capítulo 2 caixa - cidadania & cultura · desde o século xix, as loterias no brasil eram...

38
Capítulo 2 Caixa Econômica Federal 2.1. Origem histórica Qual é a diferença entre uma Caixa Econômica e um banco? Na origem, a distinção ocorria em termos de porte dos depósitos. Em uma Caixa, havia um limite superior, para serem remunerados, ao contrário dos efetuados em banco. Dizia-se que, nela, depositava-se pouco, para tomar emprestado muito. Nele, depositava-se muito, para poucas retiradas. Hoje, no Brasil, a Caixa Econômica Federal é uma instituição financeira pública, pois possui 100% de suas ações sob controle do Tesouro Nacional, regida por direito privado. Foi criada para captar a chamada “poupança popular” e executar a política social do Governo Federal. Porém, ela exerce quase todas as atividades típicas de um banco comercial. Por sua vez, diferencia-se dele por arrecadar receitas com a administração das loterias e a do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o monopólio do penhor, o quase-monopólio dos depósitos judiciais, e a prestação de serviços específicos à União. Desde o século XIX, considerou-se a Caixa como o “cofre seguro” das camadas sociais de baixa renda. Nasceu como uma forma de captar, continuamente, as pequenas economias populares, para transformá-las em recursos básicos para financiamento de ações sociais. Chegou-se a designá-la como o “banco dos pobres”, isso muito antes de se falar, no país, em “bancos do povo”. Estes são sociedades de crédito aos microempreendimentos, isto é, trabalham com microcrédito. As “cadernetas de poupança” simbolizam sua atividade típica, detendo quase 1/3 do total de depósitos. Desde a inauguração da Caixa Econômica Federal, em 1861, até sua substituição por escrituração eletrônica, em 1972, eram pequenos cadernos de preenchimento manual ou mecanizado com os valores dos juros e atualização monetária, inicialmente, a da ORTN, atualmente, via Taxa de Referência (TR). Entretanto, essas aplicações continuaram sendo conhecidas pela população como feitas em “cadernetas de poupança”. Cerca de 250 anos antes de sua criação no Brasil, surgiu, em 1611, seu conceito na França. Foi quando se falou, pela primeira vez, em organizar uma Caixa em que qualquer pessoa de baixa renda pudesse depositar seu dinheiro com segurança, para acumulá-lo, e lhe ser devolvido quando dele necessitasse. A idéia de poupança não era, essencialmente, a de “abster-se de consumir no presente, para consumir mais no futuro”. Era sim a feita por precaução. Referia-se à necessidade de separar uma reserva, continuamente, para ter como enfrentar períodos de crise, seja por calamidade natural, seja por conflito bélico. Tratava-se de criar uma instituição capaz de captar, cumulativamente, as pequenas reservas do povo de baixa renda. Segundo MARTINS (2001: 7), especialmente na Inglaterra, as Caixas Econômicas foram também uma resposta à necessidade da nascente classe operária

Upload: doanhanh

Post on 08-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Capítulo 2

Caixa Econômica Federal

2.1. Origem histórica

Qual é a diferença entre uma Caixa Econômica e um banco? Na origem, a distinção ocorria em termos de porte dos depósitos. Em uma Caixa, havia um limite superior, para serem remunerados, ao contrário dos efetuados em banco. Dizia-se que, nela, depositava-se pouco, para tomar emprestado muito. Nele, depositava-se muito, para poucas retiradas.

Hoje, no Brasil, a Caixa Econômica Federal é uma instituição financeira pública, pois possui 100% de suas ações sob controle do Tesouro Nacional, regida por direito privado. Foi criada para captar a chamada “poupança popular” e executar a política social do Governo Federal. Porém, ela exerce quase todas as atividades típicas de um banco comercial. Por sua vez, diferencia-se dele por arrecadar receitas com a administração das loterias e a do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o monopólio do penhor, o quase-monopólio dos depósitos judiciais, e a prestação de serviços específicos à União.

Desde o século XIX, considerou-se a Caixa como o “cofre seguro” das camadas sociais de baixa renda. Nasceu como uma forma de captar, continuamente, as pequenas economias populares, para transformá-las em recursos básicos para financiamento de ações sociais. Chegou-se a designá-la como o “banco dos pobres”, isso muito antes de se falar, no país, em “bancos do povo”. Estes são sociedades de crédito aos microempreendimentos, isto é, trabalham com microcrédito.

As “cadernetas de poupança” simbolizam sua atividade típica, detendo quase 1/3 do total de depósitos. Desde a inauguração da Caixa Econômica Federal, em 1861, até sua substituição por escrituração eletrônica, em 1972, eram pequenos cadernos de preenchimento manual ou mecanizado com os valores dos juros e atualização monetária, inicialmente, a da ORTN, atualmente, via Taxa de Referência (TR). Entretanto, essas aplicações continuaram sendo conhecidas pela população como feitas em “cadernetas de poupança”.

Cerca de 250 anos antes de sua criação no Brasil, surgiu, em 1611, seu conceito na França. Foi quando se falou, pela primeira vez, em organizar uma Caixa em que qualquer pessoa de baixa renda pudesse depositar seu dinheiro com segurança, para acumulá-lo, e lhe ser devolvido quando dele necessitasse. A idéia de poupança não era, essencialmente, a de “abster-se de consumir no presente, para consumir mais no futuro”. Era sim a feita por precaução. Referia-se à necessidade de separar uma reserva, continuamente, para ter como enfrentar períodos de crise, seja por calamidade natural, seja por conflito bélico. Tratava-se de criar uma instituição capaz de captar, cumulativamente, as pequenas reservas do povo de baixa renda.

Segundo MARTINS (2001: 7), especialmente na Inglaterra, as Caixas Econômicas foram também uma resposta à necessidade da nascente classe operária

Page 2: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 53

assegurar um pecúlio para o futuro. Ainda não havia qualquer tipo de seguridade social, no século XIX.

Há autores (OLIVEIRA, 1954: 50) que afirmam que a história das Caixas nasce com a junção dos conceitos de crédito e de previdência. Alguns citam como sua inspiradora a antiga instituição italiana dos “Montes de Piedade” (ou “Monte della Pietá”), que eram “bancos de empréstimos sobre penhores”. Daí teria surgido o termo “montepio” para designar uma instituição assistencialista, mantida por associados, que concedesse empréstimos em condições especiais e oferecesse uma série de benefícios (subsídio em caso de doença, assistência médica e farmacêutica etc.) aos associados e/ou a seus familiares. Esse é também o termo jurídico para o instituto de previdência estatal destinado a amparar a família do servidor público que tenha falecido ou que esteja impossibilitado de trabalhar. A pensão paga por essa instituição ou instituto de previdência e o estabelecimento ou local onde funciona são conhecidos por essa mesma designação.

Os “Mons Pietatis” (Montes de Socorros) teriam surgido, em 1462, como uma reação aos empréstimos realizados a juros extorsivos por mercadores (“judeus”) de toda a Itália. Assim, seu objetivo era livrar os mais pobres dos usurários, emprestando-lhes dinheiro proveniente de esmolas, sem cobrar juros. Em contrapartida, os devedores tinham de oferecer um penhor (empenho ou entrega de coisa móvel ou imóvel) como garantia de obrigação assumida. A igreja católica deu-lhes o caráter de obras de beneficência e caridade. Assumidos pelos Estados, eles se espalharam pela Europa.

Nas três primeiras décadas do século XIX, foram criadas Caixas Econômicas em diversas cidades da Europa, especialmente, na Inglaterra (1804), França, Holanda, Bélgica, Áustria, Finlândia, Dinamarca, Suécia, Noruega, Itália e Portugal. Todas visavam captar as pequenas economias da classe trabalhadora. Na França, criadas em 1818, a iniciativa foi tomada por cidadãos abastados exasperados por ameaças de nova revolução. Visavam, de certo modo, amortecer a luta de classes. Nos Estados Unidos, foram criadas em 1816, seguindo o modelo inglês. Na Argentina, surgiu logo em 1823.

Segundo MARTINS (2001: 7), “no Brasil, pelo fato de não haver grandes massas de camponeses livres pobres, devido à escravidão, não houve uma necessidade premente para a criação de um Monte de Socorro. Somente na segunda metade do século XIX, com o surgimento de novas classes e com o fim próximo da escravidão, e havendo já no país um contingente expressivo de escravos libertos, é que se sentiu a necessidade de criação de um mecanismo que emprestasse dinheiro sem usura. Assim, o Monte de Socorro foi criado com a Caixa Econômica, em 1860, e inaugurado na mesma data que ela, em 1861”.

Não foi essa a primeira iniciativa. Houve tentativas privadas fracassadas no Rio de Janeiro, em 1831, sobrevivendo, precariamente por 28 anos, na Bahia, Alagoas, Minas Gerais e Pernambuco: todas elas sem continuidade. Os capitais eram aleatórios, não conseguiram acumular fundos de reserva, faltava controle na gestão. As Caixas Econômicas eram conhecidas como “Caixas Garantidas”, apesar de provocarem grandes prejuízos...

Por decreto, em 1849, o governo procurou estimular a criação de novas Caixas. Permitia a abertura de agências de preferência contíguas às Mesas de Rendas, Coletorias

Page 3: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 54

e Agências de Correios. Foram autorizadas em Valença, Florianópolis, Santos, Campos, Salvador.

Mas somente em 1860 foram oficializadas as Caixas Econômicas já existentes no país. Elas teriam um caráter beneficente, pois seus dirigentes não seriam remunerados. A lei atribuiu nova denominação aos “Monte-Pios” e às “Sociedades de Socorros Mútuos”, criando os “Montes de Socorro”. Para a implantação dessas instituições financeiras, parte do capital foi proveniente de uma loteria especialmente autorizada para esse fim.

Todas as Caixas Econômicas, tanto da Corte Imperial, quanto das províncias, eram independentes entre si. Porém, cada qual era administrada por um conselho fiscal nomeado pelo governo central. Subordinavam-se à autoridade dos presidentes das províncias e, no Rio de Janeiro, do Ministro da Fazenda, que nomeavam seus dirigentes.

A Caixa Econômica Federal tem origem em uma instituição pública, criada em 1861, na cidade do Rio de Janeiro, pelo Imperador D. Pedro II. As finalidades das Caixas eram “receber em depósito, sob responsabilidade [garantia] do Governo Federal, em todo território brasileiro, as economias populares e reservas de capitais para movimentá-las, incentivar os hábitos de poupança e, ao mesmo tempo, desenvolver a circulação da riqueza” (SILVA, 1939: 12). O Monte de Socorro, criado no mesmo ato, era para prestar assistência por meio de empréstimos sobre penhor de jóias e pedras preciosas (garantia através de “metais preciosos e brilhantes”), cujas operações eram contabilizadas na “carteira de penhores” da Caixa. Ambos seriam administrados por um único conselho fiscal.

A Caixa Econômica recebia os depósitos populares, não podendo pagar juros de 6% anuais para as quantias que ultrapassassem 4.000$000 – quatro mil réis. O Monte Socorro emprestava com juros módicos, tão baixos que em vários momentos nem cobriam as despesas operacionais. Eram mais baixos que a média do mercado, porque estavam sob penhor de garantias reais (ouro, prata ou diamantes), “para socorrer as urgentes necessidades das classes menos favorecidas pela fortuna” (sic). Em 1934, por força do Decreto nº 24.427, as Caixas Econômicas passaram a deter o monopólio do penhor civil. Colocou-se um fim nas chamadas “Casas do Prego”, estabelecimentos privados de jóias “postas no prego”, que cobravam juros escorchantes, típicos de agiotas.

A história das Caixas Econômicas e dos Montes de Socorro relaciona-se com a das loterias. O capital inicial dessas instituições financeiras proveio de imposto (cota de 1%) sobre 77 loterias existentes.

Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no intuito de arrecadar fundos para a construção de igrejas, asilos ou orfanatos. Somente em 1944 as Loterias Federais brasileiras foram instituídas como serviço da União, com o objetivo de canalizar recursos para o custeio de programas sociais de âmbito nacional. Em 1961, foi delegada sua execução à Caixa Econômica Federal. Atualmente, o rateio das loterias é repassado aos Ministérios da área social através do Fundo de Apoio Social (FAS).

