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Page 1: co lo cara s su as co stas e o p ren d era co m garras in ... · O gato escuro lança um olhar furioso para Coração de Carvalho. – Você e seus guerreiros podem nadar como lontras,
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Ferrugem se contorceu e gritou, tentando escapar do agressor que se colocara às suas costas e o prendera com garras incrivelmente afiadas. Sentiu no pescoço os dentes pontudos. Ao longo de gerações, quatro clãs de gatos selvagens dividiram o território da floresta de acordo com as leis prescritas por seus ancestrais. Mas os gatos do Clã do Trovão correm sério perigo porque o malévolo Clã das Sombras se fortalece a cada dia. No meio dessa turbulência, aparece um “gatinho de gente”, Ferrugem, que pode vir a se tornar o mais valente de todos os guerreiros.

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ASALIANÇAS

clãdotrovão

LÍDER ESTRELAAZUL–gataazul-acinzentada,defocinhoprateado

REPRESENTANTERABOVERMELHO–pequenogatoatartarugado,cominconfundívelcaudaavermelhada.APRENDIZ,PATADEPOEIRA

CURANDEIRA FOLHA MANCHADA – bela gata atartarugada escura, cominconfundívelpelosarapintado.

GUERREIROS (gatosegatassemfilhotes):

CORAÇÃODELEÃO – imponente gatomalhado, compelodouradodensocomojubadeleão.APRENDIZ,PATACINZENTA

GARRA DE TIGRE – gatãomarrom-escuro, de pelomalhado, comgarrasdianteirasexcepcionalmentelongas.APRENDIZ,PATANEGRA

NEVASCA–gatãobranco.APRENDIZ,PATADEAREIA

RISCADECARVÃO–gatodepelomacio,malhadodepretoecinza.

RABOLONGO–gatodepelodesbotadocomlistaspretas.

VENTOVELOZ–gatomalhadoeveloz.

PELE DE SALGUEIRO – gata cinza-claro, com excepcionais olhosazuis.

PELODERATO–pequenagatadepelomarrom-escuro.

APRENDIZES (com idade superior a seis luas, em treinamento para setornaremguerreiros)

PATADEPOEIRA–gatomalhadoemtonsmarrom-escuros.

PATACINZENTA–gatodelongopelocinza-chumbo.

PATA NEGRA – pequeno gato preto, magro, com um minúsculosinalbranconopeitoecaudadepontabranca.

PATADEAREIA–gatadepeloalaranjado.

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PATADEFOGO–belogatodepeloavermelhado.

RAINHAS (gatasqueestãográvidasouamamentando)

PELEDEGEADA–combelíssimopelobrancoeolhosazuis.

CARARAJADA–bonitaemalhada.

FLORDOURADA–peloalaranjadoclaro.

CAUDASARAPINTADA–malhada,corespálidas,arainhamaisvelhadoberçário.

ANCIÃOS (antigosguerreiroserainhas,agoraaposentados)

MEIORABO–gatãomarrom-escuro,semumpedaçodacauda.

ORELHINHA – gato cinza, de orelhasmuito pequenas; gatomaisvelhodoClãdoTrovão.

RETALHO–pequenogatodepelopretoebranco.

CAOLHA – gata cinza-claro, membro mais antigo do Clã doTrovão,praticamentecegaesurda.

CAUDAMOSQUEADA–gatacascoatartarugada,belíssimaemoutrostempos,combonitopelosarapintado.

clãdassombras

LÍDER ESTRELAPARTIDA–gatomalhadodemarrom-escuro,pelolongo.

REPRESENTANTE PÉPRETO–gatãobranco,comenormespataspretasretintas.

CURANDEIRO NARIZMOLHADO–pequenogatodepelocinzaebranco.

GUERREIROS CAUDATARRACHO–gatomalhado,marrom.APRENDIZ,PATAMARROM

ROCHEDO–gatomalhadodeprateado.APRENDIZ,PATAMOLHADA

CARARASGADA–gatomarrom,comcicatrizesdebatalhas.APRENDIZ,PATAPEQUENA

MANTODANOITE–gatopreto.

RAINHASNUVEMDAAURORA–pequenagatamalhada.

FLORDELUZ–gatadepelopretoebranco.

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ANCIÃOS PELODECINZAS–gatocinzentoemagro.

clãdovento

LÍDER ESTRELAALTA–gatobrancoepreto,decaudamuitolonga.

clãdorio

LÍDER ESTRELATORTA–gatoenorme,depeloclaroemandíbulatorta.

REPRESENTANTE CORAÇÃODECARVALHO–gatodepelomarrom-avermelhado.

gatosquenãopertencemaclãs PRESA AMARELA – velha gata de pelo escuro e cara larga e

achatada.

BORRÃO–gatinhoroliçoesimpático,depelopretoebranco,quemoranumacasaàbeiradafloresta.

CEVADA–gatopretoebranco,quemoranumafazendapertodafloresta.

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PRÓLOGO

AMEIA-LUAbrilhasobreasrochasdegranitoliso,deixando-asprateadas.Osilêncioéquebradoapenaspelaondulaçãodaságuasinquietasdorionegroepelosussurrodasárvoresnaflorestamaisadiante.Há uma agitação nas sombras e, por todo lado, figuras ágeis e escuras

rastejamfurtivamentesobreaspedras.Garrasàmostrafaíscamàluzdaluaeolhosdesconfiadoscintilamcomoâmbar.Então,comoseobedecessemaumsinalsilencioso,ascriaturassaltamumassobreasoutras;derepente,gatoslutamaosgritos,dandovidaaogranito.Nomeiodofrenesidepelosegarras,umenormegatomalhadoelevaa

cabeçaemtriunfoaoimobilizarumoutro,cordexaxim,nosolo.–CoraçãodeCarvalho!–rugeoagressor.–Comoousacaçaremnossoterritório?AsRochasEnsolaradaspertencemaoClãdoTrovão!–Depoisdestanoite,GarradeTigre, este territóriopassa a ser apenas

outrazonadecaçadoClãdoRio!–respondeogatocordexaxim,cuspindoaspalavras.Um uivo de alerta, estridente e ansioso, chega da margem do rio: –

Cuidado!AívêmmaisguerreirosdoClãdoRio!–GarradeTigreseviraevêcorpos lustrosos e molhados saindo da água abaixo das rochas. OsguerreirosdoClãdoRio,encharcadoseemsilêncio,vãoparaabeiraeseprecipitamnabatalha,semnemsequersepreocuparemsacudiraáguadopelo.OgatoescurolançaumolharfuriosoparaCoraçãodeCarvalho.–Vocêe

seus guerreiros podem nadar como lontras, mas não pertencem a estafloresta!–Elearreganhaaboca,mostrandoosdentes,enquantoogatosedebatesobseucorpo.NomeiodoalaridosedestacaogritodesesperadodeumagatadoClãdo

Trovão. Um felino de pelo eriçado do Clã do Rio conseguiu imobilizar aguerreira marrom, deitando-a de barriga no chão. Agora ele lhe ataca opescoço;dabocaaindapingaaáguadorio.GarradeTigreouveo grito e soltaCoraçãodeCarvalho.Comumpulo

vigoroso,afastadagataoguerreiroinimigoeordena:–Depressa,PelodeRato, corra! – grita, antes de atacar o gato do Clã do Rio, que tinhaameaçadoaamiga.PelodeRatoobedece,tropeçandonasprópriaspatasetremendoporcausadeumprofundocortenoombro.Atrásdela,GarradeTigrecospecomraivaquandoogatodoClãdoRio

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lheabreumafendanonariz.Osangueocegaporuminstante,maselesejogaparaafrentedequalquermaneiraecravaosdentesnapernatraseiradoinimigo.OgatodoClãdoRiodáumgritoagudoeconseguesesoltar.– Garra de Tigre! –O rugido vemde um guerreiro de cauda vermelha

comopeloderaposa.–Issoéinútil!SãoinúmerososguerreirosdoClãdoRio!–Não,RaboVermelho.OClãdoTrovão jamais será vencido – vocifera

Garra de Tigre, pulando para o lado do companheiro. – Este território énosso!–Osanguejorradeseufocinholargoenegro,eelesacodeacabeça,impaciente,espalhandogotasvermelhaspelasrochas.–OClãdoTrovãovaireconhecersuacoragem,GarradeTigre,masnão

podemos nos dar ao luxo de perder mais nenhum guerreiro – RaboVermelhoargumenta. –EstrelaAzul jamaisadmitiriaque seusguerreiroslutassem em situação tão adversa. Teremos outra oportunidade paravingar esta derrota! – Ele recebe com firmeza o olhar cor de âmbar deGarra de Tigre; dá um passo para trás e salta para a pedra à beira dafloresta.– Bater em retirada, Clã do Trovão! Em retirada! – ele grita.

Imediatamente os guerreiros se contorcem e conseguem se desvencilhardos adversários. Salivando e rosnando, recuam na direção de RaboVermelho. Pelo espaço de umabatida de coração, os gatos do Clã doRioficam confusos. Teria sido assim tão fácil vencer a batalha? Coração deCarvalhodáumgritodealegria.Assimqueoouvem,osguerreirosdoClãdoRioelevamasvozesesejuntamaoseurepresentante,comemorandoavitória.RaboVermelhoolhaparaseusguerreiros.Comummovimentorápidoda

cauda,dáosinal.OsgatosdoClãdoTrovãopenetramnamataemdireçãoàsRochasEnsolaradasedesaparecementreasárvores.GarradeTigreéoúltimo.Hesitaàbeiradaflorestaeolhaparatrás,para

ocampodebatalhamanchadodesangue.Seurostoéassustador;osolhos,fendas raivosas. Então, com um salto, ele se embrenha na florestasilenciosa,parasejuntaraoClã.

Énoite.Numaclareiradeserta,umagataolhaparao céu.Está sozinha; évelha e acinzentada. Em meio às sombras, ouve a respiração e sente ainquietudedosgatosquedormem.Umapequenagataatartarugadasurgedeumcantoescuro,compassos

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rápidosesilenciosos.A gata cinza abaixa a cabeça num cumprimento. – Como está Pelo de

Rato?–mia.– As feridas são profundas, Estrela Azul – responde a atartarugada,

acomodando-sena gramaúmidapeloorvalho. –Mas ela é joveme forte;logovaificarboa.–Eosoutros?–perguntaEstrelaAzul.–Tambémvãoserecuperar.Estrela Azul suspira. – Temos sorte de não ter perdido nenhum dos

nossos guerreiros dessa vez. Você é uma curandeira talentosa, FolhaManchada.–Elavoltaa inclinaracabeça,observandoasestrelas.–Estouprofundamenteperturbadacomaderrotadehoje.DesdequemetorneiachefedoClãdoTrovão, jamais tínhamossidovencidosemnossopróprioterritório–murmura.–Sãotemposdifíceisparaonossoclã.Aestaçãodorenovoestáatrasada,enascerammenosfilhotes.Parasobreviver,oClãdoTrovãoprecisacontarcommaisguerreiros.– Mas o ano mal começou – observa calmamente Folha Manchada. –

Haverámaisfilhotesquandochegaraestaçãodasfolhasverdes.A gata cinza balança os ombros largos. – Talvez.Mas leva tempo para

adestrar os jovens para a guerra. Para o Clã do Trovão defender seuterritório,énecessárioquehajanovosguerreiroslogoquepossível.–VocêestápedindorespostasaoClãdasEstrelas?–miaFolhaManchada

comdelicadeza,seguindooolhardeEstrelaAzulecontemplandoafaixadeestrelasquepiscamnocéuescuro.–Éemhorasassimqueprecisamosdaspalavrasdeantigosguerreiros

paranosajudar.OClãdasEstrelassecomunicoucomvocê?–perguntaalíder.–Não;ejásepassaramalgumasluas,EstrelaAzul.Desúbito,umaestrelacadenteriscaocéusobreasárvores.Acaudade

FolhaManchadaestremeceeopeloaolongodaespinhasearrepia.AsorelhasdeEstrelaAzulseretesam,maselamantémsilêncioenquanto

FolhaManchadacontinuaafitarocéu.Depoisdealgunsinstantes,FolhaManchadaabaixaacabeçaesedirigea

EstrelaAzul:–FoiumamensagemdoClãdasEstrelas–sussurra.Seuolharsetornadistante.–Sóofogopodesalvarnossoclã.–Ofogo?–EstrelaAzulrepete.–Masofogoétemidoportodososclãs!

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Comopodenossalvar?FolhaManchadabalançaa cabeça. –Não sei – admite. –Masessa foi a

mensagemqueoClãdasEstrelasdecidiupartilharcomigo.AlíderdoClãdoTrovãofixaosolhosazuiseclarosnacurandeiraemia:

–Vocênuncaseenganouatéagora,FolhaManchada.SeoClãdasEstrelasfalou,assimserá.Ofogovaisalvarnossoclã.

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CAPÍTULO1

ESTAVAMUITO escuro. Ferrugem sentia que havia algo por perto. O jovemgatoarregalouosolhosaoobservaratentamenteavegetação.Nãoconheciao lugar, mas os odores estranhos o atraíam em direção às sombras. Abarriga roncava, lembrando-lhe a fome. Abriu ligeiramente a boca paradeixaroscheirosfortesdaflorestaalcançaremasglândulasolfativasdocéudaboca.Odoresbolorentosdehumodefolhasemisturavamcomoaromatentadordeumacriaturapequenaepeluda.De súbito, um risco cinza passou correndo por ele. Ferrugem ficou

parado, prestando atenção. Alguma coisa se escondia entre as folhas, amenosdeduascaudasdedistância.Sabiaqueeraumcamundongo–sentia,no fundo do pelo das orelhas, o rápido pulsar de um pequeno coração.Ferrugem salivou, tranquilizando o estômago barulhento. Em breve suafomeseriasatisfeita.Agachou-selentamente,preparando-separaoataque.Estavanadireção

contráriaàdovento;sabiaqueocamundongonãotinhaconhecimentodasuapresença.Ferrugemexaminoumaisumavezaposiçãodapresa,jogoubemosquadrispara trásepulou, levantandoas folhascaídasnochãodafloresta.O camundongo procurou um buraco no chão onde se esconder. Mas

Ferrugemfoimaisrápido.Conseguiuapanhá-lonoar,prendendoacriaturaindefesa com as garras afiadas, atirando-a para o alto e vendo-a cair nochão coberto de folhas. O camundongo aterrissou aturdido, mas vivo.Tentoucorrer,masogatovoltouaagarrá-lo.Jogou-olongemaisumavez,agoraumpoucomaisadiante.OcamundongoaindaconseguiudaralgunspassostrôpegosantesdeFerrugemalcançá-lo.Foiquando seouviuum fortebarulho,que fezFerrugemolhar à volta.

Com isso, o camundongo conseguiu se soltar.QuandoFerrugemsevirou,viu a presa disparar na escuridão entre as raízes entrelaçadas de umaárvore.Zangado,Ferrugemdesistiudacaça.Girouocorpo,comosolhosverdes

atentos, procurando descobrir o que era o barulho que lhe custara oalmoço.Oruído,comoodepedrinhascaindonumasuperfíciedura,tornou-semaisfamiliar.Ferrugemarregalouosolhos.Aflorestatinhadesaparecido.Eleseviunumacozinhaquenteeabafada,

enroscadonacama.A luzda luapassavapelas janelas, lançandosombras

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nochãolisoeregular.Obarulhoforacausadopelasbolinhasderaçãodura,seca,colocadasnasuatigela.Ferrugemtinhasonhado.O gato levantou a cabeça e apoiou o queixo na lateral da cama. Sentia

umacoceiraincômodasobacoleira.Nosonho,tinhasentidoumacorrentedearfrescodespentearopelomacioondeacoleiranormalmentepinicava.Ferrugem rolou o corpo no chão e saboreou o sonho por mais algunsmomentos.Aindapercebiacheirodecamundongo.Eraaterceiravezdesdea lua cheia que tinha o mesmo sonho; e todas as vezes o camundongoescaparadesuasgarras.Ferrugem passou a língua nos lábios. Da cama sentia o cheiro pouco

apetitosodaração.Osdonossempreenchiamsuatigelaantesdeirdormir.O odor poeirento afugentou os cheiros prazerosos do sonho. Mas oestômago continuava roncando e o gato espichou as patas para acordar,atravessandoacozinhaparajantar.Acomidalhepareceusecaesemgosto.Relutante,Ferrugemengoliumaisumaporção.Afastou-sedatigelaesaiupela pequena passagem recortada na porta da cozinha, esperando que ocheirodojardimtrouxessedevoltaasensaçãodosonho.Doladodefora,aluabrilhava.Choviafino.Alerta,Ferrugempercorreuo

jardim bem cuidado, seguindo o caminho de cascalho iluminado pelasestrelas, sentindo as pedrinhas frias e cortantes sob as patas. Defecoudebaixo de um arbusto de folhas verdes brilhantes e floresmuito roxas,cujoperfumeexcessivamentedoceimpregnavaoarúmido.Ogatoretorceuolábioparaespantaraquelecheirodasnarinas.Em seguida, instalou-se no alto da cerca que marcava os limites do

jardim. Era um dos seus lugares favoritos, pois dali podia ver os jardinsvizinhosetambémadensaflorestaverdedooutrolado.Achuvatinhaparado.Atrásdele,agramacortadarenteestavabanhada

peloluar;mas,alémdacerca,aflorestaestavacheiadesombras.Ferrugemesticouopescoçoparainspiraroarúmido.Apeleestavamornaesecasobagrossapelagem,maselesentiaopesodasgotasdechuvaquepingavamnopeloavermelhado.Ouviu os donos chamando-o da porta dos fundos. Se fosse para casa,

seriarecebidocomcarinhosepalavrasgentis;seriaacolhidonacamadeles,ondeseenroscaria,ronronando,quentinhonadobradeumjoelho.Mas, dessa vez, Ferrugem ignorou as vozesdosdonos e voltou a olhar

paraafloresta.Ocheirofrescodavegetaçãotinhaseacentuadodepoisdachuva.

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Derepente, sentiuopelodaespinhasearrepiar. Seriaalgumacoisa semexendo lá fora? Alguma coisa que o observava? Ferrugem arregalou osolhos, mas era impossível ver ou farejar qualquer coisa no ar escuro eimpregnadodocheirodasárvores.Levantouoqueixo,destemido;ficoudepé e espichouo corpo, cravando as garras na cerca enquanto esticava aspernasearqueavaascostas.Fechouosolhoseinalouocheirodaflorestamais uma vez. O odor parecia lhe prometer alguma coisa, atraindo-o nadireção das sombras sussurrantes. Tensionando osmúsculos, agachou-seporummomento.Puloucomlevezanadireçãodagramairregulardooutroladodacerca.Aopousar,oguizodopescoçosoounosilênciodanoite.–Aondevocêestáindo,Ferrugem?–umavozfamiliarmiouatrásdele.Ferrugemolhouparacima.Umjovemgatopretoebrancoseequilibrava

semjeitonacerca.–Olá,Borrão–Ferrugemrespondeu.–Vocênãovaientrarnafloresta,vai?–perguntouBorrão,arregalando

osolhoscordeâmbar.–Vousódarumaolhadinha–Ferrugemprometeu, remexendo-se com

certoincômodo.– Eu é que não vou com você. É perigoso! – disse Borrão, franzindo o

nariz negro para expressar seu desagrado. – Henry disse que uma vezentrou na floresta. – O gato ergueu a cabeça e apontou com o nariz nadireçãoalémdacerca,paraojardimondeHenrymorava.– Aquele gato gordo e velho nunca entrou na floresta! – Ferrugem

debochou.–Elemalsaiudopróprio jardimdesdea idaaoveterinário.Sópensaemcomeredormir.–Nãoébemassim.Eleapanhouumpapo-roxolá!–Borrãoinsistiu.–Seissoaconteceu,foiantesdeiraoveterinário.Eleagorareclamados

passarinhosqueperturbamoseucochilo.– De qualquer maneira – Borrão continuou, ignorando o sarcasmo

contidonomiadodoamigo–,Henrymedisseque,nafloresta,existetodotipodeanimaisperigosos.Enormesfelinos,selvagens,quecomemcoelhosvivosnocafédamanhãeafiamaspatasemossosvelhos!–Vousódarumaespiada–Ferrugemmiou.–Nãovoudemorar.–Depoisnãodigaquenãoavisei!–ronronouBorrão,queentãovirou-se,

pulandodacercaparaseujardim.Ferrugemsentounagramamaltratadaalémdacerca.Deuumalambida

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nervosanoombro,perguntando-sequantohaviadeverdadenaspalavrasdeBorrão.De repente, seuolhopercebeuomovimentodeumapequena criatura,

quecorriaparabaixodeunsarbustos.Oinstintoofezseagachar.Devagar,umapatadepoisdaoutra,rastejou

paraafrente,nomeiodavegetação.Asorelhasseretesaram,asnarinasseaguçaram;sempiscar,foinadireçãodoanimal.Eleoviaclaramenteagora,sentadoentreos galhos farpados,mordiscandoumagrande sementequetinhaentreaspatas.Eraumcamundongo.Ferrugembalançouosquadrisdeum ladoparaooutro,preparando-se

parapular.Prendeuarespiraçãoparaevitarqueoguizovoltassea tocar.Estava tão empolgado que o coração acelerou. Era ainda melhor que osonho!Foiquandooestalorepentinodegalhosefolhassecasofezsaltar.Oguizoressoou,traiçoeiro,eocamundongoescapouvelozmentepelapartemaisespessadoemaranhadodosarbustos.Impassível,Ferrugemolhouàvolta.Viumaisadianteapontabrancade

umrabovermelhoepeludopassandoporumamoitadesamambaiasaltas.Ocheiroeraforteeestranho;tratava-se,semdúvida,deumcarnívoro;masnão era gato nem cachorro. Distraído, Ferrugem se esqueceu docamundongoeficouobservandocuriosamenteorabovermelho.Queriavê-lomelhor.Todos os sentidos de Ferrugem se aguçaram quando ele se pôs a

avançar. Então, percebeu outro barulho, que vinha de trás, mas pareciasurdo e distante. Girou as orelhas para trás para ouvir melhor. Seriampatas?,perguntou-se, semdesviaroolhardopeloestranhoevermelho;eseguiuemfrente,sorrateiro.FoisóquandoosomficoumaisclaroàssuascostaseasfolhasestalarammaispertoqueFerrugemsedeucontadequeestavaemperigo.A criatura o atingiu como uma explosão e Ferrugem foi jogado para o

ladoemumamoitadeurtigas.Elesecontorceuegritou,tentandoescapardo agressor que se colocara às suas costas e o prendera com garrasincrivelmente afiadas. Sentiu no pescoço os dentes pontudos. Encolheu ocorpo,retorcendo-sedosbigodesàcauda,semconseguirsesoltar.Poruminstanteseviuindefeso;ficouimóvel.Pensandorápido,jogou-sedecostasnochão.Porinstinto,sabiacomoeraperigosoexporabarrigamacia,maserasuaúnicachance.Teve sorte – a manobra pareceu funcionar. Ouviu um “uuufff” sob o

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corpo, como se o agressor tivesse perdido o fôlego. Debatendo-se comviolência,Ferrugemconseguiuselibertar.Semolharparatrás,disparoudevoltaparacasa.Atrás dele, um barulho de patas avisava que o atacante não desistira.

Mesmocomasferidasdoendosobopelo,Ferrugemdecidiuqueeramelhorvirar-seeenfrentá-lodoquesernovamenteatacado.Paroucomumaderrapadae,girando,encarouacriaturaqueoperseguia.Eraoutrojovemgato,depelocinza,grossoefelpudo,compernasfortese

rosto largo.Num tique-taquede coração, Ferrugempercebeupelo cheiroquesetratavadeummachoepressentiuaforçadeseusombrosfirmessobapelagemmacia.Foiquandooagressorpulousobreeleatodavelocidade.Pego de surpresa pela guinada de Ferrugem, o gato, atordoado, seesborrachou.O impacto deixou Ferrugem sem fôlego, e ele cambaleou. Mas logo se

colocoudepéearqueouascostas,eriçandoopeloalaranjado,prontoparapular em cima do outro gato. Mas o agressor simplesmente sentou ecomeçoualamberapatadianteira,semnenhumsinaldeagressividade.Ferrugem sentiu-se estranhamente desapontado. Cadamembro do seu

corpoestavatenso,prontoparalutar.–Ei,vocêaí,seugatinhodegente!–miou,animado,ofelinocinza.–Para

umgatodoméstico,vocêatéquelutamuitobem!Ferrugemmanteve-senapontadospésporuminstante,aseperguntar

sevoltavaaatacarounão.Maslembrou-sedaforçadaspatasdoagressorquando fora imobilizadonochão.Entãoabaixou-se, soltouosmúsculoseesticou as costas. – E vou lutar com você de novo se for necessário –rosnou.– A propósito, meu nome é Pata Cinzenta – continuou o gato cinza,

ignorando a ameaça de Ferrugem. – Estou em treinamento para ser umguerreirodoClãdoTrovão.Ferrugem permaneceu em silêncio. Não entendia o que aquele Cinza

alguma coisa estava miando, mas sentiu que a ameaça tinha passado.Disfarçousuaconfusãoinclinando-separalamberopeitoeriçado.–Oqueumgatinhode gente comovocê está fazendona floresta?Não

sabequeéperigoso?–perguntouPataCinzenta.–Sevocêéacoisamaisperigosaqueaflorestatemparaoferecer,acho

quepossoencarar–Ferrugemdesdenhou.Pata Cinzenta olhou-o por ummomento, estreitando os grandes olhos

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amarelos.–Ah,estou longedeseromaisperigoso.Seeu fosseaomenosmeio-guerreiro,teriaferidodeverdadeumintrusocomovocê.Ferrugem sentiu um arrepio demedo ao ouvir as terríveis palavras. O

queéqueaquelegatoqueriadizercom“intruso”?–Dequalquermaneira–miouPataCinzenta,usandoosdentesafiados

paratirarumpedaçodegramaentreasgarras–,nãoacheiquevaliaapenamachucá-lo.Estánacaraquevocênãopertenceaumdosoutrosclãs.–Outrosclãs?–Ferrugem,confuso,repetiu.PataCinzentadeuumassovio impaciente.–Vocêdeve terouvido falar

dosquatroclãsdeguerreirosquecaçamnestaárea!EupertençoaoClãdoTrovão.Os outros clãs estão sempre tentando roubar aspresasdonossoterritório, principalmente o Clã das Sombras. Eles são tão ferozes queteriamcortadovocêemtiras,semnenhumapergunta.PataCinzentaparoude falarpara cuspir comraiva e continuou. –Eles

vêm para tomar as presas que são nossas por direito. É tarefa dosguerreiros do Clã do Trovão mantê-los fora do nosso território. Quandoterminarmeutreinamento,tambémsereitãoperigosoquefareiosoutrosclãs tremeremnaspelespulguentas. Elesnão vãoousar se aproximardenós!Ferrugem estreitou os olhos. Aquele devia ser um dos gatos selvagens

sobre os quais Borrão o tinha alertado! Vivendo sem luxo na floresta,caçando e lutando uns contra os outros pelo último pedaço de comida.Mesmo assim, Ferrugem não sentiu medo. Na verdade, era difícil nãoadmirar aquele gato confiante. – Você ainda não é um guerreiro? –perguntou.– Por quê? Pensou que eu fosse? – Pata Cinzenta miou, orgulhoso,

balançandoacabeçalargaepeluda.–Faltaaindamuitotempoparaeuserum guerreiro de verdade. Primeiro preciso passar pelo treinamento. Osjovens precisam ter seis luas de idade antes de sequer começar otreinamento.Hojeéaminhaprimeiranoitecomoaprendiz.– Por que você não arruma um dono com uma casa bonita e

aconchegante?Suavidaiasermuitomaisfácil–Ferrugemargumentou.–Existemmuitaspessoasque ficariamcomumgatocomovocê.Basta ficarunsdiasnumlugarondepossamvê-lo,fazendocaradefome…–Eelasvãomedarparacomerbolinhasqueparecemcocôdecoelhoe

mingau mole! – Pata Cinzenta interrompeu. – Nem morto! Não consigopensaremnadapiordoqueserumgatinhodegente!Elesnãopassamde

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brinquedos dos Duas-Pernas! Comendo umas coisas que não parecemcomida, defecando em uma caixa de areia, colocando o nariz na rua sóquando osDuas-Pernas permitem? Isso não é vida! Aqui é selvagem, é aliberdade.Entramose saímosnahoraquedána telha. –Terminoua falacom uma cusparada orgulhosa e miou com malícia. – Se nuncaexperimentouumcamundongofresquinho,vocêaindanãoviveu.Jáprovouumcamundongo?–Não–Ferrugemadmitiu,meionadefensiva.–Aindanão.– Acho que nunca vai entender – Pata Cinzenta suspirou. “Você não

nasceu selvagem, o que faz uma enormediferença. É preciso nascer comsangue de guerreiro nas veias ou sentir o vento nos bigodes. Gatos quenascemnosninhosdosDuas-Pernasnãopodemsentiramesmacoisa.Ferrugem lembrou como se sentira no sonho. – Isso não é verdade! –

miou,indignado.PataCinzentanãocontestou.Derepenteinterrompeuumalambidapelo

meioe,comapataaindalevantada,cheirouoar.–Farejogatosdomeuclã– murmurou. – É melhor você ir. Eles não vão gostar de encontrá-locaçandononossoterritório!Ferrugemolhouàvolta,perguntando-secomoPataCinzentapodiasaber

que um gato se aproximava. Ele não conseguia perceber nenhum cheirodiferentenabrisaquerecendiaafolha.MasseupelosearrepioucomotomdeurgênciadavozdePataCinzenta.–Depressa!–PataCinzentavoltouasussurrar.–Corra!Ferrugemsepreparouparapularnosarbustos,semsaberparaquelado

eraseguroseatirar.Mas já era tarde demais. Ouviu às suas costas um miado firme e

ameaçador.–Oqueestáacontecendoaqui?Ferrugem se voltou e viu uma grande gata cinzenta surgindo

majestosamente da vegetação. Era magnífica. Fios brancos lhe saíam dofocinhoeumafeiacicatrizdividiaopelodosombros;masapelagemcinzaelisabrilhavacomoprataàluzdalua.–EstrelaAzul!–AoladodeFerrugem,PataCinzentaagachoueestreitou

osolhos.Inclinou-seaindamaisquandoumoutrogato,douradoemalhado,entrounaclareira,logoatrásdagata.–VocênãodeveficartãopertodoLugardosDuas-Pernas,PataCinzenta!

–grunhiu,zangado,ogatodourado,apertandoosolhosverdes.–Eusei,CoraçãodeLeão,medesculpe–dissePataCinzenta,abaixando

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osolhosnadireçãodaspatas.Ferrugem fez como Pata Cinzenta e agachou no chão da floresta,

crispandoasorelhasnervosamente.Aquelesgatostinhamumquêdeforçaque ele nunca tinha visto em nenhum de seus amigos do jardim. TalvezBorrãotivesserazãoemadverti-lo.–Queméele?–agataperguntou.Ferrugem se encolheu sob o olhar de Estrela Azul. Os olhos azuis

penetrantesofizeramsentir-seaindamaisvulnerável.–Elenãoéumaameaça–PataCinzentamiourapidamente.–Nãoéum

guerreiro de outro clã, apenas um gato de estimação dos Duas-Pernas eviveforadosnossosterritórios.Apenas um gato de estimação dos Duas-Pernas! As palavras encheram

Ferrugem de raiva, mas ele segurou a língua. O olhar de advertência deEstrelaAzul lhedissequeelaperceberaaraivanosolhosdele;Ferrugemdisfarçou.–EstaéEstrelaAzul,alíderdomeuclã.–PataCinzentacochichoupara

Ferrugem. – Ele é Coração de Leão, meu mentor; é ele que está metreinandoparaserumguerreiro.– Obrigado pela apresentação, Pata Cinzenta – miou Coração de Leão

comfrieza.EstrelaAzul continuava a encarar Ferrugem. –Você luta bempara um

gatodeestimaçãodosDuas-Pernas–miou.FerrugemePataCinzentatrocaramolharesconfusos.Comoelasabia?–Estivemosobservandovocêsdois.Queríamossabercomovocêlidaria

comuminvasor,PataCinzenta.Vocêoatacoucombravura.PataCinzentaficouagradecidopeloelogiodalíder.– Sentem os dois! – miou Estrela Azul. Em seguida, olhando para

Ferrugem, acrescentou: – Você também, gatinho de gente. – Ferrugemsentoudeimediato,enfrentandotranquilamenteoolhardagata.– Você reagiu bem à investida, gatinho de gente. Pata Cinzenta émais

forte,mas você soubeusar da inteligência para se defender. E o encarouquandoeleoperseguiu.Nuncatinhavistoumgatinhodegentefazerisso.Ferrugem fez um gesto de agradecimento, surpreso por aquele elogio

inesperado.Aspróximaspalavrasodeixaramaindamaisimpressionado.– Tentei imaginar como você se comportaria aqui, fora do lugar dos

Duas-Pernas. Patrulhamos esta fronteira o tempo todo; vi você muitas

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vezessentadonacerca,olhandoparaafloresta.Eagora,finalmente,ousoucolocaraspatasaqui.–EstrelaAzul fitou-o,pensativa.–Parecequevocêtem mesmo uma habilidade natural para caçar. Olhos agudos. Teriaagarradoaquelecamundongosenãotivessehesitadotanto.–M-mesmo?–Ferrugemgaguejou.CoraçãodeLeãosemanifestou.Seumiadoprofundoerarespeitoso,mas

insistente. – Estrela Azul, isso é um gatinho de gente. Não devia estarcaçandono territóriodoClãdoTrovão.Mande-oembora,devoltaparaacasadosDuas-Pernas!Ferrugemarrepiou-secomaspalavrasdedispensadeCoraçãodeLeão.–

Me mandar para casa? – miou, impaciente. Ficara orgulhoso com aspalavras deEstrelaAzul. Ela o notara, tinha se impressionado comele. –Massóvimaquiparacaçarumoudoiscamundongos.Tenhocertezadequehábastanteparatodos.Estrela Azul, que tinha virado a cabeça para ouvir Coração de Leão,

voltou-separaFerrugem.Osolhosazuisbrilhavamcomraiva.–Nuncahábastanteparatodos–disparou.–Sevocênãotivesseumavidafolgada,comcomidaàvontade,saberiadisso!FerrugemficouconfusocomasúbitaraivadeEstrelaAzul,masumúnico

olharparaorostoapavoradodePataCinzentabastou-lheparasaberquefalara demais. Coração de Leão colocou-se ao lado da líder. Os doisguerreirospareciammaioresagora.AomiraroolharameaçadordeEstrelaAzul,Ferrugemviuseuorgulhodesaparecer.Nãoestavalidandocomgatosque se aconchegam em frente a lareiras – aqueles eram felinos maus efamintos, que provavelmente iriam terminar o que Pata Cinzenta tinhacomeçado.

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CAPÍTULO2

–EENTÃO?–SIBILOUEstrelaAzul,comorostoaumcamundongodedistânciadodele.CoraçãodeLeãomantevesilêncio,enquantoseagigantavadiantedeFerrugem.Ele abaixou as orelhas e encolheu-se sob o olhar frio do guerreiro

dourado.Seuspelosseeriçavamdemaneiraincômoda.–Nãosouameaçaparaoseuclã–miou,comosolhospostosnaspatas,quetremiam.–Você ameaça nosso clã quando toma a nossa comida – uivouEstrela

Azul.–VocêtemmuitacomidanoninhodosDuas-Pernas.Vemaquisóparacaçarporesporte.Masnóscaçamosparasobreviver.A verdade contida nas palavras da rainha guerreira atingiu Ferrugem

comoumespinhoe,derepente,elecompreendeuaraivaqueEstrelaAzulsentia.Paroudetremer,sentou,empinouasorelhase,buscandoosolhosda gata com os seus, disse: – Ainda não tinha pensado no assunto dessamaneira.Sintomuito–miou,respeitoso.–Nãovoumaiscaçaraqui.EstrelaAzuldesarmouospelose fezumsinalparaCoraçãodeLeãose

afastar.–Vocênãoécomoosoutrosgatinhosdegente,Ferrugem–miou.O suspiro de alívio de Pata Cinzenta fez as orelhas de Ferrugem se

contraírem.ElesentiuaaprovaçãonavozdeEstrelaAzulepercebeuqueagata trocara um olhar significativo com Coração de Leão. Aquele olhar odeixou curioso. O que passava pela mente dos dois guerreiros? Calmo,perguntou:–Asobrevivênciaaquiémesmotãodifícil?– Nosso território cobre apenas parte da floresta – respondeu Estrela

Azul. – Competimos com outros clãs pelo que temos. E, este ano, com oatrasodaestaçãodorenovo,haveráescassezdepresas.–Égrandeoseuclã?–Ferrugemmiou,olhosarregalados.–Grandeosuficiente–respondeuEstrelaAzul.–Nossoterritóriopode

nossustentar,masnãohásobradepresas.– Então vocês todos são guerreiros? – miou Ferrugem. As respostas

cautelosasdeEstrelaAzulodeixavamcadavezmaiscurioso.FoiCoraçãodeLeãoquerespondeu:–Algunssãoguerreiros.Algunssão

jovensdemaisparaisso,outrosvelhosdemais,eoutrasaindasãoocupadasdemaisparacaçar,poiscuidamdosfilhotes.– E vocês todos vivem juntos e dividem as presas? – Ferrugem

murmurou, assombrado, sentindo-se um pouco culpado pela vida fácil e

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egoístaquelevava.EstrelaAzulvoltoua fitarCoraçãodeLeão.Ogatodouradodevolveuo

olhar com firmeza. Por fim, ela mirou Ferrugem novamente e miou: –Talvezvocêpossadescobriressascoisasporsimesmo.OqueachadesejuntaraoClãdoTrovão?Ferrugemficoutãosurpresoquenãoconseguiafalar.EstrelaAzulcontinuou:–Sevocêvier,vaitreinarcomPataCinzentapara

setornarumguerreirodoclã.– Mas gatinhos de gente não podem ser guerreiros! – Pata Cinzenta

deixouescapar.–Elesnãotêmsanguedeguerreiro!A tristezanublouosolhosdeEstrelaAzul. – Sanguedeguerreiro–ela

repetiucomumsuspiro.–Muitosanguejáfoiderramadoultimamente.A gata fez silêncio e Coraçãode Leãomiou: – EstrelaAzul está apenas

oferecendo treinamentoavocê, jovemgato.Nãohágarantiade se tornarrealmenteumguerreiro.Podeacabarsendodifícildemaisparavocê.Afinal,estáacostumadoaumavidaconfortável.Ferrugemsentiu-seatingidopelaspalavrasdeCoraçãodeLeão.Giroua

cabeçaparaolhardefrenteogatodourado.–Então,porquemeofereceraoportunidade?Mas foi Estrela Azul que respondeu. – Você está certo em questionar

nossosmotivos,meu jovem.A verdade é que o Clã doTrovãoprecisa demaisguerreiros.– Entenda que Estrela Azul não faz essa oferta de maneira leviana –

advertiuCoraçãodeLeão.–Sequiserfazerotreinamentoconosco,teremosde levá-lo para o nosso clã. Ou você vive conosco e respeita nossoscostumesouterádevoltarparaolugardosDuas-Pernasejamaisretornar.Nãodáparavivercomumapataemcadamundo.Uma brisa fresca movimentou a vegetação, encrespando os pelos de

Ferrugem.Eletremeu,nãoporcausadofrio,maspelaempolgaçãoanteasincríveispossibilidadesqueseabriamdiantedele.–Vocêestápensandosevaleapenaabrirmãodesuavidaconfortávelde

gatinho de gente? – perguntou, delicada, Estrela Azul. – Mas percebe opreçoquevaipagarpelocalorepelacomida?Ferrugem olhou para ela, intrigado. Certamente o encontro com esses

felinoslheprovaracomosuavidaerafácilecheiadeluxo.–Possogarantirquevocêaindaéummacho–acrescentouEstrelaAzul

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–,apesardofedordosDuas-Pernasquevemdoseupelo.–Oquevocêquerdizercomaindaéummacho?–VocêaindanãofoilevadopelosDuas-PernasparaoCorta-Gato–miou,

séria,EstrelaAzul. –Se isso tivesseacontecido, você seriabemdiferente.Nãoteriaficadotãoansiosoparalutarcomumgatodeclã!Ferrugem ficou confuso.De repente, pensou emHenry, que se tornara

gordo e preguiçoso desde a visita ao veterinário. Seria ao médico queEstrelaAzultinhasereferidocomooCorta-Gato?– O clã pode não ser capaz de lhe oferecer calor e comida fácil –

continuou Estrela Azul. – Na estação sem folhas, as noites na florestapodem ser cruéis. O clã vai exigir grande lealdade e trabalho duro. Vocêdeveráprotegê-locomaprópriavida,senecessário,ehámuitasbocasparaalimentar. Mas as recompensas são grandes. Você vai continuar sendomacho. Será treinadoàmaneirada floresta.Vai aprenderoqueé serumgatodeverdade.Aforçaeacamaradagemdoclãvãosempreacompanhá-lo,mesmoquevocêcacesozinho.AcabeçadeFerrugemgirava.EstrelaAzulpareciaestarlheoferecendoa

vida tentadoraqueele tantasvezesviveraemseussonhos;masseráquepoderiaviveraquilodeverdade?CoraçãodeLeãointerrompeu-lheospensamentos.–Venha,EstrelaAzul,

não vamos perder mais tempo aqui. Precisamos nos aprontar paraacompanhar a outra patrulha na lua alta. Garra de Tigre deve estar seperguntandooqueaconteceuconosco.–Levantou-seebalançouacauda,aguardando.–Espere–miouFerrugem.–Possopensarsobreaoferta?Estrela Azul olhou-o longamente e concordou. – Coração de Leão vai

estaraquiamanhãnosolalto–disse.–Dê,então,aresposta.Agatafezumpequenogestoe,emumúnicomovimento,ostrêsgatosse

viraramedesapareceramnavegetação.Ferrugempiscou.Voltouoolhar–empolgado, cheiodedúvidas–para

alémdassamambaiasqueocircundavam,atravésdacoberturade folhas,atéasestrelasquebrilhavamnocéuclaro.Ocheirodosgatosdoclãaindapesava no ar da noitinha. Quando virou-se e rumoupara casa, Ferrugemteveaestranhasensaçãodequealgoopuxavadevoltaparaasprofundezasda floresta. Seu pelo se eriçou deliciosamente na brisa; as folhasfarfalhandopareciammurmurarseunomenassombras.

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CAPÍTULO3

NAQUELAMANHÃ,aopassearemsonhosnovamente,Ferrugemvoltouaverocamundongo,aindamaisvívidodoqueantes.Livredacoleira,sobalua,eleperseguia a tímida criatura. Mas, dessa vez, sabia que estava sendoobservado. Brilhando no meio das sombras da floresta, via dezenas deolhosamarelos.Osgatosdoclãtinhamentradonomundodosseussonhos.Ferrugemacordou,piscandosobosolbrilhantequebanhavaochãoda

cozinha. Por causa do calor, seu pelo parecia pesado e espesso. Umadastigelas estava cheia de comida; a outra tinha sido lavada e continha umlíquidoamargo.ÁguadosDuas-Pernas.Ferrugempreferiabeberdaspoçasda rua, mas quando estava quente ou ele sentia muita sede, tinha deadmitir que era mais fácil beber a água de casa. Será que conseguiriaabandonaressavidaconfortável?Comeueatravessouaportinholaquedavanojardim.Odiaprometiaser

quente,eoaromadosprimeirosbotõesseespalhavapelojardim.–Olá,Ferrugem–umgatomioudacerca.EraBorrão.–Vocêdevia ter

acordado uma hora atrás. Os filhotes de pardal estavam aqui fora,alongandoasasas.–Vocêpegoualgum?–Ferrugemperguntou.Borrãobocejouelambeuonariz.–Nãoquismedaraotrabalho.Jácomi

bastanteemcasa.Porquedemorouasair?OntemestavasequeixandoqueHenryperdetempodormindoehojevocêfezigualzinhoaele.Ferrugem sentou na terra fresca ao lado da cerca e enrolou a cauda

caprichosamente sobre as patas dianteiras. – Na noite passada estive nafloresta – lembrou ao amigo. Imediatamente, sentiu o sangue ferver nasveiaseopeloseeriçar.Doaltodacerca,Borrãoarregalouosolhos.–Claro,tinhameesquecido!

Comofoi?Pegoualgumacoisa?Oualgumacoisapegouvocê?Ferrugem fez uma pausa, sem saber direito como contar ao velho

companheiro o que tinha acontecido. – Conheci alguns gatos selvagens –começou.–Oquê?–Borrãoestavaclaramenteperturbado.–Vocêsemeteunuma

briga?–Mais oumenos. – Ferrugem sentiu o corpo vibrar, ao se lembrar da

forçaedopoderdosgatosdoclã.

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–Vocêfoiferido?Oqueaconteceu?–Borrãoperguntou,ansioso.–Eleseramtrês.Maioresemaisfortesdoquequalquerumdenós.–Vocêlutoucomostrês!?–Borrãointerrompeu,balançandoacaudade

tantaempolgação.–Não!–Ferrugemmioudepressa.–Sócomomaisnovo;osoutrosdois

apareceramdepois.–Enãofizerampicadinhodevocê?–Sómeadvertiramparasairdoterritóriodeles.Masentão…–Ferrugem

hesitou.–Oquê?–Borrãomioucomimpaciência.–Meconvidaramparafazerpartedoclã.OsbigodesdeBorrãotremeram,numgestodedescrença.–Convidaram,sim!–Ferrugeminsistiu.–Porquefariamisso?–Nãosei–Ferrugemadmitiu.–Achoqueprecisamdepatasextrasno

clã.– Acho meio esquisito – Borrão duvidou. – Se eu fosse você, não

acreditarianeles.FerrugemolhouparaBorrão.Seuamigopretoebranconuncamostrara

nenhum interesse em se aventurar na floresta. Estava bem contentevivendo numa casa, com humanos. Jamais entenderia os desejosinquietantes que os sonhos de Ferrugem nele provocavam, noite apósnoite.–Masconfioneles–Ferrugemronronougentilmente.–E jámedecidi.

Voumejuntaraoclã.Borrãodesceucorrendodacercaesecolocounafrentedoamigo.–Por

favor,nãová,Ferrugem–miou,assustado.–Podeserquenuncamaisvejavocêdenovo.Ferrugemafagou-o afetuosamente coma cabeça. –Não sepreocupe.O

pessoaldaminhacasavaiarrumaroutrogatoevocêvaisedarbemcomele.Vocêsedábemcomtodoomundo!–Masnãovaiseramesmacoisa–Borrãolamentou.Ferrugembalançouacauda,impaciente.–Esseéoproblema.Seeuficar

poraqui,elesvãomelevaraoCorta-Gatoeeutambémnãovousermaisomesmo.

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Borrãosemostrouconfuso.–OCorta-Gato?–repetiu.–Oveterinário–Ferrugemexplicou.–Parasermodificado,comoHenry

foi.Borrão deu de ombros e abaixou os olhos na direção das patas. –Mas

Henryestábem–murmurou.–Querdizer,estáumpoucomaispreguiçosoagora,masnãoestáinfeliz.Aindapodemosnosdivertir.Ferrugem ficou como coração cheiode tristeza aopensar emdeixaro

amigo.–Sintomuito,Borrão.Vousentirsuafalta,mastenhodeir.Borrãonãorespondeu.Deuumpassoàfrentee,comdelicadeza,roçouo

narizdeFerrugemcomoseu.–Estábem.Seiquenãopossoimpedi-lo,mas,aomenos,vamospassarmaisumamanhãjuntos.

Ferrugem aproveitou aquela manhã ainda mais do que de costume,visitandoantigosrefúgioscomBorrão,conversandocomosgatoscomquecrescera. Seus sentidosestavam todosaguçados, comoseeleestivesse sepreparandoparadarumgrande salto.Quandoo sol estavaquaseapino,FerrugemjámalpodiaesperarparaverseCoraçãodeLeãoestariamesmoaguardandoporele.Ozumbidopreguiçosodomiadodeseusvelhosamigospareciaficarcadavezmaisaolonge,àmedidaquetodososseussentidosopuxavamparaafloresta.Ferrugem pulou da cerca do jardim pela última vez e entrou

furtivamente na floresta. Tinha se despedido deBorrão e agora todos osseuspensamentosestavamconcentradosna florestaenosgatosquenelamoravam.Ao se aproximar do lugar onde se encontrara com os gatos do clã na

véspera,sentouesaboreouoar.Árvoresaltasprotegiamochãodosoldomeio-dia, deixando-o agradavelmente fresco. Aqui e ali o sol brilhavaatravés de uma fresta nas folhas, iluminando a superfície da floresta.Ferrugemsentiuomesmocheirodegatodanoiteanterior,masnãotinhaideia se era um cheiro novo ou antigo. Levantou a cabeça e farejou, semmuitacerteza.– Você tem muito a aprender – miou uma voz grave. – Até o menor

filhotedoclãsabequandooutrogatoestáporperto.Ferrugem viu um par de olhos verdes brilhando debaixo de uma

amoreira.Agorareconheciaocheiro:eraCoraçãodeLeão.– Você sabe dizer se estou sozinho? – perguntou o gato dourado,

colocando-senaluz.

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Ferrugemimediatamentesepôsafarejardenovo.OsodoresdeEstrelaAzul e de Pata Cinzenta ainda estavam ali, mas não tão fortes como navéspera.Hesitante,miou:–EstrelaAzulePataCinzentadestaveznãoestãocomvocê.–Estácerto–miouCoraçãodeLeão.–Mastenhooutracompanhia.Ferrugem paralisou-se quando um segundo gato do clã entrou na

clareira.–ÉNevasca–ronronouCoraçãodeLeão.–Umdosguerreirosantigosdo

ClãdoTrovão.Ferrugemolhouparaogatoesentiuaespinhaformigardemedo.Seria

uma armadilha? De corpo comprido e robusto, Nevasca parou diante deFerrugemefitou-odecima.Apelagembrancaeraespessaeimaculada,eosolhos eram amarelos como areia queimada de sol. Ferrugem, prudente,abaixouasorelhasetensionouosmúsculos,preparando-separalutar.– Relaxe antes que o seu cheiro de medo atraia alguma atenção

indesejável–grunhiuCoraçãodeLeão.–Estamosaquiapenasparalevá-loaonossoacampamento.Ferrugem sentou bem quietinho, mal ousando respirar, enquanto

Nevascaespichavaonarizparafarejá-lo,curioso.–Olá,meujovem–miouogatobranco.–Jámefalarammuitodevocê.Ferrugemabaixouacabeça,cumprimentando-o.– Venha, poderemos conversar mais quando estivermos no

acampamento – ordenou Coração de Leão que, ato contínuo, pulou comNevasca rumo à vegetação. Ferrugem pulou também, seguindo-os tãodepressaquantopôde.SemesperarporFerrugem,osdoisguerreirosdispararampelaflorestae

ele logo se viu com dificuldade para acompanhá-los. Não retardaram amarcha nem mesmo ao conduzi-lo por cima das árvores caídas, quesaltaram com um simples pulo, enquanto ele teve de escalá-las pata porpata.Passaramnomeiodepinheirosdearomapenetrante,ondetiveramdepularvalasprofundasabertaspelo comedordeárvoresdosDuas-Pernas.Sentadoemsegurançanacercadojardim,Ferrugemoouviramuitasvezes,urrando e roncando a distância.Umadas valas, larga demais para saltar,com água lodosa e fétida, estava cheia até a metade. Os gatos do clãmergulharamepassaramporelasemtitubear.Ferrugem, até então, jamais pusera uma pata na água. Mas estava

decidido a não mostrar nenhum sinal de fraqueza; por isso estreitou os

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olhos e seguiu adiante, tentando ignorar a umidade incômoda que lheensopavaopelodabarriga.Finalmente, Coração de Leão e Nevasca pararam. Ferrugem estacou

bruscamenteatrásdelesealificou,arfando,enquantoosguerreirossubiamnumapedraàbeiradeumapequenaravina.–Estamosbempertodonossoacampamentoagora–miouCoraçãode

Leão.Ferrugemseesforçouparaveralgumsinaldevida–folhassemexendo,

umvislumbredepeloentreosarbustosabaixo–,massóconseguiuavistaramesmavegetaçãoquecobriaorestodochãodafloresta.– Use o nariz. Não é possível que você não esteja sentindo o cheiro –

sibilouNevasca,impaciente.Ferrugem fechou os olhos e farejou. Nevasca estava certo. Os aromas

erammuitodiferentesdocheirodegatoaqueestavaacostumado.Oodoreramaispesado,indicandomuitos,muitosgatosdiferentes.Balançouacabeça,pensativo,eanunciou.–Sintocheirodegatos.CoraçãodeLeãoeNevascatrocaramolharesdivertidos.–Vaichegarumahora,casoseintegreaoclã,emquevaiconhecercada

cheiro de gato pelo nome – Coração de Leão miou. – Siga-me! – Ágil,colocou-se à frente dos demais e desceu pelas pedras para o fundo daravina, abrindo caminho entre os tojos. Ferrugem seguiu atrás dele, comNevasca na retaguarda. Ao atravessar os tojos pontiagudos, que lhearranhavam os flancos, Ferrugem olhou para baixo e notou que a gramasob suas patas estava achatada, formando uma trilha larga e de cheiroforte.Deveseraentradaprincipaldoacampamento,pensou.Alémdos tojos, abria-seuma clareira.Nomeio, o chão eraduro e sem

vegetação, marcado por muitas gerações de solas de patas. Fazia muitotempoqueoacampamentoexistia.Aluzdosolinundavaaclareira,eoareraquenteeparado.Ferrugem observou ao redor, de olhos esbugalhados. Havia gatos por

toda parte, sentados sozinhos ou em grupo, dividindo comida ouronronandocalmamenteenquantopenteavamunsaosoutros.–Logodepoisdosolalto,quandoodiaestámaisquente,éhoradetrocar

lambidas–CoraçãodeLeãoexplicou.–Trocarlambidas?–Ferrugemrepetiu.–Osgatosdosclãssemprepassamumtempopenteandounsaosoutros

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econversandosobreasnovidadesdodia–disseNevasca.–Chamamosessehábitode“trocarlambidas”.Éumcostumequeuneosmembrosdoclã.Era evidente que os felinos tinham sentido o odor forasteiro de

Ferrugem,poisascabeçascomeçaramavoltar-se,curiosas,nasuadireção.Comrepentinavergonhadeencarardiretamentequalquerumdosgatos,

Ferrugem olhou à volta da clareira. Era rodeada de grama espessa,pontilhadacomtocosdeárvoreseumaárvorecaída.Umagrossacortinadesamambaiasetojosprotegiaoacampamentodorestodafloresta.– Ali – miou Coração de Leão, agitando a cauda na direção de um

emaranhadodeamoreiras,queparecia impenetrável–éoberçário,ondesecuidadosfilhotes.Ferrugem girou as orelhas na direção dos arbustos. Não conseguia

enxergaratravésdonódegalhospontudos,masouviuomiadodediversosfilhotes que vinha lá de dentro. Enquanto observava, uma gataavermelhadasurgiucontorcendo-seporumapequenafenda.Estadeveserumadasrainhas,Ferrugempensou.Uma rainha malhada, com manchas negras bem definidas, apareceu

pertodaamoreira.Asduasgatastrocaramumalambidaamigávelentreasorelhasantesqueamalhadaentrassenoberçário,falandobaixinhocomosfilhoteschorões.–Todasasrainhasajudamacuidardosfilhotes–miouCoraçãodeLeão.

