celso belmiro (1)
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RESUMO No estgio atual de desenvolvimento da prestao jurisdicional, em que setores respeitveis da doutrina processual reivindicam a quebra do protagonismo e do isolamento do rgo judicial, com o consequente incremento da atividade das partes em prol da criao de um ambiente democrtico, de colaborao mtua e de diviso equnime de responsabilidades entre estas e o juiz, torna-se necessria a investigao acerca da importncia que ganha, sob este aspecto, a conduta tica de autores, rus e de todos quantos participem do processo, para que esta mudana de paradigmas possa ser efetivamente implementada. O presente trabalho, vinculado linha de pesquisa acesso justia do curso de Mestrado em Direito Pblico e Evoluo Social da Universidade Estcio de S, estuda as origens da centralizao das atividades processuais na figura do juiz (em especial a doutrina instrumentalista do processo) e as vertentes doutrinrias que sustentam a necessidade de ampliao da atuao das partes, atravs de ideias como comparticipao e policientrismo processual, tudo com vistas a demonstrar que, para alm do protagonismo judicial cuja atenuao se apresenta como premissa o ambiente democrtico que se pretende ver instaurado somente se tornar possvel por meio da efetiva imposio s partes de deveres ticos, como os de lealdade e de veracidade e pela necessidade premente de sua irrestrita observncia. Palavras-chave: Protagonismo judicial. Colaborao. Processo democrtico. Lealdade. Abuso do processo.
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ABSTRACT
In the present stage of development of courts jugdements in which its claimed the break with courts being the protagonist and with their isolation, having as consequence the enhancement of the parties performance for the benefit of the creation of a democratic environment, based on mutual collaboration and on the reasonable share of responsibility between the parties and the judges, it becomes necessary the investigation of the importance gained, under such aspect, by an ethical behavior of plaintiffs, defendants as well as of anyone that takes part in the procedure, so that this change in paradigm may be effectively implemented. The work herein, linked to the study on access to justice conducted in the Masters Degree in Public Law and Social Evolution of Universidade Estcio de S, studies the origins of the centralization of the procedures in the judges figure (especially the instrumental procedure doctrine) and the doctrines that defend the need of enlargement in parties performance by means of ideas as co-participation and decentralization, all aiming to demonstrate that beyond attenuating courts protagonist role, which is presented as premise, the democratic environment intended to be put into practice will only become possible by means of the effective imposition of ethical duties to the parties as loyalty and truthfulness as well as the need of their obedience to such duties without any restriction. Keywords: Judge as protagonist. Processual co-participation. Democratic process. Loyalty. Abuse of the process.
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SUMRIO
INTRODUO...................................................................................................... 11 1 CONCENTRAO DE PODERES NO RGO JUDICIAL E AS PARTES COMO COADJUVANTES: A DOUTRINA INSTRUMENTALISTA DO PROCESSO COMO EMBRIO ........................................................................... 16
1.1 As fases evolutivas do direito processual: fase sincretista, fase cientfica ou autonomista e fase instrumentalista ................................................................. 17
1.2 Instrumentalidade do processo: propostas nucleares ................................ 21
1.2.1 Publicizao do processo na viso instrumentalista o embrio de uma primeira vertente de concentrao de poderes: a conduo do processo ..... 23 1.2.2 A viso instrumentalista da atividade judicial na formao do provimento A superao da neutralidade ideolgica e a concentrao de poderes para alm da conduo do processo ...................................................................... 26 1.2.3 Os acertos e os erros do instrumentalismo uma viso pragmtica .... 30
1.3 O superdimensionamento da celeridade processual e a consequente reduo da atividade das partes ...................................................................... 34
2 A MITIGAO DO PROTAGONISMO JUDICIAL FUNDAMENTOS TERICOS PARA O INCREMENTO DAS ATIVIDADES DAS PARTES NO PROCESSO ......................................................................................................... 40
2.1 A abertura do sistema a partir de uma perspectiva filosfica a razo comunicativa e a tica do discurso de Jrgen Habermas: limites e possibilidades de sua aplicao ao processo judicial brasileiro ....................... 42
2.1.1 O paradigma procedimentalista de Jrgen Habermas como instrumento de mitigao do protagonismo judicial ............................................................ 43 2.1.2 Pressupostos comunicacionais gerais da argumentao: a pretendida situao ideal de fala .................................................................................... 46 2.1.3 A aplicao da teoria do discurso e do procedimentalismo habermasianos realidade brasileira: limites e possibilidades ...................... 51
2.2 Colaborao processual, Formalismo-valorativo e modelo cooperativo de processo ........................................................................................................... 56
2.2.1 Formalismo e o papel dos sujeitos do processo: a necessria interdependncia ....................................................................................... 58
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2.2.2 O contraditrio sobre a tica do formalismo-valorativo breve histrico acerca do princpio e a necessidade de seu incremento ............ 61 2.2.3 O dilema celeridade/durao razovel x modelo cooperativo do processo, sob a tica do formalismo-valorativo ........................................ 64
2.3 A ideia de processo judicial democrtico o processo em uma perspectiva comparticipativa e policntrica ......................................................................... 67
2.3.1 A necessidade de releitura do sistema processual: o papel do juiz e das partes - o policentrismo e a comparticipao ..................................... 69 2.3.2 O novo enfoque ao princpio do contraditrio e alguns aspectos prticos da proposta da democratizao .................................................. 73 2.3.3 O combate rapidez e celeridade como critrio nico de aferio da eficincia do sistema ............................................................................ 77 2.3.4 A necessria adeso das partes e advogados ideia da democratizao do processo .................................................................... 78
3 O COMPORTAMENTO TICO DAS PARTES COMO PRESSUPOSTO DA COLABORAO PROCESSUAL E DA DEMOCRATIZAO DA PRESTAO JURISDICIONAL ................................................................................................. 80
3.1 A atividade das partes vista sob o aspecto positivo: lealdade processual e dever de veracidade ......................................................................................... 81
3.1.1 O princpio da lealdade processual: contedo ................................. 81 3.1.2 O dever de veracidade: origens e contedo .................................... 87 3.1.3 Lealdade processual, dever de veracidade e o direito estratgico de defesa: o conflito tico inter-processual .................................................... 95
3.2 A atividade das partes vista sob o aspecto negativo: o abuso do processo e a litigncia de m-f ......................................................................................... 98
3.2.1 O abuso do direito no plano do direito material ................................ 98 3.2.2 O abuso do direito no mbito do direito processual ....................... 106
3.3 O princpio da lealdade e a responsabilidade por dano processual positivados no Direito brasileiro: breve anlise dogmtica a partir do texto legal................................................................................................................. 113
3.3.1 A lealdade positivada o art. 14 do Cdigo de Processo Civil dever de probidade e vedao ao contempt of court .............................. 115
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3.3.2 Litigncia de m-f e responsabilidade por dano processual art. 16 a 18 do CPC e seus pressupostos de aplicao ............................................... 120
3.4 A imprescindibilidade de um comportamento leal para o modelo cooperativo de processo e para sua efetiva democratizao ............................................ 126
CONCLUSO .................................................................................................... 130 REFERNCIAS ................................................................................................. 133
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INTRODUO
Diversos so os fatores, antigos e atuais, que colaboram para a to
propalada morosidade da prestao jurisdicional e sua alegada inefetividade, da
mesma forma como inmeras so as tentativas apresentadas pelos estudiosos
para a soluo do problema, todas recentemente realimentadas por fora das
discusses levadas a efeito para a elaborao do texto do novo Cdigo de
Processo Civil.
As causas mais frequentemente apontadas, em coro quase
unssono, podem ser facilmente reproduzidas: o excessivo nmero de recursos
colocados disposio dos litigantes, bem como a possibilidade de apresentao
dos mais variados incidentes pelas partes (especialmente a parte r), a enorme
pletora de demandas com o mesmo fundamento de fato e de direito (e que muitas
vezes tm solues dspares), a quantidade angustiante de processos
distribudos a cada magistrado do pas, seu reduzido nmero de representantes, a
falta de infra-estrutura do Poder Judicirio, a ausncia de instrumentos efetivos de
tutela coletiva etc1.
Porm, comum que seja olvidado um dos aspectos mais decisivos
na atrofia do sistema de prestao jurisdicional brasileiro, vale dizer, uma de suas
causas mais contundentes, qual seja o comportamento nocivo das partes no
ajuizamento de demandas judiciais temerrias, de ndole unicamente emulativa,
bem como em suas condutas procrastinatrias to comumente presentes ao
longo de todo o processamento do feito. Cuida-se aqui, especificamente, de
atitudes que revelam evidente descompromisso dos sujeitos parciais do processo
com valores como lealdade, boa-f e dever de veracidade, que podem ser
observadas tanto no plo ativo quanto no plo passivo da relao processual, 1 Na mesma linha do elenco apontado, os ensinamentos do prof. Barbosa Moreira, para quem a demora no processo se deve a uma conjugao de mltiplos fatores, dentre eles: a escassez de rgos judiciais, a baixa relao entre o nmero deles e a populao em constante aumento, com o agravante de que os quadros existentes registram uma vacncia de mais de 20%, que na primeira instncia nem a veloz sucesso de concursos pblicos consegue preencher, (...) o insuficiente preparo de muitos juzes, bem como o do pessoal de apoio, (...) a irracional diviso do territrio em comarcas, em algumas das quais se torna insuportvel a carga de trabalho enquanto noutras, pouco movimentadas, se mantm uma capacidade ociosa devesas impressionante; a defeituosa organizao do trabalho e a insuficiente utilizao da moderna tecnologia, que concorrem para reter em baixo nvel a produtividade. BARBOSA MOREIRA, Jos Carlos. O Futuro da Justia: alguns mitos in Temas de Direito Processual Oitava Srie. So Paulo: Saraiva, 2004, p.4-5)
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tanto na atividade das partes como na de seus representantes legais, podendo
ainda ter lugar at mesmo na postura mproba de terceiros intervenientes no
processo.
