao ponderar que a escola deve incorporar as “novas formas de sociabilidade, de cultura e de saber que já fazem parte do cotidiano de crianças e jovens” (Alves, 2007:47). A pesquisadora também com-plementa dizendo que é preciso mudar os mecanismos de transmissão e construção do conhecimento. Não basta apenas aparelhar-se com novas tecnologias. “Equipar-se com novos suportes técnicos não significa que a escola tenha compreendido o papel estra-tégico que tem a Comunicação para a Educação” (Alves, 2007:49). Alexandre Sayad, Secretário Executivo da Rede CEP (Rede Comunicação, Educação e Participação – que reúne dez ONGs de diversos Estados do País que têm o trabalho em comum na área de Comunicação e Educação), em artigo para o portal d’O Estado de S. Paulo, ressalta que “computadores não educam sozinhos; nem livros. Ambos são meios, ou recursos, para uma potencial prática pedagógica, que pode ser interessante e eficiente” (Sayad, 2009).

A diferença entre o que a escola proporciona e o que a sociedade demanda pode ser um dos pontos que levam à grande falta de interesse dos alunos em aprender apenas através das aulas dirigidas por livros didáticos e da comunicação unidirecional profes-sor-aluno. Existem aproximadamente 50 milhões de jovens no Brasil, que representam quase 1/3 da população brasileira. De acordo com o Instituto Cidadania, em pesquisa realizada no ano de 2004, apenas 48% dos cidadãos entre 15 e 17 anos cursam o Ensino Médio. Outra pesquisa, da ONG Ação Educativa (2007), mostra que 59% dos alunos do Ensino Médio responderam que somente às vezes ficam realmente interessados no aprendizado. Apenas 28% dos educadores acreditam que seus alunos estejam interessa-dos nas matérias lecionadas.

Os dados estatísticos coletados indicam que, além da não universalidade do ensi-no médio e da desmotivação de grande parte dos estudantes matriculados, há também grande evasão escolar. Pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (Neri, 2006), re-ferente ao ano de 2006, aponta que 40,29% dos jovens brasileiros da mesma faixa etária abandonam a escola por desinteresse; 27,09% deixam os estudos por razões de trabalho e renda; e 10,89% deixam de estudar por dificuldades de acesso à escola. No Estado de São Paulo, esses números são maiores: 46,15% são desinteressados, 29,2% precisam tra-balhar, mas apenas 8,55% abandonam a escola pela dif ícil acessibilidade.

Observaram-se deficiência no sistema de ensino vigente e necessidade de reestru-turação dos processos educacionais, para que sejam realizados de forma interdisciplinar e com método de ensino-aprendizagem que possibilite aos estudantes interagirem com o assunto abordado. O auxílio das novas tecnologias representa a possibilidade de os estudantes aplicarem à sua vida cotidiana o conhecimento construído a partir do novo modelo de ensino-aprendizagem.

A pós-modernidade também provoca crise de identidade nos sujeitos. Como ob-serva Stuart Hall (2005), as mudanças sofridas pelas sociedades modernas no final do século XX alteram as identidades pessoais – tanto sociais quanto culturais -, abalando a ideia que os indivíduos têm de si próprios como sujeitos integrados.

Com isso, os indivíduos não conseguem estabelecer facilmente relações estáveis de identificação com a sociedade, o grupo ou a família. Isso leva a uma crise de identi-dade do sujeito. De acordo com o filósofo Roger Scruton, estudado por Hall, o indivíduo precisa identificar a si mesmo como algo além do sujeito autônomo, como um mesmo grupo (sociedade, classe, estado, nação ou algum outro modo de agrupamento) “ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar” (Scruton apud Hall, 2005:48).

Hall (2005) trabalha a identidade nacional como uma comunidade imaginada. Os indivíduos constroem suas identidades com base num universo de representações sim-bólicas que lhes dá a sensação de pertencimento a um Estado ou a uma nação. Ocorre que os indivíduos estão perdendo esses referenciais simbólicos nacionais e, em razão da complexidade e da imensa fragmentação inerentes ao processo atual de globalização, a identidade passa a ser instável, multicentrada e polissêmica. Projetos que envolvem a inter-relação da Educação e da Comunicação, como é o caso do Educom.rádio, do NCE (Núcleo de Comunicação e Educação, ECA-USP, que estuda a inter-relação Comunicação e Educação), por exemplo, procuram resgatar a identidade e a cidadania dessas pessoas, oferecendo-lhes referenciais e, ao mesmo tempo, a possibilidade de mais ampla e profun-da reflexão sobre as condições de vida que o sujeito pode encontrar em cada contexto.

Quando se estudam os temas identidade e cidadania, é importante lembrar a con-tribuição de Canclini ao dizer que a reflexão sobre identidade e cidadania não se situa apenas em relação ao folclore ou a discursividade política, como ocorreu nos naciona-lismos dos séculos XIX e XX. “Deve também levar em conta a diversidade de reper-tórios artísticos e de meios de comunicação que contribuem para a reelaboração das identidades” (Canclini, 2005:136). Por isso, deve ser um estudo transdisciplinar. O autor ainda defende que as noções de multimídia e multicontextualismo são fundamentais para redefinir o papel da cultura. “As identidades nacionais e locais só podem persistir na medida em que as situemos numa comunicação multicontextual”. E completa:

A identidade, dinamizada por esse processo, não será apenas uma narrativa ritualizada,

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 137136 Revista Communicare

a repetição monótona pretendida pelos fundamentalismos. Ao se tornar um relato que reconstruímos incessantemente, que reconstruímos com os outros, a identidade torna-se também uma co-produção (Canclini, 2005:136).

Canclini acredita que a identidade não é baseada apenas pela formação cultural da sociedade. Ela está exposta à influência de fatores externos à história da comunidade e por sua cultura folclórica e/ou política. Afirma que a identidade tornou-se também uma coprodução já que não se analisa somente as diferenças entre culturas, mas também “as maneiras desiguais com que os grupos se apropriam de elementos de várias sociedades, combinando-os e transformando-os” (Canclini, 2005:131). O autor defende que as teo-rias do “contato cultural” erram ao estudarem duas culturas diferentes, partindo do que as diferencia. Canclini acredita que os grupos são afetados pela circulação cada vez mais livre e frequente de pessoas, capitais e informações que faz com que as culturas se rela-cionem. Disso resulta que nossa identidade não pode mais ser definida pela associação exclusiva a uma comunidade nacional. Ressalta que “o objeto de estudo não deve ser, então, apenas a diferença, mas também a hibridização” e que “hoje a identidade, mesmo em amplos setores populares, é poliglota, multiétnica, migrante, feita com elementos mesclados de várias culturas” (Canclini, 2005:131).

Portanto, a maneira como os indivíduos se apropriam de elementos para construir sua identidade - processo em constante mudança - é diferente de uma sociedade para a outra. A Educomunicação aproxima as pessoas ao propor diversas leituras culturais para o mesmo fenômeno e entendimento do diferente através de leitura crítica de con-teúdos difundidos pela mídia e pela produção de mídia pelos participantes.

Canclini aponta a forte influência dos meios de comunicação na formação de identidades e ressalta a importância de abordar esse tema de maneira multidiscipli-nar. Defende que, além de complexa em sua essência, a identidade está em constante construção ao ser influenciada pelos meios de comunicação. Relembra a importância do rádio e do cinema na formação das sociedades nacionais: “O rádio e o cinema contri-buíram para organizar os relatos da identidade e o sentido de cidadania nas sociedades nacionais” (Canclini, 2005:129).

Tendo em vista, principalmente, o fato de a escola deixar de ser a única fonte legítima de saber (Alves, 2007), a Educomunicação procura resgatar a identidade e a cidadania dos indivíduos e desenvolver o trabalho com os meios de comunicação ligados ao aprendizado.

Diante da ascensão de fundamentalismos religiosos, xenofobia, homofobia e ra-cismo, é ainda mais necessário preservar a diversidade cultural. Para isso, Alves propõe a construção de canais de comunicação que possibilitem liberdade de expressão para que haja um intercâmbio comunicacional entre diferentes culturas e a criação de meca-nismos de promoção da cidadania política e cultural.

A Educomunicação é facilitadora desse processo, por ser método de promover a expressão, o diálogo e o trabalho em grupo. Por meio dela, procura-se tornar o apren-der mais interessante para os jovens que já nasceram na era digital. Estes, segundo Don Tapscott, em seu livro Grown Up Digital, têm características muito diferentes de seus pais e avós. Eles prezam a liberdade e a liberdade de escolha, gostam de coisas custo-mizadas, trabalham colaborativamente, gostam do diálogo e não do discurso, querem se divertir a toda hora - tanto no trabalho quanto na escola -, a velocidade é normal e a inovação é parte da sua vida. (Tapscott, 2009:6).