Com a vantagem dos rendimentos semestrais a juros de 6% ao ano para depósitos até quatro contos de réis (4.000$000) e a garantia do Governo Imperial,

Page 4: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 55

acorreram à Caixa pessoas de diversas camadas sociais, em busca de segurança para suas economias. Inclusive escravos depositavam seus tostões, depois da Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871. Sua regulamentação determinava que o pecúlio constituído para emancipação fosse recolhido à Caixa Econômica. A esperança de acumular o suficiente para a compra da alforria, conquistando assim a liberdade, estimulava os escravos. Eles tinham de obter a autorização do Juiz de Órfãos para iniciar seus depósitos.

Há registro (MARTINS, 2001: 20) do caso em que uma escrava do Mato Grosso que acumulou 565$000, em depósitos médios de cinqüenta mil réis (50$000), durante quatro anos – 1884 a 1887. Entregou essa quantia para seu dono (um tenente), comprando a alforria às vésperas da Lei Áurea! Começou assim sua vida de cidadã brasileira “despossuída”...

Após 1874, foram criadas Caixas Econômicas em quase todas as províncias do Império. As que não tivessem associação com um Monte de Socorro deveriam ser anexadas às tesourarias de Fazenda de suas respectivas províncias. Ficaram divididas em duas categorias: Autônomas, com administrações independentes, e Anexas, funcionando junto às delegacias fiscais.

A proclamação da República, em 1889, não alterou, significativamente, a estrutura dessas instituições. Herdada do Império, era bastante inflexível, não permitindo outro tipo de atividade financeira que não fosse captação de poupança popular. Em 1896, relatório oficial do Ministro da Fazenda estimava em 90.000 as cadernetas existentes, com 105.200 entradas e 49.500 retiradas, naquele ano.

Somente em 1915, em decorrência da necessidade de mobilizar os próprios recursos do país para fazer frente aos problemas decorrentes da I Guerra Mundial, que uma reformulação foi posta em prática. Permitiram-se novas modalidades de empréstimos, sob caução de títulos de dívida pública. Ampliou-se sua atuação, inclusive definindo que em todas as capitais de estados haveria uma Caixa Econômica, subordinada ao Ministério da Fazenda, que poderia ter filial ou agências onde fosse conveniente. Porém, continuou a demanda por reformas mais profundas em sua estrutura de funcionamento.

Uma curiosidade histórica é registrada nessa nova regulamentação: a movimentação das contas por meio de cheques. No Brasil, a utilização dessa forma de transferência de depósitos entre contas correntes foi instituída pelo decreto nº 2.591 de 07/08/1912. Entretanto, essa movimentação ainda dependia de autorização dos Conselhos Administrativos das Caixas. O emitente deveria ter uma conta com pelo menos 3 contos de réis, e cada cheque não poderia ser de valor inferior a cinqüenta mil réis.

Mas isso podia ser considerado um avanço, em uma regulamentação que ainda tinha de explicitar, em seu artigo 9º: “Caderneta de Mulher Casada – a mulher casada, sob qualquer regime, pode livremente constituir e retirar depósito em seu nome, salvo expressa oposição, por escrito, do marido, o qual não poderá retirar tais depósitos sem prévia autorização, em devida forma, da titular da caderneta ou suprimento judicial, nos termos do direito” (SUCHEUSKI, 2001: 4).

Page 5: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 56

Desde sua criação no Império, as Caixas eram quase que simplesmente coletoras de depósitos. Foi, portanto, um avanço institucional a Caixa Econômica do Rio de Janeiro passar, a partir de 1915, conceder empréstimos sob caução de títulos de dívida pública da União, letras e bilhetes do Tesouro Nacional. Dando liquidez a esses títulos, passou a atuar também como “banco de governo”.

Até 1930, as Caixas Econômicas Federais de diversos Estados operavam apenas nos empréstimos sob penhores e sob caução de títulos de dívida pública. Houve um novo recrutamento a elas, baixado com o decreto nº 24.427 de 19 de junho de 1934, que consolidou todas as modificações havidas, quer nas operações, quer nas rotinas de execução das tarefas. Outorgou às Caixas Econômicas o privilégio das operações sob penhor civil, uma medida de largo alcance social, porque aboliu extorsões feitas à base desse instrumento em mãos de particulares.

Somente a partir do Governo Provisório de Getúlio Vargas (1930-34) que as Caixas Econômicas passaram a ser de fato entendidas como órgãos de fomento, ou seja, de viabilização dos projetos sociais, prioritariamente na área de infra-estrutura e saneamento, a serem implantados pelo Estado. Ampliaram a carteira de empréstimos com a concessão de crédito a longo prazo a Estados e Municípios, para a instalação ou ampliação de serviços de água e esgoto, montagens de usinas geradoras, pavimentação de ruas, abertura de estradas, obras portuárias e até mesmo o financiamento de indústrias privadas de relevância para a economia regional. Evitaram, com essa nova postura, que empréstimos fossem tomados no exterior.

Os retornos dos empréstimos, pelo pagamento de juros, incrementariam as somas disponíveis para novos créditos. Deixaram de ser obrigadas a repassar os rendimentos para o Tesouro Nacional. Em 1931, iniciou-se a obrigatoriedade do recolhimento junto à Caixa Econômica dos depósitos judiciais, o que lhe propiciou recursos baratos até o final do século XX, quando o Tesouro Nacional passou a receber os novos depósitos realizados no âmbito da Justiça Federal. Mas ela ainda permanece com saldo expressivo.

Superou-se, assim, a fase em que a Caixa Econômica era instituição de caráter filantrópico sem intenção de lucro. Naquele contexto histórico, era preciso gerar recursos para financiar o desenvolvimento do país. O principal instrumento financeiro da instituição foi a Carteira de Empréstimos Hipotecários. Um decreto de 1934 lhe deu o respaldo legal para conceder empréstimos sob hipoteca, mediante o recebimento de imóvel, desde que este não fosse de natureza agrícola.

Com a criação do Conselho Superior das Caixas Econômicas Federais, pelo decreto de 1934, partiu-se para sua expansão em todo o país. Nessa época, eram 7 as Caixas Econômicas autônomas: as de Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais. Nas demais unidades da federação as Caixas estavam sob controle das delegacias fiscais do Ministério da Fazenda. Em 1956, as Caixas já tinham alcançado autonomia em todos os Estados, e mesmo nos territórios federais.

A atuação delas passou a se expandir. As operações de cada Caixa eram semelhantes às de suas congêneres se distribuindo pelas carteiras de Hipotecas, Habitação, Depósitos e Penhores, Consignações (empréstimos mediante descontos em folhas de pagamento), Títulos (empréstimos sobre títulos de dívida pública e custódia de

Page 6: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 57

títulos financeiros), Veículos. A ampliação de suas funções fez com que seu saldo de depósitos multiplicasse por 40 vezes entre 1934 e 1959. Dez anos depois, em 1969, um decreto determinou a unificação das Caixas Econômicas em empresa pública. Antes, de acordo com o Decreto nº 50.954, de 14 de julho de 1961, assinado pelo presidente Jânio Quadros, justo no ano do centenário da Caixa, a Loteria Federal saiu das mãos de concessionários particulares e passou a ser administrada pelo Conselho Superior das Caixas Econômicas Federais.

A idéia da centralização federal se fortaleceu com o regime militar implantado em 1964. Já tinha sido criado o Sistema Financeiro de Habitação com o Banco Nacional de Habitação (BNH), o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), e a correção monetária para os depósitos de poupança e os empréstimos imobiliários, para enfrentar o déficit habitacional advindo da crescente expansão demográfica urbana. No Censo Demográfico de 1970, finalmente, foi confirmado que a população brasileira urbana superava a rural. Pretendia-se, então, fortalecer a Caixa Econômica Federal como sociedade de crédito imobiliário e principal agente do BNH, para promover a aquisição da casa própria, especialmente pela população de menor poder aquisitivo.

Sob uma ditadura, os governadores estaduais nomeados pela União não se opuseram à centralização. A coesão do Pacto Federativo tinha sido substituída pela coerção de um regime de força. Embora os políticos regionais nunca tenham deixado de influenciar a nomeação de seus dirigentes. Tanto assim que, mesmo no período da redemocratização do país, a alta rotatividade dos presidentes da Caixa (e de seus vices e diretores nomeados) tornou-se característica histórica. Basta verificar que poucos mandatos duraram mais de um ano e muitos foram mandatos-tampões. Nenhum durou todo o tempo do mandato do presidente da República que o nomeou. O apadrinhamento, o clientelismo e o uso político da instituição são pragas das quais ela não se livrou, ao longo de sua história.

O capital inicial foi constituído pelo total do patrimônio líquido de todas as Caixas Econômicas Federais existentes em diversos estados. Instituiu-se também um fundo para reforçá-lo. Fixava contribuição de 2,5% sobre o preço de cada bilhete da loteria federal. Assim como na sua fundação, em 1861, a loteria voltaria a ser decisiva para sua história.

Na realidade, não se alterou, essencialmente, sua atuação histórica. “A Caixa orientou, historicamente, a passagem das primitivas formas de economia popular doméstica para as formas oficiais de amparo e estímulo a essa economia, (...) visando estimular o hábito de poupança” (MARTINS, 2001: 24). Permaneceu, até hoje, fundamentalmente, com os mesmos propósitos de captação de poupança e de concessão de crédito para as classes menos favorecidas. Sua origem e seu papel histórico estão relacionados à necessidade social ainda não superada.

2.2. Problema de funding para financiamento imobiliário

A Caixa Econômica Federal assumiu a forma de empresa financeira pública em 12 de agosto de 1969. Desde então, o capital passou a pertencer, integralmente, à União. Por ser tratada como influente no contexto macroeconômico, teve a condução da sua gestão econômico-financeira sempre considerada no conjunto das decisões do Governo Federal.

Page 7: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 58

O principal objetivo institucional da Caixa é financiar o desenvolvimento urbano e social de modo a contribuir para melhorar a qualidade de vida da população brasileira. Sua atuação inclui diversas operações de caráter social, como o atendimento do trabalhador, através da gestão do FGTS, a administração do PIS/abono salarial, o pagamento de benefícios do INSS e do seguro-desemprego, o financiamento do crédito educativo, o apoio aos recém-formados, e a administração das loterias federais. Estas têm parte significativa dos seus recursos destinada à seguridade social, além dos repasses ao Ministério do Esporte, clubes de futebol, COB, CPB, FIES, FNC, FUNPEN, APAE, Cruz Vermelha.

A Caixa Econômica Federal compreende três eixos de atuação. No desenvolvimento urbano, atua na implementação de programas nacionais de habitação, saneamento e infra-estrutura urbana, na qualidade de banco 100% público, embora formalmente subordinada ao Ministério da Fazenda, auxilia na execução da política habitacional do Ministério das Cidades, e constitui o principal agente financeiro dos recursos orçamentários da União e do FGTS.

Na transferência de benefícios, a atuação compreende as áreas de pagamentos e arrecadação de programas sociais e a aplicação e acompanhamento de verbas do Orçamento Geral da União. Neste serviço, analisa projetos, libera verbas de acordo com o cronograma físico-financeiro e presta contas aos gestores dos programas: Ministérios e Agências Governamentais.

Nos serviços financeiros, a Caixa opera por meio de sua rede de pontos-de-venda na captação de recursos sob as formas de depósitos e fundos mútuos de investimentos e na aplicação, como empréstimos e financiamentos a pessoas físicas e jurídicas. Realiza, ainda, arrecadação de tributos e assemelhados, recebimentos de concessionárias de serviços públicos, arrecadação de convênios com entidades e prestação de serviços de transferências de fundos. Depois da reestruturação patrimonial de 2001, em que trocou “esqueletos por morto-vivos”, isto é, créditos inadimplentes por títulos de dívida pública, seu resultado bruto de intermediação financeira passou a depender, principalmente, de seus ganhos em tesouraria. Cerca de 60% de sua receita de prestação de serviços vem de serviços prestados ao próprio Governo Federal.

O funding (composição passiva) para o financiamento imobiliário de longo prazo típico da Caixa Econômica Federal é dependente da captação pela ação comercial no mercado, seja via depósitos de poupança, seja através de letras hipotecárias. Recentemente, sua participação no mercado de captação de poupança flutua em torno de 1/3 do total. Além dessa fonte de recursos, dispõe dos fundos sociais existentes, a chamada “poupança compulsória”, como o FGTS, e do Orçamento Geral da União (OGU). Então, para cumprir papel fundamental na política habitacional, ela utiliza recursos captados através de sua ação comercial no mercado financeiro, além dos recursos parafiscais e fiscais.