E as consequncias no dependem de investigao aprofundada: se
do autor que vem a conduta desleal, observa-se, quando menos, a instaurao
de processos que j se sabe ou se deveria saber serem destitudos de um
mnimo de fundamento jurdico (mas at para se chegar a essa concluso no
caso concreto necessria a utilizao e movimentao da mquina do Poder
Judicirio). Se, por outro lado, do ru que parte a atividade contrria aos valores
ticos do processo, tem-se o prolongamento indefinido do procedimento
instaurado, uma vez mais com a ocupao desnecessria de todo o aparato
judicial.
Como exemplo do que aqui se sustenta, surge a noo de assdio
processual (ou tambm assdio judicial), atravs do qual as partes ajuzam
demandas ou procrastinam o andamento do processo, negam-se a cumprir
decises judiciais, apresentam requerimento de provas e documentos novos a
todo momento, interpem recursos e peties despropositadas e provocam
incidentes processuais reconhecidamente infundados, tudo com o objetivo de
incomodar a parte contrria ou impedir o reconhecimento de um seu direito2.
Trata-se, ao fim e ao cabo, do abuso no exerccio de faculdades processuais
inerentes ao devido processo legal, a includas o contraditrio e a ampla defesa,
com o intuito nico de se criar obstculos efetivao da prestao jurisdicional.3
A matria, contudo, est longe de ser novidade...
2 Cita-se, como exemplo, recente episdio envolvendo o Jornal Folha de So Paulo e a Igreja Universal do Reino de Deus e seus fiis. Neste caso concreto, aps a publicao, em 15 de dezembro de 2007, de matria intitulada Universal chega aos 30 anos com imprio empresarial, sofreu a empresa jornalstica mais de uma centena de aes por todo o Brasil, com peties iniciais de todo assemelhadas (o que indica uma ao orquestrada), onde os fiis se diziam ofendidos pela publicao. Os pedidos apresentados eram de R$ 1.000,00, valores bem inferiores ao comumente reivindicados (o que era justificado pelo intuito de se evitarem prejuzos com eventual sucumbncia), sendo certo que as aes tinham como nica finalidade intimidar a empresa no livre exerccio de sua atividade jornalstica e faz-la despender recursos com deslocamentos e honorrios advocatcios. 3 O tema assdio processual ainda novo na doutrina do processo, sendo certo, porm, que j se encontram decises, em especial na Justia do Trabalho, onde se reconhece a sua presena, com a responsabilizao da parte que assim procedeu. Citam-se aqui dois desses processos judiciais: 1) Proc. 0173-2009-462-05-00-6 2. Vara do Trabalho de Itabuna/BA Bombril S.A. e 2) Proc. 00618-1994-037-01-00-0 37. Vara do Trabalho do Rio de Janeiro/RJ Ita S.A.
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J em 1960, Jos Olimpio de Castro Filho, em obra que se tornaria
um clssico sobre o tema na doutrina nacional, intitulada Abuso de direito no
processo civil, aps exemplificar diversas situaes que caracterizou como
abusivas, assim se manifestou4:
Mesmo que haja outras causas, o mesmo o abuso do direito a maior determinante desse fenmeno que desanima os que tm razo, que acaba justificando a pessimista regra universal de que melhor um pssimo acordo do que uma boa demanda, que s aproveita aos espertos e sem escrpulos, e que s serve para o descrdito da Justia. Examinem-se, atentamente, de modo geral, e causar pasmo como a falta de direito, na maioria dos processos, manifesta. Podem variar os incidentes e os aspectos, mas a concluso uma s, na absoluta maioria das aes: pululam a malcia, a astcia, o erro grosseiro, a fraude mesmo, em matizes diversos que no escondem o abuso do processo.
A seu turno e com esta mesma tica, Araken de Assis, em texto
publicado em maio de 2010, cinqenta anos depois de Castro Filho e tecendo
consideraes com os olhos voltados para os dias atuais, sustenta que5:
... na oportunidade em que surgiu o CPC de 1973, ecoava o diagnstico: nmero expressivo de processos agasalhava lides temerrias e a conduta das partes longe se encontrava da retido. (...) Esse panorama sombrio tem causas sociais profundas. No se difundiu suficientemente e com clareza a solidariedade. S isto explica que a pessoa, pilhada furtando energia eltrica, que conduta violentamente antissocial (...) sinta-se no direito de reclamar infrao privacidade, pleiteando indenizao do dano moral...6
Vastos so os exemplos em que claramente se identifica uma
completa subverso de valores ticos pelas partes e seus advogados no mbito
do processo judicial, tanto na propositura da demanda quanto na sua conduo
at o encerramento definitivo, sendo igualmente claras as consequncias de tais
posturas para o sistema de prestao jurisdicional como um todo, gerando um
nmero excessivo de processos pendentes de julgamento. A uma, porque as lides
4 CASTRO FILHO, Jos Olimpio de. Abuso de direito no processo civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 213. 5 ASSIS, Araken de. Dever de veracidade das partes no processo civil in Revista Jurdica n 391. Sapucaia do Sul: Editora Nota Dez, 2010, p. 15. 6 Situao a esta assemelhada a da ao de danos morais por protesto supostamente indevido de cheque emitido sem suficiente proviso de fundos onde a parte autora, no corpo de sua petio inicial, confessa a prtica do crime previsto no art. 171, VI do Cdigo Penal.
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se multiplicam indevidamente; a duas, porque as que esto em curso nunca se
encerram (ou no se encerram em um prazo razovel).
Mas no s na administrao da mquina judiciria que se
observa a nocividade de atitudes desleais praticadas pelos sujeitos do processo.
Ao contrrio, a questo um tanto mais complexa por tambm interferir em ponto
sensvel do estudo do processo e do papel desempenhado por cada um de seus
atores, tanto no plano acadmico, como tambm em seus aspectos prticos.
Trata-se aqui, especificamente, da necessidade de se investigar o
comportamento das partes luz da vertente do pensamento doutrinrio-
processual que reivindica a completa abertura do sistema de prestao
jurisdicional a uma efetiva participao de autor e ru, com o incremento do
contraditrio e sua elevao a princpio fundamental do processo, alm da
insero, no processo judicial, de conceitos como colaborao e democratizao,
sustentando-se, a partir de tais premissas, a necessidade de uma distribuio
mais racional de tarefas e de responsabilidades entre os sujeitos do processo, em
uma estrutura policntrica e comparticipativa.
E a questo que se coloca absolutamente simples: como faz-lo,
como reivindicar, de forma segura, uma maior participao dos sujeitos parciais
no processo de formao da deciso, se das prprias partes (e de seus
representantes), atravs de seu comportamento mprobo, que surgem os
elementos e as razes para uma negativa peremptria?
exatamente a investigao destas questes que se pretende levar
a efeito no presente estudo, estruturando-se a dissertao em trs eixos
fundamentais, correspondentes a cada um de seus captulos, intimamente ligados
entre si por fora de um ntido movimento de fluxo e refluxo dialticos.
Assim, tendo em vista que se objetiva analisar, nestas linhas, como
e em que medida o comportamento tico das partes configura efetivo pressuposto
para uma mudana de paradigmas, superadora do alegado protagonismo
isolacionista do rgo judicial, o primeiro captulo foi dedicado exatamente ao
estudo das origens desta concentrao de poderes, sendo a identificada a
doutrina da instrumentalidade do processo como um de seus principais elementos
justificadores. Neste tpico sero estudadas as fases evolutivas do direito
processual (sincretista, autonomista e instrumentalista), apontando-se, para alm
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da concentrao de poderes, os erros e acertos da viso instrumentalista e de
suas propostas. E, claro, a necessidade de sua superao.
No captulo dois, como uma espcie de contraponto ao que fora
apresentado no tpico anterior, so apresentadas as vertentes doutrinrias que
sustentam, com forte embasamento jurdico e filosfico, a criao, no mbito do
processo, de um ambiente deliberativo, policntrico e democrtico, onde se abra
espao efetiva atuao das partes, com a distribuio mais equnime das
atividades e tambm das responsabilidades entre os sujeitos do processo. Para
este fim, trs teorias sero analisadas, a saber: a tica do discurso de Jrgen
Habermas e a possibilidade de sua aplicao ao direito processual brasileiro; o
formalismo-valorativo e a ideia de colaborao processual e de processo
comparticipativo, de autores como Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, alm de, por
ltimo, a concepo de processo juridical democrtico, onde proposta a releitura
do sistema processual atravs da nfase no contraditrio e do novo papel a ser
desempenhado pelas partes e pelos rgos jurisdicionais.
No terceiro e ltimo captulo tratada a questo dos deveres ticos
do processo, sendo ento investigados elementos como o princpio da lealdade, o
dever de veracidade, o abuso do processo e a litigncia de m-f, tudo com vistas
a restar demonstrado, ao final, que no se pode falar em uma mudana de
paradigmas, em fim de protagonismo judicial, em policentrismo, democratizao e
incremento da atividade das partes, se estas, sem a exata conscientizao acerca
dos seus deveres de probidade na relao processual e com seu comportamento
muitas vezes violador de preceitos elementares de fundo tico do processo,
mostram-se despreparadas para este novo e reivindicado modelo de prestao
jurisdicional.
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1 CONCENTRAO DE PODERES NO RGO JUDICIAL E AS PARTES COMO COADJUVANTES: A DOUTRINA INSTRUMENTALISTA DO PROCESSO COMO EMBRIO
O presente captulo, de carter eminentemente introdutrio, tem por
finalidade proceder a uma investigao comparativa do papel desempenhado
pelas partes e pelo rgo judicial no procedimento judicial e de sua importncia
na dinmica do processo de prestao jurisdicional. Busca-se, com efeito,
proceder a um contraste entre as atividades hoje a cargo dos sujeitos parciais do
processo e a sensvel concentrao de atos e de poderes na figura do
magistrado, apresentando-se as possveis razes para uma notria diminuio,
historicamente considerada, do munus atribudo a autores e rus, tanto na
iniciativa quanto na conduo do processo.
