ciência e ideologia_paul ricoeur
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P a rte I I
Cienc ia e ideo log ia
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In t r o d u g a o
Gostaria de come<;ar este estudo sobre "Ciencia e ideolo-
gia" relembrando um texto de Aristoteles, no prologo a sua
Et ica a /'Ii c6 m aco. Diz ele:
Teremos desempenhado satisf atoriamente nossa ta-
refa de fornecermos os esclarecimentos sobre a natu-
reza do assunto de que tratamos. Porque, na realida-
de, nao devemos procurar 0mesmo rigor em todas as
discussoes indiferentemente, como tambem nao po-
demos exigir isso nas produ~oes das artes. As coisas
belas e as coisas justas que constituem 0objeto da po-
litica dao margem a tais divergencias, a tais incerte-
zas, a ponto de termos acreditado que elas existiam
somente por conven~ao, e nao por natureza ... Portan-
to, devemos nos contentar, ao tratar de assuntos se-
melhantes e ao partir de principios semelhantes, em
mostrar a verdade de um modo grosseiro e aproxima-
do... Por conseguinte, e no mesmo espirito que deve-
rao ser acolhidas as diversas visoes que emitimos, poise proprio do homem culto nao procurar 0rigor para
cada tipo de coisa senao na medida em que 0permite
a natureza do assunto ... Dessa forma, num dominio
determinado, julga bem aquele que recebeu uma edu-
ca<;ao apropriada; ao passo que, numa materia ex-
c1uindo toda especializa<;ao, 0bom juiz e aquele que
recebeu uma cultura gera!.
Por que citei esse texto? Nao foi pela comodidade da epi-
grafe ou do exordio, mas por uma questao de disciplina do ra-
ciocinio. Com efeito, 0que pretendo mostrar e que 0f en6me-
no da ideologia e susceptivel de receber uma aprecia<;ao rela-
tivamente positiva, caso mantenhamos a tese propria mente
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· que a politica diz respeito a coisas variaveis e instaveis;
• que os raciocinios possuem, aqui, por ponto de partida,
fatos geralmente, mas nem sempre, verdadeiros;
• que devemos, por conseguinte, contentar-nos em mos-
trar a verdade de modo grosseiro e aproximado (ou, se-
gundo outra tradu<;:ao,"de modo global e esquematico");
• finalmente, que isso e assim, porque 0problema e de
natureza humana.
Todavia, para evitar essa primeira armadilha, devemos
evitar uma segunda, que consiste em definir, inicialmente, a
ideologia por sua fun<;aode justif ica<;ao, nao somente dos in-
teresses de uma classe, mas de uma classe d o min ante . A
meu ver, precisamos escapar ao fascinio exercido pelo pro-
blema da domina<;ao, para considerarmos um problema mais
amplo, 0da integra<;ao social, de que a domina<;ao e uma di-
mensao, e nao a condi<;ao unica e essencial. Ora, se toma-
mos como adquirido 0fato de a ideologia ser uma fun<;aoda
domina<;ao, e porque admitimos tambem, sem critica, 0de a
ideologia ser um fen6meno essencialmente negativo, primo
do erro e da mentira, irmao da ilusao. Na literatura contempo-
rEmeasobre 0assunto, nem mesmo se submete mais ao exa-
me a ideia que ja se tornou natural de que a ideologia e uma
representa<;ao falsa cu ja fun<;aoe dissimular a perten<;a dos
individuos, prof essada por um individuo ou por um grupo, e
de que estes tem interesse em nao reconhecer 0fato. Por
conseguinte, se nao quisermos eliminar essa problemMica
da distor<;ao interessada e inconsciente, nem tampouco man-
te-la como uma aquisi<;ao, precisamos desatar 0elo entre teo-
ria da ideologia e estrategia da suspeita, deixando para mos-
trar, pel a descri<;ao e pela analise, por que 0f en6meno da
ideologia recorre a replica da suspeita.