A obra foi baseada em pesquisa realizada em 2007 em doze países (EUA, Canadá, Reino Unido, Alemanha, França, Espanha, México, Brasil, Rússia, China, Japão e Índia) com 9.442 pessoas entre 13 e 61 anos – integrantes de diferentes gerações, através de questionário on-line e com trinta estudos em profundidade de casos de Net Geners.

No âmbito educacional, o livro aponta a importância da colaboração e na valo-rização dos estudantes. O autor defende a mudança do modelo pedagógico baseado na instrução - em que o approach tem foco no professor - para o modelo com foco no aluno e é baseado na colaboração, que é um valor importante para a mobilização e participação social.

Tapscott acredita que os estudantes devem levar os conhecimentos adquiridos na escola para a comunidade. O uso de ferramentas como a Wikipedia e o Facebook para fins educacionais e sociais é exemplo disso. O autor ressalta também a importância de os jovens produzirem os conteúdos abordados em classe e terem a possibilidade de des-cobrirem o conhecimento e desenvolverem pensamento crítico em relação aos dados e informações a que têm acesso. “O problema da Educação é que sempre que você ensina algo, você impede que uma criança tenha o prazer e o benef ício da descoberta” (Papert apud Tapscott, 2009:134)3 . Tal proposição aproxima-se do que Freinet defendia: criar oportunidades para que, por meio da produção de jornais e de outras atividades que possibilitassem utilizar os conteúdos escritos nos livros escolares, as crianças pudessem aprender na prática e até estabelecer outras ligações entre o conteúdo aprendido e suas próprias realidades, produzindo conhecimento que não teria sido “repassado” a eles.

O autor relembra a fala do professor de Física de Harvard, Eric Mazur, mostrando que não basta apenas decorar a informação. É necessário saber interpretá-la e utilizá-la com proveito. Mazur ressalta que a Educação é mais do que apenas transferir infor-mação. A mensagem precisa ser assimilada, aplicada de maneira eficaz e adaptada em situações novas e não-familiares. (Tapscott, 2009:132). É mais vantajoso que os jovens trilhem o caminho para aquisição do conhecimento e até construam esse aprendizado por meio de trabalho colaborativo. Isso possibilita o conhecimento de outras culturas e a ruptura de quebrar pré-conceitos.

3. Livre tradução feita por este autor do trecho: “The scandal of education is that every time you teach something, you deprive a child of the pleasure and benefit of discovery” (Tapscott, 2009:134).

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A Educação para a Comunicação tem papel fundamental no método de ensino-aprendizagem eficaz para o aprendizado e o desenvolvimento do aluno – tanto inte-lectual quanto como cidadão, uma vez que desenvolve habilidades e competências que ajudam os estudantes a compreenderem melhor o mundo em que vivem, analisarem as situações-problema e fazerem questionamentos que possibilitam descobertas.

A Educomunicação hoje

A Educomunicação está muito bem desenvolvida na teoria e aparece em diversos campos no mercado. Existem dois cursos de graduação com habilitação em Educomunicação. Pro-fissionais ligados à área de Comunicação e Educação encontram possibilidades de trabalho em empresas, instituições de ensino, governo e, principalmente, no terceiro setor.

O campo teórico é estudado por profissionais da Educação e da Comunicação de todo o Brasil. Há forte concentração das pesquisas em São Paulo, onde está situado o Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP. Formado em 1996, explora o campo da inter-relação Educação-Cultura-Comunicação desenvolvendo pesquisas, articulação de pesquisadores envolvidos na área e também projetos experimentais. Entre 2001 e 2004, o NCE implantou o projeto Educom.rádio em 455 escolas municipais do ensino fundamental, no qual se instalou estação de rádio para ser usada por alunos e professo-res, que foram formados em Educomunicação para utilizá-la.

Em 2011, a Universidade de São Paulo iniciou o segundo curso brasileiro de gradu-ação com habilitação em Educomunicação. O primeiro curso, de bacharelado, foi criado na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG-PB) em 2009, mas percebeu-se a necessidade de profissionais licenciados na área para atuação no mercado paulista. A USP criou, então, o primeiro curso de licenciatura em Educomunicação do país.

Nas instituições de ensino, o profissional pode se tornar um professor de Comu-nicação do Ensino Infantil ao Médio - desenvolvendo conceitos das áreas da Educomu-nicação e auxiliando os jovens a produzirem material midiático - ou podem lecionar Educomunicação nas universidades, em cursos ligados à Comunicação.

O educomunicador também pode atuar como consultor junto a órgãos governa-mentais municipais, estaduais e até em âmbito nacional em projetos que envolvam Co-municação e Educação. A Rede CEP, por meio do “Programa Mais Educação”, do Governo Federal, ajuda a promover a Educação Integral no País, por exemplo. O programa tem atividades organizadas em macrocampos – entre eles, o da Educomunicação. Nele, os alu-nos podem produzir jornal e rádio escolar, história em quadrinhos, fotografias e vídeos. Os profissionais que trabalham na área da Educomunicação também podem ser consul-tores de empresas privadas, auxiliando-as em projetos da área social que envolvam Edu-

Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil

cação e Comunicação e até atuando como educomunicador nos projetos da companhia.Além das áreas citadas, podemos encontrar o profissional da Educomunicação no

terceiro setor, que está muito envolvido com a melhoria da vida social e comunitária de jovens e adultos atendidos pelas instituições sociais.

Referências

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Caio Dib de Seixas e Pedro Ortiz Da leitura crítica dos meios de comunicação à Educomunicação no Brasil

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Iniciação Científica

La popularidad y la influencia en Twitter El objetivo de este trabajo es describir algunos aspectos de la

construcción de conexiones responsables por la influencia y

la popularidad de algunos usuarios de Twitter, herramienta de

microblogging que ocupa actualmente una parte significativa

entre las redes sociales en el país. Con este fin, hemos anali-

zado los mensajes enviados durante diez días por dos perso-

nas: una celebridad consolidada en el mundo de los medios

de comunicación y una figura emergente de las redes socia-

les, que se quedó conocida sólo a través de la web. Palabras

Clave: Redes  sociales, Twitter, la popularidad, la influencia

de la celebridad.

O objetivo desta pesquisa é delinear alguns aspectos da construção de conexões responsáveis pela influência e popularidade de alguns usuários do Twitter, ferramenta de microblogging que ocupa, atualmente, significativo espaço entre as redes sociais no país. Para tanto, foram analisadas as men-sagens postadas durante dez dias por: uma celebridade consolidada no mundo da mass media e por uma figura emergente das Redes Sociais, que se tornou conhecida somente através da Web.

Palavras-Chave: Redes Sociais, Twitter, popularidade, influência, celebridade.

Mariana Pascutti Zacarias Aluna do curso de Rádio e TV na Faculdade Cásper Líbero. Realizou Iniciação Científica no Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero no ano de 2010.

Luis Mauro Sá MartinoProfessor da Faculdade Cásper Líbero. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Autor dos livros “Comunicação e Identidade” e “Teoria da Comunicação”, entre outros.

A popularidade e a influência no Twitter

The popularity and influence on Twitter This paper investigates the social construction of online pop-

ularity and influence of Twitter users. Twitter is one of the

most important social digital networks, and it seems to be

a way to some users to reach fame, popularity and prestige.

It analyzes the Tweets of two users with different levels of

popularity and prestige during the period of ten days: one

is a TV celebrity, and his fame has been built prior to any

online interference; the other is what could be called a ‘web-

celebrity’, and his fame is due exclusively to his online actions.

Keywords: Social Networks, Twitter, popularity, influence,

celebrity.

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144 Revista Communicare

Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá MartinoA popularidade e a influência no Twitter

Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 145

O desenvolvimento das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) vem alterando significativamente a estrutura de fluxos e transmissão de conteúdos, bem como da inte-ração entre seres humanos (Santaella, 2010). A convergência de mídias, propiciada pelas tecnologias digitais, impulsionou um ambiente de compartilhamento, interação e troca de informações formadas pelo código binário, assim como a mobilidade incrementou a velocidade das interações possíveis. Como explica o pesquisador Walter Lima Jr:

Nesses quase 60 anos de desenvolvimento contínuo, o avanço das telecomunicações, das máquinas computacionais das ciências da computação e dos dispositivos para saída das informações processadas (impressoras e displays, entre outros), além da mobilidade, tornou os seus convergentes dispositivos pervasivos e ubíquos (Lima, 2009, p. 95)

Na medida em que há um intenso fluxo de informação sendo distribuído por dife-rentes mídias e conteúdos sendo apresentados por múltiplas plataformas, modalidades anteriores de relações sociais encontram novas formas de expressão e interferência no cotidiano, dando origem a perguntas a respeito das transposições de comportamen-to nos ambientes virtuais. O fenômeno das redes sociais conectadas (Lima, 2009), por exemplo, recebe atenção crescente dos pesquisadores da Comunicação interessados em verificar as relações entre tecnologia e ação social, entendida, no sentido weberiano, como a ação voltada para uma outra pessoa.

