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CARDÁPIO: UMA ANÁLISE DAS CARACTERÍSTICAS QUE
FORMAM ESSE GÊNERO DISCURSIVO/TEXTUAL
FRANCIELE ANDRIANE DA COSTA
RAFAELA ZENOVELLO
MARILÚCIA DOS SANTOS DOMINGOS STRIQUER
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP)
Rua Padre de Mello, 1200 - 86400-000 - Jardim Marimar - Jacarezinho- PR. [email protected]
RESUMO: Na perspectiva bakhtiniana de que os gêneros discursivos organizam
as interações sociais e estão tão presentes na vida das pessoas que por vezes não
nos damos conta do “porquê” e para que eles existem, interessamo-nos em
conhecer os elementos que caracterizam o gênero discursivo/textual cardápio.
Em específico, o cardápio que circula em lanchonetes, uma vez que estes estão
tão integrados ao seu referido contexto que não provocam reflexões sobre sua
constituição social e estrutural. Para tanto, utilizamos como ferramenta
norteadora do processo de análise o Dispositivo didático de gêneros, elaborado
por Barros (2012). Os resultados demonstram algumas características sócio-
comunicativas, discursivas e linguísticas que formam o cardápio em sua
representatividade na situação comunicativa.
PALAVRAS-CHAVE: Gêneros discursivos/textuais. Cardápio. Dispositivo
didático de gênero.
ABSTRACT: In Bakhtin's view that discursive/textual genres organize social
interactions and are so present in people's lives that sometimes we do not realize
why and for what a genre exists, so we are interested in knowing the elements that
characterize the menu. Specifically, the menu circulating in snack bars, because
they are so integrated in that context that often do not cause reflections on their
social and structural constitution. For this, we used as a guiding tool, the analysis
process didactic device developed by Barros (2012). The results showed some
socio-communicative, discursive and linguistic characteristics that form the menu
in its representativeness in the communicative situation.
KEYWORDS: Discursives/Textuais Genres. Menu. Didactic device of the genre.
1 INTRODUÇÃO
De acordo com Rojo e Barbosa (2015), os gêneros discursivos/textuais, a partir da definição
bakhtiniana, “permeiam nossa vida diária e organizam nossa comunicação”
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(ROJO; BARBOSA, 2015, p. 17), por isso fazem parte de nosso convívio social e estão
presentes em todas as atividades desenvolvidas no decorrer do dia das pessoas, desde o “bom-
dia” ao vizinho até a produção da ata da reunião no escritório. Portanto, em todas as nossas
atividades, a linguagem é instrumento de interação que está sempre organizada, estruturada
em diferentes e diversos gêneros discursivos/textuais.
É sob essa perspectiva que nos interessamos em conhecer um gênero muito presente no
cotidiano das pessoas: o cardápio. Dessa forma, nosso objetivo, neste trabalho, é compreender
as especificidades que caracterizam o gênero discursivo/textual cardápio, o qual circula em
diferentes lugares, como em lanchonetes, restaurantes, jantares, inseridos em eventos de
casamento, aniversários, escolas, hospitais, entre muitos outros lugares. E por essa
diversidade, elegemos como objeto de estudo apenas os cardápios que circulam em
estabelecimentos comerciais onde se fabricam e/ou vendem-se lanches, sanduíches, refeições
rápidas e bebidas, como as lanchonetes1.
De acordo com Bakhtin (2003), os gêneros refletem os campos/esferas da atividade humana
da qual participam. Por exemplo, o cardápio escolar, em decorrência da finalidade da
interação na qual está inserido, do papel social que assume seu produtor e de quem são os
destinatários, pode receber uma estrutura linguística diferente do cardápio de lanchonete.
Logo, para uma delimitação, nosso foco recai sobre os cardápios das chamadas lanchonetes.
A base teórica que sustenta nossa pesquisa se norteia pelas definições de gêneros do discurso,
de Bakhtin (2003), e de gêneros discursivos/textuais, de Rojo e Barbosa (2015), e, como
ferramenta de análise, utilizamos o Dispositivo didático de gêneros, elaborado por Barros
(2012).
1Estabelecimento comercial onde se faz refeições rápidas. Sinônimo: bar. DICIONÁRIO informal. Disponível
em: <https://www.dicionarioinformal.com.br>. Acesso em: 02 fev. 2017.