Este primeiro questionamento das ideias adquiridas, in-
corpora do a def ini<;ao inicial do f en6meno, e solidario a um
segundo, versando sobre 0estatuto epistemologico da pro-pria teoria dos ideologias. Meu tema, ideologia e verdade, diz
respeito, mais precisamente, a essa segunda linha de interro-
ga<;ao. Tambem sobre essa segunda linha uma serie de ar-
madilhas nos aguarda. Admite-se com muita f acilidade que 0
homem da suspeita esta isento da tara que ele denuncia: a
ideologia e 0pensamento de meu adversario; e 0pensamen-
to do au t ra . Ele nao sabe, e u , porem, seL Ora, a questao e a
de saber se existe um ponto de vista sobre a a<;aoque seja ca-
paz de escapar a condi<;ao ideologica do conhecimento enga-
jado na praxis. A essa pretensao acrescenta-se uma outra:nao somente ha um lugar nao-ideologico, mas este lugar e 0
de uma c i i~ ncia, semelhante a de Euclides com ref erencia a
aristotelica da pluralidade dos niveis de cientif icidade. 0 texto
de Aristoteles nos diz varias coisas:
Esse texto tem valor de advertencia no limiar de nossa
e nqu e t e. Na realidade, ele pode precaver-nos contra multi-
plas armadilhas a que 0tema da ideologia pode nos lan<;ar
(tema este, diga-se de passagem, que nao escolhi esponta-neamente, mas que aceitei como um desafio). Acabo de falar
de multiplas armadilhas. Elas saG de dois tipos, e sua identif i-
ca<;ao introduzira as duas primeiras partes propriamente cri-
ticas de meu estudo.
o que antes de tudo esta em questao e a def ini<;aoinicial
do fen6meno. E aqui ja estamos diante de varias armadilhas.
A primeira consiste em aceitarmos como evidente uma anali-
se em termos de classes sociais. Isso nos parece hoje natural,
tao forte e a marca do marxismo sobre 0problema da ideolo-
gia, muito embora tenha sido Napoleao quem, pela primeira
vez, fez desse termo uma arma de combate (0 que, como ve-
remos, talvez nao deva ser definitivamente esquecido). Acei-
tar a analise, no ponto de partida, em termos de classes 50-
ciais, e fechar-se ao mesmo tempo numa polemica esteril pro
ou contra 0marxismo. Ora, aquilo de que precisamos, em
nossos dias, e de um pensamento livre com referencia a toda
opera<;ao de intimida<;ao exercida por alguns, de um pensa-
mento que tivesse a audacia e a capacidade de cru za r Marx,
sem segui-lo nem tampouco combate-lo. Creio que foi Mer-
leau-Ponty quem falou de um pensamento a-marxista. Tam-
bem e isso que procuro praticar.
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geometria, e a de Galileu e a de Newton, com referencia a fisi-
ca e a cosmologia.
E interessante notar como essa pretensao, particular-
mente viva nos mais eleatas dos marxistas, e exatamente a
que Arist6teles condenava entre os plat6nicos de seu tempo,
em materia de etica e de politica, a qual opunha 0pluralismo
dos metodos e 0dos graus de rigor e de verdade. Ora, possui-
mos raz6es novas para justificar esse pluralismo, raz6es que
se devem a toda a reflexao modern a sobre a condi<;aopropria-
mente hist6rica da compreensao da hist6ria. Esta simples ob-
serva<;ao, que antecipa todo um desenvolvimento, deixa pres-
sentir que a natureza da rela<;ao entre ciencia e ideologia de-
pende tanto do sentido que possamos dar a no<;aode ciencia
nas materias praticas e politicas quanta do que possamos dar
a pr6pria ideologia.
As duas linhas de discussao convergirao para uma ques-tao que e, de certa forma, a questao de confian<;a, e que sera
o objeto do quarto item deste estudo. Se nao ha ciencia capaz
de arrebatar-se a condi<;ao ideol6gica do saber pratico, deve-
mos renunciar pura e simplesmente a oposi<;ao entre ciencia
e ideologia?
Apesar das fortes raz6es que militam neste sentido, tenta-
rei salvaguardar a oposi<;ao, mas renunciando a formula-la
nos termos de uma alternativa e de uma disjun<;ao. Para tan-
to, tentarei dar urn sentido mais modesto - ou seja, menos
perempt6rio e men os pretensioso - a no<;aode uma crftica das ideologias , situando essa critica no contexto de uma in-
terpreta<;ao tendo consciencia de ser historicamente situada,
mas que se esfor<;apor introduzir, tanto quanta pode, urn fa-
tor de distanciamento no trabalho que nao cessamos de reto-
mar para reinterpretar nossas heran<;as culturais.