Mas isso remete a uma pergunta: como se constitui esse outro nas redes sociais? Neste trabalho, busca-se delinear um caminho para colaborar na construção coletiva dessa resposta – e de novas perguntas – a partir de um caso particular. O recorte da análise desses fenômenos recai sobre uma ferramenta da Internet que, desde 2006, vem adquirindo significativo destaque entre as redes sociais, o Twitter.

Denominado microblogging, cada usuário possui um perfil, no qual posta mensa-gens com até 140 caracteres, com o intuito, a princípio, de responder a pergunta pro-posta pela ferramenta: “o que está acontecendo?”.

O Twitter consegue integrar mensagens de texto, links, fotos, e relacionar os usuá-rios entre si, na medida em que cada indivíduo pode “seguir”, isto é, ter acesso aos tweets escritos por pessoas, organizações e instituições de seu interesse, e, com isso, ter em sua página inicial as mensagens postadas.

Dessa forma, a interação pode ser direta ou indireta, e não necessariamente de for-ma recíproca: é possível seguir alguém, sem a necessidade de ser seguido por essa pessoa.

Isso, de saída, cria uma disparidade que, de alguma maneira, é uma das bases deste trabalho: a desigualdade entre o número de usuários que alguém segue e a quan-tidade de pessoas por quem se é seguido permite entrever uma diferença de prestígio

Introdução e reconhecimento. Seria possível propor que quanto mais seguidores se tem, maior a potencial influência de seus Tweets.

Atualmente, o microblogging conta com cerca de 300 milhões de usuários, de acor-do com a pesquisa do site Twopcharts1, registrada em maio de 2011. Ao agregar variadas funções, desde 2006 o Twitter se configura dentro do conceito de “convergência midi-ática” proposto por Henry Jenkins (2008) e compreendido, de forma geral, como um processo contínuo de interstícios entre diferentes sistemas de mídia, devido ao fato de possibilitar a junção de diferentes informações e relacionar indivíduos. Segundo Jenkins (2008, p. 30), “a convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros”.

Ao longo desse período, o Twitter sofreu uma mudança recente relacionada à alteração da pergunta original, “O que você está fazendo?”, para “O que está aconte-cendo?”. Essa modificação pode ser entendida como uma alteração no uso que se faz da ferramenta: em vez de postar algo sobre sua vida particular, a proposta seria divulgar mensagens que acreditam ser relevantes para um público maior. Ocorreria, portanto, uma troca de informações que transcende o universo pessoal em favor da elaboração de uma rede de informações no espaço público. “A inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte alternativa de poder midiático”, explica Jenkins (2008, p. 30)

A partir dessas considerações, nesta pesquisa busca-se diferenciar os conceitos popularidade e influência no Twitter. Para isso, foi escolhida a análise do perfil de duas pessoas com diferentes índices possíveis de capital social. O primeiro, Luciano Huck, apresentador do programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo, transmitido aos sábados à tarde e constantemente pautado no universo das mídias de massa. O segundo usuário é o vloger (“video-logger”) Felipe Neto, que se tornou conhecido, ao postar vídeos satiri-zando bandas e artistas que despontaram em 2010.

No que se segue, em primeiro lugar será discutida a relação entre popularidade e influência no uso do Twitter, a partir, sobretudo, mas não exclusivamente, da noção de “capital social”. Será apresentada a pesquisa realizada com os dois perfis e, em seguida, alguns resultados obtidos.

Popularidade, influência e capital social

Em certa medida, o poder exercido no ambiente virtual relaciona-se com o que vários autores denominam “capital social”, entendido como uma compreensão qualitativa e quantitativa das relações sociais estabelecidas por um determinado indivíduo em sua vida social (Bourdieu, 1981).

1Disponível em: twopcharts.com/twitter300million Acesso em: Nov/2010

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 147146 Revista Communicare

Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá MartinoA popularidade e a influência no Twitter

Não sendo o objetivo aqui uma detalhada discussão do conceito – remete-se o leitor interessado a Araújo (2003) e Mattos (2009) – vale, no entanto, assinalar algumas características que interessam a este trabalho. O capital social não se restringe ao núme-ro de conexões de um determinado indivíduo, mas refere-se também à capacidade de interação e potencial mobilização dessas conexões, bem como o reconhecimento social desfrutado em um determinado espaço.

Falando de posições diferentes, Bourdieu (1981) e Putnam (1995) identificam que o capital social se constrói a partir do estabelecimento de relacionamentos, bem como no engajamento em questões que reforcem os laços dentro de uma comunidade espe-cífica. Assim, o capital social é cultivado no universo das relações humanas como um índice da força dessas relações em seu direcionamento para ação.

No ambiente on-line, o capital social é um tema trabalhado recentemente e ainda é objeto de dissenso. Nota-se, no entanto, uma tendência para se observar a construção de relações virtuais como fonte de produção e transferência desse capital a partir do uso de ferramentas on-line de visibilidade e consagração. A aferição do capital social de um indivíduo ou organização não é tarefa simples ou que possa ser numericamente deter-minada, mas há indícios que permitem delinear alguns desses elementos.

No caso do Twitter, a mencionada diferença entre o número de indivíduos que se seguem e a quantidade de pessoas por quem se é seguido pode oferecer uma pista, mas também, na mesma linha, a quantidade de “retweets”, isto é, de mensagens passadas adiante pelos seguidores, o que potencializa exponencialmente a exposição on-line do indivíduo.

A aparente facilidade em se relacionar com as pessoas é traduzida na ausência de qualquer investimento alto de capital intelectual ou cultural para desfrutar dos recursos básicos da ferramenta.

Partindo do pressuposto de que as conexões são resultados da interação entre os indivíduos, pode-se afirmar que há duas redes sociais principais dentro do Twitter: uma formada pelas relações entre contatos estabelecidos na rede e a outra composta pelas relações entre quem efetivamente interage com quem (Recuero, 2009). A pesquisadora considera ainda que esta última represente a rede social emergente, caracterizada pelas conversações entre os atores, de forma a concretizar a troca direta pelos usuários de mensagens, que podem ser enviadas uns aos outros de maneira privada (direct messa-ges) , ou pública (postadas na timeline do autor).

A primeira rede citada seria de filiação, “decorrente de conexões automáticas” (Recuero & Zago, 2009: 83), assim definidas devido ao fato de duas pessoas se conecta-rem através de uma simples postagem que possua um assunto em comum, usando os trending topics, por exemplo, o que deixa em aberto uma possível interação entre elas.

Quanto mais conexões, maior acesso a informações terão os atores. Em consequ-

ência, explicam as autoras, os indivíduos que têm maior número de seguidores postam mais informações de interesse geral. Outra característica decorrente desse aspecto está relacionada com a popularidade na rede.

A popularidade representada por um elevado número de seguidores, muitas vezes chegando à casa dos milhões, pode ser vinculada à exposição do indivíduo no mundo da mídia. Por outro lado, não significa, necessariamente, que essas pessoas são influentes e que suas postagens trazem à tona novas discussões na mídia. É preciso, de saída, deixar espaço para um certo ponto de flutuação e recusar interpretações redutoras que vincu-lem a construção do capital social e sua conversão em uma relação de causa e efeito: o prestígio adquirido em uma mídia pode ser convertido em outra, mas isso não significa que a ausência de prestígio em uma implique a impossibilidade de criação desses vín-culos em outra.

Um estudo da Pew Internet2 constatou que as pessoas estão cada vez mais buscan-do, na rede, informações e referências sobre outras.

Internet users have become increasingly likely to use search engines to check up on their digital footprints. Since our last survey in 2006, search engines have vastly expanded their reach and now include everything from images and videos to real-time results on Twitter. (Madden & Smith, 2010: 8)

O jornalista e blogueiro Tiago Dória apresentou dados da pesquisa da Pew In-ternet, em seu weblog3, indicando que a maior parte das pessoas entrevistadas, 69%, já procurou informações de outras pessoas em sistemas de busca. De acordo com o jor-nalista, em entrevista por e-mail concedida em 29 de novembro de 2010, “você pode ter 20 seguidores no Twitter, não ser popular no serviço de microblogging; e, mesmo assim, as suas ideias e posturas são respeitadas. Enfim, reputação está mais atrelada ao respeito do que à popularidade”.

A distinção proposta entre “respeito” e “popularidade” pode ser compreendida em termos de capital social e serve como exemplo de uma diferenciação entre a simples relação social, desprovida de maiores vínculos, e a elaboração de um tecido de relações nas quais o “respeito” indicado converte-se em capital social, fruto do reconhecimento da fala do usuário como “legítima” dentro de um ambiente e, portando, valorizada. Daí que a simples observação do número de seguidores, embora forneça um índice inicial, é insuficiente para aferir o capital social de um indivíduo no Twitter.

