caso dora- transferencia

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23 A transferência na histeria – Um estudo no “caso Dora” de Freud Sérgio de Gouvêa Franco Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, n o 132, 23-33 O trabalho examina a transferência da paciente e do analista no caso Dora de Freud, tomando como apoio o artigo “Intervenção sobre a transferência” de Lacan. A análise avança quando Freud interpreta a resistência de Dora. A análi- se pára quando tem dificuldade de reconhecer os complexos mecanismos de iden- tificação histéricos que vacilam entre uma bipolaridade sexual (hetero e homoerótica) – aí a resistência do analista. Palavras-chave: Transferência, histeria, Dora, Lacan, feminilidade The article examines the transference of patient and analyst on Dora’s case of Freud, using the Lacan’s article Intervention on Transference as a support. The analysis goes on when Freud is able to interpret Dora’s resistance. But analysis stops when he fails to recognize the complex mechanisms of identification on hysteria, which hesitate between two sexual poles (hetero and homoerotic ones) – there we can see the analyst resistance. Key words: Transference, hysteria, Dora, Lacan, femininity

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A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 23

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A transferência na histeria – Um estudono “caso Dora” de Freud

Sérgio de Gouvêa Franco

Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 132, 23-33

O trabalho examina a transferência da paciente e do analista no caso Dora deFreud, tomando como apoio o artigo “Intervenção sobre a transferência” deLacan. A análise avança quando Freud interpreta a resistência de Dora. A análi-se pára quando tem dificuldade de reconhecer os complexos mecanismos de iden-tificação histéricos que vacilam entre uma bipolaridade sexual (hetero ehomoerótica) – aí a resistência do analista.Palavras-chave: Transferência, histeria, Dora, Lacan, feminilidade

The article examines the transference of patient and analyst on Dora’s case ofFreud, using the Lacan’s article Intervention on Transference as a support. Theanalysis goes on when Freud is able to interpret Dora’s resistance. But analysisstops when he fails to recognize the complex mechanisms of identification onhysteria, which hesitate between two sexual poles (hetero and homoerotic ones)– there we can see the analyst resistance.Key words: Transference, hysteria, Dora, Lacan, femininity

24 Pulsional Revista de Psicanálise

Se eu te amo, cuide-se.Joel Birman1

INTRODUÇÃO

Freud atendeu esta moça de apenasdezoito anos, conhecida pelo pseudôni-mo de Dora, apenas três meses: entreoutubro e dezembro de 19002. No iní-cio de 1901 ele escreveu sobre o caso,enquanto escrevia também “Sobre a psi-copatologia da vida cotidiana”, livro quesaiu ainda em 1901. Mas o caso Dorasó foi publicado em 1905, com o título“Fragmento da análise de um caso dehisteria”3. Tudo indica que a demora napublicação se deu para proteger a priva-cidade da paciente. O título original dolivro era “Sonhos e histeria, fragmentode uma análise”. O título abandonadoaponta para o lugar central que a inter-pretação dos dois sonhos do caso ocu-pa no tratamento. De fato, Freud pen-sou o livro como uma continuação deseu fundamental A interpretação dos so-nhos, de 1900. Ele quer mostrar comoos achados do livro sobre os sonhos po-dem ser aplicados na cura da neurose.

1. Título de artigo de Joel Birman (“Se eu te amo, cuide-se – Sobre a feminilidade, a mulher e oerotismo nos anos 80”) em M.T. Berlinck (org.) Histeria.

2. Os biógrafos de Freud confirmam que o atendimento de Dora se deu em 1900, ainda que eletenha se enganado mais de uma vez imaginando que o ano tivesse sido 1899.

3. Bruchstück einer Hysterie-Analyse, em alemão.4. Dora é um dos cinco grandes casos clínicos publicados por Freud, juntamente com Pequeno

Hans, Schreber, Homem dos ratos e Homem dos lobos.5. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 15.6. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 23.7. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 24.