Além do FGTS, a Caixa também administra o PIS-PASEP, resultante da unificação do Programa de Integração Social e do Programa do Servidor Público, criados em 1970 e unificados em 1975, para conceder abonos anuais aos trabalhadores públicos e privados de baixa renda. Como agente financeiro do governo na área social, desde 1975, utiliza recursos das loterias (Federal e Esportiva) no Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). A partir de 1976, passou a ser a instituição financeira responsável, inicialmente, pelo Crédito Educativo (CREDUC) e, depois, pelo Fundo de

Page 8: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 59

Investimentos em Ensino Superior (FIES), ambos sofrendo de forte inadimplência e origens de grandes perdas. Em 1980, a Caixa recebeu a atribuição de intermediação e compra de ouro dos principais garimpos do país, em especial de Serra Pelada. Recentemente, foi obrigada a repetir operação semelhante de difícil logística com a exploração de diamantes em reservas indígenas.

Vale fazer uma brevíssima digressão histórica. As Instituições Financeiras Públicas Federais se justificam por evitar o financiamento fiscal dos gastos sociais. Se os governos no Brasil tivessem força (e vontade) política para fazer uma reforma tributária que propiciasse arrecadação suficiente para cobrir todos os gastos públicos (com agricultura, habitação, infra-estrutura e desenvolvimento regional), que seus bancos financiam, eles seriam dispensáveis. Se o governo conseguisse abastecer todos fundos sociais com recursos orçamentários e pudesse repassá-los por “agências de fomento”, para que bancos públicos?

Justamente porque nunca houve tributação suficiente, no Brasil, para resgatar toda a dívida social, que todos seus governos, desde o de Vargas nos anos 30, sempre recorreram, através de seus “braços financeiros”, à captação de recursos no mercado. A idéia sempre foi de os bancos serem auto-suficientes em termos de recursos, não disputando os recursos escassos do governo. Entretanto, seja pela não remuneração adequada de alguns serviços prestados ao setor público, seja pela exigência de distribuição de dividendos que dificulta sua capitalização, periodicamente, o Tesouro Nacional como acionista único tem de atender a “uma chamada de capital”. Como capitalizar a Caixa Econômica Federal com recursos orçamentários, através do aumento da carga tributária, tornou-se “fora de questão”, o Tesouro recorreu, em 2001, à ampliação da dívida pública, cujos títulos representativos ela mesmo carregou.

No primeiro semestre de 2007, para atender à demanda do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e, ao mesmo tempo, cumprir o limite de contratação de empréstimos ao setor público de 45% do valor do seu Patrimônio Referencia (PR), a Caixa, novamente, recorreu ao Tesouro Nacional. Mas, dessa vez, a MP 347 possibilitou que o Tesouro concedesse um “empréstimo perpétuo” à Caixa que permitisse o enquadramento da operação como Instrumento Híbrido de Capital e Dívida (IHCD), conforme definido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) na Resolução 3444. O termo IHCD refere-se ao conceito de “quase-capital”, em que uma obrigação pode ser eleita como componente do calculo do PR nível II de uma instituição financeira.

Sob o ponto-de-vista do Tesouro Nacional, o efeito do IHCD foi neutro. Por um lado, ele concedeu um empréstimo perpétuo à Caixa, sobre o qual iria receber juros equivalentes aos pagos por um título de dívida pública de mais longo prazo disponível. Por outro lado, a Alocação de Ativos e Passivos (ALM) da Caixa impunha à tesouraria, para proteger as finanças da Empresa, providenciar a aquisição de títulos de dívida pública que a remunerassem no mínimo nesse valor. Isto porque o custo desses “recursos perpétuos” era superior ao cobrado, geralmente, para saneamento e habitação popular, em torno de TR + 6% aa., isso sem considerar os anos de carência concedidos nos empréstimos para essas áreas. O que o Tesouro Nacional receberia, provavelmente, seria o que ele pagaria em um título de dívida pública de longo prazo, na carteira de títulos da Caixa, devido à estratégia de proteção (hedge).

Page 9: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 60

Mas, na outra capitalização da Caixa, não se construiu essa engenharia financeira. A situação fiscal também impedia o uso de recursos fiscais. Desde 1986 até 2000, a carga tributária brasileira tinha crescido 352%, enquanto o PIB tinha aumentado somente 196%. Em apenas seis anos, de 1994 a 2000, os contribuintes brasileiros foram obrigados a pagar mais 126,5% em impostos. Entre 1996 e 2000, a retenção do imposto de renda sobre os assalariados cresceu 68%, quase o dobro da inflação do período. Essa voracidade fiscal fez o país bater sucessivos recordes de arrecadação. Alcançou-se uma marca então histórica em termos da relação da carga tributária com o PIB: 34,2%.

Evidentemente, se a tributação brasileira fosse progressiva e se a arrecadação fosse destinada a gastos sociais que propiciassem elevação do poder de compra disponível para as camadas de baixa renda, essa voracidade fiscal seria um fator para a necessária redistribuição da renda no Brasil. Entretanto, como a elevação dos impostos foi destinada, predominantemente, a pagar juros da dívida pública ou beneficiar mutuários de alta renda, até reforçou a concentração de renda.

Se não se podia contar com recursos orçamentários, inclusive para pagamento da dívida do Tesouro Nacional com o Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), poderia se recorrer à terceira fonte de financiamento de gastos públicos: o endividamento junto ao mercado financeiro? Também essa solução oferecia dificuldades, no ano (2001) em que se fez a reestruturação patrimonial da Caixa, pois a dívida do setor público (nas três esferas) tinha chegado a mais da metade do PIB brasileiro. Para reduzir a dívida, o governo buscava gastar bem menos do que arrecadava e obter seguidos superávits primários.

Por esse breve quadro da situação fiscal-financeira do governo, verifica-se que ele caiu na “armadilha da dívida”, na segunda metade da década dos 90. Essa situação acabou atingindo a competitividade do próprio funding da Caixa, captado no mercado, voluntariamente, via depósitos de poupança. Isto porque, para carregar o estoque de títulos de dívida pública, o governo estimulou a indústria de fundos mútuos de investimento, cuja remuneração superior conquistou o mercado financeiro em desfavor dos depósitos de poupança. O saldo desses depósitos caiu para cerca de 10% do PIB, em 2001. A alternativa de captação via letras hipotecárias correspondia somente à parte do crédito imobiliário “sobre aplicado”, isto é, que estava além do nível exigido de 65% dos recursos da poupança.

O financiamento imobiliário levou muitos bancos a uma encruzilhada. A procura por empréstimos para a compra da casa própria aumentava, mas a principal fonte de recursos para a concessão do crédito, que era o dinheiro aplicado na caderneta de poupança, diminuía. Os bancos eram obrigados a repassar, no mínimo, 65% do que era investido na poupança para o financiamento imobiliário. Considerando os recursos que saíram ou deixaram de ser reinvestidos na poupança, as linhas de crédito imobiliário reduziram-se, porque a necessidade absoluta de direcionamento tornou-se menor. O fluxo de captação de poupança tinha um ritmo de crescimento menor, logo, o nível absoluto de exigência de 65% da poupança tendia a diminuir relativamente ao saldo do crédito já concedido.

Segundo a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), a média dos financiamentos para cada unidade habitacional era de R$ 50 mil, na década dos 90. Estimou-se que os recursos então perdidos nos depósitos de poupança dariam para custear a compra de 131.860 casas nesse valor.

Page 10: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 61

Com a queda do saldo da poupança, agravou-se o problema da sobre (ou super) aplicação. O estoque de crédito imobiliário já concedido pela Caixa já tinha superado a exigência de direcionamento de 65%, desde 1992. Se através da ação comercial pelo aumento na captação da chamada “poupança voluntária” o governo não lhe dava novos incentivos, pois não podia desestimular as aplicações em fundos de investimentos, a alternativa de conceder empréstimos imobiliários via a denominada “poupança compulsória”, ou seja, o FGTS, também não era promissora, nos anos 90. Este fundo social sempre enfrentou problemas conjunturais, devido a ser pró-ciclo, isto é, se esvaziar em época de desemprego e informalidade no mercado de trabalho. Ele teve também de enfrentar problema de descapitalização, em razão da obrigação de pagamento das dívidas provocadas pelos planos de estabilização Verão (1989) e Collor 1 (1990), estimada em R$ 40 bilhões.

Na verdade, o FGTS foi criado, em 13 de setembro de 1966, com um problema estrutural ou genético. Nasceu com uma crise de identidade: assumir-se como parte de uma política habitacional ou de uma política trabalhista, pois possuía os recursos para indenização da dispensa sem justa causa e retirada por aposentadoria ou morte do trabalhador. Mesmo com a criação do Fundo de Amparo aos Trabalhadores (FAT, o funding do BNDES), não se deliberou a respeito de tornar o FGTS exclusivo para o funding de financiamento da construção e comercialização de residências, além de investimentos em saneamento básico e infra-estrutura urbana. O fundo é administrado pela Caixa, desde que foi herdado como parte do espólio (e de atribuições) do BNH, criado em 1964 e extinto em 1986.

Devido ao seu caráter pró-ciclo, entre 1997 e 2002, a administração do FGTS enfrentou déficit no fluxo anual de recursos, efeito das transformações no perfil do mercado de trabalho, da inadimplência e das baixas taxas de crescimento da economia. Além das demissões sem justa causa, que motivaram a maior parte dos saques, reduziu-se o contingente de trabalhadores com carteira assinada. Com as discussões sobre a reforma da Previdência, também muitos trabalhadores anteciparam seus pedidos de aposentadoria, quando então podem retirar sua “poupança”.

Ele só obteve resultado positivo quando houve recuperação da atividade econômica, reduzindo as demissões,ou seja, um dos motivos para saques. Com o aumento do nível de emprego, mais pessoas voltaram ao mercado de trabalho formal. Com isso, cresceu o valor que as empresas recolhem, mensalmente, nas contas dos trabalhadores.

Um resultado positivo, mas eventual (once for all), ocorre quando há exigência de maior formalização. Por exemplo, a arrecadação do FGTS foi fortemente influenciada pelo REFIS, o programa da Receita Federal para a renegociação de impostos atrasados. Ele exigia que as empresas ficassem em dia com o FGTS.

Desde a década de 70, o FGTS era o principal financiador das obras de saneamento no país. Para se ter uma idéia do que isso representava, entre 1980 e 1993, dos U$ 13,3 bilhões gastos em saneamento 50,5% vieram do fundo. Entretanto, os investimentos públicos no setor ficaram comprometidos pelo critério de cálculo do déficit público estipulado pelo FMI, que incluía os investimentos das estatais como despesas do setor público. Assim, o governo, para cumprir as metas de ajuste fiscal, acabava cortando investimentos em áreas básicas. Antes de 2003, não ousava pedir ao FMI que tal critério fosse alterado. Pelo acordo então assinado entre o Brasil e o FMI, o

Page 11: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 62

déficit precisaria ser reduzido independentemente do custo social dos cortes em áreas consideradas vitais como a do saneamento básico.

Os cortes em saneamento básico começaram a ser feitos em 1998. Nesse ano, o CMN estabeleceu metas de controle do endividamento público e restringiu as operações de crédito das companhias estaduais e municipais de saneamento. Em todo o período do acordo com o FMI, assinado no fim daquele ano, a Caixa Econômica Federal, gestora do FGTS, praticamente não liberou recursos para as companhias de saneamento.

Os recursos do Orçamento Geral da União também não foram liberados. Todos os caminhos para a retomada dos investimentos no setor de saneamento passavam pela aprovação da equipe econômica. A principal proposta da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDU), para a retomada dos investimentos, era a flexibilização das regras de concessão de financiamento do FGTS para as companhias de saneamento. Na era neoliberal, a privatização do setor parecia ser a única prioridade.

Para que houvesse mais recursos, seria preciso desvincular os financiamentos das companhias estaduais de saneamento do déficit público. As regras de restrição de crédito impostas faziam parte da política de ajuste do setor público estadual. Difícil era acreditar que essa privatização resolveria o problema do saneamento básico. A Caixa Econômica Federal, principal fonte de financiamento do setor, ficou impedida de financiar o setor público estadual e municipal, para evitar o endividamento e conseqüente déficit primário dos Estados e Municípios.