É evidente, contudo, que a visibilidade também pode gerar acordos comerciais, como os anúncios nas páginas. Assim, muitos usuários utilizam estratégias como pala-vras impactantes e sensacionalistas, fotos associadas a artistas - estratégias usadas para serem encontrados mediante os mecanismos de buscas. No ambiente das celebrida-

2. http://pewinternet.org/~/media//Files/Reports/2010/PIP_Reputation_Management.pdf3. Disponível em: www.tiagodoria.ig.com.br

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Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 149148 Revista Communicare

Mariana Pascutti e Luis Mauro Sá MartinoA popularidade e a influência no Twitter

des, que possuem blogs em determinados portais, essa visibilidade pode se traduzir em acordos comerciais, por exemplo. Nesse sentido, há uma relação entre a lógica da construção de capital social e a exposição da vida particular que pode ser explorada.

Como lembra Daniel Boorstin (2007), “celebridade é uma pessoa conhecida por ser muito conhecida”. Na internet, é possível se tornar conhecido simplesmente por divulgar algum vídeo relacionado com alguma atividade corriqueira dele próprio. Não há mais a necessidade de se fazer algo específico: “(...) você ganha mais fama quanto mais falar de você mesmo, do livro que está lendo, de seu acesso de tosse” (Martino, 2010: 189).

Complementando, Martino (2010: 193) afirma que hoje há a tentativa de levar às telas a vida particular com o objetivo de torná-la de interesse coletivo. Com isso, atenua--se a fronteira entre o público e o privado.

Nas redes sociais, nota-se que muitos usuários utilizam a mesma estratégia para conseguir mais leitores. No Twitter, por exemplo, postar o que está fazendo ou publicar uma foto da festa em que se encontra pode atrair mais atenção do que promover debates.

Entretanto, segundo Alex Primo (2009), a fama conquistada nas pequenas redes não ultrapassa esse círculo. Para ser popular como as celebridades, é necessário estar exposto no universo das mídias de massa.

O blog sozinho não tem capacidade (como da televisão e do cinema) de alçar seus autores à categoria de celebridade. [...] a elevação ao status de celebridade midiática depende da massiva exposição na grande mídia. (Primo, 2009: 115)

Por ser uma rede de difusão de informação muito mais instantânea e concisa do que os blogs, além de possuir outro formato e diversas ferramentas, no Twitter a popu-laridade – mas não necessariamente o prestígio, vale salientar, uma vez que este se liga ao capital social do indivíduo – pode ser avaliada de acordo com o número de seguido-res que possuem determinado perfil, apresentado no alto da página. Assim, quanto mais seguidores, mais popular é determinado usuário.

Contudo, este microblog apresenta outras características que precisam ser leva-das em consideração. Ter um alto número de seguidores não significa ser muito co-nhecido ou reconhecido dentro e fora da rede social. Muito pelo contrário. Quando o Twitter surgiu, em 2006, os usuários usavam um script4 que adicionava pessoas auto-maticamente com intuito de obter uma resposta recíproca e aumentar seus seguidores.

Além disso, ter muitos seguidores não significa ser uma pessoa influente na mídia.

Se o número de seguidores oferece um índice potencial de influência, é preciso lembrar, dentro das variáveis do capital social, que pessoas influentes geram comportamentos dos demais, hábitos de consumo e são reconhecidas como detentora de discursos e atitudes procedimentais legítimas dentro de um universo específico.

Uma pesquisa desenvolvida pelo Laboratório de Pesquisas da HP, publicada em agosto de 2010 e intitulada “Influence and Passivity in Social Media”, sob coordenação de Bernardo Huberman, procurou diferenciar a influência e a passividade dentro do Twitter, sem levar em consideração o conteúdo postado nas mensagens avaliadas5.

Criou-se um algoritmo denominado IP (Influence - Passivity) utilizado na meto-dologia do estudo, a fim de medir tais elementos dentro dos perfis selecionados. Entre eles estavam @aplusk (o ator Ashton Kutcher, um dos primeiros usuários a possuir mais de um milhão de seguidores do mundo) @mashable, blogueiro bastante reconhecido nas mídias, a rede @google, dentre outros usuários e serviços.

Cerca de 2,5 milhões de dados, entre usuários e os respectivos Tweets, foram ana-lisados e, através do estudo de caso, o grupo da HP constatou que a maioria dos usuários são consumidores passivos de informação e não repassam as informações pela rede, apenas absorvendo informações, sem transmiti-las aos demais. Dessa maneira, para que um usuário se torne influente, ele precisa obter atenção e superar essa passividade existente entre os usuários.

Em entrevista por e-mail concedida em 24 de novembro de 2010, Humerman afir-ma: “I define influence in social media by the ability to affect6 those you Interact with. In twitter you know you affect someone when that someone is relatively passive (retweets very seldom) and retweets your message”.

Entre a construção e a conversão de prestígio na rede

No período de 21 a 31 de outubro de 2010, foram analisados os perfis do vloger Felipe Neto e de Luciano Huck. A escolha de Felipe Neto deve-se à sua representatividade como figura emergente da Internet, popular no mundo das grandes mídias. Já o apre-sentador de TV Luciano Huck foi escolhido, pois já consolidou a sua imagem no mundo broadcasting. Foram coletados 289 tweets, 201 postados por Felipe e 88 por Huck. Essa coleta foi realizada diretamente do perfil do Twitter desses usuários.

Também foram coletados dados do Scup7, plataforma desenvolvida pela empresa DirectLabs para monitorar redes e sites como o Twitter, comunidades do Orkut, Blogs, Flickr, Youtube.Twitter, Facebook, Vimeo, Google, Yahoo, ReclameAqui, Wordpress, Slideshare e RSS. No Twitter, a ferramenta monitora tweets, usuários, directmessages e mentions, que são os “@”, através da busca por palavras-chave. É possível criar filtros

4. Sequência de comandos programados para executar determinada tarefa5. Disponível em: http://www.midiassociais.net/2010/08/estudo-da-hp-influencia-vs-popularidade-em-redes-sociais/6. “Eu defino influência nas mídias sociais pela capacidade de afetar aqueles com quem você interage. No Twitter, você sabe que afeta alguém quando uma pessoa que não utiliza a ferramenta com muita frequência, ’retwita‘ sua mensagem”. (Tradução livre)7. www.scup.com.br

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para especificar os resultados obtidos e ainda possibilita um teste gratuito por sete dias. O Scup foi utilizado para observar repercussões das mensagens, compreender

o que usuários da rede estão buscando e quais os assuntos que mais são retransmiti-dos. Com a ferramenta foram coletados todos os Tweets do universo desta rede social que ‘retuitavam’ Luciano Huck e Felipe Neto. Foram coletados 1255 tweets contendo @felipeneto e @huckluciano

Na análise dos dados foram classificadas as mensagens postadas diretamente por Luciano Huck e Felipe Neto. Foram determinadas dez categorias relevantes para esta pesquisa, de acordo com a frequência com que os assuntos apareciam na timeline dos usuários: Perguntas, Política, Pessoal, Replies, Links, Televisão, Tecnologia, Autopropa-ganda/Avisos, Esporte e Outros.

A tabela a seguir apresenta os números de Tweets obtidos por categoria.

Tabela 01: Distribuição dos tweetspor categoriaLuciano Huck Felipe Neto

Autopromoção/ Avisos

9 Tweets 14 Tweets

Pessoal 27 Tweets 57 TweetsLinks 15 Tweets 19 TweetsPerguntas 2 Tweets 13 TweetsReplies 8 Tweets 57 Tweets

Política 16 Tweets 4 TweetsEsporte 4 Tweets 5 TweetsTecnologia 0 Tweets 6 TweetsTelevisão 7 Tweets 12 TweetsOutros 0 Tweets 14 TweetsTOTAL 88 Tweets 201 Tweets

Observa-se que Felipe Neto tem duas vezes mais Tweets do que o apresentador global e utiliza, significativamente, o Twitter como meio de autopromoção de seus ví-deos. Trata-se de um indivíduo que ainda está se firmando no universo da mass media com o programa “Será que faz sentido?”, no canal Multishow estreado no início de de-zembro de 2010, e com o recente quadro chamado “Sem noção” no programa “Esporte Espetacular”, da TV Globo.

Luciano Huck, figura tradicional do mundo televisivo, também utiliza a rede so-cial para divulgar seus trabalhos, porém em menor escala. Ele cita o horário de seu

programa “Caldeirão do Huck” e eventos de seu “Instituto Criar”.Tais dados permitem confirmar a ideia exposta por Martino (2010), o qual consta-

tou que no universo das subcelebridades é válido comentar e postar sobre sua vida real a fim de torná-la interessante ao outro para aos poucos conquistar audiência. Percebeu-se que, no caso de Felipe Neto, a frequência de postagem é maior do que a de Luciano Huck, que possui sua fama consolidada. Para o vloger, quanto mais expuser suas opiniões, mais atenção do público ele obterá. Aos poucos conseguiu mais um milhão de seguidores e hoje tem um canal do Youtube com mais de 21.064.818 visualizações. Como afirma Sil-veira (2009, p. 83), “o Twitter e o próprio Orkut são exemplos da grande possibilidade de criar, com poucos recursos, pólos de atenção de grande relevância na rede”.