O livro sobre Dora pode ser visto nãoapenas como uma continuação de A in-terpretação dos sonhos, mas tambémcomo uma ponte entre este e os “Trêsensaios sobre a teoria da sexualidade”,de 1905. Muitos conceitos sobre a teo-ria da sexualidade apresentados nos“Três ensaios...” já aparecem no caso Dora:a noção de que a neurose é o reverso daperversão, é um bom exemplo disto.Escrevendo para Fliess em 1901, Freudrefere-se ao caso Dora4 como “a coisamais sutil que já escrevi”5. Ele pareceestar impressionado com a complexida-de que estava aparecendo na sua clíni-ca: descobre “a estrutura mais fina daneurose”6. Um dos objetivos explícitosdo livro é exatamente “demonstrar aestrutura íntima da doença neurótica”7.Além de mostrar o fino tecido das iden-tificações múltiplas na histeria, o casofez Freud aprofundar conceitos de suateoria da sexualidade e da transferência.Ele já sabia há muito tempo sobre a etio-logia psicossexual da neurose, mas ain-da não tinha reconhecido plenamente a“importância da corrente homossexual

A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 25

nos psiconeuróticos”8. A falta deste re-conhecimento implicou um manejo de-ficiente da transferência que levou, comoo próprio Freud reconhece, ao términoprematuro da análise. Escrevendo paraFliess em 1901 depois do término daanálise, ele fala da importância na histe-ria do conflito “desempenhado pela opo-sição entre uma atração pelos homens eoutra pelas mulheres”9. Esta ambivalên-cia de identificações masculina e femi-nina na histeria, que descobriu em Dora,provocou profundamente o pensamen-to de Freud. Muito tempo depois do tér-mino do tratamento, Freud ainda conti-nua pensando sobre os temas nele en-volvidos10. O presente trabalho tem a in-tenção de iluminar a questão da transfe-rência na histeria a partir do estudo docaso Dora.11

A DUALIDADE TRANSFERENCIAL

Jacques Lacan, em seu artigo “Interven-ção sobre a transferência”, discute aquestão da transferência no caso Dora.Afirma que “a experiência psicanalítica

... se desenrola inteiramente nessa rela-ção sujeito a sujeito”12. A fala do pacien-te se constitui na presença do analista.Não é possível assim pensar o pacientecomo um objeto, como uma coisa comcaracterísticas a serem examinadas porum cientista devidamente distanciado. Apsicanálise permanece como uma rela-ção onde um sujeito está diante de ou-tro sujeito. Paciente e analista relacio-nam-se e mutuamente influenciam-se.Trata-se de um diálogo, de uma dialéti-ca, diz Lacan: “A psicanálise é uma ex-periência dialética, e essa noção deveprevalecer quando se coloca a questãoda natureza da transferência.”13

É no caso Dora que Freud reconhececlaramente que o analista participa datransferência e não só o paciente14. Écom esta experiência que fica claro paraele que sua escuta de Dora determina,ao menos em parte, o que ela vai dizer.Suas atitudes e interpretações podemabrir ou fechar a possibilidade do avan-ço da análise. Freud ainda não tinha tanta

8. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 114, nota 2.9. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 16.10. A prova disto é que Freud faz acréscimos e notas ao seu livro sobre Dora em 1923, mais de

vinte anos após o seu atendimento, especialmente na última seção intitulada de postfácio.11. O trabalho pressupõe o conhecimento da complexa trama analisada por Freud. A descrição

detalhada do caso foi evitada por poder tornar-se enfadonha ou artificial pela exclusão domovimento interno do atendimento. Serge André possui um resumo do historial em um pará-grafo no seu livro O que quer uma mulher?, p. 146.

12. J. Lacan. “Intervenção sobre a transferência” (Pronunciada no Congresso Dito de Psicanalis-tas de Língua Românica, de 1951) in Escritos, p. 88. Vamos tomar o artigo de Lacan como umauxílio para ler Freud.