–Todososgatosservemaoclã.AlealdadeaoclãéaprimeiraleidonossoCódigodosGuerreiros,umaliçãoquevocêprecisalogoaprendersequiserficarconosco.–AívemEstrelaAzul–miouNevasca,farejandooar.Ferrugem também farejou o ar e ficou satisfeito ao perceber que fora

capazdereconhecerocheirodagatacinzentauminstanteantesdeelasairdasombradeumagranderochaaoladodeles,naentradadaclareira.–Eleveio–EstrelaAzulronronou,dirigindo-seaosguerreiros.Nevascareplicou:–CoraçãodeLeãotinhacertezadequenãoviria.Ferrugemnotouque a ponta da caudadeEstrelaAzul estremecia com

impaciência.–Eentão?Oqueachamdele?–agataperguntou.– Aguentou bem a viagem de volta, apesar de ser um gato pequeno –

Nevascaadmitiu.–Pareceforteparaumgatinhodegente.–Entãoestáaceito?–EstrelaAzulperguntou,dirigindo-seaCoraçãode

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LeãoeaNevasca.Osgatosaprovaramcomacabeça.– Sendo assim, vou anunciar ao clã sua chegada – disse Estrela Azul,

pulandoparaapedraeuivando.–Quetodososgatoscomidadesuficienteparacaçaraprópriapresacompareçamaumareuniãodoclã,aquisobaPedraGrande.Ao ouvirem o chamado alto e claro, todos os gatos se dirigiram até

Estrela Azul, como sombras líquidas surgidas das laterais da clareira.Ferrugem ficouonde estava, entreCoraçãodeLeão eNevasca.Os outrosfelinosseinstalaramsobaPedraGrande,olhandocuriososparaalíder.Ferrugem sentiu um certo alívio ao reconhecer o pelo farto e cinza de

Pata Cinzenta entre os gatos. Ao lado dele estava uma jovem rainhaatartarugada,comacaudadepontanegra jeitosamentepousadasobreaspequenaspatasbrancas.Umgatogrande,depelocinzamalhado,agachouatrás deles; as listas pretas de seu pelo pareciam sombras num chão deflorestabanhadopelalua.Quandoosgatos ficaramquietos,EstrelaAzul falou:–OClãdoTrovão

precisademaisguerreiros.Nuncaantestivemostãopoucosaprendizesemtreinamento como agora. Foi decidido que o Clã do Trovão vai admitiralguémdeforaparasertreinadocomoguerreiro…Ferrugem ouviumurmúrios indignados surgirem emmeio ao clã, mas

Estrela Azul silenciou-os com um uivo firme. – Encontrei um gato quedesejasetornaraprendizdoClãdoTrovão.–Sortedele tornar-se um aprendiz – guinchou uma voz alta acima da

ondadeespantoqueseespalhouentreosgatos.Ferrugemergueuopescoçoeviuumgatomalhadoedesbotadoquese

levantaraeencaravaalíderdemaneiradesafiadora.Estrela Azul o ignorou e se dirigiu a todo o clã: – Coração de Leão e

Nevasca conheceram esse jovem gato e concordam comigo que devemostreiná-lojuntocomosdemaisaprendizes.FerrugemolhouparaCoraçãodeLeãoe,maisumavez,fitouosgatosdo

clã, encontrando todosos olhos grudadosnele. Seupelo se crispou e ele,nervoso, engoliu em seco. Por um instante se fez silêncio. Ferrugem nãotevedúvidasdequetodospodiamouvirseucoraçãopulsareperceberseucheirodemedo.Uivosensurdecedorescomeçaramentãoabrotardamultidão.–Deondeelevem?

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–Aqueclãpertence?– Ele tem um cheiro esquisito! Não é o cheiro de nenhum clã que eu

conheça!Um guincho em especial se sobressaiu: – Vejam a coleira dele! É um

gatinhode gente. – Eradenovoo gatodesbotado. –Umavez gatinhodegente,sempregatinhodegente.Esteclãprecisadeguerreirosnascidosnaflorestaparadefendê-lo,enãodeoutrabocadelicadaparaalimentar.CoraçãodeLeãoseinclinouecochichounaorelhadeFerrugem:–Esse

gato se chama Rabo Longo. Ele está percebendo o seu cheiro de medo.Aliás,todosestão.Vocêprecisaprovaraeleeaosdemaisqueomedonãovaiimpedi-lodelutar.MasFerrugemnãoconseguiasemexer.Comoiriaprovaràquelesgatos

ferozesquenãoeraapenasumgatinhodegente?Rabo Longo continuou a zombar dele: – Sua coleira é umamarca dos

Duas-Pernas, e esse guizo barulhento vai fazer de você, na melhor dashipóteses,umcaçadordearaque.Napior,vaiatrairosDuas-Pernasparaonossoterritório,àprocuradopobregatinhodegenteperdidonafloresta,comsuacampainhadedardó.Todososgatosgritaram,concordando.RaboLongocontinuou,sabendoquecontavacomoapoiodaplateia:–O

barulhodoseusinodelatorvaialertarnossos inimigos,aindaqueo fedordosDuas-Pernasnãoosatraia!CoraçãodeLeãovoltoua cochicharnaorelhadeFerrugem:–Vocêvai

fugirdeumdesafio?Ferrugemcontinuava imóvel.Mas, agora, tentava localizarRaboLongo.

Láestavaele,bematrásdeumarainhamarrom-escura.Ferrugemabaixouasorelhas e estreitouosolhos.Então, sibilando,pulouatravésdosgatos,queficaramsurpresosaovê-lolançar-sesobreoagitador.Rabo Longo estava completamente despreparado para o ataque de

Ferrugem. Cambaleou para um lado, sem conseguir se firmar na terraressequida.Cheioderaivaeansiosoporprovarseuvalor,Ferrugemenfiouas garras com vontade no pelo de Rabo Longo e cravou-lhe os dentes.Nenhumritualsutildemiadosegolpesdepatasantecedeuocombate.Osdois gatos, aos gritos, se engalfinharamnuma luta de saltosmortais pelaclareira, no centro do acampamento. Os outros felinos precisaram darespaçoparaevitaroestridenteredemoinhodepelos.À medida que arranhava e lutava, Ferrugem percebeu que não sentia

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medo, mas prazer. No meio do sangue que fazia ruído em suas orelhas,ouviaosgatosaoredorgritandodeempolgação.Foi quando sentiu a coleira apertar-lhe o pescoço. Rabo Longo a

encaixara entre os dentes e puxava, cada vez commais força. Ferrugemsentiuumapressãoterrívelnopescoço.Semconseguirrespirar,apavorou-se.Virou-seecontorceu-se,mas,acadamovimento,apressãopiorava.Comânsiadevômitoe sufocando, reuniu todasas forçase tentouescapardasgarrasdeRaboLongo.Derepente,comumforteestalo,eleseviulivre.Rabo Longo caiu longe. Ferrugem se levantou e olhou à volta. Rabo

Longo estava agachado a três caudas de distância, com a coleira deFerrugempenduradanaboca,destroçada.Imediatamente Estrela Azul desceu da Pedra Grande e silenciou a

multidãocomummiadotonitruante.FerrugemeRaboLongocontinuaramondeestavam,tentandorecuperarofôlego.Tufosdepelopendiamdesuapelagem eriçada. Ferrugem sentiu um corte latejando sobre o olho. AorelhaesquerdadeRaboLongoestavabemmachucada,epingavasanguede seus ombros magros no chão empoeirado. Um encarava o outro; ahostilidadenãotinhaacabado.EstrelaAzuladiantou-seetomouacoleiradeRaboLongo.Colocou-ano

chãoàsuafrenteemiou:–Orecém-chegadoperdeusuacoleiradosDuas-Pernasnumabatalhaporsuahonra.OClãdasEstrelasdeusuaaprovação:estegatofoilibertodojugodeseusdonosDuas-PernaseestálivreparasejuntaraoClãdoTrovãocomoaprendiz.Ferrugem olhou para Estrela Azul e, com um gesto solene de cabeça,

aquiesceu.Levantou-seecolocou-sesobumraiodesol,recebendodebomgrado o calor nos músculos feridos. A poça de luz fez brilhar seu peloalaranjado.Orgulhoso,Ferrugemergueuacabeçaeolhouparaosgatosaoredor.Dessavez,nenhumdelesreclamououzombou.Eleprovaraserumoponentevalorosonumaluta.EstrelaAzulaproximou-sedeFerrugemecolocounafrentedeleacoleira

destroçada.Emseguida,tocou-lheternamenteaorelhacomonarizedisse:–Vocêpareceumatochadefogoàluzdosol–agatamurmurou,comum

certobrilhonoolhar,comosesuaspalavrastivessemumsignificadomaiordo que Ferrugem podia compreender. – Você lutou bem. – Ela se voltouparaoclãeanunciou:–Apartirdehoje,atéreceberseunomedeguerreiro,esteaprendizvaisechamarPatadeFogo,porcausadacordesuapelagem.Estrela Azul recuou e, com os outros gatos, esperou pelo próximo

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movimento.Semhesitar,Ferrugemvirou-seechutoupoeiraegramasobreacoleira,comoseestivesseenterrandosuasfezes.RaboLongorosnoue,mancando,saiudaclareiraemdireçãoaumcanto

onde as samambaias faziam sombra. Os felinos se dividiram em grupos,conversando,empolgados.–Ei,PatadeFogo!Ferrugem ouviu a voz amigável de Pata Cinzenta atrás de si. Pata de

Fogo!Umarrepiodeorgulhopercorreuseucorpoaoouvironovonome.Virou-se para cumprimentar o aprendiz cinza com um farejo de boas-vindas.–Grandeluta,PatadeFogo!–miouPataCinzenta.–Especialmentepara

umgatinhodegente!RaboLongoéumguerreiro,emboratenhaterminadootreinamentoháapenasduasluas.Acicatrizquevocêlhefeznaorelhanãovaideixá-loesquecervocêtãocedo.Vocêestragouaquelacarabonita,podeapostar.–Obrigado,PataCinzenta–respondeuPatadeFogo.–Maseleébomde

briga! – Lambeuapatada frente e começoua limpar aprofunda cicatrizquelatejavasobreoolho.Enquantose lavava,ouviunovamenteseunovonomeecoandoentreosmiadosdosgatos.–PatadeFogo!–Ei,PatadeFogo!–Bem-vindo,jovemPatadeFogo!PatadeFogofechouosolhosporuminstanteedeixou-seinundarpelas

vozes.–Onome tambémébom!–miouPataCinzentaem tomdeaprovação,

despertando-odotorpor.PatadeFogoolhouemtorno.–ParaondefoiRaboLongo?– Acho que foi à toca de Folha Manchada – disse Pata Cinzenta,

apontandocomacabeçanadireçãodocantodassamambaias,ondeRaboLongo tinha desaparecido. – É nossa curandeira. É bem atraente. Maisjovememuitomaisbonitaqueamaioria…Umuivobaixoepróximo interrompeuPataCinzenta.Elessevirarame

Pata de Fogo reconheceu o robusto gato cinza que, pouco antes, estavasentadoatrásdePataCinzenta.–RiscadeCarvão–miouPataCinzenta,abaixandoacabeça,respeitoso.OgatolustrosoolhouparaPatadeFogoporummomento.–Sorteasua

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coleira terarrebentadonahora certa.RaboLongoéumguerreiro jovem,mas não consigo imaginá-lo derrotado por um gatinho de gente! – Fezquestãodesersarcásticoaodizergatinhodegente;virou-seefoiembora.–Por suavez,RiscadeCarvão–PataCinzenta cochichouparaPatade

Fogo–nãoéjovemnembonito…PatadeFogoiaconcordarcomonovoamigoquandofoidetidopelogrito

dealertadeumgatoidososentadonaorladaclareira.–Orelhinhapressenteproblemas!–PataCinzentamiou, imediatamente

atento.PatadeFogomaltevetempodeolharaoredorantesqueumjovemgato

atravessasse os arbustos e caísse no acampamento. Era magro e, fora apontabrancadacaudafinaecomprida,negroretintodacabeçaaospés.PataCinzentaengasgou.–ÉPataNegra!Porqueestásozinho?Ondeestá

GarradeTigre?Pata de Fogo olhou para Pata Negra, que cambaleava pela clareira,

respirando com dificuldade. A pelagem estava eriçada e suja; os olhos,arregaladosdemedo.–QuemsãoPataNegraeGarradeTigre?–PatadeFogosussurroupara

PataCinzenta, enquantováriosoutros felinospassavamcorrendopor eleparasaudarorecém-chegado.–PataNegraéumaprendiz.GarradeTigre,seumentor–PataCinzenta

explicou rapidamente. – Pata Negra saiu ao nascer do sol com Garra deTigreeRaboVermelhoemumamissãocontraoClãdoRio,aquelabolinhadepelosortuda!–RaboVermelho?–PatadeFogorepetiu,totalmenteconfusocomtodos

aquelesnomes.– O representante de Estrela Azul – Pata Cinzenta explicou baixinho.

“Mas por que diabos Pata Negra voltou sozinho?”, perguntou-se. PataCinzentalevantouacabeçaparaescutarEstrelaAzul,quederaumpassoàfrente.– PataNegra? – a gata chamou calmamente,mas com uma sombra de

preocupação nos olhos azuis. Os outros gatos se afastaram, torcendo oslábios,ansiosos.–Oqueaconteceu?–EstrelaAzulpulouparaaPedraGrandee,decima,

olhouogatoquetremia.–Fale,PataNegra!Pata Negra, ainda tentando respirar, ergueu-se com dificuldade,

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deixando o pó da clareira vermelho de sangue;mesmo assim, conseguiuchegaràPedraGrandeecolocar-seaoladodeEstrelaAzul.Ogatovirou-separa a multidão de rostos aflitos que o circundava e reuniu fôlego paradeclarar:–RaboVermelhoestámorto!

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CAPÍTULO4

GRITOSDEESPANTOseelevaramentreosgatosdoclãeecoarampelafloresta.PataNegratitubeouumpouco.Apatadianteiradireitareluzia,molhada

dosanguequeescorriadocorteprofundonoombro.–Enc-encontramososguerreiros do Clã do Rio ao lado do riacho, nãomuito longe das RochasEnsolaradas – continuou, tremendo. – Coração de Carvalho estava entreeles.–CoraçãodeCarvalho!–miou,arfante,PataCinzenta,aoladodePatade

Fogo. – É o representante do Clã do Rio, um dos maiores guerreiros dafloresta. Sorte de Pata Negra! Quemme dera fosse eu. Eu teria… – PataCinzentafoisilenciadoporumolharferozdovelhogatocinza,oprimeiroaperceberachegadadePataNegra.PatadeFogovoltouaprestaratençãoemPataNegra.–RaboVermelhoadvertiuCoraçãodeCarvalhoparamanterseugrupo

de caçadores fora do território do Clã do Trovão. Disse que o próximoguerreiro do Clã do Rio apanhado no território do Clã do Trovão seriamorto,masCoração…CoraçãodeCarvalhonãorecuou.Dissequeseu…seuclã precisava ser alimentado e que nossas ameaças eram inúteis. – PataNegra fez uma pausa para respirar. A ferida ainda sangravaabundantementeeeletentava,semmuitojeito,nãofazerpesonoombro.– Então os gatos do Clã do Rio atacaram. Foi difícil ver o que estava

acontecendo. A luta foi selvagem. Vi que Coração de Carvalho imobilizouRaboVermelhonochão,masaíRaboVermelho…–Derepente,osolhosdePataNegra reviraram e ele cambaleou.Meio se arrastando,meio caindo,escorregoudaPedraGrandeeapagounochãodaclareira.Uma rainha alaranjada se aproximou e agachou a seu lado. Passou-lhe

rapidamentealínguanabochechaegritou:–FolhaManchada!Docantosombreadopelassamambaiassaiuabonitagataatartarugada

quePatadeFogotinhavistomaiscedo,sentadaaoladodePataCinzenta.ElacorreuparaPataNegraemiouparaarainhaseafastar.Comopequenonariz cor-de-rosa virou o corpo do aprendiz para examinar a ferida. Acurandeira olhou para cima e miou: – Está tudo certo, Flor Dourada, aslesõesnãosãofatais.Masvouprecisarpegaralgumasteiasdearanhaparaestancarosangramento.Assim que Folha Manchada voltou correndo para a toca, o profundo

silêncionaclareirafoiinterrompidoporumgemidomelancólico.Todosos

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olhosseviraramnadireçãodeondeviera.Umenormegatomalhadomarrom-escurocambaleavapelotúneldetojo.

Entreosdentesafiados,oguerreirotrazianãoumapresa,masocorposemvida de outro felino. Levou a criatura em frangalhos até o centro daclareira.Pata de Fogo levantou o pescoço e vislumbrou uma brilhante cauda

avermelhadasendoarrastadanapoeira.Umaondadechoquepercorreuoclãcomobrisagelada.AoladodePata

deFogo,PataCinzentaagachou,cheiodetristeza.–RaboVermelho!–Comoissoaconteceu,GarradeTigre?–perguntouEstrelaAzuldoalto

daPedraGrande.Garra de Tigre soltou o corpo de Rabo Vermelho, que segurava pelo

cangote.DevolveucomfirmezaoolhardeEstrelaAzul.–Elemorreucomhonra,liquidadoporCoraçãodeCarvalho.Nãopudesalvá-lo,masconseguitiraravidadeCoraçãodeCarvalhoenquantoeleaindacantavavitória.–AvozdeGarradeTigreeraforteegrave.–AmortedeRaboVermelhonãofoiem vão; duvido que voltemos a ver caçadores do Clã do Rio no nossoterritório.Pata de Fogo olhou para Pata Cinzenta. Os olhos do aprendiz estavam

escurosdetristeza.Depois de uma pequena pausa, diversos felinos se aproximaram para

lamber o pelo enlameado de Rabo Vermelho. Eles o acariciavam eronronavampalavrasdelicadasparaoguerreiromorto.Pata de Fogo cochichou na orelha de Pata Cinzenta: – O que estão

fazendo?PataCinzentarespondeusemdesviaroolhardogatomorto:–Oespírito

dele pode ter partido para se juntar ao Clã das Estrelas, mas o clã vaihomenagearRaboVermelhocomlambidasumaúltimavez.–ClãdasEstrelas?–PatadeFogorepetiu.–Éatribodeguerreiroscelestesquecuidadetodososgatosdoclã.Você

podevê-losnoTuledePrata.VendoquePatadeFogoestavaconfuso,PataCinzentaexplicou.–Tulede

Prata é aquela espessa faixa de estrelas que você vê todas as noitesestendida no céu. Cada estrela é um guerreiro do Clã das Estrelas. RaboVermelhoestaráentreelesestanoite.PatadeFogofezumgestocomacabeçaePataCinzentaseadiantoupara

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homenagearcomlambidasorepresentantemorto.EstrelaAzul,quepermaneceraemsilêncioenquantoosprimeirosfelinos

seaproximavamparareverenciarRaboVermelho,desceudaPedraGrandee dirigiu-se lentamente ao corpo do guerreiromorto. Os outros gatos seafastarameobservaramalíderagacharparalamberovelhocamaradaumaúltimavez.Quandoterminou,EstrelaAzulergueuacabeçaefalou.Avozerabaixa,

graveecomovida,eoclãouviuemsilêncio.–RaboVermelhofoiumbravoguerreiro. Sua lealdade ao Clã do Trovão jamais poderá ser questionada.Sempreconfieiemseubom-senso,porquecompreendiaasnecessidadesdoclã;ele jamaissedeixoulevarporsentimentoscomoegoísmoouorgulho.Teriasidoumótimolíder.A gata se deitou sobre a barriga, com a cabeça baixa e as patas bem

esticadas à frente. Em silêncio, sofreupelo amigo. Vários outros gatos secolocaram ao lado dela, cabeças abaixadas, corpos curvados, na mesmaposiçãodelamentodeEstrelaAzul.Pata de Fogo observava. Não conhecera Rabo Vermelho, mas mesmo

assimficouemocionadoaotestemunharolamentodoclã.Pata Cinzenta voltou a se aproximar dele. – Pata de Poeira vai ficar

desolado–observou.–PatadePoeira?– O aprendiz de Rabo Vermelho. Aquele gatomalhadomarrom-escuro

ali.Ficoaquimeperguntandoquemseráseunovomentor.Pata de Fogo fitou o pequeno gato agachado perto do corpo de Rabo

Vermelho, com o olhar perdido no chão, e perguntou: – E Estrela Azul?Quantotempovaificaralisentadacomoguerreiromorto?–miou.–Provavelmenteanoitetoda–respondeuPataCinzenta.–Pormuitase

muitasluasRaboVermelhofoiorepresentantedeEstrelaAzul.Elanãovaiquerer se afastardele tão cedo; foiumde seusmelhores guerreiros.NãotãograndeepoderosocomoGarradeTigreouCoraçãodeLeão,maseleerarápidoeesperto.PatadeFogoolhouparaGarradeTigre,admirandoaforçaqueemanava

dos músculos poderosos e da cabeça larga. Seu corpo enormemostravasinaisdavidadeguerreiro.Umadasorelhassedividianumprofundocorteemformade“V”eumaespessacicatrizcortavaocavaletedonariz.Derepente,GarradeTigre levantou-seeseaproximousilenciosamente

dePataNegra.FolhaManchada,agachadaaoladodoaprendizferido,usava

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osdenteseaspatasdianteirasparapressionarchumaçosdeteiadearanhanaferidadoseuombro.PatadeFogo inclinou-senadireçãodePataCinzenta eperguntou: –O

queFolhaManchadaestáfazendo?–Estancandoosangramento.Foiumcortefeio.PataNegrapareciaestar

realmente abalado.Ele sempre foi umpouco agitado,masnuncao vi tãomalassim.Vamosversejáacordou.Abriramcaminhoentreosgatoschorosos,atéo lugarondePataNegra

estava, e colocaram-se a uma distância respeitosa, para esperar até queGarradeTigreparassedefalar.– E então, Folha Manchada? – Garra de Tigre dirigiu-se à gata

atartarugada com ummiado arrogante. – Como ele está? Acha que podesalvá-lo? Passeimuito tempo treinando esse gato e não quero quemeusesforçosvãoporáguaabaixonaprimeirabatalha.FolhaManchadanãolevantouoolhardopacienteaoresponder.–Vaiser

mesmoumapena se, depois do seu valoroso treinamento, elemorrer naprimeira luta, não é? – Pata de Fogo percebeu uma certa provocação nosuavemiadodacurandeira.–Elevaisobreviver?–perguntouGarradeTigre.–Éclaro.Sóprecisadescansar.Garra de Tigre resfolegou e olhou para a figura imóvel. Cutucou Pata

Negracomumadasgarrasdianteiras.–Vamoslá!Levante-se!PataNegranãosemexeu.–Olhesóotamanhodaquelagarra!–PatadeFogosibilou.–Caramba!–comentouPataCinzenta,impressionado.–Euéquenãoia

quererlutarcomele!–Devagar,GarradeTigre!!–FolhaManchadacolocousuapatasobrea

unhaafiadadoguerreiroegentilmenteaafastou.–Esteaprendizprecisaficar emrepousoatéqueo corte cicatrize.Nãoqueremosquea ferida seabrasóporqueeleresolveudarumsaltoparaagradá-lo.Deixe-oempaz.Pata de Fogo prendeu a respiração, esperando a reação de Garra de

Tigre. Imaginou que poucos gatos ousariam dar ordens ao guerreirodaquele jeito. O grande gato malhado se retesou e parecia que ia falaralgumacoisaquandoFolhaManchadamiou,provocando:–Atévocêsabequenãosepodediscutircomumacurandeira,GarradeTigre.Os olhos do guerreiro chisparam com as palavras da pequena gata

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atartarugada.–Eunãoousariadiscutircomvocê,queridaFolhaManchada–GarradeTigreronronou.Virou-separasaireviuPataCinzentaePatadeFogo.–Queméeste?–perguntouaPataCinzenta,olhando-osdecima.–Éonovoaprendiz.–Cheiraagatinhodegente–resfolegouoguerreiro.–Eueraumgatodoméstico–PatadeFogomiou,atrevido–,masestou

treinandoparaserumguerreiro.Garra de Tigre fitou-o com súbito interesse. – Ah, claro. Agora me

lembro. Estrela Azul mencionou ter tropeçado em um gatinho de gentedesgarrado.Entãoelavairealmentetreinarvocê?PatadeFogosentouereto,ansiosoparaimpressionaroilustreguerreiro

doclã,emiou,comtodoorespeito:–Vai,sim.GarradeTigreolhou-o,pensativo.–Vouacompanharseuprogressocom

interesse.PatadeFogo estufouopeito comorgulho, enquantoGarradeTigre se

afastava.–Achaqueelegostoudemim?–perguntouaPataCinzenta.–Nãoachoqueelegostedenenhumaprendiz!–sussurrouoamigo.FoiquandoPataNegrasemexeuemovimentouasorelhas.–Elejáfoi?–

perguntoubaixinho.–Quem?GarradeTigre?–respondeuPataCinzenta,aproximando-se.–

Já,jáfoi.–Comovai?–PatadeFogoperguntou,tentandoseapresentar.–Saiam,osdois!–FolhaManchadaprotestou.–Comopossocuidardesse

gato com tantas interrupções? – Impaciente, balançou a cauda para PataCinzentaePatadeFogoecolocou-seentreeleseopaciente.Pata de Fogo percebeu que a curandeira falava sério, apesar do brilho

vívidonoscalorososolhoscordeâmbar.– Venha, então, Pata de Fogo –miou Pata Cinzenta. – Vou lhemostrar

nossoterritório.Atémaistarde,PataNegra.Os dois gatos deixaram Folha Manchada com o aprendiz ferido e

atravessaramaclareira.PataCinzentapareciapensativo.Estavaclaramentelevandoseupapelde

guiamuitoasério.–VocêjáconheceaPedraGrande–começou,apontandocomacaudaa rochagrandee lisa. –EstrelaAzul sempresedirigeaoclãdali. É onde fica sua toca. – Ergueu o nariz na direção de uma gruta nalateraldaPedraGrande.–Atocafoiescavadahámuitasluasporumvelho

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riacho.–Umacortinadeliquenscobriaaentrada,protegendodoventoedachuvaorefúgiodalíder.–Osguerreirosdormemaqui–PataCinzentacontinuou.PatadeFogoseguiu-oatéumarbustoapoucadistânciadaPedraGrande.

Dalisepodiamverbemostojosdaentradadoacampamento.Osgalhosdoarbustoerambaixos,masPatadeFogoconseguiuverumespaçoprotegido,ondeosguerreirosfaziamseusninhos.–Osguerreirosmaisexperientesdormempertodocentro,ondeémais

quente–explicouPataCinzenta.Normalmente,partilhamaspresasfrescasnaquela moita de urtiga. Os guerreiros mais jovens comem ali perto. Àsvezes são convidados a se juntar aos veteranos nessa hora, o que é umagrandehonra.– E os outros gatos do clã? – perguntou Pata de Fogo fascinado, mas

aindacompletamenteperplexocomtodasastradiçõeseosrituaisdavidanoclã.–Asrainhastambémficamnosalojamentosdosguerreirosquandoestão

nessa função, mas, quando estão esperando filhotes, ou amamentando,ficamemumninhopertodoberçário.Osanciãostêmseuprópriolugar,dooutroladodaclareira.Venha,voulhemostrar.Pata de Fogo seguiu Pata Cinzenta, atravessando a clareira e deixando

para trás o canto sombreado onde ficava a toca de Folha Manchada.Pararamao ladodeuma árvore caída queprotegia umpedaçode gramaviçosa. Agachados no meio do verde macio estavam quatro anciãosdevorandoumroliçofilhotedecoelho.–PatadePoeiraePatadeAreiadevem ter trazidoapresaparaeles–

PataCinzentaexplicoubaixinho.–Umdosdeveresdosaprendizesépegarpresafrescaparaosanciãos.–Olá,meujovem–umdosanciãossaudouPataCinzenta.–Alô,Orelhinha–miouPataCinzenta,inclinandoacabeçacomrespeito.– Este deve ser nosso novo aprendiz. Pata de Fogo, não é? –miou um

segundo felino. Seu pelomalhado eramarrom-escuro e havia apenas umcotoconolugardorabo.–Issomesmo–PatadeFogorespondeu,imitandoogestorespeitosode

PataCinzenta.–MeunomeéMeioRabo–ronronouogatomarrom.–Bem-vindoaoclã.–Vocêsjácomeram?–miouOrelhinha.

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PatadeFogoePataCinzentanegaramcomacabeça.– Há comida bastante aqui. Pata de Poeira e Pata de Areia estão se

tornando ótimos caçadores. Você se importa se esses jovens partilharemumcamundongoconosco,Caolha?Arainhacinzadesbotado,aoladodele,balançouacabeça.PatadeFogo

percebeuqueagatatinhaumolhoembaçadoecego.–Evocê,CaudaMosqueada?A outra anciã, uma gata atartarugada de focinho cinza,miou comuma

vozalquebradapelaidade:–Claroquenão.– Obrigado – miou Pata Cinzenta, ansioso. Adiantou-se, pegou um

camundongograndedapilhadepresaseatirou-oaospésdePatadeFogo,perguntando:–Vocêjáprovoucamundongo?– Ainda não – Pata de Fogo admitiu. De repente, sentiu-se estimulado

pelos odores mornos que exalavam da presa fresca. Todo o seu corpotremeu ao pensar em partilhar a primeira comida de verdade comomembrodoclã.–Nessecaso,podedaraprimeiramordida.Deixeumpoucoparamim!–

PataCinzentaabaixouacabeçaeseafastou,dandopassagemparaPatadeFogo.O gato agachou e deu uma boa mordida no camundongo. A carne

suculentaemaciatraduziaossaboresdafloresta.–Então,oqueachou?–perguntouPataCinzenta.–Fantástico!–murmurouPatadeFogo,aindadebocacheia.–Chegueparalá,então–miouPataCinzenta,dandoumpassoàfrentee

inclinandoacabeçaparadarumamordida.Enquanto os dois aprendizes partilhavam o camundongo, ouviam os

anciãosconversar.– Quanto tempo vai levar para Estrela Azul nomear um novo

representante?–perguntouOrelhinha.–Oquevocêdisse?–miouCaolha.–Achoque,alémdecega,vocêestáficandosurda!–disparouOrelhinha,

impaciente.–Pergunteiquantotempovai levarparaEstrelaAzulnomearumnovorepresentante.Caolha ignorou a resposta irritada de Orelhinha e dirigiu-se à rainha

atartarugada:–CaudaMosqueada,vocêlembraodia,muitasluasatrás,emqueaprópriaEstrelaAzulfoiindicadacomorepresentante?

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Séria,CaudaMosqueadamiou:–Claro!Foipoucodepoisqueelaperdeuosfilhotes.– Ela não vai ficar contente em indicar um novo representante –

observouOrelhinha.–RaboVermelhoserviu-afielmentepormuitotempo.Maselaprecisasedecidirlogo.Deacordocomoscostumesdoclã,aescolhadeve ser feita antes da lua alta que ocorre depois da morte do antigorepresentante.–Aomenos,destavez,aescolhaéóbvia–miouMeioRabo.PatadeFogo levantouacabeçaepasseouosolhospelaclareira.Oque

seráqueMeioRaboqueriadizer?ParaPatadeFogo, todososguerreirospareciam dignos de se tornar representante. Talvez ele estivesse sereferindoaGarradeTigre;afinal,queriavingaramortedeRaboVermelho.Garra de Tigre não estava longe; sentado, apontava as orelhas para o

lugarondeosanciãosconversavam.Quando Pata de Fogo esticava a língua para lamber dos bigodes os

últimos restos do camundongo, da Pedra Grande ouviu-se o chamado deEstrelaAzul.OcorpodeRaboVermelhoaindaestavanaclareira,umcinza-claronaluzqueseapagava.–Umnovorepresentanteprecisaserindicado–elamiou.–Mas,primeiro,vamosagradeceraoClãdasEstrelaspelavidado nosso guerreiro. Esta noite ele estará ao lado de seus companheiros,entreasestrelas.Fez-sesilêncioquandotodososgatoselevaramosolhosparaocéu,que

começavaaescurecercomocairdanoitesobreafloresta.–AgoradevonomearonovorepresentantedoClãdoTrovão–Estrela

Azulcontinuou.–DigoessaspalavrasanteocorpodeRaboVermelho,paraqueseuespíritopossaouvireaprovarminhaescolha.Pata de Fogo olhou para Garra de Tigre. Não pôde deixar de notar o

desejo nos olhos cor de âmbar do grande guerreiro quando ele fitou aPedraGrande.–CoraçãodeLeão–miouEstrelaAzul–seráonovorepresentantedoClã

doTrovão.PatadeFogoestavacuriosoparaverareaçãodeGarradeTigre.Maso

rosto escuro do guerreiro nada revelava quando ele se dirigiu paracumprimentarCoraçãodeLeãocomumabraço tão fortequequase fezogatodouradoperderoequilíbrio.–PorqueelanãoescolheuGarradeTigrecomorepresentante?–Patade

FogoperguntoubaixinhoparaPataCinzenta.

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– Provavelmente porque faz mais tempo que Coração de Leão éguerreiro;porissotemmuitomaisexperiência–PataCinzentasussurrouemresposta,aindaolhandoparaEstrelaAzul.A líder voltou a falar: – Rabo Vermelho também eramentor do jovem

Pata de Poeira. Como não deve haver demora no treinamento de nossosaprendizes,devoindicaronovomentordePatadePoeiraimediatamente.Risca de Carvão, você está pronto para receber seu primeiro aprendiz;assim, continuará o treinamento de Pata de Poeira. Você teve um ótimomentor em Garra de Tigre e espero que passe adiante as excelenteshabilidadesquelheforamensinadas.RiscadeCarvãoencheuopeitocomorgulhoaoaceitaramissãocomum

gesto solene. Dirigiu-se a Pata de Poeira, inclinou a cabeça e, de formadesajeitada, trocou toques de nariz com o novo pupilo. Pata de Poeiramovimentou a cauda com respeito, mas seus olhos sem brilho estavamtristespelamortedoantigomentor.Estrela Azul elevou a voz. – Passarei a noite velando o corpo de Rabo

Vermelho, antes de o enterrarmos ao nascer do sol. – Pulou da PedraGrandeefoideitar-seoutravezaoladodocorpodoguerreiro.Muitosdosoutrosfelinossejuntaramaela,entreeles,PatadePoeiraeOrelhinha.–Devemossentarcomeles?–sugeriuPatadeFogo.Tinhadeadmitirque

a ideianãoo atraíamuito. Foraumdia agitado e estava começandoa sesentircansado.Tudooquequeriaeraacharumlugarquenteesecoparaseenroscaredormir.PataCinzentabalançouacabeça.–Não;apenasosmaischegadosaRabo

Vermelho estarão com ele na última noite. Vou lhemostrar onde vamosdormir.Atocadosaprendizeséaliadiante.PatadeFogoseguiuPataCinzentaatéumcerradoarbustodesamambaia

queficavaatrásdeumtocodeárvorecheiodemusgo.– Todos os aprendizes partilham presas frescas nesse toco – Pata

Cinzentafalou.–Sãoquantosaprendizes?–perguntouPatadeFogo.–Não tantos quanto de costume; apenas eu, você, PataNegra, Pata de

PoeiraePatadeAreia.Enquanto os dois aprendizes se instalavam ao lado do toco de árvore,

uma jovem gata surgiu devagar das samambaias. Tinha a pelagemavermelhada,comoadePatadeFogo,masmuitomaisdesbotada,malsedistinguindoasriscasmaisescuras.

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–Eisentãoonovoaprendiz!–elamiou,estreitandoosolhos.–Olá–respondeuPatadeFogo.A jovem gata farejou e disse rispidamente. – Ele cheira a gatinho de

gente. Não me diga que vou ter de dividir meu ninho com esse fedorrepulsivo!PatadeFogo ficou surpreso.Desde sua luta comRaboLongo, todosos

gatos tinhamsidobastanteamigáveis.TalvezestivessemapenasabaladoscomasnovidadesdePataNegra,pensou.– Perdoe Pata de Areia – desculpou-se Pata Cinzenta. – Ela deve estar

comumaboladepeloentaladaemalgumlugar.Nãocostumasertãomal-humorada.–Caleaboca!–cortouPatadeAreia.– O que é isso, jovens? – Ouviu-se a voz grave de Nevasca atrás dos

aprendizes.–PatadeAreia!Comominhaaprendiz,esperavaquefosseumpoucomaiscordialcomorecém-chegado.PatadeAreialevantouacabeçaeolhouparaNevasca,comardesafiador.

– Sinto muito, Nevasca – ronronou, sem parecer nem um poucoarrependida.–Équenãoesperavafazermeutreinamentocomumgatinhodegente;sóisso.–Tenhocertezadequevaiseacostumar,PatadeAreia–miouNevasca,

calmamente. – Já está ficando tarde e o treinamento começa bem cedoamanhã. Vocês três devem dormir um pouco. – Lançou um olhar severopara Pata de Areia, que concordou, obediente. Quando Nevasca saiu, elagirouedesapareceunamoitadeurtigas,fungandomaisumavezaopassarporPatadeFogo.Com ummovimento de cauda, Pata Cinzenta convidou Pata de Fogo a

segui-loefoiatrásdePatadeAreia.Ochãodaáreadedormireracobertodemusgomacio,eoluarfracodeixavatudocomumdelicadotomdeverde.Oarcheiravaasamambaiaeeramaisquentedoqueoládefora.–Ondeéqueeudurmo?–perguntouPatadeFogo.–Emqualquerlugar,desdequenãosejapertodemim!–rosnouPatade

Areia,enquantorevolviaumpoucodemusgocomapata.PataCinzentaePatadeFogotrocaramolhares,masnadadisseram.Pata

deFogojuntouumaporçãodemusgocomasgarras.Depoisdeprepararacama, fazendo um ninho aconchegante, andou em círculos até se sentirconfortáveleacomodou-se.Seucorpotodoestavasonolentoefeliz.Aqueleeraseular,agora.ElefaziapartedoClãdoTrovão.

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CAPÍTULO5

–EI,PATADEFOGO,acorde!–omiadodePataCinzentainterrompeuosonhodoamigo,queestiveracaçandoumesquiloatéosgalhosmaisaltosdeumaltocarvalho.–Otreinamentocomeçaaoraiardosol.PatadePoeiraePatadeAreiajá

estãodepé–PataCinzentaacrescentou,aflito.PatadeFogoseespreguiçou,sonolento,eentãolembrou:eraoprimeiro

dia de treinamento. Pôs-se em pé com um pulo e o torpor evaporou àmedidaqueaempolgaçãoinvadiasuasveias.PataCinzentatomavaumbanhorápido.Entrelambidas,miou:–Acabei

defalarcomCoraçãodeLeão.PataNegrasóvaitreinarconoscoquandoaferidaestivermelhor.ProvavelmentevaificarnatocadeFolhaManchadapormaisumdiaoudois.PatadePoeiraePatadeAreiaestãoemmissãodecaça.PorissoCoraçãodeLeãopensouquenósdoispodíamostreinarcomele e Garra de Tigre hoje de manhã. Ou seja, é melhor se apressar –acrescentou.–Elesestãoesperando!PataCinzentaguiouPatadeFogo rapidamentepelaentradade tojodo

acampamento e pela lateral do vale salpicado de pedras. A brisa frescaacariciavaseuspelosenquantosubiamparaoaltodaravina.Nuvenscheiasebrancascortavamocéuazul.PatadeFogosentiuumaalegriaferozbrotardentrodeleaoseguirPataCinzentaporumdecliveàsombradeárvoresatéumvalearenoso.GarradeTigreeCoraçãodeLeãoestavamrealmenteesperandoporeles,

sentadoscompoucascaudasdedistânciaentresi,naareiaaquecidapelosol.–Nofuturo,esperoquesejammaispontuais–rosnouGarradeTigre.– Não seja severo demais, Garra de Tigre; a noite de ontem foi difícil.

Imagino que tenham mesmo ficado cansados – miou Coração de Leão,apaziguador. – Ainda não lhe foi designado um mentor, Pata de Fogo –continuou. – Por enquanto, Garra de Tigre e eu vamos dividir aresponsabilidadepeloseutreinamento.PatadeFogo ficou tãoentusiasmadoqueempinoua cauda, incapazde

disfarçaroprazerdeterdoisguerreirostãoimportantescomomentores.– Vamos – miou Garra de Tigre, impaciente. – Hoje mostraremos os

limitesdonossoterritórioparaquesaibamondevãocaçarequefronteirasprecisam proteger. Pata Cinzenta, não lhe fará mal se lembrar das

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demarcaçõesdoterritóriodoclã.Semmaisnadadizer,GarradeTigredeuumsaltoesaiudovalearenoso.

CoraçãodeLeãofezumgestoparaPataCinzentaeosdoisdispararamnamesma velocidade. Pata de Fogo galgou o terreno atrás deles, as patasescorregandonaareiafofa.As árvores eram troncudas naquela parte da floresta, onde grandes

carvalhosfaziamsombraparabétulasefreixos.Ochãotinhaumtapetedefolhasmortasquebradiças,que farfalhavamsobaspatasdosgatos.GarradeTigreparouparaesguichar seu cheironummontede samambaias.Osoutrospararamaseulado.–TemumcaminhodosDuas-Pernasaqui–murmurouCoraçãodeLeão.

–Useonariz,PatadeFogo.Consegueidentificaralgumcheiro?PatadeFogo farejou.Havianoarum levecheirodeumDuas-Pernase

umodormaisforte,decachorro,queeleconheciadesuaantigacasa.–UmDuas-Pernastrouxeocachorroparapassearporaqui,masjáforamembora–miou.–Muitobem–aprovouCoraçãodeLeão.–Achaqueéseguroatravessar?PatadeFogo farejoumaisumavez.Osodores eram fracos epareciam

encobertosporcheirosmaisfrescosdafloresta.–É,sim–respondeu.GarradeTigreconcordoueosquatrofelinosseesgueiraramparaforada

cobertura de samambaias e atravessaram as pedras pontiagudas doestreitocaminhodosDuas-Pernas.Maisadiantehaviafileirasemaisfileirasdepinheirosaltoseretos.Era

fácilandarporalisemfazerbarulho.Ochãoeraespesso,comcamadasdeagulhassecasdepinheiroquepinicavamassolasdePatadeFogo,maslhedavam a sensação de pisar em espuma. Não havia por ali nenhumavegetação rasteira onde pudessem se esconder, e Pata de Fogo percebeuum certo nervosismo nos outros gatos por caminharem desprotegidosentreostroncosdeárvores.–OsDuas-Pernaspuseramessasárvoresaqui–miouGarradeTigre.–

Elesasderrubamcomcriaturasdecheiroruimquevomitamtantafumaçaquedeixaosgatoscegos.EntãolevamasárvoresderrubadasparaoPontodeCortedeÁrvores,queficaaquiperto.PatadeFogoparoueprocurououviro rugidodo comedordeárvores,

quejáconhecia.–O lugar dasÁrvores Cortadas vai ficar em silêncio pormais algumas

luas, até a época das folhas verdes – explicou Pata Cinzenta, percebendo

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queelehaviaparado.Osgatosseguirampelaflorestadepinheiros.–O lugardosDuas-Pernas ficanaqueladireção–miouGarradeTigre,

jogandoacaudaparaolado.–Semdúvida,vocêpodesentirocheiro,PatadeFogo.Mas,hoje,vamosparaoladocontrário.FinalmentechegaramatéoutrocaminhodosDuas-Pernas,quemarcava

o limiteextremoda florestadepinheiros.Cruzaramrapidamenteparaosarbustos seguros da floresta de carvalhos, mais além. Mas Pata de Fogoaindapercebiaaansiedadedosoutrosfelinos.–EstamosnosaproximandodoterritóriodoClãdoRio–murmurouPata

Cinzenta.–ÉondeficamasRochasEnsolaradas.–Apontoucomofocinhomacioparaummontederochassemvegetação.PatadeFogosentiuopeloeriçar.EraolugarondeRaboVermelhotinha

sidomorto.CoraçãodeLeãoparoupertodeumapedracinzaeachatada.–Aquiéa

fronteiraentreosterritóriosdoClãdoTrovãoedoClãdoRio.OClãdoRiodita as regrasnas zonasde caça ao ladodogrande rio –miou. –Respirefundo,PatadeFogo.OcheirocáusticodegatosestranhoschegouaocéudabocadePatade

Fogo. Ele se surpreendeu ao perceber como era diferente dos cheirosmornos dos gatos do acampamento do Clã do Trovão. E também ficouadmirado ao se dar conta de como já lhe pareciam familiares ereconfortantesosodoresdoClãdoTrovão.–Este é o cheirodoClãdoRio – rosnouGarradeTigre ao seu lado. –

Lembre-sebemdisso.Ocheiroserámaisfortenafronteiraporqueéondeosguerreirosmarcamasárvorescomseusodores.–Comessaspalavras,ogato de pelo escuro ergueu a cauda e esguichou seu cheiro na pedraachatada.– Vamos seguir essa linha de fronteira, pois ela leva direto a Quatro

Árvores–miouCoraçãodeLeão.Ele se pôs em marcha rapidamente, distanciando-se das Rochas

Ensolaradas;foiseguidoporGarradeTigre.PataCinzentaePatadeFogoosacompanharam.–QuatroÁrvores?Oqueéisso?–PatadeFogoarfou.–Éopontoondeosterritóriosdosquatroclãsseencontram–respondeu

Pata Cinzenta. – Ali há quatro grandes carvalhos, tão velhos quanto osclãs…

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–Calados!–ordenouGarradeTigre.–Nãoesqueçamqueestamosmuitopertodoterritórioinimigo!Os dois aprendizes fizeram silêncio e Pata de Fogo se concentrou na

caminhadasilenciosa.Atravessaramumriachoraso,pulandodeumapedraaoutrapeloleitodorioparanãomolharemaspatas.QuandochegaramaQuatroÁrvores,PatadeFogoestavacompletamente

semarecomaspatasdoloridas.Nãoestavaacostumadoacaminhadastãolongas, aindamaisnaquela velocidade. Ficou aliviadoquandoCoraçãodeLeão e Garra de Tigre os conduziram para fora da floresta fechada epararamnoaltodeumaencostacobertadearbustos.O sol agora estava a pino. As nuvens tinham desaparecido e o vento

diminuíra. Abaixo, banhados pelo sol ofuscante, havia quatro enormescarvalhos, as coroas verde-escuras quase alcançando o topo da encostaíngreme.–ComodissePataCinzenta–miouCoraçãodeLeãoparaPatadeFogo–,

aquiéolugarchamadoQuatroÁrvores,ondesejuntamosterritóriosdosquatroclãs.OClãdoVentogovernaaquelaterraaltaàfrente,ondeosolsepõe.Hojevocênãovaiconseguirperceberocheirodeles,poisoventoestásoprandoafavor.Maslogovaireconheceroodor.– E o Clã das Sombras dominamais adiante, na parte mais escura da

floresta – acrescentou Pata Cinzenta, virando a cabeça de um lado paraoutro. – Os anciãos dizem que os ventos frios do norte sopram sobre osgatosdoClãdasSombrasegelamseuscorações.– São tantos clãs! – exclamou Pata de Fogo. E tão bem organizados,

pensou,lembrando-sedashistóriashorripilantesqueBorrãocontavasobregatosselvagensespalhandoterrorpelafloresta.–Vocêagorapodeentenderporqueacaçaétãovaliosa–miouCoração

deLeão.–Porqueprecisamoslutarparaprotegeropoucoquetemos.– Mas isso parece sem sentido! Por que os clãs não podem trabalhar

juntosepartilharaszonasdecaça,emvezdelutaremunscontraosoutros?–PatadeFogosugeriu,comaudácia.Suaspalavrasforamrecebidascomumsilêncioimpactante.GarradeTigrefoioprimeiroaresponder:–Essaéumaformatraiçoeira

depensar,gatinhodegente.– Não seja tão feroz, Garra de Tigre – advertiu Coração de Leão. – As

regrasdosclãssãonovasparaesseaprendiz.–Dirigiu-seaPatadeFogo:–Vocêfalacomocoração,jovemPatadeFogo.Umdia,issofarádevocêum

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guerreiromaisforte.Garra de Tigre rosnou: – Ou poderá fazê-lo render-se à fraqueza de

gatinhodegentebemnomomentodoataque.Coração de Leão olhou rapidamente para Garra de Tigre antes de

continuar. – Os quatro clãs, na verdade, têm um encontro pacífico numaAssembleiaacada lua.Bemaqui– inclinouacabeçaemdireçãoaquatrograndes carvalhos que ficavam abaixo. – A trégua dura até a lua cheiaatingiroápice.– Então, em breve haverá um encontro? – perguntou Pata de Fogo,

lembrandooluarbrilhantedavéspera.–Éverdade!–respondeuCoraçãodeLeão,parecendoimpressionado.–

Aliás,éhoje.AsReuniõessãomuitoimportantesporquepermitemqueosclãs seencontremempazporumanoite.Maséprecisoqueentendaquealiançasmaislongastrazemmaisproblemasquebenefícios.–Éanossa lealdadeaoclãquenostorna fortes–GarradeTigremiou,

concordando.–Sevocêenfraquecea lealdade,enfraquecenossaschancesdesobrevivência.–Compreendo–PatadeFogomiou,assentindocomacabeça.–Vamos lá – disse Coração de Leão, pondo-se de pé. – Continuemos a

caminhada.Passarampeloaltodovale,ondeficavaQuatroÁrvores.Agoraestavam

seafastandodosol,quecomeçavaamergulharnocéudatarde.Cruzaramoriachonumpontoestreito,quepermitiaatravessianumpulosó.Pata de Fogo farejou o ar. Um novo cheiro de gato atingiu-lhe as

glândulasdaboca,forteeácido.–Queclãéesse?–perguntou.–OClãdasSombras–grunhiu,feroz,GarradeTigre.–Estamospassando

por suas fronteiras. Fique alerta, Pata de Fogo. Cheiros mais frescossignificamqueumapatrulhadoClãdasSombrasestánaárea.QuandoPatadeFogoconcordoucomacabeça,ouviuumbarulhoaltoe

desconhecido.Ficouparalisado,masosoutrosgatosmantiveramopasso,indodiretonadireçãodoterrívelestrondo.– O que é isso? – Pata de Fogo perguntou, acelerando o passo para

alcançaroscompanheiros.–Numinstantevocêvaiver–respondeuCoraçãodeLeão.PatadeFogoolhouentreasárvoresadiante.Pareciamestarficandomais

finas, deixando-se penetrar por uma larga faixa de sol. – Estamos nos

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limites da floresta? – perguntou. O aprendiz parou e respirou fundo. Osaromasverdesdaflorestamisturaram-seaoutros,estranhosetenebrosos.Dessaveznãoeracheirodegato,masumodorqueofezlembrar-sedasuaantiga casa dos Duas-Pernas. O barulho se tornava cada vez mais alto eretumbava semparar, fazendoo chão tremer,maltratandoosouvidosdePatadeFogo.–EsteéoCaminhodoTrovão–miouGarradeTigre.Pata de Fogo e os outros seguiram Coração de Leão em direção aos

limites da floresta. Então ele sentou, e os quatro gatos se puseram aobservar.PatadeFogoviuumcaminhoacinzentado,quecortavaa florestacomo

um rio. A pedra dura e cinza se estendia tão longe à sua frente que asárvores do outro lado pareciam borradas e pequenas. Pata de Fogoestremeceuaosentirocheiroacrequeexalavadocaminho.De repente, saltou para trás, arrepiando-se todo quando um monstro

gigantescopassourugindo.Osgalhosdasárvoresqueladeavamocaminhobatiamloucamenteporcausadoventoquecorriaatrásdomonstroveloz.PatadeFogoolhouparaosoutrosfelinos;tinhaosolhosarregaladosenãoconseguia falar. Já tinha visto caminhos como aquele perto da sua antigacasadosDuas-Pernas,masnuncaumtãoextenso,nemcommonstrostãovelozesebravios.–Daprimeiravez, tambémmorridemedo–observouPataCinzenta.–

Mas, aomenos, ele ajuda a evitar que os guerreiros do Clã das Sombrasentrem no nosso território. O Caminho do Trovão corre por muitaspassadas ao longo da nossa fronteira. Não se preocupe; esses monstros,pelojeito,nuncasaemdoCaminhodoTrovão.Vocêficarábem,desdequenãocheguepertodemais.–Estánahoradevoltarparaoacampamento–miouCoraçãodeLeão.–

Vocêsagorajáconhecemtodasasnossasfronteiras.MasvamosdesviardasRochasdasCobras,emboraocaminhosejamais longo.Umaprendizsemtreinoseriaumapresafácilparaumaserpente,eimaginoquevocêestejaficandocansado,PatadeFogo.PatadeFogosentiu-sealiviadocomaideiaderetornaraoacampamento.

Sua cabeça rodopiava com todos os novos cheiros e as novas visões, eCoraçãodeLeãotinharazão:estavacansadoefaminto.Colocou-seatrásdePata Cinzenta quando os gatos se afastaram do Caminho do Trovão evoltaramparaafloresta.

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Os aromas orvalhados da tardinha enchiam o ar quando Pata de Fogoatravessou a entradade tojosdo acampamentodoClãdoTrovão. Presasfrescasosesperavam.PatadeFogoePataCinzentatiraramsuasporçõesdeuma pilha na parte sombreada da clareira e as levaram para o toco deárvorequeficavaforadosalojamentos.PatadePoeiraePatadeAreiajáestavamlá,mascandovorazmente.– Ei, gatinho de gente – miou Pata de Poeira, contraindo os olhos

desdenhosamenteparaPatadeFogo.–Saboreieacomidaquenóspegamosparavocê.– Quem sabe, um dia, você vai aprender a caçar a própria comida! –

debochouPatadeAreia.–Vocêsdoisaindaestãoemmissãodecaça?–perguntou,inocente,Pata

Cinzenta. – Não faz mal. Estávamos patrulhando as fronteiras do nossoterritório.Vocêsvãoficarfelizesemsaberqueestátudoasalvo.– Tenho certeza de que os outros clãs ficaram apavorados quando

farejaramvocêschegando–uivouPatadePoeira.– Eles nem sequer ousaram mostrar a cara – replicou Pata Cinzenta,

incapazdedisfarçararaiva.–Vamosperguntarissoaeleshojeànoite,naAssembleia–miouPatade

Areia.– Vocês vão à Assembleia? – disparou Pata de Fogo, impressionado,

apesardahostilidadedosaprendizes.–Claroquevamos–respondeuPatadePoeiracomarrogância–Éuma

grande honra, você sabe.Mas não se preocupe; pelamanhã, contaremostudoavocê.PataCinzenta ignorou abravatadePatadePoeira e começoua comer

suapresa.PatadeFogotambémestavafamintoe inclinou-separacomer.NãoconseguiuevitarumapontadadeinvejaaosaberquePatadePoeiraePatadeAreiairiamaoencontrodosoutrosclãsnaquelanoite.AoouvirochamadoemvozaltadeEstrelaAzul,PatadeFogoolhoupara

cima.Reparouquediversosguerreirosdoclãeosanciãosse reuniamnaclareira.EstavanahoradeogrupodoclãpartirparaaAssembleia.PatadePoeiraePatadeAreiaselevantarameforamjuntar-seaosoutrosgatos.–Tchau,vocêsdois–dissePatadeAreiaporsobreosombros.–Tenham

umaboanoite,calmaetranquila!Os felinos reunidos se dirigiram silenciosamente para a entrada do

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acampamento em fila indiana, com Estrela Azul à frente. O pelo da líderbrilhavacomoprataàluzdaluaeelaestavacalmaeconfianteaoconduzirseuclãparaabrevetréguaentrevelhosinimigos.– Você nunca esteve emumaAssembleia? – perguntouPata de Fogo a

PataCinzentacomcertamelancolia.– Ainda não – respondeu Pata Cinzenta, mascando ruidosamente um

ossodecamundongo.–Masnãovaidemorarmuito;bastaesperar.Todososaprendizestêmasuavez.Os dois aprendizes fizeram o resto da refeição em silêncio. Quando

terminaram,PataCinzenta foi atéPatadeFogo e começouapentear suacabeça.Aoselavarem,trocaramlambidas,comoPatadeFogotinhavistoosoutros gatos fazeremquando chegouaoacampamentopelaprimeiravez.Então,cansadosdalongacaminhada,foramparaatoca.Aconchegaram-senosninhoselogopegaramnosono.Namanhãseguinte,PataCinzentaePatadeFogochegaramcedoaovale

arenoso. Tinham saído antes de Pata de Areia e Pata de Poeira acordar.Pata de Fogo estava ansioso para saber sobre a Assembleia, mas PataCinzentaoarrastara,dizendo:–Vocêvaificarsabendodetudomaistarde,sebemconheçoaquelesdois.Maisumavez,odiaprometiaserquente.Dessavez,PataNegrajuntou-se

aeles.GraçasaFolhaManchada,aferidaestavasarando.PataCinzentabrincava,jogandofolhasparacimaepulandoparaapanhá-

las.PatadeFogoprestavaatenção,divertido,balançandoacauda.Sentadoquietinhoemumcantodovale,PataNegrapareciatensoeinfeliz.– Anime-se, Pata Negra – miou Pata Cinzenta. – Sei que não gosta de

treinar,masnuncaovitãoabatidoassim.OscheirosdeCoraçãodeLeãoeGarradeTigrealertaramosaprendizes

desuachegada,ePataNegramiourapidamente:–Équeeunãogostariademachucarmeuombrodenovo.Nessemomento, Garra de Tigre surgiu dos arbustos, seguido de perto

porCoraçãodeLeão.– Guerreiros devem sofrer a dor em silêncio – rosnou Garra de Tigre,

fitando Pata Negra direto no olho. – Você precisa aprender a segurar alíngua.PataNegrarecuoueolhouparaochão.–GarradeTigreestámeiorabugentohoje–PataCinzentacochichouna

orelhadePatadeFogo.