Eis, pois, 0horizonte desse ensaio: somente a procura de
uma rela<;ao intimamente dialetica entre ciencia e ideologia
parece-me compativel com 0grau de verdade ao qual nos e
possivel aspirar, como dizia Arist6teles, nas coisas prilticas
e politicas.
C r i te r io s d o fen 6m en o id eo l6g ico
o nivel em que se situa minha tentativa de descri<;ao do
fen6meno ideol6gico nao sera, pois, de inicio,0de uma anali-
se em termos de classes sociais e de classe dominante. Mi-
nha inten<;ao e chegar ao conceito de ideologia que corres-
ponda a essa analise, mais do que partir dela. Este sera meu
modo de "cruzar" 0marxismo.
Meu ponto de partida e fornecido pela analise weberiana
do conceito de a<;aosocial e de rela<;aosocial. Para Max We-
ber ha a<;aosocial quando 0comportamento humano e sig-
nificante para os agentes individuais e quando 0comporta-
mento de um e orientado em fun<;ao do comportamento de
outro. A ideia de rela<;ao social acrescenta a esse duplo fen6-
menD de significa<;aode a<;aoe de orienta<;ao mutua a ideiade uma estabilidade e de uma previsibilidade de urn siste-
ma de significa<;6es. Pois bern, e nesse nivel do carater signi-
ficante, mutua mente orientado e socialmente integrado da
a<;ao,que 0fen6meno ideol6gico aparece em toda a sua ori-
ginalidade. Esta ligado a necessidade, para urn grupo social,
de conferir-se uma imagem de si mesmo, de representar-se,
* Os subtitulos dessas tres eta pas foram dados por mim, com 0objetivo de
facilitar a leitura (N. do trad.)
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no sentido teatral do termo, de representar e encenar. Eis 0
primeiro tra<;o de onde pretende partir.
Por que isto ocorre? Num artigo que me impressionou
bastante e me inspirou, Jacques Ellul! considera como primi-
tiva, a esse respeito, a rela<;aoque uma comunidade hist6rica
mantem com 0ato fundador que a instaurou: a Declara<;aoAmericana dos Direitos, a Revolu<;ao Francesa, a Revolu<;ao
Russa, etc. A ideologia e fun<;ao da disUmcia que separa a
mem6ria social de um acontecimento que, no entanto, tra-
ta-se de repetir. Seu papel nao e somente 0de difundir a con-
vic<;aopara alem do circulo dos pais fundadores, para con-
verte-la num credo de todo 0grupo, mas tambem 0de perpe-
tuar sua energia inicial para alem do periodo de ef ervescen-
cia. E : . nessa distancia, caracteristica de todas as situa<;oes
post factum , que intervem as imagens e as interpreta<;oes.
Sempre e numa interpreta<;ao que 0modela retroativamente,
mediante uma representa<;ao de si mesmo, que um ato de
funda<;ao pode ser retomado e reatualizado. Talvez nao haja
grupo social sem essa rela<;ao indireta com seu pr6prio ad-
vento. E : . por isso que 0f enomeno ideol6gico come<;a dema-
siado cedo: porque, com a domestica<;ao, pela lembran<;a,
come<;a0consenso, mas tambem se iniciam a conven<;ao e
a racionaliza<;ao. Neste momento, a ideologia deixou de ser
mobilizadora para tornar-se justificadora; ou antes, s6 conti-
nua sendo mobilizadora com a condi<;ao de ser justif icadora.