13. J. Lacan. Op. cit., p. 88.14. J. Lacan. Op. cit., p. 90.

26 Pulsional Revista de Psicanálise

experiência clínica; é com este caso quepercebe o fenômeno dual da transferên-cia. Ele reconhece “as severas exigên-cias que a histeria faz ao médico e aoinvestigador”. Percebe que estas exigên-cias “só podem ser satisfeitas pelo maisdedicado aprofundamento, e não poruma atitude de superioridade e despre-zo”. Por fim cita Goethe: “Nem só aArte e a Ciência/ No trabalho há quemostrar paciência”15. Ele percebe queestá implicado no processo. Com hu-mildade e paciência é que o analista des-cobre em que lugar está colocado pelopaciente ou em que lugar se coloca in-conscientemente.Até este caso, Freud estava acostuma-do a pensar a resistência do lado do pa-ciente. O analista sempre trabalha paralevantar a resistência, pensava ele. A par-tir de Dora, percebe que a resistênciapode estar do lado do analista também.Ele já sabia que uma relação de con-fiança era necessária para vencer os“sentimentos de timidez e vergonha”16

do paciente de forma que pudesse falartudo o que tem na consciência. Ele sa-bia que a interpretação do analista eranecessária para trazer à tona o materialinconsciente e recompor as lacunas dememória. Mas Freud pensava até aquique o analista sempre ajudava a análise.A esta época, no entanto, ele percebe

que o analista pode atrapalhar. A técnicafica menos diretiva: “... agora deixo queo paciente determine o tema do trabalhocotidiano”17. Dora se tornou tão funda-mental para Freud porque foi com elaque percebeu pela primeira vez que aanálise não avançou por uma limitaçãodo próprio analista, no caso, ele mesmo– Freud.

REVIRAVOLTAS DIALÉTICAS

No já citado artigo de Lacan, o autorfrancês diz ser possível pensar o casoDora por meio de uma série de revira-voltas dialéticas. A interpretação do ana-lista produziria estas reviravoltas no re-lato do paciente. Dora conta que a Sra. K.e seu pai são amantes há muitos anos edissimulam o relacionamento com ficçõesque beiram o ridículo. O terrível, anun-cia Dora, é que deste modo ela fica su-jeita às insinuações do Sr. K. Seu pai fe-cha os olhos para evitar chamar atençãosobre seu próprio relacionamento com aSra. K. Dora seria uma espécie de moe-da de troca que compra o silêncio do Sr. K.:

Quando ficava com ânimo mais exaspera-do, impunha-se a ela a concepção de tersido entregue ao Sr. K. como prêmio pelatolerância dele para com as relações entresua mulher e o pai de Dora; e por trás daternura desta pelo pai podia-se pressentirsua fúria por ser usada dessa maneira.18

15. S. Freud. E.S.B., vol. VII, pp. 26 e 27.16. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 28.17. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 23.18. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 42.

A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 27

A primeira reviravolta na fala da pacientese dá quando Freud questiona esta pos-tura de simples vítima de Dora. Não so-mente pelo silêncio, mas pela cumplici-dade direta, Dora sustentara a relaçãodos amantes. Nas palavras de Freud:

[Dora] tornara-se cúmplice desse relacio-namento e repudiara todos os sinais quepudessem mostrar sua verdadeira nature-za... Durante todos os anos anteriores elafizera o possível para favorecer as relaçõesdo pai com a Sra. K. Nunca ia vê-la quan-do suspeitava de que seu pai estivesse lá.Sabia que, neste caso, as crianças seriamafastadas e rumava pelo caminho em queestava certa de encontrá-las, indo passearcom elas.19

Então, Dora sustentava a trama dos re-lacionamentos que permitia os galanteiosdo Sr. K. Ela não é vítima, pelo contrá-rio, desfruta da atenção e presentes doSr. K.Admitido este passo de verdade, é pre-ciso perguntar: por que subitamenteDora teria manifestado este ciúme antea relação amorosa do pai? A segunda re-viravolta dialética se avizinha. Não é ape-nas o ciúme do pai que move Dora. Nãohá dúvida que ela se liga amorosamenteao pai e ao Sr. K., seu substituto psí-quico. Mas o que põe em marcha a açãode Dora, exigindo o fim do relaciona-mento do pai com a Sra. K., é a ligaçãoque tem com ela: “Dora continuava ter-

namente ligada à Sra. K. e não queriasaber de nenhum motivo que fizesse asrelações do pai com ela parecerem in-decentes”20, explica Freud. Elas tinhamuma relação de intimidade: Dora ouvia asconfidências da Sra. K. Sabia o estadodas relações dela com o marido. Dorase identificava também com a Sra. K. noamor por seu pai.