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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O conceito de gêneros inicia-se, conforme explicam Rojo e Barbosa (2015), com as
discussões de Platão e Aristóteles, em uma classificação dos gêneros literários em: épico,
lírico e dramático. A partir disso, Aristóteles realiza também uma classificação de diversos
outros gêneros sob a perspectiva de que são “grupo[s] que engloba[m] várias espécies de
substâncias individuais” (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 36 – grifo nosso). Contudo, foi o
filósofo Bakhtin, no século XX, quem elaborou a definição de gênero da qual as múltiplas
áreas do estudo da linguagem passaram a fazerem uso. A definição de Bakithin (2003) tomou
grande proporção quando ele, e seu círculo (?), realizaram estudos e discussões sobre os
gêneros poéticos, e logo expandiram seus olhares para todas as produções discursivas
existentes, compreendendo que gêneros são “tipos relativamente estáveis de enunciados”
(BAKHTIN, 2003, p. 262).
O conceito de relativamente estável é porque, segundo o autor, os gêneros mudam de acordo
com as diferentes culturas, transformam-se historicamente no tempo e são flexíveis para
concretizações enunciativas (ROJO; BARBOSA, 2015). Isso ocorre porque, todo e qualquer
gênero está inserido, conforme Bakhtin (2003), em um campo da atividade humana, que são
espaços organizados de desenvolvimento das práticas humanas. Isto é, os campos são as
situações comunicativas nas quais os gêneros nascem e se estabelecem. Nesse sentido, o
entendimento é o de que os gêneros estão presentes no dia a dia de todas as pessoas, embora
muitas não conheçam ou não percebam conscientemente que eles existam. Como é o caso do
cardápio de lanchonetes. O cardápio é um gênero tão comum nesses locais que, por vezes, é
possível que as pessoas que o utilizam nem percebam a especificidades e que não tenham
consciência da importância de sua função sócio-comunicativa. Essas especificidades e
funções desse gênero são as características que pretendemos abordar neste trabalho.
Para compreender o que são os gêneros, conforme Bakhtin (2003), é preciso ter ciência de que
todo e qualquer gênero é formado por três elementos: o conteúdo temático, a construção
composicional e o estilo. Tais elementos são inseparáveis, porém cada um apresenta uma
definição. Conforme Rojo e Barbosa (2015), a construção ou forma composicional é a
estrutura do texto, a qual organiza o conteúdo temático e sua progressão. Por exemplo, a
estrutura básica de um cardápio é formada pela apresentação dos produtos em forma de
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tópicos/seções: a seção de exposição dos alimentos, das bebidas, cada uma acompanhada da
descrição e do preço, expostos em listas. Às vezes, cada produto é acompanhado de uma
imagem, sinalizando ainda de forma mais detalhada como é e quais são os ingredientes do
produto.
O estilo trata dos recursos linguísticos empregados na construção do texto: o léxico, a
linguagem em uma modalidade mais informal ou formal, os mecanismos coesivos, etc. Os
recursos linguísticos utilizados em uma ata de reunião, por exemplo, não serão os mesmos
utilizados em uma conversa pelo WhatsApp. A ata tem uma linguagem mais formal e técnica,
com a construção de períodos curtos. Já nas redes sociais, o léxico e a formalidade na
linguagem vão variar conforme o destinatário da interação, podendo ser formada por fotos,
desenhos.
O conteúdo temático é o elemento mais importante na constituição de um gênero. Segundo
Rojo e Barbosa (2015, p. 87 – grifos nossos), “o tema é o conteúdo inferido com base na
apreciação de valor, na avaliação, no acento valorativo que o locutor (falante ou autor) lhe
dá”. Compreendemos então que o tema é o assunto central abordado no gênero, organizado
segundo o juízo de valor que seu autor lhe dá, considerando ainda quem são seus
destinatários, o objetivo da interação, o momento histórico e o lugar em que o texto é
produzido. Uma tirinha de jornal, por exemplo, pode ter, como tema, uma crítica à política,
com apontamentos de seu autor, que pode ser permeado de humor, ironia, figuras de
linguagem, etc.
Além desses elementos que estão “indissoluvelmente ligados ao todo do enunciado”
(BAKHTIN, 2003, p. 87), para Bakhtin (2003), os gêneros se dividem em dois grupos: os
gêneros primários e os secundários. Os primários são os que pertencem às atividades
cotidianas, estão presentes e são usados pelas pessoas de forma mais simples, como um
bilhete. Os gêneros secundários são os mais complexos e elaborados, por exemplo: relatórios,
atas ou formulários. Os gêneros secundários, muitas vezes, agregam os primários, como o
romance que é secundário, mas comporta diálogos cotidianos de seus personagens, sendo o
diálogo um gênero primário.