De acordo com os tweets coletados, a interação direta com os followers se dá por meio de perguntas; isso significa que os personagens questionam literalmente seus se-guidores, a fim de obterem respectivas respostas. E também pode ser por Replies, men-sagens direcionadas a uma pessoa por meio da utilização do símbolo “@” antes do nome de usuário, caracterizadas por serem uma conversação aberta, publicada na timeline.

Os dados obtidos demonstram que Felipe Neto busca interagir com seus segui-dores muito mais do que Luciano Huck e ainda, nota-se que o vloger possui maior dis-posição para as postagens tendo em vista os números que se sobressaem aos do apre-sentador e também busca a interação direta com perguntas que suscitam respostas dos seguidores. O elevado número de replies apresentado, 57 tweets, caracteriza a ferramen-ta como um possível meio para manter conversações com amigos.

Ainda, devido ao fato de o período estudado preceder o segundo turno das elei-ções presidenciais de 2010 do Brasil, avaliou-se o quanto os usuários citavam o tema, ou se referiam a assuntos políticos. Felipe Neto, por sua vez, não comentou muito sobre a situação política, embora seja um tema polêmico e aberto a grandes discussões. O esporte também representou um percentual pequeno entre os usuários.

As três últimas categorias restantes foram divididas em assuntos que tiveram cer-ta frequência nos tweets de ambos os casos estudados e que também seriam relevantes na busca por compreender o interesse das pessoas. São elas: Tecnologia, Televisão e Outros.

Em Tecnologia, foram separadas mensagens que mencionavam algum tipo de aparato tecnológico, ou questionavam alguma função de determinado produto. Com relação à Televisão, separaram-se tweets que diziam algo sobre alguma série, programa ou que estivessem no contexto televisivo. Felipe Neto postou constantemente opiniões a respeito de séries americanas, enquanto Luciano faz mais referências ao “Caldeirão do Huck”, a outros programas Globais ou dos canais Globosat – neste caso, as mensagens não foram consideradas explicitamente autopromocionais.

Em Outros classificaram-se mensagens aleatórias como palavras soltas, expres-

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sões e interjeições sem contexto pré-definido. No Twitter do apresentador não houve esse tipo de incidência, mas Felipe Neto apresenta 14 tweets do gênero, alguns exem-plos: “Rock’n Roll”, “Jóia”, “Deus do céu” e “Finalmente...”

Com os dados obtidos no Scup e na ferramenta Tweetsearch no próprio site do Twitter, avaliou-se o que mais era retransmitido pela rede e quantas vezes os posts des-ses personagens eram “retwitados”. Para efeito de análise, foram adotadas as mesmas dez categorias utilizadas na classificação das postagens dos dois casos estudados, sendo que aqui se incluem em “Outros” os tweets que usavam @felipeneto ou @huckluciano para conversação direta, na qual os “twitteiros” buscavam algum tipo de interação com os personagens.

Nota-se, de saída, que a maior parte dos RTs de Felipe Neto, 20%, refere-se à sua vida pessoal, o que reforça a noção de que a exposição da vida privada se afigura como

uma estratégia para alcançar repercussão dos tweets. Nesse sentido, é possível ques-tionar em que medida ainda se poderia relacionar a noção de “capital social” em um de seus sentidos, considerada em termos da produção do engajamento cívico e mobili-zação, se o principal foco de interesse é a vida privada do indivíduo. A tese de Putnam (1995) sobre o declínio do capital social, exposta em Bowling Alone e largamente discu-tida posteriormente, parece encontrar algum respaldo nessa constatação: a construção do que poderia ser um maior capital social não parece representar, efetivamente, um maior interesse em questões outras que não o elemento pessoal transformado em en-tretenimento.

Ainda sobre as mensagens pessoais, vale destacar que os usuários costumam re-passá-las e adicionar um comentário a respeito. Entre as mensagens foram encontradas afirmações de caráter favorável a Luciano Huck e críticas pejorativas a Felipe Neto. Isso permite deduzir que algumas pessoas o seguem não por serem fãs ou admirar seu tra-balho, mas para saber o que Felipe Neto vem postando, a fim de descobrir o motivo de ter obtido relativo sucesso nas mídias sociais.

A princípio, inferiu-se que a maioria dos propagadores das mensagens de Felipe Neto está na mesma faixa etária do jovem de 22 anos, o que pode também ser um fator que contribuiu para o alto número de “Retwittes” encontrados (884 RTs) em compara-ção aos de Luciano Huck (371 RTs). De acordo com o último senso do Twitter no Brasil, atualizado em 2 de junho de 2009, 43,81% dos usuários estão entre 19 e 24 anos, corres-pondendo à maioria do acesso à rede8.

As categorias Perguntas e Tecnologia, que não aparecem nas mensagens que “retwitavam” o apresentador, apresentam as mais baixas incidências no caso de Felipe Neto. Notou-se que os usuários ‘retwitavam’ e adicionavam perguntas, comentários e dicas relacionados ao assunto em questão.

Em Links, foram considerados os tweets com sites citados ou divulgados por Fe-lipe Neto que não estavam ligados a ele. Ou seja, links que não direcionavam ao canal do vloger no Youtube. O mesmo se remete a Luciano Huck. Os links divulgados pelo apresentador representam a segunda categoria mais propagada pela rede no período. O fato de esses retweets se referirem a endereços de sites, vídeos e fotos indica que sua opinião é levada em consideração pelos demais usuários, eles se interessam em saber o que o apresentador está sugerindo e quais são seus gostos, enquanto Felipe Neto não obteve muito sucesso na propagação dos links.

Os números encontrados na categoria Política para ambos os personagens se as-semelham. Por se tratar de um assunto bastante pautado no período de realização deste trabalho, foram encontradas mensagens que concordavam ou discordavam da opinião expressa por Felipe Neto. Os usuários “retwitavam” e complementavam com um co-mentário, mas, ao contrário do que ocorria no caso do vloger, os propagadores das men-

8. http://www.twittercentral.com.br/censobr/

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sagens de Luciano Huck pareciam concordar plenamente com suas colocações.O fato de Huck postar menos mensagens que promovam seu programa da TV

Globo, ou ainda outro projeto particular, pode levar ao menor índice desses RTs em comparação com os de Felipe Neto. Em contrapartida, mesmo com a sua carreira con-solidada, as pessoas ainda comentam e repassam as informações transmitidas pelo apresentador, por mais que já sejam conhecidas pelo grande público. Os tweets com algum vídeo do “vlogueiro” ou que divulgavam seu novo programa, horário em que realizaria uma twitcam etc., foram muito comentados. Além disso, a grande maioria adicionava comentários positivos e recomendações de seu trabalho.

A categoria ‘Outros’ representa mais da metade de todos os tweets analisados, em ambos os casos. Foram encontradas perguntas, tentativas de chamar a atenção para que os agentes divulgassem algum Twitter ou material de seus seguidores, pedidos, decla-rações. O número confirma a teoria de que as redes possibilitam relativa aproximação com o artista, uma vez sendo possível a conversação mediante a resposta do apresen-tador. Mesmo que isso não ocorra, é possível encontrar tweets em que Huck afirma ler todas as mensagens direcionadas e as agradece de maneira geral, sem especificar nenhum usuário.

Considerações finais

É possível observar correlações e contradições entre a construção virtual do prestígio, no caso de Felipe Neto, e da transposição ou conversão do mesmo fator previamente adquirido por conta da exposição nos meios de comunicação ditos “tradicionais”. Os padrões encontrados na análise dos tweets sugerem que, de fato, o capital social anterior está ligado à definição das estratégias empregadas na tentativa de multiplicação desse capital (Bourdieu, 2003).

Avaliando as categorias representadas pelos retweets que possuem porcentagem semelhante tanto no caso de Huck quanto no de Felipe Neto, nota-se, pelos dados cole-tados, que a opinião do apresentador possui um peso significativo para seus seguidores, que tentam interagir com Huck, chamam sua atenção e comentam suas postagens.

Felipe Neto, por sua vez, trilha o caminho de quem está conquistando espaço nas redes e eventualmente pode ganhar o universo das mídias de massa – o que, aliás, já vem ocorrendo. O jovem utiliza diariamente a ferramenta para conversar com os usu-ários e divulgar novas produções. Além disso, interage com os seguidores de maneira direta, visto que a grande maioria dos retweets ou citações buscam interação recíproca.