Afirma-se, inicialmente, que grande parte deste movimento
centralizador da atividade judicial remete aos influxos da doutrina instrumentalista
do processo, com a defendida necessidade de incremento do impulso oficial e da
prevalncia do princpio inquisitivo sobre o dispositivo, tudo em prol da busca
obstinada de uma efetividade que vem sendo equivocadamente associada
celeridade processual, o que acaba por produzir a objetivao e a verticalizao
indiscriminada das decises, conduzindo, no mais das vezes e em situaes
excepcionais, ao menoscabo de garantias asseguradas pela Constituio Federal.
Pretende-se, nesta quadra, a demonstrao de que necessria
uma mudana de paradigmas na prestao jurisdicional, de forma que ainda
que no se retorne aos extremos do processo de ndole liberal seja reafirmada a
necessidade de efetiva participao das partes no processo de produo da
deciso que, em ltima anlise, ir regular o conflito em que elas mesmas se
encontram envolvidas. E o caminho indicado, como ser visto, a observncia
tenaz de aspectos fundamentais do processo, como a obrigatoriedade de
fundamentao das decises judiciais e, no que importa mais de perto ao
presente estudo, o respeito ao contraditrio e ampla defesa, com a reassuno
do papel de destaque que devem ter as partes, ao lado do magistrado, na
produo da deciso judicial.
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No se busca com isso, por certo, a retomada de um processo de
ndole privada e muito menos a simples eliminao do sistema vigente, que
possui diversos aspectos efetivamente positivos, mas sim um meio termo possvel
entre os extremos da conduo unicamente privada, de um lado, e do crescente
alijamento das partes do processo de tomada de deciso, de outro lado.
Para tanto e como premissa, ser estudada, neste tpico, a origem
instrumentalista da concentrao de poderes na figura do rgo judicial.
1.1 As fases evolutivas do direito processual: fase sincretista, fase cientfica ou autonomista e fase instrumentalista
Uma investigao crtica que se pretenda levar a efeito acerca das
origens do protagonismo judicial envolve, necessariamente, a anlise evolutiva
das fases por que passou o direito processual e pelo estudo dos institutos
jurdicos a ele inerentes, como a noo histrica de processo e de jurisdio
estatal. Apresentam-se, assim, como fases (etapas/momentos) da cincia
processual as fases sincretista, a cientfica e a instrumentalista.
A primeira das apontadas a fase sincretista (ou imanentista) do
processo, que situada, historicamente, em momento que precede ao
reconhecimento da chamada autonomia cientfica do Direito Processual. Nela,
como cedio, o processo (e o direito de ao) so reconhecidos como mera
consequncia da violao ao direito material, a que integrava (e com este se
confundia) como um seu anexo ou um seu necessrio desdobramento.
No se reconhece o processo, portanto, como constitutivo de uma
relao jurdica diferente daquela relao de direito material levada a juzo e para
a qual a parte pede a soluo estatal. No h autonomia, quer para o processo,
como instituio, quer para o direito processual, como cincia. No possua o
mesmo, portanto, vida prpria ou dignidade acadmica.
O processo era visto, em suma, como mera sequncia de atos
formais, que tinham por fim possibilitar o reconhecimento do direito material por
meio da atuao jurisdicional do Estado, sendo denominados praxistas aqueles
profissionais que se dedicavam ao estudo das formas processuais. No eram
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reconhecidos, poca, elementos suficientes para a separao das normas civis
das normas substanciais.
Trata-se, em verdade, da concepo que est presente na maior
parte da histria do direito processual, sendo certo que a fase sincretista e sua
viso reducionista do processo perduram at o surgimento e propagao, em
nvel mundial, da doutrina alem acerca do processo como relao jurdica e do
lugar de destaque que deveria ser por ela efetivamente ocupado, o que acabou,
ento, por dar origem a uma nova etapa de seu estudo: a fase cientfica do direito
processual.
Esta segunda etapa do processo (ou seu segundo momento
metodolgico) tambm chamada de fase autonomista, onde j se passa a
reconhecer que o direito de ao apresenta-se como realidade distinta do direito
material para o qual se busca reconhecimento em juzo. H, com efeito, a ntida
separao daquilo que, de um lado, representa o processo, como instituto
autnomo e contornos prprios e, de outro lado, o direito material/substantivo
deduzido em juzo, rompendo-se os vnculos (e a amlgama envolvendo estes
dois conceitos) at ento vigentes na fase sincretista. Conforme salientado, o marco da criao da fase autonomista do
processo, como amplamente reconhecido pela doutrina processual,
representado por uma das obras mais marcantes da literatura processual, no s
pelo tanto de carga principiolgica nela contida, mas tambm pelos efeitos
produzidos na doutrina processualista subseqente. Trata-se do livro A teoria das
excees processuais e os pressupostos processuais, de Oskar Von Bllow,
escrita no ano de 18687.
a partir do trabalho desenvolvido por Bllow8, na segunda metade
do sec. XIX, que a interpenetrao entre os planos material e processual comea
a se desfazer, o que possibilitou a que se chegasse, em momento posterior,
adequada viso da autonomia do direito de ao e, via de conseqncia, do
processo e da relao jurdica processual. Segundo o autor alemo, os critrios
7 Posteriormente, em 1885, Bllow escreveria Gesetz und Richteramt (Lei e Magistratura), obra que exerceu profunda influencia na atividade da magistratura alem durante vrios anos. 8 Afirme-se que a doutrina de Bllow foi encampada por Enrico Tullio Liebman, que a transportou para o Brasil quando de sua chegada da Itlia, fazendo-a difundir pelos mais diversos seguimentos do direito processual brasileiro, ao que se soma, para sua propagao, a adeso fundamental de Alfredo Buzaid na elaborao do Cdigo de Processo Civil de 1973.
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distintivos entre um e outro plano de anlise do direito eram: a) seus sujeitos; b)
seus pressupostos e c) seu objeto.
O processo passaria a constituir, assim, um vnculo jurdico a unir
autor e ru em subordinao ao Estado-juiz, de quem se exigiria a prestao
jurisdicional atravs do exerccio de um direito autnomo, o direito de ao.
Cuida-se, correto afirmar, de momento no qual se reconhece a efetiva
emancipao do estudo cientfico do direito processual, percebendo-se a
natureza jurdica do processo como algo diferente da relao de direito material
nele contida. Como decorrncia lgica destas formulaes, surge o
estabelecimento da cincia processual como objeto de estudo prprio e valendo-
se de mtodos prprios de anlise.
Outrossim, a separao entre os planos do direito material (e a
relao jurdica que guarda esta caracterstica) e do direito processual (e sua
relao de direito pblico) acaba por revelar-se fundamental para o
desenvolvimento da cincia processual.
Durante esta fase, absolutamente importante da histria do direito
processual, so fixados diversos conceitos e institutos, que se tornariam
determinantes para a estruturao do arcabouo do processo como cincia, tais
como o direito de ao e as condies para seu regular exerccio, a noo de
processo como instrumento da jurisdio e seus pressupostos, alm da ideia de
coisa julgada, constituindo, todos, referncias indispensveis para o estudo da
matria at os dias de hoje.
Esta a essncia da fase autonomista, tambm chamada fase
conceitual, tendo em vista o desenvolvimento de princpios, conceitos e de uma
metodologia prpria do direito processual, que passou ento, conforme
salientado, a ser considerada como cincia independente, regida por princpios e
institutos prprios.
A significativa evoluo decorrente da autonomia do processo
acabou, porm, por criar alguns inconvenientes que seus precursores no seriam
capazes de identificar aprioristicamente. Trata-se daquilo que se revelou como um
distanciamento indesejvel do mundo do processo em relao realidade, o que
acabaria por transformar a cincia processual e o processo em instrumentos de
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questionvel serventia, afirmando-se, em dado momento histrico, a sua pouca
praticidade.
Assim, retrospectivamente considerado o problema, comeam a
surgir questionamentos sobre a utilidade do processo jurisdicional estatal como
instrumento hbil a garantir uma justa, rpida e efetiva soluo para os litgios que
passaram a surgir na sociedade, muitas vezes em crescimento exponencial. A
doutrina do processo passa a perceber que a cincia processual, apesar do nvel
de desenvolvimento conceitual a que chegara, j no conseguia atingir os fins
para os quais fora criada, indicando-se fatores dos mais diversos matizes para a
ineficincia do sistema, como a morosidade crnica do Poder Judicirio, o alto
custo do processo dificultando o acesso justia, a supervalorizao de tcnicas
em detrimento do resultado justo para a demanda, a inexistncia de instrumentos
de tutela coletiva de direitos etc.
Este alheamento por que passou o processo (e o direito processual)
constituiu terreno frtil para a propagao de novas ideias, que reaproximariam a
cincia processual no s da realidade da qual havia se desgarrado, mas tambm
do direito material e do contexto social em que deveria estar inserido. Surge, por
este caminho aberto, a terceira e mais contundente (sob o ponto de vista que aqui
se pretende desenvolver) das fases do direito processual: a fase instrumentalista,
cujo cerne a idia da instrumentalidade do processo, que passa a figurar como
centro em torno do qual vo girar princpios, institutos e solues, revelando-se
como essencial a busca dos fins em virtude dos quais os atos processuais
havero de ser praticados, pretendendo-se com isso a criao de um sistema
jurdico-processual apto a produzir os resultados prticos desejados e passando o
processo a servir como instrumento de atuao do direito material, com a efetiva
insero do mesmo no seio da sociedade em que pretende atuar. criada, assim,
a fase instrumentalista do processo, fase da efetividade (ou de acesso justia)
ou ainda a fase do direito processual de resultados.