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Apresentadas as definições básicas de gênero, a seguir abordamos a proposta de Barros
(2012) para a análise de gêneros.
3 OS PROCEDIMENTOS PARA ANÁLISE DE GÊNEROS
De acordo com Barros (2012), os pesquisadores do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD),
corrente teórica que tem como suporte teórico, entre outras teorias, a definição de gêneros do
discurso de Bakhtin (2003), sugerem que para que um gênero possa ser conhecido, é preciso a
análise dos elementos que o constituem. De forma geral, analisam-se a esfera da qual
participa o gênero, a intenção comunicativa dos envolvidos na interação, os elementos que
formam o contexto de produção e a infraestrutura textual do gênero.
Tomando os procedimentos sugeridos pelo ISD para análise de gêneros, Barros (2012)
elaborou um dispositivo denominado de Dispositivo didático de gênero, visando didatizar os
passos sugeridos pelo ISD. O Dispositivo é constituído de perguntas direcionadoras para que
o analista tenha condições de conhecer as principais características de um gênero. No entanto,
apesar do dispositivo se intitular didático, é possível atender, com essa ferramenta, a outros
objetivos que não apenas conhecer as especificidades de um gênero para que ele possa ser
transformado em objeto de ensino escolar. Sendo assim, é possível, via esse dispositivo,
conhecer o nosso objeto de estudo – o cardápio – em seu ambiente típico, verificando sua
função na situação comunicativa e sua estrutura formal.
A seguir reproduzimos o Dispositivo didático de gêneros, de Barros (2012), com adaptações
que este trabalho requer2.
2 Optamos em não apresentar todas as perguntas que formam o Dispositivo, elegendo apenas as que estão
relacionadas ao gênero cardápio.
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Quadro 1 - Dispositivo didático
Elementos que formam o contexto de produção do gênero
A qual prática social o gênero está vinculado?
É um gênero oral ou escrito?
A qual esfera de comunicação pertence (jornalística, religiosa, publicitária, etc.)?
Quem produz esse gênero (emissor)?
Para quem se dirige (destinatário)?
Qual o papel discursivo do emissor?
Qual o papel discursivo do destinatário?
Com que finalidade/objetivo produz o texto?
Qual é a relação estabelecida entre o produtor e o destinatário? Comercial? Afetiva?
Qual o valor desse gênero na sociedade?
Qual o suporte?
Qual o meio de circulação (onde o gênero circula)?
Elementos discursivos que formam o gênero
Qual o tipo de discurso? Do expor? Do narrar?
É um expor interativo (escrito em primeira pessoa, se reporta explicitamente ao interlocutor, tenta
manter um diálogo mais próximo com o interlocutor, explicita o tempo/espaço da produção)?
É um expor teórico (não deixa marcas de quem fala, para quem fala, de onde e quando fala)?
É um narrar ficcional?
É um narrar acontecimentos vividos (relato)?
Como é a estrutura geral do texto? Tem título/subtítulo? É assinado? Qual sua extensão
aproximada? Acompanha fotos/figuras?
Como são organizados os conteúdos no texto? Em forma de lista? Versos? Prosa?
Qual o tipo de sequência predominante? Sequencia narrativa? Descritiva? Explicativa?
Argumentativa? Dialogal? Injuntiva?
Elementos linguístico-discursivo que formam o gênero
Como são feitas as retomadas textuais?
Quais os tempos verbais usados? E os tipos de verbo: ação? Estado?
Quais os tipos de conectivos usados: lógico (mas, portanto, assim, dessa forma, etc.)? Temporal
(era uma vez, um dia, depois, amanhã, etc.)? Espacial (lá, aqui, no bosque, etc.)?
Qual a variedade linguística privilegiada? Mais formal? Mais informal? Coloquial?
Estereotipada? Respeita a norma culta da língua? Usa gírias? Como se verifica isso no texto? Pelo
vocabulário empregado? Pela sintaxe?
Como são mobilizados os sinais de pontuação no texto? Quais os mais usados? E com qual
finalidade?
Que vozes são frequentes no texto? Do autor? Sociais? De personagens? De que instâncias advêm
essas vozes? Do poder público? Do senso comum? De autoridades científicas? Há a mobilização
de elementos paratextuais (quadros, imagens, cores...) ou supratextuais (títulos, subtítulos,
sublinhados...)? Como eles agem na construção dos sentidos do texto? Observe, caso o texto
possibilite, a forma de grafar as palavras, as cores, a expressão gestual, a forma das imagens, a
entonação, as pausas, etc.