Aparentemente Huck tem maior tendência em gerar comportamentos e influen-ciar nas mensagens de outros usuários, mas, como detentor de um prestígio já sedimen-

tado, mantém uma relação de proximidade e distância com seus seguidores – talvez, pode-se especular, como estratégia de manutenção do status. Fato que se alinha com Martino (2010: 180), ao sugerir que “a decisão de criar um blog, assim como a definição do conteúdo, está pautada em critérios pessoais de edição a respeito do que será torna-do público”.

O mesmo ocorre no Twitter, onde o autor pode selecionar os acontecimentos co-tidianos que serão ou não explicitados, ou ilustrados, algumas vezes, com fotos. Ocorre a exposição de uma intimidade antes restrita à vida particular de cada indivíduo. De outra maneira, cria-se a sensação de distância para o observador que não compartilha aquela situação real no mesmo instante (Santaella, 2009; 2010).

O status de fama não significa o poder de criar novos padrões. A discussão permi-te observar que o aspecto multifatorial da construção/conversão de capital social está vinculado igualmente à definição de estratégias para manter, às vezes de maneira cir-cular, certo prestígio. Ser influente ou popular no Twitter leva à análise desta série de fatores e conceitos - algo que extrapola a pergunta “O que está acontecendo?” para uma dimensão de interação relacionada com as apropriações, feitas na rede, de sentidos e significados.

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Resenhas

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Resenha

Por Daniela Osvald Ramos

São Paulo: Editora Gen / LTC, 2010.(241 pp.)

WebjornalismoOriginal por: Magaly Prado

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162 Revista Communicare Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 163

Daniela Osvald RamosWebjornalismo

Com uma boa introdução histórica sobre o jornalismo na web, que condensa as principais etapas e as primeiras iniciativas comerciais da comunicação digital, “Web-jornalismo”, de Magaly Prado, é um guia para a escrita digital, indicado para iniciantes e iniciados. A autora, jornalista de formação e radiomaker, como se define, tem larga experiência no rádio e também foi pioneira no jornalismo da web brasileira. Profes-sora com habilidades multimídia, Prado escreveu um texto orientado principalmente a uma didática do ensino da disciplina de comunicação digital nos cursos superiores, experimentando uma linguagem adaptada para a nova geração. A autora sinaliza ca-minhos para discussões inevitáveis na área, que vão desde a influência do digital no impresso até temas complexos como o fim do papel do jornalista como único respon-sável pela emissão de informação na sociedade (“o consumidor como jornalista”), até a filtragem da informação no ciberespaço (é essa uma nova tarefa do jornalista?). As recentes novidades também são contempladas, como o jornalismo móvel, o surgi-mento do iPad, uma nova plataforma de conteúdo, e o QR Code, código que já está colocando em funcionamento a Realidade Aumentada e que foi usado no livro para expandir as informações sobre os assuntos tratados.

Mas é como guia para a escrita digital que o livro marca a sua proposta. Se en-tendermos a escrita digital não somente como o que é possível comunicar com o uso do alfabeto, mas, sim, com números, que viram digitalmente bits, pixels, textos, fotos, vídeos, infografia, visualização de dados, redes sociais, agregadores, geolocalização, conteúdo hiperlocal, colaboração de usuários e, principalmente, tudo isso articulado com o hipertexto e com o design, temos nesse livro um ponto de partida para a com-preensão de como é possível escrever uma linguagem jornalística digital. Repleto de exemplos práticos, também há espaço para os temas técnicos que inevitavelmente compõem o novo perfil do jornalista: arquitetura da informação, noções de design digital, usabilidade, navegação, interfaces, remixagens, mashups e recombinações - outro ponto polêmico no campo, por conta da discussão dos direitos autorais.

Também é reservado espaço para as questões que fundamentam o jornalismo, como a precisão da informação, a objetividade do texto, a ética jornalística (que ga-nhou um capítulo) e a apuração e checagem das fontes. As várias questões que envol-vem o uso jornalístico dos blogs foi contemplada no capítulo 7. A autora vai a campo e entrevista personagens-chave no cenário das empresas de comunicação digital no Brasil, como Rodrigo Mesquita, do Estadão e Marion Strecker, ex-diretora de con-teúdo do UOL. Assim, há uma interação com os atores do cenário digital, enquetes com jornalistas que fazem uso do Twitter, relatos e depoimentos, como o de Rosental Calmon Alves. Sugestões de discussões em sala de aula também são dadas ao final do capítulo, o que reforça o caráter didático do livro. Uma informação curiosa que aparece a cada início de capítulo é o serviço de áudio digital que Prado estava ouvindo

na hora de escrever o capítulo, o que é um dado à parte sobre a variedade desse tipo de site na web.

Dif ícil é achar um tema de comunicação digital que não foi ao menos citado ao longo do livro. O índice remissivo ajuda a localizar os pontos de interesse do leitor e o site http://magalyprado.com a manter-nos atualizados sobre os desdobramentos do tema. Ao final, fica claro que, como o mundo que não para de transformar e ser transformado, o jornalismo segue mutante, termo usado pela autora na dedicatória do livro para designar o uso criativo da rede por e para jornalistas.

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Resenha

Por Bruno Hingst

Título original: The big picture: money and power in HollywoodTradução: Silvana Vieira.São Paulo: Summus Editorial, 2008.(383 pp.)

O grande filme: dinheiro e poder em Hollywood

Original por: Edward Jay Epstein

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166 Revista Communicare Volume 11 – Nº 1 – 1º Semestre de 2011 167

Bruno Hingst

Trazendo informações e dados interessantes e pouco conhecidos, o autor, além de trazer ao leitor um relato das transformações ocorridas no cinema, mais precisamente no cinema de Hollywood, também desnuda como se dão as relações de poder nos bas-tidores do meio cinematográfico nos Estados Unidos.

O cinema americano se origina em Nova York e foram os judeus que, antevendo o futuro promissor dessa nova atividade comercial, os seus primeiros exploradores que acabaram se estabelecendo em Los Angeles, criando sete empresas que seriam a marca do cinema norte-americano, ajudando a criar o mito de Hollywood e que levariam o entretenimento a uma escala mundial: Paramount, MGM, Warner Brothers, RKO, Co-lumbia Pictures, Universal e Twenty Century Fox.

No período entre 1915 a 1948 é que se desenvolveu, em Hollywood, o sistema de Estúdio, no qual os seus proprietários geriam os seus negócios dentro de uma estrutura extremamente centralizadora e monopolista: contratos exclusivos e de longa duração vin-culando os atores e artistas, distribuição e grandes cadeias de exibição próprias do qual obtinham enormes lucros decorrentes somente da bilheteria dos filmes.

O autor nos mostra que apesar dos nomes e dos logotipos dos estúdios continua-rem amplamente conhecidos, a Hollywood atual é bem diferente. Os antigos proprietá-rios foram substituídos por empresas de capital aberto e seus executivos, pertencentes a impérios corporativos de escala global, sendo os filmes apenas uma das fontes de receita. Algo realmente mudou. Aparece então uma nova forma de consumir entretenimento, obrigando os estúdios a gastar enormes verbas de publicidade e a formular ampla es-tratégia de marketing para a divulgação do filme em novos veículos de comunicação (tv aberta e tv a cabo), buscando assim atingir um público agora cada vez mais diversificado.

Esse público começa então a trocar a sala de cinema pela comodidade do entrete-nimento doméstico, a tv aberta e a tv a cabo, despertando desejos e novas necessidades, principalmente nas crianças e nos mais jovens. O fácil acesso agora ao DVD dos filmes, somado ao poder de influenciar a decisão dos pais na escolha e compra de toda sorte de produtos licenciados pelos estúdios de cinema, faz deles um dos públicos estratégicos mais cobiçados e que, portanto, devem ser continuamente conquistados.

Ao longo do livro vemos quais são as transformações sofridas pelo negócio cine-matográfico e, sobretudo, do entretenimento, que começa a ser alterado consideravel-mente em razão das inovações tecnológicas e das novas fontes de receitas, mais vanta-josas em relação à bilheteria dos filmes, como a distribuição de filmes, vendas de vídeo e DVD, licenças para exibição para televisões dentro e fora dos Estados Unidos. Uma outra modalidade de receita, já amplamente utilizada nos anos 1920 por Walt Disney, com o personagem Mickey Mouse, é o licenciamento de produtos (CD´s, bonecos, ima-gens, etc.), que podem atingir futuros consumidores.

O declínio do poder dos estúdios, a partir do final dos anos 1950, abriu espaço para a chegada de uma nova geração de executivos e agentes, trazendo novas perspec-tivas para o negócio do entretenimento, ampliando os horizontes comerciais e tecno-

O grande filme: dinheiro e poder em Hollywood

lógicos, dentre eles: David Sarnoff e o desenvolvimento de equipamentos eletrônicos para televisão; Lew Wasserman, agente de atores e estrelas e produtor de programas de televisão e Steve Ross, com uma nova visão do conteúdo e das formas de direito de propriedade intelectual que multiplicava os negócios e lucros.