Isso ocorreu, apesar de ser estarrecedora a situação do saneamento básico no Brasil. Estudo do BNDES mostrava que, nos anos 80, quando o país investia 0,28% do PIB em saneamento, a rede de serviços de água cresceu 5,9% ao ano e a de esgoto, 4,8%. Na década de 90, os investimentos despencaram para 0,13% do PIB. Uma das conseqüências disso foi o aumento nas mortes de crianças de até 4 anos. De acordo com o Censo 2000, apenas 62,8% da população contava com serviço público de coleta de esgoto. Somente 30,2% dos 10% de domicílios mais pobres tinham acesso à rede de esgoto, menos da metade do percentual de 69,7% dos 10% de domicílios mais ricos. Uma rede geral de água estava disponível para 78,2% do total dos domicílios, atingindo 99,6% para os 10% mais ricos. A coleta de lixo só beneficiava 78,3% da população. Para a universalização dos serviços seriam necessários, segundo cálculos do governo, cerca de R$ 4 bilhões / ano, durante dez anos.

2.3. Problema do descasamento contratual no financiamento imobiliário

A questão habitacional brasileira ainda está muito longe de ser resolvida. O déficit habitacional do país, em 2005, era estimado em 7.902.699 moradias, segundo informações da Fundação João Pinheiro. Para comparação, existiam, em 2005, cerca de 53 milhões de domicílios ocupados, sendo 73% pelos proprietários. Entre 1970 e junho de 2007, segundo a ABECIP, por meio do SFH (Sistema Financeiro da Habitação), foram financiadas 9.174.723 moradias em todo o país, sendo 5,970 milhões com recursos do FGTS e 3,204 milhões com recursos da caderneta de poupança. Desse total acumulado desde 1970, 91% foram unidades financiadas pela Caixa. Estimava-se que 96,3% do déficit habitacional concentravam-se no grupo de famílias com renda de até cinco salários mínimos, sendo 90,3% até 3 salários mínimos. O grande desafio fiscal-financeiro era chegar ao ponto de ter condições de oferecer empréstimos adequados (subsidiados) a essa parcela da população com baixa capacidade de pagamento.

Page 12: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 63

Em 2000, existiam mais de 650 mil ações judiciais contestando os saldos devedores dos contratos. Esses mutuários acreditavam que ao final dos 20 anos de financiamento ainda não teriam terminado de pagar os imóveis. Para a Caixa, porém, o número de contratos desequilibrados era menor. Segundo o documento da instituição, havia necessidade de solução para cerca de 200 mil contratos, sendo 177.042 da própria Caixa e os demais de outros agentes financeiros.

A maior parte desses contratos foi assinada, entre novembro de 1984 e abril de 1993, pelo Plano de Equivalência Salarial por Categoria Profissional. Carregavam, portanto, os efeitos dos planos econômicos da época: juros altos sobre os saldos devedores e prestações reduzidas em função do baixo reajuste salarial.

No Plano Cruzado, em fevereiro de 1986, houve uma correção média das prestações em 41% e dos saldos devedores em 131%. No Plano Verão, em janeiro de 1989, as prestações ficaram congeladas por seis meses e houve reajuste pleno dos saldos devedores. No Plano Collor 1, em março de 1990, as prestações do Plano de Equivalência Salarial foram reajustadas em 41% e saldos devedores, em 84%. No Plano Collor 2, em fevereiro de 1991, as prestações foram convertidas pela média dos últimos 12 meses sem repasse das antecipações salariais. Houve reajuste pleno dos saldos devedores.

Uma comparação entre a TR (Taxa Referencial), que reajustava os contratos, e o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), que era a referência para reajuste de salários, mostrava que a variação do primeiro índice foi 22% maior que a do segundo, entre julho de 1994 e dezembro de 1999. Os contratos que não tinham cobertura do FCVS (Fundo de Compensação das Variações Salariais), ao final do prazo de financiamento, sujeitavam o mutuário à contratação de um novo prazo para pagamento do resíduo. Por causa do saldo devedor crescente, esses mutuários não conseguiam vender o imóvel e nem mesmo devolvê-lo, pois isso não eliminava a dívida.

Para entender o estouro nos saldos devedores, há de se partir da análise das diferenças de reajustes entre passivos e ativos. Na maioria dos contratos do SFH, o saldo devedor era reajustado, mensalmente, pelo índice da poupança e a prestação era reajustada anualmente. Nos contratos de equivalência salarial, a prestação era recalculada de acordo com o reajuste da categoria profissional ou o percentual de comprometimento de renda.

Nas sucessivas renegociações, por causa dos problemas de inadimplência, foram incorporados encargos em atraso ao saldo devedor de vários mutuários. Foi constatada a impossibilidade de repasse de aumentos salariais, desde que a livre negociação salarial e a grande quantidade de mutuários tornaram inviável o efetivo repasse do índice da categoria profissional do mutuário à prestação. Além disso, havia o problema das liminares judiciais: milhares de contratos tinham prestações reduzidas por decisão judicial. Os juros altos colaboraram para agravar o processo. A elevada taxa de juros, durante 8 anos do governo FHC, elevou a Taxa Referencial (TR), base de remuneração da poupança e do FGTS. O resultado disso foi a elevação dos saldos devedores do SFH. Depois do Plano Real, implementado em julho de 1994, a massa salarial não subiu na mesma proporção por causa da relativa estabilidade da inflação.

Qualquer solução a ser dada para os contratos do SFH sem FCVS não poderia ser adotada de maneira genérica para todos os mutuários. Também não poderia ser

Page 13: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 64

permanente, como aconteceu com o FCVS. Este constituiu um subsídio generalizado e cumulativo, embora tenha sido criado para resolver uma situação conjuntural: reajustes que foram repassados de maneira diferenciada aos saldos devedores e às prestações. Nesses casos, talvez tivesse sido melhor oferecer um bônus ou um desconto temporário e exigir a mudança na correção dos contratos.

O tipo padrão de financiamento do SFH com juros de 12% ao ano, correção pela TR e sistemas de seguro às vezes onerosos, causou contratos desequilibrados, cujas prestações não conseguiram amortizar nem conter o crescimento descontrolado do saldo devedor. Antes de sua reestruturação patrimonial, segundo a Caixa, 20% do 1,6 milhão de contratos em vigência no país estavam desequilibrados. Havia a necessidade de renegociação dos contratos de dívida desequilibrados.

Um dos maiores problemas era a correção monetária pela TR, usada para corrigir prestações e saldos. A TR era uma média da remuneração paga pelos CDB (Certificados de Depósitos Bancários) dos principais bancos. Sobre essa média incidia um redutor definido pelo Banco Central do Brasil. Era um índice instável, sujeito à grande volatilidade da taxa de juros brasileira. De 1994 a 1998, a TR variou 103,82%, enquanto o INPC, 70,34%. Porém, em 1999, o IGP-M superou a poupança (juros mais TR) por 21,2% a 5,9%. Portanto, a opção de usar um índice que medisse a variação de preços, como o INPC, também oferecia risco.

A TR era aplicada principalmente na correção da poupança e dos financiamentos habitacionais. Para a troca do índice de correção das cadernetas de poupança haveria a necessidade de incluir todos esses contratos de financiamento vinculados à TR. Era necessário a TR continuar a ser calculada e divulgada pelo Banco Central, não só para corrigir o estoque de créditos do sistema financeiro da habitação, mas também para corrigir os demais ativos com TR. Entre eles, existiam FCVS, FGTS, TDA (Títulos de Dívida Agrária), CRI (Certificados de Recebíveis Imobiliários), LCI (Letras de Crédito Imobiliário), DJ (depósitos judiciais).

Os mutuários do SFH foram afetados com a mudança do indexador da poupança. Quase todos os contratos de financiamento habitacional previam que as prestações e o saldo devedor seriam corrigidos pelo mesmo índice de correção da caderneta de poupança. Não importava se o novo indexador fosse um índice de preços ou uma cesta de índice de preços, ele corrigiria a maioria dos empréstimos habitacionais. Caso esse novo indexador subisse, a prestação e o saldo devedor também seriam elevados. Só não seriam afetados pela mudança os contratos com reajuste pela equivalência salarial. Nesses casos, a prestação subia de acordo com os reajustes de salário do mutuário. Mas, mesmo assim, esses mutuários, assim como os demais, tinham seu saldo devedor reajustado pelo índice de correção da poupança. Não havia como desvincular SFH de poupança, porque os recursos com que os bancos sustentavam os saldos de empréstimos imobiliários vinham exatamente da caderneta de poupança.

A proposta de modificar o indexador das cadernetas de poupança, para um índice de preços, para tornar a aplicação mais atraente, podia significar o início da volta da indexação no país. Nesse processo, todos os contratos, preços e salários seriam reajustados, periodicamente, com base na inflação passada. Com isso, a inflação poderia ganhar força, tal como no processo contínuo que assolou a economia do país até 1994. Por esse trauma, avaliava-se como o principal risco. Alguns analistas do mercado

Page 14: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 65

achavam que, em vez de simplesmente trocar o índice, o governo deveria reduzir ainda mais os juros.

O problema de índices de correção se agravava porque, apesar de a TR ser utilizada nos financiamentos e na correção das fontes de recursos do sistema, basicamente poupança e FGTS, as construtoras recebiam as prestações dos seus clientes com correção pelo INCC (Índice Nacional da Construção Civil) ou outro índice de inflação. A legislação não permitia que as construtoras fizessem a correção pela TR. Se ela fosse mantida, a legislação teria de ser modificada para permitir o seu uso pelas construtoras. Os construtores reclamavam que estavam tendo prejuízos com o descasamento dos índices, desde 1994. Olhando para o longo prazo, era necessário um índice que refletisse melhor para o financiado, seja construtora, seja mutuário, os seus ganhos ao longo do período.

Trocar o indexador para aumentar o rendimento da poupança traria duas conseqüências. Em uma ponta, cresceriam os depósitos na caderneta, pois o ganho seria maior. Na outra, cresceriam os saldos devedores dos mutuários, o que poderia aumentar ainda mais a inadimplência, ou seja, o atraso no pagamento das prestações. Sempre que o governo mudava a forma de seu cálculo surgiam reclamações. Se o rendimento da caderneta caia, reclamavam os poupadores; se subia, reclamavam os mutuários. Não se tinha uma solução para esse impasse.

Debatia-se sobre alternativas. Havia dúvida se seria interessante uma solução de correlacionar todas as remunerações de ativos e passivos do sistema financeiro a um percentual de CDI, portanto, a uma taxa pós-fixada. Outros analistas achavam que, em condições de equilíbrio interno (baixa inflação) e externo (superávit nas transações correntes), seria possível se estabelecer um sistema de financiamento com taxas prefixadas. Entretanto, como reagiria esse sistema face a um choque de juros: não aumentaria a remuneração da poupança, as prestações, o desemprego e, conseqüentemente, a inadimplência? A principal conclusão do debate (e da análise da experiência histórica brasileira) era que, sem estabilidade macroeconômica, nenhum sistema de financiamento imobiliário funcionaria adequadamente, em longo prazo.

2.4. Diagnóstico oficial

Nos anos 70, a Caixa Econômica Federal praticamente restringia-se à captação de depósitos de poupança (cerca de 80% do total) e seu direcionamento para o crédito destinado à aquisição da casa própria. O Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE) era o responsável pela captação de fundos para o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), então regulado pelo Banco Nacional da Habitação (BNH).

As alterações implementadas no SBPE e SFH, no início da década de 80, resultaram em desequilíbrios nos contratos firmados com mutuários. Várias determinações legais deram início aos desequilíbrios na situação econômico-financeira da Caixa. Foram elas: redução de prestações e de saldos devedores com a aplicação de índices de correção inferiores ao custo de captação; alargamento de prazos de empréstimos; vinculação dos reajustes das prestações às variações salariais; efeitos dos planos de estabilização. Estes atuaram de forma cumulativa e generalizada, quebrando o equilíbrio financeiro dos contratos, reduzindo o retorno dessas operações e paralisando a capacidade de reinvestimento em novos financiamentos habitacionais.