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CoraçãodeLeão lançouumolharseveroparaoaprendizeanunciou:–Hoje vamospraticar tocaia.Háumagrandediferença entre aproximar-sedeumcoelhoeaproximar-sedeumcamundongo.Algumdevocêssabemedizerporquê?PatadeFogonãotinhaamenorideia,ePataNegra,pelovisto, levaraa

sérioocomentáriodeGarradeTigreeestavasegurandoalíngua.–Vamos!–miou,impaciente,GarradeTigre.FoiPataCinzentaque respondeu: –Porqueumcoelho vai sentir o seu

cheiro antes de vê-lo,mas um camundongo sentirá seus passos no chão,mesmoantesdefarejarvocê.– Exatamente, Pata Cinzenta! Então, o que é preciso ter em mente

quandocaçamoscamundongos?–Pisardeleve?–PatadeFogosugeriu.CoraçãodeLeãoolhou-o comaprovaçãoedisse: –Muitobem,Patade

Fogo.Éprecisoconcentrartodoopesonosquadris,paraqueaspatasnãocausemimpactonochãodafloresta.Vamosexperimentar!PatadeFogoobservouenquantoPataCinzentaePataNegraagacharam

imediatamentenaposiçãodetocaia.– Muito bem, Pata Cinzenta! – miou Coração de Leão quando os dois

aprendizessemoveramparaafrentedemaneirafurtiva.– Mantenha o quadril baixo, Pata Negra; parece um pato! – disparou

GarradeTigre.–Agora,tentevocê,PatadeFogo.PatadeFogoagachouecomeçouarastejarpelochãodafloresta.Tevea

sensaçãodeque seu corpo instintivamenteassumiuaposição certa e, aoavançardamaneiramaisleveesilenciosaquepôde,encheu-sedeorgulhoporseusmúsculosresponderemtãofacilmente.–Bem,ficaclaroquevocênadasabedeleveza!–miouGarradeTigre.–

Rastejoucomoumgatinhodegentepesadão!Estápensandoqueo jantarvaisedeitarnasuatigelaeesperarsercomido?PatadeFogo se retesou rapidamenteaoouvir aspalavrasdaGarrade

Tigre, ficando um tanto abalado pelo tom duro. Ouviu o guerreiro comatenção,determinadoafazertudocerto.– O ritmo e o movimento para a frente virão mais tarde, mas o

agachamentodePatadeFogoestáperfeitamenteequilibrado!–CoraçãodeLeãodestacougentilmente.–EstámelhorqueodePataNegra,peloquevejo– reclamouGarrade

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Tigre, olhando comdebochepara o gatonegro. –Mesmodepois de duasluas de treinamento, você ainda está colocando todo o peso do ladoesquerdodocorpo.PataNegraficouaindamaisdesalentado;PatadeFogonãosecontevee

deixouescapar:–Masomachucadodeleestádoendo,éporisso.GarradeTigrevirouacabeçaeencarouPatadeFogo.–Asferidasfazem

parte da vida. Ele devia ser capaz de se adaptar. Até você, Pata de Fogo,aprendeualgumacoisanestamanhã.SePataNegrapegasseascoisas tãodepressa quanto você, ele seria motivo de honra para mim, não umproblema. Imagine ser ultrapassadopor umgatinhode gente! – grunhiu,zangado,paraoaprendiz.Incomodado com aquilo, Pata de Fogo sentiu o pelo pinicar. Não

conseguiaencararPataNegraeolhouparabaixo,paraasprópriaspatas.–Bem,euestoumaistortoqueumtexugoperneta–miouPataCinzenta,

passando a cambalear comicamente pela clareira. – Vou ter de meconformar com caçar camundongos burros. Eles não terão nenhumachance. Irei capengandoatéondeestivereme sentarei emcimadeles atéqueserendam.–Concentre-se,jovemPataCinzenta.Nãoéhoradefazerpiada!–miou,

sério, Coração de Leão. – Talvez consiga se concentrar melhor se tentartocaiarumapresadeverdade.Ostrêsaprendizesficaramanimados.–Queroque cadaumde vocês tente apanhar umapresade verdade –

miouCoraçãodeLeão.–PataNegra,olheaoladodaÁrvoredaCoruja.PataCinzenta, deve haver alguma coisa naquela grande faixa de amoreiras aliadiante.Evocê,PatadeFogo,sigaapistadoscoelhosnaquelasubida;vaiencontraro leito secodeumriachode inverno.Écapazdeacharalgumacoisaporlá.Os aprendizes saíram, até mesmo Pata Negra, que encontrou alguma

energiaextraparaencararodesafio.Comosanguepulsandonasorelhas,PatadeFogorastejoudevagarpela

subida.Realmenteumleitoderiocortavaasárvoresàsuafrente.Naépocadas folhas caídas, imaginou, aquele leito levaria a chuva da floresta emdireção ao grande rio que atravessava o território do Clã do Rio. Agoraestavaseco.

PatadeFogosearrastousembarulhopelamargemeagachounoterreno

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arenoso.Seussentidosseinflamavamdeexcitação.Emsilêncio,examinouo rio seco, atrás de sinais de vida. Com a boca aberta, para captar atémesmoocheiromaisdiscreto,easorelhasvoltadasparaafrente,prestavaatençãoacadapequenomovimento.Sentiu,então,cheirodecamundongo.Reconheceuoodorimediatamente,

lembrando-sedaprimeiraprovananoiteanterior.Umaenergiaselvagemtomou conta dele, mas ele não se mexeu, tentando desesperadamentelocalizarapresa.Retesouasorelhasparaafrenteeentãopercebeuorápidopulsardeum

minúsculocoraçãodecamundongo.Foiquandoumlampejomarromatraiuseuolhar.Acriaturaescalavaogramadoaltoquemargeavaorio.PatadeFogoavançouumpoucomais,lembrando-sedemanteropesonosquadrisaté que estivesse na distância certa para pular. Em seguida, apoiando-sefirmemente nas patas traseiras, tomou impulso e saltou, levantando umanuvemdeareia.Ocamundongoesquivou-se.MasPatadeFogofoimaisrápido.Atirou-o

no ar com uma pata, lançou-o no leito arenoso do rio e arremessou-sesobreele,abatendo-ocomumamordidacerteira.Pata de Fogo levantou com cuidado o corpomorno entre os dentes e,

comacaudaerguida,voltouparaovaleondeGarradeTigreeCoraçãodeLeãoesperavam.Eraaprimeiravezquematavaumapresa.AgoraeraumverdadeiroaprendizdoClãdoTrovão.

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CAPÍTULO6

OSOLDO INÍCIOdamanhãbanhavaochãoda florestaquandoPatadeFogosaiuembuscadepresas.Duasluashaviamsepassadodesdeoiníciodoseutreinamento.Elesesentiaàvontadenaqueleambienteagora.Seussentidostinhamsidodespertadoseeducadosàmaneiradafloresta.PatadeFogoparouparafarejaraterraeascoisasescondidasquenelase

revolviam.PercebeuocheirodeumDuas-Pernasqueandarapelaflorestarecentemente.Agoraqueaépocadasfolhasverdeschegaradeverdade,afolhagem enchia os galhos de árvores e pequenas criaturas trabalhavamocupadassobotapetedehumo.AsombraesguiaefortedePatadeFogomovia-sesilenciosamenteentre

asárvores,etodososseussentidosestavamatentosàtrilhadecheirosqueterminariaemumamorterápida.Eraaprimeiravezquesaíasozinhonumamissão e estava determinado a ter sucesso, mesmo que a missão fosseapenaslevarpresasfrescasparaoclã.Dirigiu-seaoriachoquehaviacruzadonasuaprimeiracaminhadapela

zonadecaçadoClãdoTrovão.Borbulhasdeáguarespingavamdorioquecorria sobre as pedras lisas e redondas. Pata de Fogo fez uma pequenaparadaparabeberdaáguafriaeclara;levantouacabeçaevoltouafarejaroar,procurandoalgumcheirodepresa.Ofedorderaposaeraforte.Umcheiroazedodenunciavaqueelaandara

bebendoporalimaiscedo.PatadeFogoreconheceuoodorquesentiranaprimeiravisita à floresta.Desdeentão,CoraçãodeLeão lhe ensinaraqueaquiloeracheiroderaposa,mas,alémdeumacaudaqueeleviraderelancenaquela primeira saída, Pata de Fogo nunca tinha visto uma raposa deverdade.Teve de se esforçar para ignorar o odor de raposa e se concentrar no

cheirodapresa.Derepente,osbigodesseretesaramquandoelepercebeuopulsardosanguequentedeumacaça–umratosilvestresemexendononinho.Ummomento depois, ele avistou a presa. O corpo gordo emarrom se

lançava para a frente e para trás ao longo da margem, enquanto o ratojuntava hastes de grama. Pata de Fogo ficou com água na boca só deimaginar.Jáfaziamuitashorasdesdesuaúltimarefeição,masnãoousariacaçarparasimesmoatéqueoclãtivessesidoalimentado.Lembrava-sedaspalavrasqueCoraçãodeLeãoeGarradeTigrenãocansavamderepetir:“O

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clãdeveseralimentadoemprimeirolugar.”Agachou-seecomeçouatocaiarapequenacriatura.Suabarrigaamarela

roçava a grama úmida. Chegou mais perto, sem tirar os olhos da presa.Estavaquaselá.Maisuminstanteeestariapertosuficienteparapular…Derepente,algumacoisasemexeunassamambaiasatrásdele, fazendo

barulho.Asorelhasdoratosilvestreestremecerameeledesapareceuemumburaconamargem.PatadeFogosentiuopeloeriçar-seaolongodaespinha.Algoarruinara

suaprimeiraboachancedepegarumapresae,fosseoquefosse,haveriadepagar.Farejouoar.Sabiaqueeraumgato,maspercebeucomumtremorque

não podia identificar a que clã pertencia, pois o cheiro azedo da raposaconfundiaseuolfato.Um grunhido brotou-lhe na garganta quando ele começou a recuar,

fazendo um grande círculo. Retesou as orelhas e arregalou os olhos,procurandoalgummovimento.Ouviuoruídonavegetaçãomaisumavez.Agoraeramaisalto,vinhadeumdoslados.PatadeFogoseaproximou.Viuassamambaiassemovendo,masacopadasárvoresaindaoimpediadevero inimigo. Um galho quebrou, produzindo um som agudo. Pelo barulho,deve ser grande, pensou Pata de Fogo, preparando-se para uma batalhaferoz.Pulouparao troncodeum freixoe subiu rápidae silenciosamenteaté

um galho pendurado. Debaixo dele, o guerreiro invisível se aproximavacadavezmais.PatadeFogoprendeua respiraçãoe, enquantoavaliavaasituação, as samambaias se abriram e delas surgiu uma grande formaacinzentada.– Grrrrrrrr – O grito de batalha bramiu na garganta de Pata de Fogo.

Garras de fora, ele se lançou sobre o inimigo, caindo sobre ombrosvigorosos e peludos. Atirou-se com força, cravando as garras afiadas,prontoparadesferirumapoderosamordidadealerta.–Ei! Ei!Oque é isso? –O corpo sobPatadeFogodeuumpulono ar,

carregando-ojunto.–Hã?PataCinzenta?–PatadeFogoreconheceuavozespantadaesentiu

ocheirofamiliardoamigo;masestavamuitoagitadoparasoltarasgarras.–Emboscada!!Miauuuuuuuuu!!–disparouPataCinzenta,semperceber

queeraPatadeFogoque lheagarravaascostas.Ogatosecontorciasemparar,tentandosesoltardoagressor.

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–Uuff-ff! – Pata de Fogo se contorcia também, imprensado e achatadosob o corpo pesado. – Sou eu, Pata Cinzenta! – gritou, lutando para selibertar e recolher as garras.Retorcendo-se, ficoudepé; sacudiuo corpotodo, num tremor que lhe eriçou o pelo até a ponta da cauda. – PataCinzenta!Soueu–repetiu.–Penseiquefosseumguerreiroinimigo!Pata Cinzenta se levantou. Estremeceu e sacudiu o corpo. – Parecia

mesmo! – falou entre dentes, virando a cabeça para lamber os ombrosmachucados.–Vocêmearranhoutodo!–Desculpe!–PatadeFogomurmurou.–Masoqueéqueeu iapensar,

comvocêseaproximandodessejeitosorrateiro?– Sorrateiro? – Os olhos de Pata Cinzenta ficaram redondos de

indignação.–Foiminhamelhortocaia.–Tocaia!–Vocêfoitãodiscretoquantoumtexugomanco!–PatadeFogo

provocou,abaixandoasorelhas,divertido.Pata Cinzenta deu um assobio de prazer. – Vou lhe mostrar quem é

manco.Osdoisgatospularam,engalfinhando-senumalutadebrincadeira.Pata

CinzentaatingiuPatadeFogocomforçaeojovemaprendizviuestrelas,acabeçazunindo.– Uufff-ff! – Pata de Fogo sacudiu a cabeça para colocar as ideias em

ordemepartiuparaocontra-ataque.Conseguiu ainda dar uns dois golpes antes que Pata Cinzenta o

dominasse,mantendo-onochão.PatadeFogosoltouocorpo.– Você desiste fácil demais! –miou Pata Cinzenta, afrouxando a garra.

Nessemomento,PatadeFogoergueu-se comumgirodo corpo, atirandoPataCinzentanavegetação.Emseguida,pulandosobreele,PatadeFogo imobilizou-onochão.–A

surpresaéamaiorarmadeumguerreiro–grunhiu,citandoumadasfrasesfavoritas de Coração de Leão. Soltou-se agilmente de Pata Cinzenta ecomeçouarolarnacamadadefolhas,saboreandoavitóriafácileocalordaterranascostas.PataCinzentanãopareceuaborrecidopelasegundaderrotadamanhã.O

diaestavabonitodemaisparaentregar-seaomauhumor.–Eentão?Comoestásesaindonessaprimeiratarefa?–perguntou.PatadeFogosentou–Iamuitobematévocêaparecer!Estavaapontode

pegarumratosilvestrequandoobarulhodosseuspassosoassustoueelefugiu.

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–Ah,desculpe–miouPataCinzenta.PatadeFogoolhouparaoamigocabisbaixo.–Tudobem.Vocênãosabia

– ronronou. –Mas vocênãodevia estar indo ao encontrodapatrulhanafronteira do Clã do Vento? Pensei que tinha de lhes entregar umamensagemdeEstrelaAzul.–Éverdade,masaindatenhomuitotempo.Primeiroiacaçarumpouco.

Estoumortodefome!–Eutambém.Masprecisocaçarparaoclãantesdecaçarparamim.–ApostoquePatadePoeiraePatadeAreiacostumavamengolirumou

dois musaranhos quando estavam em missão de caça – bufou PataCinzenta.– Não ficaria surpreso com isso, mas esta é minha primeira tarefa

sozinho…–Evocêquerfazerdireitinho;seicomoé–PataCinzentasuspirou.–Afinal,qualéamensagemdeEstrelaAzul?–PatadeFogoperguntou,

mudandodeassunto.–ElaquerqueapatrulhaesperenoGrandePlátanoatéquesereúnaa

elesnosolalto.ParecequealgunsfelinosdoClãdasSombrasestiveramporláatrásdepresas.EstrelaAzulquerfazerumainspeção.–Então,émelhorvocêir–PatadeFogoaconselhou.–AszonasdecaçadoClãdoVentonãoficamlongedaqui.Hátempode

sobra – respondeu Pata Cinzenta, confiante. – Acho que émelhor ajudarvocê,jáque,porminhacausa,perdeuoratosilvestre.–Não fazmal–miouPatadeFogo.–Encontrareioutro.Odiaestá tão

quentequedevehaverumbocadodelesporaí.–Éverdade.Masvocêaindaprecisapegá-los.–PataCinzentamordiscou,

pensativo,umadaspatasdianteiras,tirandoumalascadagarradescoberta–Vocêsabequeissopodedemoraratéosolficaralto,talvezatéopôrdosol.Pata de Fogo concordou sem entusiasmo, sentindo a barriga roncar.

Provavelmente teria de fazer três ou quatro excursões de caça antes deconseguiracumularpresassuficientes.OTuledePrataestarianocéuantesquetivesseumachancedecomer.PataCinzentabalançouosbigodes.–Vamoslá;vouajudá-loacomeçar.É

o mínimo que posso fazer para compensá-lo. Acho que conseguiremospegaralgunsratossilvestresantesqueeumevá.

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PatadeFogoseguiuPataCinzentarioacima,contentepelacompanhiaepelaajuda.Ofedordaraposaaindaestavanoar,mas,derepente,pareceumaisforte.PatadeFogoparoueperguntou:–Estásentindoessecheiro?Pata Cinzenta parou e também farejou o ar. – É raposa. Já senti esse

cheirohoje.–Masnãoparecemaisfrescoagora?–perguntouPatadeFogo.Pata Cinzenta voltou a farejar, abrindo levemente a boca. – Você tem

razão –murmurou, abaixando a voz. Virou a cabeça para olhar do outroladodorio,nadireçãodosarbustosqueficavamnafloresta.–Olhe!–faloubaixinho.PatadeFogoolhoueviuumacoisavermelhaepeludasemovendoentre

osarbustoseentrandoemumaclareiradavegetação.Eraumcorpobaixoerubro, que cintilava à luz do sol. A cauda era bastante peluda, com umapontacompridaeestreita.–Então,istoéqueumaraposa?–cochichouPatadeFogo–Quefocinho

feio!–Temrazão!–concordouPataCinzenta.– Eu estava seguindo uma dessas quando nós… nos conhecemos –

murmurouPatadeFogo.– Era ela que provavelmente seguia você, seu idiota! – sibilou Pata

Cinzenta. – Jamais confie numa raposa. Parece um cachorro, mas secomporta comoumgato. Precisamos avisar as rainhas sobre essa raposadesgarrada no nosso território. – As raposas são tão ruins quanto ostexugosquandosetratadematarfilhotes.Estoufelizquevocênãoatenhaalcançado quando a viu da última vez. Ela teria feito gato e sapato dealguémtãopequeno.–PatadeFogoolhoumeiosemjeitoePataCinzentaacrescentou: – Mas agora você já tem mais chance. De qualquer forma,provavelmenteEstrelaAzul vaimandarumapatrulhade guerreirosparaespantá-la.Issovaiacalmarasrainhas.Araposanãotinhanotadoosdoisaprendizesque,assim,continuaramao

longodoriacho.– Então, como é um texugo? – perguntou Pata de Fogo, à espreita,

farejandodeumladoparaoutro.–Pretoebranco,pernascurtas.Vocêvaireconhecerquandoencontrar.

Sãomal-humorados,animaispesados.Émenosprovávelqueelesataquemoberçáriodoqueumaraposa,massuamordidaéterrível.Comovocêacha

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queovelhoMeioRaboganhouaquelenome?Elenãoconseguemaissubiremárvoredesdequeumtexugolhearrancouacauda!–Porquenão?–Temmedode cair.Umgatoprecisa do rabopara aterrissar depé.O

raboajudaagirarnomeiodosalto.PatadeFogobalançouacabeça,sinalizandoquehaviaentendido.Como Pata de Fogo previra, a caça foi boa naquele dia. Não demorou

muitoparaPataCinzentaagarrarumcamundongopequenoePatadeFogopegarumsabiá.Eleomatourapidamente.Nãohaviatempoparapraticartécnicas de abate. Eram muitíssimas as bocas famintas esperando noacampamento.PatadeFogo jogou terra sobreapresa,paraque ficasseasalvodepredadoresatéqueviessebuscá-la.Derepente,apareceuumesquilo.PatadeFogosepôsemação.–Atrásdele!–gritou,espichando-seaose

atirarnochãodafloresta,seguidoporPataCinzenta.Paroudesúbitoquandooesquiloescapuliuparaoaltodeumabétula.–Nósoperdemos!–PataCinzentagrunhiu,desapontado.Resfolegando, osdois gatospararampara recuperar o ar.O fedor acre

quechegavaasuasbocasenarizesossurpreendeu.–OCaminhodoTrovão–miouPatadeFogo.–Nãopercebiquetínhamos

vindotãolonge.Os dois gatos avançaram para olhar além da floresta, para o caminho

grandeeescuro.Eraaprimeiravezqueestavamalisozinhos.Umatrilhadecriaturas barulhentas grunhia pela superfície dura, com os olhosmortosolhandodiretoparaafrente.–Eca!–miouPataCinzenta.–Essesmonstrosrealmentefedem!Pata de Fogo sacudiu as orelhas, concordando. Aqueles cheiros

asfixiantesfaziamsuagargantaarder.–VocênuncaestevenoCaminhodoTrovão?–miou.PataCinzentanegoucomacabeça.Pata de Fogo deu um passo e saiu do refúgio da floresta. Havia uma

margemdegramaoleosaentreasárvoreseoCaminhodoTrovão.Devagar,colocou ali uma pata, mas se encolheu para trás quando, violentamente,passouummonstrocomumcheiroterrível.–Ei,aondevocêvai?–miouPataCinzenta.PatadeFogonãorespondeu.Esperouaténãovermaisnenhummonstro.

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Então,maisumavez,ultrapassouamargemdegrama,coladinhonabeiradocaminho.Comcuidado,colocoualiumapata.Eraquente,meiopegajoso,aquecido pelo sol. Olhou para cima, para o outro lado do Caminho doTrovão. Seria um par de olhos brilhando lá longe? Farejou o ar, mas sóconseguiusentirofedordograndecaminhocinza.Osolhosdooutroladoaindabrilhavamnassombras.Atéquepestanejaram.PatadeFogotinhacertezaagora.EraumguerreirodoClãdasSombras

queofitavadiretamente.– Pata de Fogo! – A voz de Pata Cinzenta fez Pata de Fogo pular,

exatamentequandoummonstroenorme,maisaltoqueumaárvore,rugiupertinhodo seu nariz.O bafo quase o derrubou. Pata de Fogo se virou ecorreuomaisdepressaquepôdeparaasegurançadafloresta.– Seu bobo com miolo de camundongo! – disparou Pata Cinzenta, os

bigodestremendodemedoeraiva.–Oqueestáfazendo?– Só queria saber como era o Caminho do Trovão – Pata de Fogo

murmurou.Seusbigodestambémestavamtremendo.–Venha–sibilouasperamentePataCinzenta.–Vamosdaroforadaqui!Pata de Fogo pulou de volta para a floresta e seguiu o amigo. Quando

estavam a uma distância segura do Caminho do Trovão, Pata Cinzentaparoupararecuperarofôlego.PatadeFogosentouecomeçoua lamberopeloeriçado.–Achoquevi

umguerreirodoClãdasSombras–miouentreumalambidaeoutra.–Nafloresta,dooutroladodoCaminhodoTrovão.– Um guerreiro do Clã das Sombras! – repetiu Pata Cinzenta, com os

olhosarregalados.–Émesmo?–Tenhocerteza.– Foi bom que omonstro tenha passado naquela hora – replicou Pata

Cinzenta.–OndeháumguerreirodoClãdasSombras,háoutrosmais,enósaindanãosomospáreoparaeles.Melhorirmosembora.–Olhouparacima,encarandoosolquaseapino.–Ébomeumemexersequiserencontrarapatrulhaatempo–miou.–Atémaistarde.–Pulounadireçãodavegetação,dizendo,aoseafastar:–Nuncasesabe;CoraçãodeLeãotalvezmedeixevirajudá-lonacaçadadepoisqueeuentregaramensagem.Pata de Fogo olhou o amigo se afastar. Teve inveja de Pata Cinzenta;

quem dera fosse ele a se juntar a uma patrulha de guerreiros. Mas, aomenos, teriaalgumacoisapara contaraPatadePoeiraeaPatadeAreiaquando voltasse ao acampamento. Tinha visto seu primeiro guerreiro do

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ClãdasSombras.

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CAPÍTULO7

PATADEFOGORETOMOUocaminhodevoltaaoriacho.PensavanaquelesolhosqueimandonaescuridãodoterritóriodoClãdasSombras.Derepentesentiuumcheirotênuenabrisa.Umestranho!TalvezoguerreirodoClãdasSombras…Imediatamenteumgrunhidodesprendeu-sedagargantadePatadeFogo.

Amensagemolfativalhediziamuitascoisas.Oestranhoeraumagata,nãomuito jovem e que, com certeza, não fazia parte do Clã do Trovão. Nãoexalava o cheiro peculiar de nenhum dos clãs, mas Pata de Fogo podiaperceberqueestavacansada,famintaedoente–edemauhumor.Pata de Fogo agachou-se e avançou na direção do odor. Então parou,

atrapalhado. O cheiro de guerreiro estava agoramais fraco. Ele voltou afarejar.De repente, como faísca, uma bola de pelo emaranhado surgiu dos

arbustos,caindoatrásdele.Apanhadodesurpresa,PatadeFogoberrouquandoagataarremeteu-se

contraele,derrubando-odelado.Duaspataspesadascravaram-seemseusombros, e mandíbulas de ferro fecharam-se em seu pescoço. –Miauuuuuuuuu! – grunhiu, já pensando rápido. Se o agressor enfiasse asgarrasfundodemais,tudoestariaacabado.Ele se fez de vencido, relaxando os músculos como se estivesse

dominado,eemitiuumgritofingidodealarme.Agataabriuabocaparaumgritotriunfante.–Ah,umpequenoaprendiz.

VítimafácilparaPresaAmarela–sibilou.Aoouviroinsulto,PatadeFogoseencheudefúria.Esperesó.Iamostrar

paraaquelaboladepelocuspidaquetipodeguerreiroeleera.Masaindanão,pensou.Espereatésentirosdentesdeladenovo.PresaAmarelamordeu.PatadeFogosejogouparacimacomtodaaforça

deseuvigorosocorpojovem.Agatamiou,surpresa,aoseratiradalongeebateuemretirada,nadireçãodeumarbustodetojo.PatadeFogosacudiu-se:–Nãosouumapresaassimtãofácil,nãoé?Presa Amarela exalava desconfiança quando conseguiu se soltar dos

galhos fechados e disparou: – Nada mau, jovem aprendiz. Mas você vaiprecisarfazermuitomelhor!PatadeFogopiscouquandoviuaadversária claramentepelaprimeira

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vez.PresaAmarelatinhaumacaralarga,quaseachatada,eolhosredondosecordelaranja.Opeloescuroecinzaeralongoeestavaemaranhadoemtufos fedorentos. Tinha as orelhas machucadas e rasgadas, e o focinhotraziacicatrizesdemuitasantigasbatalhas.PatadeFogonãosemexeu.Estufouopeitoelançouodesafionacarada

intrusa:–VocêestánazonadecaçadoClãdoTrovão.Caiafora!– Quem é que vai me obrigar? – Presa Amarela retraiu o lábio,

desafiadora,expondodentesmanchadosequebrados.–Voucaçar.Depoisvouembora.Outalvezeufiqueumpouco…– Chega de conversa – Pata de Fogo disparou, sentindo por dentro a

agitaçãodosantigosespíritosdosfelinos.Nãohavianelenenhumvestígiodegatodomésticonaquelemomento. Seu sanguedeguerreiro fervia.Eleestavaloucoparalutar,paradefenderseuterritórioeprotegerseuclã.PresaAmarelapercebeuamudançanele.Osferozesolhoscordelaranja

brilhavamagoracomrespeito.Abaixandoacabeçaedesviandooolhar,elacomeçouarecuar.–Nãoprecisaseprecipitar–ronronouemtomsedoso.Pata de Fogo não caiu no truque. Com as garras esticadas e a pele

eriçada,pulouparaafrente,dandoseugritodeguerra:–Grr-aaar!Comumuivode raiva, a gata respondeu.Rosnando e cuspindo, o gato

jovemeagatavelhaseengalfinharam.Rolaramparaláeparacá,dentesegarras em ação. Com as orelhas coladas contra a cabeça, Pata de Fogotentava a todo custo agarrar Presa Amarela. Mas o pelo emaranhado dagataseenrolavaemsuasgarraseelenãoconseguiaatingir-lheapele.PresaAmarelaergueu-seentãonaspatastraseiras.Comacaudaimunda

earrepiada,pareciaaindamaior.PatadeFogoviuabocaenormedePresaAmarelavindonasuadireçãoe

conseguiu se inclinar para trás bem na hora. Uma dentada! Dentesmaltratadossefecharamnoarpertodesuaorelha.Instintivamente,PatadeFogorevidoucomumgolpe.Suapatapegoua

lateral da cabeça de Presa Amarela. Foi uma pancada tão forte que elesentiuondasdechoquenapatadianteira.–Uauu!–Zonza,PresaAmarelacaiunasquatropatas.Sacudiuacabeça

paracolocarasideiasemordem.Eraapenasumabatidadecoraçãoantesqueagataserecuperasse,ePata

de Fogo aproveitou a oportunidade. Jogou-se para a frente, agachou eenfiouasmandíbulasdiretonapernatraseiradePresaAmarela.–Murrrrr!–Ogostodopeloemaranhadoerahorrível,maselemordeufundo.

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–Ruuur,uuuuuuuuuuuuuui–PresaAmarelaberroudedor,enquantosedebatiaparatentarmorderacaudadePatadeFogo.OsdentesdagatasefecharamePatadeFogosentiuadoratravessar-lhe

aespinha.Masissosóodeixoumaiszangado.Arrancouacaudadabocadaoponenteesacudiu-acomforçaparaafrenteeparatrás,comraiva.PresaAmarelaagachou,preparando-separaumnovoataque.Seuhálito

parecia vir direto dos pulmões fedorentos. O cheiro fulminou o nariz dePatadeFogo.Assimdeperto,amensagemdedesesperoefraqueza,ovaziodoloridodoestômagofamintodagatachegavaamachucar.Algumacoisaseagitoudentrodele,umsentimentoquenãocondiziacom

umguerreiro:piedade.Tentounão sedeixardominarpor esse instinto–sabiaqueeraaoclãquedevialealdade–masnãoconseguiuevitar.–Vocêfalacomocoração,jovemPatadeFogo.–AspalavrasdeCoraçãodeLeãomais uma vez ecoaram em sua cabeça. – Um dia, isso fará de você umguerreiromais forte.–Então,aadvertênciadeGarradeTigrebuzinounasuaorelha:–Oupoderá fazê-lo render-seà fraquezadegatinhodegentebemnomomentodoataque.PresaAmarelainvestiuePatadeFogodevolveuaagressão.Agatatentou

subirnosombrosdeleparaumgolpemortal,mas,dessavez,foiimpedidapelapernaferida.– Grr, grr! – Pata de Fogo arqueou a espinha, mas Presa Amarela

conseguiuenfiar-lheasgarrase cravou-ascom força.Maiordoqueele, agataomantevenochãocomseupeso.PatadeFogosentiuogostode terrana línguaecuspiuaareiaque lhe

enchiaaboca.–Pah!Virou-seagilmenteparaevitaraspernastraseirasdePresaAmarela,que

nãoparavamdegolpeá-lo,easgarrasafiadasquetentavamarranhar-lheabarrigamacia.Eassimrolaramerolaram,mordendo-seearranhando-se.Momentosdepois,sesepararam.PatadeFogorespiravacomdificuldade,

maspercebeuquePresaAmarelafraquejava.Estavamuitoferidaeaspatastraseirasmalconseguiamsuportarocorpomagro.–Eentão?Jáchega?–PatadeFogogrunhiu.Seaintrusaserendesse,ele

adeixariairapenascomumamordidadeadvertênciaparaserlembrado.– Nunca! – Presa Amarela sibilou de volta, bravamente. Mas a perna

ferida falseou e ela caiuno chão.Tentou levantar-se,masnão conseguiu.SeusolhosestavamembaçadosquandosedirigiuaPatadeFogocomvozfraca:–Senãoestivessetãofamintaecansada,teriatransformadovocêem

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poeiradecamundongo.–Abocadagatasecontorciaemdoredesafio.–Acabecomigo.Nãovouimpedi-lo.Pata de Fogo hesitou. Jamais tinha matado outro gato. No calor da

batalha,talvezofizesse.Masasangue-frio?Issoeramuitodiferente.– O que está esperando? – Presa Amarela provocou. – Você está

vacilandocomoumgatinhodegente!Pata de Fogo despertou ao ouvir as palavras da gata. Será que podia

sentirneleocheirodosDuas-Pernas,mesmodepoisdetantotempo?–SouumaprendizdeguerreirodoClãdoTrovão–disparou.PresaAmarela estreitouosolhos.ViuquePatadeFogo se incomodara

comsuaspalavrasepercebeuqueatingiraumpontofraco.Agatamiou:–Ah, não me diga que o Clã do Trovão está tão desesperado que precisarecrutargatinhosdegenteagora?–OClãdoTrovãonãoestánadadesesperado!–devolveuPatadeFogo.– Então prove! Aja como um guerreiro e acabe comigo. Estará me

fazendoumfavor.Pata de Fogo a encarou. Não ia ser impelido a matar aquela criatura

infeliz. Sentiu os músculos relaxarem à medida que a curiosidade ocutucava.Comoumgatodeclãtinhachegadoàqueleestado?OsanciãosdoClãdoTrovãoerammaisbemcuidadosqueosfilhotes!–Vocêpareceestarcomumapressaterríveldemorrer!–miou.–Émesmo?Bem, issonãoédasuaconta, sua raçãodecamundongo–

provocouPresaAmarela.–Qualéoseuproblema,gatinho?Estátentandomematardetantofalarcomigo?Aspalavraseramcorajosas,masPatadeFogosentiaafomeeadoença

queemanavamdagataemondas.Ela iamesmoacabarmorrendosenãocomesse logo. E comonão conseguiria caçar sozinha, talvez fossemelhormatá-laagora.Osgatossefitaram;aincertezapairavanosdoisolhares.–Espereaqui–PatadeFogofinalmenteordenou.PresaAmarelapareceuafrouxar.Ospelosabaixarameacaudaperdeua

rigidezquelembravaumtojo.–Estábrincando,gatinho?Nãovouapartealguma–elagrunhiu,enquantosedirigiaparaumtapetedeurzesmaciaslogo ali, mancando de dor. Despencou ali mesmo e começou a lamber apernamachucada.PatadeFogoolhou-aporcimadoombroebufou,exasperado,antesde

rumarparaasárvores.

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Caminhando em silêncio entre as samambaias, sentiu os odoresaquecidospelosolpenetraremseunarizedistinguiuentreelesofedoracredeumratomortohaviatempo.Ouviuoruídodosinsetossobacascadasárvores, barulhinhos de coisas peludas correndo sobre as folhas. Seuprimeiropensamentofoidesenterrarosabiáquetinhamatadomaiscedo,masissoiatomartempodemais.Talvezdevesseescavaracarcaçadorato.Erauma formade conseguir carne fácil,masumgato famintoprecisadepresafresca.Sóemtemposmuitodifíceisumguerreirocomeriacomidadecorvo.Foi quando parou, farejandomais adiante um jovem coelho. Deumais

unspassoseconseguiuvê-lo.Agachoueficouàespreita.Estavaamenosdeumcamundongodedistânciaquandofoidetectado.Maseratardedemais.OrabopequenoebrancoafugiremdisparadaatiçounasveiasdePatadeFogoavibraçãodacaça.Comummovimentoágilegarrascerteiras,eleopegou.Imobilizandorapidamenteocorpoagitado,logoacaboucomele.Presa Amarela lançou a Pata de Fogo um olhar cansado quando ele

soltouocoelhonochão,aoladodela.Estavasurpresa.–Bom,oidenovo,gatinho!Penseiquetivesseidobuscarseusamiguinhosguerreiros.–É?Bem,talvezaindafaçaisso.Enãomechamedegatinho–reclamou

Pata de Fogo, empurrando o coelhomais para perto dela com o focinho.Estavasemgraçacomaprópriagentileza.–Olhe,senãoquiser…PresaAmarelalogoretrucou:–Ah,não.Querosim.Pata de Fogo ficou observando enquanto a gata rasgava a presa e

começavaaengoli-la.Afomedoaprendizaflorou,abocaseencheudeágua.Sabia que não devia sequer pensar em comida. Ainda precisava levarpresas suficientes para o clã, mas aquela presa fresca tinha um cheirodelicioso.– Hummm-mm – Alguns minutos depois, Presa Amarela soltou um

grandesuspiroecaiudelado.–Aprimeirapresafrescaquecomiemdias.–Limpouonarizcomalínguaesepreparouparaumbanhocompleto.Como se um banho fosse fazer muita diferença, Pata de Fogo pensou,

mexendoonariz.Elaeraoprópriofedor.Olhou para os restos estraçalhados da presa. Não sobrara muito para

satisfazer a barriga de um gato faminto, mas a luta com Presa Amarelatinhaaguçadoaindamaisseuapetite;rendeu-seàfomeeengoliuosrestos.Estavamdeliciosos.Lambeuosbeiços, saboreandoatéoúltimopedaço,e

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sacudiu-sedacabeçaàspatas.PresaAmarela o observava de perto, expondo os dentesmanchados. –

MelhorqueaporcariadaraçãocomqueosDuas-Pernasalimentamalgunsdosnossos irmãos, não é? –miou,matreira. Sabendode seuponto fraco,tentavahostilizá-lo.PatadeFogoaignorouecomeçouaselavar.–Éveneno–PresaAmarelacontinuou.–Fezesderato!Sóumsacode

pelo invertebrado aceitaria aquelas ovasde sapo repulsivas…–Paroudefalareficoualerta.–Psssssiu…guerreiroschegando.PatadeFogo tambémpercebeuaaproximaçãodegatos.Ouviupisadas

suaves sobre a camada de folhas e o som de pelo se arrastando pelosgalhos. Farejou o vento que acariciava a pelagem dos felinos. Cheirosconhecidos. Eram guerreiros do Clã do Trovão, que, sentindo-se segurosemseupróprioterritório,nãoprecisavamseimportarcomobarulhoquefizessem.Cheio de culpa, Pata de Fogo lambeu os lábios, esperando conseguir

eliminarqualquervestígiodosrestosqueacabaradeengolir.OlhouentãoparaPresaAmarelaeparaapilhadeossosdecoelhoao ladodela. “Oclãprecisa ser alimentado em primeiro lugar!” A voz de Coração de Leãobuzinava na sua cabeça, mais uma vez. Mas, com certeza, elecompreenderia por que Pata de Fogo alimentara aquela famigeradacriatura. Suamente girava, subitamente amedrontada comoquepoderialheacontecer.Naprimeiratarefadeaprendizhaviaquebradoocódigodosguerreiros!

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CAPÍTULO8

PRESAAMARELAGRUNHIUdesafiadoramenteàaproximaçãodaspassadas,masPatadeFogopercebeuqueelaestavaapavorada.Agatamalconseguiaficardepé.–Atélogo.Obrigadapelarefeição.–Tentouseafastar,mancandoemtrêspatas,masentãoestremeceudedor.–Aiii!Estapernaficoudormenteenquantoeuestavadescansando.Agora era tarde demais para correr. Sombras silenciosas saíam das

árvorese,noespaçodeumabatidadecoração,apatrulhadoClãdoTrovãotinhacercadoPatadeFogoePresaAmarela.PatadeFogoosreconheceu:Garra de Tigre, Risca de Carvão, Pele de Salgueiro e Estrela Azul, todosesbeltos e musculosos. Pata de Fogo farejou o medo que Presa Amarelasentiuaoverogrupo.PataCinzentaveiologodepois.Saiudetrásdosarbustoseparouaolado

dapatrulhadeguerreiros.PatadeFogomiou,numcumprimentoapressadoaoclã.MasapenasPata

Cinzentarespondeu:–Olá,PatadeFogo!–Silêncio!–rugiuGarradeTigre.Pata de Fogo olhou para Presa Amarela e grunhiu por dentro; ainda

sentiaocheirodemedoqueagataexalava,masaimundacriatura,emvezdesecurvaremsubmissão,tinhaumolhardesafiador.–PatadeFogo?–avozdeEstrelaAzulerafriaecalculada.–Oquetemos

aqui?Uma guerreira inimiga; e, considerando o cheiro de ambos, recém-alimentada.–Seusolhosqueimavamnadireçãodele.PatadeFogoabaixouacabeçaecomeçouafalar:–Elaestavafracaefaminta…–E você?A fomeera tantaqueprecisava se alimentar antesde reunir

presas para o clã? – Estrela Azul continuou. – Presumo que tenha umarazãomuitoboaparaterquebradoocódigodosguerreiros.PatadeFogonãoseiludiucomotomsuavedalíder.EstrelaAzulestava

furiosa–ecomrazão.Eleseabaixouaindamais.Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Garra de Tigre sibilou

ruidosamente:–Umavezgatinhodegente,sempregatinhodegente!Estrela Azul ignorou Garra de Tigre e olhou para Presa Amarela. De

repente,mostrou-se surpresa. – Ora, ora, Pata de Fogo! Parece que vocêcapturou uma gata do Clã das Sombras. E uma que conheçomuito bem.

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VocêéacurandeiradoClãdasSombras,nãoé?–miou,dirigindo-seaPresaAmarela. – O que estava fazendo tão longe, aqui no território do Clã doTrovão?–EueraacurandeiradoClãdasSombras.Agora,prefiroviajarsozinha–

ciciouPresaAmarela.Pata de Fogo ouviu, impressionado. Será que tinha escutado direito?

PresaAmarelaeraumaguerreiradoClãdasSombras?Sujadaquele jeito,deve termascaradoocheirocaracterísticodoseu território.Sesoubesse,teriatidomaisprazeremseengalfinharcomela.– Presa Amarela! Parece que você está em decadência, já que foi

derrotadaporumaprendiz–miou,zombeteiro,GarradeTigre.FoiavezdeRiscadeCarvão falar.–Essagatavelhanão temserventia

paranós.Vamosmatá-laagora.Quantoaogatinhodegente,elequebrouocódigodosguerreirosaoalimentaruminimigo.Deveserpunido.– Guarde as garras, Risca de Carvão – Estrela Azul ronronou, calma. –

TodososclãscomentamabravuraeasabedoriadePresaAmarela.Podeserbomouviroqueelatemadizer.Vamoslevá-laparaoacampamentoeentão decidir o que fazer com ela… e com Pata de Fogo. Você consegueandar?–perguntouaPresaAmarela.–Ouprecisadeajuda?–Aindatenhotrêspernasembomestado–devolveuagataacinzentada,

mancandoparaafrente.PatadeFogoviuqueosolhosdePresaAmarelaestavamembaçadosde

dor,maselapareciadeterminadaanãomostrarnenhumafraqueza.Notoutambémo ar de respeito estampadono rosto deEstrelaAzul, antes de alíderdoClãdoTrovãosevirare iniciaracaminhadaentreasárvores.Osoutros guerreiros ladearam Presa Amarela e a patrulha seguiu, tendo ocuidadodemanteromesmoritmoqueaprisioneiramanca.PatadeFogoePataCinzentacaminhavamjuntosatrásdogrupo.–VocêjátinhaouvidofalardePresaAmarela?–PatadeFogocochichou

paraPataCinzenta.– Alguma coisa. Parece que era uma guerreira antes de se tornar

curandeira, o que não é comum. Mas não consigo imaginá-la como umaisolada.ElapassouavidatodanoClãdasSombras.–Oqueéumisolado?PataCinzentaolhouparaele:–Éumgatoquenão fazpartedeumclã

nemécuidadoporumDuas-Pernas.GarradeTigredizquesãoegoístasequenãosedeveconfiarneles.CostumamviverpertodascasasdosDuas-

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Pernas,masnãopertencemaninguémecaçamaprópriacomida.–Talvezsejaesseomeufim,quandoEstrelaAzulacabarcomigo–Pata

deFogomiou.–EstrelaAzulémuitojusta–PataCinzentagarantiu.–Nãovaiexpulsá-

lo. Com certeza está satisfeita por ter como prisioneira uma gata tãoimportantedoClãdasSombras.Apostoquenãovaicriarcasoporvocêteralimentadoaquelepobresacodesarna.–Masficamfalandootempotodonaescassezdaspresas.Ah!Porquefui

comeraquelecoelho?–PatadeFogosentiuavergonhaqueimar-lheopelo.–Bem,éverdade–PataCinzentacutucouoamigo.–Issofoimesmocoisa

demiolodecamundongo.Nessahoravocêrealmentequebrouocódigodosguerreiros,masnenhumgatoéperfeito!Pata de Fogo não respondeu; fechou-se, com o coração pesado. Não

imaginaraquesuaprimeiratarefasozinhoterminariadessamaneira.

Quando a patrulha passou pelas sentinelas que guardavam a entrada doacampamento,osdemaisgatosdoClãdoTrovãovieramcorrendosaudarosguerreiros.Rainhas, filhotes e anciãos se aboletaram nas laterais. Olhavam com

curiosidadeparaPresaAmarela,conduzidapeloacampamento.Algunsdosanciãos reconheceram a velha gata. Logo se espalhou pelo clã que setratavadacurandeiradoClãdasSombras,eummurmúriodeescárniosegeneralizou.PresaAmarelapareciasurdaaosarcasmo.PatadeFogonãopôdedeixar

deadmirar adignidade comqueelamancavapelo corredordeolhares einsultos.Sabiaquesentiamuitadorefome,apesardocoelhoquelhedera.QuandoapatrulhachegouàPedraGrande,EstrelaAzulapontouochão

batido em frente à rocha. PresaAmarela seguiuo comando silenciosodalíderdoClãdoTrovão,deitando-se,agradecida,naterra.Aindaignorandoosolhareshostis,começoualamberapernaferida.PatadeFogopercebeuqueFolhaManchada saírado seu canto.Talvez

tivesse farejado apresençadeumgatomachucadono acampamento. Eleobservouamultidãodarpassagemàjovemgataatartarugada.Presa Amarela olhou para Folha Manchada e desdenhou: – Sei como

tomarcontadasminhasferidas.Nãoprecisodasuaajuda.FolhaManchadanadadisse;apenasfezumsinalrespeitosocomacabeça

erecuou.

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Alguns felinos tinham estado fora, caçando, e presas frescas foramservidas aos guerreiros recém-chegados. Cada um pegou seu bocado eafastou-separaaáreadasurtigasparacomer.Sódepoisosoutrosgatosdoclãseadiantaramparapegarasuaparte.Pata de Fogo, faminto, andava pela clareira observando os gatos

agachadosemseusgruposcostumeiros,mastigando,devorandoacomida.Estava louco por um pedaço, mas não ousava tirar nada da pilha. Haviaquebrado o código dos guerreiros e imaginava que, por isso, estavaproibidodepegarasuacotadepresafresca.ParouaoladodaPedraGrande,ondeEstrelaAzultrocavapalavrascom

GarradeTigre.Emdúvida,PatadeFogoolhouparaalíder,esperandoumsinaldepermissãoparacomer.Masagatacinzaeseuguerreiroexperienteestavam muito ocupados, conversando em voz baixa. Pata de Fogo seperguntava se estariam falando dele. Desesperado para saber qual seriaseudestino,esticouasorelhasparaouviroquediziam.O uivo de Garra de Tigre soou impaciente. – É perigoso demais trazer

uma guerreira inimiga para o coração do Clã do Trovão! Agora que elaconheceoacampamento,atéomenorfilhotedoClãdasSombrasvaificarsabendoondeestamos.Teremosdenosmudar.–Calma,GarradeTigre–EstrelaAzulronronou.–Porquedevemosnos

mudar?PresaAmareladizquevivecomoisoladaagora.OClãdasSombrasnãotemcomosaber.– Você acredita mesmo nisso? O que esse gatinho de gente estava

pensandodavida?–GarradeTigredisparou.–Penseummomento,GarradeTigre–miouEstrelaAzul. –Porquea

curandeira do Clã das Sombras escolheria deixar o lar? Você parece termedo que Presa Amarela vá dividir nossos segredos com o Clã dasSombras;masjáimaginouquantossegredosdoClãdasSombraselapodedividirconosco?AoveropelodeGarradeTigreabaixar-se,PatadeFogopercebeuqueas

palavras de Estrela Azul faziam sentido. O guerreiromeneou a cabeça esaiuparapegarsuaporçãodepresafresca.EstrelaAzulficouondeestava.Olhouaclareira,ondealgunsdosjovens

filhotesbrincavamdelutarerolarnaterra.Alíderlevantou-seecomeçouaandarnadireçãodePatadeFogo.Ocoraçãodeledisparou.Oqueseráqueelaialhedizer?MasEstrelaAzulpassoudiretoporele.Nemsequeroolhou;osolhosda

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líderestavamnubladosporpensamentosdistantes.–PeledeGeada!–elachamou,aoseaproximardoberçário.Uma gata toda branca, com olhos azuis-escuros, surgiu das amoreiras.

Dentro,obarulhodosmiadosaumentou.–Silêncio, crianças– ronronouagatabranca,acalmando-as.–Nãovou

demorar.–Virou-separaalíder.–Sim,EstrelaAzul.Oqueé?– Um dos aprendizes viu uma raposa na área. Avise as outras rainhas

paravigiaremoberçáriocomcuidado.Ecuideparaque todosos filhotescommenosdeseisluasfiquemnoslimitesdoacampamentoatéquenossosguerreirosatenhamexpulsado.Pele de Geada concordou. – Vou passar adiante o aviso, Estrela Azul.

Obrigada. – Dizendo isso, esgueirou-se para dentro do berçário, paraacalmarosbebêschorões.Finalmente, EstrelaAzul se dirigiu à pilha de presa fresca e pegou sua

porção.Umroliçopombotorcazforadeixadoparaela.PatadeFogoseguiu-a com o olhar ávido enquanto ela levava o pombo até onde estavam osguerreirosexperientes.AfomedePatadeFogofez,enfim,comqueelesemexesse.PataCinzenta

estavacomPataNegradevorandoumpequenopintassilgoaoladodotocodeárvore.AoverPatadeFogoseaproximardapilha,dirigiu-lheumsinalencorajador com a cabeça. Pata de Fogo inclinou o pescoço, pronto paraagarrarcomosdentesumrato-do-campo.–Você,não–rosnouGarradeTigre,andandopomposamenteatrásdele

e afastando o rato com a pata. – Você não trouxe nenhuma presa. Osanciãosvãocomerasuaparte.Leveparaeles.PatadeFogoolhouparaEstrelaAzul.–Façaoqueelediz–alíderordenoucomumacenoseco.Obediente, ele pegou o camundongo e o levou até Orelhinha. O cheiro

deliciososubiupelonarizdePatadeFogo,quesópensavaemesmigalharapresacomseusdentesfortes.Quasesentiaaenergiavitaldocamundongoinundandoseujovemcorpo.Com grande autocontrole, colocou a presa em frente ao gato cinza e

então afastou-se, educadamente. Não esperava nenhum agradecimento enenhumlhefoioferecido.Agora estava feliz por ter devorado os restos do coelho que apanhara

paraPresaAmarela.Nadamaisteriaparacomeratévoltaracaçarnodiaseguinte.

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PatadeFogoandounoescuroatéencontrarPataCinzenta.Oamigotinhacomidoaté se fartar e estavadeitado comPataNegrado ladode foradatoca dos aprendizes. Estava esticado de lado, lambendo a pata dianteiranumritmoconstante.Pata Cinzenta viu Pata de Fogo se aproximar e parou de se lavar. –

EstrelaAzuljádissequalseráoseucastigo?–perguntou.–Aindanão–PatadeFogorespondeu,desanimado.Semnadaadizer,PataCinzentaestreitouosolhoscomsimpatia.Ouviu-se o chamado de Estrela Azul pela clareira. – Estou convocando

todososgatoscom idadesuficienteparapegaraprópriapresaparaumareuniãodoclã.Amaioriadosguerreirostinhaacabadodecomere,comoPataCinzenta,

estavam ocupados, se penteando. Ergueram-se graciosamente sobre aspatas e foram até a Pedra Grande, onde Estrela Azul esperava pelomomentodefalar.–Vamos–miouPataCinzenta.Eleselevantoudeumpulo.PataNegrae

PatadeFogooseguiramquandoelecorreueabriucaminhoà forçaparaconseguirumbomlugar.–Estoucertadequetodosouviramfalardaprisioneiraquetrouxemos

hoje–começouEstrelaAzul.–Masexisteoutracoisaqueprecisamsaber.–Elaabaixouosolhosparaagataavermelhada,imóvelaoladodaPedraAlta.–Vocêconseguemeouvirdaí?–perguntou.–Possoservelha,masaindanãoestousurda–PresaAmareladisparou

emresposta.Estrela Azul ignorou o tom hostil da prisioneira e continuou. – Temo

trazeralgumasnotíciaspreocupantes.HojepercorrioterritóriodoClãdoVentocomumapatrulha.Oarestava impregnadocomoodordoClãdasSombras. Praticamente todas as árvores tinham sido marcadas com ocheiro de seus guerreiros. E não encontramos nenhum gato do Clã doVento,emboratenhamosnosembrenhadonoterritóriodeles.Aspalavrasforamrecebidascomsilêncio.PatadeFogopercebeuqueos

gatosdoclãestavamconfusos.– Você quer dizer que o Clã das Sombras os expulsou? – perguntou

Orelhinha,emtomhesitante.–Nãopodemosassegurar–miouEstrelaAzul.–Ofatoéqueocheirodo

ClãdasSombrasestavaemtodolugar.Encontramossanguetambém,alémdepelo.Deve ter havidoumabatalha, embora não tenhamos encontrado

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corposdenenhumdosdoisclãs.Umuivo de espanto elevou-se damultidão em uníssono. Pata de Fogo

percebeuqueosfelinosàsuavoltaseretesavam,nummistodesurpresaefúria.Nuncaantesumclãhaviadespejadoooutrodesuaszonasdecaça.–ComopôdeoClãdoVentotersidoexpulso?–Caolhaperguntoucom

sua voz fraca e baixa. – O Clã das Sombras é feroz, mas são muitos osguerreirosdoClãdoVento. Faz geraçõesque vivemnas terras altas. Porque foramexpulsosagora?–Ansiosa,balançoua cabeça;ospelosdo seubigodetremiam.–Nãoseiarespostaparanenhumadessasperguntas–miouEstrelaAzul.

–ÉsabidoqueoClãdasSombrashápoucoelegeuumnovolíder,depoisdamorte de Estrela Afiada. O novo líder, Estrela Partida, não fez nenhumamençãodeameaçaquandooencontreinaúltimaAssembleia.–TalvezPresaAmarelasaibadealgumacoisa–miouRiscadeCarvão.–

Afinal,elapertenceaoClãdasSombras!– Não sou traidora! Nada vaime fazer revelar os segredos do Clã das

Sombrasparaumselvagemcomovocê!–grunhiuPresaAmarela,olhandocomagressividadeparaRiscadeCarvão.OguerreirodoClãdoTrovãodeuumpassoàfrente,comasorelhasabaixadas,olhosemfendas,prontoparaumabriga.–Parem!–gritouEstrelaAzul.RiscadeCarvãoimediatamenteparou,emboraPresaAmarelaofuzilasse

comosolhosecomumuivoferoz.– Já chega! – a líder gritou. – A situação é séria demais para ficarmos

brigando entre nós. O Clã do Trovão precisa se preparar. A partir destenascer da lua, os guerreiros vão caminhar emgruposmaiores.Os outrosmembros do clã ficarão perto do acampamento. As patrulhas vigiarão asfronteirascommaisfrequênciaeosfilhotesnãosairãodoberçário.Osgatosconcordaram.Estrela Azul continuou. – A necessidade de guerreiros é nosso maior

obstáculo. Precisamos solucionar o problema acelerando o treinamentodosaprendizes.Precisamestarprontosomais rápidopossívelpara lutarpeloclã.Pata de Fogo viu Pata de Poeira e Pata de Areia trocarem um olhar

palpitante. Pata Cinzenta estava olhandopara cima, para EstrelaAzul, osolhosarregaladosdeempolgação.PataNegraesfregavaaspatas,ansioso.Seusolhosbemabertosmostravammaispreocupaçãoqueanimação.

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EstrelaAzulcontinuou.–Umjovemgato tempartilhadomentorescomPataCinzentaePataNegra.Ensinando-o, vouaceleraro treinamentodostrêsaprendizes–Fezumapausaeabaixouosolhosparaosgatosdoclã.–VoufazerdePatadeFogomeuaprendiz.PatadeFogoarregalouosolhos, impressionado.EstrelaAzul iasersua

mentora?Aoladodele,PataCinzentaengasgou,incapazdeesconderasurpresa.–

Quehonra!JáfazluasqueEstrelaAzulnãotemumaprendiz.Normalmenteelatreinaapenasosfilhotesderepresentantes!Foiquandoumavozfamiliarelevou-senafrentedamultidão.EraGarra

deTigre.– Então Pata de Fogo vai ser premiado, não punido, por alimentar um

guerreiroinimigoquandodeviaestaralimentandoopróprioclã?– Pata de Fogo agora émeu aprendiz. Pode deixar que lido com ele –

respondeuEstrelaAzul.AlídersustentouporummomentooolharferozdeGarradeTigre,antesdelevantaracabeçaparasedirigiraoclãmaisumavez. –PresaAmarela está autorizadaa ficar aqui até recuperar as forças.Somos guerreiros, não selvagens. Ela deve ser tratada com respeito ecortesia.– Mas o clã não pode sustentar Presa Amarela – Risca de Carvão

protestou.–Játemosbocasdemaisparaalimentar.– É isso mesmo! – Pata Cinzenta cochichou para Pata de Fogo. – E

algumasbocassãomaioresqueasoutras!–Nãoprecisoqueninguémcuidedemim!–disparouPresaAmarela.–E

voupartiremdoisquemtentar!–Simpática,nãoé?–PataCinzentamurmurou.Pata de Fogo sacudiu a cauda, concordando. Ouviram-se miados

abafadosdosoutrosguerreirosque,demávontade,reconheciamoespíritodelutadaguerreirainimiga.Estrela Azul ignorou o burburinho. – Vamosmatar duas presas de um

golpesó,comosediz.PatadeFogo,comopuniçãoporquebrarocódigodosguerreiros, será sua responsabilidade tomar conta de PresaAmarela. Vaicaçarparaelaecuidardesuasferidas.Buscarápalhafresquinhaparafazersuacamaelimparásuasfezes.– Está bem, Estrela Azul – miou Pata de Fogo, abaixando a cabeça,

submisso.Limparfezes!,pensou.Eca!