Donde 0segundo tra<;o da ideologia, nesse primeiro ni-
vel: seu dinamismo. A ideologia depende daquilo que pode-
riamos chamar de uma teoria da motiva<;ao social. Ela e,
para a praxis social, aquilo que e, para um pro jeto individual,
um motivo - um motivo e ao mesmo tempo aquilo que justif i-
ca e que compromete. Da mesma f orma, a ideologia argu-
menta. Ela e movida pelo dese jo de demonstrar que 0grupo
que a prof essa tem razao de ser 0que e. Contudo, nao se deve
tirar dai, de modo apressado, um argumento contra a ideolo-
gia: seu papel mediador permanece insubstituivel; ele se ex-
prime da seguinte forma: a ideologia e sempre mais que um
refle xo , na medida em que tambem e just i fica<;ao e pr ojet o.
Este carater "gerativo" da ideologia exprime-se no poder f un-
dador de segundo grau que ela exercecom referencia a em-
preendimentos, a institui<;oes, que dela recebem a cren<;a no
carater justa e necessario da a<;aoinstituida.
Mas como a ideologia consegue preservar seu dinamis-
mo? Um terceiro tra<;ose f az necessario: toda ideologia e sim-
plificadora e esquematica. Ela e uma grelha, um c6digo, para
se dar uma visao de conjunto, nao somente do grupo, mas da
hist6ria e, em ultima instancia, do mundo. Esse carater "codi-
ficado da ideologia e inerente a sua fun<;aojustificadora. Sua
capacidade de transforma<;ao s6 e preservada com a condi-
<;aode que as ideias que veicula tornem-se opinioes, de que 0
pensamento perca rigor para aumentar sua eficacia, como se
apenas a ideologia pudesse mediatizar nao somente a mem6-
ria dos atos fundadores, mas os pr6prios sistemas de pensa-
mento. E : . dessa forma que tudo pode tornar-se ideol6gico: eti-
ca, religiao, filosofia. "Essa muta<;ao de um sistema de pensa-
mento em sistema de cren<;a", diz Ellul, eo fenomeno ideol6-
gico. A idealiza<;ao da imagem que um grupo faz de si mes-
mo e apenas um corolario dessa esquematiza<;ao. De f ato, e
atraves de uma imagem idealizada que um grupo representa
sua pr6pria existencia; e e essa imagem que, por contra-rea-
<;ao,refor<;a0c6digo interpretativo. Isso pode ser visto no se-
guinte exemplo: desde as primeiras celebra<;oes dos acon-tecimentos fundadores aparecem os fenomenos de rituali-
za<;aoe de estereotipia; ja nasceu um vocabulario e, com ele,
uma ordem de "denomina<;oes corretas": e 0reino dos i s-
mos. A ideologia e, por excelencia, 0reino dos ismos: libera-
lismo, socialismo, etc. E : . possivel que s6 haja ismos, para 0pr6-
prio pensamento especulativo, por assimila<;ao a esse nivel
de discurso: espiritualismo, materialismo, etc.
Esse terceiro tra<;o permite-nos perceber que chamarei
de 0carater d6xico da ideologia: 0nivel epistemol6gico da
ideologia e 0da opiniao, da doxa dos gregos. Ou, se preferir-mos a terminologia freudiana, e 0momenta da racionaliza-
1. ELLUL, J. Le role mediateur de l'ideologie. D e m yt hi sa t io n e t id e% g i e .
Paris: Aubier, 1973, p. 335-354.
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<;ao. E por isso que ela se exprime preferencialmente por
meio de maximas, de slogans , de formulas lapidares. Tam-
bem e por isso que nada e mais proximo da formula retorica
_ arte do provavel e do persuasivo - que a ideologia. Essa
aproxima<;ao sugere que a coesao social nao pode ser asse-
gurada a nao ser que seja ultrapassado 0optimum doxico
que corresponde ao nivel cultural medio do grupo em ques-
tao. Todavia, ainda uma vez, nao devemos ser demasiada-
mente apressados em denunciar a fraude ou patologia: esse
esquematismo, essa idealiza<;ao, essa retorica, sao 0pre<;oa
ser pago pela eficacia social das ideias.
Com 0quarto tra<;o,come<;am a se precisar os caracteres
negativos geralmente vinculados a uma ideologia. Entretan-
to, em si mesmo, esse tra<;onao e infamante. Consiste no se-
guinte: 0codigo interpretativo de uma ideologia e algo mais
em que os homens habitam e pensam do que uma concep-
<;aoque possam expressar.