Quando Dora falava sobre a Sra. K, costu-mava elogiar seu “adorável corpo alvo”num tom mais apropriado a um amante doque a uma rival derrotada... Na verdade,devo dizer que nunca ouvi dela uma só pa-lavra áspera ou irada sobre essa mulher,embora, do ponto de vista de seus pensa-mentos hipervalentes, devesse ver nela aprincipal causadora de suas desventuras21,conta Freud.

O fato que desencadeia a ação de Dora,que deixa a moça furiosa, é a descober-ta de que a atenção da Sra. K. por elanão era assim tão grande. De fato, a Sra.K. traíra o segredo de Dora em nomeda preservação do relacionamento como pai de Dora. A Sra. K. conta ao mari-do que Dora lê livros sobre temas se-xuais (Mantegazza). O Sr. K. defende-se, diante do pai de Dora acerca de suainsinuação à Dora, dizendo que alguémque lê livros assim pode muito bem fan-tasiar o episódio de assédio.

A Sra. K. também não a [Dora] amava porela mesma, e sim por causa do pai. Ela a

19. S. Freud. E.S.B., vol. VII, pp. 43 e 44.20. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 44.21. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 65.

28 Pulsional Revista de Psicanálise

havia sacrificado sem um momento de he-sitação para que seu relacionamento como pai de Dora não fosse perturbado. Essaofensa talvez a tenha tocado mais de per-to e tido maior efeito patogênico... Creionão estar errado, portanto, em supor quea seqüência hipervalente de pensamentosde Dora, ... destinava-se não apenas a su-primir seu amor pelo Sr. K., que antes foraconsciente, mas também a ocultar o amorpela Sra. K.22

O que move Dora é o ciúmes da Sra.K. Quando não se vê amada por ela, Doraameaça suicídio e exige que o pai acabeo relacionamento com sua amante.

A REVIRAVOLTA DIALÉTICAQUE FICOU FALTANDO

O que Lacan procura mostrar em seuensaio é que ficou faltando neste trata-mento de Dora uma terceira e última re-viravolta dialética, que Freud não podefazer: “... aquela que nos mostraria o va-lor real do objeto que é a Sra. K, paraDora”23. A Sra. K. se transformou paraDora no mistério de sua própria femini-lidade, mas especificamente no mistériode sua feminilidade corporal.Lacan chega aqui ao que considera ocerne da questão. O problema para todamulher “é no fundo o de se aceitar comoobjeto do desejo do homem”24. É poresta razão que a Sra. K. se torna o mis-

tério da feminilidade para Dora. Ou seja,Dora precisaria da Sra. K. para poderreconhecer a sua própria feminilidade.Como ela não pode se aceitar como ob-jeto de desejo, ela precisa da Sra. K. parasustentar esta posição. Se Freud, emuma terceira reviravolta, tivesse podidoorientar Dora para o reconhecimento doque significava a Sra. K. para ela, ummundo de novas informações sobre orelacionamento das duas poderia ter apa-recido.Freud explica que não pôde apreciar atempo o laço homossexual que unia Doraà Sra. K.:

Quanto mais me vou afastando no tempodo término dessa análise, mais provável meparece que meu erro técnico tenha consis-tido na seguinte omissão: deixei de desco-brir a tempo e de comunicar à doente quea moção amorosa homossexual (ginecofíli-ca) pela Sra. K. era a mais forte das cor-rentes inconscientes de sua vida anímica.Eu deveria ter conjeturado que nenhumaoutra pessoa poderia ser a fonte principaldos conhecimentos de Dora sobre coisassexuais senão a Sra. K., a mesma pessoaque depois a acusara por seu interessenesses assuntos... Antes de reconhecer aimportância da corrente homossexual nospsiconeuróticos, fiquei muitas vezes atra-palhado ou completamente desnorteado notratamento de certos casos.25

22. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 66.23. J. Lacan. Op. cit., p. 93.24. J. Lacan. Op. cit., p. 95.25. S. Freud. E.S.B. vol. VII, p. 114, nota 2.