Fonte: Barros (2012) - com adaptações das pesquisadoras.
4 O GÊNERO CARDÁPIO
Para conhecer o gênero cardápio, partimos dos princípios sugeridos por Barros (2012). Assim,
nossa primeira ação foi reunir um conjunto de exemplares do gênero, a fim de formar nosso
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corpus, sendo ele, portanto: 04 exemplares: um cardárpio impresso no pub3 Tenete Pimenta,
estabelecimento localizado na cidade de Ouro Preto - MG; o segundo cardápio é online,
disponivel nas redes sociais da lanchonete delivery Foodflix, localizada em Montes Claros -
MG; o terceiro é impresso e de uma franquia da esfiharia Casa da Sfihaa, da cidade de
Siqueira Campos - PR; e o quarto da cidade de Jacarezinho - PR, é o cardápio da pizzaria La
Favorita, também impresso.
Nossa intenção em selecionar exemplares de diferentes lugares do país foi para entender se
essa questão pode, de alguma forma, influenciar na regularidade dos elementos que formam o
gênero, ou se esse é um gênero mais estável em seus componentes estruturais, dentro do que
Bakhtin (2003) define como relativamente estável.
Antes ainda de partimos para a apresentação das respostas às perguntas que formam o
dispositivo, apresentamos pesquisas realizadas sobre a definição teórica do cardápio,
conforme estabelece Barros (2012).
A definição de cardápio no Dicionário de gêneros, de Costa (2008, p. 48-49) é:
Cardápio (v. CARTA, LISTA, MENU, RELAÇÃO): nos restaurantes e afins,
relação/ lista (v.) das iguarias, bebidas e sobremesas disponíveis para consumo,
quase sempre seguida dos seus preços, colocados à direita, e, muitas vezes, com a
descrição sucinta e telegráfica da sua composição, abaixo de cada item da lista. Em
banquetes, jantares de gala e afins, apenas consta a relação (às vezes a descrição da
composição) das iguarias, bebidas e sobremesas a serem servidas.
Logo, o cardápio é visto por Costa (2008) como uma relação de alimentos, bebidas, etc.,
estruturada em: nome do produto, detalhamento e preço. Entretanto, é importante ressaltar
que, para Costa (2008), o cardápio “quase sempre” tem a referida formatação. Isto é, o gênero
3Pub (pronuncia-se pâb) é uma abreviação do inglês public house, cujo significado é casa pública, e designa um.
tipo de bar muito popular no Reino Unido, República da Irlanda e outros países de influência britânica, como
Austrália ou Nova Zelândia, onde são servidas bebidas (principalmente alcoólicas) e comida ligeira. Um pub tem
especial significado para os britânicos. Distingue-se de outros bares por manter o estilo medieval com pouca
iluminação, o que o transforma num ambiente muito acolhedor. É o local ideal para beber uma cerveja após o
trabalho ou ponto de encontro de amigos. Em alguns pubs é possível ouvir música ao vivo, assistir a jogos de
futebol ou jogar sinuca, por exemplo. A cerveja é a bebida mais consumida num pub, tendo sempre disponível
uma grande variedade de cervejas de pressão, onde fazem questão de possuir as melhores cervejas regionais.
Esse estilo de bar tem tido bastante sucesso, sendo cada vez mais frequente encontrá-los em diversas cidades
pelo mundo afora. SIGNIFICADOS. Disponível em: <https://www.significados.com.br/pub/>. Acesso em: 12
fev. 2018.
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é mais livre na constituição de sua construção composicional e seu estilo, caracterizando-se
como o relativamente estável, o que vai ao encontro da definição de Bakhtin (2003).
Também ressaltamos o fato de Costa (2008, p. 49) expor que “em banquetes, jantares de gala
e afins”, o cardápio pode ganhar nova estrutura, uma vez que não faz sentido a apresentação
de preços. Assim, como explica Bakhtin (2003), o gênero se estrutura conforme sua função
comunicativa e reflete o campo da atividade humana no qual está inserido.
Diferente de Costa (2008), Barreto4 (2001 apud LINASSI, 2009, p. 13) define esse gênero
não tão pautado em seus aspectos composicionais, mas na função sócio-comunicativa:
O cardápio tem por base vender os produtos ofertados pelo restaurante, sendo ele o
seu maior instrumento de vendas, o cartão de visitas da casa. Seu papel principal é
informar, devendo ter para isso: grafia e layout corretos, atendendo as expectativas
do cliente tanto na alimentação, quanto em seu formato, cor e organização. O menu,
como também é chamado, é inconscientemente avaliado pelo público, que com isso
já firma sua primeira impressão sobre o restaurante.