Para utilizar outra linguagem, direi que uma ideologia e
operatoria, e nao tematica. Ela opera atras de nos, mais do
que a possuimos como urn tema diante de nossos olhos. E a
partir dela que pensamos, mais do que podemos pensar so-
bre ela. A possibilidade de dissimula<;ao, de distor<;ao, que se
vincula, des de Marx, a ideia de imagem invertida de nossa
propria posi<;ao na sociedade, procede dela. Ora, talvez seja
impossivel a urn individuo e, mais ainda, a urn grupo, formu-
lar tudo, tematizar tudo e propor tudo como objeto de pensa-mento. E essa impossibilidade - a qual voltarei detidamente,
ao criticar a ideia de reflexao total - que faz com que a ideia
seja, por natureza, uma instancia nao critica. Ora, tudo indica
que a nao-transparencia de nossos codigos culturais seja uma
condi<;ao da produ<;ao das mensagens sociais.
o quinto tra<;ocom plica e agrava esse estatuto nao-reflexi-
vo e nao-transparente da ideologia. Pensa na inercia, no retar-
do que parece caracterizar 0fen6meno ideologico. Tudo indi-
ca que esse tra<;oe 0aspecto temporal especifico da ideolo-
gia. Significa que 0novo so pode ser recebido a partir do tipi-co, tambem oriundo da sedimenta<;ao da experiencia socia\.
Aqui pode ser inserida a fun<;aode dissimula<;ao. Ela se exer-
ce, sobretudo em rela<;aoa realidades efetivamente vividas pelo
grupo, porem inassimilaveis pelo esquema diretriz. Todo gru-
po apresenta tra<;osde ortodoxia, de intolerElOciaa marginali-
dade. Talvez nenhuma sociedade radicalmente pluralista, radi-
calmente permissiva, seja possive\. Em algum setor ha algo de
intoleravel, a partir do qual surge a intolerancia. Esta come<;aquando a novidade amea<;a gravemente a possibilidade, para
o grupo, de reconhecer-se, de reencontrar-se. Esse tra<;opare-
ce contradizer a primeira fun<;aoda ideologia, que e a de pro-
longar a onda de choque do ato fundador.
Mas 0fato e que essa energia inicial possui uma capaci-
dade limitada: obedece a lei de usura.
A ideologia e ao mesmo tempo efeito de usura e resisten-
cia a usura. Este paradoxa esta inscrito na fun<;aoinicial da
ideologia que e a de perpetuar urn ato fundador inicial segun-do 0modo da "representa<;ao". E por isso que a ideologia e
ao mesmo tempo interpreta<;ao do real e obtura<;ao do possi-
ve\. Toda interpreta<;ao se produz num campo limitado. Mas
a ideologia opera urn estreitamento do campo com referen-
cia as possibilidades de interpreta<;ao que pertencem ao elan
inicial do evento. E neste sentido que podemos falar de enclau-
suramento ideologico e, ate mesmo, de cegueira ideologica.
Todavia, mesmo que 0fen6meno se converta em patologia,
conserva algo de sua fun<;aoinicia\. E impossivel que uma to-
mada de consciencia se efetue de outra forma que nao atra-
yes de urn cadi go ideologico. Assim, a ideologia fica afetada
pela esquematiza<;ao inelutavel que a ela se vincula; ao dei-
xar-se afetar, ela se sedimenta, enquanto mudam fatos e si-
tua<;6es. E esse paradoxa que nos leva ao limiar da fun<;ao
tao enfatizada de dissimula<;ao.
Nossa analise atinge, aqui, 0segundo conceito da ideolo-
gia. Parece-me que a fun<;ao de dissimula<;ao e claramentepredominante quando se produz a conjun<;ao entre a f un<;ao
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geral de int egrac;ao, analisada ate agora, e a func;ao particu-
lar de dominac;ao, que se vincula aos aspectos hierarquicos
da organizac;ao social.