A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 29

Lacan assevera que esta dificuldade emreconhecer a tendência homossexual en-tre os histéricos se deve a um precon-ceito de Freud. Ele sente simpatia peloSr. K. e atração por Dora. Por ter se co-locado “um pouco demasiadamente nolugar do Sr. K.”26 ficou impedido de vera atração de Dora pela Sra. K. e de inter-pretar esta atração. Por este motivo nar-císico contratransferencial, Freud se vol-ta ao amor que o Sr. K. inspiraria em Dora.O que nem sempre Dora confirma.Lacan pergunta ainda neste seu artigo oque de fato aconteceu na cena do lagoque colocou Dora doente e necessitadade ajuda. A resposta está no próprio tex-to. O Sr. K. teve apenas tempo de dizeralgumas palavras: “Sabe, não tenho nadacom minha mulher”27. Como resposta aestas palavras, Dora lhe dá uma bofeta-da. Deste modo se rompe o feitiço deDora em relação ao Sr. K. Se ele não seinteressa por sua mulher, então Doratambém não se interessa ele. O interes-se de Dora pelo Sr. K. só se sustenta namedida em que ele está ligado à Sra. K.No momento em que ela percebe quenão há ligação real entre ele e sua mu-lher, o triângulo se desfaz.

A TRANSFERÊNCIA DE FREUD

Lacan declara em outro artigo que Freudtentou modelar o ego de Dora28. Ele

achava que Dora deveria se apaixonarpor um homem. A transferência negati-va de Dora (que a levou a interrompero tratamento) deve ser entendida entãocomo uma resposta (raivosa) às dificul-dades impostas ao tratamento pelo pró-prio Freud. Devido ao seu preconceito,Freud não pode ver a ligação de Doracom a Sra. K. Talvez, mais que isto, sejanecessário dizer que o que escapou àcompreensão de Freud foram as identi-ficações masculinas de Dora. O preço apagar por esta falta de percepção foi otérmino abrupto da análise.Se Freud tinha uma transferência comDora que toldou sua percepção, estatransferência deve ser analisada. Doraestá identificada a um personagem mas-culino, o Sr. K., de maneira que ela podefacilmente se identificar com Freud.Freud percebeu o deslocamento pai deDora/Sr. K./o analista Freud, mas ima-ginou que as figuras masculinas eramobjeto de amor e não de identificação.A identificação viril de Dora, cuja ma-triz infantil pode ter sido sua identifica-ção com o irmão mais velho, não teveuma apreensão mais completa da partede Freud.Podemos relacionar o discurso histéri-co de Dora ao desejo de Freud, comoquer Serge Cottet29. A transferência deDora se modula pelo desejo freudiano de

26. J. Lacan. Op. cit., p. 96.27. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 97.28. Em “Os escritos técnicos de Freud”, Seminário I, conforme Serge Cottet em Freud y el deseo

del psicoanalista, p. 41.29. S. Cottet. Freud y el deseo del psicoanalista, p. 43 e sg.

30 Pulsional Revista de Psicanálise

convencê-la a uma relação heterosse-xual. A esta altura da teoria, Freud nãofaz uma distinção clara entre objeto deamor e objeto de identificação. Então aligação que vê entre Dora e Sr. K. re-duz ao amor. Mas a ligação com o Sr. K.é também e primeiramente identificató-ria. Dora se aproxima do Sr. K. para en-tender como um homem deseja uma mu-lher. O erro de Freud foi não percebereste lugar que o Sr. K. ocupava para Dorae transferencialmente o lugar identifica-tório que ele próprio ocupava para ela.A afonia de Dora evidencia claramenteo lugar que o Sr. K. ocupa em seu ima-ginário. Em sua ausência, conta Freud,o sintoma piora. O poder da pulsão oralaumenta quando Dora está só com aSra. K. A sua afonia tipifica o sexo oralcom a amante de seu pai, mostrandocomo está identificada com o Sr. K. Estaidentificação histérica com o Sr. K. per-mite a Dora ficar em um lugar ondepode desejar a Sra. K.A resistência aqui então é de Freud e nãode Dora. Quando ele insiste em interpre-tar como amor o que Dora sente peloSr. K., estamos diante da resistência doanalista e não do paciente. Quando elese põe na posição de dono da verdade,impede que Dora se dê conta de seu de-sejo pela Sra. K. A resistência é falsa-mente imputada a Dora, quando, na ver-dade, ela é de Freud. O efeito desta re-

sistência de Freud em Dora foi desper-tar a raiva e agressividade dela contraFreud, raiva que já sentia contra seu paie o Sr. K., generalizando agora a todosos homens.