Logo, é a intenção comunicativa, o campo da ativdade humana, o conteúdo temático que
definem a construção composicional e o estilo do gênero, assim como defende Bakhtin
(2003). Objetivando vender seus produtos, o estabelecimento oferece ao cliente o cardápio, a
fim de que os produtos possam ser conhecidos e escolhidos diante da vontade ou necessidade
do consumidor. A apresentação dos produtos está ligada à exposição da organização do
ambiente, por isso, o cardárpio “faz parte do marketing do restaurante e deve estar voltado a
atingir o segmento de mercado proposto” (BARRETO, 2001 apud LINASSI, 2009, p. 13).
Assim, muito mais do que só um expositor dos produtos comercializados, o gênero é uma
ferramenta de marketing. Definição que demonstra o valor do gênero na sociedade (ROJO;
BARBOSA, 2015; BARROS, 2012), para aqueles que interagem dentro de uma situação
comunicativa por meio do cardápio.
A partir disso, entende-se o cardápio como um gênero da modalidade escrita, de forma
impressa ou virtual, que configura-se como um gênero secundário5, pela complexidade que
envolve a elaboração do texto.
4 BARRETO, Ronaldo L. P. Passaporte para o sabor: tecnologia para elaboração de cardápios. São Paulo:
Senac, 2001.
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A seguir, apresentamos os resultados de nossas análises, a partir do dispositivo de Barros
(2012). A primeira questão é: “a qual prática social o gênero está vinculado?”. Nossos
exemplares estão vinculados à prática social, ou ao que Bakhtin (2003) define como atividade
humana, de apresentação de produtos que são ofertados por estabelecimentos comerciais de
consumo de alimentos e bebidas, a fim de auxiliar os consumidores na escolha dos produtos,
dos ingredientes que compõe os produtos e os preços. Sendo uma forma de apresentação do
referido estabelecimento, pertence à esfera social comercial de consumo de
alimentos/bebidas. E, em decorrência da prática social da qual emerge o gênero, a relação
entre o produtor e o destinatário do cardápio pode ser classificada como comercial.
Sobre os elementos que formam o contexto de produção, o produtor e seu papel discursivo
(BARROS, 2012), o autor do texto pode ser o próprio dono do estabelecimento, que pode
elaborar, produzir e imprimir ele mesmo o cardápio, de forma mais artesanal. Ou ele pode
contratar uma empresa especializada, uma gráfica para as referidas ações, repassando à
empresa as instruções que julgue necessárias e os detalhes que gostaria que constassem em
seu cardápio, sendo o layout realizado pelo profissional contratado. Nesse sentido, o
emissor/autor do cardápio não precisa ter uma formação acadêmica ou profissional específica
para produzir o referido gênero. Diferente, por exemplo, de um editorial de jornal que é
produzido pelo jornalista-chefe ou pelo editor responsável pela mídia, ou seja, que requer uma
autoridade do autor para a produção textual.
Logo, muitas vezes, não é possível determinar quem é exatamente o autor de nossos
exemplares: o cardápio da delivery Foodflix não apresenta nomes ou logomarcas de nenhuma
gráfica ou empresa do ramo que o possa ter confeccionado, poderia, então, ter sido produzido
pelo responsável pelo estabelecimento. É o mesmo que acontece com o cardápio do pub
Tenente Pimenta. Já no cardápio da pizzaria La Favorita existe uma logomarca de uma
empresa, com nome e telefone, marcando, assim, a produção do texto por uma instituição
especializada em desenvolvimentos gráficos e impressões. E, a Casa da Esfihaa também não
deixa marcas do produtor de seu cardápio.