Pref eri situar a analise do segundo conceito de ideologia
depois do precedente, a fim de chegar a ele, ao inves de partir
dele. Com efeito, precisamos ter compreendido as outras fun-
c;6es da ideologia para entendermos a cristalizac;ao do feno-
menD em f ace do problema da autoridade. 0 que a ideologia
interpreta e justifica, por excelencia, e a relac;ao com as auto-
ridades, 0sistema de autoridade. Para explicar esse fenome-
no irei referir-me as ainda bem conhecidas analises de Max
W~ber concernentes a autoridade e a dominac;ao. Toda auto-
ridade, observa, procura legitimar-se, e os sistemas politicos
se distinguem segundo seu tipo de legitimac;ao. Ora, apare-
ce que, se toda pretensao a legitimidade e correlativa a uma
crenc;a, por parte dos individuos, nessa legitimidade, a rela-
c;ao entre a pretensao emitida pela autoridade e a crenc;a quea ela responde e essencialmente dissimetrica. Direi que ha
sempre mais na pretensao que vem da autoridade do que na
crenc;a que vai a autoridade. Vejo ai urn fenomeno irredutivel
de mais-valia, se entendemos por isso 0excesso da demanda
de legitimac;ao relativamente a of erta da crenc;a. Talvez essa
mais-valia seja a verdadeira mais-valia: toda autoridade recla-
mando mais do que nossa crenc;a pode carregar, no duplo
sentido de trazer e de suportar. E aqui que a ideologia se af ir-
ma como 0substitutivo da mais-valia e, ao mesmo tempo,
como 0sistema justificativo da dominac;ao.
Esse segundo conceito de ideologia esta intimamente li-
gada ao precedente, na medida em que 0fenomeno de auto-
ridade tambem e coextensive a constituic;ao de urn grupo. 0
ate fundador de urn grupo, que se representa ideologicamen-
te, e politico em sua essencia. Como Eric Weil nao se cansou
de ensinar, uma comunidade hist6rica s6 se torna uma reali-
dade politica tornando-se capaz de decisao; dai surge 0feno-
menD da dominac;ao. E por isso que a ideologia-dissimulac;ao
interfere em todos os outros trac;os da ideologia-integrac;ao,
especialmente no carater de nao-transparencia que se vincu-la a func;ao mediadora da ideologia. Max Weber nos ensinou
que nao ha legitimac;ao inteiramente transparente. Sem iden-
tif icar toda autoridade com a f orma carismatica, ha uma opa-
cidade essencial do f en6meno de autoridade: e nele que n6s
queremos, mais do que nao queremos. Finalmente, nenhum
fen6meno ratif ica tao completamente quanta 0da autorida-
de e da dominac;ao 0carater da inercia da ideologia. Quanto
a mim, sempre me intrigou e me preocupou aquilo que, deborn grado, chamarei de acavalamento politico. Cada poder
imita e repete urn poder anterior: todo principe quer ser Ce-
sar, todo Cesar quer ser Alexandre, todo Alexandre quer hele-
nizar um despota oriental.
Por conseguinte, e quando 0papel mediador da ideologia
encontra 0f en6meno da dominac;ao que 0carater de distor-
c;ao e de dissimulac;ao da ideologia passa ao primeiro plano.
Contudo, na medida mesma em que a integrac;ao de urn gru-
po jamais se reduz por completo ao fenomeno da autoridade
e da dominac;ao, todos os trac;os da ideologia, que ref erimosa seu papel mediador, tampouco passam para a func;ao da
dissimulac;ao a qual, com freqilencia, reduzimos a ideologia.
