claude lévi-staruss - orsay_a moldura e a obra

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ORSAY: A MOLDURA E AS OBRAS Claude Lévi-Strauss Tradução: Rodrigo Naves Em um empreendimento deste gênero, só se pode escolher entre duas opções: adaptar o museu ao monumento ou adaptar o monumento ao museu. A primeira pode conduzir ao fracasso. É o que se vê hoje no Museu do Homem, no Trocadero. No Orsay, optou-se, com enormes pre- tensões, pela segunda direção, mas nem por isso com maior êxito. Aconte- ce que há monumento e monumento; tudo depende de seu mérito. Ao não considerar a Estação d'Orsay como um lugar consagrado mas como uma carcaça vazia onde se podia construir qualquer coisa, esqueceu-se que a nave, as laterais, as grandes vidraças e as cúpulas de Laloux eram os pri- meiros objetos que deveriam ser expostos. Os arranjos internos procura- ram sistematicamente a ruptura, quando todas as obras pediam uma apre- sentação que as colocasse em harmonia com o edifício; harmonias dife- rentes segundo os gêneros e os períodos, é certo, mas que com um pouco de tato e gosto, poder-se-ia obter. No térreo, alcançou-se um bom resultado: a apresentação do edifí- cio da Ópera, concebido por Garnier. Seria bem possível devanear durante horas diante da maquete do monumento. O passeio sobre o bair- ro, como num balão, é uma idéia engenhosa. Ela combina perfeitamente com o quadro de Navlet, colocado ao lado, que mostra, mais do alto, a Paris de 1855 e seus faubourgs. Quanto às maquetes de cenários de diver- sas óperas, encantadoras, elas são, em todo o pavimento, as únicas obras em relação às quais teve-se a boa idéia de privilegiar a sua iluminação, em lugar de iluminar os espectadores. Pois a disposição e a iluminação de aca- dêmicos, simbolistas, pompiers e pré-impressionistas submetem o espec- Artigo traduzido da revis- ta francesa Le Débat 44, março-maio de 1987. 159

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Claude Lévi-Staruss - Orsay_a moldura e a obra

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  • ORSAY: A MOLDURA E AS OBRAS

    Claude Lvi-Strauss Traduo: Rodrigo Naves

    Em um empreendimento deste gnero, s se pode escolher entre duas opes: adaptar o museu ao monumento ou adaptar o monumento ao museu. A primeira pode conduzir ao fracasso. o que se v hoje no Museu do Homem, no Trocadero. No Orsay, optou-se, com enormes pre- tenses, pela segunda direo, mas nem por isso com maior xito. Aconte- ce que h monumento e monumento; tudo depende de seu mrito. Ao no considerar a Estao d'Orsay como um lugar consagrado mas como uma carcaa vazia onde se podia construir qualquer coisa, esqueceu-se que a nave, as laterais, as grandes vidraas e as cpulas de Laloux eram os pri- meiros objetos que deveriam ser expostos. Os arranjos internos procura- ram sistematicamente a ruptura, quando todas as obras pediam uma apre- sentao que as colocasse em harmonia com o edifcio; harmonias dife- rentes segundo os gneros e os perodos, certo, mas que com um pouco de tato e gosto, poder-se-ia obter.

    No trreo, alcanou-se um bom resultado: a apresentao do edif- cio da pera, concebido por Garnier. Seria bem possvel devanear durante horas diante da maquete do monumento. O passeio sobre o bair- ro, como num balo, uma idia engenhosa. Ela combina perfeitamente com o quadro de Navlet, colocado ao lado, que mostra, mais do alto, a Paris de 1855 e seus faubourgs. Quanto s maquetes de cenrios de diver- sas peras, encantadoras, elas so, em todo o pavimento, as nicas obras em relao s quais teve-se a boa idia de privilegiar a sua iluminao, em lugar de iluminar os espectadores. Pois a disposio e a iluminao de aca- dmicos, simbolistas, pompiers e pr-impressionistas submetem o espec-

    Artigo traduzido da revis- ta francesa Le Dbat N 44, maro-maio de 1987.

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  • ORSAY: A MOLDURA E AS OBRAS

    tador a um verdadeiro espancamento visual. Por duas vezes passei vrias horas no museu, e sa de l com uma enxaqueca espetacular, como se trou- xesse por trs dos olhos o facho de luz que corre ao longo do teto, fere a vista, amarelece os quadros, os faz aparecer a contraluz, iluminando so- bretudo o crnio dos visitantes. As paredes de pedra ou de cor de pedra do o golpe de misericrdia a estas obras que no foram absolutamente pintadas para serem vistas sobre um fundo to claro e despojado.