Page 15: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 66

Foram alteradas as regras de movimentação e remuneração da caderneta de poupança, passando de uma periodicidade trimestral para mensal. Os impactos da alteração nas regras de movimentação e remuneração da caderneta de poupança foram também percebidos no custo médio da captação dos recursos visto que, na sistemática anterior, a perda de remuneração, devido ao saque fora da data base, trazia maiores benefícios à instituição captadora.

Os desequilíbrios entre fontes e usos na carteira imobiliária começaram com as interferências nas regras dos contratos firmados com mutuários, no estertor do regime militar e no início do regime de alta inflação. Elas trouxeram benefício unilateral para os mutuários, com todo ônus sendo transferido para o SFH e, em última instância, para o Tesouro Nacional pela assunção das obrigações do FCVS. Entretanto, a possível conversão de créditos ativos em créditos contra o FCVS eliminava o risco de crédito para a Caixa, mas não gerava a liquidez necessária para reaplicação em novas operações. Isso levava à perda do dinamismo do SFH.

Em julho de 1984, foi aplicado indexador para os saldos devedores dos créditos habitacionais diferente do aplicado nas correspondentes prestações: 254% e 127%, respectivamente. Essa decisão do último governo do regime militar de aplicar indexador menor para as prestações habitacionais que o aplicado aos saldos devedores pode ser considerado o maior fator de desequilíbrio de todo o Sistema Financeiro da Habitação (SFH). A partir daí, reduziram-se os retornos dos financiamentos, aumentaram as ocorrências de amortizações negativas (prestações insuficientes para cobertura do valor dos juros) e, conseqüentemente, o compromisso e a insuficiência de recursos do FCVS.

Outro fator determinante do desequilíbrio estrutural da Caixa, ocorrido na década de 80, foi a incorporação do BNH, e sua conseqüente atribuição como Agente Operador do FGTS, responsável não só pelas atividades de administradora dos ativos e passivos do fundo, mas, e principalmente, pelo risco de suas operações de crédito, inclusive daquelas contratadas anteriormente à incorporação. Para as operações realizadas à sua época, o BNH não possuía provisões para devedores duvidosos em níveis suficientes, nem mesmo para proteção contra o risco praticamente já caracterizado, como eram os casos das empresas em liquidação extrajudicial e das empresas tidas como "repassadoras", grandes devedoras do FGTS, do Fundo de Assistência à Liquidez (FAL) e do Fundo de Estabilização (FE). As provisões, necessárias à cobertura do risco com essas empresas, superaram o patrimônio líquido do BNH, incorporado pela Caixa.

Ao final da década de 80 e no decorrer dos anos de 90, outras ocorrências foram também sensivelmente nocivas ao equilíbrio da Caixa, segundo a Controladoria da empresa: fim da isenção de tributos federais, que a ela gozava até a Constituição Federal de 1988; bloqueio dos cruzados novos e exigência de recolhimento ao Banco Central do Brasil; contratação desordenada de créditos com recursos do FGTS ao final do ano de 1992; alterações nas regras contábeis e de funcionamento para as instituições financeiras.

O fim da isenção de tributos federais para a Caixa trouxe um crescimento na despesa operacional não passível de compensação com crescimento das receitas da maior parte dos ativos. Isto porque nas operações de Crédito Habitacional, contratadas no âmbito do SFH, tanto com recursos do SBPE quanto com recursos do FGTS, não

Page 16: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 67

houve como repassar o aumento dos tributos via revisão das taxas das operações, devido à rígida regulamentação.

O bloqueio dos cruzados novos e a determinação de seu recolhimento ao Banco Central, realizados pelo Plano Collor, trouxeram fortes impactos negativos à liquidez e aos resultados da Caixa. A maior parte de seus ativos estava concentrada em aplicações de longo prazo e ela não dispunha de recursos disponíveis em volumes suficientes para realizar tal recolhimento e nem perspectivas de obtenção de recursos em curto prazo. Em decorrência, durante longo período, nos anos 90, a Caixa teve que recorrer a empréstimos e refinanciamentos junto ao banco central, pagando juros a taxas muito superiores às praticadas nos ativos que estavam sendo refinanciados. Ela teve, inclusive, insuficiência de liquidez, no início dos anos 90, até o final de 1993.

Ao final do ano de 1992, por determinação do Governo Collor, não contestada pela alta administração da Empresa, foram contratadas operações com recursos do FGTS em volumes superiores à capacidade financeira do Fundo, sem qualquer critério de seleção de tomadores e sem a certeza da existência de demanda para os empreendimentos financiados. Esse fato, segundo depoimento de sua Controladoria, provocou o surgimento dos chamados "empreendimentos-problema", apresentando volumes expressivos de inadimplência, de invasões e de ações de perdas e danos contra ela.

Deve-se lembrar também a tendência observada na própria população brasileira, encampada no Poder Judiciário, de confundir as operações de crédito habitacional da Caixa com a forma de o Governo Federal cumprir com sua obrigação de viabilizar a moradia, dificultando o recebimento dos créditos ou a retomada dos imóveis dados como garantia. Partem do pressuposto equivocado que “a casa própria é um direito”. A lei diz respeito à moradia e não à propriedade definitiva de uma residência, cujo contrato de financiamento não foi cumprido. Mas vários juízes acham que estão fazendo “justiça social” com suas contumazes decisões de perdoar devedores inadimplentes, quando, na verdade, eles estão dificultando outros cidadãos, dispostos a cumprir deveres contratuais, terem acesso à moradia.

Outro fator importante no descasamento entre ativos e passivos foi a evasão de recursos da fonte regulamentar de funding para o segmento habitacional. Isso ocorreu com a criação da poupança rural e a atração das diversas alternativas de aplicações financeiras. A criação da poupança rural no Banco do Brasil deu início à migração de recursos captados e cooperou para a sobre aplicação das operações habitacionais. Na segunda metade da década dos 90, houve ampliação das alternativas de aplicações em fundos mútuos de investimento e CDB/RDB. O resultado foi uma evasão gradativa de importantes fontes de recursos de baixo custo.

Antes, não havia preocupações institucionais no sentido de estruturar e manter controles que possibilitassem gerir de forma adequada as captações e aplicações de recursos, em especial aqueles decorrentes do SBPE. Também não existia adequado planejamento econômico-financeiro que permitisse antever problemas de descasamentos de prazos, taxas e volumes. A liberação da captação de depósitos de caderneta de poupança a outras instituições, assim como a criação da Caderneta de Poupança Rural e de novas alternativas de aplicações financeiras, acrescidas da proibição de a Caixa operar com determinados produtos de captação, provocaram grande evasão de recursos dos depósitos dela para outros bancos. Criou grande risco de

Page 17: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 68

descasamento entre ativos e passivos na Empresa. O impacto dessas medidas só não foi maior graças ao quase concomitante crescimento dos Depósitos Judiciais.

A carteira formada com recursos do FGTS não apresentava descasamento relevante em relação a volumes e prazos, mas o spread médio obtido se situava abaixo de 0,5% a.a. Era uma margem insuficiente para cobertura dos custos administrativos, riscos e necessidade de capital da Caixa. Além disso, com inadimplência e atraso no pagamento por parte dos mutuários, a diferença era arcada pela Caixa com recursos a custo de oportunidade SELIC.

A transferência de parte dos saldos devedores dos empréstimos liquidados com cobertura do FCVS revelou não ser a proteção patrimonial devida. A parte habilitada junto ao FCVS, após janeiro de 1997, passou a ser remunerada a uma taxa de juros igual ao custo de captação. Assim, faltava a cobertura dos demais custos incorridos na operação. Era uma operação sem geração de resultado.

O vice-presidente de Controladoria da Caixa Econômica Federal, no período 2002-2007, João Aldemir Dornelles, participou diretamente da adoção de ações destinadas à reestruturação dos seus ativos e passivos. É dele um depoimento por escrito em que expõe a situação anterior e as operações realizadas na reestruturação patrimonial de 2001.

De início, Dornelles alerta que “ao mesmo tempo em que dela são cobrados benefícios diretos à sociedade, na forma de financiamentos com reduzidas taxas de juros, é-lhe exigido, também, o mesmo desempenho operacional dos concorrentes, tanto no que diz respeito aos resultados econômico e financeiro como à modernidade e velocidade na prestação dos serviços, embora, como empresa pública, sejam-lhe impostas diversas limitações que dificultam sua competição nesse mercado”.

Historicamente, houve sempre um conflito surdo entre sua “área social” e sua “área comercial”. Só recentemente passou-se a adotar a visão que as duas áreas devem ser complementares, com a Caixa operando normalmente em todos os seus segmentos de negócios. Antes disso, justificando-se por sua “missão social” (e pela pressão política), não havia controles eficientes e as aplicações de recursos eram feitas sem levar em conta a existência de recursos adequados, os níveis de riscos admissíveis e as tendências e condições de mercado.

No caso do crédito imobiliário, Dornelles lembra que ele esteve sempre sujeito, no Brasil, às interferências políticas que alteravam suas regras constantemente, beneficiando os mutuários sem preocupação com os reflexos para as instituições financeiras. Essas interferências refletiam de forma mais forte na Caixa, dada à sua expressiva concentração de aplicações nessa área.

Foi possível conhecer a baixa qualidade dos créditos dos bancos públicos, graças a uma nova regra do Banco Central do Brasil, que buscava conferir maior transparência aos balancetes dos bancos. Desde março de 2000, os bancos foram obrigados a atribuir notas às suas operações de crédito, de acordo com os riscos de inadimplência. O conceito mais alto era "AA", atribuído exclusivamente a clientes de primeira linha. Existiam outras oito categorias, que iam de "A" a "H". Os créditos de pior qualidade (recebimento mais difícil) eram classificados ''H''. Essa classificação era feita com base em critérios definidos pelo banco e pelo tempo de atraso.

Page 18: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 69

Pelo primeiro balanço após a nova regra, volume de créditos com nota "H" equivalia a 25,6% da carteira do Banco do Brasil, percentual que tornava a instituição líder em operações com baixa qualidade. Seu índice era quase dez vezes superior à média do setor privado. Receberam nota "H" só 2,7% dos créditos concedidos pelos 87 bancos privados nacionais que divulgaram balancetes de março de 2000. A Caixa tinha um índice de 16,8% de créditos "H", comparado ao total de empréstimos.

Esses créditos de má qualidade já tinham afetado os balanços dos bancos, pois as regras do banco central determinavam provisão (dinheiro que ficava separado) de 100% dos créditos "H". Os bancos públicos também apresentavam uma carteira mais desfavorável quando os créditos eram vistos pelos empréstimos de primeiríssima qualidade. Os créditos que receberam nota "AA" equivaliam a apenas 14,8% da carteira do Banco do Brasil. A forte presença da Caixa no setor de habitação explicava seus créditos de baixa qualidade. Se o mutuário atrasava suas operações por um ano, todo o saldo devedor recebia o conceito “H”.

Essas exigências de maiores níveis de capitalização e de aprovisionamento de recursos atingiram diretamente à Caixa. Ela sempre atuou em larga escala em operações de longo prazo de retorno, de reduzidas taxas de rentabilidade e de elevados níveis de inadimplência. Segundo Dornelles, “contando com reduzidos níveis de capital próprio, ela se viu impossibilitada de adotar todas as medidas exigidas na regulamentação, sem perspectivas de recuperação a médio e a longo prazo já que dependia de eventos não recorrentes para a geração de resultados positivos”.

Em decorrência da série de fatos ocorridos desde a década de 80, a Caixa não estava preparada estruturalmente e também não possuía condições econômicas para suportar os impactos decorrentes das alterações de regras introduzidas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil. Notadamente, eram adiadas aquelas que diziam respeito à implementação do Acordo da Basiléia e ao tratamento contábil aos créditos em atraso e em liquidação e as respectivas provisões para risco de crédito.

Ao final do 1º semestre de 2001, a Caixa encontrava-se desenquadrada em todos os limites operacionais previstos nas regulamentações do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central do Brasil. O índice de imobilização situava-se em torno de 1,87, quando o limite máximo era de 0,7. O capital de giro próprio era negativo em R$ 2,1 bilhões. O Patrimônio Líquido Ajustado correspondia a apenas 4,4% dos ativos ponderados segundo o risco, quando o mínimo exigido era de 11%, registrando insuficiência de R$ 3,6 bilhões. As provisões para risco de crédito eram R$ 11,4 bilhões menores que as provisões exigidas pela Resolução 2.682/99 do Banco Central.