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PatadePoeiraePatadeAreiamiaramemtomdedeboche.–Boaideia!!–sibilou Pata de Poeira. – É bom que Pata de Fogo seja craque emmatarpulgas!– E em caçar! – acrescentou Pata deAreia. – Aquele saco de ossos vai

precisardecomida.–Basta!–EstrelaAzulinterrompeuadupla.–EsperoquePatadeFogo

não considere uma vergonha tomar conta de Presa Amarela. Ela é umacurandeiraemaisvelhadoqueele.Essasrazõesjásãosuficientesparaqueelearespeite.–AlíderlançouumolharagudoparaPatadeAreiaePatadePoeira.–Nãoénadahumilhantetomarcontadequemnãopodecuidardesi. A reunião acabou aqui. Agora quero falar só com meus guerreirosantigos.–Dizendoisso,elapuloudaPedraGrandeesedirigiuàsuatoca.Coração de Leão a seguiu. Os outros felinos do clã começaram a se

distanciardaPedraGrande.UmoudoiscumprimentaramPatadeFogoporter sido escolhido como aprendiz de Estrela Azul; outros, debochando,desejaram-lhe sortenos cuidados comPresaAmarela.PatadeFogo ficoutãoatarantadocomoanúnciodalíder,queapenasbalançavaacabeça.RaboLongoaproximou-se.Aindaestavavisívelocorteemformade“V”

quePatadeFogolhefizeranapontadaorelha.Ojovemguerreirorecolheuos bigodes num feio rosnado. – Espero que, da próxima vez, pense duasvezesantesdetrazergatosvadiosparaoacampamento–zombou.–Comoeudisse,forasteirossempretrazemproblemas.

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CAPÍTULO9

–SE EU FOSSE VOCÊ, ia conversar comPresaAmarela –disse, baixinho,PataCinzentaquandoRaboLongoseafastou–Elanãoparecemuitocontente.Pata de Fogo olhou para a velha gata, ainda deitada ao lado da Pedra

Grande.PataCinzentaestavacerto;elaofitava.–Estábem,lávoueu–elemiou.–Deseje-mesorte!–Dessavez,vocêvaiprecisarde todaasortedoClãdasEstrelasaseu

favor – respondeuPataCinzenta. – Chame se precisar de ajuda. Se acharqueelavaipegá-lo,voudevagarzinhoportráseacertoacabeçadelacomumcoelhomorto.PatadeFogoronronou,divertido,efoiemdireçãoaPresaAmarela.Sua

animaçãologodesapareceu,àmedidaqueseaproximavadarainhaferida.Ela estava claramente de péssimo humor. Sibilou uma advertência,

mostrandoosdentes:–Pareaímesmo,gatinhodegente!PatadeFogosuspirou.Pareciaqueestavaparaentrarnumaluta.Ainda

tinhafomeecomeçavaasesentircansado.Estavaloucoparaseenroscarno ninho e tirar um cochilo. A última coisa que queria era discutir comaquelechumaçodepeloedentesdignodepena.–Podemechamardoquequiser–elemiou,impaciente.–EstouapenasseguindoasordensdeEstrelaAzul.– Então você é mesmo um gatinho de gente, não é? – disse, ofegante,

PresaAmarela.Ela também está cansada, pensou Pata de Fogo. A voz da gata tinha

menosforça,emboraaironiaestivessemaisfortedoquenunca.– Eu vivia com uns Duas-Pernas quando era filhote – Pata de Fogo

respondeucalmamente.–Suamãeeragatinhodegente?Seupaieragatinhodegente?– Eram, sim. – Pata de Fogo abaixou a cabeça, o ressentimento o

queimandopordentro.Jáeraruimosmembrosdoseupróprioclãaindaoconsiderarem um forasteiro. Com certeza não devia satisfações àquelaprisioneiramal-humorada.Presa Amarela pareceu tomar o seu silêncio como um convite para

continuar.–Sanguedegatinhodegentenãoéamesmacoisaquesanguedeguerreiro.Porquenãocorreparaa casados seusDuas-Pernasagoraemvezdeficarmepajeando?Éhumilhantesercuidadaporumgatodebaixa

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estirpecomovocê!PatadeFogoperdeuapaciênciaegrunhiu:–Vocêsesentiriahumilhada

mesmo que eu tivesse nascido guerreiro. Ficaria envergonhada quer eufosseumapreciosagatadoseupróprioclã,querummiserávelDuas-Pernasqueativesseapanhadonarua.–PatadeFogofezacaudachicoteardeumladoparaoutro.–Oque,naverdade,vocêachatãohumilhanteéofatodeprecisarseentregaraoscuidadosdequalquergato!PresaAmarelaarregalouosolhoscordelaranja.PatadeFogocontinuou,feroz:–Vaiterdeseacostumarcomaideiade

alguém cuidar de você até estar bem suficiente para tomar conta de simesma,seusacodeossosvelhoedesprezível!Ele parou quando Presa Amarela começou a fazer um ruído baixo e

estranho,comoseestivessecomfaltadear.Alarmado,PatadeFogodeuumpassonadireçãodagata.Elatremia,com

osolhosestreitadosempequeníssimasfendas.Estariatendoalgumtipodeataque?–Olhe,eunãoquis…–elecomeçou,atéderepentesedarcontadeque

PresaAmarelaestavarindo!– Miau, miau, miau – ela fazia, com um rom-rom vindo de dentro do

peito.PatadeFogonãosabiaoquefazer.– Você é espirituoso, gatinho de gente – Presa Amarela provocou,

parandoafinal.–Agoraestoucansadaeminhapernadói.Precisodormirecolocaralgumacoisanessaferida.Váprocuraraquelacurandeirabonitinhade vocês e peça para ela me arrumar algumas ervas. Se conseguir umcataplasma de virgáurea vai ajudar. E, enquanto estiver providenciandoisso,euiaadorarficarmascandoumassementesdepapoula.Essadorestámematando!Impressionado coma súbitamudançade humorda gata, Pata de Fogo

virou-serapidamenteedisparounadireçãodatocadeFolhaManchada.Nunca estivera naquela parte do acampamento. Com as orelhas

retesadas,atravessouumtúnelverdeefrescodesamambaias,quelevavaaumapequenaclareiragramada.Deumladohaviaumapedraalta,divididaaomeioporumafendagrandebastanteparaumgatofazeraliasuatoca.Na clareira estava FolhaManchada. Como sempre, seus olhos brilhavam,amigáveis, e suapelagemmalhada luziacomcentenasdesombrascordeâmbaremarrons.

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PatadeFogoacumprimentoutimidamentecomummiadoeapresentouoroldeervasesementespedidasporPresaAmarela.–Tenhoamaioriadelasnaminhatoca–respondeuFolhaManchada.–

Voupegartambémalgumasfolhasdecravo-de-defunto.Seelacolocarissonaferida,vaiafastarqualquerinfecção.Espereaqui.– Obrigado – miou Pata de Fogo enquanto a curandeira sumia para

dentrodatoca.Eleestreitouosolhos,tentandovislumbrá-lanointeriordorefúgio.Masatocaestavaescurademais;sóconseguiuouvirumfarfalharesentiroscheirosestonteantesdeervasestranhas.FolhaManchada surgiuda escuridão e colocouumpacotedobrado em

folhasaospésdePatadeFogo.–DigaaPresaAmarelaparanãoexagerarcomasementedepapoula.Nãoqueroque fique totalmentesemdor.Umpoucodedorpodeserútil,poisvaimemostrarseelaestámelhorando.PatadeFogoindicouterentendidoeapanhouaservascomosdentes.–

Obrigado, Folha Manchada! – miou, segurando o pacote e retomando otúneldesamambaiasatéaclareiraprincipal.Garra de Tigre estava sentado do lado de fora da toca dos guerreiros,

observando-o atentamente. Quando Pata de Fogo se dirigia até PresaAmarela,carregandoaservas,sentiuoolharcordeâmbarqueimando-lheopelo do cangote. Virou a cabeça e, curioso, fitou Garra de Tigre, queestreitouosolhosevirouorosto.PatadeFogodeixoucairomaçodeervasaoladodePresaAmarela.–Ótimo–miou.–Agora,antesdemedeixarempaz,mearrumealguma

coisaparacomer.Estoufaminta!

O sol tinha se levantado três vezes desde que Presa Amarela chegara aoacampamento. Pata de Fogo acordou cedo e cutucou Pata Cinzenta, queaindadormiaaseulado,comonarizenfiadodebaixodacaudaespessa.–Acorde–PatadeFogomiou.–Vaiacabarseatrasandoparaotreinamento.Pata Cinzenta ergueu a cabeça, ainda sonolento, e assentiu com um

grunhidorelutante.PatadeFogocutucouPataNegra.Ogatoabriuosolhosimediatamenteedeuumpulo.–Oqueé?–miou,

olhandoàvolta,alerta.–Calma,PataNegra.Estáquasenahoradotreinamento–PatadeFogoo

tranquilizou.PatadePoeiraePatadeAreiatambémcomeçaramasemexeremseus

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ninhosdemusgo,dooutroladodorefúgio.PatadeFogoselevantoueabriucaminhoentreassamambaias.Amanhãestavaquente.Porentreasfolhasegalhosquesedebruçavam

sobre o acampamento, Pata de Fogo avistou o céu de um azul profundo.Mas hoje um orvalho pesado fazia brilhar as folhas de samambaias ecintilavanagrama.PatadeFogofarejouoar.Aestaçãodasfolhasverdesestavaacabando,elogootempoiacomeçaraesfriar.Eledeitouerolounaterraaoladodotocodeárvore,esticandoaspernas

evirandoacabeçaparatrásparaesfregá-lanochãofresco.Entãoseviroude lado e olhou através da clareira, para ver se Presa Amarela já estavaacordada.Foradestinadoàgataumlugardedescansonoextremodaárvorecaída

ondeosanciãosse reuniamparacomer.Oninho tinhasidoarrumadonotroncocheiodemusgo,deondenãosepodiamescutarosanciãos,mascomvistatotalparaatocadosguerreirosdooutroladodaclareira.PatadeFogoviuapenasummontedepelocinzadesbotadoselevantarelogocairparatirarumasoneca.PataCinzentasaiuda tocaatrásdoamigo, seguidoporPatadeAreiae

PatadePoeira.FinalmentechegouPataNegra,examinandonervosamenteolugarantesdesairtotalmentedoabrigo.– Mais um dia tomando conta daquele saco sarnento cheio de pulgas,

hein, Pata de Fogo? – miou Pata de Poeira. – Aposto que preferia estarconosconotreinamento.Pata de Fogo levantou-se e sacudiu o pó do pelo. Não ia ceder à

provocaçãodePatadePoeira.–Nãoligue,PatadeFogo–murmurouPataCinzenta.–EmbreveEstrela

Azulvaimandá-lodevoltaparaotreinamento.– Talvez ela pense que é melhor um gatinho de gente ficar no

acampamento, cuidando dos doentes – miou, grosseira, Pata de Areia,agitandoacabeçalustrosaeavermelhada,comumolhardedeboche.PatadeFogoresolveu ignoraroscomentáriosásperosdagata.–Oque

Nevascavailheensinarhoje,PatadeAreia?–perguntou.–Vamostreinarcombate.Elevaimeensinarcomolutaumguerreirode

verdade–PatadeAreiarespondeucomorgulho.– Coração de Leão vai me levar até o Grande Plátano – miou Pata

Cinzenta–,paraeupraticarashabilidadesdeescalada.Émelhoreuir.Eleestáesperando.

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–Voucomvocêatéoaltodaravina–miouPatadeFogo.–PrecisopegarocafédamanhãdePresaAmarela.Vocêvem,PataNegra?GarradeTigredeveteralgumacoisaplanejadaparavocê.PataNegra suspirou, concordou e seguiuPataCinzenta ePatadeFogo

para fora do acampamento. Embora a ferida estivesse completamentecurada,eleaindapareciaterpoucoentusiasmopelotreinamento.

–Aquiestá–miouPatadeFogo, largandoumgrandecamundongoeumpintassilgonochão,aoladodePresaAmarela.–Jáestavanahora–elagrunhiu.Agataaindaestavadormindoquando

Pata de Fogo chegou ao acampamento depois da missão de caça. Mas ocheirodepresafrescadevetê-ladespertado,poisagorajáestavasentada.Elaabaixouacabeçae,comavidez,engoliuoquePatadeFogotrouxera.

Oapetitesemostravavorazàmedidaqueaforçavoltava.Aferidaestavamelhor, mas o temperamento continuava feroz e imprevisível comosempre.PresaAmarelaacaboua refeiçãoe reclamou:–Abasedaminhacauda

coçamuito,masnãoconsigoalcançá-la.Dáparavocêlavarparamim?Tremendopordentro,PatadeFogoagachoueiniciouafunção.Enquanto explodia as pulgas gordinhas entre os dentes, percebeu um

grupo de filhotes brincando na terra ali perto. Fingiam estar lutando, àsvezescomviolência.PresaAmarela,que tinha fechadoosolhosenquantoPatadeFogocuidavadela,abriuparcialmenteumdelesparaobservarosfilhotessedivertindo.Parasuasurpresa,PatadeFogopercebeuaespinhadagataseretesarsobseusdentes.Por um instante, ele prestou atenção aos gritinhos e barulhos dos

filhotes.– Sinta meus dentes, Estrela Partida – miou um filhote malhado, que

pulounascostasdeumoutro,cinzaebranco,quefingiaserolíderdoClãdas Sombras. Os dois pequenos rolaramna direção da Pedra Grande. Derepente,ofilhotecinzaebrancodeuumgrandeimpulsoeconseguiusoltaromalhadodascostas.Comumguinchoassustado,omalhadofoipararaoladodePresaAmarela.Imediatamenteavelhagatasepôsdepénumpulo,comapelagemtoda

arrepiada,edisparou,agressiva:–Fiquelongedemim,seupedaçodepelo!Ofilhotemalhadoolhouparaagatafuriosa,virou-lheacaudaecorreu.

Foi esconder-se atrás de uma rainha também malhada, que, zangada,

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encaravaPresaAmareladooutroladodaclareira.Já o pequeno gato cinza e branco congelou. Então, pata a pata, com

cuidado,retrocedeunadireçãodasegurançadoberçário.AreaçãodePresaAmareladeixouPatadeFogochocado.Achavaquejá

tinhavistoopiordelaaolutaremquandoseconheceram,masosolhosdagata chispavam com uma raiva diferente agora. – Acho que está sendodifícil para os filhotes ficarem confinados no acampamento – miou,cauteloso.–Estãoficandoinquietos.–Azarodeles–grunhiuPresaAmarela.–Dêumjeitodemantê-loslonge

demim!– Você não gosta de filhotes? – Pata de Fogo perguntou, quase sem

querer.–Nuncatevefilhos?–Vocênãosabequecurandeirasnãotêmfilhos?–miou,raivosa,Presa

Amarela.–Massoubequeantesvocêeraumaguerreira–PatadeFogoarriscou.– Não tenho nenhum filho! – Presa Amarela disparou. Afastou dele a

caudaeselevantou.–Dequalquerforma–disseemtomrepentinamentemaisbaixo,quasetriste–,parecequeacontecemacidentescomascriançasquandoestouporperto.Os olhos cor de laranja nublaram de emoção. Ela apoiou o queixo

achatado nas patas dianteiras e deixou o olhar se perder. Pata de Fogoobservouosombrosdagataafundaremnumsuspirolongoesilencioso.PatadeFogoaobservou, intrigado.Oqueelaqueriadizercomaquilo?

Seráqueavelhagataestavafalandosério?Eradifícildizer;PresaAmarelapareciamudar de humor rapidamente. Ele deu de ombros e continuou apenteá-la.– Ficaram alguns carrapatos que não consegui tirar – ele disse, ao

terminar.–Apostoquevocênemtentou,seuidiota!–reclamouPresaAmarela.–

Nãoquero cabeçasde carrapatonomeu traseiro,muito obrigada. Peça aFolha Manchada um pouco de bile de rato para esfregar nelas. Umaborrifadadissonoscarrapatoseeleslogosesoltam.–Vouagoramesmo!–PatadeFogoseofereceu,felizpelaoportunidade

de se afastarumpoucoda gata rabugenta. Enão serianenhumsacrifíciovoltaraverFolhaManchada.Dirigiu-seaotúneldesamambaias.Viumuitosgatoscruzandoaclareira,

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carregando nos dentes ramos e galhos de árvores. Enquanto estiveratratando de PresaAmarela, o acampamento se enchera de atividade. EraassimdesdeodiaemqueEstrelaAzulanunciaraodesaparecimentodoClãdo Vento. As rainhas teciam galhos e folhas para formar uma espessaparedeverdeaoredordoberçário,demodoaassegurarqueapassagemestreita fosse a única maneira de entrar e sair da região das amoreiras.Outrosgatostrabalhavamnoslimitesdoacampamento,cuidandoparanãodeixarnenhumespaçolivrenavegetaçãocerrada.Até os anciãos estavam ocupados, cavando um buraco no chão. Os

guerreirosemfilaempilhavamaoladodelespedaçosdepresafrescaparaserem guardados dentro do buraco recém-cavado. Pairava no ar umespírito de concentração tranquila, uma determinação de tornar o clã omaisseguroeabastecidopossível.Se o Clã das Sombras tentasse invadir seu território, o Clã do Trovão

teriaoacampamentocomorefúgio.NãoseriamdeslocadosdesuaszonasdecaçatãofacilmentequantoforaoClãdoVento.Risca de Carvão, Rabo Longo, Pele de Salgueiro e Pata de Poeira

esperavamemsilêncionaentradadoacampamento,comosolhosfixosnaabertura do túnel de tojos. Uma patrulha acabara de chegar, todosempoeiradosecomaspatasdoídas.Assimqueosguerreirosentraramnoacampamento, Risca de Carvão e seus companheiros se aproximaram etrocarampalavrascomeles.Maslogoseafastaram.Entãosaíramrápidaesorrateiramente do acampamento. As fronteiras do Clã do Trovão nãoficavamnemumminutosemproteção.Pata de Fogo desceu na direção do túnel de samambaias que levava à

toca de Folha Manchada. Ao entrar na clareira, viu que a gata estavapreparandoalgumaservasquerecendiamumcheirodoce.–Vocêpodemeconseguirumpoucodebilederatoparaoscarrapatos

dePresaAmarela?–PatadeFogomiou.–Numinstante–respondeuFolhaManchada,juntandodoispunhadosde

ervasemisturandoapilhaaromáticacomumadasgarrasdelicadamenteestendida.–Estáocupada?–perguntouPatadeFogo,ajeitando-seemumpedaço

deterraaquecido.– Quero estar preparada para qualquer eventualidade – murmurou a

curandeira,fitando-ocomseusolhosclaroscordeâmbar.Poruminstante,PatadeFogosustentouoolhar,quedepoisdesviou, sentindonopeloum

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certodesconforto.FolhaManchadavoltouaprestaratençãonaservas.Pata de Fogo esperou, feliz por estar ali calmamente sentado,

observando-atrabalhar.–Pronto–miou,afinal.–Oquevocêqueriamesmo?Bilederato?–É,porfavor.–PatadeFogoficoudepéeesticouaspatastraseiras,uma

decadavez.Seupeloestavaquentedosol,queotinhadeixadosonolento.FolhaManchadaentrounatocaetrouxealgumacoisaládedentro,que

carregavacuidadosamentenaboca.Eraumchumaçodemusgopenduradoemumestreitopedaçodecascadeárvore.ElaoentregouaPatadeFogo.Oaprendizsentiuseuhálitomornoedoceaopegarentreosdentesatiradecascadeárvore.– Omusgo está empapado em bile – explicou Folha Manchada. – Não

deixeentrarnaboca;ficariacomumgostohorrívelpordiasafio.Pressioneomusgonoscarrapatosedepoislavebemaspatas–numriacho,nãocomalíngua!Pata de Fogo agradeceu e voltou até onde estava Presa Amarela,

sentindo-se, de repente, alegre e cheio de energia. – Fique quieta! – elemiou para a velha gata. Com cuidado, usava as patas dianteiras parapressionaromusgoemcadacarrapato.Quando Pata de Fogo acabou o serviço, Presa Amarela miou: – Você

podia aproveitar e limpar minhas fezes, agora que suas patas já estãofedendo mesmo! Vou tirar um cochilo – bocejou, revelando os dentesescurecidos e quebrados. O calor do dia também a deixara sonolenta. –Depois, pode ir e fazer essas coisas que vocês, aprendizes, fazem –murmurou.PatadeFogolimpouasfezesdePresaAmarela,deixou-adormindoefoi

na direção do túnel de tojo. Estava ansioso para chegar ao riacho eenxaguaraspatas.–PatadeFogo!–umavozochamoudoladodaclareira.Oaprendizsevirou.EraMeioRabo.– Aonde você está indo? – miou o velho gato, curioso. – Devia estar

ajudandonospreparativos.– Acabei de colocar bile de rato nos carrapatos de Presa Amarela –

respondeu.Os bigodes deMeio Rabo semexeram, divertidos. – Corra então até o

riachomaispróximo!Tratedevoltarcomalgumapresafresca.Precisamos

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detudooquepudermosencontrar.–Certo,MeioRabo!Pata de Fogo saiu do acampamento em direção à ravina. Desceu a

margemdoriachoondeeleePataCinzentatinhamcaçadonodiaemqueencontraraPresaAmarela. Semhesitar,pulounaágua limpae fria,queocobriu até os quadris emolhou o pelo da sua barriga, fazendo-o arfar etiritar.Um ruído nos arbustos chamou-lhe a atenção, embora o cheiro

conhecidoquelhechegavaaonarizanunciassequenãohaviamotivoparaalarme.–Oqueestáfazendoaí?–PataCinzentaePataNegraoolhavam,comose

oamigoestivesselouco.–Nemqueiramsaber!–PatadeFogorespondeucomumacareta.–Bile

derato!OndeestãoCoraçãodeLeãoeGarradeTigre?–Foramjuntar-seàpatrulhamaispróxima–respondeuPataCinzenta–

enosmandarampassarorestodatardecaçando.–MeioRabomedisseamesmacoisa–PatadeFogomiou,encolhendo-se

aosentirnaspatasumacorrentedeáguagelada.–Todosestãoocupadosnoacampamento.Atéparecequevamosseratacadosaqualquerinstante.–Pingando,subiuparaamargem.–Quemdizquenãovamosseratacados?–miouPataNegra,olhandode

um lado para o outro, como se uma patrulha inimiga fosse pular dosarbustosderepente.PatadeFogoolhouparaomontedepresas frescasempilhadasao lado

dosdoisaprendizes.–Parecequevocêssederambemhoje–miou.–Éverdade–dissePataCinzenta,orgulhoso.–Eaindatemosorestoda

tardeparacaçar.Querirtambém?–Claroque sim! –PatadeFogo ronronou.Deuumaúltima sacudida e

seguiuosamigospelavegetação.

PatadeFogonotouqueosgatosnoacampamentoficaramimpressionadoscom a quantidade de presas que os três aprendizes haviam conseguidoapanhar na caçada da tarde. Foram saudados com caudas erguidas efocinhadas amigáveis. Tiveram de fazer quatro viagens para levar oresultadodacaçaaodepósitocavadopelosanciãos.Coração de Leão e Garra de Tigre tinham acabado de voltar com a

patrulha quando os aprendizes carregavam o último fardo para o

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acampamento.– Muito bem, garotos – miou Coração de Leão. – Soube que andaram

ocupados.Odepósitoestáquasecheio.Podemcolocaresseúltimolotenapilha de presas frescas para esta noite. E levem algumas para sua toca.Vocêsmerecemumbanquete!Ostrêsaprendizesbalançaramascaudas,contentes.–EsperoquenãoestejadeixandoPresaAmareladelado,comtodaessa

caça,PatadeFogo–GarradeTigreadvertiu.PatadeFogosacudiuacabeça,impaciente,loucoparairembora.Estava

faminto.Dessavez,obedeceraaocódigodosguerreirosenãocomeranemsequerumnacoaocaçarparaoclã.Nemelenemoscompanheiros.Afastaram-seecolocaramaúltimapresanapilhaformadanocentroda

clareira.Cadaumdelespegouumaporçãoelevouparaotroncodeárvore.Atocaestavavazia.–OndeestãoPatadePoeiraePatadeAreia?–perguntouPataNegra.–Devemestaraindaempatrulha–PatadeFogosugeriu.–Ótimo.Pazesossego–miouPataCinzenta.Comeramatésefartareserecostaramparaselavar.Oarfrescodatarde

erabem-vindodepoisdocalorquefizera.De repente, Pata Cinzentamiou: – Ei! Adivinhe! Pata Negra conseguiu

arrancarumelogiodovelhoGarradeTigreestamanhã!–Émesmo?–PatadeFogoseespantou.–Oquevocêfezparaagradar

GarradeTigre?Voou?–Bem–começouPataNegratodosemjeito,mirandoaspatas.–Peguei

umcorvo.–Comoconseguiu?–PatadeFogomiou,impressionado.–Eraumcorvovelho–PataNegraadmitiumodestamente.–Maseraenorme–acrescentouPataCinzenta.–AtéGarradeTigreteve

de se render! Ele andava de muito mau humor desde que Estrela Azultomouvocêcomoaprendiz.–Pensativo,lambeuapataporummomento.–Espere aí… Na verdade, ele está assim desde que Coração de Leão foiescolhidocomorepresentante.–ElesóestápreocupadocomoClãdasSombraseaspatrulhasextras–

PataNegraseapressouaexplicar.–Vocêdeviaevitaraborrecê-lo.Aconversafoiinterrompidaporumgritodooutroladodaclareira.–Ah,não!–grunhiuPatadeFogo,pondo-sedepé.–Esquecidelevara

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comidadePresaAmarela!– Fique aqui – miou Pata Cinzenta, dando um pulo. – Eu levo alguma

coisaparaela.–Não,émelhoreu ir–PatadeFogoprotestou.–Ocastigoémeu,não

seu.–Ninguémvai perceber – argumentouPataCinzenta. –Todoomundo

estáocupado, comendo.Vocême conhece:quieto comoumcamundongo,rápidocomoumpeixe.Espereaqui.PatadeFogovoltoua sentar, incapazdeesconderoalívio.Observouo

amigoseafastardotroncodeárvoreatéapilhadepresafresca.Como se cumprisse ordens, PataCinzenta, confiante, escolheudois dos

camundongos mais apetitosos. Rapidamente começou a atravessar aclareiranadireçãodePresaAmarela.–Pare,PataCinzenta!–Umrosnadoaltoseouviudaentradadatocados

guerreiros. Garra de Tigre foi até o aprendiz e perguntou: – Aonde vocêestálevandoessescamundongos?Comumfrionabarriga,PatadeFogoobservava,desolado,dotroncode

árvore. Ao lado dele, Pata Negra parou no meio de uma mordida eencolheu-sesobreacomida,comosolhosmaisarregaladosdoquenunca.–Umm…–PataCinzentasoltouoscamundongosetrançouaspatas,sem

graça.– Você não está ajudando o jovem Pata de Fogo levando comida para

aquelatraidorainsaciável,está?PatadeFogoviuoamigoexaminaraspatasporuminstante.Finalmente,

o aprendiz respondeu: – Eu, é… estava apenas com fome. Ia levar oscamundongos para comer sozinho. Se aqueles dois vissem – olhou paraPatadeFogoePataNegra–,iammedeixarsócomossosepelo.–Émesmo?–miouGarradeTigre.–Seestácomtantafome,podemuito

bemcomeressescamundongosaquieagora!– Mas… – Pata Cinzenta começou a falar, olhando assustado para o

guerreiro.–Agora!–rugiuGarradeTigre.O aprendiz rapidamente abaixou a cabeça e começou a comer os

camundongos. Devorou o primeiro com algumas mordidas e o engoliurapidamente.Demorouumpoucomaisparacomerosegundo.PatadeFogoachouqueoamigonuncaiaconseguirbotarocamundongoparadentro,e

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seu próprio estômago se apertava em solidariedade; finalmente, comdificuldade,PataCinzentaengoliu,eoúltimopedaçodesapareceu.–Estámelhoragora?–perguntouGarradeTigre,comavozmaciaeum

certodeboche.–Muito–respondeuPataCinzentacomumarroto.–Muitobem–disseGarradeTigre,voltandoàsuatoca.PataCinzenta,semgraça,foiatéondeestavamosamigos.–Obrigado,PataCinzenta–agradeceuPatadeFogo,passandoofocinho

nopelomaciodocompanheiro.–Vocêpensourápido.OrugidodePresaAmarelaecooumaisumavez.PatadeFogosuspiroue

pôs-se nas quatro patas. Ia deixar para ela comida bastante para a noitetoda.Queriavoltarcedoparacasa.Tinhaabarrigacheiaeospéscansados.–Tudobem,PataCinzenta?–perguntouaosevirarparasair.– Miau, miau – reclamou o gato, encolhido, tremendo de dor. – Comi

demais!–VáverFolhaManchada–PatadeFogosugeriu.–Comcertezaeladará

umjeitonisso.–Esperoquesim–miouPataCinzenta,afastando-selentamente.PatadeFogoqueriaobservaroamigopartir,masoutrogritozangadode

PresaAmarelaofezsaircorrendopelaclareira.

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CAPÍTULO10

NAMANHÃSEGUINTE,umagaroafinaencharcouacopadasárvoreseescorreupeloacampamento.PatadeFogoacordoucomasensaçãodeestarmolhado.Tinhasidouma

noite desconfortável. Levantou-se e sacudiu-se com força, afofando apelagem.SaiudatocadosaprendizeseatravessouaclareiranadireçãodoninhodePresaAmarela.Agataestavaagitada.Levantouacabeçaeolhouparaovisitantecomos

olhossemicerrados.–Meusossosestãodoendoestamanhã.Choveuanoitetoda?–Desdequepassoualuaalta–PatadeFogorespondeu.Aproximou-see,

cauteloso, tocouoninhodemusgo. – Sua camaestá encharcada.Porquenãoficamaispertodoberçário?Aliémaisprotegido.– O quê? E ficar acordada a noite toda com aqueles filhotes miando?

Prefiroficarmolhada!–grunhiuPresaAmarela.PatadeFogoobservou-adarvoltas,resoluta,sobreacamademusgo.–

Ao menos deixe-me arranjar uma cama seca para você – ele ofereceu,disposto a não falar a respeito de filhotes, já que o assunto incomodavatantoavelhagata.–Obrigada,PatadeFogo–respondeuPresaAmarelabaixinho,voltando

aseacomodar.PatadeFogoficouespantado,aseperguntarseagataestavasesentindo

bem.Era a primeira vez que lhe agradecia por alguma coisa e quenãoochamavadegatinhodegente.–Ora,nãofiqueaísentadocomoumesquiloassustado;váapanharmais

musgo–eladisparou.OsbigodesdePatadeFogosemexeram,divertidos.AquelaeraaPresa

Amarelaqueeleconhecia.Fezquesimcomacabeçaesaiudepressa.QuasetromboucomCaudaSarapintadanomeiodaclareira.Eraarainha

que,navéspera,tinhaobservadoaexplosãoraivosadePresaAmarelacomofilhotemalhado.–Desculpe,CaudaSarapintada!–PatadeFogomiou.–Vocêestáindover

PresaAmarela?– O que eu ia querer comaquela criatura esquisita? – replicou a gata,

rudemente.–Naverdade,estavaprocurandovocê.EstrelaAzulquervê-lo.

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PatadeFogocorreunadireçãodaPedraGrandeedatocadalíder.Estrela Azul estava sentada do lado de fora, balançando a cabeça

cadenciadamente, enquanto lambia a pelagem cinza abaixo da garganta.Parouquandopercebeuachegadadoaprendiz.–ComoestáPresaAmarelahoje?–miou.– Sua cama está encharcada; então estava indo buscar mais musgo –

respondeuPatadeFogo.– Vou pedir a alguma das rainhas para providenciar – Estrela Azul

lambeuopeitomaisumavezeentãoolhouatentamenteparaPatadeFogo.–Elajáestábemparaconseguircaçaraprópriacomida?–perguntou.–Achoquenão–miouPatadeFogo–,masjáestácaminhandobem.– Compreendo – miou Estrela Azul, que pareceu pensativa por um

instante.–Jáétempodevoltaraotreinamento,PatadeFogo.Masvocêvaiprecisartrabalharduropararecuperarotempoqueperdeu.– Ótimo! Quero dizer, muito obrigado, Estrela Azul! – o aprendiz

gaguejou.– Você vai sair com Garra de Tigre, Pata Cinzenta e Pata Negra esta

manhã – continuou a líder. – Pedi a Garra de Tigre para avaliar ashabilidadesdeguerreirode todososnossosaprendizes.NãosepreocupecomPresaAmarela;vouassegurarquealguémcuidedelaenquantoestiverfora.PatadeFogofezquesimcomacabeça.–Agora,junte-seaseuscompanheiros–ordenouEstrelaAzul.–Imagino

queoestejamesperando.– Obrigado, Estrela Azul –miou o aprendiz. E, com ummovimento de

cauda,disparounadireçãodesuatoca.

EstrelaAzulestavacerta;PataCinzentaePataNegraoesperavamnotocodeárvore favorito.PataCinzenta, tensoedesconfortável, tinhaapelagemlongapesadaporcausadaumidadedoar.PataNegraandavadeumladopara o outro perto do toco de árvore, perdido em seus pensamentos,mexendoapontabrancadacauda.– Então hoje você vai conosco! – disse Pata Cinzenta ao ver o amigo

chegar.–Quedia,hein?–Sacudiu-secom forçaparase livrardaáguadachuva.– É verdade. Estrela Azulme disse que Garra de Tigre vai nos avaliar

hoje.PatadeAreiaePatadePoeiratambémvãoconosco?

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–NevascaeRiscadeCarvãolevaramosdoisnapatrulhadosguerreiros.AchoqueGarradeTigrevaicuidardelesdepois–respondeuPataCinzenta.–Vamos,estánahora!–apressouPataNegra,quepararademarchare

agoraesperavaaoladodosamigos,ansioso.–Pormim,tudobem–miouPataCinzenta.–Esperoqueoexercíciome

aqueçaumpouco.Ostrêsgatossaíramdoacampamentopelatrilhadetojoecorreramatéo

vale de areia. Como Garra de Tigre não havia chegado ainda, ficaram aoabrigodeumpinheiro,comopeloarrepiadodefrio.– Está preocupado com a avaliação? – Pata de Fogo perguntou a Pata

Negra ao ver o amigo caminhando para a frente e para trás, compassosrápidosenervosos.–Nãoprecisa.Afinal,vocêéaprendizdeGarradeTigre.QuandoelefizerorelatórioparaEstrelaAzul,vaiquererdizercomovocêébom.–ComGarradeTigre,nuncasesabe–miouPataNegra,semparardese

mexer.–Pormisericórdia,sente-se–reclamouPataCinzenta.–Dessejeito,você

estaráexaustoantesmesmodecomeçarmos.QuandoGarradeTigrechegou,océutinhamudado.Asnuvenspareciam

menoscomumapelagemespessaecinzaemaiscomasbolasdepelofofoebrancoqueasrainhascostumavamcolocarnosninhosdosrecém-nascidos.Os céus azuis não estavam longe,mas a brisa que trouxera nuvensmaislevestransportavaumfriozinhonovo.PatadeTigrecumprimentourapidamenteosaprendizesefoidiretopara

os detalhes do exercício: – Coração de Leão e eu passamos as últimassemanastentandoensinarvocêsacaçardemodoapropriado.Hojevãotera oportunidade demostrar quanto aprenderam. Cada um vai pegar umarotadiferente e caçaromáximodepresaspossível.Tudooquepegaremserálevadoparaoestoquenoacampamento.Os três aprendizes se entreolharam, nervosos e empolgados. Pata de

Fogosentiuocoraçãobatermaisrápidocomaperspectivadodesafio.–PataNegra,vocêvaiseguiratrilhaalémdoGrandePlátano,chegando

até as Rochas das Cobras. Isso será fácil até mesmo para suas poucashabilidades.Você,PataCinzenta–continuouGarradeTigre–,vaipegararotaaolongodoriacho,indoatéoCaminhodoTrovão.–Ótimo–miouPataCinzenta.–Patasmolhadasparamim!–Oolharde

GarradeTigreocalou.

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–E, finalmente,você,PatadeFogo.Umapenasuagrandementoranãoestar aqui hoje para testemunhar sua atuação. Você vai pegar a rota queatravessa os Pinheiros Altos, passando pelas Árvores Cortadas, até afloresta.PatadeFogoconcordou,traçandofreneticamentearotanacabeça.–Elembrem:–terminouGarradeTigre,encarando-osfirmementecom

seuolharsembrilho–Estareideolhoemtodosvocês.Pata Negra foi o primeiro a sair correndo na direção das Rochas das

Cobras. Garra de Tigre tomou um caminho diferente rumo à floresta,deixando sozinhos no vale Pata Cinzenta e Pata de Fogo, que tentavamadivinharaquemoguerreiroseguiriaemprimeirolugar.–Não sei porque ele achaque a rotadasRochasdasCobras é fácil! –

miouPataCinzenta.–Olugarparecerastejardetantasserpentes.Pássarosecamundongosficamlongedaliporcausadaquantidadedecobras!– Pata Negra terá de passar o tempo todo evitando ser picado –

concordouPatadeFogo.–Ele vai ficarbem–miouPataCinzenta. –Nemmesmouma serpente

seriarápidabastanteparaagarrarPataNegraagora,detantoqueelepula.Émelhoreuir.Encontrovocêsaquimaistarde.Boasorte!Pata Cinzenta correu na direção do riacho. Pata de Fogo parou para

farejaroaredepois,dirigindo-seàencostadovale,começouarumarparaosPinheirosAltos.Parecia estranho seguir naquela direção, para as bandas do lugar dos

Duas-Pernas,ondetinhacrescido.Comcuidado,PatadeFogoatravessouocaminhoestreitoquedavaparaaflorestadepinheiros.Olhouatravésdasfileiras retas de árvores, de um lado a outro do chão batido da floresta,alertaparaveralgumapresaousentirseucheiro.Um movimento lhe chamou a atenção. Era um camundongo se

esgueirando entre as agulhas dos pinheiros. Lembrando a primeira lição,PatadeFogoagachounaposiçãodetocaia,mantendoopesonosquadriseaspatasencostadasdelevenochão.Atécnicafuncionouperfeitamente.OcamundongonãoconseguiuperceberPatadeFogoatéopulofinal.Ogatoopegoucomumapataerapidamenteomatou.Entãoenterrouapresa,paraapanhá-lanavolta.Pata de Fogo foi um pouco mais além pelos Pinheiros Altos. O chão

estavabastantemarcadopelatrilha feitapeloenormemonstrodosDuas-Pernasquederrubavaasárvores.Elerespiroufundo,comabocaaberta.O

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hálitoácidodomonstro,porenquanto,nãoimpregnaraoarporali.Pata de Fogo seguiu as trilhas fundas, pulando pelos buracos no chão.

Estavammeiocheiosdechuva,oqueodeixavacomsede.Ficoutentadoapararebeberumpoucodaspoças,mashesitou.Umalambidadaquelaágualamacentaefedidaeelesentiriaogostohorríveldomonstropordias.Decidiuesperar.TalvezhouvesseumapoçadechuvaalémdosPinheiros

Altos. Embrenhou-se entre as árvores e atravessou o caminho dosDuas-Pernasnafronteiraextrema.Estavadevoltaàvegetaçãoespessadaflorestadecarvalho.Entrouainda

maisatéencontrarumapoça,ondesefartoudeáguafresca.Derepente,seupelo começou a se eriçar em alerta. Ele reconheceu sons e cheirosfamiliaresdoseuantigopontodeobservaçãonacercae logosoubeondeestava. Era a floresta que fazia fronteira com o lugar dos Duas-Pernas.Agoradeviaestarbempertodasuaantigacasa.Maisadiante,PatadeFogosentiuocheirodosDuas-Pernaseouviusuas

vozes,altaseestridentes, comodecorvos.Eraumgrupode jovensDuas-Pernas brincando pela floresta. O aprendiz agachou, observando atravésdas samambaias.Os sons estavama umadistância segura. Elemudoudedireção,evitandoosbarulhos,cuidandoparanãoservisto.PatadeFogopermaneceualerta,observando,masnãoapenasporcausa

dosDuas-Pernas–GarradeTigrepodiaestarporperto.Pensouterouvidoum estalar de galho nos arbustos atrás dele. Farejou o ar, mas nadapercebeudenovo.Estariasendoobservado?,perguntou-se.Pelocantodoolho,percebeuummovimento.Primeiropensouquefosse

a pelagemmarrom-escuro de Garra de Tigre,mas então viu um lampejobranco. Parou, agachou e respirou fundo. O cheiro era estranho; era umgato,masnãodoClãdoTrovão.PatadeFogosentiuopeloeriçarcomosinstintosdeumguerreirodeclã.Teriadeexpulsaro intrusodoterritóriodoClãdoTrovão!Pata de Fogo observou a criatura semovimentando entre a vegetação.

Viu claramente seu perfil enquanto ela passava correndo entre assamambaias. Esperou que se aproximasse. Agachou ainda mais, com acaudaem lentacadênciaparaa frenteepara trás.Quandoogatopretoebranco seaproximou,PatadeFogobalançouosquadrisdeum ladoparaoutro,preparando-separaatacar.Maisumabatidadecoraçãoeelesaltou.O gato preto e branco pulou no ar, apavorado, e correu pelomeio das

árvores.PatadeFogocorreuatrás.

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Éumgatodegente!,pensou,disparandopelavegetação,sentindocheirodemedo.Nomeu território! PatadeFogo se aproximava rapidamentedoanimalemfuga.Derepente,ogatodiminuiuoritmo,preparando-separaescalarotroncodeumaárvorecaída,largoecheiodemusgo.Comosanguelatejando nas orelhas, Pata de Fogo pulou nas costas dele comumúnicomovimentoe,aocravar-lheasgarras,sentiu-osedebater.Ogatosoltouumgritodesesperadodeterror.Pata de Fogo soltou as garras e afastou-se. O gato preto e branco,

tremendodemedo,agachou-seaopédeumaárvorecaídaeolhouparaele.Pata de Fogo levantou o nariz, sentindo um tremor de desgosto com arendição tão fácil do intruso. Aquele gato doméstico, macio e roliço, deolhosredondoserostoestreito,pareciamuitodiferentedosgatosmagrosedecabeça larga comquemPatadeFogoviviaagora.Mesmoassim,haviaalgofamiliarnaquelefelino.PatadeFogoencarou-ofirmeefarejouoar,tentandoidentificaroodor

dogato.Nãoreconheçoocheiro,pensou,procurandonamemória.Entãoelesedeuconta.–Borrão!–mioualto.– Co-como você-cê sabe me-meu n-nome? – gaguejou Borrão, ainda

agachado.–Soueu!–miouPatadeFogo.Ogatodomésticopareciaconfuso.–Nós crescemos juntos! Eumorava no jardimperto de você – insistiu

PatadeFogo.–Ferrugem?–miouBorrão,semacreditar.–Évocê?Voltouaencontrar

osgatosselvagens?Ouestánumacasanova?Deveser isso,sevocêaindaestávivo!– Meu nome agora é Pata de Fogo –miou o aprendiz, que relaxou os

ombrosedeixouapelagemabaixar,revelandoumpelolustrosoelaranja.Borrão também relaxou. Suas orelhas se retesaram. – Pata de Fogo! –

repetiu, divertido. – Bem, Pata de Fogo, parece que os seus novos donosnão lhe dão comida suficiente! Com certeza você não estava magricelaassimdaúltimavezquenosencontramos!–NãoprecisoqueosDuas-Pernasmealimentem–replicouPatadeFogo.

–Tenhoumaflorestainteiradecomidaparamealimentar.–Duas-Pernas?

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–Osquemoramnascasas.Éassimqueosclãsoschamam.Borrão pareceu perplexo por um segundo; então, sua expressão

converteu-se em total assombro. – Quer dizer que você está mesmovivendocomosgatosselvagens?–Estou!–PatadeFogofezumapausa.–Vocêsabe,vocêtemumcheiro…

diferente.Estranho.–Estranho?–Borrãorepetiu.Ogatocheirouoar.–Achoqueagoravocê

estáacostumadocomocheirodosgatosselvagens.PatadeFogobalançouacabeça,comosequisesseclarearopensamento.

– Mas crescemos juntos. Eu devia reconhecer o seu cheiro comoreconheceria o da minha própria mãe. – Então Pata de Fogo lembrou.Borrão tinha mais de seis luas. Não era estranho parecer tão macio egorducho, com um cheiro tão diferente. – Você esteve no Corta-Gato! –arfou.–Querodizer,noveterinário!Borrãoencolheuosombrosnegroseroliços.–Edaí?PatadeFogoestavamudo.EstrelaAzultinharazão.–E então?Comoé viverna floresta? –Borrãoperguntou. –É tãobom

quantopensouquefosse?PatadeFogopensouporuminstante:nanoiteanterior,dormindonuma

tocaúmida.PensounabilederatoenatarefadelimparasfezesdePresaAmarela;emsuastentativasdeagradarCoraçãodeLeãoeGarradeTigreaomesmotempo,duranteotreinamento.Lembrou-sedecomoimplicaramcomeleporcausadeseusanguedegatinhodegente.Entãoselembroudaemoçãodaprimeirapresa,decorrerpelaflorestaperseguindoumesquiloedasnoitesmornassobasestrelas,trocandolambidascomosamigos.–Agoraeuseiquemsou–miousimplesmente.BorrãovirouacabeçaparaoladoeolhouparaPatadeFogo,claramente

confuso.–Émelhoreuirparacasa–miou.–Daquiapoucoestánahoradaminhacomida.–Tenhacuidado,Borrão–PatadeFogoinclinou-seedeunovelhoamigo

umalambidacarinhosaentreasorelhas.Borrão,retribuindo,esfregouneleo focinho.–Mantenha-sealerta.Podeandarpelaáreaoutrogatoquenãoseja, como eu, tão amigo de gatinhos de gente… quero dizer, gatosdomésticos.AsorelhasdeBorrãoseagitaramnervosamenteaoouviressaspalavras.

Ele olhou à volta com cuidado e pulou sobre o tronco da árvore caída. –Adeus,Ferrugem–despediu-se.–Voucontaratodoomundoemcasaque

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vocêestábem!–Adeus,Borrão–miouPatadeFogo.–Aproveitesuarefeição!EleobservouapontabrancadacaudadeBorrãodesaparecernoextremo

do tronco de árvore. A distância, ouviu o barulho de ração seca sendodespejadanatigelaeavozdeumDuas-Pernaschamando.PatadeFogovirou-see, comacauda levantada, começouavoltarpara

casa,farejandooaraolongodocaminho.Vouencontrarumpintassilgooudoisporaqui.Depois vouarrumarmaisalgumacoisano caminhodevoltaentreospinheiros–pensou,decidido.Sentia-secheiodeenergiadepoisdoencontrocomBorrão;dava-secontaagoradecomotinhasorteemvivernomeiodoclã.Olhou os galhos acima dele e começou a andar silenciosamente pela

floresta, com todos os sentidos alertas. Agora só faltava impressionarEstrelaAzuleGarradeTigreparaodiaserperfeito.

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CAPÍTULO11

PATADEFOGOVOLTOUcomumpintassilgopresofirmementeentreosdentes.Deixou-ocairnafrentedeGarradeTigre,queesperavanovale.–Vocêfoioprimeiroavoltar–disseoguerreiro.–É,mastenhomuitomaispresasparabuscar–respondeudeprontoo

aprendiz–Enterrei-as…–Seiexatamenteoquefez–grunhiuGarradeTigre.–Estiveobservando

você.Um zunido nos arbustos anunciou a volta de Pata Cinzenta. Carregava

umpequenoesquilonaboca,quecolocouao ladodopintassilgo.–Eca!–disparou.–Esquilos sãopeludosdemais.Voupassaranoite toda tirandopelodosdentes.GarradeTigrenãoprestouatençãoaoresmungodePataCinzenta.–Pata

Negra está atrasado – observou. – Vamos dar a ele mais um tempo evoltamosaoacampamento.–Mas,eseeletiversidopicadoporumaserpente?–protestouPatade

Fogo.– Então, a culpa é dele – retrucou Garra de Tigre friamente. – Não há

lugarparatolosnoClãdoTrovão.Esperaramemsilêncio.PataCinzentaePatadeFogo trocaramolhares,

preocupados com o amigo. Garra de Tigre estava imóvel, aparentementeperdidoempensamentos.Pata de Fogo foi o primeiro a farejar a chegada de Pata Negra. Pulou

quando o gato negro deu um salto na clareira, parecendo incrivelmentesatisfeito.Tinhapenduradanabocaumaserpentecompridaecomocorpoestampadoemdiamantes.–PataNegra!Tudobemcomvocê?–perguntouPatadeFogo.–Ei!–miouPataCinzenta,adiantando-separaadmirarapresadePata

Negra.–Elapicouvocê?–Elanãotevetempoparaisso!–ronronouPataNegraemvozalta,cheio

deorgulho.FoiquandodeudecaracomGarradeTigreecalouaboca.Oguerreirocongelouostrêsaprendizescomoolhar.–Venham–disse

secamente.–Vamospegarorestodaspresasevoltaraoacampamento.

Pata de Fogo, Pata Cinzenta e Pata Negra entraram no acampamento,

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seguindoGarradeTigre.Traziamnabocasuaspresasadmiráveis,emboraPata Negra continuasse tropeçando na cobra morta. Quando saíram docaminhodetojos,umgrupodefilhotesescapoudoberçárioparavê-los.–Vejam!–PatadeFogoouviuumdelesdizer.–Osaprendizesacabamde

voltar da caçada! – Ele reconheceu o gato malhado que Presa Amarelamaltrataranavéspera.Sentadopertodeleestavaumfilhotecinzaepeludo,quenãotinhamaisqueduasluasdeidade.Aseulado,umgatopretobemmiúdoeumapequenagataatartarugada.–AquelenãoéPatadeFogo,ogatinhodegente?–guinchouofilhote.–É,sim!Olheopelocordelaranja!–miouopreto.–Dizemqueébomcaçador–acrescentouagataatartarugada.–Lembra

umpoucoCoraçãodeLeão.Vocêachaqueébomcomoele?–Nãovejoahoradecomeçarotreinamento–miouomalhadinho.–Vou

seromelhorguerreiroqueoClãdoTrovãojáviu!Pata de Fogo levantou o queixo, orgulhoso dos comentários de

admiraçãodosfilhotes,eseguiuosdoisamigosatéocentrodaclareira.– Uma cobra! – Pata Cinzentamiou novamente, quando os aprendizes

colocaram no chão o resultado da caça para que os outros gatos apartilhassem.– O que faço com isso? – perguntou Pata Negra cheirando o corpo da

cobracolocadoaoladodapilha.–Issosecome?–perguntouPataCinzenta.– Você, sempre pensando no estômago! – brincou Pata de Fogo,

cutucandoPataCinzentacomacabeça.–Eu équenão ia querer comer isso –murmurouPataNegra. –Quero

dizer,jáestoucomumgostohorrívelnabocasódetrazeracobra!– Vamos colocá-la no toco da árvore, então – sugeriu Pata Cinzenta –,

paraquePatadePoeiraePatadeAreiaavejamquandovoltarem.Cadaumcarregouasuapresa,alémdaserpente,devoltaparaatocados

aprendizes.Comcuidado,PataCinzentacolocouacobranotoco,deformaque pudesse ser vista claramente de todos os lados. Então, comeram.Quando acabaram, sentaram perto um do outro para lamber-se econversar.–QuemseráqueEstrelaAzulvaiescolherparairàAssembleia?–Patade

Fogoperguntou.–Amanhãéluacheia.– Pata de Areia e Pata de Poeira já foram duas vezes – retrucou Pata

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Cinzenta.–PodeserqueEstrelaAzulagorachameumdenós–miouPatadeFogo.

–Afinal,jáestamosemtreinamentoháquasetrêsluas.–MasPatadeAreiaePatadePoeiraaindasãoosaprendizesmaisvelhos

–PataNegralembrou.PatadeFogoconcordou.–EessaAssembleiavaiserimportante.Vaiser

aprimeiradesdequeoClãdoVentodesapareceu.NenhumgatosabeoqueoClãdasSombrasvaidizerarespeito.OmiadobaixodeGarradeTigreinterrompeu-os.–Vocêestácerto,meu

jovem.–Oguerreiroseaproximarasemsernotado.–Aliás,PatadeFogo–acrescentoucomvozsuave–,EstrelaAzulquervê-lo.PatadeFogoficousurpreso.Porqueseráquealíderqueriavê-lo?–Agora,sevocêsedignar–miouGarradeTigre.Pata de Fogo pôs-se em pé imediatamente e atravessou a clareira na

direçãodatocadeEstrelaAzul.Alíderestavasentadadoladodefora,agitandoacaudasemparar,paraa

frente e para trás. Quando viu o aprendiz, levantou-se e o olhoufirmemente.–GarradeTigremedissequeviuvocêconversandohojecomumgatodosDuas-Pernas–elamiou,calma.–Mas…–começouPatadeFogo.– Disse que você começou lutando com o gato, mas que acabaram

trocandolambidas.–Éverdade–admitiuoaprendiz,nadefensiva,sentindoopeloeriçar.–

Trata-sedeumvelhoamigo,crescemosjuntos.–Fezumapausaeengoliuemseco.–Quandoeueraumgatinhodegente.EstrelaAzulolhou-olongamenteeperguntou:–Vocêsentefaltadasua

antigavida,PatadeFogo?Pensebemantesderesponder.–Não,não sinto. –Comoelapodiapensaraquilo?, espantou-se Pata de

Fogo.Acabeçagirava.OqueEstrelaAzulestavatentandofazê-lodizer?–Vocêquerdeixaroclã?–Claroquenão!–PatadeFogoficouchocadocomapergunta.EstrelaAzulnãopareceunotarovigorda resposta.Balançoua cabeça,

parecendo de repente velha e cansada. – Não vou julgá-lo se você nosdeixar,PatadeFogo.Talvezeutenhaesperadodemaisdevocê.Talvezmeujulgamento tenha sido prejudicado pela necessidade do clã de novosguerreiros.

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O pânico tomou conta do aprendiz, ao pensar em deixar o clã parasempre.–Masmeulugaréaqui!Esteéomeular–protestou.–Precisomaisdoque isso,PatadeFogo.Precisopoder confiarna sua

lealdade ao Clã do Trovão, principalmente agora que o Clã das Sombraspareceestarplanejandoumataque.Não temos lugarparaquemnão temcertezaseoseucoraçãoestánopassadoounopresente.PatadeFogorespiroufundoeescolheuaspalavrasseguintescommuito

cuidado. – Quando vi Borrão hoje, o gato doméstico com quem euconversavaquandoGarradeTigremeobservava,percebicomominhavidateriasidoseeutivesseficadocomosDuas-Pernas.Fiqueifelizpornãoterficado. Me senti orgulhoso de ter partido. – Ele não desviou o olhar deEstrela Azul, que o fitava. – Encontrar Borrão me deu a certeza de quetomei a decisão correta. Nunca ficaria satisfeito com a vida mansa degatinhodegente.EstrelaAzul fitou-oporuminstante,comosolhosestreitos, finalmente

concordandocomacabeça.–Muitobem.Acreditoemvocê.Pata de Fogo abaixou a cabeça numa reverência profunda e deu um

suspirodealívio.– Faleimais cedo comPresa Amarela –miou a líder em um tommais

brando.–Elapensamuitobemdevocê.Éumagatavelhaesábia,vocêsabe.Acho que nem sempre foi mal-humorada. Na verdade, imagino que eupossaatéacabargostandodela.Pata de Fogo sentiu uma inesperada sensação de prazer ao ouvir tais

palavras.Talvez,enquantotomavacontadePresaAmarela,suaadmiraçãotenhasetransformadoemafeição,apesardotemperamentodifícildagata.Qualquerquefossearazão,ficoufelizporEstrelaAzultambémgostardela.– Mas há alguma coisa que me deixa desconfiada – a líder continuou

calmamente.–ElavaificarcomoClãdoTrovãoporora,masaindacomoprisioneira. As rainhas vão tomar conta dela. É preciso que você seconcentrenotreinamento.O aprendiz fez um sinal com a cabeça e esperou para ser dispensado;

masagataaindanãoterminara.–PatadeFogo,emboravocêtenhatomadoadecisãoerradahoje,falandocomumgatodoméstico,GarradeTigreficouimpressionadocomsuashabilidadesde caçador.Naverdade, relatouquetodos vocês foram bem. Fico satisfeita com o progresso. Vocês vão àAssembleia;ostrês.PatadeFogomalpodiaseconter.Seucorpopinicavadeempolgação.A

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Assembleia!–EPatadeAreiaePatadePoeira?–perguntou.–Vãoficarnoacampamento,montandoguarda–explicouEstrelaAzul.–

Agora pode ir. – Ela balançou a cauda comprida para mostrar que eleestavadispensadoevoltouaselamber.