Contudo, apesar de apresentar propostas louvveis em diversos de
seus aspectos e de ter, em perspectiva histrica, apresentado enormes avanos
no estudo do processo e na sua efetividade, os desvios verificados na
implementao do instrumentalismo acabam por trazer a reboque uma carga
indesejvel de questionamentos acerca da legitimidade dos efeitos que acabou
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por produzir na prestao jurisdicional, cuja faceta mais visvel talvez seja a forte
concentrao de poderes nas mos do magistrado e a consequente e inevitvel
reduo da atividade das partes no processo judicial. Trata-se aqui da
identificao de uma necessria correo de rumos, de forma a trazer de volta s
propostas do instrumentalismo a importncia e a dignidade que sempre lhe foram
inerentes.
Para um completo entendimento daquilo que aqui afirmado, os
principais aspectos da doutrina instrumentalista do processo sero abordadas nos
tpicos seguintes.
1.2 Instrumentalidade do processo: propostas nucleares
Cndido Dinamarco, merecidamente um dos mais renomados
juristas brasileiros, no prefcio 1. edio de sua obra A Instrumentalidade do
Processo obra-chave que serve como marco do movimento instrumentalista no
Brasil chama a ateno, j no ano de 1986, para o que denominou de
inoperatividade do sistema processual, uma vez que estruturado em uma base
lgica e coerente, porm dissociada do mundo em que deveria atuar, propondo o
autor, ento, uma abordagem do fenmeno a partir dos objetivos a perseguir e
dos resultados com os quais ele h de estar permanentemente comprometido.
Enfim, uma nova perspectiva, segundo a qual o sistema processual deveria se
abrir, entre outros, aos influxos da poltica e da sociologia jurdica, atravs de
seus pensamentos publicistas e solidaristas9.
Propunha-se, ento, uma desmistificao das regras do processo e
de suas formas, com o que se alcanaria a otimizao do sistema, tudo com
vistas efetividade do processo. Buscava-se assim a formao de um novo
pensamento que tinha por finalidade aperfeioar o mecanismo processual, at
porque a eficcia do direito processual seria medida em funo de sua utilidade
para o ordenamento e para a pacificao social10.
Com base nessas premissas, lanava-se a ideia de que a jurisdio
no possua como nica finalidade a soluo dos conflitos de interesse, mas, ao
9 DINAMARCO, Cndido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 11 10 BEDAQUE, Jos Roberto dos Santos. Direito e Processo. A influncia do direito material sobre o processo. 5. ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 175.
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contrrio, apresentava outros objetivos, outros escopos (conforme assim se
preferiu denominar), a saber, em breve sntese: o escopo social (pacificao com
justia, educao e orientao), o escopo poltico (liberdade, afirmao da
autoridade do Estado e de seu ordenamento) e o escopo jurdico (concreta
atuao da vontade abstrata do Direito). Era sugerida, assim, uma nova faceta da
jurisdio, que adquiriria, a partir de ento, funes metajurdicas e, para alcanar
tais escopos, estaria o Estado-juiz autorizado a fazer inserir, no processo de
prestao jurisdicional, os princpios e valores que se apresentassem como
vigentes na sociedade e amplamente aceitos pela coletividade, em um
determinado momento de sua histria11.
Defendia, assim, a doutrina instrumentalista, a superao das
colocaes puramente tcnico-jurdicas da fase conceitual do direito processual,
devendo os processualistas envolver-se na crtica sociopoltica do sistema, que
transforma o processo, de instrumento meramente tcnico, em instrumento tico e
poltico de atuao da justia substancial e garantia das liberdades, dando integral
cumprimento sua vocao primordial que a efetiva atuao dos direitos
materiais12. Em outras palavras, o abandono do tecnicismo obstaculizante que
dominava o pensamento jurdico na fase autonomista iniciada por Bllow, mas
que, segundo afirmado, j havia superado seu ciclo de vida. Nas palavras de
Cndido Dinamarco13, sobre o processo e sua fase autonomista, no se trata de
renegar as finas conquistas tericas desse perodo que durou cerca de um
sculo, mas de canaliza-las a um pensamento crtico e inconformista, capaz de
transformar os rumos da aplicao desse instrumento.
Por fim, cabe asseverar, quanto a esta breve recapitulao de cunho
histrico e introdutrio, que o que pretendeu a doutrina instrumentalista, em suas
valiosas proposies, no foi, ao menos em tese e na sua concepo original, um
11 Esclarea-se, por oportuno, que no se deve confundir a instrumentalidade do processo com o princpio processual da instrumentalidade das formas, previsto no art. 154 do CPC, tambm chamado princpio da liberdade das formas, segundo o qual somente se vai decretar a nulidade de um ato por vcio de forma se o mesmo no atingir sua finalidade ou, uma vez atingindo, vier a causar prejuzo a qualquer das partes. Referido princpio, apesar de integrar, como uma de suas facetas, a proposta maior de trabalho que a instrumentalidade do processo, no pode ser com a mesma identificado. No h como tomar o todo por apenas uma de suas partes... 12 GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em evoluo. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1998, p. 9. 13 DINAMARCO, ibidem, p. 366.
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desaparecimento das formalidades do processo da ordem jurdica, mas sim que
fossem desmistificados os princpios, os critrios, as regras e, em ltima anlise,
desburocratizado o prprio sistema. Os problemas, porm, principiaram a surgir
com a deturpao, no plano prtico, dos objetivos tericos inicialmente traados.
1.2.1 Publicizao do processo na viso instrumentalista o embrio de uma primeira vertente de concentrao de poderes: a conduo do processo
A ideia de interesse pblico na prestao jurisdicional est no centro
da doutrina instrumentalista e apresenta, como decorrncia lgica e natural, o
movimento preconizado e sustentado por seus defensores de publicizao do
processo, com a necessria superao do privatismo reinante na fase sincretista
do processo.
Por esta proposta, a cincia processual e, via de conseqncia, o
prprio processo passariam a girar em torno da busca da concretizao de
interesses pblicos na atividade judicial, associando-a a uma vertente poltica que
se estabelece atravs de uma alegada insero de princpios e garantias
processuais previstas constitucionalmente, alm da sensibilidade que se passa a
exigir do juiz para os problemas sociais.
Desta forma, o processo, que at ento era examinado numa viso
puramente introspectiva, sendo considerado mero instrumento tcnico destinado
nica e exclusivamente a servir de veculo para que a jurisdio pudesse ser
prestada, passa a ser analisado a partir de um ponto de vista deontolgico e
teleolgico, aferindo-se os seus resultados na vida prtica, pela justia que fosse
capaz de proporcionar no caso concreto. Sob esta tica, o processualista
moderno, consciente dos nveis expressivos de desenvolvimento tcnico-
dogmtico de sua cincia, deslocou seu ponto de vista interpretativo, passando a
ver o processo a partir de um ngulo externo, examinando-o em seus resultados
junto aos consumidores da justia.14
Pode-se afirmar, assim, que esta conotao pblica adquirida pelo
processo decorrncia natural do surgimento do Estado social intervencionista e 14 Ao final, remata a professora Ada Pellegrini Grinover com a considerao de que, a partir de ento, inicia-se a etapa instrumentalista do processo (GRINOVER, op. cit., p. 6)
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de suas propostas para a ordem jurdica, em especial os ditames de dignidade
constitucional atravs dele inseridos e as suas conseqncias publicizadoras
refletidas nas instituies processuais.
A natureza instrumental do processo impe, portanto, que todo o
sistema processual receba os influxos desta inspirao pblica, para que possa o
processo exercer a funo de instrumento do Estado para a realizao de suas
finalidades e, em especial, para a concretizao do direito material.
Neste sentido, sustenta a doutrina instrumentalista, no que aqui
identificado como uma retirada de poderes das partes e concentrao na figura do
juiz, que o processo no pode ficar a merc do destino que os contendores
resolvam por bem lhe dar, uma vez que esta situao pode ensejar violao da
isonomia das partes, com prevalncia de uma, mais forte, sobre a outra, o que
revelaria, segundo se afirma, uma completa deturpao do exerccio da jurisdio,
atividade puramente estatal e pblica, por excelncia. Da a autorizao para
interveno judicial, minimizando o valor da autonomia da vontade dos litigantes
no processo.
Trata-se, assim, da alegada necessidade de se redimensionar o
valor do impulso oficial, incrementando-o (tendncia observada na prtica
judiciria do pas) e de uma mitigao, quando menos, do princpio da
disponibilidade processual, como formas eficazes de atender a esse movimento
de publicizao do processo e da prestao jurisdicional, orientao metodolgica
que deita suas razes no direito processual constitucional que, inspirado na Carta
da Repblica, trata o processo, repita-se, como instrumento no propriamente (e
apenas) da jurisdio, mas dos valores presentes em toda a ordem jurdica e
social.
Se certo, por um lado, que a viso do interesse pblico a ser
perseguido pelo processo aponta para sua valorizao como instrumento de
atuao do Estado, por outro lado exige, segundo a doutrina instrumentalista: a) a
superao do que comumente chamado de tecnicismos processuais, b) a
necessria prevalncia do princpio inquisitivo sobre o dispositivo e c) a
superao pelo juiz de posturas conservadoras e comodistas quanto sequncia
de atos do processo. Cada um destes aspectos abaixo analisado, de forma
itemizada.
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a) superao de tecnicismos processuais - quanto ao primeiro dos
aspectos, a defendida superao dos tecnicismos representa a negao da tica
do processo como um valor em si mesmo. Prope-se, em decorrncia disto, um
afastamento dos exageros processualsticos, extraindo-se do processo todo o
proveito possvel na busca da consecuo das finalidades do sistema, alm de
dever o instrumento ser apto, sob este ponto de vista, a cumprir integralmente
toda a sua funo scio-poltico-jurdica, atingindo em toda a plenitude os seus
escopos institucionais, tudo de forma a que se alcance a efetividade da jurisdio.
