cinema trajetoria no to - paulo emilio sales gomes
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, P aulo Emilio Sales G om es
CINEMA: TRAJET6RIA NO
SUBDESENVOLVIMENTO
E f)PAZETERRA
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© Editora Paz e Terra, 1996.
Eduor es r es p omd v ei s: Christine Rohing e Maria Elisa Cevasco
Edi fao d e texto: Thais Nicoleri de Camargo
ProdNfao grdfica: Katia Halbe
Capa: Isabel Carballo
Dados Internacionais de Caralogacao na Publicacao (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gomes, Paulo Emilio Sales, 1916-1977.
Pequeno cinema antigo / Paulo Emilio. - sao
Paulo: Paz e Terra , 1996. - (Colecao Leitura)
ISBN 85-219-0217-4
1. Cinema - Brasil- Historia 2. Cinema - Hist6ria
I.Titulo.
9~2225 CDD-791.430981
fndices para catalogo sistematico
1. Brasil: Cinema: Hiseoria 791.430981
EDITORA PAZ E TERRA S.A.
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01212-010 - s a o Paulo - SP
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Comel h o e d it o ri al :
Celso Furtado
Fernando Gasparian
Roberto Schwarz
Rosa Freire D'Aguiar
2001Impresso no BraSilY P r il d tt li li lJ d l d i. \" , '.
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SUMARIO
1. Pequeno cinema antigo................. 7
2. Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966 19
l'Epoca: 1896 a 1912 19
2' BpOca: 1912 a 1922 ,36
3' Epoca: 1923 a 1933 50
4- Epoca: 1933 a 1949 71
SaBpoca: 1950 a 1966 76
3. Cinema: trajetoria no subdesenvolvimento ......... 85
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PEQUENO CINEMA ANTIGO
oBrasil se interessa pouco pelo proprio passado. Essaatitude saudavel exprime a vontade de escapar a uma mal-
di~ao de atraso e mise ria. 0 descaso pelo que existiu ex-
plica, nao so 0abandono em que se encontram os arquivos
nacionais, mas ate a impossibilidade de se criar uma
cinemateca. Essa situacao dificulta 0 trabalho do historia-
dor, particularmente 0 que se dedica a causas sem impor-
tancia como 0 cinema brasileiro.
Ha dez anos, apenas meia duzia de pessoas tinha
curiosidade pelo passado de nosso cinema. No estrangei-
ro, 0 iinico era Georges Sadoul, 0 que nao espanta pois 0
historiador frances procurava conhecer a historia do cine-
ma de todos os paises. Hoje urn grupo razoavel sente ne-
cessidade de conhecer 0 que foi nosso cinema. As pesqui-
sas obedecem a norma valida para qualquer ramo do
conhecimento: abordar criticamente 0 passado brasileiro
com 0 espfrito de servir 0presence e 0 futuro, mas ao mes-
mo tempo se impregnar de simpatia, Escrever sobre cine-
ma brasileiro nao e mais uma tarefa pioneira: ja se consti-
tuiu no pais urn pequeno publico ledor familiarizado com
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algumas dezenas de nomes de cineastas e tftulos de fil-
meso E obvio que essa enurneracao nao teria qualquer po-
der evocativo para 0 leitor estrangeiro.
o aparecimento do cinema na Europa Ocidental e
na America do Norte na segunda decada dos anos 90 foi 0
sinal de que a Primeira Revolucao Industrial estava na
vespers de se estender ao campo do entretenimento. Essefruto da aceleracao do progresso recnico e cienrffico en-
controu 0 Brasilestagnado no subdesenvolvimento, ar-
rastando-se sob a heranca penosa de urn sistema econorni-
co escravocrata e urn regime polftico rnonarquico que so
haviam sido abolidos respectivamente em 1888 e 1889.
o atraso incrfvel do Brasil, durante os ultirnos cinqiienta
anos do seculo passado e outro tanto deste, e urn pano de
fundo sem 0 qual se torna incompreensfvel qualquer rna-
nifestacao da vida nacional, incluindo sua mais fina lite-
ratura e com mais razao 0 tosco cinema.
A novidade cinematografica chegou cedo aoBrasil, e so
nao chegou antes devido ao razoavel pavor que causava aos
viajantes estrangeiros a febre amarela que os aguardava pon-
tualmente a cada verso. Os aparelhos de projecao exibidos ao
publico europeu e americano no inverno de 1895-1896 co-
me\aram a chegar ao Rio de Janeiro em meio deste ultimo
ano, durante 0 saudavel inverno tropical. No ana seguinte, a
novidade foi apresentada imimeras vezes nos centros de di-
versao da capital, e em algumas outras cidades. Em 1898,
foram realizadas as primeiras filmagens no Brasil.
~:;, .. ,8
Durante dez anos, porem, 0 cinema vegetou, tanto
como atividade comercial de exibicao de fitas importadas,
quanto como fabricacao ,artesanallocal. A explicacao, como
sempre, esta no retardo do pafs. No caso especifico, 0 que
impedia 0 desenvolvimento do cinema no Rio, para nao
falar no resto do territorio ainda mais arcaico, era a insufi-
ciencia da energia eletrica, Nos poucos locais da capital da
Republica que dispunham dessa comodidade, 0menor tem-
poral ou ventania interrompia 0 fornecimento, como ainda
hoje acontece em largas porcoes relativamente prosperas++
pois possuem eletricidade - do interior brasileiro. SOem
1907 houve no Rio energia eletrica produzida industrial-
mente, e entao 0 cornercio cinernarografico floresceu. A
abertura continua de dezenas de salas no Rio, e logo em Sao
Paulo, animou a importacso de filmes estrangeiros, e fo
seguido de perto por urn promissor desenvolvimento de
urna producao cinematografica brasileira. Um mimero abun-
dante de curtas-metragens de atualidades abriu caminho
para numerosos filmes de fic\ao cada vez mais longos.
o quadro recnico, artfstico e comercial do nascente
cinema era consrirufdo de estrangeiros, notadamente ita-
lianos cujo fluxo imigratorio foi consideravel no final do
seculo XIX enos prirnordios do XX. Em materia de tecni-
ca, a incapacidade do brasileiro tornara-se tradicional. Ess
situacao aflitiva provinha do tempo recente em que 0 tra
balho com a mao era, quando mais simples, obriga\ao d
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escravo, e, quando mais complexo, fun<;aode estrangeiro.
Tais.arividades eram consideradas indignas de pessoa bem-
nascida, isto e, qualquer brasileiro, a partir da segunda ge-
ra<;ao,com a pele nao rnuito escura. Cinema era tido como
diffcil, e qualquer tarefa de filmagens, laborat6rio ou sirn-
plesrnente projecao, foi de infcio executada exclusivamente
por estrangeiros. S6 mais tarde alguns brasileircis, vindosda profissao entao recente de fot6grafo de jornal, aprende-
ram a manejar uma camara. No terreno mais propriamente
artistico, os encenadores e interpretes provinham de elen-
cos dramaticos em tournee sui-americana ou de grupos aqui
radicados onde predominava 0elemento estrangeiro. Certa
tradicao dramatica brasileira, outrora brilhante, havia fene-
cido na obediencia a uma das leis do subdesenvolvimento:
as decadencias prematuras. Os diretores e interpretes brasi-
leiros s6 tornaram-se mais numerosos quando 0 cinema se
impregnou de generos teatrais ligeiros, revistas e operetas.
Quanto aos homens que abordaram 0 cinema como neg6-
cio, eles n a o pertenciam ao mundo comercial estabilizado e
rotineiro dominado pot portugueses. Eram quase sempre
italianos, frequenrernente aventureiros, em cujas vidas pi-
rorescas nao pesava muito 0 lastro da respeitabilidade. Es-
ses empresarios argutos eram, ao mesmo tempo, produro-
res, importadores e proprietaries de salas, situa<;ao que
condicionou ao cinema brasileiro urn harmonioso desen-
volvimento, pelo menos durante poucos anos.
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Entre 1908 e 1911, 0Rio conheceu a idade do our
do cinema brasileiro, classificacao valida a sombra da cinzenta frustracao das decades seguintes. Os generos dra
maticos e comicos em yoga eram bastante variados. Pre
dominaram inicialmente os filmes que reconstitufarn o
crimes, crapulosos ou passionais, que impressionavam
irnaginacao popular. Nofim do ciclo 0 publico era sobretudo atrafdo pela adaptacao ao cinema do genero de revis
tas musicais com temas de atualidade. Os artistas se pos
tavam arras da tela, falando ou cantando os textos d
maneira a coincidir com as imagens mudas projetadas.
Foram igualmente filmados numerosos melodramas e as
suntos com crfticas aos costumes urbanos. Essa idade d
ouro nao poderia durar, pois sua eclosao coincide coma
rransforrnacao do cinema artesanal em irnportante industria nos pafses mais adiantados. Em troca do cafe que ex
portava, 0 Brasil importava ate palito e era normal qu
importasse tam bern 0entretenimento fabricado nos gran
des centros da Europa e da America do Norte. Em algun
meses 0 cinema nacional eclipsou-se e 0mercado cinema
tografico brasileiro, em constante desenvolvimento, fico
inteiramente a disposicao do filme estrangeiro. Inteira
mente a margem e quase ignorado pelo publico, subsistiucontudo urn debilfssirno cinema brasileiro.
Dogrande mirnero de pessoas ativas ate 1911, perseve
raram apenas os cinegrafistas. Ao lado dos curtas-metragens
de atualidade, que lhes asseguravam a subsistencia, essespioI
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neiros teimosos seaventuraram ocasionalmente a realizar urn
filme drarruitico. De 1912 em diante, durante dez anos, fo-
ram produzidos anualmente apenas cerca de seis filrnes de
enredo, nem todos com tempo de projecao superior a uma
hora. Os novos recrutas da profissao, tecnicos, artistas ou
encenadores, sao ainda predominantemente italianos, mas ja
apontam alguns brasileiros tanto no Rio como em s a o Paulo,cidade cuja importancia crescia e onde severificava uma ari-
vidade cinernarografica paraiela a da capital da Republica.Pamlela e a expressao exata pois os cineastas de urna e outra
nunca seencontravam, mais do que isso, se ignoravarn quase
totalmente. Entre os filmes desse tempo, destacam-se os cal-
cados em obras celebres da Iiteratura brasileira, principal-
mente as do perfodo romanrico. Anote-se igualmente a
comicidade involuntaria dos assuntos que tomaram comopretexto a participacao puramente simb6lica do Brasil na
Primeira Guerra Mundial. A linguagem desse cinema mar-
ginalizado permanecera extremamente primitiva. 0 filme
brasileiro se estiolava dentro de urna estrurura dramatics ri-
gidamente compartimentada, na qual a definicao dos
caracteres e situacoes, assim como 0desenvolvimento do en-
redo, ficavam na inteira dependencia dos letreiros explicativos.
Essa situacao mediocre vigorou ate os prim6rdios da decadade vinte. Daf por diante, sucedem-se os sinais de vitalidade.
Nessa ocasiao, os brasileiros ja sao maioria no quadro do ci-
nema nacional, mas os iinicos tecnicos razoaveis ainda sew,
durante algum tempo, os italianos.
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Aproximadamente a partir de 1925, dobra a media
de producao anual, e ha progresso na qualidade. Alem do
Rio de Janeiro e de Sao Paulo, produzem tambern as capi-
tais de Pernambuco, do Rio Grande do SuI e de Minas
Gerais. Nesta ultima provincia surgem movimentos e per-
sonalidades promissoras ate em pequenas cidades do inte-
rior. Paulatinamente esses diversos grupos estabelecem
contatos atraves de jornalistas do Rio e de Sao Paulo que
se interessam de forma militante pelos nossos filmes, de-
lineando-se assim, pela priineira vez, uma consciencia ci-
nernarografica nacional. Urn ou outre diretor consegue
trabalhar com certa continuidade. Ha uma progressao or-
ganica de filme para filme e surgern obras que atestam
incontesravel dornfnio de linguagem e expressao esti-lfstica. Em torno de 1930, nasceram os classicos do cine-
ma mudo brasileiro e houve uma incursao valida na van-
guarda mais ou menos herrnetica. Era tarde, porem, Quan-
do 0 nosso cinema mudo alcanca essa relativa plenitude, 1
.0 filme falado ja esta vitorioso em toda parte.
1. Plenitude apenas artfstica, Cornercialmenre 0 cinema nacional per-
manecia marginalizado. A exibi~a:o dos filmes brasileiros era mais do
que precaria e dependia inteiramente da boa vontade de urn ou ourro
dono de sala. 56 foram realmente vistas pelo publico algumas caras obras
que, por urn motivo qualquer, as distribuidoras estrangeiras inclufarn
ocasionalmente em seus circuitos de salas.
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A historia do cinema falado brasileiro abre-se com urn
longo e penoso reinfcio, Durante as decadas de 1930 e 1940,
a producao se limita praticamente ao Rio, onde se criam
estudios mais ou menos aparelhados. Algumas leis
paternalistas de amparo asseguram 0 prolongamento dos
pessirnos jornais cinematograficos e, numa fase posterior,
obrigam as salas a exibir uma pequena percentagem de fil-
mes brasileiros de enredo. Alguns comerciantes de cinema
importado dispoern-se a produzir filmes a fim de beneficia-
rem-se a si pr6prios com 0 cumprimento da lei. Dessa ma-
neira, restabeleceu-se, pela primeira vez desde 1911, certa
solidariedade de interesses entre 0comercio de exibicao e a
fabricacao nacional. 0 resultado mais evidence foi a prolife-
rac;aode urn genero de filmes - a cornedia popularesca,
vulgar e frequentemente musical - que desolou mais de
uma gerac;ao de crfticos. Uma visao mais aguda permitiria
vislumbrar nessas fitas - destinadas aos setores mais mo-
destos da sociedade brasileira - algumas virtualidades que
mereceriam estudo e desenvolvimento. Durante vinte anos
esse genero - que s6 decaiu no cinema quando foi absorvi-
do pela televisao - registrou e exprimiu alguns aspectos e
aspiracoes do panorama humano do Rio de Janeiro. As ten-
tativas de urn cinema melhor nao sao frequentes. Pouquis-
simos diretores do cinema mudo permanecem na profissao
e conseguem, eventualmente, conciliar a yoga das cancoes
com temas de realidade social. A crftica de costumes, filao
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que nao s6 0cinema mas tarnbern 0magro teatro brasileiro
sempre abordaram com proveito, aponta aqui e ali, de for-
ma despretensiosa mas eficaz. Acontecimentos como uma
rebeliao militar de inspiracao comunista ou a instauracao
no pafs de urn regime fascista nao deixaram traces em nosso
cinema. Nossa participacao modesta na Segunda Guerra
Mundial suscitou tres filmes de circunstancia, duas come-
dias e urn drama. Tambern nao foram felizes as adaptacoes
de romances brasileiros celebres, antigos ou rnodernos. Es-
tas ultimas anunciavam a preocupacao social - que ja in-
vadira a literatura do pafs - e que rnais tarde se tornaria
tao aguda no panorama cinematografico brasileiro.
A decada de 1950, ultima que nos cabe tratar, se abre
em Sao Paulo, onde urn imaginoso manager italiano renta
implantar a industria cinernatografica logo ap6s rer pro-
rnovido urn irnportante rnovimento teatral. Revelou-se
enganosa a sernelhanca entre os dois tipos de ernpreendi-
mento. 0 ato de produzir e representar uma peca e urn s6,
ao passo que realizar e exibir urn filme sao duas operacoes
diversas. Os filmes relativamente custosos de Sao Paulo
foram entregues a firrnas distribuidoras estrangeiras pou-
co interessadas na audaciosa tentativa industrial, cuja vida
foi efemera. 0 saldo mais positivo consistiu na melhoria
tecnica gracas a vinda de experimentados especialistas in-
gleses. Da Italia vieram encenadores e cen6grafos - que
serviam igualrnente aos proposiros teatraisem curso - e
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ate roteirisras, 0 resultado final foi uma duzia de filmes
razoaveis com acentuado ressaibo de cosmopolitismo irn-
provisado e ja meio fora de moda. 0 maior exito comercial
e cultural derivou de uma incursao na rernatica do bandi-
tismo rural brasileiro.
omalogro industrial nao teve consequencias farais,
Durante a decada de 1950, a producao, com 0 Rio nova-mente a frenre, nao cessou de aumentar, chegando a esta-
bilizar-se em torno de trinta filmes anuais. 0 principal
beneficiario da heranca do esforco cosmopolita foi urn pe-
queno grupo paulista que adquiriu fisionomia propria e
cuja influencia se rnanifesta fortemente no cinema oficial
de nossos dias. jusrifica-se, pois, que se defina a ideologia
do grupo apesar da pobreza de sua contribuicao a cultura
nacional. Essa definicao facilitara, alias, a cornpreensao de
urn trace curioso no fenomeno do subdesenvolvimento: a
tonalidade especial que pode assumir 0 anseio de ascensao
individual no st atu s q uo da sociedade. A afirmac;ao dos as-
pectos exteriores da riqueza e do poder, isro e, 0arrivismo,
pode coexistir ou ser totalmente substitufda pela vivencia
de senrimentos fantasiosos atribufdos a elite, nostalgia,
pessimismo e gosto pela decadencia, enfocados na rnais
total ausencia de senso crftico e de humor. Os arrivistas
do espfrito desejam atingir verdades universais e perrna-
nentes do ser humano, acima de qualquer conjuntura so-
cial definida. As intencoes sublimes nao se separam, po-
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rem, - e aqui 0 grupo entra realmente em comunhao
com a camada social a qual aspira -, de urn conservan-
tismo que pode eventual mente descambar na delac;ao. Esse
tipo de arrivista e recrutado nas camadas modestas de uma
pequena burguesia citadina de origem europeia. Durante
algum tempo, 0 ernpenho maior do grupo foi reagir pas-
sionalmente contra 0 cinema do pes-guerra, notadamen-te 0 italiano, que dignificava uma humanidade que lhes
era biograficamente proxima mas a qual desesperavam
em dar as costas. Seus filmes revelam no melhor dos casos
urn ta-lenro de feitura perdido na indigencia dos argu-
mentes e roteiros.
A influencia do cinema .italiano do pas-guerra nao
teve apenas 0 efeito negativo acima registrado, Cineastas
do Rio e de Sao Paulo adaptaram a lic;aoao nosso cinema,
tendo resultado obras profundamente nacionais sem a
menor semelhanca com eventuais modelos originais. Os
auto res desses filmes provinham do Partido Comunista,
tao medfocres no terreno polfrico brasileiro quanto 0 fas-
cismo ou 0 liberalismo. Urn jovem intelectual cornunista
encontrava, porern, no Brasil do pas-guerra, estfmulo para
a imaginacao e gosto pela realidade nos livros de alguns
autenricos grandes escritores membros do Partido. Essa
formacao literaria, aliada ao merodo cinematografico ita-
liano de identificacao com 0 universo social circundante,
condicionou a eclosao de quase todos os filmes significaci-
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vos realizados durante a decada de 1950. A ressalva e para
permitir a inclusao de alguns exitos isolados e para mar-
car 0 reaparecimento de urn veterano do cinema mudo
com urn filme regional saboroso e maduro. No fim da de-
cada, a producao, quantitativamente consideravel, quase
s6 apresenta filmes vulgares, de natureza camica ou, em
mirnero menor, sentimental. 0 cinema de 1959 era taoruim que, num dado momento, as expectativas se cristali-
zaram em torno de uma bobagem bem-cuidada e custosa
do grupo dos arrivistas do espfrito.
No fim da decada de 1950 e infcio da de 1960, 0
Brasil vivia momentos de aguda esperanca e tornava, por
contraste, ainda mais desalentador 0panorama cinernaro-
grafico. Ja estavam, porern, agindo os jovens desconheci-
dos que iriam provocar uma reviravolta no cinema brasi-
leiro, sintonizando-o com 0 tempo nacional e conferin-
do-lhe, pela primeira vez, urn papel pioneiro no quadro
de nossa cultura.
18
PANORAMA DO CINEMA
BRASILEIRO: 1896/1966
II/.EPOCA: 1896 a 1912
Em 1896, 0 cinema chegou ao Brasil. Ignora-se 0
nome do ernpresario , mas a maquina chamava-se
Omniographo, e as exibicoes desenrolaram-se numa sala
da rua do Ouvidor, 0 coracao do velho Rio antes da inau-
guracao da avenida. Longamente os jornais comentaram a
novidade e 0 aparelho deve ter funcionado duas ou tressemanas. Depois disso 0 Omniographo se eclipsou para
provavelmente ressurgir mais tarde, com outro nome.