Freud pode favorecer esta “agressividade”de Dora em relação aos homens não ven-do os fundamentos verdadeiros de sua re-lação com o homem, que é uma identifica-ção imaginária que estrutura a relação nar-císica, afirma Serge Cottet.30

Querendo colocar Dora em um bom ca-minho, Freud estimulou seu desejo devingança contra todos os homens – umaconseqüência de sua alienação narcísi-ca, a saber, sua identificação com o Sr.K. e com Freud. Então, Dora se vingade Freud rompendo o tratamento domesmo modo como se vingou do Sr. K.e de seu pai.

A MULHER COMO UM MAIS ALÉM

A compreensão de que Freud teria in-troduzido um elemento resistencial naanálise de Dora poderia eventualmentenos levar a conclusão de que ela estives-se fazendo um vínculo estritamente ho-mossexual com a Sra. K. Parece que foieste ponto de vista que Freud valorizouquando escreveu sobre o caso Dora apóso seu término31. Os desdobramentosposteriores do pensamento do próprioFreud, no entanto, apontam para outra

30. S. Cottet. Op. cit., p. 46.31. Conferir a última seção do caso, intitulada de postfácio.

A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 31

direção. O que parece estar em jogo efe-tivamente são os complexos mecanis-mos de identificação histéricos que va-cilam entre uma bipolaridade sexual.Dora, por um lado, se identifica com oSr. K. (identificação masculina), com seupai e com Freud para poder desejar aSra. K. Por outro lado também se iden-tifica com a Sra. K. (identificação femi-nina), desejando ser amada pelo Sr. K.e por seu pai à maneira pela qual a Sra.K. é amada por esse último. Esta com-plexidade identificatória só encontrará al-guma tematização em Freud em seus ar-tigos no final de vida, especialmente osartigos sobre a feminilidade32. Freud en-tão se aperceberá da profunda assime-tria do Édipo feminino e se dará contade que tanto menino como menina têmcomo primeiro objeto de amor a mãe. Ochamado Édipo completo não está de-senvolvido à época de Dora.Serge André nos mostra em seu livro Oque quer uma mulher?33, que no Semi-nário Mais, Ainda, Lacan fala da mulhercomo um mais além do desejo masculi-no. Neste seminário a feminilidade é vistaalém da condição de desejada pelo sexomasculino. Trata-se de um acréscimo deLacan que não descarta o anteriormen-te dito sobre Dora e a feminilidade. Semeste desenvolvimento, Lacan também

caracteriza a ligação de Dora com a Sra.K. como homossexual. Quando, reco-menda André, o melhor seria falar em“uma homossexuação do desejo de Dora,homossexuação ligada aos desvios dasidentificações pelas quais ela deve pas-sar para interrogar sua própria feminili-dade”34. A histérica se colocaria no lu-gar masculino para apreciar o valor quea mulher recebe do desejo masculino.Dora não forma um par sexual com aSra. K., pelo contrário. Tendo demarca-do a posição da Sra. K., do ponto de vis-ta do homem, Dora conclui que gosta-ria de ser amada por um homem comoa Sra. K. é amada por seu pai.O que à luz de Mais, Ainda se pode di-zer é que para Dora, a Sra. K. é objetodo amor de seu pai para além dela pró-pria, quer dizer, como suplemento defeminilidade da qual ela mesma se senteem falta. O mesmo vale em relação aoSr. K., Dora pode aceitar seus galan-teios desde que permanece um mais alémda Sra. K. Neste sentido, o processotodo vai denunciar nem tanto a homos-sexualidade de Dora, como o lugar super-valorizado que a Sra. K. ocupa para elacomo encarnação da feminilidade.Recolocando então a questão transferen-cial, o que se precisa dizer é que o queDora está fazendo é colocar a questão

32. “A dissolução do complexo de Édipo” (1924), “Algumas conseqüências psíquicas da distinçãoanatômica entre os sexos” (1925), a conferência 33 sobre “Feminilidade” (1933) em “Novasconferências introdutórias sobre a psicanálise”, entre outros.