5 Sobre diferença entre gênero primário e secundários, cf. Bakhtin, 2003.
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Sobre o destinatário do gênero, ele caracteriza-se por ser o cliente/consumidor do local onde
circula os cardápios e seu papel discursivo é o de comprar/consumir os produtos ofertados,
conhecendo, pelo cardápio, o estabelecimento. Contudo, é fundamental destacar que ao
planejar e produzir o cardápio, o produtor sabe ou presume quem possa ser seus
destinatários/consumidores. Por isso, a forma de apresentação do gênero é direcionada e
diferenciada conforme o segmento da empresa e dos possíveis clientes. Por exemplo, no
cardápio do pub Tenente Pimenta as comidas e bebidas estão organizadas em seções
intituladas de forma criativa e bem-humorada, orientadas para um público jovem e adulto,
uma vez que esse tipo de estabelecimento não tem como público alvo menores de idade,
funcionando, geralmente, mais ao entardecer e durante a noite. Para abonar nossa afirmação, a
respeito de uma construção mais criativa, transcrevemos alguns títulos de algumas das seções
que formam o cardápio do pub: “Pros Brutos” - lista os lanches, que provavelmente tenham
esse nome porque os lanches são alimentos mais ricos em gorduras e carboidratos; “Pra
beliscar” - seção das porções; “...Do rio...do mar” - seção de peixes e frutos do mar; “Pros
carnívoros” - porções e pratos compostos por carnes vermelhas; “Gordices” - lista as
sobremesas; “Pros animados” - bebidas alcoólicas/drinks com destilados; “Pra matar a sede” -
cervejas, vinhos, espumantes, doses e refrigerantes.
No caso da empresa Foodflix, sendo uma lanchonete delivery, ou seja, que só trabalha com
entrega a domicílio, o estabelecimento tem como destinatário/público-alvo pessoas que
gostam ou têm a necessidade de ficar mais em casa, público este também vislumbrado pela
empresa Netflix – uma plataforma privada, que existe em muitos países, que oferece a custo
financeiro filmes e séries de streaming6 para que os telespectadores possam assistir em casa:
na televisão, em smartfones, em tabletes ou IPhones. Assim, a lanchonete cria o nome do
6 Streaming é uma tecnologia que envia informações multimídia, através da transferência de dados, utilizando
redes de computadores, especialmente a Internet, e foi criada para tornar as conexões mais rápidas. Um grande
exemplo de streaming é o site Youtube, que utiliza essa tecnologia para transmitir vídeos em tempo real. Em
inglês, a palavra stream significa córrego ou riacho, e por isso a palavra streaming remete para o fluxo, sendo
que no âmbito da tecnologia, indica um fluxo de dados ou conteúdos multimídia. Muitas pessoas assistem filmes,
seriados ou jogos de futebol em streaming. O live streaming permite que o utilizador veja um programa que está
sendo transmitido ao vivo. Existem também a possibilidade de transmitir um evento através do live streaming,
para que pessoas que estão longe possam assistir. Quando a ligação de uma rede é banda larga, a velocidade de
transmissão da informação é muito maior, dando a sensação ao usuário de que o áudio e o vídeo são transmitidos
em tempo real. Atualmente, emissoras de televisão, bem como rádios FM e AM, além de várias empresas que
realizam eventos, utilizam esta tecnologia para interação digital com seus ouvintes e clientes.
O streaming possibilita que um usuário reproduza mídia, como vídeos, que são sempre protegidos por direitos
autorais, de modo que não viole nenhum desses direitos, tornando-se bastante parecido com o rádio ou a
televisão aberta. A tecnologia é também muito usada em jogos online, em sites que armazenam arquivos, ou em
qualquer serviço onde o carregamento de arquivos é bastante rápido. SIGNIFICADOS. Disponível em:
<https://www.significados.com.br/streaming/>. Acesso em: 14 fev. 2018.
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estabelecimento fazendo referência aos lanches (food) que podem ser consumidos em casa,
assistindo a um filme ou série (flix – de Netflix). Também os nomes dos lanches seguem essa
proposta: todos eles fazem referência direta aos programas e às séries transmitidas pela
Netflix, e por outros canais pagos de televisão. Por exemplo, o sanduíche “Frango Anathomy”
que referencia a série “Grey’s Anathomy”, disponível na Netflix; o lanche “Game of Fomes”,
que faz referência à série “Game of Thrones”, do canal de televisão HBO. As fontes, estilo de
letras e cores usadas para criar o logotipo do cardápio e os nomes dos lanches também fazem
referência às logomarcas das séries.
Tendo, em decorrência, filmes e séries como ponto de criação para os nomes dos lanches,
como pode ser visto na FIG. 1, podemos compreender que os destinatários do cardápio da
Foodflix, seu público consumidor alvo, é formado por jovens e adultos, em uma faixa etária
provável que se inicia em 16 anos, seguindo, assim, o sistema de classificação de filmes e
séries.
Figura 1 - Cardápio Foodflix
Fonte: Facebook (2017).