PataCinzentaePataNegraficaramespantadosaoverPatadeFogovindonasuadireção,todosaltitante.Estavamnervosos,esperando-oaoladodotocodeárvore.PatadeFogosentoueolhouparaosamigos.–Eentão?–perguntouPataCinzenta.–Oqueeladisse?–GarradeTigrenosdissequevocêestava trocando lambidascomum

gatinho de gente esta manhã – disparou Pata Negra. – Você estáencrencado?– Não. Embora Estrela Azul não tenha gostado – admitiu o aprendiz,

lamentando. – Ela achou que eu estivesse pensando em deixar o Clã doTrovão.–Masvocênãoestá,está?–perguntouPataNegra.–Claroquenão!–miouPataCinzenta.PatadeFogodeuumapatada carinhosano amigo cinzento. –Ah, você

detestariaisso.Precisademimparacaçarunscamundongosparavocê!Sóoqueconseguepegarsãoesquilosvelhosepeludos!PataCinzentasedesvioudobafodePatadeFogoeficoudepénaspatas

traseiras,prontopararevidar.– Você nunca vai adivinhar o quemais ela disse! – continuou Pata de

Fogo.Estavaexcitadodemaisparaperdertempobrincandodelutar.PataCinzentaimediatamenteseafastou,colocando-senasquatropatas.

–Oquê?–perguntou.–VamosparaaAssembleia!Pata Cinzenta deixou escapar um grito de prazer e subiu no toco de

árvore. Uma de suas patas traseiras bateu na serpente que estavapendurada, e esta acabou caindo na cabeça de Pata Negra, vindo a seenrolarnoseupescoço.PataNegracuspiu,assustadoesurpreso,esevoltouparaPataCinzenta.

– Preste atenção! – reclamou, grosseiro. Sacudiu a serpente e a jogou nochão.– Ficou commedo que ela omordesse? – provocou Pata de Fogo. Em

seguida,agachou-see,sibilando,arrastou-senadireçãodePataNegra.

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PataNegraestremeceubigodesereplicou:–Quebelacobravocêdaria!–PulousobrePatadeFogoefacilmenteoviroudebarrigaparacima.PataCinzentadesceudotocodaárvoreedeuumpuxãonacaudadePata

Negra.QuandoestesevirouparadarumapatadadeleveemPataCinzenta,PatadeFogopulouemcimadosdois,fazendoPataCinzentavoardotoco.Ostrêsgatosrolaramnaterra,lutandonochão.Finalmentesesepararameseajeitaram,colocando-seaoladodotoco.–PatadeAreiaePatadePoeiravãotambém?–perguntouPataCinzenta.–Quenada!–dissePatadeFogo, incapazdedisfarçarumcertotriunfo

navoz.–Têmdeficardeguardanoacampamento.–Ah!Não vejo a hora de contar para eles – implorouPata Cinzenta. –

Estouloucoparaveracaraquevãofazer!–Eutambém!–concordouPatadeFogo.–Nãopossoacreditarquenós

vamosnolugardeles.PrincipalmentedepoisdeGarradeTigretermevistocomBorrãohoje!– Isso foi apenas azar – dissePata Cinzenta. –Todosnóspegamosum

bocadodepresasnaavaliação.Devetersidoissoquelevaramemconta.–FicoimaginandocomodeveseraAssembleia–miouPataNegra.–Vai ser fantástica– respondeuPataCinzenta, confiante.–Apostoque

todososgrandesguerreirosvãoestarlá.CaraRasgada,PeledePedra…Mas Pata de Fogo não estava mais prestando atenção. Na verdade,

pensavaemGarradeTigreeemBorrão.PataCinzentaestavacerto.Foraazarqueograndeguerreirooestivesseobservandobemnahoraemqueencontraraovelhoamigo.PorquenãoestavaobservandoPataCinzentaouPataNegra?FoimesmofaltadesorteGarradeTigretê-loenviadoparatãopertodolugardosDuas-Pernas.Derepente,ummaupensamento invadiuamentedePatadeFogo:por

que Garra de Tigre o tinha enviado para tão perto de sua antiga casa?Queriatestá-lo?NãoacreditavanasualealdadeaoClãdoTrovão?

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CAPÍTULO12

PATA DE FOGO OBSERVAVA do alto de uma encosta coberta de arbustos. PataCinzenta e Pata Negra estavam agachados a seu lado. Perto deles, navegetação, um grupo de anciãos, rainhas e guerreiros do Clã do TrovãoaguardavaosinaldeEstrelaAzul.PatadeFogonãotinhavoltadoàquelelugardesdesuaprimeirajornada

com Coração de Leão e Garra de Tigre. A vereda escarpada pareciadiferente.Overdeabundantedasflorestasestavaembranquecidopelaluzda lua cheia, e as folhas das árvores brilhavam como prata. Embaixoestavamosgrandescarvalhosquemarcavamopontoemqueo territóriodecadaclãseencontravacomosdemais.Oarestavadensocomoscheirosmornosdegatosdosoutrosclãs.Pata

de Fogo podia vê-los claramente ao luar,movimentando-se na grama daclareiraquehaviaentreosquatrocarvalhos.Nocentro,umapedragrandeepontiagudasurgiadochãodaflorestacomoumdentepartido.–Vejamtodosaquelesgatosláembaixo–PataNegrasilvou,baixinho.–LáestáEstrelaTorta–PataCinzentacochichoudevolta.–O líderdo

ClãdoRio.–Onde?–PatadeFogomiou,impaciente,cutucandoPataCinzenta.–Aquelegatomeiomalhado,aoladodaPedradoConselho.PatadeFogoseguiuaindicaçãodoamigoeviuumgatoenorme,maior

aindaqueCoraçãodeLeão,sentadonomeiodaclareira.Apelagemlistradabrilhavapalidamenteaoluar.Mesmoàqueladistânciaorostomostravaossinais de uma vida dura, e a boca parecia torta, como se tivesse sidoquebradaeconsertadadequalquerjeito.– Ei! – miou Pata Cinzenta. – Vocês viram como Pata de Areia cuspiu

quandolhedesejeiumaótimanoiteemcasa?–Garantoquevaiter!–PatadeFogoronronou.Pata Negra interrompeu-os com um grunhido surdo: – Vejam! Lá está

EstrelaPartida,olíderdoClãdasSombras.Pata de Fogo olhoupara o gato listradodemarrom-escuro.O pelo era

incrivelmentelongo;acara,largaeachatada.Seujeitotaciturnodesentar-seeolharàvoltafaziaapelagemdePatadeFogoeriçar-sedeincômodo.–Eleparecebemantipático–murmurouPatadeFogo.– É verdade – concordou Pata Cinzenta. – Não há dúvida de que

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conseguiuumareputaçãoentretodososclãspornãotolerarbrincadeiras.Enemfaztantotempoquesetornoulíder…quatroluas,desdequeseupai,EstrelaAfiada,morreu.–ComoéolíderdoClãdoVento?–perguntouPatadeFogo.–EstrelaAlta?Nuncaovi,masseiqueépretoebrancoetemumacauda

bemcomprida–respondeuPataCinzenta.–Vocêconseguevê-lo?PataCinzentaolhouparabaixo,procurandoentreamultidãodefelinos.–

Neca!–ConseguesentirocheirodealgumgatodoClãdoVento?PataCinzentabalançouacabeça.–Não.OmiadodeCoraçãodeLeãosooucalmoaoladodeles:–OsgatosdoClã

doVentopodemestarapenasatrasados.–Mas,esenãoaparecerem?–miouPataCinzenta.– Silêncio! Precisamos ter paciência. São temposdifíceis.Agora fiquem

quietos. Estrela Azul, daqui a pouco, vai dar o sinal para nosmovimentarmos–CoraçãodeLeãomioubaixinho.Enquanto ele falava, Estrela Azul se levantou e, mantendo a cauda no

alto,balançou-adeum ladoparaoutro.OcoraçãodePatadeFogoquaseparou quando os gatos do Clã do Trovão se levantaram todos juntos esurgiramemmeioaosarbustos,descendonadireçãodolocaldeencontro.Ele correu ao lado dos felinos, sentindo o vento nas orelhas e as pataspinicandodeansiedade.Os gatos do Clã do Trovão pararam instintivamente no extremo da

clareira, forados limitesmarcadospeloscarvalhos.EstrelaAzul farejouoar.Fezumgestoeatropaavançouparadentrodaclareira.Pata de Fogo estava excitado. Os outros felinos pareciam ainda mais

impressionantes vistos de perto,movendo-se lentamente nas imediaçõesda Pedra Grande. Um guerreiro grande e branco passou. Pata de Fogo ePataNegraoolharam,maravilhados.–Olhequepatas!–murmurouPataNegra.PatadeFogoolhouparabaixoepercebeuqueaspatasenormesdogato

eramdeumpretoretinto.–DeveseroPéPreto–miouPataCinzenta.–Onovorepresentantedo

ClãdasSombras.PéPretocaminhouatéEstrelaPartidaesentouaoseulado.OlíderdoClã

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dasSombrasoreconheceucomummovimentodaorelha,masnadadisse.–Quandooencontrovaicomeçar?–PataNegraperguntouaNevasca.– Seja paciente. O céu está claro esta noite, o que significa que temos

muitotempo.CoraçãodeLeão inclinou-seeacrescentou:–Nós,guerreiros,gostamos

de ficar um tempo nos vangloriando das vitórias, enquanto os anciãostrocamhistóriassobrecomoeramascoisasantigamente,antesdeosDuas-Pernas chegarem. – Os aprendizes o olharam e viram seus bigodes semexercommalícia.Cauda Mosqueada, Caolha e Orelhinha foram direto até um grupo de

gatos mais velhos que se ajeitavam sob um dos carvalhos. Nevasca eCoração de Leão seguiram na direção de outros guerreiros, que Pata deFogonãoconhecia.ElefarejouoarereconheceunelesocheirodoClãdoRio.A voz de Estrela Azul soou por trás dos três aprendizes. – Não

desperdicem nem um minuto esta noite – advertiu. – Esta é uma boaoportunidadeparaconhecerosinimigos.Ouçamoquedizem;lembrem-sede como são e como se comportam. Nesses encontros aprende-semuitacoisa.–Efalempouco–advertiuGarradeTigre.–Nãodeemnenhumadicaque

possaserusadacontranósquandoaluaminguar.–Nãosepreocupe;vamosnoscomportar!–PatadeFogologoprometeu,

olhandonosolhosdeGarradeTigre.Eleaindasentiaqueoguerreironãoconfiavanasualealdade.Os dois guerreiros concordaram em silêncio e se afastaram, deixando

sozinhososaprendizes,queseolharam.–Oquefazemosagora?–perguntouPatadeFogo.–Oqueelesmandaram–respondeuPataNegra.–Prestamosatenção.–Enãofalamosmuito–acrescentouPataCinzenta.PatadeFogosemostravapreocupado.–VouveraondefoiGarradeTigre

–miou.–EeuvouprocurarCoraçãodeLeão–miouPataCinzenta.–Vocêvem

comigo,PataNegra?–Não,obrigado.Vouprocuraroutrosaprendizes.–Tudobem.Agenteseencontramaistarde–miouPatadeFogo,saindo

noencalçodeGarradeTigre.

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FoifácilsentirocheirodeGarradeTigreeencontrá-lonocentrodeumgrupodeenormesguerreiros,atrásdaPedraGrande.ElecontavaumahistóriaquePatadeFogotinhaouvidomuitasvezesno

acampamento.Descreviaa recentebatalhacontraos caçadoresdoClãdoRio.–LuteicomoumgatodoClãdosLeões.Trêsguerreirostentarammesegurar,mas joguei-os longe. Lutei até dar cabode dois deles; o terceirocorreuparaafloresta,comoumfilhotechorandopelamãe.Dessa vez Garra de Tigre não mencionou ter matado Coração de

CarvalhoparavingaramortedeRaboVermelho.TalvezparanãoofenderosguerreirosdoClãdoRio,PatadeFogodeduziu.O aprendiz ouviu educadamente até o fim da história, mas um cheiro

familiarodistraiu.LogoqueGarradeTigreparoudefalar,PatadeFogosevirounadireçãodocheirodoce,quevinhadeumgrupodegatosaliperto.Encontrou Pata Cinzenta entre os felinos,mas não era aquele o cheiro

queeleperseguia.DooutroladodePataCinzenta,entredoisgatosdoClãdo Rio, estava Folha Manchada. Pata de Fogo olhou-a timidamente e secolocouaoladodoamigo.– Ainda não sinto nenhum cheiro do Clã do Vento – miou para Pata

Cinzenta.–O encontro aindanão começou; pode ser que ainda venham.Veja, lá

está Nariz Molhado. Parece que é o curandeiro do Clã das Sombras. –Apontouparaumpequenogatocinzaebranco,nomeiodogrupo.– Estou vendo por que o chamam Nariz Molhado – observou Pata de

Fogo. O nariz do curandeiro estava úmido na ponta, cheio de craca nasbordas.–Eca–dissePataCinzenta,debochando.–Nãoseiporqueoindicaram

comocurandeirosenãoconseguenemcuidardopróprioresfriado!Nariz Molhado estava falando a uns gatos sobre uma erva que os

curandeiros usavam antigamente para curar a tosse de filhotes. – DesdequeosDuas-Pernaschegarameencheramolugarcomterraduraefloresestranhas–elereclamava,falandoalto–,aervadesapareceueosfilhotesagoramorremàtoanotempofrio.Osgatosàvoltagrunhiram,mostrandodesaprovação.– Isso nunca teria acontecido na época dos felinos dos grandes clãs –

observouumarainhanegradoClãdoRio.–Éverdade–miouumgatomalhadodeprateado.–Osgrandesfelinos

teriam matado qualquer Duas-Pernas que ousasse entrar no território

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deles.SeoClãdosTigresaindavagasseporesta floresta,osDuas-Pernasnuncateriaminvadidonossasterrasaesseponto.EntãoPatadeFogoouviuomiadocalmodeFolhaManchada:–SeoClã

dos Tigres andasse por estas florestas, nós tampouco teríamos instaladoaquionossoterritório.–OqueeraoClãdosTigres?–perguntouummiadobaixinho.Patade

Fogo viu que se tratava de um pequeno aprendiz malhado de um dosoutrosclãs,sentadoaoseulado.– O Clã dos Tigres foi um dos maiores clãs de grandes felinos que

andavamnesta floresta–explicoucalmamentePataCinzenta.–Sãogatosdanoite,grandescomocavalos,comlistraspretasretintas.EháoClãdosLeões.Eles…–PataCinzentahesitou,franzindoatestaaotentarlembrar.–Ah!Ouvifalardeles–miouofilhotemalhado.–Eramgrandescomoos

tigres,compeloamareloejubasdouradascomoraiosdosol.PataCinzentaconcordou.–Eaindahaviaaqueleoutro,ClãdosPintados

oucoisaparecida…–AchoquevocêestáfalandodoClãdosLeopardos,jovemPataCinzenta

–miouumavozatrásdeles.– Coração de Leão! – Pata Cinzenta saudou o mentor com um toque

afetuosodonariz.Coração de Leão balançou a cabeça, comdesprezo e deboche. – Vocês,

jovens, não conhecem a própria história? O Clã dos Leopardos tinha osfelinosmaisrápidos.Eramenormes,dourados,etinhampintasnegrasquesepareciamcompatas.Agradeçamaelespelavelocidadeepelacapacidadedecaçaqueagorapossuem.–Agradecer?Porquê?–perguntouogatomalhado.CoraçãodeLeãoolhouparaopequenoaprendizedisse:–Háemcadagatodehojeumvestígiodetodososgrandesfelinos.Não

seríamos caçadores noturnos sem nossos ancestrais do Clã dos Tigres, enossoamorpelocalordosolvemdoClãdosLeões.–Fezumapausa.–VocêéumaprendizdoClãdasSombras,nãoé?Quantasluasvocêtem?Ogato,meiosemjeito,olhouparaochão.SemfitardiretamenteCoração

deLeão,gaguejou:–Se-seisluas.– Bem pequeno para seis luas – murmurou o guerreiro. O tom era

delicado,masoolharerainquiridoresério.– Minha mãe também era pequena – disse o gato, nervoso. Então,

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inclinouacabeçaeseafastou,gingandoacauda levementemarrom,paradesaparecernamultidão.CoraçãodeLeãovirou-separaPatadeFogoePataCinzenta.–Elepode

ser pequeno, mas ao menos se mostrou curioso. Quem dera vocês doismostrassemomesmointeressepelashistóriasqueosanciãoscontam!– Desculpe, Coração de Leão – miaram os dois aprendizes, trocando

olharescheiosdedúvida.Coração de Leão grunhiu de forma amigável. – Ah, saiam daqui vocês

dois. Da próxima vez, espero que Estrela Azul arrume aprendizes queapreciemoqueouvem.–Comummiadodesanimado,espantou-osdali.–Venha–ronronouPataCinzenta,quandosaíam.–Vamosverondeestá

PataNegra.Ele estava no meio de um grupo de aprendizes loucos para saber da

históriadabatalhacomoClãdoRio.–Vamos,PataNegra!Conteoqueaconteceu!–gritouumagatamiúda,

pretaebranca.PataNegra,tímido,movimentouospésesacudiuacabeça.–Conte,PataNegra!–insistiuumoutrogato.OaprendizolhouàvoltaeviuPatadeFogoePataCinzentanocantodo

grupo.PatadeFogofezumsinalcomacabeça,paraencorajá-lo.PataNegrabalançouacauda,agradecido,ecomeçouacontar.No início se atrapalhou um pouco, mas, à medida que prosseguia, o

temorfoidesaparecendodavozeeleconquistouopúblico,quearregalavaosolhosmaisemais.– Havia pelo voando para todo lado. O sangue se espalhava pelas

amoreiras, vermelho vivo contra o verde. Tinha acabado deme livrar deumgatoenorme,quesaiuguinchandoparadentrodosarbustos,quandoochãotremeueouviogritodeumguerreiro.EraCoraçãodeCarvalho!RaboVermelhopassoucorrendopormimcomabocapingandosangue,opelorasgado, gritando que Coração de Carvalho estava morto. Então, saiucorrendoparaajudarGarradeTigre,quelutavacomoutroguerreiro.–QuemdiriaquePataNegraera tãobomcontadordehistórias–Pata

Cinzenta,impressionado,comentoubaixinhocomPatadeFogo.MasPatadeFogoestavapensandoemoutracoisa.Oqueforamesmoque

PataNegrahaviadito?RaboVermelhomataraCoraçãodeCarvalho?Mas,deacordocomGarradeTigre,CoraçãodeCarvalhomataraRaboVermelho

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eele,GarradeTigre,tinhamatadoCoraçãodeCarvalho,comovingança.– Se Rabo Vermelho matou Coração de Carvalho, quem matou Rabo

Vermelho?–PatadeFogocochichoucomPataCinzenta.– Se quem fez o quê? – Pata Cinzenta repetiu, distraído. Não estava

prestandomuitaatenção.PatadeFogobalançoua cabeçapara colocaras ideiasemordem.Pata

Negradeveter-seenganado,pensou.DeveterqueridodizerGarradeTigre.Pata Negra estava chegando ao final da história. – Finalmente, Rabo

Vermelhoagarrouacaudadogatochorosoeconseguiuafastá-lodeGarradeTigree,comaforçadetodooClãdosTigres,atirou-onosarbustos.PatadeFogopercebeuuma sombra semexendo.Olhou ao redor e viu

GarradeTigrenãomuitolonge.OguerreiroestavaobservandoPataNegracomumolhardeferro.Semsedarcontadapresençadomentor,oaprendizcontinuou respondendo às inúmeras perguntas de sua entusiasmadaplateia.–QuaisforamasúltimaspalavrasdeCoraçãodeCarvalho?–Éverdadequeelenuncatinhaperdidoumabatalha?Pata Negra respondia prontamente, em voz alta e clara, os olhos

brilhando.MasquandoPatadeFogofitouGarradeTigre,percebeuoolharterríveldoguerreiroeacaratransfiguradapelaraiva.EraevidentequeelenãoestavagostandonadadahistóriadePataNegra.PatadeFogoiacomeçarafalaralgumacoisaparaPataCinzentaquando

umgritoanunciouquetodososfelinosdeviamficarquietos.PatadeFogoficoualiviadoquandoPataNegrafinalmentecalouabocaeGarradeTigresefoi.Pata de Fogo procurou ver de onde viera o grito. Contra a luz da lua,

percebia-seasilhuetadetrêsgatossentadosnoaltodaPedraGrande.EramEstrelaAzul,EstrelaPartidaeEstrelaTorta.Os líderes iam começar a reunião. Mas onde estava o líder do Clã do

Vento?–ElesnãovãocomeçarareuniãosemEstrelaAlta,vão?–PatadeFogo

cochichou.–Nãosei–murmurouPataCinzenta.– Você viu? Não há nenhum gato do Clã do Vento aqui – observou,

baixinho,outroaprendizdoClãdoRio,dooutroladodePatadeFogo.Todosdeviamestarcomentandoamesmacoisa,imaginouPatadeFogo.

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Os outros gatos foram se reunindo abaixo da Pedra Grande, com ummurmúrioinquietopresonagarganta.–Aindanãopodemoscomeçar–umavozsobrepôs-seaobarulho.–Onde

estãoosrepresentantesdoClãdoVento?Precisamosesperaratéquetodososclãsestejampresentes.Noaltodarocha,EstrelaAzuldeuumpassoàfrente.Apelagemcinzaera

quasebranca sobobrilhoda lua. – Sejambem-vindos, gatosde todososclãs – miou com a voz clara. – É verdade que o Clã do Vento não estápresente,masEstrelaPartidadesejafalar,aindaassim.Estrela Partida, sem fazer barulho, colocou-se ao lado de Estrela Azul.

Observouamultidãoporalgunsinstantes,comosolhoscordelaranjaembrasa.Respiroufundoecomeçou:–Amigos,estouaquihojeparafalarcomvocêsarespeitodasnecessidadesdoClãdasSombras…Foiinterrompidoporvozesimpacientesqueselevantaram.–OndeestáEstrelaAlta?–umgatoperguntou.–OndeestãoosguerreirosdoClãdoVento?–outrogritou.Estrela Partida estirou totalmente o corpo e a cauda chicoteou de um

ladoparaooutro.Comavozcheiadeameaça,grunhiu:–ComolíderdoClãdasSombras,tenhoodireitodefalaraqui!Amultidão fezumsilênciodesconfortável.PatadeFogosentiunoaro

cheiroforteeacredomedo.EstrelaPartidavoltouauivar.–Todossabemosqueostemposdifíceisda

estação sem folhas e o renovo tardio deixarampoucas presas emnossaszonasdecaça.MastambémsabemosqueoClãdoVento,oClãdoRioeoClãdoTrovãoperderammuitosfilhotesduranteotempofrio,quechegoutãotardenestaestação.OClãdasSombrasnãoperdeufilhotes.Resistimosbemao vento frio donorte.Nossos filhotes são, desdequenascem,maisfortes que os de vocês. Com isso, temos muitas bocas para alimentar epouquíssimaspresasparasatisfazê-las.Amultidão,aindaemsilêncio,ouviacomansiedade.– As necessidades do Clã das Sombras são simples. Para sobreviver,

precisamos expandir nossas zonas de caça. É por isso que insisto quepermitamaosguerreirosdoClãdasSombrascaçarnoterritóriodevocês.Umgritosurdodeespantopercorreuaaudiência.–Partilharaszonasdecaça?–perguntou,irado,GarradeTigre.–Issonuncaaconteceu!–indignou-seumarainhaatartarugadadoClãdo

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Rio.–Osclãsnuncapartilhariamdireitossobreacaça!– O Clã das Sombras deve ser punido porque nossos bebês são mais

fortes?–disseEstrelaPartidadoaltodaPedraGrande.–Vocêsqueremquefiquemosolhandoenquantonossosjovensmorremdefome?Vocêstêmdedividirconoscooquepossuem.– Como assim, temos? – disparou Orelhinha, furioso, lá de trás da

multidão.– É. Têm de partilhar – repetiu Estrela Partida. – O Clã do Vento não

conseguiu entender a situação. No final, tivemos de despejá-lo do seuterritório.Gritosindignadospercorreramamultidão,masouivodeEstrelaPartida

foimaisalto.–Senecessário,vamosexpulsarvocêstambémdassuaszonasdecaçaparaalimentarnossosfilhotesfamintos.Houveumsilêncio instantâneo.Dooutro ladodaclareira,PatadeFogo

ouviuumaprendizdoClãdoRiocomeçaramurmuraralgumacoisa,maslogoumgatomaisvelhoofezcalar.Satisfeitoporconseguiraatençãodosfelinos,EstrelaPartidacontinuou:

–Acadaano,osDuas-Pernasdanificammaisfaixasdonossoterritório.Aomenos um clã deve permanecer forte, para que todos os outros possamsobreviver. O Clã das Sombras prospera enquanto vocês encontramdificuldades.Epodechegarahoraemquesejanecessáriodarmosproteçãoavocês.– Você duvida da nossa força? – protestou Garra de Tigre. Os olhos

pálidos fuzilaram ameaçadoramente o líder do Clã das Sombras; seusombrospoderosos,tensos,tremiam.–Nãopeçorespostasagora–disseEstrelaPartida, ignorandoodesafio

doguerreiro.–Quecadaumváemboraepensenasminhaspalavras.Mastenhamemmenteoseguinte:vocêspreferempartilharaspresasouseremdespejados,ficandosemcasaefamintos?Guerreiros, anciãos e aprendizes se entreolharam sem conseguir

acreditar.Napausaansiosaque se seguiu,EstrelaTorta seadiantou. – JáconcordeiemconcederaoClãdasSombrasalgunsdireitosdecaçanorioquecortaonossoterritório–mioucalmamente,olhandoparaseuclã.SentimentosdehorrorehumilhaçãopercorreramosgatosdoClãdoRio,

aoouviremaspalavrasdolíder.–Nãofomosconsultados!–gritouumgatomalhadodecinza-prata.– Acho que é omelhor para o nosso clã. Para todos os clãs – explicou

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EstrelaTorta,comavozcheiaderesignação.–Hámuitospeixesnorio.Émelhorpartilharnossaspresasdoquederramarsanguelutandoporelas.–EoClãdoTrovão?–reclamouOrelhinha.–EstrelaAzul,vocêtambém

concordoucomessaexigênciaultrajante?EstrelaAzul,segura,enfrentouoolhardovelhofelino.–Nãofiznenhum

acordocomEstrelaPartida;sódissequeiadiscutirapropostacommeuclãdepoisdaAssembleia.–Bom,aomenos jáéalgumacoisa–dissePataCinzentanoouvidode

PatadeFogo.–VamosmostraraelesquenãosomostãobonzinhosquantooscovardesdoClãdoRio.EstrelaPartidavoltouafalar,comavozásperaemtomarroganteeforte

depoisdarendiçãodeEstrelaTorta.–Tambémtragonotíciasimportantespara a segurança de seus filhotes. Uma gata do Clã das Sombras foidesonesta e quebrou o código dos guerreiros. Nós a expulsamos doacampamento, mas não sabemos onde está agora. É uma velha criaturaesquálida,mascomumamordidadignadoClãdosTigres.OpelodePatadeFogoseeriçou.SeráqueelesereferiaaPresaAmarela?

Esticouasorelhas,curiosoparaouvirmais.–Estouavisandoqueéperigosa.Nãolhedeemabrigo–EstrelaPartida

fezumapausateatral.–Enquantonãoforapanhadaemorta,aconselho-osavigiaremseusfilhotesbemdeperto.PelosgrunhidosnervososquebrotaramdagargantadosgatosdoClãdo

Trovão, Pata de Fogo percebeu que também tinham pensado em PresaAmarela. A gata corajosa nada fizera para agradar a seus anfitriõesrelutantes,eoaprendizimaginavaquenãoiademorarmuitoparasecriarumsentimentodeódiocontraela–aspalavrasdeuminimigodetestávelcomoEstrelaPartidajáseriamsuficientes.OsguerreirosdoClãdasSombrascomeçaramaseretirar.EstrelaPartida

desceu da Pedra Grande e foi logo rodeado por seus guerreiros, que oescoltaram na saída das Quatro Árvores, de volta ao seu território. Osdemais guerreiros do Clã das Sombras logo os seguiram, entre eles opequeninogatomalhado inquiridoantesporCoraçãodeLeão.Mas,entreos outros aprendizes do Clã das Sombras, o felino não parecia mais tãopequeno; todos tinham uma aparência diminuta e desnutrida, maisparecendofilhotesdetrêsouquatroluasdoqueaprendizesjácriados.–Oquevocêachadissotudo?–miou,baixinho,PataCinzenta.PataNegrapulouantesquePatadeFogopudesseresponder.–Oquevai

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aconteceragora?–miou,comopeloeriçadoemsinaldealarmeeosolhosmaisesbugalhadosdoquenunca.PatadeFogonãorespondeu.Tentavaouviroquediziamosanciãosdo

ClãdoTrovãoreunidosaliperto.–EledeviaestarfalandodePresaAmarela–observouOrelhinha.–ElarealmenteatacouofilhotemaisnovodeFlorDouradanooutrodia

– murmurou, lúgubre, Cauda Sarapintada. Era a mais velha rainha doberçárioeprotegiabravamentetodososfilhotes.–Enósadeixamoslá,comoacampamentopraticamentesemproteção–

grunhiuCaolhaque,pelaprimeiravez,pareceunãoternenhumproblemaparaouvirtudooquesedizia.–Tenteiavisarqueelaeraumperigoparanós–disseRiscadeCarvão.–

EstrelaAzulprecisadarouvidosàrazãoagoraeselivrardePresaAmarelaantesqueelamachuquealgumadenossascrianças.Garra de Tigre foi até o grupo. – Precisamos voltar imediatamente ao

acampamentoeresolverasituaçãocomessavilã!–exclamou.PatadeFogonãoparouparaouvirmais. Sua cabeçagirava. Leal como

eraaoclã,simplesmentenãopodiaacreditarquePresaAmarelafosseumperigo para as crianças. Temendo pelo destino da gata, queimando comperguntas que somente ela poderia responder, o aprendiz se afastou dePataCinzentaedePataNegrasemnadafalar.Subiupelaencostae seembrenhouna floresta.Teria seenganadocom

PresaAmarela?Seaalertassequantoaoperigoqueestavacorrendo,poriaemriscosuaprópriasituaçãonoClãdoTrovão?Mesmoquesemetesseemalgum tipo de problema, precisava saber dela a verdade antes que osoutrosgatosvoltassemaoacampamento.

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CAPÍTULO13

PATADEFOGOFOIatéabeiradaravinae,delá,olhouoacampamento.Estavaarquejandoetinhaaspatasescorregadiasporcausadoorvalho.Farejouoar.Estavasozinho.AindahaviatempoparafalarcomPresaAmarelaantesque os outros voltassem da Assembleia. Sem fazer barulho, desceu aencostarochosaeescorregoupelotúneldetojosemsernotado.Oacampamentoestavasilenciosoecalmo,apesardoressonardosgatos

quedormiam.PatadeFogorapidamenterastejoupelabeiradaclareiraatéo ninho de Presa Amarela. A velha curandeira estava enroscada em suacamademusgo.– PresaAmarela –murmurou, num tomde urgência. – PresaAmarela!

Acorde,éimportante!Osolhoscordelaranjaseabriramebrilharamnoluar.–Eunãoestava

dormindo–mioutranquilamenteagata,quepareciacalmaealerta.–Vocêveio direto da Assembleia para falar comigo? Isso quer dizer que vocêouviu.–Elapestanejoueolhouparaooutro lado.–EntãoEstrelaPartidamanteveapromessa.–Quepromessa?–perguntouoaprendiz,confuso.PresaAmarelaparecia

sabermaisdoqueelesobreoqueestavaacontecendo.–Onobre líderdoClãdasSombrasprometeumeexpulsardequalquer

territóriodosclãs–agatarespondeusecamente.–Oqueeledisseameurespeito?–Elenosadvertiuqueosfilhotesestariamemperigoenquantodéssemos

abrigoaumavilãdoClãdasSombras.Nãomencionouseunome,masosgatos do Clã do Trovão adivinharam de quem estava falando. Precisa iremboraantesqueosoutrosvoltem.Vocêestáemperigo!– Quer dizer que acreditaram em Estrela Partida? – Presa Amarela

abaixouasorelhasebalançouacaudacomraiva.–Acreditaram!–PatadeFogomiou,apressado.–RiscadeCarvãodisse

quevocê éperigosa.Osoutros gatos estão commedodoque vocêpossafazer.GarradeTigreestáplanejandovoltare…nãosei…Achomelhorvocêiremboraantesqueelechegue!Ao longe, Pata de Fogo escutava os gritos de gatos zangados. Presa

Amarela, obstinada, tentou ficar de pé. O aprendiz deu-lhe um pequenoempurrão para ajudá-la a se levantar. Sua cabeça rodopiava com tantasperguntas. – O que Estrela Partida quis dizer quando nos advertiu para

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vigiar de perto os filhotes? – não pôde deixar de perguntar. – Você fariamesmoalgumacoisaassim?–Euoquê?–Maltratarianossosfilhotes?PresaAmareladilatouasnarinaseolhoufirmeparaPatadeFogo.–Você

achaisso?Eles se encararam sem vacilar. –Não. Não acredito que você tivesse a

coragemdemachucar um filhote.Mas por que Estrela Partida diria umacoisadessas?O barulho dos gatos se aproximava e, com ele, odores de agressão e

raiva.PresaAmarelaolhavaassustadadeumladoparaoutro.–Vá!Válogo!–PatadeFogoaapressou.AsegurançadePresaAmarela

eramaisimportantedoqueacuriosidadedele.Masagatapermaneceuondeestavaeofitou.Derepente,umardecalma

tomoucontadeseusolhos.–PatadeFogo,vocêacreditaquesouinocenteeagradeço por isso. Se você acredita em mim, talvez os outros tambémacreditem.SeiqueEstrelaAzuléjustaevaimeouvir.Nãopossofugirparasempre.Souvelhademais.Vouficaraquieenfrentaradecisãodoseuclã.–Elasuspirouedeixouocorpocairemseusquadrisossudos.–Mas,eGarradeTigre?Eseele…?–Eleécabeça-duraesabeopoderqueexercesobreosoutrosgatosdo

clã,queoadmiram.MasatéelevaiobedecerEstrelaAzul.O farfalharnavegetaçãoalémdas fronteirasdoacampamento indicava

queosfelinosestavamquasenaentrada.– Vá embora, Pata de Fogo – sibilou Presa Amarela,mostrando-lhe os

dentes escurecidos. – Não arrume problemas para você por estar aquicomigoagora.Nãohánadaquepossafazerpormim.Confienasualíderedeixequeeladecidaqualseráomeufim.PatadeFogopercebeuquePresaAmarelaestavadecidida.Tocoucomo

narizapelagemmaltratadadagatae, emsilêncio,penetrounas sombrasparaobservar.Pelos tojos vinham os gatos, Estrela Azul à frente, acompanhada de

CoraçãodeLeão,comPeledeGeadaePeledeSalgueirologoatrás.PeledeGeadaseafastoudatropaecorreuatéoberçário,comapelagemdacaudaeriçadaemalerta.GarradeTigreeRiscadeCarvãoentrarampelaclareira,ombroaombro,carasamarradas.Osoutrosvinhamatrás;osúltimoseram

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Pata Negra e Pata Cinzenta. Assim que viu os amigos, Pata de Fogo foiencontrá-los.– Você foi avisar Presa Amarela, não foi? – Pata Cinzenta perguntou

baixinho.–Fui,sim–PatadeFogoadmitiu.–Maselanãovaiembora.Confiaque

EstrelaAzulvaitratá-lacomjustiça.Alguémsentiuaminhafalta?–Sónós–PataNegrarespondeu.Os gatos que tinham ficado no acampamento começaram a acordar.

Deviamterpercebidoocheirodeagressãoeouvidoatensãonasvozesdosfelinosquevoltavam,pois todoschegaramcorrendoàclareira,decaudaslevantadas.–Oqueaconteceu?–perguntouumguerreiromalhadochamadoVento

Veloz.–EstrelaPartidaexigiudireitosdecaçaparaoClãdasSombrasnonosso

território! – explicou Rabo Longo em voz alta para que todos os gatosouvissem.– E nos advertiu sobre uma vilã que vai machucar nossas crianças –

acrescentouPeledeSalgueiro.–DeveserPresaAmarela!Miadosderaivaeansiedadesurgiramnamultidão.– Silêncio! – ordenou Estrela Azul, subindo na Pedra Grande.

Instintivamente,osgatosseposicionaramdiantedalíder.Umgritoagudoealto fez todosviraremacabeçanadireçãodaárvore

caída onde os anciãos dormiam. Garra de Tigre e Risca de Carvãoarrastavam Presa Amarela do ninho com brutalidade. Ela guinchavafuriosamenteenquantoapuxavamatéaclareira,paradeixá-laemfrenteàPedraGrande.PatadeFogosentiuatensãotomarcontadecadamúsculodoseucorpo.Sempensar,agachou,prontoparapularnosperseguidoresdePresaAmarela.–Espere,PatadeFogo–falouPataCinzentanoouvidodoamigo.–Deixe

queEstrelaAzulcuidedisso.–Oqueestáacontecendo?–perguntoualíder,pulandodaPedraGrande

eencarandoosguerreiros.–Nãodeinenhumaordemparaatacaremnossaprisioneira.GarradeTigreeRiscadeCarvãoimediatamentesoltaramPresaAmarela,

queseagachounaterra,reclamandoecuspindo.PeledeGeada,chegandodoberçário,abriucaminhoecolocou-seàfrente

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dos gatos. – Chegamos a tempo –miou com voz assustada. – Os filhotesestãoasalvo!–Claroqueestão!–disparouEstrelaAzul.Pele de Geada pareceu surpresa. – Mas… você vai expulsar Presa

Amarela,nãovai?–miou,comosolhosazuisarregalados.– Expulsar Presa Amarela? – disparou Risca de Carvão, mostrando as

garras.–Devemosmatá-laagora!EstrelaAzulfixouosolhosazuispenetrantesnacarazangadadeRiscade

Carvão.–Eoqueelafez?–alíderperguntou,comumacalmaglacial.PatadeFogoprendeuarespiração.–VocêestavanaAssembleia!EstrelaPartidadissequeela…–começou

RiscadeCarvão.– Estrela Partida disse apenas que existe uma vilã em algum lugar da

floresta –miouEstrelaAzul, coma voz tranquila,mas ameaçadora. –Elenão mencionou o nome de Presa Amarela. Os filhotes estão a salvo.Enquantoestivernomeuclã,elanãoserámaltratadadeformaalguma.As palavras foram recebidas com silêncio e Pata de Fogo respirou

aliviado.PresaAmarelaolhouparaEstrelaAzuleestreitouosolhos,comrespeito

–Sevocêquiser,vouemboraagora,EstrelaAzul.–Nãoénecessário.Vocênadafezdeerrado.Estaráasalvoaqui.–Alíder

olhouparaamultidãoquerodeavaPresaAmarelaemiou:–Estánahoradediscutirmos a real ameaça ao nosso clã: Estrela Partida. Já começamos anosprepararparaumataquedoClãdasSombras–EstrelaAzulcomeçou.–Vamos continuar com os preparativos e patrulhar nossas fronteiras commais frequência.OClãdoVentose foi.OClãdoRioconcedeudireitosdecaçaparaosguerreirosdoClãdasSombras.OClãdoTrovãoestásozinhocontraEstrelaPartida.Um murmúrio de desconfiança correu entre todos, e Pata de Fogo,

ansioso,sentiuapelagemeriçar.– Então não vamos concordar com as exigências de Estrela Partida? –

miouGarradeTigre.–Osclãsnuncapartilharamdireitosdecaça–respondeuEstrelaAzul.–

Sempreconseguiramsemanternosprópriosterritórios.Nãohárazãoparaissomudar.–GarradeTigreaprovoucomacabeça.– Mas temos condições de nos defender contra um ataque do Clã das

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Sombras?–perguntoua voz trêmuladeOrelhinha. –OClãdoVentonãoconseguiu!OClãdoRionãovaisequertentar!EstrelaAzulfitouosvelhosolhosdoguerreiro.–Precisamostentar.Não

vamosdesistirdonossoterritóriosemluta.Por toda a clareira Pata de Fogo viu os gatos demonstrando

concordância.–IreiatéaPedradaLuaamanhã–anunciouEstrelaAzul.–Osguerreiros

doClãdasEstrelasvãomedaraforçadequeprecisoparalideraroClãdoTrovão nestes tempos sombrios. Vocês todos agora precisam descansar.Todostemosmuitooquefazerquandoamanhecer.AgoraquerofalarcomCoraçãode Leão. – Semmais nada dizer, virou-se e foi emdireção à suatoca.Pata de Fogo notou o olhar de admiração de alguns felinos quando

Estrela Azulmencionou a Pedra da Lua. Os gatos do clã rapidamente sereuniramemgrupos,miandobaixinho,agitados.–OqueéaPedradaLua?–PatadeFogoperguntouaPataCinzenta.–Éumarochaqueficasobaterraequebrilhanoescuro–respondeuo

amigo.Suavozestavaroucadeespanto.–TodososlíderesdeclãprecisampassarumanoitenaPedradaLuaquandosãoescolhidos.Lá,osespíritosdoClãdasEstrelasfalamcomeles.–Falamoquê?PataCinzentafranziuatesta.–Nãosei–admitiu.–Sóseiqueosnovos

líderesprecisamdormirpertodapedrae,enquantodormem,têmsonhosespeciais. Depois disso, recebem o dom das nove vidas e o nome de“estrela”.PatadeFogoobservouPresaAmarelaretornarmancandoparaseuninho

àsombra.PareciaqueotratamentoríspidodeGarradeTigretinhapioradosuas velhas feridas. Ao voltar para a toca dos aprendizes, Pata de Fogodecidiu que, pela manhã, ia pedir a Folha Manchada mais sementes depapoula.– Então, o que aconteceu? –miouPata dePoeira, ansioso, colocando a

cabeçaparaforadatoca.PareciateresquecidosuasdiferençascomonovoaprendiznaansiedadedesabersobreaAssembleia.– É comoRabo Longo disse. Estrela Partida exigiu direitos de caça… –

começouPataCinzenta.Pata deAreia e Pata de Poeira sentaram e ouviram,mas Pata de Fogo

observavaoacampamento.ViaassilhuetasdeEstrelaAzuledeCoraçãode

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Leãoque,sentados ladoa lado,na tocada líder,conversavamepareciampreocupados.EntãopercebeuapequenaformadePataNegranaentradadatocados

guerreiros,GarradeTigreaolado.ViuasorelhasdePataNegraabaixaremde susto diante da ferocidade do guerreiro, que se debruçava sobre opequeno gato, duas vezes maior do que ele, com seus olhos e dentesbrilhando ao luar. O que estaria dizendo? Pata de Fogo estava quase seaproximandoparaouvirquandoPataNegra recuou,virou-see, correndo,atravessouaclareira.PatadeFogocumprimentouPataNegraquechegouàtoca,masoamigo

malonotou,entrandosemdizerpalavra.PatadeFogoselevantouparasegui-loquandoviuqueCoraçãodeLeão

seaproximava.– Bem – miou o representante do Clã do Trovão, dirigindo-se, em

passadaságeis,atéosaprendizes.–ParecequePatadeFogo,PataCinzentaePataNegravãopassaraumestágioimportantedotreinamento.–Qual?–perguntou,empolgado,PataCinzenta.–EstrelaAzulquerqueostrêsaacompanhemnajornadaatéaPedrada

Lua!–disseCoraçãodeLeãosemdeixardeperceberodesapontamentonorostodePatadePoeiraedePatadeAreia,poisacrescentou:–Vocêsdoisnão se preocupem; seu dia logo chegará. Por enquanto, o Clã do Trovãoprecisadaforçaedahabilidadedevocêsnoacampamento.Eutambémvouficaraqui.PatadeFogoolhouparaCoraçãodeLeãoedepoisparaalíder.Elaiade

grupo em grupo de guerreiros, passando instruções. Por que o haviaescolhidoparaaviagem?–pensava.–Elaquerquevocêsdescansemagora– continuouCoraçãodeLeão. –

Mas, primeiro, devem ir até Folha Manchada pegar as ervas de que vãoprecisarparaaexpedição.Éumlongocaminho.Vãonecessitardealgumacoisapara lhesdar forçae reduzir seuapetite.Haverápouco tempoparacaçar.PataCinzentaaquiesceu;PatadeFogodesviouoolhardeEstrelaAzule

tambémmeneouacabeça.–OndeestáPataNegra?–perguntouCoraçãodeLeão.–Jáestánoninho–respondeuPatadeFogo.–Ótimo.Deixemquedurma.Vocêspodemapanharaservasparaele–

miouCoraçãodeLeão.–Descansembem.Partirãoaoamanhecer.–Sacudiu

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acaudaevoltouparaatocadeEstrelaAzul.– Bem – miou Pata de Areia. – É melhor então irem falar com Folha

Manchada.PatadeFogoprestouatençãoparaversenotavaalgumamargornavoz

dagata,masnãohavia.Nãoerahorapara ciúmes.Todosos gatosdo clãpareciamestarunidoscontraasameaçasdoClãdasSombras.Pata de Fogo e Pata Cinzenta foram depressa até a toca de Folha

Manchada.Otúneldesamambaiasestavaescuro.Nemmesmoaluacheiaconseguiapenetrarnacoberturaespessa.A curandeira parecia esperar por eles quando surgiram na clareira

iluminadapelalua.–Vierambuscaraservasparaaviagem–elamiou.–Sim,obrigado–respondeuPatadeFogo.–EachoquePresaAmarela

precisa de mais sementes de papoula. Parece que as feridas a estãoincomodando.– Vou levar algumas para ela depois que vocês saírem. As ervas da

viagemjáestãoprontas.FolhaManchada indicouumapilhademaçosdeervas cuidadosamente

amarrados.–Hásuficienteparaostrês.Aervaverde-escuravaievitarquesintam fomedurante a viagem.A outra lhes dará força.Devem comer asduasumpoucoantesdesair.Nãosãotãogostosasquantopresafresca,masosabornãovaidurarmuitotempo.– Obrigado, Folha Manchada – miou Pata de Fogo, inclinando-se para

pegar um dos pacotes. Quando ele abaixou a cabeça, FolhaManchada seesticouedelicadamenteesfregouofocinhonabochechadoaprendiz.PatadeFogosentiuseucheirodoceequenteeronronouemagradecimento.PataCinzentapegouosoutrosdoispacoteseosamigosvoltaramatravés

dotúnel.–Boasorte!–desejouacurandeira.–Viajemempaz!

Chegaramàentradadatocadosaprendizeselargaramospacotes.– Espero que essas ervas não tenham um gosto ruim demais! –

murmurouPataCinzenta.–Deveseruma longacaminhadaatéaPedradaLua.Nuncanosderam

ervasantes.Vocêsabeondeé?–perguntouPatadeFogo.–Alémdoterritóriodoclã,emumlugarchamadoPedrasAltas.Ficasob

ochão,emumacavernaquechamamosBocadaTerra.

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– Você nunca esteve lá? – perguntou Pata de Fogo, impressionado porPataCinzentasabertantoarespeitodaquelelugarmisterioso.–Nunca,mas todososaprendizesprecisam fazeraviagemantesdese

tornaremguerreiros.EssepensamentofezosolhosdePatadeFogobrilharemdeempolgação,

eelenãopôdeevitarumacertaaltivez.–Nãoelevemuitosuasesperanças.Aindatemosdeacabarotreinamento

–dissePataCinzenta,comoselesseospensamentosdoamigo.Atravésdacobertadefolhas,PatadeFogoolhouparaasestrelasnocéu

escuro. A lua alta tinha passado. – Precisamos dormir umpouco –miou.Maspensouque seriamuito difícil pegarno sono coma aventuradodiaseguinterodandonacabeça.IràAssembleia,fazeraviagematéaPedradaLua–comopareciadistanteagoraavidadegatinhodegente!

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CAPÍTULO14

OARFRIOGELAVAosossosdePatadeFogoeaescuridãooenvolvia.Elenadaouviaeocheirodemofodaterraúmidalheinundavaasnarinas.Derepentesurgiuàsua frenteumabrilhantebolade luz.PatadeFogo

abaixou a cabeça e apertou os olhos contra o clarão. A luz brilhava friacomo uma estrela; então se apagou, desaparecendo tão depressa quantosurgira.Denovonaescuridão,eleseviuna floresta.Sentiu-seconfortadopelosodoresfamiliaresdamata.Aoinalaroscheirosúmidosdavegetação,foitomadoporumasensaçãodecalma.Sem aviso, um terrível barulho surgiu das árvores. Pata de Fogo se

arrepiou com a gritaria de gatos apavorados saindo dos arbustos. Logoreconheceu a pelagem do Clã do Trovão quando os bichanos passaramcorrendo por ele. Estava grudado no chão, incapaz de se mexer. Depoisapareceramgrandes felinos, enormes guerreiros de pelo escuro, comumbrilho cruel nos olhos. Vinham estrondosamente na sua direção,esmagando a terra com patas gigantescas e garras de fora. Saindo dassombras,PatadeFogoescutouumgritodesesperado,cheiodedoreraiva.PataCinzenta!Pata de Fogo acordou, aterrorizado. O sonho se desfez; ficou com os

ouvidosretumbandoeopeloarrepiado.Quandoabriuosolhos,viuGarrade Tigre olhando para dentro da toca. Pata de Fogo levantou-se de umsalto,imediatamenteemalerta.–Algumacoisaerrada,PatadeFogo?–perguntouoguerreiro.–Foisóumsonho–oaprendizmurmurou.GarradeTigreolhou-o, intrigado, e entãogrunhiu:–Acordeosoutros.

Vamossairdaquiapouco.Do lado de fora da toca, o novo dia nascia glorioso e o orvalho se

espalhava nas samambaias. Quando o sol estivesse alto, o tempoesquentaria,mas a umidadedamanhã lembrava a Pata de Fogoquenãoestavalongeaépocadasfolhascaídas.Pata de Fogo, Pata Cinzenta e Pata Negra rapidamente engoliram as

ervas preparadas por Folha Manchada. Garra de Tigre e Estrela Azul osobservavam,prontosparapartir.Orestodoacampamentoaindadormia.–Ugh!–reclamouPataCinzenta.–Sabiaqueeramamargas.Porqueno

lugar dessas ervas não podíamos comer um camundongo gordo esuculento?

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– Essas ervas vão mantê-los sem fome por mais tempo – respondeuEstrela Azul. – E deixá-los mais fortes. Temos uma longa jornada pelafrente.–Jácomeuassuas?–PatadeFogoperguntou.–Nãopossocomer,poisestanoitevoupartilharsonhoscomoClãdas

EstrelasnaPedradaLua.–respondeuEstrelaAzul.Pata de Fogo sentiu uma comichão nas patas quando ouviu essas

palavras.Estavaloucoparacomeçarajornada.Comaluzdoamanhecereasvozesfamiliares,opavordosonhosefora.Ficaraapenasalembrançadaluzbrilhante;aspalavrasdeEstrelaAzulprovocaramneleumnovoarrepiodeempolgação.Oscincogatospassarampelotúneldetojosesaíramdoacampamento.CoraçãodeLeãoacabavadevoltarcomumapatrulhaedesejou:–Viajem

asalvo!EstrelaAzulocumprimentourespondendo:–Seiquepossoconfiarem

vocêparamanteroacampamentoseguro.CoraçãodeLeãoolhouparaPataCinzentae,abaixandoacabeça,disse:–

Lembre-sedequevocêéquaseumguerreiro.Nãoseesqueçadoque lheensinei.Pata Cinzenta olhou para o mentor com afeição. – Jamais esquecerei,

Coração de Leão – miou, esfregando a cabeça contra o pelo dourado doguerreiro.

VoltaramapercorrerarotanadireçãodasQuatroÁrvores.Eraamaneiramais rápida de entrar no território do Clã do Vento. As Pedras Altasficavamadiante.QuandoPatadeFogocontornoualateraldaveredanadireçãodaPedra

doConselho, ainda sentiaosodoresdaAssembleiadavéspera. Seguiuosoutros gatos pela clareira gramada, subindo a encosta do outro lado, nadireçãodoterritóriodoClãdoVento.Àmedidaquesubiam,oterrenocheiode arbustos ficava mais inclinado e mais cheio de pedras, obrigando osfelinosapulardeumaparaoutranalateralescarpadadopenhasco.PatadeFogoparouquandochegaramaoaltodomorro.À frentedeles,

avistava-seumextensoplanalto.Oventosopravaforteefirme,ondeandoagrama e dobrando as árvores. O solo era pedregoso; rochas nuaspontilhavamapaisagemaquieali.OaraindatraziaosodoresdoClãdoVento,maseramcheirosrançosos.

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MuitomaisfrescosealarmanteseramosindíciospungentesdeixadospelosguerreirosdoClãdasSombras.–TodososclãstêmdireitoàpassagemseguraparaaPedradaLua,maso

Clã das Sombras parece não ter mais nenhum respeito pelo código dosguerreiros; portanto, estejam alertas – advertiu Estrela Azul. – Mesmoassim,nãopodemoscaçarforadonossoterritório.Vamosseguirocódigodosguerreiros,aindaqueoClãdasSombrasoignore.Ogrupoatravessouoplanaltoenquantoosolnascia,seguindoastrilhas

entre as urzes. Pata de Fogo crescera acostumado a viver sob umacobertura de árvores. Sem essa sombra, sua pelagem cor de fogo ficavapesadaequente,ascostaspareciamqueimar.Eleagradeciapelabrisaquevinhadafloresta.Derepente,GarradeTigreparou.–Cuidado!–sibilou.–Sintoocheirode

umapatrulhadoClãdasSombras.PatadeFogoeorestodogrupolevantaramofocinhoeconfirmaramque

ocheirodosguerreirosdoClãdasSombrasviajavacomovento.– Eles estão contra o vento. Não vão saber que estamos aqui se

continuarmos a caminhar – miou Estrela Azul. – Mas precisamos nosapressar.Sepassaremànossafrente,vãonosdescobrir.AgoranãoestamoslongedafronteiradoterritóriodoClãdoVento.Apressaramopasso,pulandosobreasrochas,avançandosobreasurzes

decheirodoce.PatadeFogodavaumaspassadasefarejavaoar,olhandopor trás dos ombros, atento à patrulha do Clã das Sombras. Mas, aospoucos, o odor foi ficando mais fraco. Eles devem ter voltado, pensou,aliviado.Finalmente chegaram ao extremo do planalto. A paisagem mudara

radicalmente, de todo irreconhecível depois de ter sidomodificada pelosDuas-Pernas. Trilhas largas de terra cruzavam as campinas verdes edouradas, pontilhadas de pequenos capões, com ninhos dosDuas-Pernasaqui e ali entre os campos. A distância, Pata de Fogo viu um caminhofamiliar, largo e cinza, e o gosto ácido trazido pela brisa travou suagarganta.–ÉoCaminhodoTrovão?–perguntouaPataCinzenta.–É,sim.ElecomeçanoterritóriodoClãdasSombras.Vocêconseguever

asPedrasAltasatrásdele?Pata de Fogo olhou no horizonte distante. Num determinado lugar, a

terraáridanitidamenteseelevavaemponta.