Segundo este enfoque, a tcnica processual muitas vezes se depara
com situaes e exigncias contrapostas que devem ser conciliadas,
especialmente no que toca ao desenvolvimento do processo e dos atos
processuais, havendo a necessidade de transigncias em busca de um escopo
maior, que a efetividade do processo e da prestao jurisdicional.
b) prevalncia do princpio inquisitivo sobre o dispositivo - quanto ao
segundo dos aspectos mencionados, qual seja o significativo incremento do
princpio inquisitivo, ele, conforme defendido pelo instrumentalismo, decorrncia
natural da publicizao do processo. Tratar-se-ia, assim, de um reflexo, no
processo, do crescimento das tarefas assumidas pelo Estado contemporneo
impondo-se, tambm ao Estado-juiz, uma efetiva participao superadora da
inrcia clssica do agente jurisdicional. Assim, o incremento do espao ocupado
pelo princpio inquisitivo, que expansivo e absorvente15, ainda que no se
chegue aos extremos da jurisdio ex officio, representa, segundo se sustenta,
significativa conquista do processo civil moderno, em busca de sua efetividade
jurdica, poltica e social. Devem assim ser alteradas as frmulas tradicionais de
equilbrio entre o princpio dispositivo e o inquisitivo, sobrelevando-se a
importncia at ento dada a este.
c) superao pelo juiz de posturas conservadoras - o terceiro dos
aspectos mencionados quanto publicizao do processo (at como
conseqncia do incremento do princpio inquisitivo) a superao da inrcia e do
15 DINAMARCO, op. cit., p. 341.
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conservadorismo na atividade cotidiana dos juzes, tendo uma vez mais como
fundo, a busca da efetividade16.
Neste sentido, o valor do procedimento seria, em si, relativo,
devendo o juiz ter participao mais efetiva na conduo do processo, tudo com
vistas a fazer valer sua obcecada preocupao com a justia. So os magistrados
os condutores do processo e o sistema no lhes tolera atitudes de espectador17,
sendo certo que, para a efetividade do processo e seu tratamento como coisa do
Estado, o juiz no se pode dispensar de participar efetiva e ativamente da prova e
de todas as etapas do procedimento.
esta, em sntese, a abordagem instrumentalista da atividade que o
juiz deve ter no curso do processo, em decorrncia, repita-se, da publicizao
observada neste e da escalada do princpio inquisitivo, que o convoca a assumir
uma postura proativa ao longo de todas as fases do procedimento, tudo com
vistas consecuo de um bem jurdico maior que a efetividade do processo.
Inequvoco, portanto, sob esta tica, a concentrao de poderes
verificada na conduo do processo, sendo certo que, ainda que no seja
integralmente retirada das partes a iniciativa processual (tendo em vista que o
elemento detonador da jurisdio, o exerccio do direito de ao, ainda depende
da indispensvel iniciativa da parte), passa ela a sofrer forte influncia da
atividade reguladora do juiz em diversos de seus aspectos, como se verifica no
direito probatrio e na observncia (e/ou supresso) de etapas procedimentais.
1.2.2 A viso instrumentalista da atividade judicial na formao do provimento A superao da neutralidade ideolgica e a concentrao de poderes para alm da conduo do processo
Pode-se afirmar, sem sombra de dvidas, que a doutrina
instrumentalista devota grande parte dos problemas por que passou (e passa) o
processo em especial seu atraso na comparao com o direito constitucional e
outros ramos das cincias sociais ao preconceito em considerar-se o direito
processual como uma cincia neutra e o processo como mero instrumento
16 S se pode falar em efetividade do processo se o resultado for socialmente til, proporcionando acesso ordem jurdica justa. BEDAQUE, op. cit., p. 176. 17 DINAMARCO, op. cit., p.339.
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tcnico, tudo a servir, segundo afirmado, de suposto fundamento a posturas e
mentalidades conservadoras.
Atacando frontalmente o mito da neutralidade, sustenta Dinamarco18
que o processo e deve ser influenciado pela ideologia, uma vez que o juiz
membro da sociedade e sua escolhas so escolhas que a prpria sociedade vem
a fazer, atravs dele, no processo, j que este, uma vez liberto de qualquer
ideologia (no sistema de que lei lei, to caro ao positivismo jurdico), acaba por
compactuar com o abuso poltico do direito processual civil. No outro o
entendimento de Jos Roberto Bedaque, para quem o processualista deve
conscientizar-se da natureza tica de sua cincia, reconhecendo a identidade
ideolgica entre processo e direito material.19
A neutralidade , assim, tida como um obstculo s evolues
sociais e polticas, devendo o juiz se libertar deste preconceito conservador,
especialmente porque trabalha-se com Cdigos com estruturas arcaicas (o de
Processo Civil de 1973, mas inspirado no de 1939, do Estado Novo) e, neste
sentido, revela-se o processo civil de ndole burocrtica e formalista como um
entrave prolatao de decises justas.
Prope o instrumentalismo, ento, uma ruptura com os tecnicismos
burocrticos, em uma nova forma de pensar e agir no processo, qual devem
aderir todos os juzes, para que sua atividade jurisdicional adquira a exata
dimenso dos tempos em que a exercem. Da a necessidade de pensar
ideologicamente o processo, uma vez que, no tendo ele objetivos prprios, deve
necessariamente estar merc das mutaes constitucionais, polticas,
econmicas e jurdicas da sociedade.
Na concepo ento sustentada no se pode, portanto, dissociar
ideologia de processo. Ambos devem caminhar juntos, abrindo-se o sistema,
segundo o prudente arbtrio e critrio do magistrado, ao influxos dos princpios e
valores consagrados na ordem poltico-constitucional e no seio da sociedade.
Neste sentido, Artur Csar de Souza, em sua obra A parcialidade
positiva do juiz defende que, para se romperem as barreiras externas que pem
em dvida a factibilidade dos resultados buscados com a deciso proferida no
18 DINAMARCO, op. cit., p. 40 19 BEDAQUE, op. cit., p. 175
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processo, so necessrias medidas que permitam suplantar os fatores
socioeconmicos que interferem na realizao de um processo justo e quo para,
mais adiante, sustentar que, para que se atinja esta evoluo, devem ser
inseridas as conquistas propugnadas pelo modelo legtimo de acesso justia,
cujos princpios ferem gravemente o velho edifcio do processo legal, para torn-
lo mais poroso, funcional, sincero e realista.20
A partir desta premissa, pode-se afirmar que o eixo central da
doutrina instrumentalista do processo representado e no h quanto a isso
qualquer sombra de dvidas na figura do magistrado, em torno do qual devem
girar todos os atos processuais e de cuja sensibilidade deve decorrer a deciso
do caso concreto, o que traz como consequncia a ntida reduo da importncia
do papel a ser desempenhado pelas partes no processo de construo da
deciso. Sobre o tema, uma vez mais, a posio enftica de Cndido Dinamarco21
sobre o tema:
Deve ser reconhecido poder aos juzes, guardies fiel da constituio e responsveis por sua interpretao fiel e cumprimento estrito, funcionando como legtimo canal atravs de que o universo axiolgico da sociedade impe as suas presses destinadas a definir e precisar o sentido dos textos, a suprir-lhes eventuais lacunas e a determinar a evoluo do contedo substancial das normas constitucionais.
Ou ainda, na mesma obra e em sequncia: Imbudo dos valores dominantes, o juiz um intrprete qualificado e legitimado a buscar cada um deles, a descobrir-lhes o significado e a julgar os casos concretos na conformidade dos resultados dessa busca e interpretao.(...) Por isso que, quando os tribunais interpretam a Constituio ou a lei, eles somente canalizam a vontade dominante, ou seja, a sntese das opes axiolgicas da nao.
Defende o instrumentalismo processual, assim, que o juiz deve
superar as barreiras da viso interna e limitativa do processo e abrir os olhos ao
que ocorre para alm dos autos, pesquisando e colhendo da vida poltica e social
os valores majoritariamente aceitos. a jurisdio, como manifestao do Estado
Social Contemporneo buscando a reduo ou eliminao das diferenas
20 SOUZA, Artur Csar. A parcialidade positiva do juiz. So Paulo: RT, 2008, p. 217-218. 21 DINAMARCO, op. cit., p. 46
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econmicas e sociais e atribuindo ao valor justia um contedo efetivo e
substancial.
Segundo esta mesma concepo, do magistrado no se deve
esperar estrita vinculao lei. Elas envelhecem e podem at mesmo ser mal
feitas. As leis representam, quando muito, um norte indicativo do que determinado
grupo social entendeu como justo, em determinada fase de sua evoluo. Porm,
no deve o juiz pautar-se somente por ela, mas sim adotar uma postura de
abertura s mutaes axiolgicas verificadas na sociedade (interpretao
sociolgica/axiolgica), valendo-se de boa dose de sensibilidade. Do contrrio,
estar perigosamente se afastando dos critrios de justia reinantes na
comunidade onde est inserido.
H assim a defesa da tese de que o juiz deve dispor-se a pensar
como mandam os tempos, de modo a que tenha a exata noo dos objetivos de
todo o sistema e, para que possam os mesmos ser alcanados, deve ser
intensamente usado o instrumento processual. Um novo mtodo de pensamento,
enfim, de modo a se tomar o processo a partir de sua facete teleolgica,
reconhecendo-se sua misso fundamental diante das instituies polticas e da
sociedade.
Nos exatos termos utilizados pelo ilustre professor paulista22: preciso que o juiz valore situaes e fatos trazidos a julgamento de acordo com os reais sentimentos de justia correntes na sociedade de que faz parte e dos quais ele legtimo canal de comunicao com as situaes concretas deduzidas em juzo. (...) Sempre que os textos comportem mais de uma interpretao razovel, dever do juiz optar pela que melhor satisfaa ao sentimento social de justia do qual portador (ainda que as palavras da lei ou a mens legislatoris possam insinuar soluo diferente). Ele h de interpretar a prova e os fatos, tambm por esse mesmo critrio.
Busca a doutrina instrumentalista, ao fim e ao cabo, a superao do
positivismo deducionista, onde o processo se abre para os influxos de valores que
no esto expressamente contemplados na lei. No se trata, portanto, de uma
simples proposta de interpretao sistemtica, mas sim de uma nova viso que,
sem chegar ao nvel do direito alternativo, busca trazer para dentro do processo
22 DINAMARCO, op. cit., p. 378.
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solues no expressamente previstas na lei, de modo a torn-lo socialmente til
e efetivo instrumento do direito material.