A partir das primeiras semanas de 1897, aparelhos
denominados Animatographo, Cineographo, Vidamo-
tographo, Biographo, Vitascopio, ou mesmo Cinemato-
grapho, sao apresentados no Rio, em Petropolis, e logo
em seguida em Sao Paulo e outras cidades importantes.
Os prestidigitadores acrescentam 0 cinema aos seus mi-meros e torna-se freqiiente a presence das fitinhas curtas
de entao nos programas dos teatros de variedades e dos
cafes-concertos. A nova invencao e manipulada por artis-
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tas ambulantes, em geral estrangeiros, dotados de algum
conhecimento medinico.
A primeira sala fixa foi instalada no nO141 da rua
do Ouvidor, em 31 de julho de 1897, e chamou-se "Salao
de Novidades'', Cinema era novidade francesa e 0 local
passou logo a ser 0 "Salao Paris no Rio", nome com que
cumpriu seu papel na historia do cinema no Brasil e dofilme brasileiro. 0 principal dono do empreendimento era
Paschoal Segreto.
Eram os Segreto urn grupo de irmaos imigrados da
Italia, em epccas diversas, e no momento que nos ocupa
vamos encontrar quatro deles no Rio: Gaetano, Afonso e
Luiz, alern de Paschoal. E de se presumir que Gaetano
devia ser 0mais velho: nao traduziu 0nome e ja constituf-
ra famflia. Tinha urn service de distribuicao de jornais e
participava igualmente das atividades do "Salao", Paschoal
devia andar pelos trinta anos e os dois outros irmaos, cer-
tamente mais jovens, trabalhavam para ele. Moravam to-
dos nos andares superiores do salao de diversoes da rua
do Ouvidor.
Alern de cinema, 0 "Salao Paris no Rio" oferecia gran-
de variedade de divertimentos visuais e mecanicos. Con-
tudo, as "vistas animadas" constitufam a principal atra\ao
e, como havia necessidade de se renovar constanternente 0
repertorio, emissaries de Paschoal Segreto seguiam com
frequencia para Nova York ou Paris, a fim de obrer vistas
20
novas e aparelhamento mais aperfeicoado. Afonso era em
geral 0 encarregado dessas rnissoes,
Em 1898, voltando ele de uma das suas viagens, ri-
rou algumas "vistas" da Bafa da Guanabara com a camara
de filmar que comprara em Paris. Nesse dia - domingo,
19 de junho -, a bordo do paquete frances "Bresil", nas-
ceu 0 cinema brasileiro.' Daf por diante, sucedem-se asfilmagens. Dia 29, Afonso registrou 0 cortejo que condu-
ziu ao cerniterio os despojos de Floriano Peixoto e, no dia
5 de julho, 0desembarque de Prudente de Morais e comi-
tiva no Arsenal da Marinha. Os pontos importantes da
cidade foram focalizados: 0Largo do Machado, a Praia de
Santa Luzia, a Igreja da Candelaria, 0Largo de Sao Fran-
cisco de Paula ... A rua do Ouvidor, apesar de sua impor-
tancia, era estreita e demasiado sombreada para se prestara filmagens que exigiam luz natural.
Chegaram, pois, ate nos, e razoavelmente bern, as
circunstancias em que foram rodadas no Brasil as primei-
ras dezenas de metros de pelfcula virgem. Muito mais di-
ffcil sera fixar quando foram projetadas pela primeira vez
as "vistas" nacionais. Os jornais cariocas de julho e da pri-
1. Esse e muitos ourros dados relativos aos primordios do cinema brasi-leiro encontram-se no importante trabalho, ainda inedito, de Vicente de
Paula Araujo, 0 cinematografo no R io d e janeiro (1896-1912). (N. do E.
- Publicado pela Editora Perspectiva, S. Paulo, 1976, com 0 ti tulo: A
b e la e po c a d o c in ema brasileiro.)
21
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meira semana de agosto de 1898 noticiam com frequencia
a proxima apresentacao de vistas locais no Animatographo
do "Salao Paris no Rio"; contudo, nenhuma dessas anun-
ciadas exibicoes se realizara ate 8 de agosto, data em que 0
estabelecimento foi totalmente destrufdo por urn incen-
dio. So alguns rneses depois, em janeiro de 1899, e que se
reabriu 0 "Salao", tornando-se a exibi~ao de filmagens deassuntos brasileiros entao habitual. Mas e possfvel que as
primeiras atualidades de Afonso Segreto tenham sido
projetadas no ana anterior, se nao no Rio, pelo menos em
Campos, no Estado do Rio de Janeiro, onde por ocasiao
do incendio estava Paschoal Segreto montando uma su-
cursal de sua prospera empresa de divers5es.
Durante alguns anos foram os irrnaos Segreto os prin-
cipais exibidores de filmes e, ate pelo menos 1903, os iini-
cos produtores dos escassos filmezinhos nacionais de atua-
lidades. Prosseguiu Afonso Segreto nas suas viagens de
negocios aos Estados Unidos e a Europa e, ao que tudo
indica, la pelos meados de 1900, nao mais voltou ao Bra-
sil. As tarefas tecnicas de filmar e revelar foram entao as-
sumidas por outros colaboradores de Paschoal Segreto,
cujos nomes a pesquisa ainda nao descobriu.
odesaparecimento de Afonso Segreto, eo silencio que
osparentes guardaram em torno dele, fez com que seu nome
cafssenum quase total esquecimento; e facil tracar os dados
biograficos de qualquer urn dos seus irmaos, mas precisa-
22
mente os dele tornam-se obscuros e no final se perdem com
suas pegadas. Teria prosseguido com seus trabalhos no ex-
terior? Ou teria voltado para c a e se dedicado a outras ativi-
dades? Paschoal e Gaetano deixaram muitos suIcos na vida
carioca ate 0 dia em que foram levados ao Cemiterio Sao
Joao Batista, onde se encontram sob 0 jazigo em marrnore
de Carrara, com figuras simbolizando a Arre Teatral e aImprensa amparadas pelo Anjo da Morte. Ja a passagem de
Luiz Segreto foi mais modesta nos meios artfsricos nacio-
nais. Mas a respeito de Afonso Segreto, 0primeiro nome do
cinema brasileiro, nao se sabe rigorosamente nada.
Os dez primeiros anos de cinema no Brasil sao pau-
perrimos. As salas fixas de projecao sao poucas, e pratica-
mente limitadas a Rio e Sao Paulo, sendo que os numero-
sos cinemas ambulantes nao alteravam muito a fisionomia
de urn mercado de pouca significacao. A justificativa prin-
cipal para 0 ritrno extremamente lento com que se desen-
volveu 0 cornercio cinernarografico de 1896 a 1906 deve
ser procurada no atraso brasileiro em materia de eletrici-
dade. A urilizacao, em marco de 1907, da energia produ-
zida pela usina do Ribeirao das Lages teve consequencias
imediatas para-e cinema no Rio de Janeiro. Em poucos
meses foram instaladas umas vinte salas de exibicao," sen-
2. Vicente de Paula Araujo registra 18 inauguracoes de salas novas,
entre 10 de agosto e 24 de dezembro de 1907.
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do que boa parte delas na recem-construfda Avenida
Central, que ja havia desbancado a velha Rua do Ouvi-
dor como centro comercial, artfstico, mundano e jorna-
lfstico da capital federal. Esse siibiro florescimento do
cornercio cinematografico em 1907 influiu diretamen-
te na producao de filmes brasileiros. Seguindo a trilha
aberta pelo pioneiro Paschoal Segreto, alguns dos no-
vos ernpresarios cinematogrificos procuraram se dedi-
car simultaneamente a irnportacao, exibicao e produ-
\ao de filmes. Assim fizeram os italianos Jose Labanca
eJacomo Rosario Staffa, ate entao ernpresarios do "jogo
do bicho"; assim fizeram os franceses Marc Ferrez e fi-
lhos, instalados como forografos. 0 mesmo caminho
ain-da foi seguido pelo alernao Cristovao Guilherme
Auler, fabricante de moveis da Rua do Ouvidor, e pelo
espanhol Francisco Serrador. Tal entrosamento entre 0
cornercio de exibicao cinemarografica e a fabricacao de
filmes explica a singular vitalidade do cinema brasilei-
ro entre 1908 e 1911.
Todas as filmagens brasileiras realizadas ate 1907 li-
rnitavam-se a assuntos naturais. A fic\ao cinematografica,
ou melhor a fita de enredo, 0 "filme posado", como se
dizia entao, soapareceu com 0surto de 1908. Pairam ain-
da duvidas sobre a primeira fita de fic\ao realizada noBra-
sil, mas a tradicao aponta Os es tranguladores , filme de grande
relevo na historia do cinema brasileiro. Nao sao levados
24
em muita consideracao os filmezinhos produzidos por
FranciscoSerrador em SaoPaulo, provavelmente em 1907,
filmes posados por urn duo de cantores que sonorizavam a
projecao escondidos arras da tela. Nao se tratava propria-
mente de fitas de enredo.
Vicente de Paula Araujo localizou uma cornedia pro-
jetada em junho de 1908, no Grande Cinematographo
Pathe: N hIJ A nastdcio chegou de viagem . E uma seria con-
corrente ao titulo de primeira fita brasileira de fic\ao.
"Narravaas peripecias de urn matuto que veio passear
no Rio de Janeiro, desembarcou na estacao da Central,
andou pelas ruas, viu a caixa de conversao, entrou no
Palacio Monroe, visirou 0 Passeio Publico, enarnorou-se
de uma cantora, mas tudo se complicou com a chegada
subita da esposa. Por fim, a serie de qiiiproquos, a perse-
gui\ao comica, a reconciliacao geral, 0 h ap py e nd ... "3 Foi
filmada por Julio Ferrez, e interpretada por Jose Gon-
calves Leonardo. "E a primeira vez, escreveu urn cronistada epoca", que sefazem entre nos fitas desse genero."
Devia ser Nh I J Anas td c io uma fita curta, com uns quinze
minutos de duracao no maximo. Vinte dias apos 0 lanca-
rnento de Nh I J Anas td c io , ja estava pronto urn filme bra-
·3. Vicente de Paula Araujo - Cap. XVIII da obra citada.
4. Figueiredo Pimentel, in Gazeta deNotfcias, de 20/junho/1908. Cica-
da por V. P. Araujo.
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sileiro de mais de meia hora, 0 celebrado Os es tr angul a-
dores, de Antonio Leal.
Durante muito tempo foi 0portugues Antonio Leal
apresentado e aceito como 0 fundador e criador do cinema
brasileiro. Teria ele, nao s6 realizado 0 primeiro filme de
enredo, mas sido ainda 0operador das primeiras filma-
gens feitas no Brasil. A dissipacao dessas lendas nao dimi-nui em nada a importancia de Leal. Em 1904 ainda 0 en-
contramos como fot6grafo de 0 malho e com atelie insta-
lado a Rua do Ouvidor. Sem duvida foi no ana seguinte
que cornecou a filmar, mas s6 decorrido algum tempo e
que se criaram condicoes para que ele se transformasse
num cinegrafista profissional, 0melhor da epoca na opi-
niao da imprensa conrernporanea. Em maio de 1907, re-
cebe Leal 0 diffcil encargo de cinematografar, por conta
talvez do ernpresario Jacomo Rosario Staffa, a operacao
das xif6pagas realizada pelo Dr. Chapot Prevost. No ana
seguinte, associa-se ele a Jose Labanca para fundar a firma
"Photo Cinematographia Brasileira", inicialmente apenas
uma "fabrica de vistas", mas que logo em seguida se con-
centraria nos filmes de enredo. Duas comedies curtas de
Leal, O s ca pa d6 cio s d a cid ad e n ova e 0 comprador de rates, sao
quase contemporaneas de Nh fj A n as td cio , cornedias esti-
muladas certamente pelo exito que 0 filme de Julio Ferrez
alcancou. A realizacao, porern, de Os es tr angul ado r e s colo-
cou a empresa de Labanca e Leal na lideranca da auspiciosa
producao de 1908.
26
Dois anos antes urn crime terrfvel havia causado pro-
funda impressao no Rio: dois adolescentes, os irrnaos
Paulino e Carluccio Fuoco, sobrinhos e empregados de
urn joalheiro da Rua da Carioca, foram estrangulados por
uma quadrilha cornposra de Geronimo Pegatto, proprie-
tario do barco "Fe em Deus", de Carletto e Epitacio, dois
comparsas, e do contrabandista Eugenio Rocca, apelidado
"0cabotino do crime", devido ao seu tipo enfatuado,cheio
de recursos histridnicos. Folhetos de literatura de cordel
circularam logo com versos sobre a crueldade de Rocca e
sobre 0destino rragico dos jovens Fuoco. Urn cinegrafista
de Paschoal Segreto filmou Rocca, Carletto e Pegatto, na
Casa de Derencao. 0 Teatro Lucinda apresentou no palco
Os es tr angul ado r e s OIl F e em D eus. Figueiredo Pimentel e
Rafael Pinheiro, ambos conhecidos jornalistas, escreveram
o drama A quadrilha da morte , que serviu de roteiro para 0
filme O s e stra ng ula do re s d o R io , conhecido depois como Os
Estranguladores, que Leal devia lancar em julho de 1908.
Contornadas algumas dificuldades que surgiram com a
polfcia, a fita iniciou sua carreira triunfal no cinema de
Labanca, 0 "Palace" da Rua do Ouvidor, nos primeiros
dias de agosto.
Calcula-se que Os es tr angul ado r e s foi exibida mais de
oitocentas vezes, constiruindo urn empreendimento sem
precedentes no cinema brasileiro. Tinha setecentos metros,
isto e, quase quarenta rninutos de projecao, e cornpunha-
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se de dezessete quadros: - I"Trama do crime; 2"Na Ave-
nida Central; 3" Embarque na Prainha; 4" Na Ilha dos
Ferreiros; 5" Primeiro estrangulamento; 6" A procura da
pedra; 7" Desembarque em Sao Cristovao; 8" 0 assaito; 9"
Segundo estrangulamento; 1()2 Divisao das joias; II" A
pega; 12" 0 informante; 13" Prisao do primeiro bandido;
14"Nas matas de Jacarepagua; IS" Prisao do segundo ban-
dido; 16" Dois anos depois; 17" Na prisao,
Entre os colaboradores e interpretes que Leal reuniu
em as e s tr angu lado r e s encontram-se varies nomes que esta-
rao sempre presentes nessa fase primitiva do cinema bra-
sileiro: Emilio Silva, Francisco Marzulo, Joao de Deus,
Antonio Serra eJ oao Barbosa", Notadamente Antonio Semi
voltara a aparecer como diretor de cena de quase todos os
filmes de enredo da "Photo Cinematographia Brasileira",
Encorajados diante do sucesso desse filme, resolve-
ram os produtores aumentar a metragem de suas fitas, lan-
~ando-se a moda de aproveitar historias calcadas nos cri-
mes mais espetaculares da epoca. A filmografia de Leal,
cujo momento aureo parece ser 0 ana de 1909, contem
tftulos que resumem toda a cronica policial do tempo: a
professorinha de Sao Paulo que anavalhou 0 noivo na ter-
ca-feira de Carnaval e evocada em Noivado 4 e sangue ou
T ra g id ia p au lis ta . Urn assassinato que ficou famoso nos
* N. do E. - Em 70 AnoJ , consta tambern 0 nome de Eduardo Leite.
28
cfrculos mundanos do Rio inspirou Um dram a na Tijuca .
Quando 0 estrangulador Miguel Trad esquartejou sua vf-
tima Elias Farhat e a despachou dentro de uma mala, .nao
so Leal e Labanca sentiram-se arrafdos pelo macabro tema:
Marc Ferrez tambern enviou seu filho Julio acompanhado
de artistas a Sao Paulo e Santos com 0 objetivo de recons-
rituir os fatos nos proprios locais da rragedia. Tiveram asficas rivais tftulo identico.A ma la s in is tr a , e foram lancadas
quase ao mesmo tempo. Houve uma terce ira fita sobre 0
mesmo episodic, filmada por Alberto Botelho", jovem fo-
rografo da Gazeta d e Notfc ias, e que iniciava sua carreira
cinematografica em Sao Paulo.
o cinema brasileiro nao se especializou, porem, so
em enredos de crimes. De 1908 a 1911, foram ensaiados
no Rio todos os generos de espetaculo cinematografico:
melodramas tradicionais como A Cabana do Pa i Tomas, ar em o rs o v iv o e Jo a oJ os e; dramas hisroricos como D ona Ines
d e C astro , A R es ta ura fa o d e P ortug al em 1640 e A R ep ub lic a
por tuguesa; parrioticos como A vida do Barao d e R io B ra nc o
ou abordando temas religiosos como a s m ila gr es d e San to
An ton io e a s m ila g re s d e N ossa S en hora da P enh a. Os temas
carnavalescos tiveram infcio com os filmes P ela v itO ria d os
c lubes e a cordao . Numerosas foram rambern as comedies,
5. Peri Ribas - "II cinema in Brasile fino al 1920", in Cinema Bra si li a no,
Silva Editore, Genova, 1961, p. 24, nota 2.
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baseadas algumas na atualidade polftica, como Ze Bolas e
o F am os o tele gr am a n ' 9 - onde era ridicularizado 0 chan-
celer argentino Zeballos, adversario de Rio Branco - e
P eg a n a c ha le ir a, sat ira aos bajuladores mais em evidencia
na polftica do pals. Outras cornedias como Os c a pa d tf ci os
d a cid ad e n ov a, 0 c om p ra do r d e r at os , 09' m an da me nto , U ma
lifa o d e m axixe e Um c av alh eiro d eve ra s obsequioso' seguiamuma linha mais do genero de sketches criticando os costu-
mes da epoca. Oportuno destacar aqui, entre as cornedias
mais longas, As aven tura s de Ze Caipora , com oitocenros
metros e mais de vinte quadros narrando as peripecias de
urn matuto.
A maior parte desses filmes - comicos ou dramati-
COS, curtos ou longos - foi realizada por Antonio Leal
e Jose Labanca, que dominaram a producao nacional du-rante os dois anos que permaneceram juntos na "Photo
Cinematrographia Brasileira". Mas houve urn genero no
qual foram vencidos pelos concorrentes, notadarnente Cris-
tovao Guilherme Auler e Francisco Serrador: 0 dos cha-
mados filmes cantantes ou falantes.
Desde os primeiros anos do seculo foram numerosas
as apresenracoes no Rio, em Sao Paulo e em outras capi-
tais, de espetaculos de origem estrangeira, e nos quais ha-
* N. do E. - Em 70 AnoJ , consta rarnbern 0 titulo P ass ap em « e c om pa -
nhia.
30
via a combinacao de cinematografo e gramofone. Ja 0 fil-
me cantante brasileiro exigia que os artistas se escondes-
sem arras das telas e acompanhassem com a voz a movi-
menracao das imagens. Esse tipo de espetaculo, que
Serrador teria iniciado em Sao Paulo no ana de 1908, ad-
quiriu no Rio de Janeiro, de 1909 a 1911, urn desenvol-
vimento verdadeiramente surpreendente.Eram de inicio filmezinhos curtos: Eduardo das Ne-
ves cantava urn mirnero de seu repertorio, ou entao Santia-
go Pepe e Claudina Montenegro interpretavam e canta-
yam em dueto urn trecho de opera. Pitas curtas desse genero
foram produzidas a s centenas; contudo, logo cornecou a
moda das operetas mais ou menos completas, mais ricas
de enredo e rnovimentacao. Nao escapou nenhum tftulo
prestigioso do repertorio internacional: A vitiva alegre , 0cond e de Luxemburgo , A g eisha , Sonho de valsa , A cond essa
d e sc al fa . .. Algumas dessas fitas - com a trope completa
de interpretes arras da tela - foram apresentadas cente-
nas de vezes. Intensa era a rivalidade entre os produtores,
e assim houve urn momenta em que nada menos de tres
versi5es cinernarograficas de A vitiva a leg re disputavam 0
favor do publico: uma de Leal, outra de Auler, e uma ter-
ceira do tipo brejeiro, fabricada talvez por Serrador', que
* N. do E. - Em 70 AnoJ , em lugar do nome de Serrador esta 0 de
Paschoal Segreto.