Além disto, a Caixa possuía uma série de outras insuficiências de provisão para

fazer face a ativos insubsistentes, ou seja, passivos contingentes, cujas regras de prudência recomendavam sua constituição. A Caixa não vinha descumprindo apenas a regra de direcionamento básico da Caderneta de Poupança. Pelo contrário, nesta, a Caixa possuía excesso de recursos aplicados em créditos habitacionais.

Em levantamento procedido a partir de trabalho de inspeção realizado pelo Banco Central do Brasil e de diagnóstico elaborado por técnicos desta Empresa, datado de 30 de abril de 2001, observava-se a existência “inobservâncias de limites operacionais”, insuficiências de provisões e ajustes gerenciais necessários à perfeita

Page 19: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 70

leitura dos ativos e passivos da Caixa. Esses números tomavam clara a situação de insolvência por que ela passava, demonstrando a necessidade urgente de serem realizadas profundas alterações nas estruturas econômicas e patrimoniais, de forma que a Empresa continuasse habilitada a operar no mercado financeiro nacional.

Daí, a realização de trabalhos conjuntos entre representantes da Caixa Econômica Federal, da Secretaria do Tesouro Nacional e do Banco Central do Brasil, no sentido da identificação das alternativas que possibilitassem devolver à Empresa as condições operacionais necessárias, sem, no entanto, trazer ônus adicionais ao Tesouro Nacional. Esses trabalhos culminaram na proposição de uma série de ações que foram inseridas na Medida Provisória n° 2.155, de 22 de junho de 2001, que estabeleceu o Programa de Fortalecimento das Instituições Financeiras Federais e autorizou a criação da Empresa Gestora de Ativos (EMGEA).

Considerando todos os fatores, o grupo de trabalho STN/Caixa propunha um programa de engenharia financeira. Fazia questionamentos dos normativos do Banco Central do Brasil. Apresentava uma revisão da precificação dos créditos imobiliários com recursos do FGTS e da Caixa, uma revisão dos descasamentos de volumes, prazos, taxas e indexadores, uma revisão dos passivos contingentes e uma revisão dos depósitos judiciais.

2.5. Reestruturação patrimonial

Por meio do Programa de Fortalecimento das Instituições Financeiras Federais, instituído pelo Governo Federal com a edição da Medida Provisória 2.155 de 28 de junho de 2001, as transformações na estrutura patrimonial, inseridas no programa chamado "Reestruturação Patrimonial da Caixa", promoveram profundas alterações no perfil dos seus ativos. Conseqüentemente, elevou sua capacidade de geração de resultados, a partir de então, produzindo resultados recorrentes positivos ao contrário do que acontecia até sua implementação.

Às vésperas do anúncio do programa de reestruturação patrimonial, inclusive contrariando os balanços publicados na imprensa e os dados enviados ao Banco Central do Brasil, membros da diretoria abandonaram seu silêncio em relação a um fato grave. Em entrevistas e palestras, anunciaram que havia mais de 14 anos que a Caixa não apresentava equilíbrio econômico, ou seja, a soma de suas receitas recorrentes era insuficiente para o pagamento de suas despesas e custos. Ela teria apresentado lucro contábil nos 3 anos anteriores graças a operações que não se repetiriam mais, como a quitação antecipada de 693 mil contratos imobiliários, permitindo-a receber os títulos do FCVS. O lucro líquido que apareceu no balanço publicado em 2000 (R$ 327 milhões) foi devido a eventos não recorrentes.

O objetivo da reestruturação patrimonial foi assegurar o enquadramento da Caixa Econômica Federal às regras do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central, fortalecendo a sua atuação nas áreas de Desenvolvimento Urbano, Transferência de Benefícios e Serviços Financeiros. Ela se compôs de três pontos principais. Primeiro, a segregação dos créditos habitacionais gerados até 1995, que apresentavam desequilíbrio econômico-financeiro. Segundo, uma engenharia financeira que permitiria a capitalização da Caixa. Por fim, a revisão dos preços de seus produtos, objetivando garantir uma rentabilidade mínima sobre o patrimônio líquido, e a

Page 20: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 71

explicitação dos custos dos programas públicos, para reembolso pelas instituições governamentais demandantes.

As medidas implementadas no âmbito do Programa de Reestruturação Patrimonial, segundo o VP da Controladoria, João Aldemir Dornelles, reduziram os desequilíbrios da Caixa de R$ 54,585 bilhões para R$ 13,183 bilhões.

Os créditos habitacionais segregados foram transferidos para uma empresa não-financeira (EMGEA – Empresa Gestora de Ativos), vinculada ao Ministério da Fazenda, com o objetivo de gerir esses ativos, permanecendo com a Caixa a administração da carteira na condição de prestação de serviços. Os ativos da EMGEA foram compostos de créditos “podres”. Em função deles, ficou conhecida como PODREBRÁS. Em contrapartida a esses ativos, a EMGEA assumiu passivos junto ao FGTS, FDS e FAHBRE.

A missão inicial dessa empresa era cobrar no mercado R$ 26,7 bilhões devidos por mutuários inadimplentes à Caixa. Essa dívida estava pulverizada em 500 mil contratos habitacionais em atraso, além de títulos estaduais recebidos pela instituição em processos de renegociação de dívidas. Desse total de R$ 26,7 bilhões que passaram da Caixa à EMGEA, R$ 14,7 bilhões seriam cobertos pelo FCVS (em última análise, pelo Tesouro Nacional), pois se considerava praticamente impossível recuperar essa quantia. O restante do saldo devedor (R$ 12 bilhões) teria de ser cobrado dos mutuários. Dada sua estrutura pequena (50 funcionários), inicialmente, a cobrança ainda deveria ficar com a Caixa; depois, a cobrança da dívida seria terceirizada. Em decorrência da transferência desses valores para a EMGEA, o desequilíbrio total foi reduzido em R$ 22,285 bilhões.

Estimaram-se os seguintes efeitos de outras cinco medidas básicas:

1. Transferência do risco das operações de crédito com recursos do FGTS, realizadas com outros agentes financeiros, para a União, cujo efeito reduziu o desequilíbrio em R$ 3,917 bilhões.

2. Realização de um encontro de contas entre a Caixa e o FGTS, compreendendo a amortização antecipada de parte da dívida da Caixa junto àquele Fundo, utilizando como moeda de pagamento de títulos CVS: reduziu o desequilíbrio em R$ 2,922 bilhões.

3. Realização imediata da troca dos créditos decorrentes do refinanciamento das dívidas de Estados, pelo prazo médio de 30 anos, por Títulos Públicos Federais, que permaneceriam na carteira da Caixa, mas não exigiam provisionamento: essa medida não trouxe impacto direto nos números apresentados como desequilíbrio, mas melhorou, sensivelmente, as situações de liquidez e de resultados da Caixa.

4. Troca futura de títulos CVS por outros títulos de dívida pública, na medida em que houver novações (reconhecimento dos créditos para quitação do que é devido): reduziu o desequilíbrio em R$ 12,278 bilhões.

5. Efetivadas todas as operações anteriormente mencionadas, restaram ajustes e provisões a constituir no montante de R$ 10,443 bilhões, valor não comportado pelo patrimônio líquido da Caixa, que registrava apenas R$ 2,440 bilhões, sinalizando para

Page 21: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 72

uma necessidade de aporte de capital da ordem de R$ 9,300 bilhões. Como havia dívidas da Caixa junto ao Banco Central do Brasil, decorrentes da utilização de recursos do PROER para aquisição de créditos de outras instituições financeiras, o Tesouro Nacional, aproveitando a oportunidade para suprir necessidade de títulos federais apresentada pelo banco central, efetuou a liquidação dessas dívidas junto àquele órgão. Tornou-se, então, credor da Caixa, e promoveu a conversão de seu crédito em aporte de capital nela.

A penúltima medida, além de reduzir o desequilíbrio em R$ 12,278 bilhões, melhoraria, a partir dos momentos das trocas, a situação financeira e a perspectiva de geração de resultados futuros. Isto porque, colocaria papéis de maior liquidez e com rentabilidade equivalente à taxa SELIC no lugar de créditos que rendiam em média, aproximadamente TR + 5% ao ano e que somente seriam líquidos a partir do ano de 2010, ainda assim, em parcelas mensais durante 18 anos.

A realização dos ajustes remanescentes, após todas essas medidas, provocou a apresentação de resultados negativos nos montantes de R$ 4,394 bilhões, no 1º semestre de 2001, e de R$ 316 milhões, no 2º semestre, totalizando, no exercício, R$ 4,710 bilhões de prejuízo. Compensado pelo aporte de capital (R$ 9,300 bilhões), realizado pelo Tesouro Nacional, o patrimônio líquido da Caixa passou a ser de R$ 4,590 bilhões. A Caixa também se enquadrou, integralmente, no índice da Basiléia (de 4,93% para 16%) e nas normas de provisionamento.

O programa de saneamento financeiro encolheu em 30,5% os ativos da Caixa (de R$ 131 bilhões para R$ 91 bilhões), rebaixando-a para a terceira posição no ranking. Esse foi o efeito da movimentação de R$ 87 bilhões no balanço da Caixa com a venda e transferência de ativos e passivos, incluindo a injeção de capital de R$ 9,3 bilhões e a transferência de R$ 26,7 bilhões em créditos deficitários para a nova estatal não-financeira criada pelo programa, a EMGEA.

O ajuste implicou a redução na carteira de crédito da Caixa pela metade: de R$ 55,3 bilhões para R$ 26,7 bilhões. O Banco do Brasil perdeu menos em operações de crédito registradas: de R$ 40,6 bilhões para R$ 33,6 bilhões. Portanto, como efeito imediato, o Bradesco, com uma carteira de crédito de RS 43,9 bilhões, ganhou o primeiro lugar no ranking dos maiores emprestadores, e o Itaú, o terceiro, com R$ 31,1 bilhões.

Para compensar essa perda de posição relativa, esperava-se o sucesso nas seguintes políticas:

1. Troca de ativos que daria a solução para a estrutura de capital.

2. Definição de um modelo de gestão que garantisse o equilíbrio operacional, com um retorno mínimo sobre o Patrimônio Líquido Exigido suficiente para a realização de investimentos de modernização e implementação de sistemas de controles internos para reduzir a exposição a riscos.

3. Desenvolvimento de uma estratégia que prevenisse a geração de novos “esqueletos”, explicitando os custos dos programas públicos. Caberia ao Governo Federal e ao Congresso definirem o valor do subsídio e a fonte explícita de recursos para seu financiamento.

Page 22: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 73

4. Implantação plena do SFI (Sistema de Financiamento Imobiliário) que assegurasse a venda de créditos imobiliários (securitização dos recebíveis).

A diretoria da Caixa passaria a comportar-se sob a exigência do seu controlador, isto é, seu único acionista, o Tesouro Nacional, de obter uma rentabilidade patrimonial de no mínimo 15% ao ano. Essa era a taxa de juros básica da época, tomada como a referência para o custo de oportunidade do capital do controlador. Para evitar novos “esqueletos”, anunciou-se a idéia-chave de “precificar” todos os produtos, isto é, saber a priori, antes de efetuá-la, se a operação se pagaria ou não, incluindo esse custo de oportunidade na formação da taxa de juros de empréstimos. A precificação correta dos créditos exigiria revisão de descasamentos de volumes, prazos, taxas e indexadores.

O governo FHC via a Caixa somente como um custo, sendo R$ 3,2 bilhões em despesas com pessoal. Pretendia transformar, em curto prazo, uma instituição financeira desenvolvimentista em um “bancão” varejista com rentabilidade de atacadista. Alegava que a área comercial já alcançava essa meta, a área social que “atrapalhava”... Mas a razão de ser da Caixa era justamente sua missão social!

Naquele governo neoliberal, toda a lógica de decisões se tornou a de mercado: cortar custos e ampliar receitas, para aumentar a margem de lucro. Daí, as despesas com pessoal foram cortadas em mais de 20% em termos reais, desde 1997. O quadro, em 2001, tinha 10.200 funcionários a menos do que o contingente de 65.111, no final de 1995, como resultado de 3 PDVs (Programas de Demissão Voluntária). Estava quase 1:1 a relação entre os 54 mil empregados e os 50 mil funcionários “terceirizados”. Um resultado dessa política de pessoal foi a “precarização” da relação de trabalho. As autoridades monetárias tinham permitido que funcionários de loterias, correios, farmácias, padarias e supermercados cumprissem as funções de bancário...