1.2.3 Os acertos e os erros do instrumentalismo uma viso pragmtica
Se certo afirmar-se, por um lado, que o discurso central da
doutrina instrumentalista girava inicialmente em torno da proposio de que no
fossem priorizadas as regras processuais em detrimento do direito material, por
outro lado necessrio que se apontem os graves desvios observados em sua
aplicao prtica, corrigindo-se o seu curso e retornando-se rota inicialmente
traada.
Assim, foroso reconhecer que a doutrina instrumentalista
atravs de seus dignos representantes por todo o pas acertou em muitos e
significativos pontos, dentre os quais se pode apontar, em perspectiva histrica, o
resgate do processo do mundo ideal e distanciado da realidade em que vivia,
transformando-o em efetivo instrumento de atuao do direito material, atravs da
superao de tecnicismos e formalidades que o tornavam extremamente
burocrtico, a ponto de frustrar as legtimas expectativas de quem dele
pretendesse se socorrer.
A perspectiva iniciada pela doutrina instrumentalista trouxe,
correto afirmar, um novo enfoque sobre a prestao jurisdicional e o sobre o
modo se produzi-la, colocando o direito material no seu devido lugar de destaque
e municiando o processo judicial de meios necessrios a que se tornasse efetivo.
Seu valor, portanto, inegvel.
No mesmo sentido, pode-se dizer que esta vertente de pensamento
acerca do direito processual vai ao encontro da nova frmula de aplicao do
Direito que teve significativo desenvolvimento a partir da Constituio da
Repblica de 1988, qual seja a vasta utilizao de princpios gerais e de normas
abertas, que deveriam, no caso concreto, sofrer a aplicao interpretativa e
integrativa do juiz, na busca da soluo mais justa para o conflito de interesse.
Em suma, os mritos da doutrina instrumentalista so muitos e
devem ser reconhecidos, sob pena de se cometer profunda injustia, a partir de
uma viso maniquesta de suas proposies e dos resultados de sua
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implementao, sendo certo que iniquidade corriqueira e j identificada a
atribuio ao instrumentalismo de absoluta responsabilidade (como se fosse um
seu embrio) pelo crescente ativismo judicial ou como eventual pano de fundo
para o direito livre, como se, em algum momento ou por algum de seus
defensores, tivesse sido sustentada a possibilidade de o juiz julgar contra a lei ou
to-somente de acordo com a sua conscincia do que seja justo. A imputao, ao
menos quanto a esta correlao equivocada, no parece ser de todo justa23.
Ocorre que, por outro lado, tambm no se pode ignorar os
equvocos e desvios de sua aplicao prtica, presumivelmente no imaginados
pelos estudiosos e defensores daquela escola quando da formulao de suas
propostas. O principal deles, para efeito que se pretende sustentar ao longo do
presente estudo, a sensvel concentrao de poderes nas mos do magistrado
e uma correlacionada diminuio da atuao das partes no processo de produo
da deciso judicial.
Ao colocar o magistrado como centro em torno do qual devem
gravitar todos os atos do processo e lhe atribuir o papel de meio de corporificao
dos valores reinantes em uma determinada sociedade, a doutrina instrumentalista
acaba por criar uma noo, se no equivocada ao menos indesejvel, de que o
juiz o protagonista nico da relao processual, devendo as partes estarem
sempre a reboque, olvidando-se, neste contexto, que o processo visa
composio do conflito em que elas mesmas se encontram envolvidas, que a
deciso a ser proferida ir produzir efeitos na sua esfera jurdica de interesses e
que a primeira fase do processo civil era exatamente a de um processo de
partes, que dele poderiam dispor. Por certo que no se pretende, aqui, sustentar
a volta a esta primeira fase e dar as costas a tudo que j se reconheceu como
verdadeira e legtima evoluo, mas sim a indicao de que o protagonismo
judicial absoluto, acaba por reduzir drasticamente o papel das partes no processo
civil, em situao absolutamente anti-isonmica.
23 A liberdade do juiz encontra limite nos ditames da lei e dizer que esta precisa ser interpretada teleologicamente para fazer justia e que o juiz direciona sua interpretao pelos influxos da escala axiolgica da sociedade no significa postular por algo que se aproxime da escola do direito livre. No seria correto imputar esse exagero ao pensamento instrumentalista.(...) Eventuais exageros dos operadores do sistema processual sejam debitados a eles e no ao instrumentalismo. (DINAMARCO, op. cit., p. 379)
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A questo torna-se especialmente relevante quando se observa o
papel que o Estado-juiz passou a desempenhar na sociedade contempornea
onde, diante da ineficincia de diversos setores da atividade estatal, passou-se a
buscar o judicirio como provedor de instrumentos de exerccio de cidadania que
o executivo revelou-se incapaz de fornecer atravs de polticas pblicas
adequadas e efetivamente comprometidas com o desenvolvimento social. Todo
este contexto acabou por permitir a atribuio ftica, diga-se de um papel
muito particular ao Judicirio, postulando-se a implementao de igualdade social
atravs do juiz e no no mbito da democracia direta ou representativa.
Neste quadro que se revela o poder que hoje atribudo ao juiz,
instado que a tratar de questes que, por certo, competiriam a outros poderes
institudos, substituindo-se o exerccio direto de cidadania no mbito de uma
sociedade democrtica, por prestao jurisdicional via processo judicial.
Na mesma linha do que aqui se sustenta, quanto ao crescimento da
importncia do papel desempenhado pelo juiz, as palavras de um de seus mais
dignos representantes, o prof. Jos Renato Nalini, para quem24:
Aceitar a plenitude da funo interpretativa do juiz implica conceder a ele larga margem de liberdade na indagao do sentido da norma. Se isso j era admitido quando se pressupunha prevalncia do legislativo, como emissor da vontade geral, inverteu-se o plo de relevncia quando o parlamento s produz leis de circunstncias. A volpia na produo de normatividade por um poder que no deveria faz-lo o Executivo e a transformao do parlamento em cartrio de homologao de interesses localizados, sobrecarregou o juiz de responsabilidades (...) A lei contempornea algo imperfeito e a nica possibilidade de vir a ser aplicada sem causar injustias o intelecto do juiz. Ele ir decodific-la, complet-la, aperfeio-la, tirar dela o sentido possvel. (NALINI, 2001, p. 267-269)
Porm, as omisses verificadas em determinado Poder da Repblica
no podem autorizar, em um Estado Democrtico de Direito, que outro Poder
constitudo lhe faa as vezes, invadindo suas atribuies. Neste sentido, as notas
esclarecedoras de Antoine Garapon25:
O espao simblico da democracia emigra silenciosamente do Estado para a Justia. Em um sistema provedor, o Estado todo-poderoso e pode tudo preencher, corrigir, tudo suprir. Por isso, diante de suas falhas, a esperana se volta para a justia. ento nela (...) que se
24 NALINI, Jos Renato. A rebelio da toga. Campinas: Milenium, 2001. p. 267-269. 25 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 47-48.
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busca a consagrao da ao poltica. (...)A posio de um terceiro imparcial compensa o dficit democrtico de uma deciso poltica agora voltada para a gesto e fornece sociedade a referncia simblica que a representao nacional lhe oferece cada vez menos. O juiz chamado a socorrer uma democracia na qual um legislativo e um executivo enfraquecidos, obcecados por fracassos eleitorais contnuos, ocupados apenas com questes de curto prazo, refns do receio e seduzidos pela mdia, esforam-se em governar, no dia-a-dia, indiferentes e exigentes, preocupados com suas vidas particulares, mas esperando do poltico aquilo que ele no sabe dar: uma moral, um grande projeto. (...) , portanto, a, na evoluo do imaginrio democrtico, que se devem buscar as razes profundas da asceno do juiz. (grifos atuais)
Assim que, se na concepo clssica e simplista de processo
judicial com simples soluo de conflito intersubjetivos j se vislumbrava a
necessidade de superao do isolamento do juiz protagonista, com muito mais
razo a premncia pela mudana de paradigma se faz presente diante desta nova
situao, tendo em vista os papis faticamente incorporados pelo magistrado na
moderna estrutura da prestao jurisdicional.
No se pode mais, sob qualquer argumento, desprezar a efetiva
participao das partes (e seus advogados) na formao do provimento, em prol
de um protagonismo judicial absoluto e excludente, sob pena de retirar-se a
legitimidade da deciso proferida. Nas palavras de Dierle Nunes26:
a degenerao de um processo governado e dirigido solitariamente pelo juiz, (...), gerar claros dficits de legitimidade, que impediro uma real democratizao do processo, que pressupe uma interdependncia entre os sujeitos processuais, uma co-responsabilidade entre estes e, especialmente, um policentrismo processual.
O modelo estrutural de um processo que se pretende democrtico
no pode mais se sustentar em torno de uma nica pessoa, a quem se outorgam
todos os poderes de, unilateralmente, decidir sobre o que bom para todos. O
processo e a prestao jurisdicional precisam de uma nova atitude, sendo certo
que eventual deciso que apele apenas e to-somente para o sentimento, a
conscincia, o convencimento, o prudente arbtrio do juiz no contemplar o
paradigma democrtico do direito, fundamental legitimao das decises
judiciais.
26 NUNES, Dierle Jos Coelho. Processo jurisdicional democrtico. Curitiba: Juru, 2008, p. 194.
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No se pretende, conforme salientado, nem o retorno ao primeiro
modelo de processo, que era o do processo de partes, nem a fase social do
processo, do juiz inquisitor, que dispe do processo para fazer jurisdio, mas sim
um processo judicial efetivamente democrtico, com a realce importncia do
princpio consititucional do contraditrio, com a indispensvel anlise criteriosa
dos argumentos apresentados pelas partes e com uma razovel prestao de
contas, pelo rgo judicial, acerca da deciso proferida.