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se dedi cava cada vez mais aos programas picantes, irnpro-
prios para menores, senhoras e senhoritas. Nao faltouuma
parodi a, 0 v iu v o a le g re , de Mauri.
o que houve porern de mais interessante no genero
falado e cantado foram os filrnes-revisras de atualidade po-
lftica. Retornava-se, assim, a antiga tradicao da revista de
fim de ano, ilustrada nao havia muito por Arrur de Aze-vedo. Em 0 chantec le r , 0 tfrulo ja era uma alusao a Pinheiro
Machado, 0 chefe da vida polftica na epoca. 0 come ta , es-
crito por Raul Pederneiras, fez tam bern bastante sucesso,
bern como 606 , cujo rftulo completo era 606 con tra 0
espirocbeta pdlido. Mas nenhum desses filmes teve 0 exito
financeiro e artfstico de Paz e am or . Exibida mais de mil
vezes, a partir de marco de 1910, e saudada por toda a
imprensa, essa producao de Auler, filmada por AlbertoBotelho, foi a primeira verdadeiramente a se enquadrar
no genero de filme-revisra, focalizando as principais figu-
ras e acontecimentos polirico-sociais. Com roteiro e ver-
sos de Jose do Patrocfnio Filho, 0 filme mal poupa 0 Pre-
sidente Nilo, que aparece sob 0 transparente pseudonimo
de "EI Rei Olin". Ja Rui Barbosa e Hermes da Fonseca
surgem como tais, disputando a principalpersonagem fe-
minina, a "Presidencia", Outras personagens femininascomo "A Imprensa", a "Banda Alerna" e a "Viuva Alegre"
tern atua~ao destacada como sfmbolos da sociedade de
entao, ao lado de "Compadre Xfcara" e "Paje-Acioly",
32
reconhecidos imediatamente como os polfticos Pires
Ferreira e Nogueira Acioly. A a~ao era conduzida por
Tiburcio da Anunciacao, personificacao do rnatuto que a
A C areta tornara popularfssimo: chega 0 her6i para co-
nhecer 0Mundo da Lua, entao sob 0governo do Rei Olin.
Como cicerone, e-Ihe oferecida "A Irnprensa", que ele re-
cusa por ser essa senhora sabidamente faladeira e venal.Quem 0 acompanha entao nas aventuras e "Mussiu
Baboseira", em quem 0publico imediatamente reconhece
o poeta-profeta Mucic Teixeira. Terminava 0 filme com
uma apoteose ao "Minas Gerais", navio de guerra recente-
mente adquirido que fizera do Brasil - na opiniao de
alguns patriotas ~ a terceira potencia naval do mundo.
Ismenia Mateos era a interprete da principal perso-
nagem feminina de Paz e am or . Seria ela ainda a figuracentral de A g eish a, S on h o de va lsa , A m archa de Cadiz , 0
co rddo e imimeras outras fitas de menor irnportancia. Enor-
me era 0 entusiasrno do publico por essa sua deusa que -
segundo consta - tinha bela voz e "uma plastica maravi-
lhosa" , como muitos anos depois ainda recordara urn cro-
nista". Mas nao foi 0cinema que a popularizou, pois quando
Auler foi procura-la para posar nos tais famosos filmes
cantados, Ismenia Mateos estava no auge de sua carreira
artfstica. Os lineamentos de sua biografia assemelham-se
6. Pedro Lima - SELECTA - Ano X - n" 44, 1"/novembro/1924.
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aos de rnuitas atrizes de entao: nascida no estrangeiro, a
meninice nos meios reatrais, as andancas pela America do
SuI, 0 encontro do amor no Rio ... Perdurando ou nao 0
amor, foi no Brasil que tantas daquelas "divas" prolonga-
ram suas carreiras no teatro, com incursoes no cinema, de
mistura as vezes com 0mundanismo elegante de boernio
da b e lle e p oq u e.
Nos prirnordios de 1911, reinava ainda anirnacao nos
rneios da producao cinernatografica: enquanto Serrador lan-
c;avaA s err an a, opereta de costumes portugueses "inteira-
mente bailada e cantada, sem nenhuma declarnacao'", era
exibida a revista 606, filmada por Paulino Botelho, 0 ir-
mao rnais velho de Alberto, tam bern forografo de irnprensa
e que 0 cinema acabara por conquistar, Continuava inten-
sa a concorrencia entre Auler e Serrador, cada qual apre-sentando 0 seu C o nd e d e L ux em b urg o. Alberto Moreira -
principal criador do filme-revista - realizou urn drama
cinematografico dedamado: A R ep ub lic a p or tu gu es a ou 5 de
outubro . Salvatore Lazzaro, urn ernpresario que ate entao
nao cuidara de cinema, produziu por sua vez 0 guarani ,
em quatro partes", com inrerpreres-canrores contratados
em Buenos Aires. A publicidade apresentava 0filme como
7. Cicada por V . P . Araujo.
8. V.P.Araujo informa que Leal havia filmado ern 1908 Os Gurdllis, ptVl
do palhaco negro Benjamim de Oliveira, baseada na obra de Alencar.
34
"a unica opera lfrica completa feita ate hoje".? Todo esse
esforco era porern urn canto de cisne. Em junho de 1911
era exibida A dan farina desca lfa , de Auler, 0 ultimo filme
cantante. Os dois iiltirnos filmes mudos de enredo, a co-
media 0 c as am en to d e E ste ve s e 0 drama Triste Jim de uma
v id a d e p ra ze re s, ja datavam de 1910. Encerrava-se assim,
em meados de 1911, urn ciclo particularmente movimen-tado, talvez brilhante mesmo do cinema nacional. Em
1912, foi realizado apenas urn filme de enredo no Riode
Janeiro, e que nem foi exibido, censurado pela Marinha
de Guerra por ter focalizado a vida do cabo Joao Candido,
lfder da rebeliao dos marinheiros contra 0 uso da chibata
como punicao,
. Intensifica-se a crise: quase todos aqueles que parti-
cipavam ativamente da fabricacao de filmes nacionais aban-donam as lides cinematograficas. Argumentistas, roteiristas
e diretores de cena que haviam surgido, aos poucos van
retornando as suas origens jornalfsticas e teatrais. 0de-
sinteresse generalizado atinge tambem os primeiros pro-
dutores e dele nao escapa nem urn Paschoal Segreto, que
cada vez mais se dedicara apenas ao teatro Iigeiro. Agrava-
se a desercao: Labanca abandona definitivamente a profis-
sao cinematografica. Permanece Serrador, mas sua frutuosa
carreira no cinema ap6ia-se agora exdusivamente no co-
9. Citado por V. P. Araujo, pp. 42-3.
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rnercio do filme produzido no estrangeiro. Rompe-se a
antiga solidariedade de interesses entre os fabricantes de
filmes nacionais e 0 cornercio local de cinematografia. Os
que persistem em fazer filmes nacionais encontram cres-
cente dificuldade em exibi-Ios, Entre esses teimosos, en-
contramos Leal, os irmaos Botelho, e alguns outros pou-
cos tecnicos e cinegrafistas que nao desistem. Viriam elesa assegurar urn rnfnimo de continuidade entre a epoca que
se encerra em 1912 e a seguinte, que cobrira os pr6ximos
dez anos.
2 1 1 .E P O C A : 1912 a 1 9 2 2 *
Apos 0 colapso assinalado em 1911-12, a conrinui-dade do cinema brasileiro repousou inicialmente na ativi-
dade de alguns cinegrafistas, ou seja, recnicos em filma-
gem. Nao foi, entreranto, realizando filmes de enredo que
esses profissionais conseguiram ganhar a vida: tanto An-
tonio Leal - veterano com sere anos de atividadescine-
rnatograficas - como Paulino e Alberto Botelho dedi-
cam-se sobretudo aos documenrarios e jornais cinema-
tograficos. E quando eventualmente filmam urn enre-do, nao e por terem encontrado urn ernpresario interes-
* N. do E. - Em 70 Anos, a 2' epoca se inicia em 1913.
36
sado em seus services tecnicos, pois serao seus proprios
produtores nessas raras investidas no campo do cinema de
fic~ao.
A ideia de que 0crime compensa - pelo menos como
enredo de filme - deve rer inspirado os responsaveis pela
producoes que tentaram arrancar 0 cinema nacional do
marasmo em que mergulhara por volta de 1912. Histori-carnente, a ideia e certa, e havia sido testada entre nos
com 0 grande exito de Os es trangu ladores , de Leal, e de ou-
tras fitas de crime, nacionais ou estrangeiras. De qualquer
forma, os iinicos.tres filmes de enredo realizados no Brasil
em 1913 giram em torno desse tema: 0 ca so do s ca ixo te s , 0
cr ime de P aula M atos e 0 c rim e d os B an ha do s, trindade de
crimes famosos e recentes, como convinha para atingir
maior publico.
o ca so do s ca ixo te s , tarnbern conhecido como 0 r ou b o d o s
1400 contos, inspirou-se num assalto sensacional. 0 cr ime
de P aula M atos focaliza 0 assassinato do industrial Adolfo
Freire por Augusto Henriques, nomes que encontravam
muito eco na irnaginacao popular. Ambos esses filmes, rea-
lizados no Rio pelos irrnaos Botelho, eram filmes medics,
em tres partes, isto e , davam cerca de quarenta minutos de
projecao, ja 0 terceiro filme, 0 c rim e d o s Ba nh ad o s, era uma
supermetragem, com quase duas horas de projecao.
o produtor desse filme foi 0 velho ator portugues
Francisco Santos, que se aposentara do palco e resolvera,
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por desfastio, fazer cinema na cidade gaucha de Pelotas.
Inspirava-se a fita num barbaro episodio de recentes Iutas
polfticas que haviam culminado no massacre de uma fa-
milia inteira, na Fazenda de Passo da Estiva. as nomes
dos personagens sao fictfcios, 0 movel do crime aparece
como sendo 0 roubo, mas nao se podia iludir 0 publico
com esses e outros disfarces dianre de urn episodic que lhe
era extrernamente familiar; foi, sem diivida, devido a tal
reco~hecimento que 0 filme teve assegurada uma .longa
carreira,
~a prospera Pelotas da industrializacao do charque,
o patrrarca Francisco Santos, dono de uma sala de cinema
e .ligado ainda a outros negocios, escrevia, produzia, diri-
gia, filmava e interpretava seus filmes. Alern de 0 crime de
Banhados,: chegou a completar mais duas producoes, Al-b um m a ld it o e a comedia Os ocalos do a v o , supondo-se que
ambos nao atingiram a importante metragem do primei-
roo Informa Peri Ribas que Francisco Santos era afilhado
de Camilo Castelo Branco, e assim teria aproveitado 0 fa-
moso romance A mo r d e p erd ifdo para urn filme, como ho-
menagem ao padrinho. Isso em 1914. Com a eclosao da
P.rimeira Guerra Mundial e devido a restricao de filme
virgem, 0 trabalho teve que ser interrompido."
1. Peri Ribas, "Il Cinema in Brasile fino al 1920" in Cinema Bras il iano ,
op.at.
38
Nesse ano, com efeito, em consequencia ou nao da
guerra, as atividades cinematograficas no Brasil foram ml-
nimas. Alem dos esforcos de Francisco Santos, so encon-
tramos registro de mais de uma fita de enredo, A E stran -
geira, escrita e dirigida em Petropolis por urn adolescente
de quinze anos: Henrique Pongetti. Aos .poucos, porern,
recornecou 0 movimento. Enumera Peri Ribas mais de
uma diizia de firmas produtoras criadas no Rio e em Sao
Paulo durante os quatro anos que durou 0 conflito. as
novos nomes sao em geral italianos: Michele Milani, Franco
Magliani, Italo Dandini", Arturo Carrari, Guelfo Andale,
os irrnaos Lambertini, Eduardo Vitorino, Vittorio Capel-
laro, Paulo Aliano, Gilberto Rossi, Paulo Benedetti, Wil-
liam Jansen ... as diretores desse grupo eram na maioria
homens com alguma experiencia teatral, quando nao ar-
tistas profissionais que vierarn para 0 Brasil em tournee,
como Vittorio Capellaro. as cinegrafistas, as vezes muito
bons, como Benedetti ou Rossi, pertencem a categoria
daqueles imigrantes ricos de habilidade artesanal, sem os
quais 0 desenvolvimento recnologico brasileiro seria sern
duvida rnais precario. A essa lista de estrangeiros - sem
diivida incompleta - devem ser acrescentados alguns
brasileiros que vieram ampliar 0 grupo nacional, ate en-taO representado quase que exclusivamente pelos Botelho.
* N. do E. - Em 70 Anas, em lugar de Italo Dandini esta Cesare Dandini.
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Pouco mais de meia diizia dao uma ideia aproximada do
novo contingenre: Simoes Coelho, Fausto Muniz, Salva-
dor de Aragao, Antonio Campos, Joao Stamaro, Jose
Medina, Luiz de Barros ... A esses cinegrafistas e diretores,
acrescentemos 0 jornalista Irineu Marinho, que pelo me-
nos durante 0 ana de 1917 teve urn estimulante papel de
produtor. Mas ate aproximadamente 1922-23, os cineas-tas de maior relevo serao Luiz de Barros, no Rio, e Jose
Medina, em Sao Paulo.
Luiz de Barros nasceu no Rio, em 1893. Aos 19 anos
vamos encontra-lo em Paris, estudando pinrura na Aca-
demiaJulien. Acompanhou igualmenre as aulas de ceno-
grafia de Francesco Mallerba, na Academia Brera de Mi-
lao. Em Paris, freqiientou assiduamente osesnidios de Leon
Gaurnonr, onde aprendeu junto ao diretor Dubois os ru-dimentos da profissao; de volta ao Rio, aproximou-se de
halo Dandini e J 000 Starnato, com os quais em 1914 ini-
ciou-se profissionalmente em cinema. Da longa carreira
deLuiz de Barros, que se prolonga ate nossos dias, os dez
primeiros anos terao maior significacao para 0cinema bra-
sileiro, verificando-se que de 1915 a 1920 foi ele certa-
mente a figura mais positiva no Rio.
Jose Medina nasceu em 1894, em Sorocaba, Estadode Sao Paulo. Estudou pintura decorativa no Liceu de Artes
e Oflcios de Sao Paulo. Em 1910, interessou-se pelo cine-
ma ao ver Alberto Botelho realizar algumas filmagens, na
40
Fabrica Votoranrim, nos arredores de Sorocaba: a entrada
para a profissao cinernatografica data de seu encontro com
o cinegrafista Gilberto Rossi, em 1918.
ofato de termos facilmente enumerado cerca de vinte
novos cineastas pode levar a crer que foi grande a flores-
cenci a dos filmes de fic~ao no perfodo do cinema brasilei-
ro que ora focalizamos. Conrudo, a media anual entre 1912e 1922 foi de apenas seis filmes. Da quase paralisacao dos
anos 1912-14, chegamos a uma producao relativamente
abundante de dezesseis filmes em 1917, para haver uma
brusca queda no ano seguinte, com uma rnedfocre rea~iio
ate 1922.
Ja nos referimos aos raros filmes dos anos 1912-14.
Na producao que se desenvolve a partir de 1915, 0 que
chama logo a atencao e 0 mimero de fitas inspiradas nanossa literatura. lnodncia e A retirada da Laguna foram ba-
seadas nos romances de Taunay; de Bilac foi aproveitado
o ctl fador d e esmeraldas; e de Macedo, A m ore nin ba . Bernardo
Guirnaraes foi lembrado para as bases de 0 garimpeiro, en-
quanto de Alulsio Azevedo aproveirou-se 0 mulato, apre-
sentado com 0 titulo 0 cruzeiro d o sui. A obra de Jose de
Alencar foi naturalmente 0 ponto de partida para maior
rnimero de filmes: 0 guaran i (duas versoes), l racema,Ubirajara e A v iu vin ha . Um conto de Monteiro Lobato ser-
viu de inspiracao para 0 Faroleiro. J aMedeiros Albuquerque,
Claudio de Sousa e Coelho Neto escreveram enredos espe-
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cialmente para 0 cinema, sendo que 0 de Co~lho Nero era
para u~ fil~e em serie, Os M i st ir io s d o R io de Janeiro, do
qual fOJrealizado s6 0primeiro epis6dio.
A participacao do Brasil na guerra provocou urn mi-
mero razoavel de filmes, sobretudo se levarmos em conra
que essa participacao foi exclusivamente simb61ica: Pd-
tria e Bandeira, com historia escrita por Claudio de Sousa
focalizando a espionagem alerna em nosso territ6rio, foi
uma das producoes.que contou com a cooperacao das For-
cas Armadas, inclusive da nossa incipiente aviacao mili-
tar. A essa ingenua veleidade patri6tica feita no Rio
corresponde outra realizada em Sao Paulo, Pdtria brasilei-
ra , .cuja filmagem foi seguida de perto por Olavo Bilac.
Mats curiosa ainda deveria ter sido a fita que recebeu urn
tftulo frances, Le Film du D iab le, com letreiros em versosde .Basto~Tigre, a allaodesenrolando-se no Rio e na Belgi-
ca.tnv~dtda pelos alernaes. A mesma inspiracao presidiu 0
pnrneiro desenho animado brasileiro, 0 Kaiser, do carica-
turista Seth, e que nao deve ser confundido com 0 castigo
d o K a is er , filme posado em 1918. Datam tambern desse
per~OOoalguns ensaios patrioticos, como 0g r it o d o l pi ra n ga
e Tiradentes. Com esse surto de filmes mais ou menos his-
t6ricos, a cronies criminal perdeu aquela antiga vitalida-de, mas em 1920 rerorna com 0crime de Crav inhos , filme
baseado num famoso assassinato que teria sido encomen-
dado por uma fazendeira paulista, conhecida como a rai-
42
nha do cafe. 0 assalto a urn banco italiano de Sao Paulo
inspira rarnbem os cineastas da epoca, que nao rardarn em
levar a historia para a tela sob 0 tftulo de O/urto dos 500
milhoes.
Apesar do interesse documental, ressentiam-se essas
ficas da pressa nas filmagens de hisrorias que nao podiam
esperar para nao perder a oportunidade. Muito mais ela-borados deveriam ser os filmes A quadrilha do esqueleto ou
R osa que se desfolba, cujos crimes eram imaginaries, exi-
gindo assim uma ordenacao mais trabalhada e hicida. Po-
ram essas duas fitas produzidas pela empresa Veritas-
Film, de Irineu Marinho, jornalista, diretor de A Noite,
personalidade importante, cujo ingresso no mundo do fil-
me deve rer significado uma grande esperance para 0nos-
so cinema. Poderia ter sido 0Auler do novo perfodo quese iniciava. Mas ap6s quatro firas Irineu Marinho abando-
na definitivamente as atividades cinematograficas.
Luiz de Barros e 0 responsavel por mais de meia du-
zia de filmes do perfodo que ora focalizamos. Perdida, 0
primeiro a ser realizado, teve larga repercussao na croni~a
da epoca, por contar talvez com a parricipacao de Leopoldo
Fr6es, ator ja famoso nos meios teatrais. Sobre V ivo au mor-
to , 0 segundo filme de Luiz de Barros, os testemunhos que
ficaram foram unanimes em reconhecer seu grande inte-
resse: e a hist6ria de uma mulher extremamente elegante
e vaidosa, abandonada pelo amante. A dama - interpre-
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tada pela atriz italiana Tina d'Arco - jura que ele ha de
voltar. Desenrola-se entao a intriga em meio das mais com-
plicadas peripecias ate 0 mornenro em que 0 cadaver do
arnante e-lhe entregue afinal. Triunfanre, com uma taca
de champanhe na mao, ela exclama: "Ele voltou!" Esse
melodrama eivado de siruacdes ridfculas teve urn elenco
de artistas de prestfgio e foi filmado em cenografias cui-dadosamente monradas, Os documentos fotograficos evo-
cam 0cinema frances de antes da guerra; conrudo, os con-
rernporaneos foram surpreendidos pela vivacidade e
agilidade da interpreracao,
Para 0 lei tor de hoje, a maior parte dos velhos filmes
de Luiz de Barros nao passa de simples tftulo com alguns
nomes de interpretes, e uma ou outra foto. Mas, sempre
que se aprofundam as investigacdes a respeito dos traba-lhos que realizou ate aproximadamente 1920, avulra a im-
portancia de sua contribuicao ao cinema brasileiro. Nao e
pois de estranhar que na ocasiao Fosseele 0 cineasta mais
procurado pelos jovens como os cariocas Pedro Lima e
Ademar Gonzaga ou 0 paulista Antonio Tibiri~a.
Jose Medina, diferentemente do que sucedeu com
Luiz de Barros, s6 mais tarde dara sua melhor medida.
Dentro do perfodo que nos ocupa, realizou ele, em tresanos, uma diizia de fiImes. C om o D eu s c astig a era uma lon-
ga hisroria em dez partes, situada na Espanha de 1850,
toda feita de carrascos e inocentes. A a~ao de Perversidade
44
ja era mais moderna: urn patrao simula urn roubo, com 0
intuito de provocar a prisao de urn empregado, por cuja
mulher se enamorara. Baseada num roteiro do estudante
de direito, Canute Mendes de Almeida, Do R io it S ao P au -
lo p ar a c asa r, ao contrario das outras, vern a ser uma fita de
historia leve e a~ao rapida, sem resqufcio de melodrama.