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–EntãotemosdeatravessaroCaminhodoTrovão?–Issomesmo!–miouPataCinzenta,comavozforteeconfiante,quase

felizaodepararcomadifíciljornada.–Vamos!–miouEstrelaAzul,avançando.–Podemosestarláaonascer

dalua,semantivermosoritmo.Ogruposeguiualídermontanhaabaixo,afastando-sedasdesertaszonas

decaçadoClãdoVento,nadireçãodoterritóriodosDuas-Pernas,cobertodevegetação.Mantendo-sepertodoslimites,osfelinosmarchavam.Porumaouduas

vezesPatadeFogopercebeu cheirodepresavindodos arbustos,masaservas de FolhaManchada funcionavam bem para cortar o apetite. Aindasentia o sol quente nas costas, mesmo nas sombras das árvores dafronteira.RodearamumninhodosDuas-Pernas.Ficavanumaáreaampladepedra

branca e dura, com ninhos menores à volta. Abaixados, os felinosultrapassaram a cerca que circundava as pedras brancas. Voltaramcorrendo ao depararem, de repente, com uma barreira de latidos erosnados.Cães!OcoraçãodePatadeFogoquaseparou.Ogatoarqueouascostas,

arrepiadodofocinhoàcauda.GarradeTigreolhouatravésdacerca.–Tudobem!Estãoamarrados!–

avisou.Pata de Fogo olhou para os dois cães cujas patas raspavam o chão de

pedra,amenosdedezcaudasdedistância.Nãosepareciamnadacomoscachorros de estimação que viviam no jardins dos Duas-Pernas. Esses oencaravam com olhos selvagens, assassinos. Forçavam as guias e selevantavam nas patas traseiras. Grunhiam e latiam, abrindo a boca pararevelar dentes enormes, até que a voz de um Duas-Pernas invisívelmandou-oscalar.Osgatosforamemfrente.O sol estava começando a baixar quando chegaram ao Caminho do

Trovão. Estrela Azul mandou-os parar e esperar sob uma cerca. Com osolhoseagargantareclamandodosodores,PatadeFogoficouobservandoosgrandesmonstroscorrendodeláparacáàsuafrente.–Vamosumdecadavez–ordenouGarradeTigre.–Primeirovocê,Pata

Negra.–Não,GarradeTigre–EstrelaAzulinterrompeu.–Devoirprimeiro.Não

seesqueçadequeestaéaprimeiratravessiadosaprendizes.Deixequeeu

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mostrocomosefaz.Pata de Fogo fixou o olhar na líder enquanto ela se dirigia à beira do

Caminho do Trovão e olhava para cima e para baixo. A gata esperoucalmamente que osmonstros passassem, um depois do outro, correndo,fazendoondularsuapelagem.Quandoobarulhoensurdecedorparouporummomento,elaatravessoudepressaparaooutrolado.–Vá,PataNegra;vocêjáviucomoé–ordenouGarradeTigre.Pata de Fogo viu os olhos do amigo se arregalarem de pavor. Sabia

exatamentequaleraasensação,poispercebiaoprópriocheirodemedo.Opequeno felino preto se dirigiu para a beira da estrada. O lugar estavacalmo,masPataNegrahesitou.–Vá!–ordenouGarradeTigredamargem.PatadeFogoviuosmúsculos

de Pata Negra se retesarem quando ele se preparava para correr. Foiquando o chão começou a tremer debaixo de suas patas. Um monstrosurgiu epassou zunindo.O gatonegro se encolheuporum instante,maslogoselançouemfrenteejuntou-seaEstrelaAzul.Ummonstrovindodaoutra direção espalhou poeira bemonde suas patas tinhampisado haviaapenas uma batida de coração. Com os pelos arrepiados, Pata de Fogorespiroufundoparaseacalmar.Pata Cinzenta teve sorte. Um período de calmaria permitiu que

atravessasseasalvo.ChegouavezdePatadeFogo.–Évocêagora–rosnouGarradeTigre.PatadeFogoolhouparaGarrade

TigreedepoisparaoCaminhodoTrovãoesaiudesobacerca.Esperounabeirada,comoEstrelaAzulhavia feito.Ummonstrovinhanasuadireção.PatadeFogoolhouparaele.Depoisdeste,pensou,eesperouqueacriaturapassasse. De repente seu coração pinoteou ao perceber que o monstrotinhasedesviadodoCaminhodoTrovãoevinhaquicandopelagrama.Bemna direção dele! UmDuas-Pernas gritava por uma abertura na lateral domonstro. Pata de Fogo pulou para trás, garras de fora, empurrado pelatempestadedevento causadapelomonstrodosDuas-Pernas, quepassourugindo, a um bigode de distância. Tremendo, o gato agachou na terra,olhos fixos no monstro, que voltou ao caminho e desapareceu. Com osangue fervendo nas orelhas, Pata de Fogo percebeu que o Caminho doTrovãoestavacalmonovamente;correndocomonuncaantesemsuavida,atravessouparaooutrolado.–Penseiquevocêfossevirarpresafresca!–gritouPataCinzentaquando

PatadeFogodespencouemcimadele,quaseonocauteando.

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– Eu também! – arfou Pata de Fogo, tentando parar de tremer. O gatovoltou-separaobservarGarradeTigredispararnadireçãodeles.–EssesDuas-Pernas!–desdenhouaochegaraooutrolado.–Querdescansarantesdecontinuar?–perguntouEstrelaAzulaPatade

Fogo.O gato olhou para cima e viu o sol baixo no céu. – Não, estou bem –

respondeu.Mastinhapuladotãofreneticamenteparafugirdomonstroquesentiaaspatasfracasedoloridas.Os felinos continuaram a caminhada, Estrela Azul à frente. A terra era

maisescuradaquele ladodoCaminhodoTrovão, e agrama,maisásperasob as patas. Àmedida que se aproximavamda base das Pedras Altas, agramadavalugaraumsoloáridoerochoso,comalgunstrechosdeurze.Oterreno subia na direção do céu. No alto da colina, rochas denteadasbrilhavam,cordelaranja,sobosol.Estrela Azul voltou a parar. Escolheu para sentar uma pedra aquecida

pelosol,achatadaelargabastanteparaqueoscincofelinosdescansassem,ladoalado.–Vejam–elamiou,apontandocomonariznadireçãodaencostaescura.

–ABocadaTerra.PatadeFogoolhouparacima.Obrilhodosolpoenteocegoueaencosta

ficouenvolvidaemsombras.Osgatosesperaramemsilêncio.Aospoucos,enquantoosolsepunhanas

PedrasAltas, Pata de Fogo começou a decifrar a entrada da caverna, umburacoquadradoenegroquebocejava,sombrio,sobumarcodepedras.–Vamosesperaratéquealuafiquemaisalta–mioualíder.–Setiverem

fome,podemcaçar;depois,descansemumpouco.PatadeFogoficousatisfeitopelaoportunidadedeacharcomida.Estava

faminto.PataCinzenta,tambémcomfome,pulounadireçãodeumamoitadeurzes,seguindoocheirodensodepresanoar.PatadeFogoePataNegraoseguiram,enquantoGarradeTigretomouadireçãooposta.EstrelaAzulficouondeestava, sentada imóvelesilenciosa,olhandosempiscarparaaBocadaTerra.Os três aprendizes voltaram commuitas presas frescas. ComGarra de

Tigreseagacharamnaencostarochosaefizeramumbanquete.Mas,apesardeacaçadatersidofácil,nenhumgatofaloumuito;oaraindaerapesado,cheiodetensãoeansiedade.Finalmente os felinos descansaram ao lado da líder, até o calor

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desaparecerdarochaondeestavamesombras friasenegrasdominaremtudo.SóentãoEstrelaAzulordenou:–Venham.Estánahora.

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CAPÍTULO15

ESTRELA AZUL SE levantou e começou a caminhar na direção da Boca daTerra.GarradeTigre,aseulado,acompanhavacadapassada.–Venha,PataNegra–PataCinzentaconvocouoamigo,aindasentadona

rocha, com olhos fixos nas pedras. Atendendo ao chamado, Pata Negralevantou-seecomeçouacaminhardevagar.PatadeFogopercebeuqueelequase não falara durante toda a jornada. Será que estava apenaspreocupadocomoClãdasSombrasouseriaalgumoutroproblema?OsfelinoslevaramapenasalgunsminutosparaalcançaraBocadaTerra.

PatadeFogo,da soleira, olhouparadentro.A escuridãoalémdoarcodepedras era maior do que a da noite mais cheia de nuvens. Estreitou osolhos,tentandoadivinharaondeotúnelialevar,masnadaconseguiuver.Ao ladodele,PataCinzentaePataNegra,nervosos,esticavamacabeça

para dentro e para fora da entrada. Até Garra de Tigre pareciadesconfortável ante o buraco negro. – Como vamos nos guiar nessaescuridão?–perguntou.– Vou achar o caminho – respondeuEstrelaAzul. – Sigammeu cheiro.

Pata Negra e Pata Cinzenta, fiquem aqui fora, de guarda. Pata de Fogo,venhacomigoecomGarradeTigreatéaPedradaLua.PatadeFogotremeudeemoção.Quantahonra!Ogatoolhoudeviéspara

GarradeTigre.Oguerreiro,orgulhoso,estavacomoqueixolevantado,masoaprendiz farejavaneleumcertocheirodemedo,queaumentouquandoEstrelaAzuldeuumpassonadireçãodaescuridão.GarradeTigrebalançouacabeçapoderosaeseguiualíder.Depoisdeum

ligeiroacenoaosoutrosaprendizes,PatadeFogoseguiuatrás.Dentrodacaverna,seusolhosaindanadapodiamperceber.Aescuridão

total e absoluta parecia estranha,mas ele ficou surpreso ao ver que nãotinhamedo.Avontadededescobriroquehaviaaliadianteeramaisforte.Oarfrioeúmidoentravaatravésdopeloespessoechegavaatéosossos,

enrijecendoosmúsculos.Nemasnoitesmaisfriaseramgeladascomooardacaverna.Estechãojamaisconheceuocalordosol,pensouPatadeFogo,tendo sob os pés a rocha lisa como gelo. A cada respiração, um arcongelanteenchiaseuspulmões,deixando-ozonzo.OaprendizseguiuEstrelaAzuleGarradeTigrepelaescuridão,guiando-

seapenaspeloolfatoepelo tato.Passaramporumtúnelquedesciacadavezmais,fazendocurvasparaumlado,depoisparaooutro.Osbigodesde

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Pata de Fogo tocavam a lateral da caverna, indicando-lhe onde andar eondevirar.SeunarizlhediziaqueEstrelaAzuleGarradeTigreestavamàfrente,aapenasumacaudadedistância.Continuavam andando.Quanto já percorremos?, perguntava-se Pata de

Fogo,quesentiuumacomichãonosbigodes.Oarnasnarinaspareciamaisfresco que antes. Voltou a farejar, aliviado por sentir o cheiro domundofamiliarnasuperfície:turfa,caçaeurza.Deviahaverumburaconotetodotúnel.–Ondeestamos?–miounaescuridão.– Entramos na caverna da Pedra da Lua – respondeu Estrela Azul

docemente.–Espereaqui.Logovaiserluaalta.PatadeFogosentounapedrafriaeesperou.Ouviaarespiraçãoregular

deEstrelaAzuleoarfarmaisrápidodeGarradeTigre,recendendoamedo.Desúbito,comumclarãomaisofuscantedoqueosolpoente,acaverna

seiluminou.OsolhosdePatadeFogoestavambemarregaladosdepoisdaescuridãodotúnel.Ele logoosfechouaosentira luz,brancae fria.Entãoabriu-osdevagar,emfendasestreitas,eperscrutouàfrente.Viuumarochabrilhante,quecintilavacomosefossefeitadeincontáveis

gotasdeorvalho.APedradaLua! PatadeFogoolhouà volta.Na luz friarefletidadapedra,identificouoslimitessombriosdeumacavernadetetoalto.APedradaLuaerguia-sedomeiodochão;tinhatrêscaudasdealtura.EstrelaAzulolhavaparacima,comopelocompletamentebrancosobo

brilhodaPedradaLua.Até apelagemescuradeGarradeTigrebrilhavacomo prata. Pata de Fogo seguiu o olhar da líder. No alto do teto, umaaberturarevelavaemumestreitotriânguloocéudanoite.O luar lançavapelo vão um raio de luz que chegava à Pedra da Lua, fazendo-a cintilarcomoumaestrela.Aoseulado,PatadeFogofarejouemGarradeTigreumcheirodemedo

crescente, que se tornou dominante. Será que o guerreiro percebia alialguma coisa a mais, algo realmente perigoso? Captou um movimentorápido,sentiuumapelagempassareouviuospassosdefugadeGarradeTigrevoltandocorrendoparaaentrada.–PatadeFogo?–chamouEstrelaAzul,calmaetranquila.– Estou aqui – ele respondeu, nervoso. O que teria amedrontado o

guerreiro?–EstrelaAzul?–voltouachamaroaprendiz,aonãoouvirresposta.Seu

coraçãodisparou,fazendoosangueestrondearnasorelhas.–Estátudobem,jovemguerreiro;nãotenhamedo–murmuroualíder.A

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voz calma o tranquilizou um pouco. – Acho que Garra de Tigre ficousurpresocomaforçadaPedradaLua.Nomundodecima,GarradeTigreéumguerreirodestemidoepossante,mas,aquiembaixo,ondeosespíritosdo Clã das Estrelas falam, um gato precisa de outro tipo de força. O quevocêsente,PatadeFogo?O aprendiz farejou o ar comvontade e obrigou-se a relaxar o corpo. –

Apenasminhaprópriacuriosidade–admitiu.–Ótimo–comentouEstrelaAzul.Pata de Fogo voltou a olhar a Pedra da Lua. Os olhos tinham se

acostumadoaobrilhoeelenãoestavamaisofuscado.Naverdade,apedraodeixava calmo. Com ummovimento da cauda, lembrou-se do sonho. Eraaquelaabrilhanteboladeluzquetinhavisto!Encantado,PatadeFogoobservouEstrelaAzuliratéapedraedeitar-se

aoladodela.AlíderesticouacabeçaetocouaPedradaLuacomofocinho.Poruminstante,seusolhosazuiscintilaramcomoreflexodapedra,antesque ela os fechasse. Descansou a cabeça sobre as patas; as pálpebras semexiam,aspatastremiamdevezemquando.Estariadormindo?EntãoPatade Fogo se lembrou das palavras de Pata Cinzenta: “os novos líderesprecisam dormir perto da pedra e, enquanto dormem, têm sonhosespeciais”.Esperou.Alinãofaziatantofrio,mas,mesmoassim,eletremia.Nãotinha

amenor ideia de quanto tempo havia passado,mas, de repente, a rochaparoudebrilhar.Acaverna,maisumavez,mergulhounaescuridão.PatadeFogoolhouparaaaberturanoteto.Aluatinhacaminhado,estavaforadevista.Sórestavampequeníssimasestrelasbrilhandonobreu.PatadeFogosóconseguiadiscernirolevecontornodalíder,deitadaao

ladodaPedradaLua.Queriachamá-la,masnãoousavaquebrarosilêncio.Depoisdemomentosintermináveis,elaochamou.–PatadeFogo?Você

aindaestáaí?–Avozpareciadistanteeagitada.–Estou,EstrelaAzul.–Elepercebeuqueelaseaproximava.–Depressa–elaciciou.PatadeFogosentiuapelagemdalíderroçá-loao

passar.–Precisamosvoltaraoacampamento.Pata de Fogo correu atrás de Estrela Azul, impressionado com a

velocidade com que ela se precipitava nomeio da escuridão. Seguia seucheiro às cegas, subindo cada vez mais através do túnel, até que ela oconduziuasalvoparaomundoexterno.

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Garra de Tigre os esperava na entrada, ao lado de Pata Cinzenta e PataNegra.Oguerreirotinhaaexpressãofriaeopeloligeiramenteeriçado;masestavasentado,imóvelesolene.–GarradeTigre–cumprimentouEstrelaAzul,semmencionarafugado

guerreirodasprofundezas.Elerelaxouumpoucoeperguntou:–Oquevocêficousabendo?–Devemosretornarimediatamenteaoacampamento–mioubrevemente

EstrelaAzul.PatadeFogopercebeuumolhardedesesperonosolhosdalíder.Agora

voltava-lhe a terrível lembrança do sonho: gatos que fugiam, guerreirosgrandes e escuros, o pranto terrível do infortúnio. O aprendiz tentouignoraromedogélidoquetomavacontadeseusmúsculoseseguiuEstrelaAzulquandoelaeosoutrosfelinosdesceramaencostasombria,afastando-sedaBocadaTerra.Seráqueavisãodopesadeloestavaprestesasetornarrealidade?

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CAPÍTULO16

VOLTARAMPELOCAMINHOporondetinhamvindo.Aluadesapareceraportrásde uma barreira de nuvens. Estava escuro,mas aomenos o Caminho doTrovãoseaquietara.Oúnicomonstroqueouvirampareciaestardistante.Osfelinosatravessaramjuntos,dirigindo-seàfronteiradooutrolado.PatadeFogo sentiaosmúsculos enrijecendode cansaçoàmedidaque

apressavam o passo. Estrela Azulmantinha um ritmo veloz, com o narizparaa frenteea caudaerguida.GarradeTigrecorriaa seu lado.PatadeFogo vinha um pouco atrás, com Pata Cinzenta; mas Pata Negra nãoconseguiaacompanharogrupo.–Mantenhaopasso,PataNegra!–resmungouPataCinzentaporsobreo

ombro.Pata Negra hesitou e então avançou, até alcançar os outros dois

aprendizes.–Vocêestábem?–perguntouPatadeFogo.– Estou, sim – resfolegou Pata Negra, sem olhar diretamente para o

amigo.–Sóumpoucocansado.Desceramumfossoprofundoesubiramdooutrolado.– O que Garra de Tigre disse quando saiu da caverna? – Pata de Fogo

miou,tentandonãoparecercuriosodemais.–Elequeriatercertezadequeaindaestávamosguardandoaentrada–

respondeuPataCinzenta.–Porquê?Pata de Fogo hesitou, mas perguntou: – Você percebeu algum cheiro

esquisitonele?– Só o cheiro úmido da velha caverna – respondeu Pata Cinzenta,

parecendosurpreso.–Acheiqueeleestavaumpouconervoso–arriscouPataNegra.–Nãoeraoúnico!–PataCinzentamiou,olhandoparaogatonegro.–Oquevocêquerdizercomisso?–perguntouPataNegra.–Équeultimamenteopelodoseupescoçoseeriçasemprequevocêovê

– murmurou Pata Cinzenta. – Você quase desmaiou ao vê-lo sair dacaverna.–Équeelemesurpreendeu, foi só isso–protestouPataNegra.–Você

temdeadmitirquefoimeioapavorantelánaBocadaTerra.

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–Éverdade–concordouoamigo.Os gatos deslizaram sob uma cerca até uma plantação de milho, que

brilhavaprateadaaoluar,eseguiramofossoqueacircundava.–Comoéládentro,PatadeFogo?–perguntouPataCinzenta.–Vocêviu

aPedradaLua?–Vi,sim.Foiimpressionante!–PatadeFogosentiuopeloformigarcom

alembrança.PataCinzentalançou-lheumolharadmirado.–Entãoéverdade!Arocha

realmentebrilhasobaterra.Pata de Fogo não respondeu. Fechou os olhos por um instante,

saboreando a imagem da Pedra da Lua, que lhe ofuscava a mente. Foiquandoimagensdosonholhevieramàcabeçaeseusolhossearregalaram.EstrelaAzultinharazão:precisavamvoltaromaisdepressapossível.Mais à frente, Garra de Tigre e Estrela Azul tinhampulado uma cerca,

saindodaplantaçãodemilho.Osaprendizesosseguiram,espremendo-sesobacerca,natrilhadeterra.EraocaminhoquepassavapeloninhodosDuas-Pernas epelos cães.PatadeFogoviuEstrelaAzul eGarradeTigreandando mais à frente, incansáveis, suas silhuetas recortadas contra ohorizontetingidodevermelho.Osollogosurgiria.– Vejam! – gritou ele para Pata Cinzenta e Pata Negra. Um gato

desconhecidotinhapuladonafrentedosdoisguerreiros.– É um isolado! – ciciou Pata Cinzenta. Os três aprendizes correram

naqueladireção.O estranho eramalhado de branco e preto retinto, mais baixo que os

guerreiros,masbemmusculoso.–EsteéCevada!–explicouEstrelaAzul,quandoeleschegaram.–Elevive

pertodoninhodosDuas-Pernas.–Olá!–miouogato.–Fazalgumasluasquenãovejonenhumgatodoseu

clã.Comovaivocê,EstrelaAzul?– Vou bem, obrigada. E você, Cevada? Como está a caça desde que

passamosporaquiaúltimavez?–Não tãomal– respondeuogato, comumbrilhoamigávelnoolhar. –

UmacoisaboaarespeitodosDuas-Pernaséquevocêsemprevaiacharummonte de ratos perto deles. – O gato preto e branco continuou: – Vocêpareceestarcommaispressaquedecostume.Estátudobem?GarradeTigreolhouparaCevada.Umgrunhidosooufundonoseupeito.

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PatadeFogoviuqueoguerreiro ficoudesconfiadocomacuriosidadedoisolado.–Nãogostodeficarmuitotempolongedomeuclã–respondeuEstrela

Azul,comdelicadeza.–Comosempre,EstrelaAzul,vocêestáligadaaoclãcomoumarainhaa

seusfilhotes–observouCevada,tambémamigável.–Oquequer,Cevada?–perguntouGarradeTigre.Cevadalançou-lheumolharreprovador.–Sóqueriaavisarqueagorahá

dois cães aqui. É melhor voltarem pela plantação de milho, em vez deatravessaremoquintal.– Já sabemos sobre os cães. Nós os vimos mais cedo… – começou,

impaciente,GarradeTigre.– Agradecemos pelo aviso – interrompeu Estrela Azul. – Obrigada,

Cevada.Atéapróximavez.Cevadabalançouacauda.–Tenhamumaviagemsegura–miou,voltando

paraatrilha.–Venham–ordenoualíder,desviando-sedatrilhaepassandonomeio

dagramaalta,entreocaminhoeacercaquedavanaplantaçãodemilho.Ostrêsaprendizesaseguiram,masGarradeTigrehesitou.–Vocêconfianapalavradeumisolado?–perguntou.EstrelaAzulvirou-seeoencarou.–Vocêprefereenfrentaroscães?–Estavamamarradosquandopassamosporelesmaiscedo–observou

GarradeTigre.– Podem estar soltos agora. Vamos por aqui – miou Estrela Azul. E,

passandoporbaixodacerca,saiunocampo.PatadeFogoseesgueiroulogoatrás,seguidoporPataCinzenta,PataNegrae,finalmente,GarradeTigre.Aessaalturaosoljátinhaaparecidonohorizonte.Asárvoresbrilhavam

comoorvalho,prometendoumoutrodiaquente.Osgatoscaminhavamnabeiradofosso.PatadeFogoolhavaparabaixo

navalaprofunda,íngremeecheiadeurtigas.Sentiaocheirodecaça.Haviaalgumacoisa familiarnoodoramargo,maseraumcheiroquenãosentiahaviamuitotempo.UmgritoensurdecedorfezPatadeFogosevirar.PataNegrasedebatiae

arranhavaaterra.Algumacoisatinhaseguradosuapernaeopuxavaparaofosso.–Ratos!–disparouGarradeTigre.–Cevadanosenviouparaumacilada!

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Antes que pudessem reagir, os cinco felinos foram cercados. Enormesratosmarronssurgiramdoburaco,comguinchosestridentes.PatadeFogoviaseusdentesafiadosbrilhandonaluzdoamanhecer.Derepente,umdelespulounoombrodePatadeFogo.Umadoragudao

atravessouquandooratoafundou-lheosdentesnacarne.Outroagarrou-lheapernaentremandíbulaspoderosas.PatadeFogosejogounochão,contorcendo-seloucamente,tentandose

soltar. Sabia que os ratos não eram fortes como ele, mas eram muitos.Gritos, cicios e cusparadas diziam que os outros também tinham sidoatacados.PatadeFogoreagiuferozmentecomasgarras,dilacerandoumratoque

seguravasuaperna.Maslogooutroagarrou-lheacauda.Rápidocomoumraio, acelerado por medo e raiva, Pata de Fogo lutou, atacando osagressores.Virandoacabeçapara trás, afundouosdentesnoratoqueseatiraranosseusombros.Sentiunabocaosossosdopescoçodoanimalseestraçalharemeocorpoamolecer,antesdecairnatrilhadeterra.PatadeFogoarfoudedorquandomaisumratopulounassuascostas,

cravando-lheosdentes.Pelocantodoolho,percebeuumlampejodepelobranco passar correndo. Por ummomento ficou confuso; então sentiu oratoserafastadodeseupelo.Virou-seeviuCevadaatirandooroedornofosso.Semhesitar, Cevada olhou à volta e correu na direção de EstrelaAzul,

que se contorcia no chão, coberta de ratos. Num instante, Cevadaabocanhouaespinhadeumdeles, conseguindodesgrudá-loda líder comfacilidade. Cuspiu o roedor no chão e logo agarrou outro com a boca,enquantoagataescapuliaporbaixodele.PatadeFogocorreunadireçãodePataCinzenta,atacadodosdoislados

pordoisratosmenores.Investiusobreoqueestavamaisperto,matando-ocomumamordida.PataCinzentaconseguiusevirareimobilizarooutronochãocomsuasgarras.Travouoratocomosdenteseojogounofossocomtodaaforça.Elenãovoltou.–Estãofugindo!–GarradeTigregritou.Defato,osoutrosratosserefugiaramnasegurançadavala.PatadeFogo

ouviuobarulhodepequenaspatasdescendopeloburaco,desaparecendonas urtigas. As mordidas no ombro e na perna traseira doíam bastante.Com cuidado, o aprendiz lambeu a pelagem, molhada e manchada desangue,cujocheirointensosemisturavacomofedordosratos.

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Pata de Fogo procurou Pata Negra. Pata Cinzenta estava na beira dasurtigasencorajandoPataNegraquesaíadavala,cheiodelamaedolorido,com um rato pequeno ainda pendurado na cauda. Pata de Fogo pulou eacaboucomoroedorrapidamente,enquantoPataCinzentaajudavaapuxaroamigodofundodofosso.PatadeFogocomeçouaprocurarEstrelaAzul.PrimeiroviuCevada,no

altodofosso,olhandoparabaixo,àprocuradeoutrosratos.Alíderestavacaídaaliperto.Alarmado,o aprendiz correuparao ladodelaeviuqueapelagemcinzaeespessaatrásdoseupescoçoestavaempapadadesangue.–EstrelaAzul?–chamou.Agatanãorespondeu.UmgritofuriosofezPatadeFogoolharparacima.GarradeTigrepulousobreCevada, imobilizando-onochão.–Vocênos

mandouparaumacilada–rosnou.–Nãosabiaqueosratosestavamaqui!–disparouCevada,arrastandoas

patasnapoeira,lutandoparaselevantar.–Porquenosmandouporessecaminho?–cobrouGarradeTigre.–Oscães!–Estavamamarradosquandopassamosporelesmaiscedo!–OsDuas-Pernas os soltam à noite para proteger os ninhos. – Cevada

arfava,tentandorespirarsobasenormespatasdoguerreiro.–GarradeTigre!EstrelaAzulestáferida!–PatadeFogoavisou.Imediatamente o guerreiro soltou Cevada, que se levantou e sacudiu a

poeiradapelagem.GarradeTigrefoiparaoladodeEstrelaAzulecheirousuasferidas.–Háalgoquepossamosfazer?–perguntouPatadeFogo.–ElaestánasmãosdoClãdasEstrelasagora–miou,solene,oguerreiro,

dandoumpassoparatrás.PatadeFogo,emchoque,arregalouosolhos.GarradeTigrequeriadizer

quealíderestavamorta?Seupeloseeriçouaoolharparaagata.TeriasidoesseoavisodosespíritosnaPedradaLua?PataCinzentaePataNegra,aterrorizados,sejuntaramaelesaoladode

EstrelaAzul.Cevadaficouatrás,esticandoopescoçoparaveroqueestavaacontecendo.Os olhos de Estrela Azul estavam abertos, mas vidrados, e seu corpo

cinzajaziaimóvel.Pareciaquenemrespirava.

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–Estámorta?–murmurouPataNegra.–Nãosei.Precisamosesperarparaver–respondeuGarradeTigre.Oscincofelinosficaramaguardando,enquantoosolcomeçavaasubirno

céu. Pata de Fogo, em silêncio, pediu aoClã dasEstrelas paraproteger alíder,mandá-ladevoltaparaeles.Foi quando Estrela Azul semexeu. A ponta da cauda estremeceu e ela

ergueuacabeça.–EstrelaAzul?–miouPatadeFogo,comavoztremendo.–Estátudobem–disseagata,comavozrouca.–Aindaestouaqui.Perdi

umavida,masnãofoianona.Pata de Fogo transbordou de alegria. Olhou para Garra de Tigre,

esperando ver seu rosto cheio de alívio, mas o guerreiro permaneciainexpressivo.–Certo–miouGarradeTigre,emtomdecomando.–PataNegra,arrume

teias de aranha para colocar nas feridas de Estrela Azul. Pata Cinzenta,apanhecravo-da-índiaoucavalinha.–Osdoisaprendizesforamcorrendo.–Cevada,achomelhorvocêiremboraagora.PatadeFogoolhouparaoisolado,quetinhalutadotãobravamentepara

ajudá-los.Queriaagradecer-lhe,mas,anteoolharferozdeGarradeTigre,não ousou. Em vez de falar, Pata de Fogo apenas dirigiu um aceno decabeça a Cevada, que pareceu compreender, pois acenou de volta e saiusemdizermaisnada.Estrela Azul continuava deitada no chão. – Estão todos bem? –

perguntou,comavozfraca.GarradeTigrefezquesimcomacabeça.PataNegravoltou,comumaespessateiadearanhaembrulhadanapata

esquerda.–Aquiestá–miou.–PossocolocarasteiasdearanhanasferidasdeEstrelaAzul?–Patade

FogoperguntouaGarradeTigre.–PresaAmarelamemostroucomosefaz.– Está bem– concordou o guerreiro, que se afastou e voltou a olhar a

vala, esticando as orelhas para tentar descobrir se ainda havia ratos porperto.Pata de Fogo tirou umpunhado de teia de aranha da pata do amigo e

começouapressioná-lacomforçanosmachucadosdeEstrelaAzul.Agatatensionouocorpocomotoque.–SenãofosseporGarradeTigre,

essesratosteriammecomidoviva–reclamou,avozcarregadadedor.

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–NãofoiGarradeTigrequeasalvou.FoiCevada–murmurouoaprendizaoretirarmaisteiadearanhadePataNegra.–Cevada?–espantou-seEstrelaAzul.–Eleestáaqui?– Garra de Tigre omandou embora – respondeu Pata de Fogo em voz

baixa.–EleachaqueCevadanosenviouparaumacilada.–Eoquevocêacha?–perguntoualíder,comavozrouca.PatadeFogonão levantouo rosto, concentradoemcolocarna feridao

últimopedaçodeteiadearanha.–Cevadaéumisolado.Oqueeleganharianosmandandoparaumaciladaapenasparadepoisnossalvar?–elemiou,finalmente.EstrelaAzulabaixouacabeçaefechouosolhosnovamente.Pata Cinzenta voltou trazendo um pouco de cavalinha. Pata de Fogo

mascou as folhas e cuspiu o sumonas feridas de Estrela Azul. Sabia queaquilo ia debelar a infecção, mas ainda preferia que Folha Manchadaestivesseali,ajudandoacurarcomseuconhecimentoesuasegurança.– Deveríamos descansar aqui enquanto Estrela Azul se recupera –

ponderouGarradeTigreseaproximando.–Não–disseagata.–Devemosvoltaraoacampamento.–Contraindoos

olhosporcausadador,levantou-secomesforço.–Vamoscontinuar.A líderdoClãdoTrovão foimancandoaté abeirado campo.Garrade

Tigrecaminhavaaseulado,orostofechadoempensamentosinsondáveis.Osaprendizestrocaramolharesansiososeseguiramosdois.– Já fazmuito tempoque a vi perder uma vida, EstrelaAzul – Pata de

FogoentreouviuGarradeTigremurmurar.–Quantasvocêjáperdeu?Pata de Fogo não pôde deixar de ficar surpreso com a curiosidade

explícitadoguerreiro.–Estafoiaquinta–respondeu,serena,alíder.Pata de Fogo retesou as orelhas, mas Garra de Tigre não replicou.

Continuouaandar,perdidoempensamentos.

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CAPÍTULO17

OSOLALTOCHEGOUefoiemboraenquantoosfelinospassavampelasantigaszonas de caça do Clã dos Ventos. O silêncio pesadomostrava que aindaestavam deprimidos depois da luta com os ratos. Pata de Fogo tinhaarranhõesemordidasportodoocorpo.ViuquePataCinzentamancava,àsvezes pulando em três patas para poupar a pata traseira ferida.Mas suamaiorpreocupaçãoeraEstrelaAzul,queandavacadavezmaislentamente,masserecusavaapararedescansar.Orostotriste,crispadodedor,diziaaPatadeFogoqueelanãoviaahoradechegaraoacampamentodoClãdoTrovão.– Não se preocupe com os guerreiros do Clã das Sombras – ela miou

entredentesquandoGarradeTigreparouparafarejaroar.–Vocênãovaiencontrarnenhumdelesaquihoje.Comoelapodiatertantacerteza?–perguntou-sePatadeFogo.Escolheram com cuidado o caminhopara descer a colina, uma encosta

pedregosaque levavaàsQuatroÁrvores e se juntavana trilha conhecidaqueconduziaaolar.ErafimdetardeePatadeFogocomeçouatersaudadedeseuninhoedeumaboaporçãodepresafresca.–AindasintoofedordoClãdasSombras–murmurouPataCinzentapara

PatadeFogoquandocaminhavampelaszonasdecaçadoClãdoTrovão.–TalvezabrisaotenhatrazidodoterritóriodoClãdoVento–sugeriu

PatadeFogo.Eletambémsentiaocheiroeseusbigodestremiam.Derepente,PataNegraparouemioubaixinho:–Estãoouvindoisso?Pata de Fogo retesou as orelhas. Primeiro ouviu apenas os sons

familiaresdafloresta–folhasfarfalhando,umpomboquearrulhava.Então,sentiuosangueesfriar.Adistânciaouviugritosdeumabatalhaviolentaeuivosagudosdefilhotesapavorados.–Depressa!–clamouEstrelaAzul.–ÉcomooClãdasEstrelasmeavisou.

Nossoacampamentoestásendoatacado!–Elatentoupularparaa frente,mascaiu.Levantou-seeprosseguiu,mancando.GarradeTigreePatadeFogoseapressaram,ladoalado.PataCinzentae

Pata Negra os seguiram, com o pelo da cauda eriçado, duas vezes maisespesso que o normal. Pata de Fogo esqueceu a própria dor no caminhoparaoacampamento.Suaúnicapreocupaçãoeraprotegeroclã.Os sons da batalha ficavam cada vez mais altos à medida que ele se

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aproximavadaentradadoacampamento;o fedordoClãdasSombras lheenchia as narinas. Estava bem atrás de Garra de Tigre quando os felinosatravessaramotúnelechegaramàclareira.Ali depararam com o frenesi do combate, os gatos do Clã do Trovão

lutandofuriosamentecomosguerreirosdoClãdasSombras.Nãoseviamos filhotes; Pata de Fogo esperava que se encontrassem em segurança,escondidos no berçário. Imaginou que os anciãosmais fracos estivessemprotegidosdentrodotroncoocodaárvorecaída.Todos os cantos do acampamento pareciam em atividade, cheios de

guerreiros.PatadeFogoviuPeledeGeadaeFlorDouradamordendoumenormegatocinzaedando-lhepatadas.MesmoajovemrainhaCaraRajadalutava, embora estivesse prestes a dar à luz. Risca de Carvão estavaatracado com um guerreiro negro numa luta feroz. Três dos anciãos,Orelhinha, Retalho e Caolha, bravamente deitavam as unhas numa gataatartarugada,duasvezesmaisrápidaeferozdoqueeles.Osfelinosqueretornavamselançaramnabatalha.PatadeFogoocupou-

sedeumarainhaguerreiramalhada,muitomaiordoqueele,eenfiou-lhecomvontadeosdentesnaperna.Elagritoudedoreoatacoucomasgarrasafiadaseosdentesàmostra,prontaparaatingirseupescoço.Oaprendizsecontorceu e abaixou para evitar a mordida. A gata não conseguiuacompanharavelocidadedeleque,então,apegouportrásejogounochão.Com as potentes patas traseiras, ele cravou as garras nas costas daoponente,que,urrandodedor, conseguiusedesvencilhareprecipitou-seàscarreirasparaadensavegetaçãoquerodeavaoacampamento.PatadeFogoolhouàvoltaparaverseEstrelaAzultinhachegado.Apesar

dosferimentos,elalutavacomoutrogatomalhado.Oaprendiznuncatinhavistoa líderembatalha,mas,mesmo ferida,eraumaoponentepoderosa.Suavítimatentavaescapar,masEstrelaAzulaapertavacomtantafirmezae enfiava-lhe as garras tão ferozmente, que Pata de Fogo entendeu queaquelascicatrizesiriampermanecerpormuitasluas.FoiquandoeleviuumgatobrancodoClãdasSombras,depataspretas

retintas,arrastandodoberçárioumanciãodoClãdoTrovão.PatadeFogolembrou-se daquelas patas incrivelmente negras que vira na Assembleia.Pé Preto! O representante do Clã das Sombras rapidamente liquidou oancião,encarregadodecuidardosfilhotes,einvadiuoninhodasamoreirascomumadasenormespatas.Osfilhotesgritavamemiavam,indefesos,poissuas mães lutavam na clareira contra os outros guerreiros do Clã dasSombras.

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Pata de Fogo se preparava para pular na direção do berçário quandouma garra rasgou dolorosamente seu flanco; virou-se e viu uma gataatartarugadamagricela pular em cima dele. Quando o aprendiz bateu nochão,tentouavisaraosoutrosgatosdoclãqueosfilhotescorriamperigo.Lutandocomtodasasforçasparaescapardaagressora,virouacabeçaparaolharoninhodeamoreiras.Pé Preto já tinha tirado dois filhotes dos berços e se preparava para

pegarumterceiro.PatadeFogonãopôdevermaisnada,poisagataatartarugadaarranhou-

lheabarrigacomasgarrasafiadas.Elecambaleounaspataseseagachou,como se tivesse sido derrotado. O truque já tinha funcionado antes efuncionouagoratambém.Quandoagataoagarrou,triunfante,ecomeçoualheenfiarosdentesnopescoço,PatadeFogodeuumpuloparacima,comtodo o vigor, e conseguiu jogar longe a oponente. Com um giro rápido,saltou para cima da guerreira, deixando-a sem ar. Dessa vez, não tevecompaixãoeenfiouosdentesnoombrodagata,quesaiugemendorumoàvegetação.Pata de Fogo saltou, correu para o berçário e enfiou a cabeça para

dentro. Pé Preto não estava à vista. Dentro do ninho, agachada sobre osfilhotes apavorados, estava Presa Amarela, com a pelagem cinza todasalpicadadesangueeumdosolhosterrivelmenteinchado.Elaolhouparaoaprendizcomumcicioferoz;aoreconhecê-lo,gritou:–Elesestãobem.Vouprotegê-los.Ao vê-la acalmando os filhotes indefesos, Pata de Fogo lembrou-se da

terrível advertência de Estrela Partida a respeito damaldade do Clã dasSombras Ele não tinha tempo para pensar sobre aquilo agora. Teria deconfiaremPresaAmarela.Assentiurapidamentecomacabeçaesaiudasamoreiras.AgorahaviaapenaspoucosfelinosdoClãdasSombrasnoacampamento.

PataNegraePataCinzentalutavamladoalado,dilacerandoumgatonegroqueacaboufugindopelosarbustos.NevascaeRiscadeCarvãoexpulsaramos dois últimos invasores, deixando neles alguns arranhões e mordidasextras.PatadeFogosentou,exausto,eolhouoacampamentodevastado.Havia

sanguenaclareiraechumaçosdepelagemnochão.Omurodevegetaçãodoentornotinhaburacosporondeosinvasoreshaviamentrado.Umaum,os felinosdoClãdoTrovãosereuniramsobaPedraGrande.

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Pata Cinzenta sentou perto de Pata de Fogo, com os flancos arfando e osangue pingando de uma orelha rasgada. Pata Negra deixou-se cair ecomeçoualamberumaferidanacauda.Asrainhascorreramatéoberçáriopara se certificar de que os filhotes estavam bem. Pata de Fogo ficouaguardando ansioso que elas voltassem, pois nada conseguia ver com osoutros felinosbloqueando-lhe a visão.Acalmou-se aoouvir gritos e rom-ronsdealegriavindosdoninhodeamoreiras.Pele de Geada voltou abrindo caminho entre a multidão, seguida por

PresaAmarela. A rainha branca deu umpasso à frente e disse: –Nossosfilhotesestão todosa salvo,graçasaPresaAmarela.UmguerreirodoClãdasSombrasmatouabravaCaudaCor-de-Rosaeestavatentandotirarosfilhotesdoninho,masPresaAmarelaoexpulsou.–NãoeraumguerreiroqualquerdoClãdasSombras–destacouPatade

Fogo,querendoqueoclãsoubessequantotodosdeviamaPresaAmarela.–Euovi.EraPéPreto.–O representantedoClãdas Sombras! –miouCaraRajada, que lutara

tãobravamenteparaprotegerosbebêsqueestavacarregandonabarriga.OgruposeagitouquandoEstrelaAzul,mancando,deuumpassoàfrente,

nadireçãodosaprendizes.AexpressãosériadalíderbastouparaPatadeFogoperceberquealgumacoisaestavaerrada.–FolhaManchadaestácomCoraçãodeLeão–dissebaixinho.–Ele foi

ferido na batalha, e parece grave. – A líder virou a cabeça na direção dasombradooutro ladodaPedraGrande, onde jazia o guerreiro, um fardoinertedepelodouradocheiodeterra.Um grito abafado surgiu na garganta de Pata Cinzenta, que correu na

direçãodeCoraçãodeLeão.FolhaManchada,atéentãodebruçadasobreorepresentante do clã, afastou-se para que o jovem aprendiz lambesse omentorpelaúltimavez.QuandoogritodedordePataCinzentaecoounaclareira,opelodePatadeFogoformigou,tornando-sefrioosanguequelhecorrianasveias.Eraogritoqueouviraemsonho!Porummomento, suacabeçagirou;depois,elesesacudiu.Precisava ficarcalmo,paraobemdePataCinzenta.Pata de Fogo olhou para Estrela Azul, que acenou para ele

afirmativamente,ecaminhouatéoamigo,pertodaPedraGrande,parandoporuminstanteaoladodeFolhaManchada.Acurandeirapareciaexaustae tinhaosolhos cheiosde tristeza. –Não

posso ajudar Coração de Leão agora – disse ela em voz baixa. – Ele está

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prestesasejuntaraoClãdasEstrelas.–Elaapertouocorpocontraoflancodojovem,quesesentiuconfortadopelotoquedapelagemquente.Osoutrosfelinosolhavamemsilêncioenquantoosolsepunhadevagar

atrásdas árvores.Enfim,PataCinzenta sentoue anunciou: –Ele se foi! –Dizendoisso,deitou-seaoladodocorpodeCoraçãodeLeãoedescansouacabeçanaspatasdianteiras.Orestodoclãseaproximouemsilêncioparaprestarasúltimashomenagensaoamadorepresentante.PatadeFogosejuntouaogrupo.LambeuopescoçodeCoraçãodeLeãoe

murmurou:–Obrigadoporsuasabedoria.Vocêmeensinoumuitacoisa.–Então,sentouaoladodePataCinzentaecomeçoualambercomcarinhoasorelhasdoamigo.Estrela Azul esperou até que os outros felinos saíssem antes de se

aproximar.PataCinzentanãoparecianemsequernotarapresençadalíder.PatadeFogodesviouoolharquandoagatadisseasúltimaspalavrasparaovelhoamigo.–Ah!Oquevoufazersemvocê,CoraçãodeLeão?–sussurrou,antesde

voltarmancando para sua toca. Agachou-se do lado de fora, como olhartriste perdido na distância. Nem tentou lamber e limpar a pelagemmachucadaemanchadade sangue.Pelaprimeiravez,PatadeFogoviu alíderparecercompletamentederrotada.Umarrepiopercorreuoseucorpo.FicoualisentadocomPataCinzentaeCoraçãodeLeãoatéaluaalta.Pata

Negra seachegoue, juntos, fizeramcompanhiaaoamigoemsua tristeza.GarradeTigreaproximou-seelambeuCoraçãodeLeãorapidamente.PatadeFogoesperouparaouviraspalavrasqueelediriaaocompanheiro,maso guerreiro permaneceu em silêncio enquanto lambia a pelagemmachucada.PatadeFogoficouconfusoaoperceberqueosolhosdofelinopareciamfixosemPataNegra,enãonorepresentantemorto.Folha Manchada percorreu o acampamento com passadas suaves,

cuidandodosferimentosedosnervosabalados.PatadeFogoviuqueelaseaproximou duas vezes de Estrela Azul, mas a líder mandou que ela seocupassedosoutrosfelinos.Apenasquandoacurandeirahaviacuidadodetodososoutrosgatos,EstrelaAzulpermitiuquetratassedesuasmordidasearranhões.Quando terminou, Folha Manchada voltou à sua toca. Estrela Azul se

levantou e caminhou lentamente até a Pedra Grande. Os gatos do clãpareciamestaresperandoporela.Assimquealídersecolocounolugardesempre,elescomeçaramase juntarnaclareira, silenciosose sombrios,o

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quenãoerahabitual.PatadeFogoePataNegraseesticaramesejuntaramaogrupo,deixando

PataCinzentaparatrás,comocorpodeCoraçãodeLeão.Oaprendizcinzaaindaestavadeitadocomofocinhoapoiadonapelagemcadavezmaisfriadomentor.PatadeFogoimaginouque,dessavez,EstrelaAzuldesculpariaaausênciadePataCinzentanareunião.–Jáéquaseluaalta–miouEstrelaAzulquandoPatadeFogosecolocou

pertodePataNegra.–E,maisumavez,émeudever–muito,muitíssimomais cedodoque eupretendia – indicar onovo representantedoClãdoTrovão–dissealíder,comavozcansadaeabaladapelatristeza.PatadeFogofitouguerreiroporguerreiro.Estavamtodosolhandopara

Garra de Tigre, cheios de antecipação. Até Nevasca tinha se virado paraobservarogatomalhado.Pelaexpressãoousadaquetrazianorostoepelaexpectativa que vibrava nos seus bigodes, Garra de Tigre, pelo visto,concordavacomeles.EstrelaAzulrespiroufundoecontinuou:–Digoessaspalavrasdiantedo

corpodeCoraçãodeLeão,paraqueseuespíritopossaouvi-laseaprovarminhaescolha.–Elahesitou.–NãomeesquecidecomoumgatovingouamortedeRaboVermelhoenostrouxeseucorpodevolta.OClãdoTrovãoprecisaagora,maisdoquenunca,dessa lealdadedestemida.–A líder fezumanova pausa e anunciou em voz alta e clara: – Garra de Tigre será onovorepresentantedoClãdoTrovão.Ouviu-se um grito de aprovação, destacando-se as vozes de Risca de

CarvãoedeRaboLongo.Sentadocalmamente,comosolhos fechadoseacauda enrolada à sua volta, Nevasca balançava a cabeça lentamente, emaprovação.Com os olhos semiabertos, Garra de Tigre levantou o queixo com

orgulho,ouvindoasmanifestaçõesdoclã.Então,andoudevagarnomeiodamultidão,aceitandooscumprimentoscomeconômicosacenosdecabeça,epulouparaaPedraGrande,colocando-seaoladodeEstrelaAzul.–ClãdoTrovão!Estouhonradoemaceitarocargoderepresentante.Jamaisespereichegaraposiçãotãoalta,mas,peloespíritodeCoraçãodeLeão,prometoservir a vocês da melhor maneira possível – disse Garra de Tigre, quesolenementesecurvou, fixandoosolhosgrandeseamarelosnamultidão;emseguida,puloudaPedraGrande.PatadeFogo,aoouvirPataNegraaseuladomurmurar“Ah,não!”,virou-

se,curioso,paraoamigo.

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PataNegraestavadecabeçabaixae sussurrou:–Elanuncadevia tê-loescolhido!– Você está se referindo a Garra de Tigre? – Pata de Fogo perguntou

baixinho.–ElequerserrepresentantedesdequecuidoudeRaboVermelho–miou

PataNegra,calando-sederepente.–Comoassim,cuidoudeRaboVermelho?–perguntouPatadeFogo,com

mildúvidasnacabeça.OquePataNegrasabia?SeriaverdadeiroorelatodabatalhacontraoClãdoRioqueelecontaranaAssembleia?SeriaGarradeTigreoculpadodamortedeRaboVermelho?

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CAPÍTULO18

–VOCÊESTÁCONTANDOAPatadeFogocomoprotegiRaboVermelho?Pata de Fogo sentiu um arrepio gelado ondear a pelagem atrás do

pescoço.PataNegra ficou agitado, comos olhos arregalados demedo. Garra de

Tigre debruçou-se sobre eles, mostrando os dentes em um rosnadoameaçador.PatadeFogodeuumpuloeencarouonovorepresentante.–Eleestava

dizendo que gostaria que você tivesse ficado aqui para tomar conta deCoraçãodeLeãotambém,sóisso!–miou,raciocinandorápido.Oguerreiroolhoudeumparaooutroeseafastoulentamente.Osolhos

verdes de Pata Negra nublaram-se de pavor; ele começou a tremer semcontrole.–PataNegra?–miou,alarmado,PatadeFogo.Mas o amigo nem sequer levantou o olhar. Com a cabeça baixa,

aproximou-se lentamente de Pata Cinzenta e agachou-se perto dele,apertandoocorpomagronapelagemespessadocompanheiro,comose,derepente,sentissefrio.PatadeFogoolhoudesoladoparaosdoisamigos,aconchegadosaolado

docorpodeCoraçãodeLeão.Semsaberoquefazer,tambémseaproximouejuntou-seaosoutrosaprendizes,prontoparapassaralitodaanoite.À medida que a lua se movia no céu, os outros felinos se uniram na

vigília. Por último chegouEstrelaAzul, quando o acampamento já estavacalmo e tranquilo. Em silêncio, sentou um pouco afastada, fitando orepresentantemortocomumaexpressãotãotristequePatadeFogotevededesviaroolhar.Ao amanhecer, um grupo de anciãos foi buscar o corpo de Coração de

Leãoparalevá-loaolocaldoenterro.PataCinzentaosseguiuparaajudaracavarasepulturaondeograndeguerreiroiriadescansar.Pata de Fogo bocejou e se espreguiçou. Estava gelado até os ossos. A

estação das folhas caídas se aproximava e a floresta estava coberta deneblina;mas,acimadasfolhas,oaprendizviuocéurosadodoamanhecer.ObservouPataCinzentadesaparecercomosanciãosnavegetaçãocheiadeorvalho.Pata Negra levantou-se e voltou correndo para a toca dos aprendizes.

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PatadeFogooseguiudevagareoencontrouenroscado,comofocinhosobacauda,comosedormisse.PatadeFogoestavacansadodemaisparafalar.Ajeitouomusgonacama

eseacomodouparaumlongosono.

–Levantem-se!Pata de Fogo escutou Pata de Poeira chamando na entrada da toca e

abriuosolhos.PataNegrajáestavasentado,comasorelhaseriçadas.PataCinzenta,aseulado,nãoparavadesemexer.PatadeFogoficousurpresoaosedepararcomaformacinzaefamiliar.NãoouviraogatovoltardepoisdoenterrodeCoraçãodeLeão.– Estrela Azul convocou outra reunião – avisou Pata de Poeira,

abaixando-seesaindopelassamambaias.Ostrêsaprendizesrastejaramparaforadatocaquentinha.Osol jánão

estava apino e o ar se tornaramais frio. PatadeFogo tiritava, a barrigaroncando.Nãoselembravadaúltimavezquetinhacomidoeimaginouseteriaoportunidadedecaçarhoje.Pata de Fogo, Pata Cinzenta e Pata Negra rapidamente se juntaram à

multidãoreunidasobaPedraGrande.GarradeTigre,aoladodeEstrelaAzul,falava:–Duranteabatalha,nossa

líderperdeuoutravida.Agoraque lhe sobraramapenasquatrodasnovevidas, vou nomear um guarda-costas para acompanhá-la o tempo todo.Nenhumgatotempermissãodeseaproximarseosguardasnãoestiverempresentes. –Osolhos corde âmbardo representantepiscaramparaPataNegraedepoisparaorestodamultidão.–RiscadeCarvãoeRaboLongo–continuou,desviandooolharparaosguerreiros–,vocêsserãoosguarda-costasdeEstrelaAzul.Osdoisgatosconcordaramesentaram,imponentes.Estrela Azul falou, e sua voz soou delicada e calma depois do grito de

comandodo representante: –Obrigada,GarradeTigre, por sua lealdade.Masoclãprecisacompreenderquecontinuoaqui,aapoiá-lo.Nenhumgatodeve hesitar em me procurar, e fico feliz em falar com qualquer um,estando ounão comguarda-costas. –Os olhos faiscaram rapidamente nadireção do representante. – Como determina o código dos guerreiros, asegurança do clã é mais importante do que a de qualquer membroindividualmente. – Fez uma pausa e seu olhar cor do céu deteve-serapidamente em Pata de Fogo. – E agora quero convidar Presa Amarela

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parajuntar-seaoClãdoTrovão.Miados de surpresa se elevaram entre alguns guerreiros. Estrela Azul

olhou para Pele de Geada, que acenou, concordando. As outras rainhasolhavamemsilêncio.A líder continuou: – Suas ações na noite passada provaram que ela é

corajosa e leal. Se ela o desejar, vamos recebê-la como membro efetivodesteclã.Deondeestava,àbeiradamultidão,PresaAmarelaolhouparaalíderdo

clãemurmurou:–Estouhonrada,EstrelaAzul,eaceitooconvite.–Ótimo–mioualídercomavozfirme,indicandoqueoassuntoestava

encerrado.PatadeFogo ronronoudeprazeredeuumacutucadade leveemPata

Cinzenta. Ficou surpreso ao perceber quanto significava para ele ademonstração pública de confiança que Estrela Azul concedera a PresaAmarela.Alídervoltouafalar.–Nanoitepassada,conseguimosnosdefendercom

sucesso do ataque do Clã das Sombras, mas eles ainda são uma grandeameaça.Otrabalhodereparoquecomeçamosnestamanhãvaicontinuar.As fronteiras serão patrulhadas o tempo todo.Não devemos achar que aguerraacabou.GarradeTigreficoudepé,comacaudalevantada,eolhouparaosgatos

reunidosabaixo.–OClãdasSombrasatacouenquantoestávamosforadoacampamento–grunhiu.–Escolherambemomomento.Comosabiamqueoacampamentoestavaindefeso?Elestêmolhosaquidentro?Pata de Fogo congelou, horrorizado, quando o guerreiro fixou o olhar

cortanteemPataNegra.AlgunsfelinosseguiramoolhardeGarradeTigreefitaram,confusos,oaprendiz,queolhavaparaochão,movimentandoaspatas,nervoso.O representante continuou: – Ainda falta um pouco para o pôr do sol.