    Mas h coisas ainda mais graves. Qualquer seleo procede de cri- trios que variam segundo as pocas e que refletem o gosto do momento. Mas sempre h escolha: os homens de museu se guiam por aquilo que jul- gam ser a qualidade. So os mestres e no os maus pintores dos sculos passados (eles sempre existiram) que vemos no Louvre; e o que seria das salas consagradas aos impressionistas se se cercassem Renoir, Monet, Sisley das mediocridades que eles suscitaram? Ora, nas salas destinadas queles que so chamados tradicionalmente de pompiers, parece que o critrio adotado no foi esttico, e sim histrico e sociolgico. No nos dito: isto belo; mas: era assim que se pintava ento. Tudo se passa como se cura- dores pouco animados com esta pintura tivessem se recusado a distinguir a o que h de melhor e de menos bom, a reconhecer assim que algo era belo, e, para apaziguar a conscincia, tivessem escolhido nos oferecer o joio e o trigo. Unindo-se apresentao desastrada que j mencionei, este abandono dos critrios clssicos da museologia faz nascer uma suspeita1: sob o argumento de fazer justia a uma pintura desprezada por longo tem- po, no se teria procurado insidiosamente desacredit-la aos olhos do p- blico, enterrando-a uma segunda vez?

    E no entanto hesito em afirmar isto, pois a apresentao dos impres- sionistas e dos ps-impressionistas, contra os quais ningum acreditaria que se tenha querido conspirar, apresenta falhas igualmente graves. Paredes pin- tadas de branco irradiam a luz em detrimento dos quadros (efeito sensvel durante o dia e que se torna desastroso sob a iluminao artificial). Em outros casos, fez-se a escolha inversa: salas bizarras com colunetas metli- cas prximas umas das outras, onde os quadros parecem enjaulados em algum jardim zoolgico (teriam sido concebidas para os fauves2?) e care- cem de iluminao. H quatro painis decorativos de Bonnard que sim- plesmente no se podem ver. Estranha contrapartida aos dois Bals de Re- noir que, nas primeiras salas, so achatados pela pesada chapa luminosa que vem do teto. A, telas de artistas que tinham como ponto de honra realizar uma pintura clara so vtimas da agressividade dos fundos: tornam- se baas.

    Filho e duas vezes sobrinho de pintores, pude experimentar em mi- nha infncia os dramas ligados disposio das telas nas exposies dos Sales tal como Zola os descreve em L'Oeuvre , e imagino a decep- o de muitos pintores do sculo passado diante do modo que a distribui- o dos espaos forou a observao de seus trabalhos: falta de recuo pa- ra as grandes telas, fim de parede sacrificado por formar ngulo com uma

    (1) de se perguntar sobre as razes pelas quais o Carnet de Parcours du Muse d'Orsay intitulado "Baudelaire et Ses Pein- tres" omite cuidadosa- mente o nome de Wllliam Haussoullier, aluno de Paul Delaroche. No entan- to Baudelaire colocava seu quadro exposto no sa- lo de 1845 "imediata- mente aps Delacroix" "quadro nico", chegava a dizer, "de um sentimento delicado", obra de um pintor at ento desco- nhecido, do qual ele sau- dava "a apario sbita, inesperada, brilhante". O autor do Carnet de Par- cours, que se refere ao Sa- lon de 1845 a propsito de outros pintores, se apressa em sublinhar que Baudelaire o renegaria mais tarde. Pode ser. Mas certamente no por causa de Haussoullier, sobre o qual o poeta mantm o seu juzo contra todas as crticas no Salon de 1846. Este silncio pudico de um conservador do mu- seu no se explica pelo te- mor de que, ao dar ao co- nhecimento do pblico o entusiasmo de Baudelaire por um pompier, fizesse tremer as colunas do templo?

    (2) "Fauves" significa lite- ralmente "feras", "animais selvagens". Nas artes pls- ticas designa uma das principais correntes deste sculo o grupo forma- do, entre outros, por Ma- tisse, Dufy, Vlaminck e Derain e que teve origem no ateli de Gustave Mo- reau. O termo foi cunha- do pelo crtico Louis Vauxcelles. Obviamente, Lvi-Strauss joga com o duplo sentido da expres- so (NT).

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  • NOVOS ESTUDOS N 20 - MARO DE 1988

    vidraa incmoda para os Courbet (sem falar no Enterrement Ornans e no Atelier, at h pouco bem visveis no Louvre e que, aqui, sob ilumi- nao artificial, noite transformam-se em dois crceres), excelentes qua- dros ingleses relegados aos patamares das escadas. Eu teria tambm algo a dizer sobre a classificao cronolgica: Manet, Monet, antes de 1870, no trreo; aps 1870, no ltimo andar possvel? Divide-se a obra de um artista em partes que so distribudas por vrios andares, suas telas coloca- das ao lado de partes da obra de outros artistas, sob o pretexto de que so contemporneas. Mas os cortes histricos assim realizados no tm uma verdadeira unidade so abstraes vazias, quando comparadas conti- nuidade vivida de uma personalidade e de uma obra. Como penetrar estas obras, apreender sua evoluo e discernir suas invariantes, quando elas nos so apresentadas desarticuladamente e quando se nos obriga, para ter uma viso de conjunto, a virar de baixo para cima e de cima para baixo todo o edifcio?