Chegamos ao limiar do terceiro conceito de ideologia, 0
conceito propriamente marxista. Gostaria de mostrar qUE.:ele
ganhara urn realce todo especial se 0integrarmos aos dois
precedentes. 0 que ele traz de novo? Essencialmente, a ideia
de uma distorc;ao, de uma def ormac;ao por inversao: "Se, em
toda ideologia", escreve Max, "os homens e suas relac;6es
nos aparecem situados com a cabec;a para baixo, como numa
camera obscura, este fen6meno decorre de seus processos
de vida hist6rica, absolutamente como a inversao dos objetos
sobre a retina decorre de seu processo de vida diretamente fi-
sico". No momento, nao considero 0carater metaf6rico da
expressao, sobre 0qual voltarei na segunda parte, consagra-
da as condic;6es do saber sobre a ideologia. Interesso-me, aqui,
pelo novo conteudo descritivo. 0 fato decisivo e que a ideo-
logia e def inida ao mesmo tempo por seu conteudo. Se ha in-
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versao, e porque certa produ<;;aodos homens, enquanto tal, e
inversao. Esta fun<;;ao,para Max, que nesse particular segue
Feuerbach, e a religiao, que nao e urn exemplo de ideologia,
mas a ideologia por excelen cia. Com efeito, e ela que opera a
inversao entre ceu e terra, e que faz os homens andarem de
cabe<;;apara baixo. 0que Max tenta pensar, a partir desse
modelo, e urn processo geral pelo qual a atividade real, 0pro-cesso de vida real, deixa de constituir a base, para ser substi-
tuido por aquilo que os homens dizem, se imaginam, se re-
presentam. A ideologia e esse menosprezo que nos faz tomar
a imagem pelo real, 0reflexo pelo original.
Como se pode notar, a descri<;;aoe levada a efeito pela
critica geneal6gica das produ<;;oesque procedem do real em
dire<;;!'10ao imaginario. Essa critica, por sua vez, opera uma
inversao da inversao. Portanto, a descri<;;aonao e inocente,
mas toma como uma aquisi<;;aoa redu<;;ao,feita por Feuer-
bach, de todo 0idealismo alemao e de toda a filosofia a reli-giao, e da religiao a urn reflexo invertido. Isso nao quer dizer
que Max repita simplesmente Feuerbach, pois acrescenta, a
redu<;;aoem ideias, a redu<;;aona pratica, destinada a revolucio-
nar a base da ideologia.
Meu problema, neste nivel, e 0de apreender 0potencial
descritivo, assim elucidado por essa genealogia, que interro-
garemos daqui a pouco, do ponto de vista de suas pretensoes
a cientificidade. Parece-me, em primeiro lugar, que a contri-
bui<;;aode Max reside numa especificac;ao do conceito de
ideologia, que supoe os dois outros conceitos analisados an-teriormente. Na realidade, de que forma as ilusoes, fantasias
e fantasmagorias poderiam ter uma eficacia hist6rica qual-
quer se a ideologia nao possuisse urn papel mediador incor-
porado ao mais elementar vinculo social, como sua constitui-
<;;aosimb6lica, no sentido dado por Mauss e Levi-Strauss?
Isso nos impede de falar de uma atividade real pre-ideol6gica
ou nao-ideoI6gica. Ademais, nem tampouco compreenderia-
mos como uma representa<;;ao invertida da realidade poderia
servir aos interesses de uma c1asse dominante, se a rela<;;ao
entre domina<;;aoe ideologia nao fosse mais primitiva que a
analise em classes sociais e susceptivel, eventualmente, de
sobreviver-Ihe. 0que Max fornece de novo destaca-se sobre
esse fundo previa de uma constitui<;;aosimb6lica do vinculo
social em geral e da rela<;;aode autoridade em particular. E 0
que ele acrescenta e essa ideia de que a fun<;;aojustificadora
da ideologia aplica-se, por privilegio, a rela<;;aode domina<;;ao
oriunda da divisao em classes sociais e da luta das classes. E
dessa forma que Ihe somos devedores dessa tematica especi-fica do funcionamento ideol6gico em rela<;;aocom a posi<;;ao
dominante de uma c1asse.
Todavia, atrever-me-ia a dizer que sua contribui<;;aoespe-
cifica s6 podera ser plenamente reconhecida se libertarmos
sua analise de uma estreiteza fundamental que nao pode ser
corrigida a nao ser que relacionemos 0conceito marxista
com 0conceito mais englobante sobre 0qual ele se destaca.
A limita<;;aofundamental do conceito marxista nao se deve ao
seu vinculo com a ideia de c1asse dominante, mas a sua defi-
ni<;;aopor urn conteudo especifico - a religiao -, e nao porsua fun<;;ao.Essa limita<;;aoe a heran<;;ade Feuerbach, como
pode atestar a quarta tese sobre Feuerbach. Ora, a tese mar-
xista vai muito mais longe em vigor que sua aplica<;;aoa reli-
giao na fase do primeiro capitalismo; aplica<;;aoessa que me
parece, diga-se de passagem, perfeitamente bem fundada,
mesmo que a religiao constitua seu verdadeiro sentido em
outra esfera da ~xperiencia e do discurso.