Precisamosnosconcentraremreconstruiroacampamento.Enquantoisso,se suspeitarem de alguma coisa, ou de alguém, falem comigo. Estejamcertosdequequalquercoisaquemedisseremserámantidaemsigilo.–Fezum aceno, dispensando o clã; voltou-se e começou a falar baixinho comEstrelaAzul.Os gatos se dispersaram e começaram a se movimentar pelo

acampamento,avaliandoosdanoseformandogruposdetrabalho.– Pata Negra! – chamou Pata de Fogo, ainda chocado com a sugestão

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maldosadeGarradeTigredequeopróprioaprendizteriatraídooclã.MasPata Negra já tinha ido embora. O amigo o viu oferecendo ajuda aMeioRaboeaNevasca,antesdeseapressaracatargalhosparataparosburacosnomurodafronteira.EraevidentequePataNegranãoqueriafalar.– Vamos ajudá-lo – sugeriu Pata Cinzenta, com a voz desanimada e

exaustaeosolhosopacos.–Vávocê.Voudaquiapouco–respondeuPatadeFogo.–Primeiroquero

verseestátudobemcomPresaAmareladepoisdalutacomPéPreto.O gato procurou Presa Amarela no ninho, perto da árvore caída. Ela

estavaesticadanasombra,comumolharpensativo.–PatadeFogo–ronronouaovê-lo.–Ficofelizquetenhavindo.–Queriasaberseestátudobemcomvocê.–Oshábitosantigosdurammaisdoqueoscheirosantigos,nãoé?–miou

PresaAmarela,comumlampejodesuavelhaespirituosidade.–Achoquesim–confessouoaprendiz.–Comosesente?–Essaantigaferidadapernavoltouadoer,masvouficarbem.–ComoconseguiuexpulsarPéPreto?–perguntouPatadeFogo,incapaz

deesconderaadmiração.–PéPretoéforte,masnãoéumlutadorinteligente.Foimaisdesafiador

lutarcomvocê.PatadeFogoprocurouemvãoobrilhodehumornosolhosdagata.Elacontinuou:–Euoconheçodesdequeerafilhote.Elenãomudou.Tem

energia,masnãocérebro.Pata de Fogo sentou a seu lado e ronronou: – Nãome surpreendeu o

convitedeEstrelaAzulparavocêsejuntaraoclã.Vocêrealmenteprovousualealdadenanoitepassada.PresaAmarelamexeuacauda.–Umgatorealmentelealtalvezlutasseao

ladodoseuclãdeorigem.– Se fosse assim, eu estaria lutando pelos meus Duas-Pernas! –

argumentouPatadeFogo.PresaAmarelaolhou-ocomadmiração.–Disse-obem,meu jovem.Mas

vocêsemprefoiumfilósofo.PatadeFogoficoutriste,poislembrou-sedequeCoraçãodeLeãodiziaa

mesmacoisa.EleperguntouaPresaAmarela:–VocêsentefaltadoClãdasSombras?A gata pestanejou e finalmente miou. – Sinto falta do antigo Clã das

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Sombras.Decomocostumavaser.–AtéEstrelaPartidasetornarlíder?–perguntou,curioso,oaprendiz.–É–admitiuPresaAmarela,comsuavidade.–Elemudouoclã.–Agata

soltouuma risadaofegante. –Ele sempre teve lábia. Sequisesse, poderiafazervocêacreditarqueumcamundongoéumcoelho.Talvezpor issoeufosse tãocegaàssuas falhas–disseagata, comoolhardistante,perdidanaslembranças.–Aposto que você não adivinha quemé o novo curandeiro do Clã das

Sombras!–miouPatadeFogo, lembrando-se,derepente,doquesouberanaAssembleia.Pareciaquemuitasluashaviamsepassado.Suas palavras pareceram trazer Presa Amarela ao presente. – Nãome

digaqueéNarizMolhado?–elamiou.–Acertou!A gata balançou a cabeça. – Mas ele não consegue curar o próprio

resfriado!–FoioquePataCinzentadisse!–Porummomento,ronronaramjuntos,

divertidos. O aprendiz se levantou. – Vou deixá-la descansar agora. Seprecisardemaisalgumacoisahoje,ésóchamar.Presa Amarela levantou a cabeça. – Só mais uma coisa, Pata de Fogo;

soubequevocêesteveenvolvidoemumalutacomratos.Elesoferiram?Estátudobem.FolhaManchadatratoudosmeusferimentoscomcravo-

da-índia.–Às vezes, cravo-da-índia não basta paramordidas de ratos. Encontre

uma moita de alho selvagem e role em cima dela. Acho que você aencontraránãomuito longedaentradadoacampamento. Issovai extrairqualquer veneno que os ratos tenham deixado. Mas – acrescentousecamente – não creio que seus colegas de toca venham ame agradecerpeloconselho!– Não faz mal. Eu agradeço! Obrigado, Presa Amarela! – o aprendiz

ronronou.–Vácomcuidado,meujovem!–Agatamanteveoolharporuminstante;

então,descansouoqueixosobreaspatasdianteirasefechouosolhos.Pata de Fogo deslizou sob os galhos que rodeavam o ninho de Presa

Amarelaesedirigiuaotúneldetojos,àprocuradealhoselvagem.Osolsepunhaeeleouviuasrainhascolocandoosfilhotesparadormir.–Aondevocêpensaquevai?–grunhiuumavozsaídadassombras.Era

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RiscadeCarvão.–PresaAmarelamedisseparair…–Nãorecebaordensdaquelavilã!Váajudarosoutroscomosconsertos.

Nenhum gato deve deixar o acampamento esta noite! – ordenou oguerreiro,chicoteandoacaudadeumladoparaooutro.– Está bem, Risca de Carvão – concordou o aprendiz, submisso,

abaixandoacabeça.–SacodeCarvão–murmuroubaixinho,dandoavoltaedirigindo-seaoslimitesdoacampamento,ondeviuPataCinzentaePataNegraocupados,remendandoumgrandeburaconomurodevegetação.–ComoestáPresaAmarela?–perguntouPataCinzentaquandoPatade

Fogoseaproximou.–Estábem.Aconselhou-mearolaremalhoselvagemparaneutralizaras

mordidasderato.Estavasaindoparaacharamoita,masRiscadeCarvãomemandouficarnoacampamento–explicouPatadeFogo.– Alho selvagem? – miou Pata Cinzenta. – Gostaria de experimentar.

Minhapernaaindaestálatejando.–Eupodiasairdefininhoetrazerumpouco–ofereceu-sePatadeFogo,

magoadocomomodogrosseirocomoRiscadeCarvãootrataraegostandodaoportunidadededesforra.–Ninguémvaiperceberseeupassarporesseburacoaqui.Vaidemorarsóunsdoispulosdecoelho.PataNegrafranziuatesta,masPataCinzentaconcordounumsussurro:–

Vamoslhedarcobertura.PatadeFogoagradeceucomofocinhoepuloupelovãonomuro.Foradoacampamento,dirigiu-separaamoitadealhoselvagem,guiado

facilmentepeloalertadocheiroforte.Aluasubianocéucordevioletaeosol mergulhava no horizonte. Uma brisa fria fazia ondular a pelagem dePatadeFogo.Derepenteelesentiuumcheirodegatotrazidopelovento.Comcuidado,farejou.SeriaoClãdasSombras?Não,apenasGarradeTigreeoutrosdoisfelinos.Voltouafarejaroar.RiscadeCarvãoeRaboLongo!Oqueestariamfazendoali?Curioso,oaprendiz colocou-seemposiçãode tocaia.Esgueirou-sepela

vegetação, pata ante pata, mantendo-se a favor do vento para não serdetectado.Osguerreirosestavamnasombradeumamoitadesamambaias,com as cabeças bem próximas. Logo Pata de Fogo estava perto bastanteparaouvi-los.–OClãdasEstrelasétestemunhadequemeuaprendiz,desdeo início,

mostrou poucas possibilidades, mas nunca esperei que se tornasse um

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traidor!–grunhiuGarradeTigre.OsolhosdePatadeFogosearregalaram,eele ficoutãoespantadoque

suapelagemsearrepiou.Pelovisto,GarradeTigrepretendiafazermaisdoqueapenasacusarPataNegradetrairoclã!– Por quanto tempo você disse que Pata Negra ficou desaparecido

duranteaviagematéaBocadaTerra?–perguntouRiscadeCarvão.– O suficiente para ter ido até o acampamento do Clã das Sombras e

voltar–foiarespostaameaçadoradorepresentante.OpelodacaudadePatadeFogoseeriçouderaiva:Issoéimpossível!Ele

esteveconoscootempotodo!,pensou.AvozdeRaboLongo,agitada,tinhaagoraumtommaisalto:–Eledeve

ter contado a eles que a líder do Clã do Trovão e o guerreiromais fortetinhamsaídodoacampamento.Porquemaisatacariambemnaquelahora?– Somos o último clã a resistir ao Clã das Sombras. Precisamos

permanecer fortes – ronronou Garra de Tigre, num tom de voz agoraaveludado.Esperouemsilêncioporumaresposta.FoiRiscadeCarvãoque se apressou a responder, como se ainda fosse

aprendizdeGarradeTigreeestivesserespondendoaumaperguntasobretécnicasdecaçada.Aoouvir suaspalavras,PatadeFogo ficousemar,detantomedo.–EoclãestariaemmelhorsituaçãosemumtraidorcomoPataNegra.–Devodizerqueconcordocomvocê,RiscadeCarvão–murmurouGarra

de Tigre, com a voz grave de emoção. – Mesmo sendo meu próprioaprendiz… – o guerreiro desconversou, como se estivesse por demaisaborrecidoparacontinuar.Pata de Fogo já tinha ouvido bastante. Esquecendo totalmente o alho

selvagem, voltou na direção do acampamento, o mais rápida esilenciosamentepossível.Decidiu não contar a Pata Negra o que tinha ouvido. Ele ficaria

apavorado.PatadeFogopensavarapidamente.Oquepoderiafazer?GarradeTigreeraorepresentantedoclã,umgrandeguerreiro,popularentreosfelinos. Ninguém daria importância às acusações feitas por um aprendiz.Masoamigoestavaemgrandeperigo.PatadeFogosacudiu-se, tentandocolocar as ideias em ordem. Só havia uma coisa a fazer: contar a EstrelaAzul tudo o que ouvira e tentar convencê-la de que estava dizendo averdade!

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CAPÍTULO19

PATA CINZENTA E PATANEGRA ainda estavam remendando o buraco quandoPatadeFogoveiotercomeles.Tinhamdeixadoumespaçolargosuficienteparaoamigovoltar.–Nãotivesortecomoalho–PatadeFogoarquejavaquandoentroude

mansinho.–RiscadeCarvãoestavaporlá,àespreita.–Nãofazmal–miouPataCinzenta.–Podemosapanharamanhã.–VouconseguircomFolhaManchadaumpoucodepapoulaparavocê–

ofereceu Pata de Fogo, preocupado com o olhar apático do amigo e comseusmúsculos,quepareciamdurosdemedo.–Não,nãosepreocupe.Vouficarbem–miouPataCinzenta.– Não custa nada – Pata de Fogo insistiu; antes que o amigo pudesse

dizeralgumacoisa,rumouparaatocadacurandeira.Folha Manchada circulava na sua pequena clareira, com os olhos

nubladosdetristeza.–Tudobemcomvocê?–perguntouogato.– Os espíritos do Clã das Estrelas estão inquietos. Acho que estão

tentandomedizeralgumacoisa–elareplicou,agitandoacaudasemparar.–Comopossoajudar?– Acho que Pata Cinzenta ficaria melhor com algumas sementes de

papoulaparaaperna.Asmordidasdosratosaindaestãodoendo–explicouoaprendiz.– A dor da perda de Coração de Leão torna piores as feridas.Mas ele

ficará bom a tempo; não se preocupe. Enquanto isso, você tem razão, assementesdepapoulavãoajudar.–FolhaManchadafoiatésuatocaepegouumacabeçasecadepapoula,quecolocoucuidadosamentenochão.–Dêaeleumaouduassementes.Bastasacudirestacabeça–elamiou.–Obrigado–agradeceuPatadeFogo.–Temcertezadequeestábem?– Vá cuidar do seu amigo – disse a curandeira, evitando o olhar do

aprendiz.PatadeFogoapanhouacabeçadepapoulaentreosdentesecomeçoua

seafastar.–Espere–FolhaManchadaciciouderepente.Oaprendizvirou-se,esperançoso,eencontrouseuolharcordeouro.Ela

ofitoucomamesmaintensidade.

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–PatadeFogo–elamiou–,oClãdasEstrelasfaloucomigo, luasatrás,antesdevocêse juntaraoclã.Sintoquedesejamque lhediga issoagora.Elesdizemqueapenasofogopodesalvarnossoclã.PatadeFogo,perplexo,olhoufirmeparaFolhaManchada.Aestranhapaixãonosolhosdacurandeiraesmaeceu.–Cuide-se,Patade

Fogo–elamioucomseutomdevozhabitual,dando-lheascostas.–Atémais–respondeuogato,hesitante.Pata de Fogo voltou pelo túnel de tojos, com as estranhas palavras da

gata ecoando em sua mente. Mas, para ele, não faziam sentido. Por quepartilhara o assunto com ele? Afinal, o fogo era inimigo de todos os quemoravamna floresta. Frustrado, sacudiu a cabeça e se dirigiu à toca dosaprendizes.

–PataCinzenta!–cochichouPatadeFogonaorelhadoamigo,quedormia.Tinham sido autorizados a descansar por toda a manhã, depois de terpassado a maior parte da noite remendando o muro. Garra de Tigreordenaraqueestivessemprontosparacomeçarotreinamentonosolalto.Aluz forte e amarela entrandopela toca avisava aPatadeFogoque já eraquasehora.Ele tiveraumanoiteagitada.Sonhos invadiamsuamentecadavezque

adormecia – sonhos confusos, indistintos, mas cheios de escuridão eameaça.– Pata Cinzenta! – voltou a chamar Pata de Fogo.Mas o amigo não se

mexia: tinha comidoduas sementesdepapoula antesdedormir e estavaemsonoprofundo.–Estáacordado,PatadeFogo?–miouPataNegradoseuninho.Pata de Fogo cuspiu em silêncio. Queria ter falado com Pata Cinzenta

antesdePataNegraacordar.–Estou,sim!–respondeu.PataNegrasentounacamademusgoeurzeecomeçouase lavarcom

rápidaslambidas.–Vocêvaiacordá-lo?–perguntou,apontandoparaPataCinzenta.Ouviu-seumavozguturaldo ladode forada toca:–Esperoquesim!O

treinamentojávaicomeçar!PatadeFogoePataNegrapularam.–PataCinzenta,acorde!–dissePatadeFogo,cutucandooamigo.–Garra

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deTigreestáesperando!Pata Cinzenta levantou a cabeça; tinha os olhos ainda pesados e

sonolentos.–Jáestãoprontos?–cobrouGarradeTigre.Pata de Fogo e Pata Negra saíram rastejando da toca, piscando ao

encontraraluzdosol.Orepresentanteestavaaoladodotocodeárvore.–Ondeestáooutro?–Jávem–dissePatadeFogo,numtomdefensivo,paraprotegeroamigo.

–Acaboudeacordar.– O treinamento vai fazer bem para ele – grunhiu o guerreiro. – Já

lamentousuficiente.PatadeFogo sustentoupor alguns instanteso ameaçadorolhar corde

âmbar. Pelo espaço de uma batida de coração, guerreiro e aprendiz seolharamcomoinimigos.PataCinzentasaiusonolentodatoca.–EstrelaAzulestaráprontaemuminstante,PatadeFogo–disseGarra

de Tigre. As palavras fizeram o aprendiz esquecer a raiva. Sua primeirasessãodetreinamentocomalíder!Ficoutodoempolgado.Achavaquesuamentorapassariaalgumtempoemrepouso,porcausadosferimentos.– Pata Cinzenta – continuou Garra de Tigre –, você pode se juntar à

minhasessãodetreinamento.Achaqueestáapto,PataNegra?–perguntouoguerreirocomumolharzangado.–Afinal,vocêsearranhounasurtigasenquantoestávamoslutandocomaquelesratos.PataNegraolhouparaochão.–Estoubem–miou.Pata Cinzenta e Pata Negra seguiram o representante e saíram do

acampamento.PataNegramanteveacabeçabaixaaodesaparecerpelotúneldetojos.Pata de Fogo sentou e ficou esperandoEstrelaAzul, que não demorou

muito. A rainha cinza saiu da toca e cruzou a clareira com um andardelicado.Apelagemaindaestavafoscaondeosferimentoseramrecentes,mas ela não demonstrava sentir dor no caminhar confiante. – Venha –chamou-o.Pata de Fogo ficou surpreso de vê-la sozinha. Risca de Carvão e Rabo

Longonãoestavamporperto.Umpensamentolhepassoupelacabeçaesuaempolgação de repente transformou-se em ansiedade – ali estava umaoportunidadeparacontaràlíderoqueouvirananoiteanterior.

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Eleaalcançouquandoelasedirigiaaotúneldetojos.Colocou-seatrásdagatae,hesitante,perguntou:–Osseusguardasvãosejuntaranós?Estrela Azul respondeu sem olhar para trás: – Dei ordens a Risca de

Carvão e a Rabo Longo para ajudarem nos reparos necessários noacampamento.NossaprioridadeéasegurançadabasedoClãdoTrovão.O coração do aprendiz acelerou. Assim que saíssem do acampamento,

contariasobrePataNegra.Osdoisseguiramatrilhaparaovaledotreinamento.Ocaminhoestava

cobertodefolhasdouradasrecém-caídas,quefarfalhavamsobaspatas.AmentedePatadeFogo se acelerou, àprocuradaspalavras adequadas.Oque diria à líder? Que Garra de Tigre estava tramando se livrar de seuaprendiz? E o que diria quando Estrela Azul perguntasse o motivo?Conseguiria dizer claramente que suspeitava que Garra de Tigre mataraRaboVermelho?Mesmosemprovas,anãoserorelatoempolgadodePataNegranaAssembleia?Quandochegaramaovalearenoso,PatadeFogoaindanãotinhafalado.

Ovaleestavavazio.Ao chegar ao centro do vale, Estrela Azul explicou: – Pedi a Garra de

Tigrepara fazerasessãode treinamentoemoutraparteda florestahoje.Queromeconcentrarnassuashabilidadesdelutaequevocêseconcentrenelastambém,oquesignificaquenãodevehaverdistrações.Precisofalarcomelaagora,pensouoaprendiz.ElaprecisasaberquePata

Negra está correndoperigo.Aspataspinicavam, ansiosas.Não terei outraoportunidadecomoesta…PatadeFogopercebeuummovimentosúbitocomocantodoolho.Um

risco cinza passou pelo seu focinho e ele caiu para a frente quando suaspatas dianteiras foram derrubadas por uma leve rasteira. Ele vacilou,reequilibrou-se, girou o corpo e viu Estrela Azul sentada calmamente aoseulado.–Possotersuaatençãoagora?–elareclamou.–Claro,EstrelaAzul,medesculpe!–apressou-seemresponder,fitando-

lheosolhosazuis.– Assim está melhor. Pata de Fogo, já faz muitas luas que você está

conosco. Tenho observado você lutar. Com os ratos, foi ágil; com osguerreirosdoClãdasSombras,foiferoz.Mostrou-semaisespertoquePataCinzentadesdeoprimeirodiaetambémderrotouPresaAmarelacomsuainteligência. – A líder fez uma pausa e então abaixou a voz num intensociciar:–Masumdiavaiencontrarumoponentetãobomquantovocê;ágil,

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ferozeinteligente.Émeudeverprepará-loparaessedia.PatadeFogoconcordoucomacabeça,detodoenvolvidopelaspalavras

da líder, os sentidos inteiramente despertos. Todos os pensamentos arespeitodePataNegraeGarradeTigrehaviamdesaparecidoeosodoresdemusgoeospequenosbarulhosdaflorestaoinundavam.–Vamosvercomovocêluta–ordenouEstrelaAzul.–Ataque-me.PatadeFogoaolhou,medindo-adecimaabaixoeimaginandoamelhor

maneira de começar. Estrela Azul estava a menos de três coelhos dedistância.Elaeraodobrodeleemtamanho;assim,seriaumdesperdíciodeesforço começar com as patadas usuais e os golpes de luta. Mas seconseguisse dar um pulo forte e direto em suas costas, poderia fazê-laperderoequilíbrio.Nemporummomentoelaafastaradeleospenetrantesolhosazuis.PatadeFogopegouimpulsoesaltou.A intenção era cair em cheio nos ombros da gata, mas ela estava

preparada para o golpe e agachou rapidamente. Ao ser atingida, EstrelaAzulroloue ficoudebarrigaparacima.Emvezdeaterrissarnosombrosdela, ele se esborrachou na barriga da líder. Com as quatro patas, ela oatirou longe com facilidade. O aprendiz sentiu-se como um filhoteimpertinente despachado sem cerimônia. Seu corpo bateu com força nochão duro e ele ficou ali largado, antes de se pôr de pé de formadesajeitada.–Estratégiainteressante,masseusolhosdeixaramtransparecerqualera

o alvo – observou Estrela Azul ao se levantar, sacudindo a poeira dapelagemespessa.–Agora,tentedenovo.DessavezPatadeFogoolhouparaosombrosdagata,masoalvoeramas

patas. Quando Estrela Azul agachasse, ele a atingiria. Sentiu uma grandesatisfaçãoaopular,masosentimentosetransformouemconfusãoquandoa líder inesperadamente saltounoar, deixando-oesborrachar-seno chãoondeelaestiverahaviaapenasumabatidadecoração.Agatateveperfeitanoção do tempo; quando o aprendiz aterrissou, ela voou para cima dele,deixando-osemfôlego.– Agora tente alguma coisa que eu não esteja esperando – ela falou

baixinho ao seu ouvido, soltando-se dele e se afastando com um brilhodesafiadornosolhos.Pata de Fogo se levantou, arfando, e sacudiu-se, zangado. Nem Presa

Amarelatinhasidotãoastuta.Comumsilvo,voltouapular.Dessavez,aovoaremcimadeEstrelaAzul,eleesticouaspatasdianteiras.Elaergueu-se

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naspatas traseiras e, usandoasdianteiras, atirou-o longe.Quando seviuescorregando,PatadeFogoarranhouaareiacomaspatasdetrás,maseratardedemais,eelecaiupesadamentedelado.–PatadeFogo–miouEstrelaAzulcalmamenteenquantoelemaisuma

vez se atrapalhava com as próprias patas –, você é forte e rápido, masprecisa aprender amanter o controle da velocidade e do peso do corpo,paraquenãosejatãofácilfazê-loperderoequilíbrio.Tentedenovo.Pata de Fogo se afastou, acalorado, cheio de poeira, ofegante. A

frustração tomou conta dele. Estava determinado a levar amelhor dessavez.Agachou-sedevagarecomeçoua rastejarnadireçãodeEstrelaAzul.Ela percebeu o movimento e deu um silvo na cara do gato quando elechegouperto.Oaprendizlevantouumapataedesferiuumgolpenaorelhaesquerdadalíder.Elaseabaixouparaevitarapancadae,depénaspatastraseiras, ficoumais alta do que ele. Rapidamente Pata de Fogo ficou debarriga para cima, escorregou para baixo do corpo da gata e, nummovimento rápido, chutou-lhe a barriga com as patas traseiras. EstrelaAzul foi atirada longe e caiu de costas no chão arenoso, com um uivogutural.Pata de Fogo girou no ar e pulou de pé. Estava exultante. Então viu

Estrela Azul deitada no chão e, pela primeira vez, lembrou-se de seusferimentos.Teriamreabertoporcausadele?Correuparaoladodalíderefitou-a.Paraseualívio,elalhedeuumolharcheiodeorgulho.–Estefoimuitomelhor–eladisse,ofegante.Emseguida, levantou-see

sacudiu-se.–Agoraéminhavez.Pulou na direção dele, jogando-o no chão. Afastou-se e deixou-o se

levantarantesdepulardenovo.PatadeFogoficoufirme,maselavoltouaderrubá-locomfacilidade.–Olheomeu tamanho,PatadeFogo!Não tente ficardepéquandoeu

atacar.Useainteligência.Vocêérápidobastanteparameevitar;entãofaçaisso!PatadeFogoselevantou,meiodesajeitado,epreparou-separamaisum

ataquedagata.Dessaveznãocravouaspatasnochãomacio,masergueu-seligeiramente,mantendoopesonosdedosdospés.QuandoEstrelaAzulvoounasuadireção,elesedesviou,ficoudepénaspatastraseirase,comasdianteiras,empurrounoarocorpodelaparatrás.Estrela Azul aterrissou com graça nas quatro patas e se virou –

Excelente!Vocêaprenderápido–ronronou.–Masessefoiummovimento

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fácil.Vamosvercomosesainopróximo.Eles treinaramatéopôrdosol.PatadeFogodeuumsuspirodealívio

quandoouviuEstrelaAzulmiar:–Chegaporhoje.–Elapareciaumpoucocansadaeenrijecida,masaindaconseguiupularparasairdovalearenosocomfacilidade.Pata de Fogo escalou o vale atrás dela. Tinha osmúsculos doendo e a

cabeça rodando com tudo o que aprendera. Quando, juntos, seguiam atrilhaentreasárvores,elemalpodiaesperarparacontaraPataCinzentaea Pata Negra sobre sua sessão de treinamento. E foi apenas quandochegaramàfronteiradoacampamentoquePatadeFogopercebeuqueseesqueceradecontaraEstrelaAzulsobrePataNegra.

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CAPÍTULO20

QUANDO PATA DE FOGO voltou ao acampamento, este já parecia um poucomelhor. Era evidente que grupos de gatos tinham passado o diaremendandoeconsertandosemparar.PeledeGeadaeFlorDouradaaindaestavamocupadas,reforçandoasparedesdoberçário,masomuroexternovoltaraasersólidoeseguro.PatadeFogoatravessouaclareiraparaverseencontravaalgumapresa

fresca.PassouporPatadeAreiaePatadePoeira,quesepreparavamparasairnapróximapatrulha.– Desculpe – miou Pata de Areia, enquanto Pata de Fogo farejava,

esperançoso,aáreaderefeições.–Comemososdoisúltimoscamundongos.Pata de Fogo deu de ombros. Mais tarde caçaria alguma coisa para

comer. Voltou para a toca dos aprendizes, onde encontrou Pata Cinzentarecostadonotocodeárvore,lambendoumapata.–OndeestáPataNegra?–PatadeFogoperguntou,sentando-seaolado

doamigo.–Aindanãovoltou,estácumprindoatarefa–respondeuPataCinzenta.–

Veja isto! – falou, levantando a pata para o amigo examinar. O curativoestavarasgadoesangrando.–GarradeTigrememandoupescareeupiseinumapedrapontudanoriacho.–Parecebemprofundo.ÉmelhorpediraFolhaManchadaparadaruma

olhada–sugeriuPatadeFogo.–Porfalarnisso,paraondeGarradeTigremandouPataNegra?–Não tenho ideia! Eu estava com água fria até a barriga –murmurou

PataCinzenta,queselevantouesaiumancandonadireçãodatocadeFolhaManchada.Pata de Fogo se instalou e, com os olhos fixos na entrada do

acampamento, esperou por Pata Negra. Depois de ouvir a conversa dosguerreirosnanoiteanterior,nãopodiaafastarosentimentodequealgumacoisaterrívelestavaparaaconteceraoamigo.SeucoraçãodisparouquandoviuGarradeTigreentrarsozinhonoacampamento.Esperoumaisumpouco.Aluaestavaaltanocéu.SeráquePataNegrajá

nãotinhavoltado?PatadeFogolamentounãoterfaladocomEstrelaAzulquandoteveoportunidade.Agora,RiscadeCarvãoeRaboLongoestavamde guarda na toca da líder e, naturalmente, o aprendiz não queria quesoubessemdesuapreocupação.

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GarradeTigre trouxerapresas frescaseaspartilhavacomNevascanointeriordatocadosguerreiros.PatadeFogopercebeuqueestavafaminto.Talvezdevessesairparacaçar;quemsabecruzassecomPataNegraforadoacampamento. Enquanto pensava no que fazer, viu PataNegra chegandoapressado. Sentiu um arrepio de alívio, e não só porque o amigo traziapresafrescaentreosdentes.Orecém-chegadodirigiu-sediretamenteaPatadeFogoedeixoucairo

bocadonochão.–Obastanteparanóstrês!–miou,orgulhoso.–Edevesermaisquegostoso…veiodoterritóriodoClãdasSombras.PatadeFogoengasgou.–VocêpassounoterritóriodoClãdasSombras?–Eraaminhatarefa–explicouPataNegra.–GarradeTigremandouvocêcaçarnoterritórioinimigo!–PatadeFogo

malpodiaacreditar. –PrecisamoscontaraEstrelaAzul. Isso foiperigosodemais!À menção do nome da líder, Pata Negra balançou a cabeça. Tinha os

olhos apavorados, sombreados demedo, e sibilou: – Não diga nada, estábem?Eusobrevivi!Atéconseguialgumapresa.Issoétudo.–Vocêsobreviveudestavez!–disparouPatadeFogo.–Shhh!GarradeTigreestáolhando.Comaasuaparteefiquequieto!–

ralhouPataNegra.PatadeFogodeudeombrosepegouumpedaçodecaça.PataNegra comeu depressa, evitando olhar o amigo. –Devemos guardarumpoucoparaPataCinzenta?–perguntoudepoisdeumtempo.– Ele foi ver Folha Manchada – Pata de Fogo resmungou com a boca

cheia.–Cortouapata.Nãoseiquandovaivoltar.–Guardeparaelequantovocêquiser–retrucouPataNegra,parecendo

repentinamenteesgotado.–Estoucansado;precisodormir.–Levantou-seesedirigiuparaatoca.PatadeFogoficoudoladodefora,observandoorestodoacampamento

se preparar para a noite. Tinha de contar a Pata Negra o que ouvira naflorestananoiteanterior.Oamigoprecisavasaberquecorriaperigo.Garra de Tigre estava deitado ao lado de Nevasca, trocando lambidas,

mascomoolhonatocadosaprendizes.PatadeFogobocejouparamostraraGarradeTigrequeestavaexausto;entãolevantou-seeentrounatoca.PataNegraestavadormindo,e,pelotremelicardaspatasebigodes,via-

sequeestavasonhando.PatadeFogosabiaqueosonhonãoerabom,pelosligeirosmiadosepequenosguinchosqueoamigoemitia.Desúbito,ogatopreto se levantou, com os olhos arregalados de pavor. A pelagem estava

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totalmentearrepiada,ascostasemarco.–PataNegra!–alarmou-sePatadeFogo.–Acalme-se.Vocêestánanossa

toca.Sóeuestouaqui!PataNegraolhouàvolta,assustado.–Soueu!–PatadeFogorepetiu.PataNegrapiscouepareceu reconheceroamigo;emseguida, jogou-se

noleito.–PataNegra–miou,sério,PatadeFogo.–Háumacoisaquevocêprecisa

saber.Umacoisaqueouvinanoitepassadaquandosaíparaprocuraralhoselvagem. – Pata Negra desviou o olhar, ainda tremendo por causa dosonho,masPatadeFogoinsistiu.–PataNegra,ouviGarradeTigredizeraRiscadeCarvãoeaRaboLongoquevocê traiuoClãdoTrovão.AfirmouquevocêescapousorrateiramenteduranteaviagemparaaBocadaTerraecontouaoClãdasSombrasqueoacampamentoestavadesguardado.Pata Negra girou o corpo para encarar o amigo. – Mas não fiz isso! –

exclamou,horrorizado.–Claroquenãofez!–concordouPatadeFogo.–MasRiscadeCarvãoe

Rabo Longo acreditam que sim, e Garra de Tigre os convenceu de quedevemselivrardevocê.PataNegraresfolegava,semconseguirfalar.–Porqueelequerselivrardevocê,PataNegra?–perguntougentilmente

PatadeFogo.–Eleéumdosguerreirosmaisfortesdoclã.Queameaçavocêrepresenta para ele? – Pata de Fogo suspeitava já saber a resposta,masqueria ouvir a verdade do próprio Pata Negra. Esperou enquanto o gatogaguejavaatrásdepalavras.Finalmente, Pata Negra aproximou-se lentamente de Pata de Fogo e

cochichouemseuouvido:–PorquenãofoiorepresentantedoClãdoRioquematouRaboVermelho;foiGarradeTigre.Emsilêncio,PatadeFogosinalizouqueestavaentendendo,ePataNegra

continuou, comosbigodesagitadosde tensão. –RaboVermelhomatouorepresentantedoClãdoRio…–EntãoGarradeTigrenãomatouCoraçãodeCarvalho–PatadeFogo

nãoseconteveeinterrompeu.Pata Negra balançou a cabeça. – Não, não matou! Depois que Rabo

Vermelhomatou Coração de Carvalho, Garra de Tigrememandou voltarparaoacampamento.Euqueriaficar,maseleuivouparaeuir;entãocorri

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para as árvores.Devia ter continuado a correr,masnãopodia ir emboraenquantoaindaestivessemlutando.Mevireie,rastejando,fuiverseGarradeTigreprecisavadeajuda.Quandomeaproximei,todososguerreirosdoClã do Rio tinham fugido, restavam apenas Rabo Vermelho e Garra deTigre.RaboVermelhoestavaobservandooúltimoguerreiro fugireGarradeTigre…–PataNegrafezumapausa,depoisresfolegou–GarradeTigrep-pulou em cimadele, cravando-lheosdentesnanuca, eRaboVermelhocaiumorto no chão. Foi quando corri. Não sei se Garra de Tigreme viu.Continueiemdisparadaatéchegardevoltaaoacampamento.–PorquenãocontouaEstrelaAzul?–PatadeFogopressionou,gentil.–Seráqueelaacreditariaemmim?–PataNegraduvidou,revirandoos

olhos.–Vocêacreditaemmim?– Claro que sim – Pata de Fogo miou. Lambeu Pata Negra entre as

orelhas, tentando acalmar e confortar o amigo. Teria de achar outraoportunidadeparafalaraEstrelaAzuldatraiçãodeGarradeTigre.–Nãose preocupe, vou esclarecer a situação – prometeu. – Enquanto isso, nãosaiadepertodemimoudePataCinzenta.–PataCinzentasabequeelesqueremseverlivresdemim?–Aindanão.Masvouterdecontaraele.PataNegracalou-see,ajeitando-sesobreabarriga,fitouovazio.– Está tudo bem, PataNegra – ronronou Pata de Fogo, tocando como

narizocorpomagrodoamigo.–Vouajudá-loasairdessasituação.

PataCinzentaentrounatocaquandoodiaamanheceu.PatadeAreiaePatade Poeira tinham voltado da patrulha havia pouco tempo e dormiam emseusninhos.–Olá!–miouPataCinzenta,parecendomaisanimadodoquenosúltimos

dias.PatadeFogoacordoudeimediatoeronronou:–Vocêparecemelhor.PataCinzentalambeuaorelhadePatadeFogo.–FolhaManchadapassou

umpoucodevisconocorteememandouficardeitadoporhoras,semmemexer. Devo ter adormecido. Aliás, espero que aquele pintassilgo lá forasejaparamim;estoumorrendodefome!–Ésim;PataNegraocaçou.GarradeTigreomandouparaa…–Calemaboca,vocêsdois–rosnouPatadeAreia.–Algunsdenósestão

tentandodormir.

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Pata Cinzenta revirou os olhos. – Venha, Pata de Fogo – miou. – CaraRajadatevefilhotes;vamosvisitá-los.PatadeFogoronronoudeprazer.Enfim,algumacoisaparacelebrarno

ClãdoTrovão.OlhouparaPataNegra,queaindaestavadormindo,esaiudatoca sem fazer barulho. Acompanhado de Pata Cinzenta, atravessou aclareiranadireçãodoberçário.Osolnascendofezsuapelagembrilharcomocaloreeleseespreguiçoucomvontade,revelandoaflexibilidadedesuaespinhaeaforçadesuaspernas.–Paredeseexibir!–PataCinzentareclamousobreosombros.Patade

Fogoparoudesealongareseguiuoamigo.Nevasca estava sentado do lado de fora do berçário, guardando a

entrada.–Vieramverosbebês?–miouàaproximaçãodePatadeFogoedePataCinzenta.PatadeFogofezquesim.Nevasca instruiu:–Queentreumdecadavez,ooutro terádeesperar.

EstrelaAzulestácomelaagora.–Vocêpodeirprimeiro–PatadeFogoofereceu.–Enquantoisso,vouver

PresaAmarela.–Despediu-sedeNevascacomumaeducadamesuraesaiunadireçãodoninhodagata.PresaAmarela estava limpandoatrásdasorelhas, concentrada, comos

olhossemicerrados.–Nãomedigaqueestáesperandochuva!–PatadeFogoprovocou.Presa Amarela olhou para ele e replicou: – Você anda ouvindomuitas

históriasdosanciãos.Porquerazãoumgatolavariaasorelhassevaipegarchuvadequalquermaneira?OsbigodesdePatadeFogosemexeram,divertidos.–Nãovaiveranova

ninhadadeCaraRajada?–perguntou.Presa Amarela se retesou e balançou a cabeça. – Não acho que seria

muitobem-vinda–grunhiu.–Maselessabemquevocêsalvou…–PatadeFogocomeçou.–Asgatassuperprotegemseus filhotesrecém-nascidos,principalmente

quandosetratadaprimeiraninhada.Achoquevouficardelonge–PresaAmarelaocortounumtomquenãodavachanceanenhumaponderação.–Comoquiser.Maseuvouvê-los.Deveserumbomsinal,filhotesnovos

noacampamento.PresaAmareladeudeombros.–Podeser–murmurou,sombria.

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PatadeFogovirou-seevoltouparaoberçário.Nuvenstinhamencobertoo sol, tornando o ar mais fresco. Uma forte brisa movimentava a suapelagemeespalhavaasfolhaspelaclareira.Estrela Azul estava sentada do lado de fora do berçário. Atrás dela, a

caudadePataCinzentaacabavadedesaparecernaentradaestreita.–PatadeFogo–agatacumprimentou–,veioverosmaisnovosguerreirosdoClãdoTrovão?–Alídertinhaavozcansadaetriste.PatadeFogoficousurpreso.Osbebêserammesmoumaboanotíciapara

oClãdoTrovão?–Vim,sim–respondeu.–Quandoterminaravisita,venhaatéminhatoca.–Sim,EstrelaAzul–miouoaprendizenquantoa líder seafastava.Ele

sentiuapelagempinicar.AliestavaoutraoportunidadeparafalarsozinhocomEstrelaAzul.Quemsabe,afinal,oClãdasEstrelasestavaaseulado.Pata Cinzenta se afastou da entrada do berçário. – São realmente uma

graça–comentou.–Masagoraestoumortodefome.Vousairecaçarumaspresas frescas. Se conseguir, guardarei algumas para você! – disse,piscandocomcarinhoparaPatadeFogoesedistanciando.Pata de Fogo ronronou um até logo e olhou para Nevasca, que, com a

cabeça,deu-lhepermissãoparaentrarnoberçário.Esgueirando-sepelaentradadiminuta,PatadeFogodeparoucomquatro

gatinhos minúsculos, aconchegados no ninho fundo preparado por CaraRajada. Exceto umdeles, compelo cinza escuro, todos tinhama pelagemcinza clara commanchas escuras, exatamente como amãe.Miavam e seenroscavamjuntoàbarrigadeCaraRajada,comosolhosbemfechados.–Comosesente?–PatadeFogoperguntoubaixinho.–Umpoucocansada–respondeuolhandocomorgulhoparaaninhada.–

Masosbebêssãotodosfortesesaudáveis.–OClãdoTrovãotemsorteemtê-los–PatadeFogoronronou.–Estava

falandosobreelescomPresaAmarela.Cara Rajada não respondeu, e Pata de Fogo percebeu o lampejo de

preocupaçãonosolhosdagataquandopuxavaumgatinhofujão.Pata de Fogo sentiu no estômago um tremor de ansiedade. Embora

EstrelaAzultivesseaceitadoPresaAmarelanoClãdoTrovão,pareciaqueavelha gata ainda não contava com a confiança de todos. Com o focinho,tocou carinhosamente a lateral de Cara Rajada, virou-se e voltou para a

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clareira.A líder do clã esperava Pata de Fogo na entrada da toca. Rabo Longo

estava sentado ao lado dela. O guerreiromalhado encarou Pata de Fogocom firmeza, mas o aprendiz o ignorou e olhou com expectativa paraEstrelaAzul.–Entre–elamiou,virando-separa indicarocaminho.PatadeFogofoi

atrás.RaboLongoimediatamenteselevantou,comosefossesegui-los.Estrela Azul o olhou por sobre o ombro emiou: – Acho que estarei a

salvocomo jovemPatadeFogo.–RaboLongopareceu inseguroporuminstante;emseguida,sentoudoladodefora.PatadeFogo jamaisestiverana tocadeEstrelaAzul. Seguiu-a comum

andarmaciopelo líquenquecobriaaentrada.–OsbebêsdeCaraRajadasãoadoráveis–ronronou.Estrela Azul estava séria. – Podem ser adoráveis, mas significammais

bocasparaalimentar,eaestaçãosemfolhaslogovaichegar.–Olhouentãopara Pata de Fogo, que não conseguia disfarçar a tristeza pelo tommelancólico da líder. – Ah, não preste atenção no que eu digo – miouEstrela Azul, balançando a cabeça, impaciente. – O primeiro vento friosempreme preocupa. Venha, fique à vontade. – Ela inclinou a cabeça nadireçãodochãosecoearenoso.PatadeFogoseacomodousobreabarrigaeesticouaspatasàfrente.EstrelaAzul andava lentamenteemcírculos emseuninhodemusgo. –

Aindaestoudoloridadanossasessãodetreinamentodeontem–admitiuquandofinalmenteseaquietoueenroscouacaudaàvoltadaspatas.–Vocêlutoubem,meujovem.Pelaprimeiravez,PatadeFogonãoparouparasedeliciarcomoelogio.

Seucoraçãoestavadisparado.AqueleeraomomentoperfeitoparafalaràlíderdosseusmedosarespeitodeGarradeTigre.Ele levantouoqueixo,prontoparafalar.Mas foiEstrelaAzulque falouprimeiro, comoolharalémdele, fixona

parededatoca.–AindasintoofedordoClãdasSombrasnoacampamento–murmurou.–Esperavanuncaverodiaemqueosinimigosinvadiriamocoração do Clã do Trovão. – Pata de Fogo concordou em silêncio,percebendoqueEstrelaAzuliacontinuar.– E tantas mortes – ela suspirou. – Primeiro, Rabo Vermelho, depois

Coração de Leão. Ao menos agradeço ao Clã das Estrelas porque osguerreiros quenos restaram são fortes e leais como eles. Aomenos com

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GarradeTigre como representante, o Clã doTrovão ainda é capazde sedefender.OcoraçãodePatadeFogopesoueumventogeladooinvadiuàmedidaqueEstrelaAzulcontinuava.–Houveumtempo,quandoGarradeTigre era um jovem guerreiro, que temi pelo ímpeto de sua paixão. Talenergia precisa ser bem canalizada.Mas agora estou orgulhosa de ver orespeitoqueoclãtemporele.Seiqueéambicioso,masaambiçãofazdeleumdosfelinosmaiscorajososquejátiveahonradeterameuladonumabatalha.PatadeFogosoubeimediatamentequenãopodiacomentarcomEstrela

AzulsuassuspeitasarespeitodeGarradeTigre.Nãoquandoelacontavacomseurepresentanteparaprotegertodooclã.Primeiro,elemesmo,Patade Fogo, teria de salvar Pata Negra. Respirou fundo e pestanejou; dessemodo,quandoalídervirou-seeofitoudiretamentenosolhos,nãohaviaalivestígiodeespantooudesapontamento.As palavras seguintes de Estrela Azul foram emitidas em tom baixo e

cheiodepreocupação.–VocêsabequeEstrelaPartidavaivoltar.EledeixouclaronaAssembleiaqueexigedireitosdecaçaemtodososterritórios.–Nóso rechaçamosumavez. Podemosvoltar a fazê-lo –PatadeFogo

insistiu.–Éverdade.–EstrelaAzulconcordoucomumacenoesquisito.–OClã

dasEstrelasvaihonrarsuacoragem,jovemPatadeFogo.–Fezumapausaelambeuumdosferimentosnoflanco.–Achoquevocêprecisasaberque,nabatalhacomosratos,nãofoiminhaquintavidaqueperdi,masasétima.PatadeFogocolocou-seimediatamentedepé,chocado.EstrelaAzulcontinuou.–Deixeioclãacreditarquesetratavademinha

quintavidaporquenãoqueroquetemampelaminhasegurança.Maisduasvidasetereideabandoná-losemejuntaraoClãdasEstrelas.Pata de Fogo raciocinava velozmente. Por que ela estaria lhe dizendo

aquilo?–Obrigadoporpartilharissocomigo,EstrelaAzul–eleronronou,respeitoso.A líder fez um gesto com a cabeça. – Estou cansada agora – falou

bruscamente. – Vá embora. Pata de Fogo, espero quenão comente sobreestaconversacomninguém.–Claroquenão,EstrelaAzul–respondeuoaprendizaosairpelacortina

delíquen.RaboLongoaindaestavasentadoàentrada.PatadeFogopassouporele

esedirigiuàsuatoca.NãosabiaquepedaçodaconversacomEstrelaAzul

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odeixaramaisperplexo.Deteve-seaoouvirumgritodehorrorvindodoberçário.PeledeGeada

veioaospulosatéaclareira,comacaudaerguidaeosolhosarregaladosemalarme.–Meusfilhotes!Alguémlevoumeusfilhotes!Garra de Tigre saltou na direção dela e convocou o clã. – Depressa,

vasculhem o acampamento! Nevasca, fique onde está. Guerreiros,patrulhemafronteiradoacampamento.Aprendizes,procurememtodasastocas.PatadeFogocorreuatéatocamaispróxima,adosguerreiros,eforçoua

entrada. Estava vazia. Apalpou as camas,mas ali tambémnãohavia nemsinalnemcheirodosbebêsdePeledeGeada.Saiu,dirigindo-serapidamenteàprópriatoca.PataNegraePataCinzenta

já estavam lá, deslocando os ninhos, farejando todos os cantos. Pata dePoeira e Pata de Areia vasculharam a toca dos anciãos. Pata de Fogodeixou-os encarregar-se disso e passou de ummonte de grama a outro,enfiandonelesonariz,ignorandooespetardasurtigas.Nãohaviasinaldosfilhotes.Olhouàvoltadoslimitesdoacampamento.Osguerreirosandavamparatráseparaafrente,farejandosofregamenteoar.Derepente,PatadeFogolocalizouPresaAmarelaadistância.Elatentava

atravessarum trechodomurode samambaias ondenãohavia vigilância.Provavelmentesentiraalgumcheiro,pensou,ecorreunadireçãodagata,cuja cauda desapareceu no verde. Quando ele alcançou o muro desamambaias, ela já havia partido. Pata de Fogo farejou o ar. Não haviacheirode filhotes, apenas o odor amargodomedodePresaAmarela.Doqueelateriamedo?–perguntou-seoaprendiz.O grunhido de Garra de Tigre surgiu dos arbustos atrás do berçário.

Todos os gatos rumaram para lá às pressas, Pele de Geada à frente.Amontoaram-se entre cotoveladaspara tentar enxergar atravésdadensavegetação.PatadeFogoenfiouonarizeviuGarradeTigresobreumfardoimóveldepelagemsalpicada.FolhaManchada!PatadeFogoolhou,incrédulo,ocorposemvida.Umsentimentodefúria

tomoucontadele,comosefosseumanuvemescura;sentiuosanguelatejarnasorelhas.Quemteriafeitoaquilo?EstrelaAzulabriu caminhonamultidãoe inclinou-se sobreo corpoda

curandeira – Ela foi morta pelo golpe de um guerreiro –miou, com vozsuave.

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Pata de Fogo levantou o pescoço e viu uma única ferida por trás dopescoço de Folha Manchada. Sua cabeça girou e ele, de repente, nãoconseguiaconcatenarasideias.Em meio à tristeza, Pata de Fogo ouviu um murmúrio no fundo da

multidão, que cresceu até se tornar um único e cortante uivo. – PresaAmarelasefoi!

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CAPÍTULO21

–PRESAAMARELAMATOUFolhaManchadaelevoumeusfilhotes!–gritouPeledeGeada.Asoutrasrainhascorreramparaseu ladoetentaramacalmá-lacom lambidas e carinhos, mas Pele de Geada afastou-as e exprimiu seulamentoaocéuqueescurecia.Comose respondesse,o céuagitou-secomumestrondoterrível,eumventofrioondeouapelagemdosfelinos.–PresaAmarela!–sibilouGarradeTigre.–Sempresoubequeerauma

traidora.Agora sabemos como conseguiu liquidar o representantedoClãdasSombras.Foiumaarmaçãoparaelaseinfiltrarfurtivamentenonossoclã!Raiosintensosrasgavamocéu,pontuandoaspalavrasdeGarradeTigre

com um clarão branco e brilhante; estrondos de trovão percorriam afloresta.PatadeFogonãoconseguiaacreditarnoqueestavaouvindo.Mortificado

de tristeza, sua mente rodopiava. Será que Presa Amarela realmentemataraFolhaManchada?Acimadosmurmúriosestupefatos,RiscadeCarvãomiavaalto.–Oque

vocêacha,EstrelaAzul?Osgatosfizeramsilêncioeseviraramparaalíder.O olhar de Estrela Azul percorreu a multidão de felinos e finalmente

parou no corpo de Folha Manchada. As primeiras gotas de chuvacomeçaram a cair, brilhando como gotas de orvalho na pelagem aindalustrosadacurandeira.EstrelaAzulpestanejou.A tristeza tomoucontade seu rostoe,porum

instante,PatadeFogotevemedodequeessanovamorteaarrasasse.Mas,quando seus olhos se abriram, brilhavam com uma ferocidade quemostrava sua determinação em buscar vingança por esse ataque cruel.Levantou a cabeça. – Se Presa Amarela tiver matado Folha Manchada esequestradoosfilhotesdePeledeGeada,serácaçadasemmisericórdia.–Amultidão miou, aprovando. – Mas precisamos esperar. – Estrela Azulcontinuou. –Está chegandouma tempestade enão estoupreparadaparaarriscarmaisvidas.SeoClãdasSombrasestivercomnossosfilhotes,nãocausarão nenhum dano imediato. Não vão machucá-los. Suspeito queEstrela Partida queira fazer deles recrutas de seu próprio clã, ou reféns,para nos forçar a deixá-lo caçar em nosso território. Assim que o mautempopassar,umapatrulhasairánoencalçodePresaAmarelaparatrazer

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devoltaosfilhotes.– Não podemos perder tempo, ou o cheiro vai se dissipar na chuva! –

protestouGarradeTigre.Estrela Azul, impaciente, balançou a cauda. – Se enviarmos um grupo

para persegui-la agora, nosso esforços serão vãos, de qualquer maneira.Com toda esta umidade, o cheiro já terá se perdido quando estivermosprontos para sair. Se esperarmos até a tormenta passar, teremos maischancedesucesso.Ouviram-se murmúrios de concordância entre o clã. Embora o sol

estivesse quase a pino, o céu estava cada vezmais escuro. Nervosos porcausadosraiosetrovões,osgatospreferiramouviroconselhodalíder.EstrelaAzulolhouparaorepresentante.–Porfavor,gostariadediscutir

os planos com você, Garra de Tigre. – O guerreiro fez que sim e,caminhandocomumjeitoarrogante,dirigiu-seàtocadalíder;masEstrelaAzuldeixou-oireesperou.OlhouparaPatadeFogo,sinalizando,comumbalançardecaudaeummovimentodosbigodes,quequeriafalarcomeleemparticular.OsoutrosfelinossereuniramàvoltadeFolhaManchadaecomeçarama

lambero corpoda curandeira, seus lamentos se sobrepondoaos trovões.Estrela Azul abriu caminho entre eles e dirigiu-se ao túnel de tojos, quelevavaàtocadeFolhaManchada.Pata de Fogo, sem ruído, abriu caminho entre a multidão de gatos,

entrandona toca.Estavamuito escuro sobas samambaias.A tempestadetinhaescurecidoocéudamanhã;assim,pareciaqueanoitetinhachegado.A chuva caía mais pesada, fazendo barulho nas folhas, mas, ao menos,estavamprotegidosnaclareiradeFolhaManchada.– Pata de Fogo – miou Estrela Azul em tom de urgência quando ele

chegou–,ondeestáPresaAmarela?Vocêsabe?PatadeFogomalaouvia.Nãopodiadeixardelembraraúltimavezque

fora àquela clareira. A imagemde FolhaManchada saindo da toca com apelagem brilhando à luz do sol queimava em suamente, e ele fechou osolhosparapreservá-la.–PatadeFogo–disseEstrelaAzul,chamandosuaatenção–,deixeseu

lamentoparamaistarde.Pata de Fogo se sacudiu. – Eu… Eu vi Presa Amarela ultrapassar a

fronteira do acampamento depois do sumiço dos filhotes. AcreditarealmentequeelatenhamatadoFolhaManchadaesequestradoosfilhotes?

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– Não sei – admitiu Estrela Azul, olhando-o firmemente. – Quero quevocêaencontreeatragadevolta,viva.Precisosaberaverdade.–NãovaimandarGarradeTigreatrásdela?–PatadeFogonãocontevea

pergunta.–GarradeTigreéumgrandeguerreiro,mas,nessecaso,alealdadeque

dispensaaoclãpodeobscurecerseudiscernimento–explicoualíder.–Elequerdaraoclãavingançaqueoclãdeseja.Nenhumgatopodeculpá-loporisso. O clã acredita que fomos traídos por Presa Amarela, e se Garra deTigre acha que pode restaurar a confiança de todos entregando-lhes seucadáver,éexatamenteoquefará.Pata de Fogo concordou em silêncio. Ela estava certa: Garra de Tigre

matariaPresaAmarelasemhesitar.Estrela Azul parecia implacável naquele momento. – Se descobrir que

Presa Amarela nos traiu, eu mesma vou matá-la. Mas se isso não tiveracontecido… – Os olhos azuis queimaram em Pata de Fogo. – Não voudeixarumgatoinocentemorrer.–Mas,esePresaAmarelanãovoltar?–miouPatadeFogo.–Elavoltará,sevocêpedir.Pata de Fogo ficou impressionado com a confiança que Estrela Azul

depositavanele.Sentiupesarsobresiofardodaenormetarefaqueelalheimpunha, e ficou pensando se tinha coragem suficiente para cumpriraquelamissão.–Vádeumavez!–elaordenou.–Mastenhacuidado;vocêestarásozinho

epodehaverporaípatrulhasinimigas.Essatempestadevaimanternossosguerreirosnoacampamentoporumtempo.Oaprendizsaiudaclareiraàspressas.Trovõesrugiamsobresuacabeça.

A chuva caía forte, e as gotas batiam em sua pelagem como pedraspequeninas.OclarãodeumrelâmpagoiluminouorostodeRiscadeCarvãoedeRaboLongo,queoobservavam.Pata de Fogo passou pelo berçário num pulo. Não podia partir sem

lamberFolhaManchada.Osoutrosfelinostinhamcorridoparaseproteger,abandonando o corpo da curandeira sob a chuva torrencial enquanto seabrigavamsobassamambaiasencharcadas,miandoseumedoesuaperda.Pata de Fogo enterrou o focinho no pelo molhado da curandeira e

inspirouseuperfumepelaúltimavez.–Adeus,minhadoceFolhaManchada–murmurou.SuasorelhasseretesaramquandoouviuasvozesdePeledeGeadaede

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Cauda Sarapintada, que conversavam ali perto. Ficou imóvel, tentandoouviroquediziam.–PresaAmareladevetertidoajuda–grunhiuCaudaSarapintada.–AlguémdoClãdoTrovão?–perguntou,ansiosa,PeledeGeada.–VocêouviuoqueGarradeTigrefaloudePataNegra.Talvezeletenha

algumacoisaavercomisso.Eumesmanuncamesentiàvontadecomele.OpelodaespinhadePatadeFogoeriçou-se.SeGarradeTigreespalhara

seus boatosmaldosos até o berçário, Pata Negra não estaria a salvo emnenhumlugardoacampamento.Pata de Fogo percebeu que precisava agir rapidamente. Primeiro

encontrariaPresaAmarela, depois cuidariadePataNegra. Correupara oúltimolugarondeavistaraPresaAmarela.Conheciatãobemseucheiroquepoderiaidentificá-loentreasfolhasencharcadasdechuva.Começouaabrircaminhoentreosarbustos,comabocaaberta,paradetectaraondelevavaorastrodagata.–PatadeFogo!Oaprendizpulouelogodepoisseacalmou,aoverquesetratavadePata

Cinzenta.–Estavaprocurandovocê!–miouoamigoaocorrernasuadireção.PatadeFogoafastou-secautelosamentedassamambaias.Pata Cinzenta tinha os olhos semicerrados, para evitar que a chuva,

escorrendo por sua pelagem longa, neles entrasse. – Aonde você vai? –miou.–ProcurarPresaAmarela–respondeuPatadeFogo.– Sozinho? – indagou o amigo, com o rosto largo carregado de

preocupação.Pata de Fogo pensou por ummomento e decidiu contar a verdade ao

amigo:–EstrelaAzulmepediuparatrazerPresaAmareladevolta.–Oquê?–PataCinzentapareciaemchoque.–Porquevocê?– Talvez ela ache que, conhecendo Presa Amarela melhor, possa

encontrá-lamaisfacilmente.– Um grupo de guerreiros não teria mais chances? – Pata Cinzenta

perguntou.–GarradeTigreéomelhorrastreadordoclã;sealguémpodetrazê-ladevolta,éele.– TalvezGarra deTigre não a trouxesse de volta –murmurouPata de

Fogo.