Mas de todos os filmes de Medina realizados nessa epocas6 chegou ate nossos dias E xemp lo r eg en er ad or , datado de
1919. Trata-se de urn filme de curta-metragem, cujo en-
redo todo moralizante se desenvolve com relativa fluidez:
urn mordomo exemplar simula urn romance com a patroa
a fim de provocar ciumes no marido negligente, alertando-
o para 0 cumprimento dos deveres conjugais. Aparente-
mente, a estrutura dos filmes nacionais por volta de 1919
era baseada ainda numa rfgida compartimenracao em epi-s6dios; desejando demonstrar ao seu companheiro de equi-
pe, Gilberte Rossi, a possibilidade de se praticar no Brasil
a continuidade cinernarografica, Medina teria realizado
E xem plo r eg en er ad or em algumas horas apenas. Contudo,
nos filmes C om o D eu s c astig a ou Perversidade, de maior du-
racao e mais ambiciosos, nada indica que renharn sido apro-
veitados os recursos que ele revelou na pequena experien-
cia da li~ao do mordomo.Depois de Luiz de Barros e Jose Medina, cabe igual-
mente uma mencao especial a urn terceiro cineasta do pe-
dodo: Vittorio Capellaro. Foi esse italiano 0principal res-
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~onsavel pela yoga dos filmes inspirados em obras litera-
rias brasileiras. Entre 1915 e 1918, a da pto uln oc en cia , Ir a-
cema, 0 guarani , 0 mulato e 0 garimpeiro; num outro perfo-
do do cinema nacional, vamos encontra-Io como 0 autor
d~ nova versao de 0guarani . Nenhum filme de Capellaro
fOJpreservado, excetuando-se 0 ca fador de diamantes, de
193~. La.mentavelmente, a crftica historica tende a julgarasprimeiras obras desse auror a luz do pesado academicismo
de~sa.~rodul;ao tardia, pois e bern provavel que suas firas
pnrrunvas, baseadas nos romances brasileiros, tivessem a
gral;a e 0 frescor que faltou a esse Cafador de diamantes.
Mas da colecao de filmes inspirados na nossa litera-
t~ra.' 0 que, provocou na epoca maior irnpressao foi sem
diivida Luaol«, Produzida e cinematografada pelo vetera-
no Leal, a fita adquiriu as caracterfsticas de urn melodra-
ma mundano, com algumas semelhanl;as com V ivo o u m or-
to . Coube a atriz Aurora Fulgida viver na tela a herofna de
Alencar. Alguns cronistas viram Luciola quando ainda ado-
~escentes, e anos mais tarde registravam com calor suas
Impressoes, fazendo-nos vislumbrar 0 encantarnenro de
toda uma geral;ao de estudanres pela erotica atriz dos anos
1916-17. Durante 0perfodo que abordamos neste capftu-
10, alern de em Luciola, trabalhou ela no filme 0 domino
misterioso, uma das producoes de Irineu Marinho. Seu nome
verdadeiro era Amelia Cocaneanu. Nascida em Bucareste
fugiu de casa aos dezessete anos para ser bailarina. Alcan-
46
I;OU 0 objetivo, e por ocasiao de uma tournie pela America
do SuI, para nao fugir a regra, encontrou no Rio urn amor,
e ficou pelo Brasil. 0 fato de ter posada apenas para duas
ficas aumenta a singularidade do impacto que causou.
Antonia Denegri, atriz preferida de Luiz de Barros,
teve momentos de alguma popularidade, mas nem sern-
pre vinculados aos filmes ou pel;as que inrerpretou. Nas-cida na California em 1901, veio pequena para 0 Brasil,
onde fez urn curso de bailarina, ao mesmo tempo em que
se iniciava no teatro, na Companhia Lucinda; teve algum
merito, porem modesto. Maior fama alcancararn no teatro
as atrizes Abigail Maia - a Cecy de uma das versoes de 0
guaran i - e a portuguesa Otflia Amorim, que participou
igualmente de alguns filmes de Luiz de Barros, entre os
quais A lm a s er ta ne ja , em 1919. Nesse filme, Ocilla Amorimaparecia nua, 0 que nao foi esquecido; sua precursora foi
Miss Ray, que tivera a audacia de aparecer tambem nua
numa sequencia com 0 demonic no L e Film du Diable,
brasileirfssimo apesar do titulo.
E aqui convern lembrar que entre as atrizes que mais
se destacaram noperfodo incluem-se duas brasileiras,
Iolanda Diniz' e Iracema de Alencar, precisarnente a herof-
na de l racema. Seu nome real era Ida Kerber, nascida em
* N. do E. - Esra frase e do texto 70 Altos. No original coma apenas
Iracerna de Alencar, "a (mica brasi leira nata".
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1899 no Rio Grande do SuI. Aos dezessete anos, foge corn
o namorado para tentar 0 teatro. Ingressou na Companhia
Italia Fausta e estreou no Rio de Janeiro no papel de
Hamedryada.
Quanto aos atores, nada ha de especial a registrar.
Alguns veteranos da primeira fase, como Leonardo Loponre
e Joao de Deus, reaparecem aqui corn frequencia, assimcomo alguns diretores, entre os quais Vittorio CapeUaro e
Franco Magliano', como interpretes das pr6prias fitas. Re-
petindo 0 fenomeno das atrizes principais, quase todos os
astros sao estrangeiros oriundos do teatro, predominando
no Rio os portugueses, e ern Sao Paulo, os italianos.
Esta segunda epoca do cinema brasileiro esra bern
longe da importancia e do brilho da primeira. Embora
entre 1912 e 19220 cornercio cinematografico tivesse sedesenvolvido consideravelmente, tornou-se cada vez mais
diffcil 0acesso da producao nacional aos circuitos de salas.
De urn modo geral, os filmes conseguem ser exibidos gra-
cas apenas a benevolencia de urn ou outro proprietario de
cinema. Uma cerra aproxirnacao de homens de prestfgio
como Irineu Marinho, Olavo Bilac, Coelho Neto ou
Medeiros Albuquerque, durou pouco, desde que essa apro-
ximacao fora suscitada pela breve anirnacao que reinouern 1917, ann ern que a producao atingiu 0 seu ponto
* N. do E. - 0 nome de Franco Magliano foi cortado em 70 A n o J .
48
mais alto. Tomada ern conjunto, a realizacao de filmes de
enredo foi precaria e escassa; os sessenta filmes posados
encerram uma porcentagem consideravel de curtas-
metragens, destinados a s vezes a mais variada publicidadecomercial, indo desde a propaganda de loteria ate a divul-
ga~ao de remedies contra a sffilis, Por outro lado, a im-
prensa que poderia colaborar exercendo sua influencia naopiniao do publico acaba por nao tomar mais conheci-
mento da producao cinemarografica que se define cada
vez mais como uma atividade marginal.
Ern 1922,0 Presidente Epitacio Pessoaencarrega uma
comissao de organizar as comernoracoes do Centenario da
Independencia, e entre os pIanos elaborados esta inclufdo
o cinema. Falou-se entao muito na realizacao de urn gran-
de filme hist6rico, cujo roteiro seria escrito por CoelhoNeto, sendo que 0 diretor da Exposicao do Centenario,
Dr. Pinto de Almeida, chegou a sugerir urn projeto divi-
dido ern quatro partes. A ideia foi tomando vulto: 0 em-
presario Mocchi, arrendatario do Teatro Municipal, dis-
pos-se a participar do empreendimento, 0 deputado
Cincinato Braga, ern nome de toda a bancada paulista,
propos que fossem produzidas varias fitas, para dar maior
realce a s festas programadas ... Apesar de todo esse movi-rnento, 0 "filme do Centenario" nao foi feito. Observaram
as pessoas bem-informadas que 0 governo deveria ter en-
carregado do trabalho uma companhia estrangeira. Tudo
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ocorreu como se nao existissem no Brasil pessoas capazes
de realizar urn filme posado.
o cinema acabou por participar intensamente das
comernoracoes do Centenario, mas em forma de docu-
rnentarios e jornais de arualidade, Nao houve cinegra-
fista do Rio, de Sao Paulo ou de qualquer outra cidade
que nao tivesse recebido encomendas de trabalhos nesseana de 1922: ficou claro que no Brasil 0 tinico cinema
possivel era 0 natural. E a partir dessa melanc6lica situa-
~ao de fato que se iniciara a terceira epoca do filme brasi-
leiro de enredo.
y·EPOCA: 1923 a 1933
Pa r at od o se S e le c ta e ram em 1923 as duas revistas bra-
sileiras que mais se interessavam por cinema. 0 que nao
impediu que Mario Behring e Paulo Lavrador, respectiva-
mente os redatores principais, nutrissem pelo nosso filme
de enredo 0maior desprezo. "Esse fantasma que e a cine-matografia nacional", escreve Behring, "sern artistas, sem
tecnicos, sem diretores de cena, sem esnidios, e, finalmente,
sem dinheiro."! E conclui Paulo Lavrador: "Seria melhor
que nao existisse'i.i Paradoxalmente, ao mesmo tempo que
1. P ara to do s - 1"/mar,o/1924 e 18/outubro/1924.
2. S elec ta - 1O/maio/1924.
50
difundiam essas ideias, tanto Selecta quanta Para todos
transformavam-se nos maiores veiculos da primeira cam-
panha continua e sistematica em favor do cinema brasilei-
ro de ficcao. 0 que tornou possivel essa curiosa contradi-
~ao foi sem duvida 0 liberalismo daquelas publicacoes,
bern como a tenacidade e paixao com que alguns jovens se
dispuseram a lutar pelo cinema no Brasil. Pedro Lima emSelect», e Adhemar Gonzaga emPara todos , ambos mais tar-
de na revista Cinear te , procuraram orientar e conjugar a
a~ao de grupos em geral jovens, ignorando-se uns aos ou-
tros, dispersos pelo pais. E desse momenta em diante que
se manifesta uma verdadeira tomada de consciencia cine-
marografica: as inforrnacoes e os vinculos fornecidos por
essas revistas, 0 estfrnulo do dialogo e a propaganda tece-
ram uma organicidade que se constitui como urn marco apartir do qual ja se pode falar em urn movimento de cine-
ma brasileiro. Mesmo as manifestacoes host is - justas ou
injustas - contra 0 filme de enredo revelaram 0 interesse
pela nossa producao, praticamente ignorada num-passado
proximo.
Entre 1923 e 1933, foram completados cercade cento
e vinte filmes, isto e, 0dobro da decada anterior. Qualita-
tivamente, 0avanco foi ainda mais consideravel, surgindonessa epoca os nossos classicos do cinema mudo. A coexis-
tencia do cinema mudo e falado de 1929 a 1933 justifica
por cerro 0 fato exrraordinario de terem sido feitas no ana
5 1
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de 1930 cerca de vinte firas, Realmente, 0 cinema falado
desempenhou urn papel estimulante na nossa producao,
mas isso antes de 1934, quando entao houve urn colapso
quase tao radical quanta 0 de 1911 ou de 1921.
Outra caracterfstica da pujanca deste terceiro perfo-
do e 0 aparecimento de focos de criacao em pontos diver-
sos do rerritorio, alern de Rio e Sao Paulo. Em 1923, fil-ma-se em Campinas, Recife e Belo Horizonte, estenden-
do-se 0movimento ao Rio Grande do SuI e diversas cida-
des mineiras do interior, sendo que numa delas, Pouso
Alegre, ja em 1921 haviam sido ensaiadas fitas de enredo,
o homem de Pouso Alegre e Francisco de Almeida
Fleming, nascido em Ouro Fino, no ana de 1900. Perren-
cendo a uma familia de recursos, dona de alguns cinemas
na regiao, bastante cedo Almeida Fleming maneja umacamara; aos vinte anos realiza seu primeiro filme posado,
de curta-metragem, A can fao do b and id o , seguindo-se In
h oc s ig n a v in cis , fita rnfstica mais longa e ambiciosa, com
reconstituicoes de epoca. Essa arnbicao nao se desmentiu
nas duas outras firas que fez com alguns anos de intervalo,
P au lo e V ir gin ia eO v all e d o s m a rt yr io s. Os precarios recur-
sos recnicos disponfveis em Pouso Alegre e Ouro Fino,
somados a bisonha adaptacao do entao popularfssimo ro-mance de Bernadin de Saint Pierre e ao argumento origi-
nal de Almeida Fleming, redundaram em melodramas que
beiravam 0 comico involuntario. Contudo, apesar de to-
52
das as falhas e imperfeicoes, foi com esses dois filmes que
Francisco de Almeida Fleming ingressou de forma honro-
sa na historia do cinema brasileiro. 0 talento inato de
Fleming em dirigir as cenas - fazendo esquecer 0grotes-
co de certas cenografias ou 0 tom carregado das situacoes
-, bern como a sutileza que soube imprimir a pantomi-
rna e a mimicados interpretes, parece ter salvo todo 0
conjunto, e ate 0 elenco, no qual figurava apenas urn pro-
fissional, Paulo Rosanova, de Sao Paulo.
Em Belo Horizonte, 0 pioneiro dos filmes de enredo
foi Igino Bonfioli, nascido em 1886 na provincia de
Verona, chegando ao Brasil antes do fim do seculo: e bern
o exemplo do artesao italiano imaginoso e habil, tao pre-
senre no amanhecer do nosso cinema. 0dinheiro que ga-
nhou filmando documentaries para a Exposicao do Cen-
renario foi gasro na producao de Can fao c ia pr imavera ,
seguida alguns anos mais tarde por A to rm en ta . Esses fil-
mes, bern como mais uns quatro ou cinco realizados em
Belo Horizonte ate 1934, nao passararn de urn esfor~o sem
maior repercussao, mesmo local. Jose Silva foi 0 responsa-
vel por rres dessas producoes, Bo im ios, P eran te D eu s e
C a lv ar io d e D o lo re s", tendo apelado para a colaboracao dosveteranos Antonio Leal e Paulino Botelho, e em seguida
* N. do E. - 70 Anos nlio inclui este Ultimo filme.
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para a de Almeida Fleming. E provavel que E ntre as m on-
tanhas de Minas , de Manuel Talon, tenha conseguido alcan-
~ar maior repercussao do que as outras que passaram qua-
se despercebidas.
A presence de Almeida Fleming e do ator Paulo Rosa-
nova no gene rico de algumas producoes belo-horizontinas
indica 0 liame existenre entre as tenrarivas de Pouso Ale-gre e 0movimento da capital do Estado.]a 0mesmo en-
trelacamenro nao se verificou em Guaranesia, onde
Americo Masotti - durante sua breve vida - animou
urn gr~po que produziu pelo men os C ora fo es em S up lf-
Cl0; alias, os nomes conhecidos que se destacam no micleo
dessa cidade sao os de pitorescos aventureiros como urn
Rolando ou urn Kerrigan, que ainda aparecerao neste ca-
pitulo.Mas a cidade mineira que deu real importancia cine-
matografica ao Estado foi Cataguases. Encontramos af
Pedro CornelIo, tipo humano que ja nos e familiar: 0 do
artesao Italiano experiente e empreendedor. Foi ele 0 ini-
ciador de Hurnberro Mauro em cinematografia, a prirnei-
ra personalidade de primeiro plano revelada pelo cinema
brasileiro. Filho de pai Italiano e mae mineira, nasceu ele
em 30 de abril de 1897, na Fazenda Sao Sebasriao, emVolta Grande, distrito de Alern Paraiba.
Iniciam-se em 1925 as experiencias de CornelIo e
Humberto Mauro. Munidos de uma PatM-Baby , filmam
54
uma hisroria de cinco minutos, Valadiao, 0 Cratera , onde
ha urn bandido que rouba uma mocinha e a leva para uma
pedreira. No segundo ensaio, O s tres irmdos, ha uma jo-
vern com amnesia e urn incendio, sendo que nessa altura
ja trabalham com uma camara comprada no Rio. Ja em
1926, realizam N a p rim a ve ra ._ da v id a, historia de contra-
banda de cachaca pelo Rio Pomba, e que e exibida comexito nas cidades da regiao. Entusiasmados com os resul-
tados dessas producoes, dois comerciantes de Cataguases
asseguram os recursos para 0prolongamento da aventura
artistica de CornelIo e Mauro. Entretanto, desentendem-
se no infcio das filmagens de Tesouro perdido: afasta-se
CornelIo, produzindo mais tarde S en ho rit a a go ra mesmo, es-
pecialmente para sua filha Eva Nil, artista sensivel e
vibratil, principal interprete feminina de N a prim avera davida. Vemo-la figurar ainda em varies filmes do Rio e
Belo Horizonte.
Humberto Mauro, que completara sua formacao gra-
cas ao grupo da revista Cinearte, nao era mais urn apren-
diz. Com Tesou ro p e rd id o , iniciou ele em 1927 a primeira
carreira continua, coerente e bela que 0 cinema do Brasil
conheceu. Alern de Tesou ro p e rdi d o, a fase de Cataguases
compreende mais dois filmes igualmente importantes,B ra sa d or mid a e S an gu e m in eir o. Ja participava entao de sua
equipe Edgar Brasil, 0 primeiro cinegrafista brasileiro a
igualar e ultrapassar os melhores artesaos estrangeiros,
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como Rossi ou Benedetti. A proxima etapa de Hurnberto
Mauro sera no Rio de Janeiro; s6 quando la chegarmos e
que poderemos avaliar 0 que ele representou para 0 nosso
cinema mudo.
o movimento gaucho teve importancia bern me-
nor do que 0 mineiro, tanto em quantidade como em
qualidade. Ap6s as tenrativas de Peloras - anteriore~a Primeira Guerra Mundial- s6 em 1927 serao reali-
zados novamente filmes de enredo no Estado. Concen-
tra-se a producao em Porto Alegre, Iirnirando-se ate
1933 a meia duzia de filmes, alguns com razoavel dis-
tribuicao sobretudo no interior. Mas nenhum deles al-
cancou exibicao comercial fora do Rio Grande do Sul.
Destacarn-se tres nomes: Jose Picoral, Eduardo Abelim
e Eugenio Kerrigan: Enquanto 0 primeiro foi apenasurn esforcado cinegrafista, Abelim, chauf feur de taxi,
desdobrou-se em atividades de ator, produtor, diretor e
eventualmente fot6grafo. "Sobretudo foi urn sedutor",
segundo 0 definiu uma atriz que ap6s trabalhar ao seu
lado em C astig o d o o rg ufh o ou P ec ad o d a va id ad e envere-
dou pelo mau caminho. Antes de se fixar em Niter6i,
com uma reduzida empresa de cinema publicitario,
Abelim foi palhaco de pequenos circos ambulantes. A
modesta aventura de sua vida aproxirna-o de nurnero-
sos tipos semelhantes que episodicamente transitaram
pelo pobre cinema nacional.
56
Kerrigan possui, certamente, maior envergadura; ja
vimos seu nome no cido mineiro e quando focalizarmos
Campinas, onde iniciou sua carreira, procuraremos deli-
near sua fisionomia; acrescentemos apenas, por ora, que 0
filme Amor que red im e, resultado da associacao entre
Kerrigan e Abelim, foi talvez a producao gaucha de maior
relevo. E 0 que se deduz dos artigos escritos na epoca porPedro Lima e Fridolino Cardoso. Na mesma linha de Cas -
tig o d o o rg ufh o ou Pecado da va idade - sem falar de Em
defesa do irm do -, Am or que red im e devia ser urn melodra-
ma urbano, moralista e sentimental. Conhece-se melhor,
pelo menos 0 enredo, de Revela fao , cuja primeira parte gi-
rava em torno de uma situacao bern moderna de conflito
industrial, para cair em seguida - apesar de certa preo-
cupacao com a cor local - numa caricatura de filme deaventuras. A hist6ria foi de Lobo da Costa, responsavel
tam bern pelo argumento de U m D ram a nos P am pas; vamos
encontra-lo ainda como produtor de R an ch in ho d o S ertd o,
que forma com a anterior a dupla mais tipicamente gau-
cha de toda a serie. Aomovimento cinernarografico regio-
nal acrescente-se pois 0nome desse escritor rio-grandense.
Quanto aos artistas mais constantes desses elencos, salien-
tarn-se Ivo Morgova, Nely Grant e Roberto Zango, atorcaraterfstico que causou impressao.
Dentre os cidos regionais, 0que mais produziu foi 0
pernambucano, com urn total de treze filmes em oito anos.