A inovação tecnológica trouxe para Hollywood Akio Morita da Sony e a nova pla-taforma digital para DVD e games e Rupert Murdoch com a transmissão de conteúdo audiovisual pago por uma rede de satélites globais, da Ásia à América Latina. Por sua vez, a Summer Redstone, na Paramount, antevê o poder do conteúdo para as novas mí-dias do estúdio de cinema e diversifica os negócios: cria a locadora de vídeo Blockbuster e a tv paga MTV.

Todos esses homens imprimiram um novo contorno aos negócios ligados ao setor do cinema e entretenimento, levando Hollywood ao modo de gestão e obtenção de lu-cros em moldes corporativos como se vê hoje.

Aqueles estúdios da década de 1920 e suas marcas se transformaram, depois de diversas fusões, em grandes conglomerados do entretenimento: Fox, Viacom, NBC Universal, Time Warner, Disney e Sony, detendo cada um deles uma enorme cadeia de produtos audiovisuais, de rede de transmissão a venda de conteúdos.

Hoje, todo o processo para a realização de um filme, da produção até o seu lan-çamento, envolve uma complexa estrutura de negociação sobre direitos, que incluem atores e artistas, roteiristas e diretores, sempre intermediados pelos agentes que discu-tem o valor de cachês, a divulgação do filme, as entrevistas e até o percentual de receita sobre a bilheteria do filme.

O desenvolvimento das relações comerciais e pessoais de todos os profissionais que estão vinculados à comunidade cinematográfica de Hollywood é permeado por um conjunto de valores como prestígio e poder, aliados à discrição e fatores como a pro-moção dos produtores, dos atores, dos diretores e dos executivos de estúdio e, acima de tudo, alinhado a uma estratégia ampla de marketing e relações públicas que valorize o negócio cinema e seus produtos derivados.

A Hollywood do século XXI está sendo moldada, sem dúvida, numa combinação da revolução digital, com inserções cada vez mais crescentes de recursos gráficos e visu-ais aliados à distribuição digital dos filmes diretamente por satélite e à progressiva e rápi-da eliminação, em alguns anos, do filme celuloide. O cenário para uma nova economia da ilusão converge cada vez mais para as plataformas digitais (aparelhos de DVD, internet, pay per view) e para a seleção dos conteúdos desejados, com as quais se podem fundir as fronteiras entre o desenho animado, programas ao vivo e jogos interativos.

Por detrás da cultura da ilusão que moldou por décadas Hollywood são estabe-lecidas negociações concretas para abordar histórias, fatos, ou mesmo criar fantasias, sempre com o cuidado de não gerar conflitos e prejuízos, pois para eles a negociação e o lucro são a alma do negócio.

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Resenha

Por Mauricio Luis Marra

São Paulo: Summus Editora, 2011.(309 pp.)

Relações Públicas Estratégicas: Técnicas, conceitos e instrumentosOriginal por: Luiz Alberto de Farias

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Mauricio Luis MarraRelações Públicas Estratégicas: técnicas, conceitos e instrumentos

Nos últimos anos, principalmente por razões econômicas e culturais, as Relações Públicas ganharam destaque no mundo corporativo, político e social. Como resultado dessa evolução, também o mercado editorial tem refletido o desenvolvimento da ativi-dade e do pensamento sobre o tema.

Dentre os novos e promissores autores brasileiros que se debruçam sobre a pro-fissão e as bases teóricas que lhe dão suporte, Luiz Alberto de Farias se destaca, desde que lançou seu primeiro livro, A Literatura de Relações Públicas: Produção, Consumo e Perspectivas (Summus, 2004), no qual fez um amplo levantamento bibliográfico da produção nativa nesse campo.

Agora, Farias se apresenta como organizador de uma coletânea de artigos escritos por autores relativamente novos no cenário, mas com ampla e diversificada experiência na área. Aí está o primeiro mérito da obra: temas contemporâneos, diversos e complemen-tares, pela visão de profissionais atuantes no meio corporativo, acadêmico e da pesquisa.

O prefácio da Profa. Margarida Kunsch, a apresentação do Prof. Abraham Nosnik, da Universidad Anáhuac (México), e a introdução do próprio Farias deixam claro que a obra destaca a abordagem estratégica e de planejamento, o que demonstra a evolução que a área teve nas últimas décadas, deixando de ser vista como suporte e passando ao papel de protagonista.

Dividido em duas partes, o livro traz, primeiro, reflexões de base para o pensamen-to contemporâneo das Relações Públicas, e, em seguida, uma abordagem mais prática, ou mais aplicada, sempre de maneira estratégica, dos conceitos e instrumentos da profissão.

Ao iniciar a leitura dos artigos, deparamo-nos com uma interessante retrospectiva histórica das Relações Públicas na América do Sul, de autoria de Backer Ribeiro Fernan-des, que traça a evolução e ajuda a contextualizar o momento atual da área, o que cola-bora para o melhor entendimento dos temas por vir, oferecendo ao leitor os principais fatores externos às teorias, que levaram a essa postura cada vez mais estratégica.

Em seguida, Farias retoma e aprofunda a questão do planejamento e da estratégia já pontuada na introdução à obra. Dando sequência, Júlio César Barbosa se debruça sobre o discurso e a construção dos princípios organizacionais, mostrando, com exem-plos, a dificuldade de se compreender e redigir missão, visão e valores de uma organiza-ção, dando-lhe uma identidade menos subjetiva.

O artigo de Maria José da Costa Oliveira passa pelo entendimento dos públicos e seus desdobramentos, e nos conduz à reflexão da questão da cidadania, que pede in-divíduos mais conscientes e participativos, e oferece uma visão mais contemporânea e completa daquilo que chamamos de responsabilidade social.

Finalizando a primeira parte, Flávio Schmidt faz uma reflexão sobre identidade, imagem e reputação, tendo como pano de fundo a questão da perda da noção de per-tencimento no mundo virtual e globalizado em que vivemos, tanto por parte das empre-

sas, quanto dos indivíduos que as compõem ou fazem parte da sociedade que as acolhe.A segunda parte começa com outro artigo de Farias, agora sobre Assessoria de

Imprensa, mostrando não só a importância do fluxo de informações das organizações para a imprensa, mas também o cuidado necessário de monitoramento daquilo que sai na mídia tradicional e nas redes sociais.

Cínthia da Silva Carvalho aborda a questão de crises, perpassando pela identidade e imagem das organizações, até chegar à construção e manutenção da reputação, o que muitas vezes acaba sendo deixado de lado pelas empresas, preocupadas com ganhos e percepções imediatistas.

Falando de eventos, Ethel Shiraishi Pereira mostra como essa área de atuação das relações públicas está sendo vista cada vez mais sob uma perspectiva estratégica, fun-damental no processo de fortalecimento e manutenção dos relacionamentos com os diferentes públicos, e não mero instrumento pontual.

Retomando a busca de uma atuação excelente das Relações Públicas, proposta pri-meiramente por Grunig, principalmente no que se refere à sua dimensão simétrica e de mão dupla (diálogo), Else Lemos volta seu olhar para a comunicação interna como pos-sibilidade de aproximação entre a organização e seu público primeiro (seus funcioná-rios), gerando uma verdadeira relação entre as partes, dentro da perspectiva real de uma comunicação integrada que seja capaz de olhar para dentro e para fora da organização.

Tânia Câmara Baitello utiliza de sua vasta experiência profissional para abordar a questão da Governança Corporativa como atuar das Relações Públicas, tema funda-mental e contemporâneo, principalmente em vista dos processos de abertura de capital, internacionalização de empresas brasileiras e fusões e aquisições.

Em uma interessante reflexão sobre os impactos do modelo consumista contem-porâneo sobre os indivíduos e as organizações, Rudimar Baldissera resgata e aprofunda o debate acerca da responsabilidade social e da sustentabilidade, como parte efetiva de uma cultura organizacional que vai além dos modismos ou da mera relação econômica.

Ao tocar na questão do uso das publicações na gestão de relacionamentos, Ágatha Camargo Paraventi resgata seus diversos tipos e usos, inclusive com dados quantitativos quanto à sua aplicação hoje no Brasil, seguindo para uma proposta de roteiro de projeto editorial, e finalizando em balanços sociais.

Sérgio Andreucci Jr. trabalha a questão da política de patrocínio cultural, lem-brando sua importância para a construção de uma comunicação institucional, mas aler-tando para as dificuldades de se desenvolver projetos consistentes com a identidade e coerentes com as necessidades e realidade da organização.

Paulo Salgado retoma um tema pouco discutido nos últimos anos, mas funda-mental em uma sociedade democrática e a cada dia mais madura e moderna, ao falar da atuação na área governamental.