33. A. Serge. O que quer uma mulher?34. Idem, p. 150.

32 Pulsional Revista de Psicanálise

da feminilidade em sua análise comFreud. A pergunta sobre a mulher é fei-ta nesta relação analítica. Dora procuraem Freud a resposta desta questão. Dorademanda dele o sentido de seu corpo ealma de mulher. Mas como nenhum sa-ber pode dar conta desta indagação, asrespostas de Freud são insuficientes...Ele aponta para questão da maternidade,uma resposta boa mas parcial, que fazDora interromper a análise. Mais tardeFreud reconhecerá o limite do conheci-mento psicanalítico sobre a mulher:

Isto é tudo o que tinha a dizer-lhes a res-peito da feminilidade. Certamente está in-completo e fragmentário... Se vocês quise-rem saber mais a respeito da feminilidade,recorram a suas próprias experiências, oudirijam-se aos poetas ou aguardem até quea ciência possa dar-lhes uma informaçãomais profunda e mais coerente.35

CONCLUSÃO

A histérica está em busca do amor. Aoseu médico apresenta sua demanda, nãoraro apresentando-a com intensidade edramaticidade. Uma intensidade de de-manda que freqüentemente coloca o ana-lista em situação desconfortável. Umaintensidade de demanda que mobiliza re-sistências no analista. Como Freud nocaso Dora, o analista pode ser enreda-

do por esta demanda histérica. ComoFreud, o analista pode se tornar a prin-cipal resistência ao avanço da análise.Como defesa à demanda de Dora, Freudusa seu saber para conter esta deman-da. Mas diz Lucien Israel “todo o sabersobre o outro corre o risco de ser re-dutor para o outro.”36

A histérica coloca sua questão na análi-se: como posso ser uma mulher? Se oanalista tem paciência, se não se assus-ta nem atende a demanda, a perguntapode se tornar: o que existe em mim quepode agradar aos homens? A histéricademanda e oferece amor ao analista per-guntando por sua feminilidade. Ao ana-lista cabe não acolher nem rejeitar esteamor. Cabe a ele escutar este amor einterpretá-lo, para que a histérica descu-bra o que há em si mesma nesta ofertade amor. Cabe ao analista possibilitar àpaciente que continue em análise, pro-duzir a revolução dialética que dissolvea resistência de que fala Lacan. Nas pa-lavras de Manoel Berlinck:

Seria levado a dizer, então, que o ato dopsicanalista [acting] é menos uma ação emais a falta de ação que deixa de reatuali-zar no sujeito o des-centramento da posi-ção propriamente psicanalítica que relan-ça o sujeito em sua própria análise.37

35. S. Freud. Conferência 33 – “Feminilidade” in Novas conferências introdutórias sobre a psica-nálise. Traduzido e citado por Letícia Nobre in “Da histeria ao feminino: uma passagem emanálise”. Pulsional Revista de Psicanálise, São Paulo, ano XII, n

o 126, outubro de 1999.

36. L. Israel. Mancar não é pecado, p. 149.37. “A histérica e o psicanalista” in M.T. Berlinck (org.). Histeria, p. 43.

A transferência na histeria – um estudo no caso Dora de Freud 33

Quando o analista pode suportar seguira histérica até este ponto... Quando acei-ta ficar no lugar de não dar respostaalguma à demanda, quando luta paradesmontar suas próprias resistências,quando suporta o descontentamento his-térico que exige sem cessar do analis-ta38, pode-se manter aberto o espaço ana-lítico que permite a cada histérica pen-sar o que significa, para ela, ser uma mu-lher.

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38. Conferir a seção “Um eu insatisfeito” in J.D. Nasio. A histeria – Teoria e clínica psicanalítica,pp. 15 e 16.