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No centro das atividades encontramos dois jovens ouri-
ves, Edson Chagas e Gentil Roiz. 0 cfrculo nao tardou
em se alargar, participando da realizacao de filmes cerca
de trinta jovens, entre vinte e vinte e cinco anos: jornalis-
tas, pequenos funcionarios, comerciantes, artesaos, opera-
rios, atletas, rmisicos, atores de reatro ... Em meio de pole-
micas e divergencies, ap6s muita briga, fundaram nada
menos de nove firmas sucessivas, diferentes e rivais. Es-
trelas surgiram, como Almeri Esteves e Rilda Fernandes ,
nome que se tornaram familiares dos leitores de Cinear te ;
outro nome que deve ser registrado e 0 do ator, argu-
rnenrisra e diretor Jota Soares, mais tarde 0 cronista do
cido cinematografico de Recife.
Os primeiros filmes, Retribui{ao e Jurando v ingar,
eram de aventuras e tesouros escondidos, figurando al-
guns personagens gue lembravam cowboys . Os temas regi-
onais aparecem com os jangadeiros de A itare da pra ia ou
com os coroners e cultivadores de cana de Reuezes e Sangue
d e i rmdo; a nota curiosa de Filho sem m ae e que nessa fita
aponta urn cangaceiro. Com seus melodramas mundanos
de grande cidade, Recife e assunto em A filha do advogado ,
bern como teria sido alvo da cornedia satfrica H er oi d o s ec u-
1 0XX, onde Pedro Neves imitava Buster Keaton. Ja 0
ambiente de Dania, a mo r e ve ntura busca 0 exotismo de
urn acampamento de ciganos onde sepassa a intriga. Quan-
to ao drama religioso, pagou tam bern Recife 0seu tributo
58
com Hist6ria de um a alm a, reconstituicao fiel da vida de
Santa Teresa de Lisieux.
Eram demasiado precarias as condicoes recnicas, ar-
tfsticas e econornicas dessas producoes pernambucanas; s6
mesmo 0 fervor juvenil e 0 orgulho regional de fazer cine-
ma explicam a continuidade do esforco, que nao foi em
vao, diante de alguns resultados alcancados. As ficas eram
exibidas num pequeno cinema da Rua Nova, 0 "Royal",
onde 0co-proprierario Joaquim Matos transformava cada
estreia de fita pernambucana numa verdadeira festa, com
a rua embandeirada, a fachada enfeitada com rosas e a sala
perfumada com folhas de canela profusamente espalhadas
pelo chao. No trabalho ainda inediro de Lucila Ribeiro
Bernardet sobre cinema pernambucano, conta-nos ela que
algumas dessas estreias tinham tanta repercussao quanto
as mais importantes regatas, partidas de futebol ou bailes
de carnaval. 0 custo de algumas das producoes foi pago
com esses Iancamentos no "Royal", 0que muito impressio-
nou 0grupo de C inearte, preocupado com a dificuldade de
se exibirem as fitas brasileiras. Mas sempre que 0 cinema
pernambucano tentava transpor as fronteiras do Estado,
fracassava; apenas urn filme logrou se c apresentado comer-
cialmente no sul do pals,Nos varies ciclos regionais que percorremos, a inicia-
tiva de realizar filmes foi tomada em geral por pequenos
artesaos ou jovens recnicos, Em Campinas, foi urn intelec-
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tual em plena maturidade que se fez pioneiro: Amilar
Alves. Esse cineasta, que em 1923 ja tinha mais de qua-
renta anos, teve uma infiincia aspera: menino ainda, per-
deu 0pai, vftima da febre amarela. Sem reeursos, chegan-
do a alcancar apenas 0 2Qana do Grupo Escolar, foi num
absoluto autodidatismo que se tornou jornalista, filologo,
poeta e dramaturgo. Suas cornedias, Q ui! q ua e! qu od e Ta -g a re lic es d e p a pa g aio foram bastante divulgadas entre os
amadores do interior, sendo que a primeira ainda e solici-
tada a SBAT, por pequenos grupos reatrais. Ensaiador pre-
dileto de Dom Nery, 12Bispo de Campinas, liderava todo
o movimento campineiro de teatro am ador .Joao da M ata!
urn drama regional com dialogos impregnados de dialeto
caipira, era sua peca mais importante; quando resolveu
adapta-la ao cinema, encontrou na cidade tudo de quenecessitava em materia financeira, artfstica e mesmo tee-
nica. Seu fot6grafo, Tomas de Tullio, sera 0 cinegrafista
de quase todas as fitas do ciclo campineiro. A julgar pelos
poucos fragmentos que ehegaram ate nossos dias, 0 filme
Joao da M ata nao so conservou e transmitiu a visao da
realidade caboda que a pe<;acontinha, mas realcou os seus
valores. 0 exito de bilheteria em Campinas e redondezas
cobriu largamente os oito contos que a fita custou; em SaoPaulo, mesmo numa apresentacao deseuidada houve lu-
ero, e no Rio, embora nao renha sido explorada comercial-
mente, numa exibicao especial no Cinema Central, em
6 0
3 de novembro de 1923, valeu-Ihe a mais calorosa crftica
nos jornais cariocas.
Tal sucesso comercial e artfstico da fita de Amilar
Alves ateou fogo na imaginacao campineira: fundaram-se
companhias produtoras, terrenos foram adquiridos para a
consrrucao de esnidios ... Foi nesse dima propfcio que sur-
giu urn personagem que se fazia chamar conde EugenioMaria Piglinioni Rossiglione de Farnet, e que logo ap6s
preferiu adotar 0 nome de Eugenio C. Kerrigan. Afinal,
seu nome verdadeiro seria Eugenio Centenaro, segundo
afirma Georges Sadoul, baseando-se nas pesquisas de Caio
Scheiby sobre 0cinema campineiro". Mas e como Kerrigan
que prolongara sua carreira ate 0Rio Grande do SuI, con-
forme ja foi visto. Dirige em Campinas S ofre : p ara g oza r
_ melodrama rural brasileiro que se desenvolve em partenum sa loon provido de roleta e croup ier chines - e colabo-
ra numa versao de A carn e de Julio Ribeiro. Contudo,
neste ultimo filme a figura predominante e Felipe Ricci,
que ja dirigira M o cid ad e lo uc a; juntamente com Tomas de
Tullio, vern ele a ser 0 principal cineasta do rnovimenro
campineiro desde que Amilar Alves - apesar de todo 0
sucesso d eJoao da M ata - nao voltou"a experiencia cine-
marografica,
3. Georges Sadoul. H istoria d o C in em a M u nd ia l! Martins Editora, S.Paulo,
1963, vol. II, p. 498.
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IAcrescentando-se Alma gentil, de Antonio Dardes
Nero, temos cinco producoes completas entre 1923 e 1926.
Depois de quatro anos de intervalo, em 1930, Felipe Ricci
e Tomas de Tullio conseguirao realizar ainda Os la lsar ios.
Essa meia duzia de fitas modestas, pouco vistas, com ex-
ce~ao da primeira, constituem a contribuicao de Campi-
nas ao cinema mudo nacional.
E chegamos a capital paulista, onde a producao cine-
rnarografica e relativamente intensa entre 1923 e 1933.
Com cinquenta filmes aproximadamente, Sao Paulo ul-
trapassa 0Rio durante esses dez anos, pelo menos em quan-
tidade. Em materia de qualidadade, tern-se a irnpressao
de que sao numerosas as fitas de merito razoavel, mas ex-
tremamente raras as obras marcantes.
A equipe formada por Jose Medina, Gilberto Rossie Canuto Mendes de Almeida, que ja tinha nos dado Do
R io a Sao Pau lo para casar, realiza ainda Gigi , baseada
num conto de Viriato Correa. Ha em seguida uma certa
dispersao do grupo, indo Canuro Mendes de Almeida
associar-se a Jaime Redondo, produtor de P ass ei m in ha
v ida num sonho; para esse produtor, dirige F og o d e p alh a,
cornedia drarnarica em torno de urn caca-dores, vindo
ainda a participar mais tarde da realizacao de Escravalsaura. Nesse perfodo, Canuto Mendes de Almeida faz
crfticas de filmes em jornais, vindo a ser 0 autor do pri-
meiro livro importante sobre cinema publicado no Bra-
62
sil", Nao se conclua, daf, que os filmes nos quais colabo-
rou tenham sido algo de excepcional; mas nao resta du-
vida de que foi ele uma das personalidades mais consis-
centes do cinema na epoca.
Quanto a Jose Medina, acompanhado sempre do
cinegrafista Rossi, realizou naqueles anos F ra gm e nt os d a
v ida , sua obra-prirna e0
melhor filme paulista de entao;adaptando a cidade de Sao Paulo urn conto de O. Henry,
Soap , construiu Medina urn trabalho extremarnente sim-
ples, de uma graca comovente, que e hoje revisto com
crescente interesse pelos estudiosos. Muito contribuiu tam-
bern para a alta qualidade de F ra gm en to s d a v id a 0 gosto
fotografico de Gilberto Rossi; ja alguns anos antes fora ele
urn fator decisivo na valorizacao de 0 s eg r ed o d o c o rc u n da ,
drama situado numa fazenda de cafe e dirigido por AlbertoTraversa, italiano que chegou ao Brasil com alguma expe-
riencia cinernatografica, e que realizou ainda R is os e ld g ri-
mas, em Niter6i.
o nome seguinte do cinema paulista que provocou
maiores esperancas foi certamente 0 de Alberto Almada
Fagundes. Proprietario da Fabrica Santa Catarina - con-
siderada a maior industria de loucas da America do SuI
-, era figura destacada no mundo dos neg6cios. 0esni-dio que fez construir na Barra Funda foi 0 primeiro do
4. Cinema Contra Cinema, Cia. Edirora Nacional, S. Paulo, 1931.
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Brasil a merecer realmente essa denorninacao. Ligou-se a
varias rod as cinernarog raficas, inclusive ao inefavel
Kerrigan, afirmando-se que depois de lancada sua pri-
meira producao, Q uan do e la s qu ere m, conseguira aumen-
tar consideravelmente 0 capital da sua empresa, gracas
ao interesse de urn grupo do qual participaria 0 velho
Matarazzo, que era entao 0 sfmbolo da propria industriapaulista. Por outro lado, Almada Fagundes nao queria
ser apenas urn fabricante de loucas e de filmes: tinha preo-
cupacoes artfsticas, gostava de teorizar sobre a obra de
arte, escrevendo alguns rexros que impressionaram mui-
to 0grupo deCinear te . Mas tudo se limitou afinal a Quan -
d o e la s q ue re m , filme de media metragem. Industrialmente,
foi urn parro da montanha. Resta-nos destacar a
modernidade do tema, girando em torno de conflitosindustriais, bern como a linguagem, provavelmante a
mais evolufda no seu tempo.
]a devia parecer entao bastante antiquado 0estilo do
veterano Vittorio Capellaro, que em 1926 realizou uma
nova versao de 0 guarani , e em 19330 tardio C afad or d e
d iamantes . Nao e ele todavia 0unico a insistir nessa trilha:
dois israelitas que se iniciam na producao.Torge Konchin
e Isac Saindemberg, escolhem respectivamente I racema eE sc ra va I sa ur a. Na mesma linha ainda de reconsriruicao,
anote-se 0 insolito A nc hie ta e ntr e 0 am or e a relig iao e urn
filme bern primario, A b ne ga fa o d o g en tio .
64
Alma do Brasil, de Libero Luxardo e Alexandre
Wulfes, filmado em Mato Grosso, moderniza 0 genero de
reconsciruicao historica, associando habilmente urn
documentario sobre as Forcas Armadas a evocacao da Re-tirada da Laguna. Inspirados na vitoria da Revolucao de
1930, nao tardaram a aparecer filmes dvicos e militares,
como0
Amo r e p a tr io tis m o ou Alvorada de g loria . A s A rm asja foi anterior e se ocupava do service militar obrigatorio;
seu diretor era urn jovem crftico de prestfgio crescente,
ligado ao grupo de Cinear te : Otavio Gabus Mendes. Nem
a presenca de generais importantes como Hastinphilo de
Moura ou Bertholdo Klinger faltou a essas fitas patrioti-
cas, concordando eles em posar eventual mente para algu-
mas das cenas. Anos antes] ose del Picchia havia abordado
a revolucao de 1924 em 0 trem d a m orte , cujainterprete
principal era a esposa do celebre Tenente Cabanas, a atriz
Olga Navarro.
A fita religiosa - outra constante da hisroria do ci-
nema brasileiro - estava na ocasiao representada em Sao
Paulo por R o sa s d e N oss a S en ho ra , de Pascuale di Lorenzo,
o mesmo que dez anos antes ja produzira urn filme com
identico tftulo. No intervale, so conhecemos de Pascuale
di Lorenzo urn filme policial situado no carnaval paulista,
o m istirio d o d om in o n eg ro . Ainda com inspiracao rnfstica,temos 0 Descren te , de auroria de Francisco de Simone, nome
relativamente obscuro, apesar de 0reencontrarmos no elen-
co de E nquan to Sao P au lo d orm e, de Francisco Madrigano.
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Era este ultimo conhecido vilao de numerosos filmes e
diretor de alguns deles, como Euphemia , nome da herofna,
aproveitado num titulo de mau gosto que chegou a irritar
a crftica da epoca. As ficas enumeradas neste paragrafo,
bern como outras que sera desnecessario mencionar, rece-
beram severo julgamento da cr6nica, na modestfssima
medida em que foram vistas.Quem conseguiu vasto publico para algumas das suas
producoes foi Antonio Tibirica. Esse jovem advogado,
como ja vimos, cornecara sua carreira com jo ia m ald ita ,
dirigida por Luiz de Barros, responsavel tarnbem por Hei-
d e v e ne er , a segunda producao de Tibirica. Este era urn fil-
me de aventuras, com avioes pilotados por Anesia Pi-
nheiro Machado e Joao Ribeiro de Barros, que com seus
famosos reides logo se transformariam em herois nacio-:nais. Nao foi conrudo essa fira que assegurou notoriedade
e dinheiro a Antonio Tibirica, mas a seguinte, dirigida
por ele proprio, e que se chamou V id o e b eleza . A publici-
dade acentuava: "Incoveniente para senhoras" ou "So para
homens", 0 genero nao era novidade, pois numerosos fil-
mes estrangeiros apresentados como cientfficos, e ocasio-
nalmente proibidos, ja haviam provocado asperos protes-
ros da imprensa. V ie io e b ele za era, porern, mais ambfguodo que os congeneres de outros pafses, conseguindo sem
rrraiores empecilhos fazer uma rendosa carreira, nao so em
todo territorio nacional, mas igualmente no Uruguai e na
66
Argentina. 0 proximo exito de Tibirica sera0crime c ia mala ,
baseado no drama de Pistone e Maria Fea, que tarnbem ins-
pirou a Madrigano urn filme com tftulo idenri co. Enquan-
to i5S0,V ie io e b ele za fazia escola, e em pouco tempo sucede-
ram-se De pr av £lfa o, m o rf in a, v en en o b ra nc o, M e ss alin a ...
Luiz de Barros - a quem se devem M essalina e D e-
pravafao - tudo tentou em materia de generos cinemato-
graficos. Num so ano, precisamente em 1923, vemo-Io
filmar uma farsa no gosto americano, uma pe~a tfpica bra-
sileira, e uma aventura sem nacionalidade: A ug us to A nib al
qu er ca sa r, A ca pital fed era l eO c a va le ir o n e gr o . 0 chamado
"genero livre" nao lhe foi, contudo, favoravel. Afastou-se
temporariamente do cinema e, apos cuidar da public ida-
de de uma agencia americana, vern a ser 0 gerente da "Cia.
de Variedades Tro-Io-lo". Retornando ao cinema, teve
muito sucesso dirigindo Genesio Arruda e Tom Bill, numa
serie de filmes falados, os primeiros produzidos no Brasil,
ainda pelo sistema de discos. Dirigiu sucessivamenteAca-
b ar am -s e o s o td rio s, L ua -d e-m e l e 0 babao . Alcancou exito
duradouro 0 personagem encarnado por Genesio Arruda,
oriundo - como ranees outros caipiras do cinema e do
teatro - do popular Jeca Tatu, criacao de Monteiro Lobato.Outro tipo de farsa cinematografica surgiu naqueles
anos, no Rio e em Sao Paulo, em filmes como A le i do
inquilinato, de William Schocair, ou F ilm an do fita s, de
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Antonio Rolando. Pr6ximas das tradicoes do circo e do
teatro ligeiro nacional, e possivel que essas cornedias cur-
tas e despretensiosas contivessem sugest5es aproveiraveis,
pois tanto Schocair quanto Rolando eram personalidades
pitorescas e com alguma experiencia em comum nos meios
cinernatograficos norte-americanos. Antonio Rolando che-
gou mesmo a trabalhar em varies filmes nos Estados Uni-
dos; quando voltou ao Brasil, anunciou que urn grupo de
magnatas estava disposto a investir dois rnilhoes de dola-
res para fundar definitivamente 0 cinema nacional. Dissi-
pada a fantasia, seguiu para Campinas a fim de orientar a
producao local. La desentendeu-se, durando pouco sua
funcao de orientador. Logo ap6s fez enrao P ilm a nd o fita s
- 0 iinico filme que conseguiu de faro realizar na sua
vida repleta de lendas e boernia.
Entre 1923 e 1933, a producao carioca foi pouco
expressiva em quantidade. Houve temporadas em que 0
Rio nao s6 produziu menos filmes do que Sao Paulo, mas
ainda ficou arras inclusive de Minas e Pernambuco. Quan-
do Luiz de Barros entrou em crise e partiu para Sao Paulo,
o unico produtor carioca que trabalhou com certa conri-
nuidade foi Paulo Benedetti, urn daqueles iiltimos tecni-cos italianos da velha raca dos pioneiros. No passado,
Benedetti ja produzira urn filme de experiencia, Uma
t r a ns formi s ta o r ig i nal , tendo sido cinegrafista de varias equi-
68
pes. Em 1924, rorna-se 0 proprietario do melhor labora-
t6rio do Rio, obtendo bons lucros como encarregado dos
letreiros para filmes estrangeiros. Quando achou finalrnen-
re que chegara a hora de produzir, lancou A g ig o le tt e, e a
seguir, 0 d euer d e am ar e E sp os a d o s olt eir o, dirigidas por.
italianos da sua confianca: Vitorio Vergaresponsabilizou-
se pelas duas primeiras, ficando a terce ira a cargo de CarloCampogalliani, vindo especialmente da Italia para essefim.
Contudo, 0que Benedetti fez de mais importanre, artisti-
camente, foi criar condicoes para a realizacao de Barro
Humano , pelo grupo de jovens estusiastas de Cinear te :
Adhemar Gonzaga, Pedro Lima, Paulo Wanderley e Al-
varo Rocha. Barra hum ano - feiro em condicoes amado-
risticas, desde que a equipe s6 trabalhava aos domingos e
feriados - e B ra sa d or m id a, que Humberto Mauro pro-duziu na mesma ocasiao, em Cataguases, vieram demons-
trar que 0cinema brasileiro cornecava a dominar os recur-
sos narrativos. Isso porem ocorria em 1928, quando toda
a linguagem cinernarografica, laboriosamente construida
durante vinte anos na Europa e na America do Norte, ja se
encontrava condenada pela revolucao sonora. Entretanto,
o Brasil faria ainda cinema rnudo durante cinco anos, ate
aproxirnadarnerite 1933. Muitos desses filmes mudos fo-ram exibidos sonorizados pelo sistema de discos, 0 que
nao alterava em nada 0fato de rerern sido concebidos den-
tro das normas do cinema silencioso.
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E dentro desse perfodo que nasce a companhia
Cinedia, ate certo ponto consequencia e prolongamento
da revista Cinear te e da campanha em favor do cinema na-
cional, Foi a Cinedia urn centro de arracao: Gabus Men-
des veio de Sao Paulo, Gentil Roiz de Pernambuco, e -
principalmente - de Cataguases Humberto Mauro, que
assina 0 primeiro filme da companhia, L ab io s se m b eijo s.Estara tam bern ate certo ponto vinculada a esse esnidio a
producao de urn filme que adquiriu prestfgio quase len-
dario: Limi te , realizado por urn jovem de dezoito anos,
Mario Peixoto. E sera finalmente ainda no quadro da
Cinedia que Humberto Mauro apresenta em 1933 Ganga
bru ta , 0melhor filme que realizara ate enrao, e uma das
indiscutfveis obras-prirnas do nosso cinema.
Alern de G an ga b ru ta , os lancamenros de 1933 fo-ram: O nd e a ter ra a ca ba , de Gabus Mendes e Carmen San-
tos, presenca atuante no mundo cinernatrografico; Honra
e c idme s , feito por Tibirioi em Sao Paulo; Casamen to e Nego -
cio , eco tardio do cinema pernambucano em Macei6; e
Ca fado r d e diamantes , de Capellaro. Lamentavelmente, a
realizacao dessas fitas se arrastou durante dois anos, perfo-
do que foi de transforrnacoes decisivas para 0 cinema:
mesmo uma fira excelente como G an ga b ru ta era urn belo
exemplo em 1933 de urn cinema morto.