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172 Revista Communicare

Relações Públicas Estratégicas: técnicas, conceitos e instrumentos

Ao questionar o papel das redes sociais e da comunicação digital via internet na comunicação de Relações Públicas, Carolina Terra mostra o potencial e riscos desses canais como instrumento de criação e manutenção de relacionamentos, indicando ca-minhos possíveis para se potencializar essa interação entre as organizações e seus pú-blicos, cada dia mais construtores e participantes do que consumidores de conteúdos.

O último artigo, de Valéria Castro Lopes e Vânia Penafieri, oferece um resumo da importância e principais características da pesquisa no campo das Relações Públicas, principalmente recordando seu papel ao mesmo tempo como base e resultado do atuar da área, seus diferentes objetivos e metodologias de aplicação.

Olhando para a obra como um todo, em certos momentos notam-se artigos que, se reordenados, poderiam dar maior fluidez e sequência lógica à leitura, principalmente para os novatos da área. Em outros momentos, alguns artigos acabam avançando sobre temas já apresentados, sem que isso traga abordagens ou perspectivas diversas. Mas nenhuma dessas questões compromete o resultado do livro.

Concluindo, podemos dizer que, se a obra não traz grandes novidades no que se refere às teorias voltadas às Relações Públicas, isso não se deve aos autores, mas, sim, às características do pensamento teórico de comunicação como um todo, que, como sabemos, não evolui na mesma velocidade que o mundo econômico, político e social. O grande mérito do livro está justamente no fato de trazer o que há de mais atual na aplicação prática desses conhecimentos nas organizações, ajudando-as a se adaptarem e consolidarem diante das incertezas dos mercados nacional e global. Portanto, ao trazer uma visão ampla e diversificada das Relações Públicas e de seus encaminhamentos mais recentes, sem com isso tornar-se extremamente teórica, temos uma obra útil a todos aqueles que desejam conhecer melhor a profissão, ou queiram aplicá-la de forma mais eficiente em seu ambiente de trabalho, além de ser um excelente material de apoio a professores e alunos da área.

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Normas para o envio de originais

Normas

A Revista Communicare, do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero, tem por objetivos promover a reflexão acadê-mica, difundir a pesquisa e ampliar o intercâmbio científico com pesqui-sadores das diversas instituições de pesquisa.

Os autores podem enviar artigos cujos temas estejam relacionados às seguintes linhas de pesquisa desenvolvidas no Centro: Comunicação: Tecnologia e Política, Comunicação, Meios e Mensagens e Comunicação e Mercado, como também de acordo com a temática do dossiê divulgada no Call for papers.

Linhas de pesquisa:

Linha de Pesquisa 1: Comunicação: Tecnologia e PolíticaEmenta: Estuda os processos de comunicação no contexto das modifi-cações tecnológicas e culturais proporcionadas pelas redes da sociedade contemporânea, os novos formatos de rádio e televisão, a participação dos meios de comunicação na constituição do espaço público e as polí-ticas institucionais e/ou públicas de comunicação. Eixos temáticos: Po-líticas de comunicação; Tecnologia e cultura de rede; Rádio e Televisão no universo das redes; Comunidades virtuais e processos colaborativos.

Linha de Pesquisa 2: Comunicação: Meios e MensagensEmenta: Estuda os conteúdos e/ou produtos veiculados pelos meios de comunicação, a comunicação nos meios tradicionais e nas novas mídias, as relações entre informação e entretenimento/espetáculo, o imaginário e a cultura da imagem, bem como as formas de interação dos receptores/usuários com os meios e suas mensagens. Eixos temáticos: Comunicação e cultura visual; Jornalismo e espetáculo; Narrativas da contemporanei-dade; Comunicação e Recepção.

Linha de Pesquisa 3: Comunicação e MercadoEmenta: Estuda e/ou propõe respostas às demandas institucionais e mer-

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cadológicas contemporâneas nos campos de atuação da Publicidade, da Propaganda e Marketing, das Relações Públicas e do Turismo; investiga o processo de inserção dos profissionais formados pela Cásper Líbero nos mais diversos setores da sociedade. Eixos temáticos: Cultura e Mercado Publicitário; Ética e Comunicação Organizacional; Pesquisa Aplicada em Turismo; A inserção social dos profissionais formados pela Cásper Líbero. 

A publicação destina-se à divulgação de trabalhos inéditos de pes-quisadores e docentes da Faculdade Cásper Líbero e de outras institui-ções, na qualidade de autores e coautores, com a titulação mínima de mestre, exceto artigos escritos em coautoria orientador e orientando. As colaborações poderão ser apresentadas em forma de artigos, resenhas, le-vantamentos bibliográficos ou informações gerais, e estarão condiciona-das à aprovação prévia da Comissão Editorial e do Conselho Consultivo.

 Os trabalhos publicados serão considerados colaborações não re-muneradas, uma vez que a Revista tem caráter de divulgação científica e não comercial. Tanto o conteúdo quanto o compromisso com o ineditis-mo dos textos são de total responsabilidade de seus autores. O envio de artigo para a Revista Communicare implica automaticamente autoriza-ção para publicação. Os direitos autorais de desenhos, ilustrações, foto-grafias, tabelas e gráficos que acompanhem os textos serão de exclusiva responsabilidade do colaborador.

Artigos

1. Os artigos devem ser encaminhados para o e-mail [email protected] ou [email protected] com a identificação do autor – local onde leciona, maior titulação e instituição pela qual obteve o título;

2. Recomenda-se que os textos sejam escritos em Word 2003, fonte Arial, tamanho 12, espaço de entrelinha 1.5 pt, e tenham de 20 mil a 35 mil ca-racteres, incluindo espaços;

3.  Sugere-se  que o autor faça uma rigorosa revisão do texto antes de enviá-lo;

4. Os textos devem ser enviados obedecendo  à reforma ortográfica;

5. A estrutura do texto deve obedecer à seguinte ordem: Título, Resumo (em 600 caracteres no máximo), Palavras-Chave; Corpo do Texto e Refe-rências, sendo que o Título e o Resumo (Abstract) deverão ser acompa-nhados de versões para o Inglês e Espanhol;

6. Ilustrações e/ou fotografias deverão ser enviadas no formato TIFF ou JPEG (arquivos .tif e .jpg), com tamanho mínimos de 2000 pixels de altura e largura. A resolução não deve ser menor que 300 dpi;

7. Tabelas e gráficos devem ser numerados e encabeçados pelo seu título;

8. Desenhos, ilustrações e fotografias devem ser identificados por suas respectivas legendas e pelo nome de seus respectivos autores;

9. Citações e comentários no corpo do artigo deverão ser inseridos ao longo do texto. As citações devem seguir o padrão: (Sobrenome em caixa baixa, ano da publicação: número da página);Exemplo: (Zanini, 2000: 45)

10. As referências deverão estar dispostas no final do artigo. A lista de referências segue a ordem alfabética, sendo que as normas para cada re-ferência variam de acordo com a autoria e natureza das obras utilizadas no trabalho. A Communicare adota como padrão o destaque em negrito.

No caso de obras com um único autor, é este o padrão:AUTOR (SOBRENOME EM CAIXA ALTA, Inicial nome.). Títu-lo em Negrito (bold). Edição. Cidade: Editora, Data da publicação.

Exemplo: URANI, A. Constituição de uma matriz de contabilidade social para o Brasil. Brasília, DF: Ipea, 1994

11. Publicações em meio eletrônico devem conter o endereço eletrônico e data de acesso no padrão: 01/01/2001.

Exemplo: ALVES, C. Navio negreiro. [S.l.]: Virtual Books, 2000. Disponível em: http://www.terra.com.br/virtualbooks/freebook/port/Lport/navionegreiro.htm. Acesso em: 10/01/2002, 16:30:30.

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12. Publicações periódicas devem conter dados como volume(v), número (n), páginas(p), mês e ano, sendo que apenas o nome da publicação vem em negrito.

Exemplo: BENNETTON, M. J. Terapia ocupacional e reabilitação psicossocial: uma relação possível. Revista de Terapia Ocupacional da Univer-sidade de São Paulo, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 11-16, mar. 1993.

13. Cada autor receberá cinco exemplares da edição.

Resenhas

1. Recomenda-se que os textos sejam escritos em Word 2003, fonte Arial, tamanho 12, espaço de entrelinha 1.5 pt, e tenham de 2800 a 5600 carac-teres, incluindo espaços;

2. A resenha deve vir acompanhada das referências bibliográficas com-pletas da obra em pauta (Autor, Obra, Cidade, Editora, Data, ISBN, nú-mero de páginas);

3. Solicita-se que a resenha seja acompanhada de um exemplar da obra ou de imagem digitalizada da capa em formato tif, para publicação, de acordo com as possibilidades de editoração;

4. Cada autor receberá cinco exemplares da edição.

Endereço

Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero Avenida Paulista, 900 - 6º andar - CEP: 01310-940 - São Paulo / SP Correio Eletrônico: [email protected] ou [email protected]

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