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–Oquequerdizercomisso?–GarradeTigreestáatrásdevingança.Elesimplesmenteamataria.–MasseelamatouFolhaManchadaesequestrouosfilhotes…–Acreditamesmonisso?–perguntouPatadeFogo.PataCinzentaolhouparaoamigo,balançandoacabeça,confuso.–Você

achaqueelaéinocente?– Não sei – Pata de Fogo admitiu. – Tampouco Estrela Azul. Ela quer

descobriraverdade.Porissoestámandandoamim,nãoGarradeTigre.– Mas, e se elamandasse Garra de Tigre trazê-la de volta viva… – As

palavrasdePataCinzentaforamsufocadasporumtrovãoensurdecedorepeloclarãodeumrelâmpago,queiluminouasárvoresaoredor.Sobaluzofuscante,PatadeFogovislumbrouPeledeGeadaexpulsando

PataNegradoberçário.Orostodarainhabrancaestavacrispadodefúriaenquantoelasibilavaparao jovemgatoeseprojetavaparaa frenteparadarneleumamordidadeadvertêncianapernatraseira.–PataCinzentavirou-separaPatadoFogo:–Masoqueéisso?Pata de Fogo olhou fixamente para o amigo, com amente acelerada à

procura de uma nova ideia. Parecia que o tempo de Pata Negra tinha seesgotado,ePatadeFogoprecisavadaajudadePataCinzenta.Masseráqueo amigo acreditaria nele?O vento estava começando a rugir na copadasárvores,ePatadeFogoprecisouelevaravoz.–PataNegraestáemgrandeperigo.–Como?–Precisoafastá-lodoClãdoTrovão.Agora,antesquealgumacoisa lhe

aconteça.PataCinzentaficouconfuso.–Porquê?EPresaAmarela?–Nãohátempoparaexplicar–PataCinzentamiou,apressado.–Vocêvai

ter de confiar em mim. Deve haver um jeito de conseguir afastar PataNegra. Estrela Azul vai manter os guerreiros no acampamento até quepasseatempestade,masissonãonosdámuitotempo.–Eletentoupensarnos cantos escondidos da floresta alémdo território do Clã doTrovão. –Teremosdelevá-loparaumlugarondeGarradeTigrenãooencontreeelepossasobreviversemoclã.PataCinzentaolhouparaeleporuminstante.–QuetalcomCevada?– Cevada! – Pata de Fogo repetiu. – Está sugerindo que levemos Pata

Negra para o lugar dos Duas-Pernas? – Suas orelhas estremeceram de

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empolgação.–É,talvezsejaamelhorideia.–Então,vamos–miouPataCinzenta.–Oqueestamosesperando?PatadeFogoficoualiviado.Jádeviasaberquepodiacontarcomaajuda

dovelhoamigo.Sacudiu-separatirarasgotasdechuvadacabeçaetocoucomofocinhoapelagemdePataCinzenta.–Obrigado–ronronou.–Agora,vamosbuscarPataNegra.Eleestavanatocadosaprendizes,enroscado,infeliz.PatadeAreiaePata

dePoeiratambémestavamemseusninhos,tensoseamedrontadoscomatormentaquecaía.–PataNegra–PatadeFogosibilouàentrada.PataNegra levantouosolhos.PatadeFogomovimentouasorelhaseo

gatonegrooseguiunatempestade.–Venha.Vamoslevá-loatéoCevada–PatadeFogomurmurou.–Cevada?–ogatoperguntou,espantado,estreitandoosolhosporcausa

dachuvaforte.–Porquê?– Lá você ficará mais seguro – respondeu Pata de Fogo, fitando-o

diretamentenosolhos.– Você viu o que Pele de Geada fez? – miou Pata Negra, com a voz

trêmula.–Euestavaapenasverificandoseosfilhotes…–Venha!–PatadeFogoointerrompeu.–Temosdenosapressar!OsamigosseentreolharamePataNegraagradeceu:–Obrigado,Patade

Fogo.–Emseguida,voltou-senadireçãodoventoeatravessouaclareira.Os três correram para a entrada do acampamento, com a pelagem

grudada no corpo por causa do vento avassalador. Quando entraram notúneldetojos,umavozoschamoudevolta.–Vocêstrês!Aondevão?EraGarradeTigre.Pata de Fogo girou o corpo, sentindo o coração disparar. Ficou

desesperado, imaginando o que poderia dizer, quando viu Estrela Azulcaminhando, resoluta, na direção deles. Ela franziu o cenho por uminstante;entãoseurostoseabriu.–Muitobem,PatadeFogo–elamiou.–Vejoqueconvenceuseusdois

amigosairemcomvocê.OClãdoTrovãotemaprendizesvalentes,GarradeTigre,jáqueestãodispostosacumprirumamissãocomumtempodesses.–Temcertezadequeéhoraparamissões?–argumentouoguerreiro.–UmdosfilhotesdeCaraRajadaestácomtosse.–AvozdeEstrelaAzul

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eradeumacalmagelada.–PatadeFogoseofereceuparapegarumpoucodeunha-de-cavalo.–Elerealmenteprecisaqueosamigostambémvão?–perguntouGarra

deTigre.– Nessa tempestade, acho que ele tem sorte por ter companhia –

respondeuEstrelaAzul.FitouprofundamenteosolhosdePatadeFogoeoaprendiz,desúbito,deu-secontadaconfiançaquealíderdepositavanele.–Vocêstrês,podemir–elamiou.Agradecido, Pata de Fogo devolveu o olhar. – Obrigado – ronronou,

abaixando a cabeça. Lançando um rápido olhar aos companheiros,comandou o grupo pelos caminhos conhecidos na direção de QuatroÁrvores. O vento uivava entre os galhos e as árvores balançavam, ostroncos estalando e quebrando, como se fossem tombar a qualquermomento.Achuvacaíainclementepelasfolhas,ensopandoosfelinosatéocouro.Chegaram ao riacho, mas as pedras que normalmente usavam como

apoio,pulandodeumaemuma,tinhamdesaparecido.Osgatospararamnamargemeolharam,desanimados,paraorio–largo,marromeagitado.–Poraqui–miouPatadeFogo.–Háumaárvorecaída.Podemosusá-la

paraatravessar.–ConduziuPataCinzentaePataNegra rioacimaatéumtroncoqueficavaaapenasumpassodefilhoteacimadaáguaapressada.–Tenham cuidado para não escorregar! – Pata de Fogo advertiu. O troncoestava descascado, restando apenas amadeiramacia emolhada para osfelinos se equilibrarem. Com cuidado, os três gatos caminharam por ele.PatadeFogopulouparaooutroladoeficouobservandoosamigosatéqueelestambémchegassemasalvo.As árvores erammaioresdooutro lado,permitindoque se abrigassem

umpoucodatempestadeenquantocorriam,ladoalado.– Vai me dizer exatamente por que precisamos afastar Pata Negra? –

perguntou,ofegante,PataCinzenta.– Porque ele sabe que Garra de Tigre matou Rabo Vermelho! –

respondeuPatadeFogo.– Garra de Tigre matou Rabo Vermelho! – repetiu Pata Cinzenta,

incrédulo,parandoderepenteefixandooolharprimeiroemPatadeFogo,depoisemPataNegra.–NabatalhacomoClãdoRio–bufouPataNegra.–Euovi.–Masporqueelefariaisso?–PataCinzentaprotestou,voltandoaandar.

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ComeçaramadesceraencostaquelevavaàclareiradasQuatroÁrvores.–Nãosei.Talvezpensassequepor issoEstrelaAzuloescolheria como

representante–opinouPatadeFogo,sobrepondoavozaovento.PataCinzentanãoreplicou,masseurostoanuviou-se.Osgatoscomeçaramasubiraencostaíngremequedavanoterritóriodo

ClãdoVento.Pulandoderochaemrochanoaclive,PatadeFogofalavacomPataCinzenta,quevinhaatrás.Queriaqueoamigocompreendesse comoera perigoso para PataNegra ficar no acampamento do Clã do Trovão. –OuviGarradeTigreconversarcomRiscadeCarvãoeRaboLongonanoiteemqueCoraçãodeLeão foimorto–eleuivou. –Elequer sever livredePataNegra.–Ver-selivredele?Vocêquerdizermatá-lo?–PataCinzentacaiusentado

numapedra.Pata de Fogo tambémparou e olhou para os amigos. PataNegra tinha

parado mais abaixo na encosta, com os flancos subindo e descendo, nabusca de ar. Parecia menor do que nunca com a pelagem encharcadapendendodocorpoextremamentemagro.–Vocêviu comoPeledeGeadasedirigiuaPataNegrahoje?–Patade

Fogo miou para Pata Cinzenta. – Garra de Tigre está dizendo a todo omundoquePataNegraétraidor.MaseleficaráasalvocomCevada.Agoravamos,precisamosnosapressar!EraimpossívelconversarnocampoabertodoterritóriodoClãdoVento.

Oventouivavaaoredordelesenquantoouviam-setrovões,raioscortandoo céu. Os três felinos abaixaram as cabeças e seguiram em frente, nocoraçãodatempestadePorfim,chegaramàbeiradoplanaltoquemarcavaofimdoterritóriodo

ClãdoVento.–Nãopodemoslevarvocêmaisadiante,PataNegra–miouPatadeFogo

nomeiodaventania.–TemosdevoltareencontrarPresaAmarelaantesqueatempestadepasse.PataNegraolhouatravésdachuvatorrencial,apavorado.Concordouem

silêncio.–VocêvaiconseguirencontrarCevadasozinho?–gritouPatadeFogo.–Vou,lembroocaminho–respondeuPataNegra.–Cuidadocomaquelescães–advertiuPataCinzenta.Pata Negra aquiesceu: – Pode deixar. – De repente, franziu o cenho. –

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ComotemcertezaqueCevadavaimereceberbem?–Apenasdigaaelequeumavezvocêpegouumaserpente!–respondeu

Pata Cinzenta, tocando com carinho o ombro do amigo ensopado pelachuva.–Vá–apressouPatadeFogo,cientedequeotempoeracurto.Lambeuo

peitomagrodePataNegraedisse:–Nãosepreocupe; cuidareiparaquetodossaibamquevocênãotraiuoClãdoTrovão.–E seGarradeTigre vier atrás demim? –Mal se ouvia a vozdePata

Negranomeiodatempestadebarulhenta.Pata de Fogo fitou-o nos olhos. – Não virá. Direi a ele que você está

morto.

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CAPÍTULO22

PATADEFOGOEPATACINZENTArefizeramocaminhodevoltaaoterritóriodoClãdoTrovão.Ambos estavamcompletamentemolhados e comos ossosmoídos,mas Pata de Fogomantinha o passo. A tormenta começava a sedissipar. Uma patrulha do Clã do Trovão logo sairia no encalço de PresaAmarela.Precisavamencontrá-laprimeiro.Océuaindaestavaescuro,emboraasnuvenscarregadascomeçassema

se movimentar para o horizonte. Pata de Fogo imaginou que devia serquasepôrdosol.–PorquenãovamosdiretoaoterritóriodoClãdasSombras?–sugeriu

Pata Cinzenta quando desciam a íngreme encosta na direção das QuatroÁrvores.– Precisamos primeiro encontrar o cheiro de Presa Amarela – Pata de

Fogoexplicou.–Esperoqueelenãonos leveaoacampamentodoClãdasSombras.PataCinzentaolhoudeviésparaoamigo,masnãorespondeu.Voltaramapassarpeloriacho,rumoaoClãdoTrovão.Nãoencontraram

o cheiro de Presa Amarela até atravessarem para a floresta de carvalho,pertodoacampamento.Agora que a chuva tinha finalmente parado, os odores perto deles

começavama reaparecer.PatadeFogoesperavaquea chuvanão tivesselevadototalmenteorastrodePresaAmarela.Paroueesfregouapontadonariznumasamambaia,reconhecendooodorfamiliar.OcheirodemedodePresa Amarela picou-lhe as narinas. – Ela veio por aqui! – miou,embrenhando-se na vegetação molhada, seguido por Pata Cinzenta. Achuvadiminuíraeostrovõesseperdiamnadistância.Otemposeesgotava.PatadeFogoseapressou.Para sua decepção, percebeu que o odor de Presa Amarela realmente

levavadiretoaoterritóriodoClãdasSombras.Seucoraçãoseentristeceu.SeriamverdadeirasasacusaçõesdeGarradeTigre?PatadeFogonutriaaesperançadequeopróximocheirooslevasseaumadireçãodiferente,masatrilhanãodeixavadúvidas.Pararam ao chegar ao Caminho do Trovão. Diversosmonstros rugiam

porali,vomitandojatosdeáguasuja.Osdoisgatoshesitaramnabeiradocaminholargoecinzaatéencontraremumabrecha.Então,atravessaramocaminhoeentraramnoterritóriodoClãdasSombras.

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OscheirosquemarcavamafronteirafizeramformigarospésdePatadeFogo.PataCinzentaparoue,nervoso,olhouàvolta.–Semprepenseiqueteria

comigomaisalgunsguerreirosquandofinalmenteentrassenoterritóriodoClãdasSombras–confessou.–Vocênãoestácommedo,está?–murmurouPatadeFogo.–Vocênãoestá?Minhamãemuitasvezesmeadvertiusobreofedordo

ClãdasSombras.–Minhamãenuncameensinouessascoisas– comentouPatadeFogo.

Mas,pelaprimeiravez,estavaaliviadoporterapelagemcoladaaocorpode tãomolhada. Assim, Pata Cinzenta não poderia perceber o arrepio demedoquelhepercorriaaespinha.Osdois felinosseguiramvigilantes,alertasaqualquercoisaquevissem

ou ouvissem. Pata Cinzenta tentava detectar as patrulhas do Clã dasSombras, e Pata de Fogo, o grupo do Clã do Trovão, que, ele sabia, virialogo.A trilha do odor de Presa Amarela levava diretamente ao coração das

zonas de caça do Clã das Sombras. O bosque ali era escuro, a vegetaçãocheiadeurtigaseamoreiras.– Não consigo sentir o cheiro dela – reclamou Pata Cinzenta. – Está

molhadodemais.–Aliadiante–PatadeFogoassegurou.–Maspossosentirocheirodaquilo–PataCinzentadisparou,derepente.–Aquilooquê?–PatadeFogosibilou,parando,alarmado.–Cheirodefilhote.Aquitemsanguedefilhote!PatadeFogovoltouafarejar,procurandoocheirodaninhadadoClãdo

Trovão.–Tambémsinto–concordou.–Ealgumacoisamais!–Abaixouacaudanumúnicomovimento, advertindoPataCinzentapara ficarquieto.Então, em silêncio, sinalizou com os bigodes na direção de um freixoescurecidoadiante.AsorelhasdePataCinzentaestremeceram,inquisitivas.PatadeFogofez

um ligeirogestodecabeça.PresaAmarelaestavaabrigadaatrásdo largotroncodivididoaomeio.Comoporinstinto,osdoisgatossesepararam;cadaumfoiparaumlado

da árvore. Movimentaram-se com vagar pelo chão macio da floresta,usandotodosostruquesdotreinamentobásico,pisandodeleve,mantendo

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oscorposbaixos.Entãopularam.Presa Amarela gritou, surpresa, quando os dois felinos aterrissaram a

seu lado, imobilizando-a no chão. A gata lutou para se soltar, cuspiu erecuou até umburaco escondido na base do tronco. Pata de Fogo e PataCinzentaseadiantaram,fechandoasaída.–EusabiaqueoClãdoTrovãoiameculpar!–elasibilou,comosolhos

disparandotodaasuaantigahostilidade.–Ondeestãoosfilhotes?–PatadeFogoperguntou.–Sentimosocheirodosanguedeles–exclamouPataCinzenta.–Vocêos

machucou?–Nãoestoucomeles–rosnouPresaAmarela,zangada.–Vimprocurá-

los e levá-losdevolta.Pareiporque tambémsenti cheirode sangue.Maselesnãoestãoaqui.PatadeFogoePataCinzentaseolharam.–Nãoestoucomeles!–insistiuPresaAmarela.–Porquefugiu,então?PorquematouFolhaManchada?–PataCinzenta

fezasperguntasquePatadeFogonãoconseguiadizeremvozalta.–FolhaManchadaestámorta?–EraevidenteochoquenavozdePresa

Amarela.OalíviotomoucontadePatadeFogo–Vocênãosabia?–gritou.–Comopoderia saber?Deixeioacampamentoassimque soubequeos

filhotestinhamdesaparecido.PataCinzentapareciadesconfiado,masPatadeFogosentiasinceridade

navozdaguerreira.–Seiquempegouosfilhotes–elacontinuou.–Sentiocheirodeleperto

doberçário.–Quemfoi?–PatadeFogoperguntou.– Cara Rasgada, um dos guerreiros de Estrela Partida. Enquanto os

filhotesestiveremcomoClãdasSombras,corremgrandeperigo.–Mas,certamente,nemoClãdasSombrasmachucariafilhotes!–Patade

Fogoprotestou.– Não tenha tanta certeza – disparou Presa Amarela. – Estrela Partida

pretendeusá-losparaguerrear.–Mastêmapenastrêsluasdeidade!–arquejouPataCinzenta.

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–Issonãooimpediuantes.Elevemtreinandofilhotesdetrêsluasdesdequesetornoulíder.Comcincoluaseleosmandalutarcomoguerreiros!– São pequenos demais para lutar! – Pata de Fogo protestou. Mas

desenhounamenteospequeninosaprendizesqueviranaAssembleia.Nãoeramsópequenos;eramfilhotes!PresaAmarelasibiloucomescárnio:–EstrelaPartidanãoligaparaisso.

Ele temmuitos filhotesparadesperdiçare, seacabaracota,poderoubardosoutrosclãs!–Avoztranspiravaraiva.–Afinal,estamosfalandodeumgatoquematoufilhotesdopróprioclã!PatadeFogoePataCinzentaestavamatônitos.–SeelematouosfilhotesdoClãdasSombras,porquenãofoipunido?–

PatadeFogo,afinal,perguntou.–Porquementiu–grunhiuPresaAmarela.Oamargorenrijeceusuavoz.

–AcusouamimdocrimeeoClãdasSombrasacreditou!PatadeFogoderepentecompreendeu.–PorissofoiafastadadoClãdas

Sombras? – perguntou. – Você precisa voltar conosco e dizer tudo isso aEstrelaAzul.–Nãoantesderesgatarosfilhotes!–disparouPresaAmarela.PatadeFogolevantouacabeçaefarejouoar.Achuvatinhaparadoeo

vento diminuía. A patrulha do Clã do Trovão já estaria a caminho. Nãoestavamasalvoali.PataCinzentapareciachocadocomaacusaçãodePresaAmarela.–Como

équeumlídermatafilhotesdopróprioclã?–perguntou.–EstrelaPartida insistia emdar-lhesum treinamento árduo eprecoce

demais. Levou dois filhotes para ensinar práticas de batalha. – PresaAmarela, arquejante, deu um suspiro profundo. – Tinham apenas quatroluasdeidade.Jáestavammortosquandoeleostrouxedevoltaparamim.Tinham arranhões e mordidas de um guerreiro formado, não deaprendizes.Elemesmodeveterlutadocomosfilhotes.Nãohavianadaqueeupudessefazer.Quandoamãechegou,EstrelaPartidaestavacomigo.Eledissequemeencontraraobservandooscorposmortos.–Suavozfalhoueelaolhouparaolado.–PorquenãocontouaelaquetinhasidoEstrelaPartida?–perguntou

PatadeFogo,semacreditar.PresaAmarelabalançouacabeça.–Nãopodia.–Porquenão?

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Avelhagatahesitou.Quandofalou,tinhaavozpesada,sentida.–EstrelaPartidaéolíderdoClãdasSombras.SeupaieraonobreEstrelaAfiada.Apalavradeleélei.PatadeFogodesviouoolhareostrêsgatossentaramemsilêncioporum

momento.Então,PatadeFogomiou:–Vamos resgataros filhotes juntos.Estanoite.Masnãopodemosficaraqui.SintoocheirodapatrulhadoClãdoTrovão se aproximando. –Ele fezumapausa. – SeGarradeTigre estivercomeles, PresaAmarelanão teránenhuma chance. Ele vaimatá-la antesquepossamosexplicaralgumacoisa.Presa Amarela olhou para ele, novamente alerta e determinada. – Há

turfaporaqui;estarámolhadaapósachuva.Vaidisfarçarnossosodores–disse.Elapulounumamoitadesamambaias,seguidadepertoporPatadeFogo

ePataCinzenta.Ouviamofarfalhardavegetaçãoaolonge.Nãoeramaisovento quemaltratava os arbustos,mas umapatrulha que se aproximava,certamente com sede de vingança e atiçada pelas mentiras de Garra deTigre.Uma calmaria suspeita tomou conta da floresta e uma neblina fina

começouaseformarentreostroncosdasárvores.PatadeFogosacudiuasgotículasdapelageme, impaciente, tiroudopeitoumpedaçodecascadeárvore.Presa Amarela os conduziu para dentro da floresta. O chão se tornava

cadavezmaisencharcadoeosgatoscomeçaramaafundaraspatasnaturfamacia.OcheiroúmidoobstruíaasnarinasdePatadeFogo,mas,aomenos,aquiloiadisfarçaratrilhaquedeixavam.Atrásdeles,obarulhodosfelinosaumentava.–Depressa,aquiembaixo–PresaAmarelaapressou-os,abaixando-sesob

um arbusto de folhas largas. Os três gatos se agacharam sob a árvore,recolhendo as caudas. Pata de Fogo ficou tão quieto quanto possível,tentandoignorarochãototalmentemolhadoqueencharcavaapelagemdesuabarrigaeprestandoatençãoaobarulhodapatrulhadoClãdoTrovão,cadavezmaispróxima.

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CAPÍTULO23

PATADEFOGOCONSEGUIUidentificarapresençadediversosgatosnapatrulha,andando rápido. Não pôde reconhecer, no entanto, os odores individuaisdosfelinosnomeiodosodoresterraisdobrejo,massabiaquesetratavadoClã do Trovão. Prendeu a respiração quando ouviu as passadas seaproximaremeseafastaremrápido.–Vamosmesmo tentar resgataros filhotes sozinhos?–disse,baixinho,

PataCinzenta.Presa Amarela respondeu primeiro: – Talvez consiga alguma ajuda

dentrodoClãdasSombras.NemtodososgatosapoiamEstrelaPartida.PatadeFogoretesouasorelhas,ePataCinzenta,surpreso,movimentou

acauda.– Quando se tornou líder – explicou Presa Amarela –, Estrela Partida

obrigou os anciãos a deixarema segurança do interior do acampamento.Tiveram de ir para a fronteira e caçar por si mesmos. São gatos quecresceramdeacordocomocódigodosguerreiros.Algunsdelespodemnosajudar.PatadeFogofitoucomfirmezaosvelhosolhos,pensandocomrapidez.–

EpossoconseguirconvencerogrupodecaçadoClãdoTrovãoanosajudartambém – miou. – Se conseguir falar com eles antes que vejam PresaAmarela,possofazê-losacreditarnaversãodela.PataCinzenta,esperenofreixomorto,ondesentimoscheirodesanguedos filhotes,atéqueumdenósretorne.Pata Cinzenta parecia preocupado. –Mas você acredita realmente que

PresaAmarelavaivoltarcomajuda?–murmurouparaPatadeFogo.–Vocêstêmdeacreditaremmim–grunhiuPresaAmarela.–Vouvoltar.PataCinzentaolhouparaPatadeFogo,queconcordoucomacabeça.Semmaisdizer,PresaAmarelapassoucorrendopelosdoisaprendizese

desapareceunosarbustos.–Seráquefizemosacoisacerta?–perguntouPataCinzenta.–Nãosei–PatadeFogoadmitiu.–Sefizemos,somosheróiseosfilhotes

estãosalvos.Seestivermoserrados,podemosnosconsiderarmortos.

PatadeFogocorreuatrásdapatrulha,pertodasamoreiras,passandoportojosenomeiodeurtigas.Atrilhaerafácildeseguir.Oszangadosfelinos

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do Clã do Trovão não estavam tentando disfarçar sua presença noterritóriodoClãdasSombras.Nocéu,aespessacamadadenuvenstinhafinalmentesedissipado.Além

das copas das árvores, o Tule de Prata brilhava no céu noturno. A luaacabavadenascer,mas sua luz frianãopenetravanabrumaque tomavacontadavegetaçãosombria.PatadeFogoseconcentrounoodorquehaviaadiante.Sentiuocheirode

Nevasca.Voltouafarejar.GarradeTigrenãoestavacomeles.Correuparaalcançá-lose,detendo-sederepente,paroulogoatrásdobandodoClãdoTrovão.Os guerreiros se viraram e o olharam de forma penetrante, com a

pelagemarrepiadaeasorelhasagressivamenteabaixadas.RiscadeCarvãoestavacomeles,alémdajovemPelodeRatoedoguerreiromalhadoVentoVeloz. Pelo de Rato não era a única representante feminina na patrulha.PeledeSalgueirotambémestavalá.–PatadeFogo!–grunhiuNevasca.–Oqueestáfazendoaqui?Pata de Fogo arfou, procurando ar. – Estrela Azul me mandou! –

arquejou.–ElaqueriaqueeuencontrassePresaAmarelaantesde…Nevascaointerrompeu.–Ah!EstrelaAzuldissequeeupodiaencontrar

um amigo aqui. Agora compreendo o que ela quis dizer –miou, olhandointrigadoparaoaprendiz.–GarradeTigreestáporperto?–perguntouPatadeFogo,sentindoum

formigamentodeorgulhoquandoosgatostrocaramolhares.Nevasca olhou curiosamente para Pata de Fogo. – Estrela Azul insistiu

que era necessário ele ficar no acampamento para proteger os outrosfilhotes.Pata de Fogo logo entendeu, aliviado. Miou com urgência: – Nevasca,

preciso de sua ajuda. Posso levar você até os filhotes. Pata Cinzenta estáesperandopormim.Planejamosresgatá-losestanoite.Vocêsvêmconosco?–Claroquesim!–Osguerreirosagitaramascaudas,empolgados.–IssosignificaatacardesurpresaoacampamentodoClãdasSombras–

PatadeFogoadvertiu.–Vocêpodenosguiaratélá?–VentoVelozperguntou,ansioso.– Não, mas Presa Amarela pode. E ela prometeu trazer ajuda de seus

antigosaliadosnoacampamento.PeledeRatooencaroue,zangada,balançouacauda.–VocêachouPresa

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Amarela?–sibilou.–Nãoestouentendendo–miouNevasca,confuso.–Atraidoravaiajudar

aresgatarosfilhotesqueroubou?Pata de Fogo respirou fundo para se acalmar e então, mirando

firmementeosolhosdeNevasca,explicou:–PresaAmarelanãoos levou.NemmatouFolhaManchada.Elaquernosajudararesgatarosfilhotes.Nevascadevolveu o olhar e pestanejou. –Vána frente, Pata de Fogo –

ordenou.

PataCinzentaestavaesperandopertodofreixo,andandosempararàvoltado tronco podre. Parou assim que viu a patrulha surgir da bruma eestremeceuosbigodesnumasaudação.–AlgumsinaldePresaAmarela?–perguntouPatadeFogo.–Aindanão–respondeuPataCinzenta.– Não sabemos qual é a distância para o acampamento do Clã das

Sombras–PatadeFogoapressou-seemdizer,aoverNevascaseretesaraseulado.–Elapodeestarvoltandonestemomento.–Oupodeestaralegrementetrocandolambidascomseuscamaradasdo

Clãdas Sombras enquanto ficamosaqui comobobosesperandopara cairnumaemboscada!–miouPataCinzenta.Nevasca observou os dois aprendizes. As orelhas do guerreiro se

mexiam,nervosas.–PatadeFogo?–cobrou.–Elavaivoltar–prometeuoaprendiz.– Disse-o bem, jovemPata de Fogo – Presa Amarela surgiu de trás do

freixoesentou-se.–Vocênãoéoúnicoqueconseguechegardemansinho,semninguémperceber–elamiouparaPatadeFogo.–Lembra-sedodiaemquenosconhecemos?Daquelavezvocêtambémestavaolhandoparaadireçãoerrada.Outros três felinos do Clã das Sombras saíram de trás da árvore e se

colocaramcalmamentedeambosos ladosdePresaAmarela.OsgatosdoClãdoTrovãosearrepiaram,alertasedesconfiados.Os gatos dos dois clãs se olharam em silêncio. Pata de Fogo estava

inquieto e desconfortável, sem saber direito o que fazer. Afinal, um dosfelinosdoClãdasSombras,umgatocinza,falou.Seucorpoeracompridoemagro,apelagemopaca.–Viemosparaajudá-los,nãoparalhesfazermal.Vocêsvieramporcausadosfilhotes;vamosajudararesgatá-los.

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–Oquevocêsganhamcomisso?–perguntouNevasca,desconfiado.– Queremos ajuda para nos livrar de Estrela Partida. Ele quebrou o

códigodosguerreiroseoClãdasSombrasestásofrendo.–Entãoé simplesassim?–grunhiuVentoVeloz.–Bastachegarmosao

seuacampamento,pegarosfilhotes,matarseulíderevoltarparacasa.–Vocêsnãovãoencontrartantaresistênciaquantopensam–murmurou

ogatocinza.Presa Amarela se levantou. – Deixe-me apresentar-lhes meus velhos

amigos – elamiou, abrindo caminho entre os gatos do Clã das Sombras.Colocou-seàfrentedogatocinza.–EsteéPelodeCinzas,umdosanciãosdoclã.– Este éManto da Noite, um guerreiro que já era experiente antes de

EstrelaAfiadasermorto.–Eladeuumavoltaaoredordeumfelinopretomaltratado.–Eestaéumadasnossasrainhasmaisvelhas,NuvemdaAurora.Doisde

seusfilhotesmorreramaoexpulsaroClãdoVento.Nuvem da Aurora, uma pequena gatamalhada, cumprimentou-os com

ummiadoedisse:–Nãoqueroperdernenhumoutrofilhote.Nevascalambeurapidamenteopeitoparaabaixarapelagem.–Vê-seque

são guerreiros competentes, já que conseguiram nos alcançar sem quenotássemos.Massãosuficientes?PrecisamossaberoquevamosenfrentarquandoatacarmosoacampamentodoClãdasSombras.–Osvelhoseosdoentesestãoaospoucosmorrendodefome–miouPelo

deCinzas.–Asperdasentreosfilhotessãomaisdoquepodemossuportar.–Masseasituaçãoestátãoruim–disse,derepente,RiscadeCarvão–,

comooClãdasSombrastemdemonstradotantaforçaultimamente?EporqueEstrelaPartidacontinuacomolíder?–EstrelaPartidaestárodeadoporumpequenogrupodeguerreirosde

elite – respondeu Pelo de Cinzas. – São os que devemos temer, porquemorreriamporelesempestanejar.Osoutrosguerreirosobedecemàssuasordens apenas porque têm medo. Lutarão ao lado dele enquantoacreditarem que Estrela Partida vai vencer. Se acharem que vai serderrotado…– Vão lutar contra ele, não por ele! – Risca de Carvão completou,

indignado,afrasedoancião.–Quetipodelealdadeéessa?ApelagemdosfelinosdoClãdasSombrascomeçouaseeriçar.

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– Nosso clã não foi sempre assim – interrompeu Presa Amarela. –Quando Estrela Afiada o liderava, éramos temidos por nossa força. Mas,naqueletempo,aforçavinhadocódigodosguerreirosedalealdadeaoclã,não demedo e desejo de sangue – A velha curandeira suspirou. – Se aomenosEstrelaAfiadativessevividomaistempo…– Como ele morreu? – perguntou Nevasca, curioso. – Houve muitos

boatosnasAssembleias,masninguémpareciasaberaocerto.Os olhos de Presa Amarela se nublaram de pesar. – Ele caiu numa

emboscadadeumapatrulhadeguerreirosdeoutroclã.Nevascaassentiucomummovimentodecabeça.–Éoqueamaioriados

gatos andava pensando. Realmente são tempos difíceis estes em que oslíderessãoatacadosnoescuro,nãonumabatalhaabertaehonrada.PatadeFogofranziuocenho,imaginandoprontamentediferentesplanos

deluta.–Háalgumapossibilidadedepegarmososfilhotessemalertartodooclã?–perguntou.NuvemdaAurorarespondeu:–Sãoguardadosdeperto.EstrelaPartida

está esperando que o Clã do Trovão tente resgatá-los. Vocês nãoconseguirãopegá-losemsegredo.Aúnicaesperançaéoataqueaberto.– Então devemos concentrar o ataque em Estrela Partida e em sua

segurançainterna–miouNevasca.PresaAmarelatinhaumasugestão.–OsguerreirosdoClãdasSombras

me levariam até o acampamento. Poderiam dizer que me capturaram.Precisamos ter certeza de que Estrela Partida e seus guerreiros estarãofora das tocas. A notícia da minha captura vai levá-los até a clareira.Quandoestiveremtodosacéuaberto,dareiosinalparaatacarem.Nevasca ficou em silêncio por um instante. Finalmente aquiesceu,

mostrando um semblante sério quando encarregou seus guerreiros doataque. – Muito bem, Presa Amarela – miou. – Por favor, leve-nos aoacampamentodoClãdasSombras.

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CAPÍTULO24

PRESAAMARELA SE VIROU e entroupelas samambaias.Nevasca e os outros aseguiram.PatadeFogoformigavadeempolgação.Nãosentiaofrioúmidonoarejá

haviamuitotempoquenãopensavaemcansaço.Presa Amarela guiou-os até um pequeno vale rodeado por densa

vegetaçãoemostrouaentradaparaoacampamentodoClãdasSombras.Amassa trançada de amoreiras parecia muito diferente do túnel de tojosbem-feito que levava ao acampamento do Clã do Trovão. Os limites doacampamento estavam cheios de buracos e fendas; o fedor de carneputrefatavinhanadireçãodeles.–Vocêscomemcomidadecorvo?–sussurrouPataCinzenta,retorcendo

olábio.– Nossos guerreiros são treinados para atacar, não para caçar –

respondeuPelodeCinzas.–Comemosqualquercoisaqueencontramos.–ClãdoTrovão, escondam-senaquelamoitadeamoreirasali – sibilou

PresaAmarela. – Está cheia de cogumelos venenosos que vão encobrir oseucheiro.Esperemaquiatémeouviremchamar.Eladeuumpassopara trás, colocando-seno centrodogrupo, comose

fosse uma prisioneira, e deixou os outros gatos do Clã das Sombrasconduziremacaminhada.Rumaramparaoacampamentoemsilêncio.Os felinos do Clã do Trovão, tensos e alertas, se colocaram entre os

cogumelos. Pata de Fogo sentia a pelagem pinicar. Olhou para PataCinzenta,aseulado.Opeloespessonanucadoamigoestavadepé,ePatadeFogooouviaarfar,reprimindooentusiasmo.De repente, uma gritaria surgiu no acampamento do Clã das Sombras.

Semhesitar, os felinos do Clã doTrovão pularamde seus esconderijos ecorreramparaaentrada.Presa Amarela, Pelo de Cinzas, Nuvem da Aurora e Manto da Noite

estavamemumaclareiradechão lamacento, lutandocomseisguerreirosdeaparênciaterrível.PatadeFogoreconheceuentreelesEstrelaPartidaeseu representante, Pé Preto. Os guerreiros pareciam famintos e commarcas de batalha, mas Pata de Fogo via seus músculos fortes sob apelagemremendada.Àvoltadaclareira,reuniam-segruposdefelinosesquálidosqueolhavam

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para o espetáculo de selvageria sem entender direito o que estavaacontecendo. Os corpos magros pareciam encolher diante da violência,enquanto seus olhos embaciados simplesmente observavam, chocados econfusos.Pelocantodoolho,PatadeFogoviuNarizMolhadorecuareseescondersobumarbusto.AosinaldeNevasca,osfelinosdoClãdoTrovãopularamparalutar.Pata de Fogo agarrou um gato prateado, mas o felino se sacudiu,

conseguindo se soltar. Pata de Fogo tropeçou e o guerreiro do Clã dasSombras partiu para cima dele, segurando-o com garras tão afiadas quepareciamespinhos.Eleconseguiusevirareafundarosdentesnacarnedoinimigo. O grito do guerreiro indicava que ele encontrara carne tenra, emordeuaindamais forte.Oguerreirovoltoua guinchar, soltando-se comviolênciaefugindoparaosarbustos.PatadeFogoficoudepé.UmjovemaprendizdoClãdasSombrassaltou

emcimadelevindodolimitedoacampamento,comsuapelagemmaciadefilhoteinflamadademedo.PatadeFogopôsasgarrasdeforaeojogoulongecomfacilidade.–Esta

briganãoésua–sibilou.NevascajátinhaimobilizadoPéPretonochãoemordeu-ocomvontade.

Ferido,orepresentantefugiunadireçãodaentradadoacampamentoedaliparaasegurançadafloresta.–PatadeFogo!–OaprendizouviuNuvemdaAuroragritarseunome.–

Cuidado! Cara Rasgada está… – Não ouviu o resto. Um gato marrom ecorpulento caiu em cima dele. Cara Rasgada! Pata de Fogo enterrou asgarrasno chão e girou o corpopara lutar.O guerreiro quematara FolhaManchada!Araivatomoucontadoaprendiz,quesejogouemcimadogatomarrom.PatadeFogoempurrouoguerreiroparaochãoeimprensousuacabeça

naterra.Cegopela fúria,preparou-separaenterrarosdentesnopescoçode Cara Rasgada. Mas, antes que pudesse desferir o golpe de morte,NevascaojogouparaoladoeagarrouoguerreirodoClãdasSombras.– Os guerreiros do Clã do Trovão não matam, a não ser que sejam

obrigados–grunhiunaorelhadePatadeFogo.–Apenasprecisamosquesaibamquenãodevemmaisapareceraqui!–Deuemumamordida ferozemCaraRasgada,quesaiugritandodoacampamento.Aindacomraiva,PatadeFogoolhoufuriosamenteàvolta.Osguerreiros

deEstrelaPartidatinhamidoembora.

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Ouviu-se um uivo de fúria atrás de Pata Cinzenta, que deu um pulo eabriucaminho.PatadeFogoviuPresaAmarelaagarrandoEstrelaPartidacompatascheiasdelamaesangue.Ocorpodelesangravadeváriasferidas.Asorelhasestavamabaixadasnacabeçaeosbigodesrecolhidosparatrásquandoeleagachou,esmagadosobapegadapoderosadePresaAmarela.–Nuncapenseiqueseriamaisdifícilmatarvocêdoque foimatarmeu

pai!–elerosnou.PresaAmarelaseencolheucomosetivessesidopicadaporumaabelha,a

faceretorcida,derepente,porchoqueetristeza.Elarecolheuasgarrase,nomesmoinstante,girandoocorpomaciço,eleaarremessouparaolado.–VocêmatouEstrelaAfiada?–PresaAmarelalamuriou-se,comosolhos

arregalados,sempoderacreditar.Estrela Partida olhou-a friamente. – Você encontrou o corpo dele. Não

reconheceuminhapelagementreasgarras?PresaAmarelafitava-o,horrorizada.–Eleeraumlídercondescendentee

tolo.Mereciamorrer–continuouele.–Não – sibilou PresaAmarela, deixando cair a cabeça. Em seguida ela

estremeceu.OlhouparaEstrelaPartida,curvandoascostas.–EosfilhotesdeFlordeLuz?Tambémmereciammorrer?–perguntou,irritada.Estrela Partida grunhiu e se atirou sobre Presa Amarela, forçando sua

barrigano chão.A gatanemsequer tentou lutar contra as garras afiadascomo espinhos. Pata de Fogo, apavorado, viu que os olhos dela estavamembaçadosdetristeza.– Aqueles filhotes eram fracos – Estrela Partida sibilou, inclinando o

rostonadireçãodaorelhadePresaAmarela.–NãoteriamutilidadeparaoClãdasSombras.Seeunãoosmatasse,outroguerreiroofaria.Ouviu-se um lamento de tristeza de uma rainha malhada do Clã das

Sombras.EstrelaPartidaaignorou.–Eudeviatermatadovocêquandotiveoportunidade–disse,comraiva,paraPresaAmarela.–Talvezeutenhaumpoucodacondescendênciademeupai.Fuiumtolodedeixá-lasairvivadoClãdasSombras!–Elesejogouparaafrente,dentesàmostra,prontoparaenterrá-losnopescoçodagata.PatadeFogo foimaisrápido.PulounascostasdeEstrelaPartidaantes

que ele pudesse fechar as mandíbulas. Cravando as garras no peloemaranhadodoguerreiro,arrancou-odecimadarainhaexaustaeoatirounoslimitesdaclareira.EstrelaPartidagirounoareaterrissoudepé,encarandoPatadeFogo,

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cuspindocomraiva.–Nãopercaseutempo,aprendiz!PartilheisonhoscomoClãdasEstrelas.Vocêterádemematarnovevezesantesqueeumereúnaaeles.Achamesmoqueéforteobastante?–Osolhosconfiantesbrilhavamemdesafio.PatadeFogodevolveuoolhar.Seuestômagosecontraiu.EstrelaPartida

era um líder de clã! Como podia o aprendiz esperar derrotá-lo? Mas osfelinos do Clã das Sombras, que a tudo observavam, tinham começado acaminharsembarulhoedevagarnadireçãodo lídervencido, rosnandoesibilandocomódio.Estavamarrasadosefamintos,masEstrelaPartidadeu-se conta de que estava em desvantagem numérica. Com ummovimentonervosodacauda,agachoueretrocedeupelosarbustos.Dassombras,seusolhosbrilhavamameaçadoramente,buscandoPatadeFogonamultidão.–Issonãoacabou,aprendiz–ciciouantesdeseviraresumirnafloresta

atrásdeseusguerreirosalquebrados.PatadeFogoolhouparaNevasca.–Devemosiratrásdeles?–miou.Oguerreirobalançouacabeça.–Achoqueentenderamamensagemde

quenãosãobem-vindos.MantodaNoite,oguerreirodoClãdasSombras,concordou.–Deixe-osir.

Seousaremmostraracaradenovo,oClãdasSombrasteráforçabastanteentãoparalidarcomelessozinho.Os demais felinos do Clã das Sombras se reuniram nas ruínas do

acampamento, prostrados ao perceberem que o líder se fora. Vai levartempoparareconstruiresseclã–pensouPatadeFogo.–Osfilhotes!PatadeFogoouviuPataCinzentamiaremumcantoafastadodaclareira.

Correu na direção do amigo, com Pelo de Rato e Nevasca em seuscalcanhares.Quandoseaproximaram,ouviramosmiadoslamurientosdosfilhotes vindos de sob uma pilha de folhas e galhos. Rapidamente, PataCinzentaePelodeRatovasculharamafolhagematédescobrirem,nofundodeumadepressãodoterreno,osfilhotesdesaparecidosdoClãdoTrovão.–Elesestãobem?–perguntouNevasca,abanandoacauda,ansioso.– Estão, sim – respondeu Pata Cinzenta. – A maioria tem apenas

pequenosarranhões.Masessefilhotemalhadotemumaferidaprofundanaorelha.Vocêpodeexaminar,PresaAmarela?A velha gata estava lambendo as próprias feridas, mas, ao ouvir o

chamado de Pata Cinzenta, correu para o lado do buraco onde o gatocuidadosamentecolocaraofilhote.

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PatadeFogoajudouPataCinzentaaretirarosoutrosfilhotes.Oúltimoera uma gata cinza, como os vestígios de um fogo extinto. Elamiou e seretorceuquandoPatadeFogoacolocounochão.PelodeRatoreuniupertodelaosdemaisfilhotes,consolando-oscomlambidasecarinhos.PresaAmarela examinou bem a orelha rasgada. – Precisamos conter o

sangramento–miou.NarizMolhadosaiudassombras,comapatadianteiraenvoltaemuma

camada de teias de aranha, e entregou-as silenciosamente para PresaAmarela.Elaagradeceucomacabeçaecomeçouatrataromachucadodofilhote.MantodaNoiteaproximou-sedogrupodos felinosdoClãdoTrovão.–

VocêsajudaramoClãdasSombrasaselivrardeumlídercrueleperigoso;estamos agradecidos. Mas está na hora de abandonarem nossoacampamentoeretornaremaoseu.Prometoquesuaszonasdecaçaficarãolivres dos guerreiros do Clã das Sombras enquanto conseguirmosencontrarcomidasuficienteemnossoterritório.Nevascaaquiesceu.–Cacemempazporumalua,MantodaNoite.OClã

doTrovãosabequeprecisamdetempopararecomporseuclã.–Voltou-separaPresaAmarela.–Evocê,PresaAmarela?Quervoltarconoscoouficaraquicomseusvelhoscamaradas?Agataofitou.–Voltocomvocês.Olhouparaumcorteprofundonapata

traseira deNevasca. – Vão precisar de um curandeiro, para vocês e seusfilhotes.–Obrigado–ronronouNevasca.Comacauda,fezumsinalparaosfelinos

doClãdoTrovão,conduzindo-osparaforadaclareira.PelodeRatoePelede Salgueiro ajudaramos filhotes, que andavamaos tropeços, exaustos eassustados.PresaAmarela iaao ladodofilhotemalhado,erguendo-opelocangote sempre que escorregava. Pata de Fogo e Pata Cinzenta seguiamatrás. O cortejo atravessou as amoreiras, passou pela linha de cheiro doacampamentoerumouemdireçãoàfloresta.AluaaindaestavasurgindonocéutranquiloquandoogrupodoClãdo

Trovão começou a penosa caminhada de volta para casa; ao redor deles,montesdefolhasmarronsesvoaçavamnochãodafloresta.

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CAPÍTULO25

ENCORAJADOS PELO ALÍVIO de voltar para casa, Pata de Fogo e Pata Cinzentacorreram na frente da patrulha em direção ao acampamento do Clã doTrovão. Pele de Geada estava deitada no meio da clareira, triste, com acabeça apoiada nas patas. Quando os dois aprendizes surgiram, elalevantou o nariz e farejou o ar. – Meus filhotes! – gritou. Levantou-sedepressaeultrapassouPatadeFogoePataCinzentaparaencontrarorestodogrupoquandosaíssemdotúnel.OsfilhotescorreramparaseaconchegaremPeledeGeada,queenroscou

nelesocorpomacioelambeuumaum,ronronandoalto.Presa Amarela parou na entrada do acampamento e observou em

silêncio.EstrelaAzul foiaoencontrodapatrulhaquevoltava.Olhouternamente

paraPeledeGeadaeseusfilhoteseentãotransferiuoolharparaNevasca:–Elesestãobem?–perguntou.–Estão,sim–miouNevasca.–Muitobem,Nevasca.RecebaashomenagensdoClãdoTrovão.Nevascainclinouacabeçaparaaceitaroelogioeacrescentou:–Masfoi

graçasaesseaprendizqueosencontramos.PatadeFogolevantouacabeçaeacaudacomorgulho,prontoparafalar,

mas ouviu-se o rosnado acusador de Garra de Tigre ressoando pelaclareira.–Porquetrouxeramdevoltaatraidora?–Oguerreiroaproximou-seda

patrulhadecididoepostou-seaoladodalíder.– Ela não é traidora – insistiu Pata de Fogo, olhando à volta do

acampamento. Os outros felinos haviam rapidamente se reunido naclareira para ver os filhotes e cumprimentar o grupo de caça. Alguns, aolocalizaremPresaAmarela,dirigiam-lheolharesdepuroódio.–ElamatouFolhaManchada!–disseRaboLongo,irado.–Vejamentre as garras de FolhaManchada – sugeriuPata Cinzenta. –

VãoencontrarapelagemmarromdeCaraRasgada,nãoapelagemcinzadePresaAmarela!Estrela Azul fez um sinal para Pele de Rato, que se distanciou da

multidão, correndo na direção do lugar onde jazia o corpo de FolhaManchada,queseriaenterradoaoamanhecer.Emmeioaumsilênciotenso,

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oclãesperouqueelavoltasse.– Pata Cinzenta tem razão – dissePele deRato, arfando, ao retornar à

clareira.–FolhaManchadanãofoiatacadaporumgatocinza.Ummurmúriodesurpresapercorreuamultidão.–Masissonãosignificaquenãotenhaajudadoasequestrarosfilhotes!–

sibilouGarradeTigre.– Sem Presa Amarela jamais teríamos recuperado os filhotes! – disse

PatadeFogorispidamente, impacienteporcausadaexaustão.–Elasabiaque haviam sido levados por um guerreiro do Clã das Sombras. Estavaprocurando por eles quando a encontrei. Arriscou a vida voltando aoacampamento do Clã das Sombras. Foi dela o plano de batalha que noslevouaoacampamentoepermitiuquederrotássemosEstrelaPartida!OsfelinosouviramaspalavrasdePatadeFogoespantados.–Eleestácerto–Nevascamiou.–PresaAmarelaéaliada.–Ficofelizemouvirisso–murmurouEstrelaAzul,buscandooolharde

PatadeFogo.Omiado ansiosodePele deGeada soounamultidão. – Estrela Partida

estámorto?–Não,eleescapou–disseNevasca.–Masjamaisvoltaráa lideraroClã

dasSombras.PeledeGeadasuspiroualiviadaevoltouaaninharosfilhotes.NevascaolhouparaEstrelaAzul. –Prometi aoClãdas Sombrasqueos

deixaremos em paz até a próxima lua cheia – explicou. – A liderança deEstrelaPartidamergulhouoclãnocaos.EstrelaAzulconcordou:–Foiumaofertasábiaegenerosa.–A líderdo

ClãdoTrovãopassouporNevascaepelorestodapatrulha,aproximando-se de Presa Amarela. A gata abaixou os olhos quando Estrela Azul tocoucomofocinhosuapelagemcinzaeáspera.–PresaAmarela,queroquesubstituaFolhaManchadacomocurandeira

doClãdoTrovão–EstrelaAzulmiou.–Tenhocertezadequeencontrarásuafarmáciacomoeladeixou.Os outros felinos murmuravam entre si, agitando as caudas de

empolgação.PresaAmarelaolhouparaeles,ansiosa,enadadisse.Pele de Geada olhou de relance para as outras rainhas antes de fitar

PresaAmarelae,comvagar,acenoucomacabeça,emaprovação.PresaAmarelainclinou-serespeitosamenteparaagatabranca,antesde

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sedirigiràsuanovalíder.–Obrigada,EstrelaAzul.OClãdasSombrasnãoémaisoclãqueconheci.OClãdoTrovãoéagoraomeuclã.PatadeFogosentiuumaondadesatisfaçãoaoverqueavelhagataque

ele passara a amar seria agora a curandeira de seu clã. Mas sua caudaabaixou quando ele compreendeu que jamais voltaria a ver FolhaManchadanaclareira,comapelagemmaciabrilhandoaosol,osolhoscordeâmbarcintilando,asaudá-lonachegada.–OndeestáPataNegra?–miouderepenteEstrelaAzul,sacudindoPata

deFogodesuaslembrançasagridoces.–Sim–GarradeTigremeteu-senaconversa.–Ondeestámeuaprendiz?

Éestranhoque tenhadesaparecido juntocomEstrelaPartida.–Deuumaolhadasignificativapeloclã.– Se acha que ele pode estar ajudando Estrela Partida – Pata de Fogo

mioudecidido–,estáenganado!GarradeTigreseretesou,comumbrilhoameaçadornosolhosamarelos.– Pata Negra está morto – continuou Pata de Fogo, deixando cair a

cabeça,comoseestivessepesadadetristeza.–EncontramosseucorponoterritóriodoClãdasSombras.Peloscheirosaoredor,devetersidomortoviolentamenteporumapatrulha.–OlhouparaEstrelaAzuleprometeu:–Voulhecontartudodepois.Presa Amarela disparou um olhar inquisidor a Pata de Fogo, que

retribuiu com um pedido silencioso para ela segurar a língua. A gataestremeceu rapidamente as orelhas, mostrando ter compreendido, edesviouoolhar.–NuncadissequePataNegra era traidor – sibilouGarradeTigre. Fez

umapausaepermitiuqueumaexpressãodepesar lhenublasseosolhosantesdevoltarasedirigiraorestantedoclã.–PataNegrapoderiatersidoumexcelenteguerreiro.Suamortetãoprematuraesuaperdaserásentidapormuitosdenósdurantemuitotempo.Palavras vãs!, pensouPatadeFogo comamargor.OquediriaGarrade

Tigre se soubesse quePataNegra estava a salvo,muito alémda floresta,caçandoratoscomCevada?EstrelaAzul quebrouo silêncio. – Sentiremos falta dePataNegra,mas

devemos pranteá-lo amanhã. Primeiro há um outro ritual que deve serrealizado, no qual sei que Pata Negra teria prazer em estar presente. –Virou-se para Pata de Fogo e Pata Cinzenta. – Vocês mostraram muitacoragemestanoite.Eleslutarambem,Nevasca?–perguntou.

Page 202: co lo cara s su as co stas e o p ren d era co m garras in ... · O gato escuro lança um olhar furioso para Coração de Carvalho. – Você e seus guerreiros podem nadar como lontras,

–Comoguerreiros–respondeuNevasca,solene.OolhardeEstrelaAzulencontrouoolhardouradodoguerreiroeelafez

umligeirogesto.LevantouoqueixoefixouosolhosnafileiradeestrelasdoTuledePrata.Avozclaraepausadaseelevounaflorestasilenciosa:–Eu,EstrelaAzul, líderdoClãdoTrovão,conclamomeusancestraisguerreirospara que contemplem estes dois aprendizes. Eles treinaram arduamentepara compreender seu nobre código, e eu os entrego a vocês comoguerreiros.–OlhouparaPatadeFogoePataCinzenta,estreitandoosolhos.–PatadeFogo,PataCinzenta,prometemrespeitarocódigodosguerreirosedefenderesteclã,mesmoacustodesuasvidas?PatadeFogosentiualgumacoisaseagitardentrodele,umfogoqueardia

emsuabarrigaesoavaemseusouvidos.Derepenteentendeuquetudoquefizera pelo clã até então – todas as presas que perseguira, todos osguerreiros inimigos com quem lutara – convergia para aquele únicomomento.–Prometo–respondeucomavozfirme.– Prometo – disse também Pata Cinzenta, empolgado, com a pelagem

eriçada.–Então,pelospoderesdoClãdasEstrelas,douavocês seusnomesde

guerreiros. Pata Cinzenta, a partir de agora você será conhecido comoListraCinzenta.OClãdasEstrelashomenageia suabravura e sua força enós lhe damos as boas-vindas como um guerreiro do Clã do Trovão. –EstrelaAzuldeuumpassoàfrenteerepousouofocinhonoaltodacabeçainclinada de Listra Cinzenta. Ele abaixou-se ainda mais para lamberrespeitosamenteoombrodalíder;depoisseaprumouefoisereunircomosoutrosguerreiros.EstrelaAzulselevantoueobservouPatadeFogoporummomentoantes

defalar.–PatadeFogo,apartirdestemomentovocêseráconhecidocomoCoraçãodeFogo.OClãdasEstrelashomenageiasuabravuraesuaforçaenóslhedamosasboas-vindascomoumguerreirodoClãdoTrovão.–Elatocou-lhea cabeça como focinhoemurmurou: –CoraçãodeFogo, estouorgulhosadetê-locomomeuguerreiro.Sirvabemaoseuclã,meujovem.OsmúsculosdeCoraçãodeFogotremiamtantoqueelemalconseguiuse

inclinar para lamber o ombro de Estrela Azul. Ronronou, rouco, paramostrar sua gratidão; então, deslizou para se colocar ao lado de ListraCinzenta.Miados de homenagem soaram na multidão, e as vozes do clã se

elevaramnoarcalmodanoiteparacantarosnomesdosnovosguerreiros.

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CoraçãodeFogo!ListraCinzenta!CoraçãodeFogo!ListraCinzenta!CoraçãodeFogoolhouparaosgatosdoclã,vendorostosquetinhamse

tornadotãofamiliaresnasúltimasluas.Eleosouviuchamarseunomeesesentiu inundado pela bondade e pelo respeito que viu brilhar em seusolhos.– Já é quase lua alta – miou Estrela Azul. – Pela tradição dos nossos

ancestrais, Coração de Fogo e Listra Cinzenta devem ficar em vigíliasilenciosaatéoamanhecere,sozinhos,guardaroacampamentoenquantodormimos.Coração de Fogo e Listra Cinzenta concordaram solenemente com um

aceno.Quandoorestodoclãcomeçouasedissipar,voltandoàstocas,Garrade

TigrepassoubruscamenteporCoraçãodeFogo,dizendobaixinhoemseuouvido: – Não pense que podeme vencer pela astúcia, gatinho de gente.CuidadocomoquevaidizeraEstrelaAzul.UmarrepiogeladodesceupelaespinhadeCoraçãodeFogo.EstrelaAzul

precisavasabersobreatraiçãodeGarradeTigre!QuandoGarradeTigreretornouàtocadosguerreiros,CoraçãodeFogo

deixouListraCinzentasozinhonaclareiraefoiprocuraralíder.Elaestavadoladodeforadatoca.–EstrelaAzul,seiqueestouquebrandoovotodesilêncio,masprecisofalarcomvocêantesdeiniciaravigília.EstrelaAzuloolhouebalançouacabeça.–Esteéumritualimportante,

CoraçãodeFogo.Falecomigopelamanhã.CoraçãodeFogoaquiesceucomumainclinaçãoprofundadecabeça.De

qualquer forma, Garra de Tigre não representava um problema quepudesseserresolvidoemumanoite.VoltouparaoladodeListraCinzentanomeiodaclareira.Osdoisamigostrocaramolhares,masnadadisseram.CoraçãodeFogoolhouparaaluanocéu.Seupelolaranjabrilhavacomo

prata no luar frio. À sua volta, arbustos e árvores estavam envoltos nabrumaquedeixavaapelagemúmida.CoraçãodeFogofechouosolhoseselembroudos sonhosque tinhana infância.Os cheirosda floresta fria emsuas narinas agora eram reais, e a vida de guerreiro se estendia à suafrente.Sentiuumaalegriaenormesurgirdaspatasepercorrer-lheocorpo.Então abriu os olhos comuma sacudida.Outropar de olhos brilhava emsuadireção,umbrilhoquevinhadatocadosguerreiros.GarradeTigre!Coração de Fogo devolveu o olhar sem piscar. Agora, ele era um

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guerreiro.Tinhaum inimigono representantedoclã,masGarradeTigretinha nele um inimigo também. Coração de Fogo não era mais o jovemingênuoque se juntaraao clãalgumas luasatrás.Eramaioremais forte,maisrápidoemaissábio.SeestavadestinadoaseoporaGarradeTigre,quefosse.CoraçãodeFogoestavaprontoparaodesafio.

CONTINUA