A lógica usada foi a de que os ajustes em relação aos Recursos Humanos (RH) cortariam custos. Por isso a insatisfação demonstrada contra a idade média de 40 anos, o tempo de casa muito grande, e a carência de novas gerações de executivos.

A “gestão de resultados” só enxergava os números das realizações, as metas, não as pessoas por trás deles. De alto a baixo, em toda a hierarquia, se transmitia a pressão. Levava à discriminação dos profissionais na empresa em “os que eram a favor” e “os que não eram”. Provocava o desprestígio dos órgãos de representação. Estimulava a contínua movimentação dos superintendentes de negócios pelas regiões do país.

Houve total perda de autonomia dos gerentes em decisões de crédito. Os sistemas estatísticos de avaliação de riscos acabaram com a ação discricionária dos gerentes, devido ao “crédito pré-aprovado”, resultando na alienação quanto ao trabalho. A “canibalização” (concorrência interna entre as próprias agências) era estimulada pela pressão das superintendências para cumprimento das metas a qualquer custo, inclusive comparando impiedosamente os desempenhos entre os gerentes.

O ajuste patrimonial foi restrito à reestruturação dos ativos, não dos passivos. Seu efeito positivo ocorreria sobre o lucro líquido da empresa, principalmente através da elevação de seus ganhos de tesouraria e da diminuição de suas perdas com operações de crédito imobiliário inadimplentes.

Page 23: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 74

2.6. Perspectiva histórica

Elio GASPARI (FSP: 13/06/1999), em sua ilustrativa linguagem metafórica, colocou o problema do subsídio imobiliário de maneira clara, para qualquer leitor. Ele argumentou que o governo FHC (Fernando Henrique Cardoso) tinha dado à “turma do andar de cima” um subsídio que superou a “grande festa” do programa habitacional dos anos 70 e 80, “uma das mais iníquas transferências de renda já ocorridas no país”. Nela, o governo deu casa própria à boa parte da classe média, à custa de um rombo nas “finanças da Viúva”. O cidadão comprava um apartamento de R$ 50 mil dando 20% de entrada (R$ 10 mil). O saldo era financiado em dez anos, com correção monetária e juros. A inflação gerou saldos insuportáveis, pressionou-se o governo, e os devedores ganharam um subsídio médio de R$ 12 mil. “Um verdadeiro absurdo social. Em um país com milhões de miseráveis, a classe média pagou R$ 38 mil por um apartamento de R$ 50 mil e a Viúva ficou com um buraco estimado em R$ 50 bilhões”.

Gaspari comparou esse “arcaísmo do passado” com a “modernidade do presente” com a seguinte imagem. “Imagine um cidadão chamado Henrique, que precisava de casa própria nos anos 80. Desembolsou R$ 10 mil e, passados 24 meses (o tempo da construção), recebeu as chaves. Passou a morar no apartamento, pagando uma prestação pouco superior a um aluguel. Com o tempo, graças à demagogia, ganhou um desconto de R$ 12 mil sobre o que devia. Agora imagine outro cidadão, chamado Fernando. Ele dispunha de R$ 10 mil em 1995. À diferença de Henrique, não precisava de casa própria. No dia da posse de FFHH, Fernando comprou um certificado de depósito bancário. Ao final deste ano ele deverá ter, limpos, R$ 26 mil. Enquanto os subsídios do plano habitacional deram a Henrique R$ 12 mil, os juros deram a Fernando R$ 16 mil”.

Segundo Gaspari, “tudo estaria muito bem se os dois subsídios tivessem produzido efeitos semelhantes sobre a sociedade brasileira. Não foi assim. Há pelos menos cinco diferenças entre as duas farras. Uma pior que a outra”.

Ele argumenta que a “farra imobiliária”, até o momento em que ele calculava, produziu um buraco de R$ 50 bilhões. A dos juros, não saiu por menos de R$ 70 bilhões.

Entretanto, a “farra imobiliária” produziu 4 milhões de imóveis. “Beneficiou 16 milhões de Henriques, com suas famílias (10% da população). Açucarou a vida da base da classe média (um operário qualificado), chegando, no limite, a um segmento mais abastado (um diretor de empresa). Como os financiamentos tinham teto, a turma do andar de cima ficou de fora. A farra dos juros foi diferente. Deixou a classe média de fora, beneficiando só o andar de cima. Supondo-se que haja no Brasil 1 milhão de Fernandos com cacife para deixar R$ 10 mil num banco, os herdeiros da farra dos juros não chegam a 4 milhões”.

Lembrou também que “da festa imobiliária resultaram 4 milhões de unidades residenciais. Os apartamentos estão lá, com salas, quartos e banheiros. Hoje, enquanto se conjuga o verbo ‘bidar’ (anarcoglotismo tirado do verbo inglês ‘to bid’, que significa dar um lance num leilão), a farra dos juros não produziu um só bidê”. Em outras palavras, um subsídio gerou uma riqueza social permanente, o outro ganho de capital foi fictício em termos de geração de algum bem durável.

Page 24: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 75

Além disso, a “farra imobiliária” gerou, em média, 2,5 milhões de empregos anuais na construção civil. No caso dos juros, o governo deu o dinheiro “a troco de nada”. Disse Gaspari: “desde o dia em que FFHH entrou no Planalto, 1,5 milhão de postos de trabalho viraram fumaça. Os empregos destruídos pela ekipekonômica arruinaram pelo menos 6 milhões de brasileiros”.

Concluiu o articulista: “visto que nenhum Henrique conseguiu levar o seu apartamento para Nova York, o produto da farra imobiliária ficou no Brasil, tornando-se parte de seu patrimônio. Na festa dos juros deu-se o contrário, boa parte do lucro foi para o exterior. Num cálculo conservador, pelo menos R$ 20 bilhões ganhos à custa do desemprego e da estagnação econômica voaram para os paraísos da globalização”.

No início de 2008, doze anos depois de começar a pagar aos bancos a conta dos subsídios concedidos a quem comprou imóvel pelo SFH (Sistema Financeiro da Habitação), o governo ainda tinha um rombo estimado em R$ 82,2 bilhões nas suas contas para quitar. O custo total do "esqueleto", no entanto, era muito maior. Se fossem considerados os R$ 69,3 bilhões já reconhecidos pelo governo, o custo acumulado da subvenção a quem comprou casa própria chegaria a R$ 150 bilhões (FSP: 24/02/08).

A conta vinha sendo paga pelo Tesouro desde 1996, quando o governo decidiu renegociar a dívida com os bancos. Era como se cada um dos 3,7 milhões de contratos de compra da casa própria recebesse um desconto de R$ 39.000,00, cuja conta era paga aos bancos pelo Tesouro. O problema estava sendo equacionado aos poucos. Não havia previsão de alterações no ritmo lento de pagamento dessa dívida.

O desequilíbrio nas contas do SFH tornou-se um problema na década de 80. O regime de alta inflação corroeu os salários e, conseqüentemente, a capacidade de pagamento dos mutuários. A inadimplência aumentou, e o governo decidiu que iria reajustar as prestações dos contratos habitacionais do SFH abaixo das taxas previstas nos empréstimos originais. Na prática, o que o governo fez foi cobrar menos dos tomadores de financiamentos e, ao mesmo tempo, garantir aos bancos que eles receberiam o que estava previsto nos contratos.

Entre 1980 e 1990, houve pelo menos cinco decisões do governo concedendo subsídios ou mudando as regras de reajuste das prestações. O máximo da subvenção foi concedido no governo Sarney (1985/90). Em 1985, as prestações do SFH deveriam ser reajustadas em 242%, mas o governo decidiu que a correção seria de 112%. Quando resolveu renegociar a dívida do FCVS com os bancos em 30 anos, com juros máximos de 6,17% anuais, o Tesouro Nacional o fez por meio da emissão de títulos da dívida interna.

O saldo devedor que se acumulou nesses contratos foi repassado ao FCVS. Criado, em junho de 1967, para cobrir saldos residuais de contratos de financiamento habitacional, o FCVS (Fundo de Compensação de Variações Salariais) deveria ter assumido um saldo que, em valor presente de 2008, ultrapassava os R$ 150 bilhões. Isso considerando o total atualizado da parcela dos créditos já transformados em títulos (R$ 69,3 bilhões) e os R$ 82,2 bilhões ainda não reconhecidos oficialmente na dívida pública.

Page 25: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 76

O problema vinha sendo protelado de governo para governo por causa dos próprios limites fiscais para assumir na contabilidade pública uma dívida desse porte. A assunção desses subsídios ocorreu sem a cobertura de recursos orçamentários. O FCVS passou a assumir responsabilidades crescentes, incompatíveis com seu patrimônio e seu fluxo de Caixa, acarretando o acúmulo da dívida. Essa dívida, porém, só tendia a crescer com a incorporação de juros. Como boa parte dela nem sequer estava oficializada, os juros não eram quitados, apenas incorporados contabilmente pelos bancos para serem pagos retroativamente algum dia. Assim, o “esqueleto” ia sendo “deixado no armário” para administrações futuras.

Somente 43 anos depois da criação do SFH e 13 anos após sua extinção que o governo, através do trabalho de análise da Caixa, começou a dimensionar o tamanho das fraudes ao sistema. A fraude mais comum era a duplicidade de contratos, ou seja, um mesmo mutuário teve mais de um imóvel financiado com subsídio do governo. Outro problema bastante comum era o de contratos deveriam ter sido quitados pelo seguro habitacional. Era o caso, por exemplo, de mutuários que morreram ao longo da vigência do contrato. Durante o período em que os bancos, cooperativas de crédito e sociedades de crédito imobiliário e poupança liberaram recursos aos mutuários, não havia um cadastro centralizado dos financiamentos.

Todos os contratos enviados pelos bancos para pagamento pelo Tesouro Nacional eram submetidos à análise da Caixa, que era o agente operador do governo. Na primeira fase, seus técnicos verificavam se a documentação apresentada estava correta, se havia duplicidade, fazendo as atualizações monetárias, levando em conta as regras de cada contrato, e chegando a um valor do saldo devedor. O banco que concedeu o financiamento tinha, então, de concordar com o valor proposto. Se esse fosse o caso, a próxima etapa era a emissão do título pelo Tesouro Nacional. Se o banco não concordasse com o ressarcimento proposto pelo governo, ou se houvesse qualquer problema documental, o contrato era devolvido à instituição financeira. Apenas 4.051 contratos o Tesouro nada pagou porque o saldo devedor, ao final do contrato, depois de feitas todas as atualizações, ficou zerado.

2.7. Bancarização

Em 2000, a PEA urbana, ou seja, apenas a parcela da população em idade ativa (entre 10 e 65 anos) que realizava alguma atividade considerada produtiva nas cidades, era composta de 63,418 milhões pessoas. Essa seria a clientela bancária em potencial. No mesmo ano, existiam 50,897 milhões de contas correntes de pessoas físicas, na rede bancária brasileira. Como 95% delas concentravam suas operações em um único banco, podia-se estimar que pouco mais de 48 milhões de brasileiros tinham acesso bancário. Restariam cerca de 15 milhões de clientes potenciais a serem conquistados.

As classes de clientela bancária eram divididas por faixas de renda. A classe A1,

acima de R$ 5.000, abrangia somente 1% da população brasileira, cerca de 1,7 milhão de pessoas. A classe A, acima de R$ 2.984, isto é, A2 somada à A1, incorporava 5% das famílias. Entre R$ 1.065 e R$ 2.984, na classe B, estavam 19% das famílias. A classe C1, entre R$ 750 e R$ 1.065, 8%; a C2, de R$ 497 a R$ 750, 23%. Os 45% das famílias restantes eram das classes D e E. A clientela potencial dos bancos recebia acima de R$ 267, isto é, no mínimo estava na classe D. Os clientes classe A eram 4 vezes mais

Page 26: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 77

rentáveis do que os C1; o B rendia 80% mais do que o C1; o C2 era 30% menos rentável do que o C1; e o D rendia 1/3 do que rendia o C1.