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No caso do cardápio da esfirraria, na primeira página estão descritos os dias e horários de
atendimento, assim, considerando horário, nossa interpretação é de que o público consumidor
pretendido não tem uma idade específica. A empresa pretende atender desde crianças a
idosos. Funciona de quarta a sábado e segunda das 17h às 00h, e domingos e feriados das 18h
às 00h30. Também a pizzaria recebe um público variado, sem restrição de idade, por isso, o
destinatário do cardápio também não tem distinção entre idade.
Sobre o veículo que divulga o gênero, podem ser panfletos impressos, redes sociais e
aplicativos de celulares. O cardápio da Foodflix, como mencionado, é veiculado pelas redes
sociais Facebook e Instagram e pelos aplicativos de mensagens como o Whatsapp e o
Messenger. Os cardápios da Casa da Esfiha, pizzaria La Favorita e do pub são veiculados em
panfletos impressos.
Seguindo para a investigação dos elementos discursivos, nossos exemplares caracterizam-se
pelo discurso denominado de expor teórico (BARROS, 2012). Em busca de uma linguagem
que seja adequada a expor de forma objetiva os produtos, o texto apresenta-se de forma
técnica: o produto, a descrição do produto e o preço. Como exemplificação, reproduzimos o
cardárpio da pizzaria:
Figura 2 - Cardápio La Favorita
Fonte: Arquivo pessoal (2018).
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Nas páginas centrais do cardápio, como é possível visualizar na FIG. 2, há uma divisão por
seções ou tópicos na exposição dos produtos: o que é alimento e o que é bebida, com
subdivisões de pizzas, lanches, pratos, esfirras, alimentos salgados e doces, sucos,
refrigerantes, bebidas alcóolicas.
Já a respeito de “como é a estrutura geral do texto?” (BARROS, 2012), o cardápio é
estruturado por um número de páginas adequados a quantidade de alimentos e bebidas que o
estabelecimento oferece. Portanto, não há como definir o texto como de longa ou curta
extensão. Geralmente, são poucas páginas, sem um formato padrão característico. A empresa
pode apresentar um cardápio formado por capa – com o nome do estabelecimento,
logradouro, telefone, horário de funcionamento, um slogan e outras páginas com a exposição
do produtos, como é o caso da esfirraria (FIG. 3) e da pizzaria, ou apenas de uma única
página, como é o da Foodflix, na FIG. 1.
Figura 3 - cardápio da Casa da Esfihaa
Fonte: Arquivo pessoal (2018).
Os títulos que as seções recebem estão relacionados ao destinatário, conforme abordado, ao
estilo e segmento que atende o estabelecimento. Por exemplo, a pizzaria e a esfirraria que
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atendem a público geral, sem definição de idade, têm uma estrutura mais tradicional (seções:
Esfirras salgadas, Esfirras especiais, Esfirras doces, Pastéis arabes, Pastéis doces, Sucos
naturais, Refrigerantes diversos, etc.); e no caso do cardápio do pub Tenente Pimenta, como
mencionado, as seções recebem nomes bem criativos, por exemplo, as porções mais
tradicionais são listadas na seção “Pra beliscar”; as porções destinadas a vegetarianos e
veganos: “Pros Lights”; as sobremesas: “Gordices”; para os que não digerem bebidas
alcoolicas: “Pros sóbrios”, entre outras.
Portanto, a estrutura de apresentação do formato não é estável, ela pode ser determinada por
cada estabelecimento, de acordo com a intenção comunicativa da empresa. No cardápio da
Foodflix, é possível notar que os lanches estão dispostos lado a lado, mas ainda seguem o
modelo de apresentar o nome do produto em letras grandes, seguindo de sua composição em
letras menores e, logo após, seu valor. O cardápio da La Favorita segue a exposição dos
produtos em uma ordem alfabética, com os produtos listados um abaixo do outro com letras
grandes, seguindo de sua composição em letras menores e logo após seu valor, assim como é
na esfirraria.
Os produtos são expostos por meio da sequência descritiva, organizada em frases curtas, com
tamanho de letra menor do que o nome do produto, detalhando o que compõem os alimentos e
as bebidas quando drinks e o preço do produto. Por exemplo, lanche: “Tenete pimenta, 26
[pão australiano/burger grelhado recheado com gorgonzola 180g/ rúcula/ bacon/ queijo prato/
Onion crispy/ acompanhado de rustic potatoes, molho Teneten Pimenta e barbecue]”
(cardápio do Tenete Pimenta).