A sobrevalorizao do papel do magistrado na estrutura organizacional do
Estado no autoriza mais que a deciso seja um ato unilateral, exigindo-se, mais
do que nunca, uma efetiva fundamentao, clara e objetiva, das decises e
principalmente para efeito do que abordado no presente estudo a necessidade
de se abrir o processo judicial para o espao dialgico, possibilitando-se s partes
a apresentao de seus argumentos, observando-se a estrutura dialtica do
processo e assegurando-se a ampla defesa, restando assim como absolutamente
excepcionais as hipteses em que a situao ftica de urgncia ou de possvel
ineficcia da deciso autorize a sua superao.
Argumentos de celeridade processual, de efetividade da jurisdio e de
necessidade de se observar o princpio constitucional da durao razovel do
processo no autorizam que se faa tbula rasa de outros tantos princpios e
direitos fundamentais, como o direito de ao (e de obter uma resposta
fundamentada do Estado ao exerccio deste direito) e o direito ao devido processo
legal, sem que isso represente a defesa intransigente de uma dilao meramente
procrastinatria do processo. Sobre a questo, torna-se imprescindviel a
abordagem da busca incessante da celeridade como nico critrio para aferio
da efetividade do sistema de prestao jurisdicional, tema investigado no tpico
seguinte.
1.3 O superdimensionamento da celeridade processual e a consequente reduo da atividade das partes
Apresentadas que foram as consideraes acerca da diminuio da
participao das partes no processo judicial por fora de uma concentrao de
atividades na figura do juiz, cumpre que se investigue uma outra (e
correlacionada) fonte de esvaziamento da importncia das mesmas no processo
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de prestao jurisdicional, qual seja, a busca desenfreada pela celeridade
processual, que acaba por sobrepor-se, em determinadas situaes especficas,
direitos fundamentais previstos na Carta da Repblica.
Como exemplos de situaes concretas daquilo que aqui afirmado,
citam-se as reformas processuais havidas no Cdigo de Processo Civil desde o
ano de 1992, em movimentos cclicos que tiveram como objetivo fundamental a
to propalada efetividade do processo, atravs da atribuio de celeridade
prestao jurisdicional, sendo certo que, sob este ponto de vista, clere o
processo que chega a seu termo o mais rapidamente possvel,
independentemente do contedo e da qualidade do que vem a ser decidido.
Para tanto, utilizou-se o legislador reformista de diversos
instrumentos para que o procedimento fosse encerrado com a maior brevidade,
tais como a supresso de formalidades tidas por suprfluas, decises de primeira
instncia vinculativas (art 285-A do CPC), smulas impeditivas de recursos e
enunciados vinculativos de jurisprudncia, sem que muitas vezes se oportunize
partes a possibilidade de demonstrar que sua situao no se enquadra
exatamente no paradigma (o distinguish do direito norte-americano), bem como
dispensas de audincia, ou ainda a concesso de tutelas de urgncia ou de
evidncia sem que se trate exatamente de uma ou de outra hiptese e sem se
oportunizar o contraditrio, indispensvel em muitas situaes concretas.
Se por um lado se pode afirmar que a celeridade uma necessidade
para a realidade da justia, assoberbada com a quantidade descomunal de
demandas que lhe so submetidas diuturnamente, com a falta de infra-estrutura e
de pessoal adequado para dar conta da superabundncia de processos
instaurados, por outro lado necessrio que se reconhea que a celeridade no
pode se suplantar como princpio essencial a nortear toda a atividade estatal de
soluo dos conflitos de interesse, em detrimento de qualquer outro que se lhe
oponha. De outra forma, se reconhecido, por um lado, que prestao
jurisdicional tardia (e eventualmente ineficaz) corresponde odiosa situao de
negativa de jurisdio, por outro lado a prestao jurisdicional aodada,
precipitada e sem a observncia de princpios constitucionais tambm
corresponder negativa de jurisdio, sendo certo que o nico elemento a
diferenci-las ser o tempo decorrido at que a negativa reste configurada.
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Sobre o tema, as sempre pertinentes lies de Barbosa Moreira:
Para muita gente, na matria, a rapidez constitui o valor por excelncia, qui o nico. Seria fcil invocar aqui um rol de citaes de autores famosos, apostados em estigmatizar a morosidade processual. No deixam de ter razo, sem que isso implique nem mesmo, quero crer, no pensamento desses prprios autores hierarquizao rgida que no reconhea como imprescindvel, aqui e ali, ceder o passo a outros valores. Se uma Justia lenta demais decerto uma Justia m, da no se segue que uma Justia rpida seja necessariamente uma Justia boa. O que todos devemos querer que a prestao jurisdicional venha a ser melhor do que . Se para torn-la melhor preciso aceler-la, muito bem: no, contudo, a qualquer preo.27
Alertando sobre os efeitos negativos da busca cega pela celeridade,
apresenta-se observao lapidar feita por Calmon de Passos que, analisando as
reformas por que passou (e vem passando) o Cdigo de Processo Civil, com
vistas a reduzir a quantidade acachapante de aes que assoberbam o Poder
Judicirio, assim advertiu:
A pergunta que cumpria fosse feita quais as causas reais dessa crise jamais foi formulada. Apenas de indagava o que fazer para nos libertarmos da pletora de feitos e de recursos que nos sufoca? E a resposta foi dada pela palavra mgica instrumentalidade, a que se casaram outras palavras mgicas celeridade, efetividade, deformalizao etc. E assim, de palavra mgica em palavra mgica, ingressamos num processo de produo do direito que corre o risco de se tornar pura prestidigitao. No nos esqueamos, entretanto, que todo espetculo de mgica tem um tempo de durao e de desencantamento.28
As palavras do eminente processualista baiano parecem resumir o
tanto de frustrao de expectativas, se assim possvel se afirmar, que decorre
da viso que norteou o legislador na reforma das normas processuais. Ao que
parece, buscou-se a rapidez como panaceia para todos os males da jurisdio e
do processo, mas no pareceu o legislador se preocupar em momento algum com
tornar justa a prestao jurisdicional.
A efetividade buscada est ligada assim, no mais das vezes, a uma
rpida e menos onerosa soluo para o litgio (que se revela muitas vezes
aodada) e ao fiel cumprimento das sentenas judiciais. Se o sistema apresenta
27 BARBOSA MOREIRA, op. cit., p. 5. 28 CALMON DE PASSOS, Jos Joaquim. Instrumentalidade do processo e devido processo legal in REPRO n. 102. So Paulo: RT, 2001, p. 20.
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respostas cleres e se h instrumentos eficazes para que as decises produzam
efeitos de imediato, estar comprovada a sua utilidade.
Porm, a sobrevalorizao de elementos como celeridade,
economia, operacionalidade, concentrao de poderes no magistrado e
diminuio da participao dos litigantes no procedimento acabou por trazer,
como conseqncia, questionamentos de toda ordem acerca da legitimidade do
processo estatal de soluo de conflitos.
Em outro passo, sob o manto da celeridade, exige-se dos juzes o
atendimento a estatsticas que o tornam refns de um sistema de resultados
numricos que pode, em casos excepcionais, aviltar a prpria dignidade de sua
nobilssima atividade, sendo certo que as metas do Poder Judicirio, cada vez
mais ousadas, no levam em conta a qualidade das decises, o contedo jurdico
nelas versado e muito menos a sua efetiva aptido para solucionar o litgio, o
conflito social surgido entre as partes, que muitas vezes h de continuar reinando
entre as mesmas, s que agora fora do processo estatal e com o manto
acolhedor da coisa julgada a coadunar o interesse de um deles.
A viso estratgica do processo, se levada a extremos como se
vem observando, pode conduzir at mesmo retirada da dialtica nsita ao
processo, colocando autor e ru merc da ordem jurdico-poltica, sendo em
funo dela criadas praticamente todas as novas ferramentas previstas em
reformas recentes, de que se pode valer o juiz, conforme j relatado, na busca da
efetividade: sentenas com fora vinculativa (art. 285-A do CPC), antecipaes de
tutela sem ouvir a parte contrria fora dos casos onde estritamente necessria,
proibio de interposio de recursos por fora de decises anteriores, juizados
especiais como forma de permitir o acesso justia, porm mascarando a
inexistncia do direito justa prestao jurisdicional, as smulas, persuasivas ou
vinculantes, a impedir o debate intraprocessual e a sua conseqente criao da
jurisdio por atacado etc. O que passa a valer, de verdade, a velocidade na
obteno da soluo judicial; o que parece importar ao Estado, na ordem de
valores que se pretende implementar, que o Judicirio seja apto a conceder ao
jurisdicionado uma resposta clere, seja ela qual for, tenha ela o contedo que
tiver, desde que, repita-se, seja rpida.
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Como ilustrao do que aqui sustentado, apresenta-se trecho do
voto proferido pelo Min. Celso de Mello, do E. Supremo Tribunal Federal29, em
deciso proferida no Agravo de Instrumento 660.657/MG30:
Com efeito, no se negou parte recorrente, o direito prestao jurisdicional do Estado. Este, bem ou mal, apreciou, por intermdio de rgos judicirios competentes, o litgio que lhe foi submetido. preciso ter presente que a prestao jurisdicional, ainda que errnea, incompleta ou insatisfatria, no deixa de configurar-se como resposta efetiva do Estado-Juiz invocao, pela parte interessada, da tutela jurisdicional do Poder Pblico, circunstncia que afasta a alegada ofensa a quanto prescreve o art. 5., XXXV, da Carta Poltica, consoante tem enfatizado o magistrio jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal.(grifos atuais)
Assim, embora se reconhea que nossa lei processual apresenta,
apesar das reformas havidas, resqucios de formalismos desnecessrios e ainda
que se identifique a busca da celeridade como um elemento importante na
moderna jurisdio (at mesmo para a sobrevivncia do sistema), por outro lado
imprescindvel, em determinadas situaes, que venha ela a ceder em prol de
outros valores de igual dignidade ou superior, como o direito fundamental ao
contraditrio e ampla defesa, muitas vezes indevidamente abreviados pela
busca da rapidez a qualquer preo.