Ainda uma ultima fira foi lancada em 1933,A voz do
carnava l , improvisada por Adhemar Gonzaga e Humberto
70
Mauro no esnidio da Cinedia, Nela estreou a cantora
Carmem Miranda.
Na nova crise de producao em que entrava 0 nosso
cinema, A Voz do C arnava l anunciava agudamente uma
das principais direcoes que tomaria 0 filme brasileiro na
sua luta pela sobrevivencia num mercado invadido pelas
fitas importadas.
4 fl E P O C A : 1933 a 1 9 4 9
No perfodo de 1933 a 1949, a producao e quase ex-
clusivamente carioca. Delineia-se em Sao Paulo um proje-
to industrial ambicioso, esnidios chegam a ser Ievanta-
dos, mas 0 resultado do esforco redunda apenas num filme,A eter na e sp er an fa ... Numa busca mais profunda, encon-
traremos ainda uma fita com 0 palhaco Arrelia, filmada
pelo veterano Gilberto Rossi, e uma outra de Oduvaldo
Vianna. As demais cento e vinte e rantas firas de enredo,
realizadas durante esses dezesseis anos, sao todas produzi-
das no Rio, com excecao de uma em Minas e outra em
Pernambuco.
Artisticamente, permanece Humberto Mauro a fi-gura de maior relevo; deixa a Cinedia e se associa inidal-
mente a Carmem Santos, atriz e ernpresaria de origem
portuguesa atuando no cinema brasileiro desde 1919. No
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corneco da decada de 1930, constitui ela sua propria com-
panhia, a Brasil Vita Film, e constroi esnidios onde anos
depois conseguira completar seu empreendimento de
maiores proporcoes: A in co nfid en cia m in eira . Humberto
Mauro dirigiu tres filmes para Catmem Santos: F av ela d os
m eu s a mo res, C id ad e m ulh er e Argi la; Com F avela do s m eu s
a m or es - 0mais importante dos tres - volta 0 nosso ci-nema aos morros cariocas, nao para procurar celerados,
como fez a policia de A j6ia m ald ita , mas para simples-
mente contemplar com simpatia e lirismo uma parcela do
povo. Os filmes de Hurnberro Mauro que se seguiram,
D es co br im e nto d o B ra sil e Os b a n d ei ra n te s , sao reconstitui-
~oes historicas, encomendadas por insrituicoes piiblicas.
o primeiro tern urn frescor de tratamento historico que e
raro em qualquer cinematografia. Daf por diante,
Humberto Mauro so realizara documentaries e filmes
educativos, com excecao da fita de enredo 0 can to da sau -
dade , que se situa fora do perfodo ora examinado; sua
producao para 0 Instituto Nacional do Cinema Educativo
inclufra, entretanto, alguns curras-rnerragens posados, de
iniciacao literaria, como por exemplo 0 ap6logo .
Wallace Downey, arnericano responsavel pela re-
percussao de C o us as n os sa s" , produzia exclusivamente
1. Filme produzido em Sao Paulo e cornposto exclusivamente de mime-
ros de variedades e musicais. Poi 0 primeiro grande exiro do cinema
falado brasileiro.
72
filmes musicais, associando-se a s vezes a Cinedia, Dessa apro-
xima~ao surgiram muitos filmes, que tiveram 0merito de
lancar cinematograficamente atores como Mesquitinha,
Oscarito ou Grande Otelo, que assegurarao ao filme nacio-
nal urn contato com 0 publico ha muito perdido.
A dec ada de 1930 girou em torno da Cinedia, em
cujos estiidios firmou-se uma fornula que asseguraria acontinuidade do cinema brasileiro durante quase vinte
anos: a cornedia musical, tanto na modalidade carnavales-
ca quanto nas outras que ficaram conhecidas sob a deno-
minacao generica de "chanchada". Apesar do interesse e
comunicabi-lidade de Bo nequ inha de seda , de Oduvaldo
Vianna, esse tipo de comedia nao foi tentado muitas vezes
entre nos. Tampouco 0melodrama musical fez escola -
como seria de esperar - embora renha sido prodigioso eduradouro 0 exito popular de 0 ebr io de Vicente Celestino
e Gilda de Abreu. Eventualmente, a Cinedia lancava uma
fira dramatics de nfvel mais alto, como Pureza , baseada no
romance de Jose Lins do Rego.
Revelaram tam bern alguma preocupacao de quali-
dade os filmes G rito da m oc idade eAves sem n inho , as pri-
meiras producoes de Roulien, de volta ao Brasil apos ob-
ter relativo sucesso em Hollywood. Produziu ele aindadois ou tres filmes que nao chegaram a ser exibidos, por
uma curiosa fatalidade de sucessivos incendios que provo-
caram a perda de todas as copias negativas e positivas.
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A producao de fitas de enredo - que ja nao fora gran-
de na decada de 1930 - quase cessou nos primordios da
decada de 1940. Em 1942 houve apenas dois filmes; entre-
tanto, a partir do ana seguinte avoluma-se 0 mimero, ate
atingir cerca de vinte filmes em 1949. Nesse perfodo, a
recern-fundada Atlantida foi a companhia de maior irnpor-
rancia, cria~ao de Moacir Fenelon, Alinor Azevedo e JoseCarlos Burle. Estreia com M o le qu e T ia o, filme que deu 0
tom das primeiras producoes: procura de temas brasileiros
.erelativo cuidado na feitura dos trabalhos. Logo porern pre-
dominou a chanchada, particularmente apos a associacao
da Atlantida a poderosa cadeia de exibicfo de Luis Severiano
Ribeiro. Esse encontro entre a producao e 0 cornercio
exibidor lembra a harmoniosa e nunca repetida conjuntura
economics que reinou no cinema brasileiro entre 1908 e1911. Em 1947, porern, 0 resultado mais evidente da al-
mejada confluencia de interesses industriais e comerciais
foi a solidificacao da chanchada e sua proliferacao durante
mais de quinze anos. 0 fenorneno repugnou aos criticos e
estudiosos. Contudo, urn exame atento e possfvel que nos
conduza a uma visao mais encorajante do que significou a
popularidade de Mesquitinha, Oscarito, Grande Otelo,
Ankito, ze Trindade, Derci Goncalves, Violeta Ferraz... Ospersonagens grotescos foram naturalmente 0 centro de gra-
vidade da chanchada, 0que nao impediu que se configuras-
se pelo menos urn tipo de gala: Anselmo Duarte.
74
Durante 0periodo que estamos focalizando, foi a vi-
da nacional sacudida por episodios politicos drarnaticos:
golpe comunista, golpe integralista, golpe de Genilio
Vargas, golpe contra Genilio Vargas, nossa participacao
na Segunda Guerra Mundial... Mas so esse ultimo aconte-
cirnento inspirou nossa fic~ao cinematografica no drama
o Brasileiro f o do d e S ou sa ; duas chanchadas tambern foramfeitas, Sam ba em Bed im e Bed im na b atucac ia, de Luiz de
Barros, cuja fecundidade nessa epoca foi extraordinaria,
pois realizou cerca de vinte e cinco filmes. Uma larga ex-
periencia e desenvoltura fez dele 0 homem ideal para 0
tipo de fita produzida as pressas e sem maiores preocupa-
~oes. Ocasionalmente, aceitava a incurnbencia de dirigir
ficas de mais responsabilidade, como 0 cortifo ou Inodn-
cia, e af entao 0 resultado era penoso. Em todo caso, arentativa de filmar 0 romance de Alufsio Azevedo ou 0de
Taunay exprime uma intencao de cinema mais alto, in-
ten~ao que animou igualmente os projetos baseados em
textos de Jorge Amado, T e rr a v io le n ta e E str ela c ia m an ha ,
que nao passaram de experiencias rnelancolicas. Em Vinte
e qu atro ho ra s d e son ho , apelou-se para 0 que possufa 0 tea-
tro nacional de mais prestigioso no rnornenro: 0 autor
Juracy Camargo e 0 grupo de Dulcina. Um a aven tura aos
quarenta, do ator e autor teatral Silveira Sampaio - entao
em plena ascensao - sugeriu a possibilidade de uma co-
media cinernatografica mais leve e sofisticada. Conrudo, a
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experiencia ficou comosimples exetnplo isolado, sem con-
seqiiencias. Nao ha razao para esconder que nos ultimos
anos do perfodo que estudamos era mesmo a chanchada 0
que havia de rnais estirnulante e vivo no cinema nacional.
5 U . EPOCA: 1950a
1966
oana de 1950 assinala a volta de SaoPaulo ao cena-rio cinernatografico brasileiro. A Companhia Vera Cruz
- empreendimento grandioso - e iniciativas ponderaveis
como a Maristela e a Multifilmes, conferiram ao retorno
paulista urn tom sensacional. Tudo levava a crer que a
industria de Sao Paulo - 0 seror mais avancado da pro-
dutividade nacional- resolvera se ocupar do cinema, ateentao manipulado por modestos artesaos e jovens idealis-
tas. E verdade que no Rio, durante os iiltimos tres ou qua-
rro anos, a producao cinematognifica, estimulada pelos co-
mercianres da Atlfinrida, nao mais dependia de artesaos e
rnuiro menos de sonhadores. Os paulistas, entretanro, re-
jeitaram qualquer paralelo entre 0que prerendiarn fazer e
aquila que sefazia no Rio: renegando a chanchada, ambi-
cionaram realizar filmes de classe e em muito maior mi-mero. Com esse objetivo, contratou a Vera Cruz tecnicos
da Iralia e da Inglaterra, trazendo de volta Alberto
Cavalcanti, 0patricio que se ilustrara no cinema frances e
7 6
ingles. Numerosos outros estrangeiros, vindos por conta
propria e com maior ou menor experiencia de cinema nos
pafses de origem, consritufrarn au completaram os qua-
dras tecnicos e artfsticos da Maristela e da Multifilmes.
Esse perfodo da cinematografia paulista foi rico em
filmes e acontecimentos: os meios intelectuais, artfs-
ti-cos e de neg ocios tomaram afinal conhecimentodo nosso cinema, que ficou sendo assunto constante nas
rodas. Nao ha diivida de que as promessas de me1horia
do padrao tecnico e artfstico foram razoavelmente cum-
pridas, a partir de Caicara, confirmando-se em muiros
outros: Angela , 0 c om pr ad or d e /a ze nd as, T err a e s emp re t er -
ra , V en eno , S inha M Ofa , Um apu lg ana b alan fa ... Contudo,
diferenrernenre de Lima Barreto - que com 0 cangacei -
ro inaugurou urn genera que permanece ainda vivo e fe-cundo - os diretores desses filmes, quase todos estran-
geiros, nao deixaram marcas duradouras da sua pas-
sagem pelo cinema nacional. Afastou-se Cavalcanti dos
grupos que 0 haviarn contrarado, mas antes de voltar
para 0 estrangeiro logrou realizar uma cornedia pau-
listana, S imdo , 0 caolho , e urn drama nordestino, 0 can to
d o mar - trabalhos que nao comprometem a sua
filmografia e enriquecem a nossa. Com 0 saci , inspi-rado numa historia de Monteiro Lobato, Rodolfo Nan-
ni ensaiou urn cinema brasileiro muito promissor noge-
nero juvenil.
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A esse variado e estimulante cinema paulista
correspondia uma situacao carioca igualmente anirnado-
ra, surgindo sintomas de melhoria geral e renovacao ate
da propria chanchada, notadamente em T ud o a zu l, de
Moacir Fenelon e Alinor Azevedo. Outros filmes procu-
ravam inserir drama e cornedia num conrexro fiel da cro-
nica carioca. Citam-se como exemplos A gulh a n o p alh ei-ro , primeiro filrne do jornalista e crftico do cinema Alex
Viany, e A mei um b ich e iro , dirigido pelo estreante Jorge
Ileli e por Paulo Wanderley, da gera~ao anterior, inre-
grante da velha equipe de Cinearte e urn dos responsaveis
por B ar ro h um an o.
Como se nao bastassem tantas atividades validas, nes-
se infcio da decada de 1950, eis Humberto Mauro que rea-
parece com urn novo filme de enredo, apos ter-se ocupadodurante dez anos exclusivamente de cinema educativo. Vol-
tando ele a regiao de Minas, onde nasceu e viveu, realizou 0
C an to d a sa ud ade , obra inspirada e plena, que permanece
distante do burburinho de Sao Paulo e Rio.
A grande euforia provocada pelo surro paulista des-
vaneceu-se em 1954; malograra a tentativa de produzir
industrialmente cinema no Brasil. 0 fracasso dos grandes
empreendimentos nao provocou, porern, 0 colapso temi-do por muitos. Durante a decada de 1950,0 aumento da
producao foi constance, chegando a se estabilizar em tor-
no de mais de trinta filmes anuais rio fim do perfodo, Nao
78
esmorecia a vitalidade da fita musical e da cornedia
popularesca, ao contrario das previsoes; houve certa diver-
sificacso na chanchada, sobretudo com 0 aparecimento de
Amacio Mazzaroppi que trouxe de volta a figura do caipi-
ra representado por Genesio Arruda. Durante dez anos,
foi Mazzaroppi a principal contribuicao paulista a chan-
chada brasileira, embora nao tivesse aquela crueza burlesca
do seu antecessor, compondo urn Jeca impregnado de urn
sentimentalismo que Genesio evitava. No mesmo perfo-
do, delineia-se no Rio a silhueta muito mais atual. de zeTrindade, personagem bizarra e rica de cafajeste maduro e
sem 0 menor encanto, mas cuja confianca em si proprio
fascina as mulheres.
Nao desapareceu 0 filme com intencoes artfsticas, e
entre 1955 e 1959 sao produzidos: R io 40 graus , 0 sobra-
do , A estrada , O sso , A mor e p apagaio s, R io zona nor te , E stra -
n h o e n co n tr o, 0 grand e m om en to , C ara de fogo , F ron te ira s do
in fe rn o, R a vin a ... Dois realizadores se destacam: Nelson
Pereira dos Santos e Walter Hugo Khouri.
R io 40 graus , a fita de estreia de Nelson Pereira dos
Santos, foi considerada na epoca principalrnente uma uti-
liza~ao das li~5es do neo-realismo italiano. Prossegue cres-
cente 0 interesse despertado por esse filme, nac se cogi-tando mais hoje em vincula-Io a qualquer rendencia
estetica estrange ira; ao conrrario, 0 que surpreende agora
em R io 40 graus e constatar a profundidade da impreg-
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nacao brasileira, tanto nos personagens como nas situa-
c;oes. Apos alguns filmes desiguais, Nelson Pereira dos
Santos realizou V id as s ec as em 1963. A adaptacao do texto
antologico de Graciliano Ramos resultou num filme que,
pesquisando e reflerindo a condicao subumana do vaquei-
ro nordestino, coloca-se pela sua universalidade entre os
melhores ja realizados no Brasil. E outra tendencia artfs-
tica de Walter Hugo Khouri: preocupa-se pouco com a
sociologia que 0 envolve, procurando exprimir senti men-
tos universais em filmes enraizados nos padroes estrangei-
ros. Dentre 0 grupo paulista - no qual estreou - foi 0
unico a atingir uma obra continua e pessoal. Sua
filmografia relativamente exrensa revela uma pertinacia
exemplar e rara coerencia estilfstica. Desde 0 gigante de
pedra e Es tr an h o e nc o nt ro , seus dois primeiros filmes, ate A
no it e v a zi a e Co rp o a rd e nt e, realizado em 1966, cada fita
vern significando para Khouri uma aproxirnacao do ideal
esterico a que se propos. 0 rigor, contudo, nao 0 impede
de fazer promessas de concessao a bilheteria, promessas de
natureza erotica, que 0 cineasta alias nao cumpre.
Os filmes de Nelson Pereira dos Santos e Walter
Hugo Khouri constituem uma parcela apenas do todo
complexo, variado e rico que e 0 cinema brasileiro con-
rernporaneo. Os trinta filmes anuais produzidos a partir
de 1960 disrribuern-se de forma equilibrada entre os mais
variados generos. A farsa popularesca cede terreno aos fil-
80
mes ligeiros de Carlos Hugo Christensen ou aos melodra-
mas modernizados de Nelson Rodrigues. 0 ciclo do
cangaco adquire novo alento, enquanto 0 cinema urbano
estrutura urn pe~sonagem convincente no gala mestico e
vulgar encarnado por Jece Valadao.
Os cinco primeiros anos da decada de 1960 sao do-
minados, entretanto, pelo fenorneno baiano, que se cons-titui de urn conjunto de filmes realizados na Bahia, pro-
duzidos alguns por baianos e outros por sulistas: Bahia de
to do s o s s an to s e 0 pagador de promessas destacarn-se sobre-
mane ira, 0 primeiro pelo pioneirismo da sua func;ao, e 0
segundo pelo equilfbrio de sua fatura. Projeta-se entao,
no cinema propriamente baiano, a figura de Glauber Ro-
cha, que em 1961 estreou com Barravento e a seguir rea-
lizou esse poderoso Deus e 0 diabo na terra do so l.
E a erupcao do chamado Cinema Novo, movimento
notadamente carioca, que engloba de forma pouco
discriminada tudo 0 que se fez de 'melhor - em materia
de ficc;aoou documentario - no moderno cinema brasi-
leiro. Seu quadro de excelentes diretores de ficas de enre-
do ja e grande, tendendo sempre a aumentar dia a dia:
Glauber Rocha, Paulo Cesar Sarraceni, Joaquim Pedro de
Andrade, Ruy Guerra, Luiz Sergio Person, Leon Hirzman,Carlos Diegues, Sergio Ricardo, Walter Lima Junior ...
Depois de C i nc o v ez es f av el a, filme desigual mas revelador,
produzido em 1962, rornou-se 0Cinema Novo 0 respon-
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savel por quase todos os filmes nacionais importantes que
tern aparecido nos ultimos anos: O s c a/a je ste s, P orto d as c ai-
xas, D eus e 0 d iab ona terra do so l, O s fuzis , Esse m undo imeu ,
M en in o d e e n gen ho, A g ra nd e c id ad e, 0d es afio , S ao P au lo S .A .,
o padre e a m Ofa ...
Dois filmes importantes estao fora das fronteiras do
Cinema Novo: Ve r eda da .s a lva faO e A hora e Vez de AugustoMatraga . Anselmo Duarte aprofundou no primeiro a serie-
dade da busca iniciada em 0 pagador de p rom essas, A hora e
vez de A ugusto M atrag a assinala a volta de Roberto Santos
ao cinema de fic~ao. Em 1958 fora a autor do adrniravel
o g ra nd e m o me nto , equivalenre em Sao Paulo ao que reali-
zava Nelson Pereira dos Santos no Rio.
Algumas das melhores fitas realizadas atualmente
renovam a antiga rradicao de encontros da literatura bra-sileira com 0 cinema e confirmam que desapareceu final-
mente 0 abismo que durante decades divorciou 0 cinema
nacional das elites intelectuais e arrfsricas do pais.
A producao em nossos dias aparece razoavelmente
diversificada. Entre os filmes artisticamente mais ambicio-
sos e aqueles enderecados ao publico das antigas chancha-
das, desenvolve-se uma producao interrnediaria corrente
cujo born nfvel e assegurado por profissionais como CarlosCoimbra, Roberto Farias ou Roberto Pires. A razoavel
continuidade do filme brasileiro de enredo durante os iil-
timos anos pode levar 0observador superficial a conclusao
82
de que existe uma industria cinematografica funcionando
normalmente em nosso pafs. Tal nao acontece. Os interes-
ses do cornercio cinernarografico nacional giram em torno
do cinema importado, prosseguindo 0mercado atual sa-
turado pelo produto estrangeiro. Sao obrigados os nossos
filmes a enfrentar 0desinteresse e consequence rna vonta-
de do cornercio, conseguindo exibicao gracas apenas aoamparo legal.
Uma das consequencias dessa situacso injusta e levar
produtores e cineastas a se preocuparem demasiadamente
com a exportacao dos respectivos filmes, superestimando
a importancia dos festivais internacionais. As inteligen-
cias e energias ficam assirn distrafdas do iinico objetivo
que realmente importa ao nosso filme: 0publico e 0mer-
cado brasileiros. 0problema nao e aumentar 0mimero defilmes a serem apresentados no exterior, mas sim dimi-
nuir 0 mirnero de fitas estrangeiras aqui exibidas. Sera
preciso reconquistar, em modernos termos industriais, a
harmoniosa situacao que existiu no Brasil de 1910: a de
solidariedade de interesses entre os donos das salas de ci-
nema e os fabricantes de filmes nacionais.