A tese marxista se aplica, de direito, a todo sistema de
pensamento possuindo a mesma fun<;;ao.Foi0que percebe-
ram c1aramente Horkheimer, Adorno, Marcuse, Habermas etoda a escola de Frankfurt. Tambem a ciencia e a tecnologia,
em certa fase da hist6ria, podem funcionar como ideologias.
o fato de a religiao poder prestar-se a essa fun<;;ao,enquanto
inversao das rela<;;oesdo ceu e da terra, significa que ela nao
e mais religiao, vale dizer, inser<;;aoda Palavra no mundo, po-
rem imagem invertida da vida. Sendo assim, s6 pode ser a
ideologia denunciada por Max. Contudo, 0 mesmo pode
acontecer, e sem duvida ocorre, com a ciencia e com a tec-
nologia, desde que mascarem, por detras de sua pretensao a
cientificidade, sua fun<;;aode justifica<;;aorelativamente ao sis-
tema militar-industrial do capitalismo avan<;;ado.
5/12/2018 Ci ncia e Ideologia_Paul Ricoeur - slidepdf.com
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E assim que a conjun<;:aodo criterio marxista
tros criterios da ideologia pode Iiberar0potencial r Ii 'Ill"
se criterio mesmo e, eventualmente, lan<;:a-IocontI' 1 1 II II
ideologicos do marxismo, que examinarei a seguir.
Todavia, essas conseqilencias secundarias nao d v 'Ill II
var-nos ao esquecimento da tese fundamental qu d III II I
essa primeira parte, a saber, que a ideologia e urn f en IlH 1111
insLiperavel da existencia social, na medida em que a I' II <II
de social sempre possuiu uma constitui<;:aosimbolica 0111
porta uma interpreta<;:ao, em imagens e representa<;:6 , < I I I
proprio vinculo social.
Ao mesmo tempo, nos so segundo problema e post 'Ill
toda a sua acuidade: qual 0estatuto epistemologico do II.
curso sobre a ideologia? Existe urn lugar nao-ideologico, d<
onde seja possivel falar cientificamente da ideologia?
C ien c ia s so c ia is e id eo lo g ia
odas as disputas atuais sobre a ideologia partem do re-
p u io implicito ou explicito do argumento de Aristoteles so-
I f 0carater grosseiro e esquematico da argumenta<;:ao nas
i'ncias que Aristoteles recobria ainda com 0nome de poli-
ti a, e que as modernos chamaram, sucessivamente, de mo-
l' I s ciences, Geist e swissenschaften, ciencias humanas, cien-
ias sociais, ciencias sociais criticas, para culminar na critica
das ideologias da escola de Frankfurt. Ora, 0que me surpre-
ende nas discussoes contemporaneas nao e somente - nao e
tanto - 0que nelas se diz sobre a ideologia, mas a pretensao
de dize-Io de urn lugar nao-ideologico chamado de ciencia.
Por conseguinte, tudo 0que se diz sobre a ideologia e coman-
dado por aquilo que se presume ser ciencia e ao qual se opoe
a ideologia. No meu entender, na antitese ciencia-ideologia,
ambos os termos devem ser questionados. Se a ideologia
perde seu papel mediador, para conservar apenas seu papel
mistificador de consciencia falsa, e porque foi conjugada com
uma ciencia definida por seu estatuto nao-ideologico. Ora, sera
que tal ciencia existe?
Na discussao, distingo duas etapas, conforme tomemos
o termo ciencia num sentido positivista ou nao.
Comecemos pelo sentido positivista. Minha tese e a de
que esse sentido e0unico que nos permitiria conferir a oposi-
<;:aociencia-ideologia urn sentido claro e preciso, mas que in-
felizmente a ciencia social, pelo menos no nivel das teorias
englobantes no qual se situa a discussao, nao satisfaz ao cri-
terio positivo de cientificidade. De fato, foi tornando-se posi-tiva que a fisica matematica de Galileu pode expurgar, para