Em relação aos elementos linguístico-discursivos que formam o gênero discursivo/textual
cardápio (BARROS, 2012), verificamos que não estão presentes mecanismos que promovam
retomadas textuais, nem conectivos lógicos, temporais e espaciais, e a densidade verbal é
nula, isso pelo fato de o texto ser formado pela sequência descritiva. O mecanismo de
conexão textual se estabelece na estrutura na distribuição de alimentos por seções. A
variedade linguística empregada depende também do segmento do estabelecimento e de quem
são seus destinatários/clientes: pode ser formada por neologismos, como é o caso do Foodflix;
pode ser uma linguagem mais informal, como o pub Tenete Pimenta, e com uma formalidade
coloquial, como nos cardápios da pizzaria e da esfirraria. Contudo, em todos os casos, as
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regras da gramática da língua portuguesa são consideradas no uso de vírgulas, de letra
maiúscula em nomes próprios ou início de frases, do cifrão que representa o real para
exposição dos valores dos alimentos.
A maioria dos exemplares analisados, como mencionado, não identifica quem foi o produtor
do texto, sendo assim, a única voz identificável, é a voz empírica do narrador.
Nos exemplares há uma grande mobilização de elementos paratextuais, por exemplo, no
cardápio da pizzaria são expostas imagens de pizzas e de esfirras para ilustração do texto
(FIG. 2). No cardápio da Casa da Esfiha, em cada tópico é encontrada a imagem de esfirras.
Enquanto no pub as encontramos imagens nos tópicos, “Pros brutos”, que tem um homem
forte malhando; “Pros carnívoros”, um espeto de churrasco e “Pros animados”, taças de
drinks. Também foram colocadas imagens de pimentas na frente dos pratos que são mais
picantes, e imagens de balãozinho nos pratos mais novos. O cardápio da lanchonete Foodflix
tem uma imagem de um motoqueiro no rodapé do cardápio, pois a lanchonete serve apenas
em delivery.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o objetivo de compreender as especificidades do cardápio de lanchonete, um gênero
discursivo/textual tão presente no cotidiano dos frequentadores desse tipo de estabelecimento
comercial que, geralmente, as pessoas não se preocupam em querer conhecer por que e para
que esse texto existe, analisamos um conjunto de exemplares do gênero, tendo como princípio
a definição de gênero discursivo de Bakhtin (2003) e como ferramenta norteadora da
investigação o Dispositivo Didático, elaborado por Barros (2012). A partir dos resultados das
análises, podemos afirmar que o cardápio é, aparentemente, um gênero simples,
principalmente por sua função sócio-comunicativa ser a de apresentar os produtos, alimentos
e bebidas, que a lanchonete oferece. Contudo, como um gênero secundário (BAKHTIN,
2003), é constituído por uma complexidade que o torna um cartão de visitas do lugar, uma
ferramenta de Marketing. Estando bem organizado e criativo, pode ajudar a atrair os
consumidores.
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Pode não se modificar diante da região do país em que está, como inicialmente acreditamos,
as modificações se instauram diante do contexto de produção: de quem o produz, e,
principalmente, para qual público se destinam os produtos vendidos na lanchonete. Em
decorrência, o estilo vai variar para atender as questões contextuais, mas a estrutura é
relativamente estável: uma listagem dos produtos, seus ingredientes e preços.
Enfim, o que consideramos mais importante destacar com os resultados desta pesquisa é que,
com ela, pudemos compreender os preceitos de Bakhtin (2003) na prática, isto é, como os
gêneros realmente estão e porque estão em nossa vida diária, organizando nossas interações
sociais.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Michail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução de Paulo Bezerra. 4.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARROS, Eliana Merlin Deganutti de. Transposição didática externa: a modelização do
gênero na pesquisa colaborativa. Raído, Dourados (MS), v. 6, n. 11, p. 11 - 35, jan./jun.,
2012. Disponível em: http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/Raido/article/view/1687/1145. Acesso
em: 30 jan. 2018.
COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
LINASSI, Rossano. Engenharia de cardápios e custeio baseado em atividades: uma
aplicação em restaurante oriental. 2009. 261 f. Dissertação (Mestrado em Turismo e
Hotelaria) – Universidade do Vale do Itajaí, Balneário Camboriú (SC), 2009. Disponível em:
http://siaibib01.univali.br/pdf/rossano%20linassi.pdf . Acesso em: 30 jan. 2018.
ROJO, Roxane; BARBOSA, Jaqueline P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros
discursivos. São Paulo: Parábola, 2015.