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CINEMA: TRAJET6RIA NO
SUBDESENVOLVIMENTO
o cinema norte-americano, 0 japones e, em geral, 0
europeu nunca foram subdesenvolvidos, ao passo que 0
hindu, 0 arabe ou 0 brasileiro nunca deixaram de ser. Em
cinema 0 subdesenvolvimento nao e uma etapa, urn esta-gio, mas urn estado: os filmes dos pafses desenvolvidos
nunca passaram por essa situacao, enquanto os outros ten-
dem a se instalar nela. 0 cinema e incapaz de encontrardentro de si proprio energias que the permitam escapar a
condenacao do subdesenvolvimento, mesmo quando umaconjuntura particularmente favoravel suscita uma expan-
sao na fabricacao de filmes.
No caso da india, com uma producao das maiores do
mundo. As nac;oes hindus possuem culturas proprias de
tal maneira enraizadas que criam uma barreira aos produ-
tos da industria cultural do Ocidente, pelo menos como
tais: os filmes americanos e europeus atrafam moderada-
mente 0publico potencial, revelando-se incapazes de cons-truir por si urn mercado. Abriu-se assim uma oportunida-
de para os ensaios de producao local que durante decadas
nao cessou de aumentar e em func;ao da qual teceu-se a
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rede comercial da exibicao. Teoricamente a situacao era
ideal: uma na~ao ou urn grupo de na~5es com cinema pro-
prio. Tudo isso ocorria, porern, num pais subdesenvolvi-
do, colorrizado, eessa atividade cultural aparenternenre
tao estimulanre, na realidade refletia e aprofundava urn
estado cruel de subdesenvolvimento.
Farei abstracao aqui do papel de capital metropoli-tano ingles na florescencia do cinema hindu, para so me
deter na significar;ao cultural do fendrneno. Pelos assun-
tos abordados, 0 filme hindu permanece fiel as tradicoes
artfsticas do pafs e 0 ritmo majestoso com que sao tratadas
- notadamente quando os temas sao rnitologicos - even-
tualmente confirma essa impressao. A raiz mais poderosa
dessa producao e , entreranro, constitufda por ideias, irna-
gens e estilo ja fabricados pelos ocupantes para consumedos ocupados. 0 manancial de onde derivam os filmes
hindus em nosso seculo foi fabricado nas ultimas decadas
do XIX pela industria grafica inglesa - e respectiva lite-
ratura - arraves da vulgarizacao de uma alta rradicao plas-
tica, de espetaculo e literaria. A massa de oleogravuras e
textos, impregnada pelo culto da "Mother India", rara-
mente escapa do mais conformista e esterilizante co-
mercialismo, herdado tal qual pelos filmes produzidos nopafs. Os cineastas hindus que depois da independencia
procuram reagir contra a tradicao coagulada pela mani-
pulacao do ocupanre, voltam-se necessariamente para te-
86
mas e ritmos inspirados pelo cinema estrangeiro. 0 esfor-
~o de progresso apenas cultural num quadro de subdesen-
volvimento geral leva os cineastas a se debaterem diante
da adversidade, ao inves de realmente combate-la.
No Japao, que nao conheceu 0 tipo de relacionarnen-
to exterior que define 0subdesenvolvimento, 0fenomeno
cinernatografico foi totalmente diverse. Os filmes estran-geiros conquistaram de imediato uma imensa audiencia e
foram de infcio 0 estfrnulo prncipal na esrruturacao do
mercado consumidor do pafs. Essa producao de fora era
no entanto, por assim dizer, japonizada pelo "benshis"-
os artistas que comentavam oralmente 0 desenrolar dos
filmes mudos - que logo se transformaram no principal
atrativo do esperaculo cinematografico. Na verdade, 0
publico japones nunca aceitou 0 produto cultural estran-geiro tal qual, isto e , os filmes mudos apenas com os le-
treiros traduzidos. A producao nacional, ao se desenvol-
ver, nao encontrou dificuldades em predominar .princi-
palmente depois da chegada do cinema falado que dis-
pensou a atuacao dos "benshis", Diferenternente do que
ocorreu na india, 0 cinema japones foi feito com capitais
nacionais e se inspirou na tradicao, popularizada mas di-
reta, do teatro e da Iiteratura do pafs.No mundo do cinema subdesenvolvido 0 fenomeno
arabe - que foi inicialmente sobretudo egfpcio - nw
possui a nitidez do hindu. Nos pafses norte-africanos e do
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Oriente Proximo a carapaca de cultura propria nao foi pro-
pfcia ao alastramento do filme ocidental, mas 0 resultado
aqui foi urn desenvolvimento da exibicao incomparavel-
mente mais lento do que na India. 0 pouco interesse pelo
filme ocidental nao foi acompanhado no mundo arabe pelo
florescimento da producao local. A penetracao imperial
tendeu natural mente a fornecer ao habitanre dessas regioesuma ideia de si proprio adequada aos interesses do ocu-
panre. Se aqui isso nao levou a cria\ao de urn cinema equi-
valenre ao hindu, deve-se provavelmente a tradicao
antiiconica nas culturas derivadas do Corao. A industria
cultural do Ocidenre encontrou escassa imagem original
para servir de materia-prima na producao de ersats desti-
nados aos proprios arabes, A fabricacdo de imagem arabe
foi intensa, mas destinada ao consumo ocidental: 0mode-
10 nunca se reconheceu. 0 eixo do espetaculo coranico _
mesmo dancado - e 0 som e 0 cinema arabe so se desen-
volveu realrnente a partir do falado. 0 cinema islfimico a
primeira vista parece mais subdesenvolvido do que 0 da
india. Esta muito longe de ser presenca dorninanre inclu-
sive nas salas do Egito e do Lfbano, os principais produto-
res, mas em compensa\ao e provavel que sua economia
seja mais independente. Como suas matrizes nao sao as
oleogravuras exoticas de fabrica\ao europeia, mas a tecni-
ca forografica do Ocidente - arraves da qual os arabes
acabaram por aceitar a imagem como componente de sua
88
autovisao - os filmes egfpcios e dos outros pafses arabes
tomaram diretamente como modelo a producao ociden-
tal. Parecem menos autenticos do que os hindus mas a na-
tureza do vinculo com 0 espectador e a mesma: dentro da
maior ambigiiidade e amesquinhados pela impregnacao
imperial, uns e outros asseguram a fidelidade do publico
por refletirem, mesmo palidamente, a sua cultura original.Essa evocacao de alguns traces das situacoes cinema-
tograficas subdesenvolvidas mais irnporranres do mundo
pode servir de introducao util a nossa. A diferenca e a
parecenca nos definem. A situa~ao cinernatografica brasi-
leira nao possui urn terreno de cultura diverso do ociden-
tal onde possa deitar rafzes. Somos urn prolongamento do
Ocidente, nao ha entre ele e nos a barreira natural de uma
personalidade hindu ou arabe que precise ser constante-mente sufocada, contornada e violada. Nunca fomos pro-
priamente ocupados. Quando 0 ocupante chegou 0 ocu-
pado existente nao lhe pareceu adequado e foi necessario
criar outro. A irnportacao macica de reprodutores seguida
de cruzamento variado, assegurou 0 exito na criacao do
ocupado, apesar da incornpetencia do ocupante agravar as
adversidades naturais. A peculiaridade do processo, 0 fato
de 0 ocupante ter criado 0 ocupado aproximadamente asua imageme sernelhanca, fezdesse ultimo, ate certo ponto,
o seu semelhante. Psicologicamente, ocupado e ocupante
nao se sentem como tais: de faro, 0 segundo tambern e
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nosso e seria sociologicamente absurdo imaginar a sua ex-
pulsao como os franceses foram expulsos da Argelia, Nos-
sos acontecimentos historicos - independencia, republi-
ca, Revolucao de 1930 - sao querelas de ocupantes nas
quais oocupado nao tern vez. a quadro se complica quan-
do lembramos que a metropole de nosso ocupante nunca
se encontra onde ele esta, mas em Lisboa, Madri, Londres
ou Washington. Aqui apontaria algum parentesco entre 0
destino hindu ou arabe e 0 nosso, mas a luz que 0 seu
aprofundamento lancaria sobre os respectivos cinemas se-
ria indireta demais. Basta por ora arentar para a circuns-
dincia de 0emaranhado social brasileiro nao esconder, para
quem se dispuser a enxergar, a presenca em seus postos
respectivos do ocupado e do ocupante.
Nao somos europeus nem americanos do norte, mas
destitufdos de cultura original, nada nos e estrangeiro,
pois tudo 0 e. A penosa construcao de nos mesmos se de-
senvolve na dialetica rarefeita entre 0nao ser e 0 ser outre.
a filme brasileiro participa do mecanismo e 0 altera atra-
yes de nossa incompetencia criativa em copiar. a fenome-
no cinernarografico no Brasil resternunha e delineia rnui-
ta vicissitude nacional. A invencao nascida nos pafses
desenvolvidos chega cedo ate nos. a intervalo e pequenoentre 0 aparecimento do cinema na Europa e na America
do Norte e a exibicao ou mesmo a producao de filmes
entre nos nos fins do seculo XIX. Se durante aproxima-
90
damente uma decada 0 cinema tardou em entrar para 0
habito brasileiro, isso foi devido ao nosso subdesenvolvi-
mento em eletricidade, inclusive na capital federal. Quando
a energia foi industrializada no Rio, as salas de exibicao
proliferaram como cogumelos. as donos dessas salas co-
merciavam com 0 filme estrangeiro, mas logo tiveram a
ideia de produzir e assim, durante rres ou quatro anos, apartir de 1908,0 Rio conheceu urn perfodo cujo estudio-
so Vicente de Paula Araujo nao hesita em denominar "A
Bela Epoca do Cinema Brasileiro. "IDecalques canhestros
do que se fazia nas metropoles da Europa e da America,
esses filrnes em torno de assuntos que no momento inte-
ressavam a cidade - crimes, polfrica e outros divertimen-
tos - nao eram fautores de brasilianismos apenas na es-
colha dos temas, mas rambern na pouca habilidade comque era manuseado 0 instrumental estrangeiro. As fitas
primitivas brasileiras, tecnicamente muito inferiores ao
similar importado, deviam aparecer com maiores atrati-
vos aos olhos de urn espectador ainda ingenue, nao inici-
ado no gosto pelo acabamento de urn produto cujo consu-
mo apenas comecara.iO fato e que nenhum produto
importado conheceu no perfodo 0 trinfo de bilheteria des-
seou daquele filme brasileiro sobre crime ou polftica, sendode anotar que 0 publico assim conquistado inclufa a
1. Editora Perspectiva, Sao Paulo
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intell igentsia que circulava pela Rua do Ouvidor e pela re-
cem-inaugurada Avenida Central. Essa florescencia de urn
cinema subdesenvolvido necessariamente artesanal coinci-
diu com a definitiva rransforrnacao, nas rnetropoles, do in-
vento em industria cujos produtos seespalharam pelo mun-
do suscitando e disciplinando os mercados. 0 Brasil, que
importava de rudo - ate caixao de defunto e palito -,abriu alegremente as portas para a diversao fabricada em
massa e certarnente nao ocorreu a ninguern a ideia de socor-
rer nossa incipiente atividade cinernatografica.
o filme brasileiro primitive foi rapidarnente esque-
cido, rompeu-se 0 fio e nosso cinema cornecou a pagar 0
seu tributo it prematura e prolongada decadencia tao tfpi-
ca do subdesenvolvimento. Arrastando-se na procura da
subsistencia, tornou-se urn marginal, urn paria numa si-tua~ao que lembra a do ocupado, cuja imagem refleriu
com frequencia nos anos 1920, provocando repulsa ou es-
panto. Esse tipo de documento, quando verdadeiro, nun-
ca e bela e rudo ocorria como se a inabilidade do cinegra-
fisra concorresse para revelar a dura verdade que trauma-
tizou nao so os cronistas liberais da imprensa carioca mas
rambern urn conservador como Oliveira Viana. Essas ima-
gens da degradacao humana afloravam tambem nos fil-mes de enredo que iam sendo produzidos ocasionalmente
e que vez ou outra obtinham exihicao normal gracas it
cornplacencia, sempre passageira, do cornercio norte-ame-
92
ricano. Era pela force das coisas que essas fitas se mostra-
yam contundentes, pois os denodados lutadores do filme
brasileiro que surgiram na era do mudo se esfor~avam em
impedir a imagem da pemiria, subsritufda pela fotogenia
de inspiracao norte-americana.
Logo apos 0 estrangulamento do primeiro surto ci-
nernarografico brasileiro, os norte-americanos varreram osconcorrentes. europeus e ocuparam oterreno de forma pra-
ticamente exclusiva. Em fun~ao deles e para eles 0comer-
cio de exibicao foi renovado e ampliado. Producoes euro-
peias continuararn a pingar, mas durante as tres geracoes
em que 0 filme foi 0 entretenimento principal, cinema no
Brasil era fato norte-americano e, de certa forma, rarnbern
brasileiro. Nao e que tenhamos nacionalizado 0 espetacu-
10 importado como os japoneses 0 fizeram, mas aconteceque a impregnacso do filme americano foi tao geral, ocu-
pou tanto espaco naimagin~ao coletiva de ocupantes e '
ocupados, exclufdosapenas os ultimos estratos da pirami-
de social, que adquiriu uma qualidade de coisa nossa na
linha de que nada nos e estrangeiro pois tudo 0 e . Aamplfssima satisfa~ao causada pelo consumo do filme ame-
ricano nao satisfazia porern 0 desejo de ver expressa uma
cultura brasileira que, sem ter uma originalidade basica_ como a hindu ou a arabe - em relacso ao Ocidente,
fora se tecendo com caracterfsticas proprias indicativas de
vigor e personalidade. A penetracao do cinema amesqui-
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nhou muito as artes do espetaculo tradicionalmente tao
vivas em todo 0pais, mas elas sempre encontraram meios
de permanecer, 0 que faz pensar queecorrespondem a ne-
cessidades profundas de expressao cultural. A chegada do
radio deu novo alento a s formas ou elementos sonoros dessas
artes de espetaculo. Na primeira oporrunidade que se ofe-
receu a cultura popular violou 0monopolio norte-ameri-cano e se manifestou cinematograficamente. Por ocasiao
da irnplanracao do cinema falado, que coincidiu com a
grande crise de Wall Street, houve urn rransitorio alfvio
da presenca norte-americana, seguido imediatamente pelo
recrudescimento de nossa producao, Durante cerca de dois
anos a cultura caipira, originalmente comum a fazendei-
ros e colonos e de larga audiencia nas cidades, tomou for-
ma cinernatografica, 0 mesmo sucedendo com nossa ex-pressao musical urbana. Esses filmes tiveram imensa
audiencia em todo Brasil, mas em breve as coisas cine-
rnarograficas do pais voltararn ao eixo norte-americano e 0
cinema brasileiro mais uma vez pareceu rnorrer, isto' e,
retornou a condicao de marginal rejeitado apesar da qua-
lidade artfstica crescenre de algumas de suas obras da de-
cada de 1930. A obrigatoriedade de exibicao forneceu uma
base solida para a producao de filme curto documental,destitufdo agora da fun~ao reveladora que anteriormente
o caracterizara tao agudamente. Continuou em todo caso
a reflerir com melancolia a area do ocupante, notadamente
94
as cerim6nias oficiais. De uma maneira geral, enrretanro,
o cinema falado foi, mais do que 0mudo, propfcio a ex-
pressao nacional.
o fen6meno cinemacografico que se desenvolveu no
Rio de Janeiro a partir dos anos 1940 e urn marco. A
producao ininrerrupta durante cerca d e vinte anos de fil-
mes musicais e de chanchada, ou a combinacao de ambos,se processou desvinculada do gosto do ocupante e contra-
ria ao interesse estrangeiro. 0 publico plebeu e juvenil
que garantiu 0 sucesso dessas ficas encontrava nelas, mis-
turados e rejuvenescidos, modelos de espetaculo que pos-
suem parentesco em todo 0 Ocidente mas que emanam
diretamente de urn fundo brasileiro constitufdo e tenaz
em sua perrnanencia. A esses valores relativamente esta-
veis os filmes acrescentavam a conrribuicao das invencoescariocas efemeras em materia de anedota, maneira de di-
zer, julgar e de se comportar, fluxo continuo que encon-
trou na chanchada uma possibilidade de cristalizacao mais
completa do que anteriormente na caricatura ou no teatro
de variedades. Quase desnecessario acrescentar que essas
obras, com passagens rigorosamente antologicas, traziam,
como seu publico, a marca do mais cruel subdesenvolvi-
mento; contudo 0 acordo que se estabelecia entre elas e 0espectador era urn fato cultural incomparavelmente mais
vivo do que 0 produzido ate entao pelo conrato entre 0
brasileiro e 0produto cultural norte-americano. Neste caso
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o envolvimento era inseparavel da passividade consumi-
dora ao passo que 0publico estabelecia com 0musical e a
chanchada laces de tamanha intimidade que sua partici-
pac;ao adquiria elementos de criatividade. Urn universe
completo se construfa atraves da sucessao de filmes norte-
americanos mas a absorcao feita atraves do disranciarnenro
o tornava abstrato, enquanto os fragmentos irrisorios deBrasil propostos por nossos filmes, delineavam urn mun-
do vivido pelos espectadores. A idenrificacao provocada
pelo cinema americano modelava formas superficiais de
comportamento em rnocas e rapazes vinculados aos ocu-
pantes; em contrapartida a adocao, pela plebe, do malan-
dro, do pilantra, do desocupado da chanchada, sugeria uma
polernica de ocupado contra ocupanre.
o eco do lucro alcancado por essa producao cariocadespretensiosa e arresanal teve, nbs primordios de 1950,
urn papel determinante na tentadva paulista de urn cine-
ma mais ambicioso ao nfvel industrial e artfstico. Alguns
motivos do malogro sao claros. Os produrores cariocas eram
comerciantes da exibicao e a conjuntura criada nos anos
1940 lembrava a bela epoca do cinema brasileiro no co-
rneco do seculo. Os ernpresarios paulistas que se lancararn
a aventura vinham de outras atividades e nutriam a ilusaoingenua de que as salas de cinema existem para passar
qualquer fita, inclusive as nacionais. Culturalmente 0pro-
jeto foi igualmente desastrado. Nao reconhecendo a vir-
96
tude popular do cinema carioca, os paulistas resolveram
- encorajados por quadros tecnicos e artfsticos chegados
recenrernente da Europa - colocar 0 filme brasileiro num
rumo totalmente diverso daquele que estava seguindo de
maneira tao estimulante. Quando descobriram, mais ou
menos ao acaso, 0 veio do cangaco ou apelaram conscien-
rernente para a cornedia do radio, nascida nos mambem-bes do interior e do subiirbio, ja era tarde.