No se prope aqui, por certo, a pura e simples eliminao de
medidas judiciais como as liminares sem oitiva da parte contrria, que se revelam
efetivamente necessrias (e at mesmo imprescindveis) em determinados casos,
mas sim que, com o respeito e observncia a estas situaes (que devem se
apresentar como excepcionais), modifiquem-se os paradigmas procedimentais
para que os espaos de atuao dos sujeitos parciais do processo sejam
incrementados e que a deciso possa ser fruto deste procedimento realizado sob
o manto do contraditrio.
Sobre a necessidade de abertura do sistema participao dos
envolvidos que tratar o captulo seguinte, investigando-se as teses construdas
29 Observe-se que no se trata de deciso proferida por juiz singular, que tenha atuao em primeiro grau de jurisdio, o que j seria por si s desaconselhvel. Ao revs, trata-se de deciso advinda de magistrado da mais alta corte do pas... 30 A referncia transcrita do artigo A instrumentalidade tcnica do processo, de Welington Luzia Teixeira, publicado na RBDPro Revista brasileira de direito processual no. 60, p. 64, uma vez que no se encontra disponibilizado seu contedo quer no stio do tribunal, quer em publicao impressa.
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a este respeito e que defendem a imprescindibilidade de uma atuao efetiva dos
interessados, no s no contexto mais amplo de deliberao social, mas principal
e fundamentalmente no processo estatal de prestao jurisdicional.
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2 A MITIGAO DO PROTAGONISMO JUDICIAL FUNDAMENTOS TERICOS PARA O INCREMENTO DAS ATIVIDADES DAS PARTES NO PROCESSO
A busca de alternativas ao modelo clssico de processo,
tradicionalmente centrado na figura do magistrado (conforme observado no cap. 1
da presente), passa pela investigao histrica acerca de teorias que, no Direito
ou em outras reas das cincias sociais aplicadas, sustentam a necessidade de
criao de um espao dialogal de deliberao, onde os argumentos de cada
uma das partes envolvidas no conflito sejam efetivamente levados em
considerao e a soluo possa, em decorrncia disto, chegar o mais perto
possvel da ideal.
Com esta finalidade, o presente captulo vai trabalhar com trs
bases tericas onde estas propostas surgem com maior ou menor intensidade: a
tica do discurso de Habermas, o modelo cooperativo de processo, e a idia de
processo judicial democrtico.
Assim, num primeiro momento (item 2.1), sero utilizadas como
elemento de anlise fontes doutrinrias de origem filosfica e sociolgica,
fundamentalmente o estudo das teorias expostas por Jrgen Habermas e de seu
paradigma procedimentalista do Direito, buscando-se alcanar uma alternativa
para a aplicao, tanto quanto possvel, de sua tica (/teoria) do discurso e de sua
situao ideal de fala ao processo judicial brasileiro.
Em tpico posterior (item 2.2), a investigao concentra-se
especificamente na seara do direito processual civil, sendo ento analisada a
ideia de colaborao processual (modelo cooperativo de processo), cujas bases
remontam ao formalismo-valorativo, de Carlos Alvaro de Oliveira e a proposta de
criao de um novo modelo de prestao jurisdicional onde o debate
endoprocessual assume lugar de destaque, via o reforo da importncia do papel
a ser desempenhado pelo princpio do contraditrio. Concluindo esta segunda
abordagem, restam ento criadas as bases para, no ltimo tpico (item 2.3),
serem trabalhadas as linhas mestras do chamado processo jurisdicional
democrtico, analisando-se, nesta oportunidade, as propostas apresentadas por
esta vertente doutrinria para uma efetiva e significativa mudana estrutural na
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prestao jurisdicional, especialmente no que toca diviso de trabalho e de
responsabilidades entre as partes e o magistrado.
Conforme restar observado, tudo o que desenvolvido no presente
captulo tem a finalidade, certo, de trazer a lume os fundamentos para uma
pretendida alterao de paradigmas em relao ao que foi apresentado no
captulo anterior, onde trabalhou-se precisamente a ideia de um processo
centrado na figura do juiz. Aqui, num ntido movimento de contraposio
ideolgica, busca-se apontar, com base nos elementos apresentados na literatura
filosfica e jurdica, a necessidade de um maior e mais intenso envolvimento de
autor e ru no processo de formao da deciso judicial. Esta a reivindicao
presente nas teses que sero adiante analisadas.
Uma ltima observao de carter introdutrio h de ser feita: a
afirmao de que a moderna prestao jurisdicional demanda uma maior
participao das partes no significa, em absoluto, o menosprezo ao trabalho
desenvolvido pelo rgo judicial, sendo certo que no se vai sustentar, por bvio,
em nenhuma das teorias investigadas, uma reduo drstica (ou mesmo
eliminao) da relevante atividade do magistrado no processo, postulando-se um
inimaginvel retorno ao processo liberal, onde cabia ao juiz apenas a observao
formal das regras do jogo. O que defendem estas teorias, muito ao contrrio, a
mitigao, a atenuao do protagonismo judicial, quando se revele exacerbado,
atravs de uma maior distribuio de responsabilidades entre o rgo judicial e as
partes no processo de formao da deciso e a transformao, no limite do
possvel, do processo judicial em um espao dialogal, de comparticipao e de
co-responsabilidade pelo resultado final obtido.
Esta, portanto, a pedra de toque do presente captulo.
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2.1 A abertura do sistema a partir de uma perspectiva filosfica a razo comunicativa e a tica do discurso de Jrgen Habermas: limites e possibilidades de sua aplicao ao processo judicial brasileiro
As correntes doutrinrias que, no direito brasileiro, sustentam a
necessidade de uma mudana de paradigmas na prestao jurisdicional, para que
haja uma abertura do sistema a uma maior participao e envolvimento das
partes parecem apresentar, em maior ou menor escala, de forma declarada ou
velada, uma origem comum: a razo comunicativa e a tica do discurso de Jrgen
Habermas. Da a necessidade premente de trazer lume os conceitos lanados
pelo filsofo alemo.
Uma advertncia inicial, porm, deve ser feita: qualquer tentativa de
transposio in natura da doutrina de Habermas ou de suas concluses ao
processo judicial brasileiro se revelar ingnua e pouco sria, se no forem
efetivamente consideradas as diferenas histricas, culturais e sociais entre o
ambiente para o qual o filsofo escrevia e a realidade brasileira. Assim, adiante-se
que a pretenso aqui no , por certo, uma simples transferncia de suas teses e
sua imediata insero no Direito brasileiro, como se fosse possvel a abduo da
experincia de um pas e sua mecnica aplicao a outros, como apangio para
os males de que venham estes a padecer (especialmente no caso concreto, onde
se encontram envolvidos pases to diferentes como Brasil e Alemanha, a
experincia poderia se revelar trgica). Muito ao contrrio, o que se pretende no
presente captulo , em verdade, proceder-se a uma investigao do que
apresentado pelo autor alemo como situao ideal e, a partir da e na medida em
que a experincia brasileira comportar, buscar a sua aplicao possvel.
Com a fixao destas premissas, esclarecedoras do que se
pretende levar a efeito neste dilogo com fontes de origem filosfica, pode-se
afirmar que o desenvolvimento da doutrina de Habermas vai levar
transformao do locus processual em um ambiente ideal de fala (ou ao menos a
busca deste ideal), onde seja propiciado s partes o dilogo efetivo, a tentativa
compromissada da busca pelo entendimento e, de modo muito particular, que
sejam levadas em considerao pelo juiz as perspectivas e as pretenses de
cada uma das partes, exercendo o magistrado um papel fundamental de
fomentador e arranjador deste debate.
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Com efeito, a razo comunicativa de Habermas e a aplicao de sua
viso procedimentalista ao processo criam um ambiente democrtico e mais
propcio para a tomada da deciso pelo juiz, que no ser, assim, uma escolha
alheia e descomprometida com o debate processual argumentativo, mas um
provimento verdadeiramente oriundo do contraditrio, com ampla defesa exercida
pelas partes, respeitando-se a isonomia e dando-se nfase linguagem e
necessidade de fundamentao (mais do que isso, a justificao), de sua
deciso.31
Neste sentido, conforme sustenta o prprio Habermas, em seu
ensaio Correo versus verdade. O sentido da validade deontolgica de juzos e
normas morais, a neutralidade do juiz em relao s partes insuficiente. A
fundamentao exige que tomem parte da deciso todos os que sejam
potencialmente envolvidos, para que no haja mais a separao entre um terceiro
privilegiado e as partes sob conflito. A noo de legitimidade que apenas estar
presente com o reconhecimento de normas igualmente boas para todos,
somente pode ser satisfeita atravs de uma atividade que, nas condies de
incluso de todas as pessoas potencialmente envolvidas, seja asseguradora da
imparcialidade no sentido de considerao igual de todos os interesses afetados.32
Afirma-se, assim, que a teoria discursiva de Habermas toca o
modelo constitucional de processo atravs de um agir proativo e participativo que
se passa a exigir na construo das decises judiciais em um ambiente
democrtico. Da o porqu da utilizao de sua doutrina como fonte para o que
sustentam as teorias aqui analisadas.
2.1.1 O paradigma procedimentalista de Jrgen Habermas como instrumento de mitigao do protagonismo judicial
Uma anlise que se pretenda adequada da doutrina de Jrgen
Habermas carece de algumas consideraes iniciais, especialmente no que se
31 ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Loureno da. Para um processo penal democrtico. Crtica da metstase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.85. 32 HABERMAS, Jrgen. Correo versus verdade. O sentido da validade deontolgica de juzos e normas morais in Verdade e Justificao. Ensaios Filosficos. So Paulo: Loyola, 2004, p. 298.
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refere ao intenso debate que envolve procedimentalismo x substancialismo.
Assim, pode-se afirmar que vem de longa data as divergncias entre as
concepes substancialistas e procedimentalistas do Direito, da prpria
Constituio e, em ltima anlise, tambm do processo de prestao jurisdicional
e dos limites da atuao judicial, com de