    Uma palavra enfim sobre a apresentao das artes decorativas. Para o perodo de 1850-1880, esbarra-se com um guarda-mveis ou com uma sala de leiles de objetos de arte. Como no caso dos pompiers, toleraram- se estes objetos em um museu, mas no a ponto de trat-los como obras de arte. No entanto, que belos conjuntos poderiam ter sido feitos com a associao destes mveis a esculturas... Quanto ao mobilirio art nouveau, tem-se a impresso de estar numa grande loja de departamentos, na seo de cama. Como que no se compreendeu que este mobilirio solicitava uma ambientao calorosa, que suas volutas vegetais pediam o contraponto dos tecidos? A exposio das peas fundidas de Guimard em um sombrio e interminvel vo de escada e contra um fundo de metal polido no apenas um contra-senso: sinistra.

    Neste museu sem coerncia arquitetnica, onde as rupturas brutais, realizadas arbitrariamente, impedem qualquer intimidade com as obras, muitas coisas so irreversveis. Na melhor das hipteses, meio sculo pas- sar antes que se decida a desmantelar as fortificaes da senhora Aulenti a arquiteta responsvel pela organizao visual do museu , as divis- rias semelhantes a pedaos de queijo Brie que as dominam. Mas h defei- tos que poderiam ser remediados sem arruinar as finanas do Estado: re- pensar a iluminao do trreo e, parcialmente, tambm de outros lugares (os trabalhos para o Prix de Rome recentemente expostos na Escola de Belas-Artes eram muito bem iluminados, e sem nenhum estardalhao); apre- sentar os acadmicos e pompiers com base num valor que fosse defendi- do; repintar (ou forrar com algum material) o andar dos impressionistas com um tom que absorva a luz, em lugar de refleti-la. De resto, tirar desta experincia uma lio geral. Ela se enderea aos poderes pblicos. Dir-se- ia que, de posse de um projeto cultural, o justo sentimento de no estar altura da tarefa os aterroriza. No Orsay, teria sido possvel se inspirar no modo como as obras do mesmo gnero eram apresentadas nos edifcios de ossatura metlica e amplamente envidraados, tal como eram constru-

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  • ORSAY: A MOLDURA E AS OBRAS

    dos para as grandes exposies do sculo XIX. Aparentemente teria sido muito simples. Para evitar que sejam acusados de falta de audcia, que se creia que sejam incapazes de marcar sua passagem pelo sculo com uma grande obra, nossos governantes vo de um extremo a outro e se jogam nos braos dos criadores ditos de reputao mundial. Mais uma vez obser- vamos aonde isto conduz. Faz tempo que nos vemos entregues a decora- dores e cengrafos que s tm duas idias em mente: responder s ambi- es de seus mandantes e, no caso de uma realizao fracassada, sobres- sair s custas de obras atrs das quais eles deveriam desaparecer.

    No entanto, seria injusto concluir com um balano negativo. De mi- nha parte, me recuso a fazer uma seleo dos eleitos e reprovados do s- culo XIX. Ao rejeitar o impressionismo, os pompiers e seus defensores nem sempre agiram cegamente eles temiam que o impressionismo condu- zisse a pintura a sua runa. A despeito de alguns sobressaltos, possvel dizer hoje que eles tenham se enganado completamente? Em todo caso, eles pintaram telas hbeis e muitas vezes belas. Seus detratores deveriam ao menos ter respeito por elas.

    De seu lado, os impressionistas restituram trinta anos de vida a uma arte de pintar ameaada pela anemia. Mas, cada um a seu modo, eles leva- ram a cabo um dogmatismo, suscitaram a intolerncia em seus defensores e encorajaram junto a seus epgonos um desdm em relao ao mtier, de que Baudelaire via as conseqncias futuras j inscritas na pintura de Manet.

    Tentemos julgar com a mesma eqidade aquilo que foi feito por uns e por outros. Malgrado as incoerncias arquitetnicas e as matreirices mu- seolgicas que podemos tratar com rigor, o importante no Museu d'Orsay, o essencial mesmo que ele exista. Isto conta mais que as concepes er- rneas. No se ofendam os pedagogos, mas museus de arte no tm como funo inculcar lies de sociologia ou de outras disciplinas. Deixemos isto aos livros. Os museus de arte tm como funo salvar e expor objetos. Podemos ficar plenamente contentes pelo fato de tal quantidade de obras- primas nascidas num sculo desta grandeza ser aqui reunida, apresentada e estudada em publicaes solidamente documentadas que os curadores do museu se pem a produzir com um zelo pelo qual devem ser felicita- dos sem segundas intenes. A moldura que lhes foi imposta para valori- zar esta fabulosa herana no facilitar o seu trabalho. Que eles permane- am todavia na rota que traaram, que outras obras-primas venham a se reunir a estas nossa gratido est e estar com os que deram vida a este museu, bem como com aqueles e aquelas que tm a tarefa de mant-lo vivo e desenvolv-lo.

    Novos Estudos CEBRAP

    No 20, maro de 1988 pp. 159-162

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