A anirnacao provocada pela tentativa industrial foi,
porern, positiva e 0 seu fracasso nao alterou a ascensao
quantitativa e qualitativa do filme brasileiro. A margina-
lizac;ao de nosso filme de enredo nao era mais, como anti-
garnenre, urn fen6meno aparenrernente tao natural que
ninguern tomava conhecimento dele a nao ser os direta-
mente interessados. 0 fato de setores ponderaveis da areaocupada rerern se chamuscado com 0 cinema nacional fez
dele urn assunto mais sensibilizante. Sua mediocridade
nao impedia sua funC;aoe nao escondia sua presenc;a. As
ocasionais e parernalistas medidas de amparo do poder
publico comecaram a ser cobradas com exigencia crescen-
teo Mais de uma vez 0 governo forneceu a ilusao de que
estava sendo delineada uma polftica cinernarografica bra-
sileira, mas a siruacao basica nunca se alterou. 0 mercadopermaneceu ocupado pelo estrangeiro de cujos interesses
o nosso comercio cinematografico e , no con junto, 0 repre-
sentante dire to. A ac;aogovernamental, pressionada pelo
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desejo de lucro dos produtores brasileiros, representando
na circunstfincia 0 interesse dos ocupados, se limitou sem-
pre a procurar obrer junto aos ocupantes estrangeiros e
nacionais uma pequena reserva de mercado para 0produ-
to local. Como a solidariedade fundamental do poder pu-
blico e corn 0ocupante, do qual emana, e claro que a pres-
sao do ultimo sempre foi decisiva. Mesmo depois do cinemater perdido em favor da televisao a predorninancia no cam-
po do enrretenimento, nao se alterou substancialmente 0
escandaloso desequilfbrio entre 0 interesse nacional e 0
estrangeiro. De qualquer maneira a concessao, por mais
modesta que fosse, assegurou urn respiradouro para 0nos-
so cinema de fic~ao. A habitual impregnacao estrangeira
nao impediu que os filmes continuassem nos refletindo
muito. A yoga do neo-realismo, logo apos 0 termino daguerra, teve consequencias exrremarnenre frutuosas para
nos. Aconteceu que 0 difuso sentimento socialista que se
alastrou a partir do fim dos anos 1940, envolveu rnuita
genre de cinema e particularmente as personalidades mais
criativas surgidas apos 0malogro do surto industrial em
Sao Paulo. 0 proprio comunismo politico, ortodoxo e es-
treito, acabou tendo uma funcao cultural na medida em
que por urn lado procurava, mesmo desajeitadarnenre,compreender a vivencia dos ocupados e por outro encora-
java a leitura de grandes escritores membros ou simpati-
zantes do partido, jorge Amado, Graciliano Ramos ou
98
Monteiro Lobato. Esse clima intelectual e mais a pratica
do rnetodo neo-realista conduziram a realizacao de alguns
filmes do Rio e Sao Paulo que glosavam artisticamente a
vida popular urbana. 0 antigo heroi desocupado da chan-
chada foi suplantado pelo trabalhador, mas nos espetacu-
los cinernatograficos que essas fitas proporcionavam, os
ocupados estavam muito mais presentes na tela do que nasala. Em materia de construcao dramatics consistente e
eficaz, essas obras deixaram longe nao so a renaz chancha-
da carioca mas tam bern os produtos mais ou menos dire-
tos da efemera industrializacao paulista. No terreno das
ideias a contribuicao que trouxeram foi ainda maior. Sem
ser propriamente polfricas ou didaticas, essas fitas expri-
miam uma consciencia social corrente na literatura pos-
modernista mas inedita em nosso cinema. Alern de urnvasto elenco de rneritos intrfnsecos esses poucos filmes
realizados por dois ou rres diretores constitufrarn 0 tronco
poderoso do qual se esgalhou 0Cinema Novo.
oCinema Novo e, depois da Bela Epoca e da Chan-
chada, 0 terceiro acontecirnenro global de importancia na
historia de nosso cinema, cabendo notar que apenas 0 se-
gundo teve urn desenvolvimento harmonioso, devido a
sua melhor adequacao e submissao a condicao geral dosubdesenvolvimento. Como 0 da Bela Epoca, 0 Cinema
Novo viveu uma meia diizia de anos sendo que ambos
tiveram 0 seu destino truncado, 0 primeiro pela pressao
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economics do imperio estrangeiro, 0 segundo pela impo-
si~ao polfrica interna. Apesar da diversidade de circuns-
t1incias 0 que sucedeu a urn e outro se insere no quadro
geral da ocupacao. 0 Cinema Novo e parte de uma cor-
rente mais larga e profunda que se exprimiu igualmente
at raves da rmisica, do teatro, das ciencias sociais e da lite-
ratura, Essa corrente - composta de espfriros chegados auma luminosa maturidade e enriquecida pela explosao
ininterrupta de jovens talentos - foi por sua vez a ex-
pressao cultural mais requintada de urn amplfssimo feno-
rneno historico nacional. Tudo ainda esta muito perto de
nos, nenhum jogo fundamental foi feito ou desfeito e os
dias que correm nao facilitam a procura de uma perspec-
tiva equilibrada sobre 0 que aconteceu. Resta a possibi-
lidade de uma visao generics em termos de ocupado e ocu-pante que nos aproxime da significacao do Cinema Novo
no processo.
Qualquer estatfstica de variada origem que a impren-
sa divulga confirma 0 que percebe a intuicao etica a res-
peito da deformidade do corpo social brasileiro. Toda a
vida nacional em termos de producao e consumo que pos-
sam ser definidos envolve apenas trinta por cento da po-
pulacao. A forca produtora urbana e rural com idenridadenftida, os esrratos medianos em sua complexa graduacao,
as massas dos comfcios de antigamente e que hoje so 0
futebol e autorizado a estruturar, rudo esta englobado na
100
minoria hoje de trinta milhoes, 0 unico povo brasileiro a
respeito do qual alcancarnos urn conceito e sobre 0 qual
podemos pensar. A irnpressao que se tern e a de que 0ocu-
pante so utiliza uma parcela pequena de ocupados e aban-
dona 0 resto ao deus-data em reservas e quilombos de novo
tipo. Esse resto, hoje de setenta rnilhoes, vai fornecendo a
conta-gotas 0 reforco de que 0 ocupante lanca mao paracertas atividades como por exemplo a construcao de Brasflia
ou a interrninavel reconstrucao do rnonsrro urbano
pauli stano, a face mais progressista de nosso subdesenvol-
vimento. Nessas ocasioes as poucas centenas de milhares
que escapam ao universo informe das muitas dezenas de
rnilhoes, adquirem uma identidade: candango ou baiano.
Foi precisamente de iniciativas governamentais na
segunda metade dos anos 1950 que surgiu a procura deurn melhor equilfbrio nacional. 0 ocupante sem irnagi-
na~ao libelou a animacao social que daf decorreu com urn
s logan: a subversao em marcha. E possfvel que 0 proprio
ocupante otimista, desejoso de ver integrados a na~ao os
setenra por cento de marginais, nao atinasse para a singu-
laridade da situacao criada. 0 fenorneno brasileiro e da-
queles cuja originalidade esta a exigir uma expressao nova.
A palavra subversao, tacanha e em ultima analise inge-nua, pode ser oposta a noc;aode superversao, que resume
com maior probidade as ocorrencias que se desenvolve-
ram ate meados de 1964. A realidade que entao se irnpos
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foi a de que os verdadeiros marginais sao os trinta por
cento selecionados para constituir a nacao, 0 esrabeleci-
rnento de canais comunicantes entre esta minoria e 0uni-
verso imenso dos restantes estava a exigir 0 deslocamento
dos eixos habituais da historia brasileira. Urn primeiro
passo consistia em encorajar 0 descobrimento ativo por
parte de todos do que possa ser a vida humana. 0 poderpublico participou da nobre esperanca - notadamente
atraves de urn rnetodo de alfaberizacao cuja pratica che-
gou a ser delineada - que impregnou ate uma mensa-
gem presidencial, documento que por esse motivo sera
urn dia urn dos classicos da democracia brasileira. 0 setor
artfstico jovem, inseparavel do publico intelectual igual-
mente jovem que suscitou, foi sem duvida 0 que melhor
refletiu 0 clima criativo e generoso entao reinante, inclu-sive atraves de obras dotadas de valores permanentes. Nesse
terreno foi grande 0papel do cinema.
Os quadros de realizacao e, em boa parte, de absor-
c;aodo Cinema Novo foram fornecidos pela juventude que
tendeu a se dessolidarizar da sua origem ocupante em nome
de urn destino mais alto para 0 qual se sentia chamada. A
aspiracao dessa juventude foi a de ser ao mesmo tempo
alavanca de deslocamento e urn dos novos eixos em tornodo qual passaria a girar a nossa hisroria, Ela sentia-se re-
presentante dos interesses do ocupado e encarregadade
func;ao mediadora no alcance do equilfbrio social. Na rea-
102
lidade esposou pouco 0corpo brasileiro, permaneceu subs-
tancialmente ela propria, falando e agindo para si mesma.
Essa delimitacao ficou bern marcada no fenomeno do Ci-
nema Novo. A homogeneidade social entre os responsa-
veis pelos filrnes e 0 seu publico nunca foi quebrada. 0
espectador da antiga chanchada ou 0 do cangaco quase
nao foram atingidos e nenhum novo publico potencial deocupados chegou a se constituir. Apesar de ter escapado
tao pouco ao seu cfrculo, a significacao do Cinema Novo
foi imensa: refletiu e criou uma imagem visual e sonora,
continua e coerente, da maioria absoluta do povo brasilei-
ro disseminada nas reservas e quilombos, e por outre lado
ignorou a fronteira entre 0 ocupado 'dostrinta e 0 dos se-
tenta por cento. Tornado em conjunto 0 Cinema Novo
monta urn universo uno e mftico integrado por sertao,favela, subiirbio, vilarejos do interior ou da praia, gafieira
e estadio de futebol. Esse universo tendia a se expandir, a
se complementar, a se organizar emmodelo para a reali-
dade, mas 0processo foi interrompido em 1964.0 Cine-
ma Novo nao morreu logo e em sua ultima fase - que se
prolongou ate 0 golpe de estado que ocorreu no bojo do
pronunciamento militar - voltou-se para si proprio, isto
e, para seus realizadores e seu publico, como que procu-rando entender a raiz de uma debilidade subiramenre re-
velada, reflexao perplexa sobre 0 malogro acompanhada
de fantasias guerrilheiras e anoracoes sobre 0 terror da tor-
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tura. Nunca alcancou a identificacao desejadacom oorga-
nismo social brasileiro, mas foi ate 0 fim 0 termometro
fiel da juventude que aspirava ser a interprere do ocupado.
. Desintegrado 0Cinema Novo, os seus principais parti-
cipantes, agora orgaos de publico catalisador, se dispersaram
em carreiras individuais norteadas pelo remperarnento e gos-
to de cada um, dentro do condicionamento estreito que en-
volve todos. Nenhum deles, porern, se instalou na falta de
esperanc;a que cercou a agonia desse cinema. A linha do de-
sespero foi rerornadapor uma corrente que se opos frontal-
mente ao que tinha sido 0 cinemanovismo e que se
autodenominou, pelo menos em Sao Paulo, Cinema do Lixo.
o novo surro situou-se na passagem dos anos 1960 para os
1970 e durou aproximadamente tres anos. A vintena de fil-
mes produzidos se situou, com raras excecoes, numa maiorou menor a r e a de clandestinidade decorrente de uma 01'\00
fortalecida pelos obsraculos habituais do cornercio e cia cen-
sura. 0 Lixo nao e claro como a Bela Epoca, a Chanchacia ou
o Cinema Novo, onde se formou a maior parte de seus qua-
dros. Estes poderiam, em outras circunstancias, ter prolon-
gada e rejuvenescido a ac;aodo Cinema Novo cujo universo e
tema retomam em parte, mas agora em termos de aviltamen-
to, sarcasmo e uma crueldade que nas melhores obras se ror-na quase insuportavel pela neutra indiferenca da abordagern,
Conglomerado heterogeneo de artistas nervosos da cidaCle e
de artesaos do subiirbio, 0Lixo propoe urn anatquismo sem
104
qualquerrigor ou cultura anarquica e tende a transformat a
plebe em rale, 0ocupado em lixo. Esse submundo degradado
percorrido por cortejos grotescos, condenado ao absurdo,
mutilado pelo crime, pelo sexo ~ pelo trabalho escravo, sem
esperanca ou contaminado pela falacia, e porern animado e
remido por uma inarticulada colera, 0 Lixo teve tempo, an-
tes de perfazer sua vocacao suicida, de produzir urn timbrehumanoiinico no cinema nacional. Isolada na clandestinida-
de, essa ultima corrente de rebeldia cinematogcifica comp5e
de certa forma um gcifico do desespero juvenil no ultimo
qiiinqiienio. Nao foi porem somente atraves do Lixo que 0
nosso filme se vinculou de maneira aguda a s preocupacoes
brasileiras do perfodo. 0 setor documental com inrencoes
culturais e didaticas reassumiu, em nivel de consciencia e
realizacao mais alto, a func;ao reveladora que 0genero desem-penhara anteriormente. Focalizando sobretudo as formas at-
caicas da vida nordestina e constituindo de certaforma 0pro-
longamento, agora sereno e paciente, do enfoque cinernano-
vista, esses filmes documentam a nobreza intrinseca do ocu-
pado e a sua cornpetencia. Quando se voltou para 0 cangac;o
esse cinema 0evocou com uma profundidade - so igualada
num recente progratna de televisao" - de que a melhor fic-
c;ao fora incapaz.
2 . C o n fr on t o, de Humberto Mesquita. Ernissao do Canal 11 em julho de
1973.
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Qualquer filme exprime ao seu jeito muito do tem-
po em que foi realizado. Boa parte da producao contern-
poranea participa alegremente do atual estagio de nosso
subdesenvolvimento: 0 rnilagre brasileiro. Apesar do ocu-
pante permanecer desinteressado em relacao ao nosso ci-
nerna' a presente euforia dos donos do mundo encontra
meios de se transmitir a muitos de nossos filmes. Ela se
manifesta sobretudo em cornedias ligeiras - tambem em
urn ou outro drama epiderrnico - situadas quase sen;tpre
em involucres coloridos e luxuosos que espumam prospe-
ridade. 0 estilo e proximo dos docurnenros publicitarios
cheios de fartura, ornamentados por imagens fotogenica-
mente positivas do ocupado e pelo bamboleio arnavel de
quadris nas praias da moda, combinadas ao louvor de au-
toridades militares e civis. Essa simultaneidade audiovi-
sual urn pouco insolita nao significa que um setor qual-
quer do poder publico tenha inspirado - dentro da for-
mula de que hoje 0 circo cornplementar do pao e 0 sexo
- 0 erotismo que irrompeu no cinema brasileiro de uns
anos para c a . A ideia divertida infelizmente nao e verda-deira; foi certarnente propalada por espfriros desconfiados
3. A recfproca nunca foi verdadeira. 0 ocupante foi cracado, em geral,
de maneira respeicosa pelo cinema mudo, foi gozadopela Chanchada e
fuscigado pelo Cinema Novo, ao mesmo cempo que uma tendencia nas-
cida do malogro induscrial paulisca se interessava pelo redio existencial
do ocupante ocioso.
106
e insensatos, mas chegou a intrigar as altas esferas. Essa
facilidade de circulacao da tolice nos tempos que correm
esclarece em todo caso a relutancia oficial diante do con-
dimento mais atraente que possui 0espetaculo de urn Brasil
milagroso, com muito apetite e tendo como satisfaze-lo,
morando bem e vestindo-se melhor, trabalhando pouco e
sem problemas de Iocornocao. 0 erotismo desses filrnes,apesardo afobamento, da vulgaridade ineficaz, da tenden-
cia autodestruidora em acentuar nos quadris a nadegas e
no seio a mama, e comefeito 0que tern de mais verdadei-
ro, parricularmente quando retratam a obsessao sexual da
adolescencia. De qualquer maneira e apesar de tudo van
essas fitas cumprindo bern a rnissao de renrar subsriruir
o produto estrangeiro. Nao obstante a proliferacao, cons-
tituem elas apenas uma parte da centena de filmes bra-sileiros produzidos anualmente dencro datecido habi-
tual de ernbaracos, ainda intato, criado pelosinteresses
das rnetropoles,
o leque extremamenre variado de produtos que 0
cinema nacional de hoje prop6e ao mercado, confirma a
sua vocacao em exprimir e satisfazer a complexa gradacao
de nossa cultura. Se a chanchada e parcialmente 0 melo-
drama foram aspirados pela televisao, 0 filme caipira naoperdeu vigor nas cidades grandes e pequenas. Estas ulti- I
mas alentam dramas e cornedias associadas a canto res ser-
tanejos e outros filmes sentimentais de diversa natureza
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que percorrem quase despercebidos osmercados mais den-
sos. A safra atual de aventuras rurais derivada do cangaco
e vista exclusivamente no interior ou, talvez, numa ou
noutra capital menor. Urn publico diffcil de definir e 10 -
calizar exatamente assegura a continuidade de dramas psi-
cologicos situados na esfera mais alta - a figura do ocu- .
pante nao e encarnada apenas pelo frascario da cornediaerotica - ou procura espelhar a crise no relacionamento
familiar e no comportamento social da populacso media-
na. Filmes historicos nascem de uma superproducao
faustosa ou de urn empenho intelectual e artfstico exem-
plar e as duas categorias, tao discrepantes, tern funC;aoiitil:
a primeira fornece uma sucessao de cromos convencionais
que correspondem, porem, a uma de nossas matrizes, a
cultura cfvica primaria, enquanto a segunda suscita refle-xao crftica a respeito do que fomos e somos. A auroridade
publica encoraja uma com benevolencia e recua vivamen-
te diante da outra.
A Iegislacao paternalista - promulgada para com-
pensar a ocupacao do mercado pelo estrangeiro - pode
ter conseqiiencias economicas de algum vulto e a frequen-
te retracao governamental diante de nossos rnelhores fil-
mes inclina os seus autores a buscar financiamento nasrnetropoles culturais, onde adquiriram prestfgio intelec-
tual desde os tempos do Cinema Novo, em parte grac;as a .
moda Terceiro Mundo nos pafses do Primeiro. Os melho-
108
res quadros de nOSSQinema ainda derivam, com efeito,
do cinemanovismo e de suas adjacencias ou mesmo dos
precursores imediatos. A ruptura na natureza do processo
criativo em que se envolveram,entre doze e dezoito anos
arras, impediu qualquer amadurecimento coletivo. 0 sal~'
ve-se-quem-puder ideologico e artfstico iniciado em 1968
deslocou 0 eixo da criatividade, a crise individual subsri-tuindo a social e permitindo que quarent5es vividos expe-
rimentassem uma nova juvenilidade. Os fragmentos da
crenca antiga foram manipulados e triturados pelo deus
ou dem6nio Inrimo de cada urn, mas conrinuou fecun-
dante a poeira da construcao coletiva sonhada por todos.
As obras individuais das maiores figuras que 0 cinema
brasileiro ja conheceu estao longe de terem sido cornple-
tadas, elas continuam a se tecer dianre de nossos olhos eseria prematuro tentar abarca-las, A amizade teve papel
importante na constituicao do cinemanovismo e a-perrna- -
nencia da camaradagem nascida na idade do ouro ind~-
ria a persistencia de uma cornunhao cuja face nova ainga
nao se revelou. Ha urn clima nostalgico nomoderno filme
brasileiro de qualidade e e possfvel que esteja se delinean-
do em torno do fndio 0 sentirnenro nacional de remorso
pelo holocausto do ocupado original. 0 que ha de maisprofundamente erico na cultura brasileira nunca cessara
de dessoldar-se do ocupante. Cabe ainda sublinhar 0 faro
de que 0melhor cinema nacional nao tern mais como an-
109
. ,
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tigamente urn destinarario cerro e assegurado. Seus auto-
res defrontam urn publico nao identificado envolvido pela
rede do cornercio e sao constrangidos a conviver com a
burocracia ocupanre desconfiada, quando nao hostil, A
ocorrencia de uma larga cornunicacao com os espectado-
res e por demais ocasional para dissipar 0 intrincado mal-
esrar em que se debatem. Nos piores momentos a alterna-tiva para a opacidade e 0vacuo. Nessas condicoes nao e deespantar que na busca de reconhecimento se volrern para a
culrura das metr6poles e com isso prejudiquem a nossa.
Se em determinado memento 0 Cinema Novo fi-
cou 6rfao de publico, a recfproca teve conseqiiencias ainda
mais aflitiva. 0 nucleo de espectadores recrutados na
intelligentsia - particularmente em seus setores juvenis
_ rendia por urn lado a se ampliar socialmente e por ou-tro a se inreressar por outras faces do filme brasileiro alern
da cinemanovista. A deterior~ao da conjuntura estimu-
lante dos infcios de 1960 fez com que 0 publico intelec-
tual que corresponde hoje ao daquele tempo se encontre
6rfao de cinema brasileiro e voltado inteiramente para 0
estrangeiro onde julga as vezes descobrir alimento para
sua inconfidencia cultural. Na realidade ele encontra ape-
nas uma cornpensacao falaciosa, uma diversao que 0 im~.pede de assumir a frustracao , primeiro passo para
ulrrapassa-Ia Rejeitando uma mediocridade, com a qual
possU! vinculos profundos, em favor de uma qualidade
,\
,
~.
importada das rnetropoles com as quais tern pouco 0que
ver,. esse publico exala uma passividade __ue e a proprianega~ao da independencia a que aspira. Dar as costas ao
cinema brasileiro e uma forma de cansaco diante da pro,blernarica do ocupado e indica urn dos caminhos de reins-
tala~ao na otica do ocupante. A esterilidade do conforto
intelectual e artfstico que 0 filme estrangeiro prodiga fazda parcela de publico que nos interessa uma aristocracia
do nada, urna entidade em suma muito mais subdesen-
volvida do que 0 cinema brasileiro que desertou. Nao ha
nada a fazer a nao ser constaran Este serer de espectadnres
nunca enconrrara em seu corpo museu los para sair da~-
sividade, assim como 0 cinema brasileiro nao possui for~a
propria para escapar ao subdesenvolvimento. Ambos de"
pendem da reanirnacao sem milagre da vida brasileira e sereenconrrarao no processo cultural que dai nascera.