O segmento de clientes Classe A1 já estava cativado pelos bancos estrangeiros e

até mesmo pelos tradicionais bancos brasileiros de varejo, como o Bradesco, Itaú e até o Banco do Brasil. A importância da clientela classe A era patente, por exemplo, no caso do Citibank. Apesar de ele ter somente 38 agências e 150 mil correntistas, ele era o 6º maior administrador de fundos, com mais de R$ 19 bilhões de terceiros sob sua gestão, disputando o 4º posto, acirradamente, com a Caixa e o HSBC.

Dos 12,6 milhões de clientes do Banco do Brasil, no início do novo século, cerca de 1 milhão estavam no topo da pirâmide de renda, 3 milhões tinham nível intermediário e 8 milhões, renda abaixo de R$ 1.000,00. Desses últimos, 4 milhões tinham renda inferior a R$ 300. O Banco tentava aumentar a rentabilidade deste grupo de correntistas, incentivando o uso de tecnologia de informação e tornando os serviços mais baratos.

Essa estava sendo a tendência estratégica, no varejo brasileiro: disputar a “franja” do mercado com a tecnologia eletrônica. Os oito maiores bancos concentravam 47,5 milhões de contas correntes, praticamente 93% do total! A Caixa possuía apenas 3,8 milhões contas correntes, em dezembro de 2001. Entretanto, seus terminais "Caixa Aqui" tornaram viável atender milhões de famílias que não tinham acesso físico ou econômico a bancos. Em meados do primeiro semestre de 2002, a meta da Caixa de estar com pelo menos um ponto de atendimento em cada um dos 5.561 municípios brasileiros foi alcançada. Realizava transações em tempo real, com estabelecimentos conectados eletronicamente.

A Caixa estava estreitando a distância em relação aos bancos privados no que se refere à eficiência. Ela adotou, como eles, o modelo de segmentação de clientes. Estava investindo nas operações de reciprocidade, para ampliar o número de produtos financeiros por cliente. Ela tinha relação produto / cliente considerada baixa, em média de 1,5 por cliente, ou seja, metade da média dos grandes bancos concorrentes. O foco de atuação passou a ser a venda de mais produtos bancários para cada cliente. Metade dos seus clientes com cartão eletrônico não era composta de correntistas e nem possuía outro produto. A idéia era aproveitar essa base para vender mais.

A instituição passou por revisão conceitual. Segundo pesquisa de mercado, a Caixa aparecia como a primeira referência em relacionamento bancário para 23% da população. Embora possuísse 17,5 milhões de contas e mantivesse a liderança no mercado brasileiro de poupança com 29,7% de participação, ela detinha menos que 4 milhões de contas correntes. Concedia 77% do crédito imobiliário. Essas operações de crédito criavam um relacionamento de longo prazo com os clientes financiados. Eram, portanto, um instrumento privilegiado de “fidelização” dos clientes.

Se a Caixa “perdia dinheiro” na transferência de benefícios, por exemplo, do FGTS, e no financiamento habitacional, ela ganhava nos serviços de varejo bancário. Isso significava que, para garantir e compensar o ônus da função social, a instituição precisava enfatizar sua gama de serviços entre outros, cheque especial e cartões de crédito, destinados, sobretudo, aos clientes do segmento Integral e Personalizado. Em

Page 27: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 78

outras palavras, sua ação comercial era imprescindível para a manutenção de sua vocação social.

Com objetivo de viabilizar a estratégia de segmentação foram criados os segmentos de Relacionamento Básico, Integral e Personalizado. Foram definidos utilizando-se as variáveis “renda familiar” e “volume de negócios”.

O Segmento Básico era o alvo da missão social da Caixa. Cerca de 50% da população brasileira mantinha algum tipo de relação com a empresa, sendo atendido através desse segmento. Considerando o mercado, era um segmento quase exclusivo dela, que podia ter em volume de negócios (saldo médio do último trimestre dos produtos de captação) individual até R$ 5.000,00. Trata-se de explorar a folha de pagamento através do foco em grandes empresas que ofereciam escala para servir clientes de renda baixa. Era o segmento que no Brasil tinha 21 milhões de domicílios, com renda de até 10 salários mínimos, dos quais metade tinha renda inferior a 2 salários mínimos e era “desbancarizada”. Entre os com renda de 2 a 5 salários mínimos, só 20% tinham conta corrente. Os domicílios com renda de 5 a 10 salários mínimos representavam 22% da população e detinham 15% do PIB, porém, eram pouco sofisticados no uso do sistema bancário.

O Segmento Integral era composto de clientes com renda domiciliar de 10 a 30 salários mínimos e/ou de R$ 5.000,00 a R$ 30.000,00 em volumes de negócios. Representavam 35% do PIB nacional, 78% das famílias eram “bancarizadas”, 46% utilizavam as centrais telefônicas, 10% utilizavam home banking. Nesse segmento, havia, em média, 2,9 produtos por cliente.

O Segmento Personalizado possuía acima de 30 salários mínimos de renda domiciliar e/ou mais que R$ 30.000,00 em volumes de negócios. Este era o mais expressivo em termos de retorno financeiro, consumindo em média 4 produtos. No mercado brasileiro era representado por 2 milhões de famílias com renda acima de 30 salários mínimos e representavam 40% do PIB, sendo 92% “bancarizadas”, 65% com nível superior, 40% já utilizava o home banking.

A posição da Caixa, perante o mercado do Segmento Pessoa Jurídica, era apenas competitiva no segmento de micro e pequenas empresas, sendo o terceiro “banco de primeiras relações” mesmo sem esforço direcionado. Isso porque tinha a terceira maior rede (sem considerar as lotéricas) e as micros e pequenas empresas valorizavam a proximidade da agência. Ela tinha grande experiência nesse segmento, pois 98% dos seus clientes pessoas jurídicas eram micros e pequenas empresas. Ela tinha contato com quase 30% do universo delas.

As lotéricas começaram a receber pagamento de contas em nome da Caixa em 1995. Mas só em 1998 foi que toda a rede passou a oferecer o serviço, com a implementação do sistema on line de loterias. Nem ela própria tinha idéia da participação que as transações financeiras teriam nas lotéricas. Causou surpresa o fato de em tão pouco tempo o volume de contas pagas ter alcançado o dos outros bancos: os pagamentos de contas de água, luz, gás e telefone nas lotéricas representavam 50% do total pago em todo o sistema bancário. Além disso, elas pagavam benefícios a 580 mil aposentados.

Page 28: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 79

A justificativa para esse crescimento foi que as casas lotéricas pegaram o público de baixo poder aquisitivo. Tratava-se daquele cliente que não se sentia bem em relação às agências bancárias cada vez mais eletrônicas. As lotéricas também abriam mais cedo e fechavam mais tarde do que os bancos. As localizadas em shoppings atendiam o público até as 22:00, além de funcionar aos sábados e domingos. Existiam milhares de famílias no Brasil que não tinham acesso a bancos, mas tinham contas para pagar. Muitas dessas pessoas passaram então a fazer o pagamento depois que saiam do trabalho sem enfrentar filas.

As lotéricas funcionavam como espécie de franquia da Caixa Econômica Federal. Ela dava a permissão para que a loja entrasse em operação. O proprietário, que era o administrador do ponto, ganhava comissão pelas vendas. Nos jogos das loterias federais, a comissão era de 9% sobre as vendas, em média. No caso da Mega-sena, a distribuição da arrecadação era a seguinte: 9% ficavam com as lotéricas; 11% com a Caixa; 44% com os premiados; 1% com o Fundo Nacional da Cultura; 22,4% com a Seguridade Social; 9,6% com o Programa de Crédito Educativo e 3% com o Fundo Penitenciário Nacional. Além disso, existia um percentual adicional de 4,5% sobre o valor da aposta, que era destinado ao INDESP (Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto). No caso da arrecadação de contas, a lotérica ganhava pelo volume de negócios. Segundo a Caixa, elas recebiam R$ 0,25, em média, por conta arrecadada.

Com a Resolução nº 2.707 do Banco Central, de março de 2000, elas puderam funcionar também como “correspondentes não bancários”. Isso significou que elas ficaram autorizadas a receber e a encaminhar propostas para a abertura de contas de depósitos à vista, a prazo e de poupança, fazer aplicações e resgates em fundos de investimento, receber e encaminhar pedidos de empréstimos e de financiamentos, analisar crédito e cadastro, executar cobrança de títulos, entre outros serviços. O Sindicato dos Bancários de São Paulo achava que, se as lotéricas executavam esses serviços, os seus funcionários deveriam entrar para a categoria dos bancários. Daí, devido ao risco de um passivo trabalhista, a FEBRABAN tomou a iniciativa junto ao Banco Central do Brasil de alterar a denominação, à semelhança de outros países latino-americanos, passando a chamá-los de “correspondentes não bancários”.

A Caixa passou então a efetivar antigo projeto que previa a abertura de contas corrente e de poupança em casas lotéricas. Chamado de “bancarização da população”, o projeto pretendia trazer para o sistema bancário, inicialmente, 5 milhões de pessoas que não mantinham qualquer vínculo com instituições financeiras. As lotéricas foram os primeiros estabelecimentos comerciais autorizados a funcionar como correspondentes não bancários pelo Banco Central do Brasil.

O interessado podia entregar toda a documentação necessária para a abertura da conta na lotérica, que a encaminhava para a Caixa. O cartão magnético e senha eram entregues ao correntista pelo correio em sua casa ou na lotérica de sua preferência. Não existia exigência de renda mínima nem depósito para abertura de conta.

As casas lotéricas começaram a assumir o papel de bancos populares, a exemplo do que foi feito com os correios na Europa, há décadas. Como “banco do povo”, manipulando as lotéricas como braços financeiros, a Caixa teria sustentação política para continuar a cumprir sua missão social, imune aos ataques dos “privatizantes” e “desnacionalizantes”.

Page 29: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 80

Em meados da 1ª década do novo milênio, cerca de 60% de todas as cobranças recebidas na rede bancária e mais de 50% das contas públicas já eram pagas na rede lotérica. Aproximadamente 70% dos benefícios sociais e das políticas de transferência de renda do Governo eram recebidos também nas loterias. A operação de “internalização de loterias”, rompendo o contrato com a GTech, uma empresa multinacional que dominava a tecnologia dos jogos de loteria, não só no Brasil, mas também em vários países desenvolvidos, pode ser comparada em sua grandiosidade à substituição do voto em papel pelas urnas eletrônicas e à instalação do sistema de declaração de Imposto de Renda pela Internet. A troca de sistema fez do País o primeiro a ter autonomia no processamento de loterias.

Em uma das maiores operações de substituição de rede de prestação de serviços do Brasil (e até do mundo), a Caixa começou a contabilizar os primeiros efeitos da troca do sistema de processamento de jogos e transações bancárias de todas as 8.893 casas lotéricas do país. Para tornar o sistema independente do antigo fornecedor, foram desativados 22.170 terminais e, no lugar deles, instalados 25 mil equipamentos multifuncionais. Com isso, o mesmo computador passou a atender usuários que queiram fazer jogos ou efetuar pagamentos e saques, o que não era possível anteriormente. Se antes eram feitas 67% das transações em jogos e 33% em serviços financeiros, após a troca dos equipamentos antigos por máquinas capazes de realizar tanto os jogos quanto as transações bancárias, com velocidade muito maior, a proporção passou a ser de 57% para 43%, respectivamente.

Nos 1.997 municípios brasileiros onde não havia agência bancária da instituição e nem mesmo uma loja de loteria, a Caixa buscou identificar estabelecimentos comerciais que podiam se transformar em correspondentes não bancários. O foco era em estabelecimentos de comércio varejista, como supermercados, mini-mercados e mercearias, padarias, farmácias e lojas de material de construção. Para o comerciante, a operação era interessante porque ele, além de receber tarifas pela prestação de serviços, aumentava a quantidade de pessoas que entravam em seu estabelecimento, o que proporcionava maiores vendas. Para o município desprovido de agência bancária, os gastos no local propiciavam um multiplicador de renda, antes inexistente.

A Caixa tornou-se a primeira instituição brasileira a operar em tempo real em todos os municípios do país, tornando-se o primeiro modelo de banco verdadeiramente popular. Foram fornecidos terminais dotados de unidade central de processamento, periféricos como visor, leitor de cartões magnéticos, teclado alfanumérico e impressora/autenticadora. O objetivo foi dotar os estabelecimentos comerciais da infra-estrutura básica para que pudessem pagar benefícios como a Bolsa-Escola, do Ministério da Educação, aposentadorias do INSS, o Bolsa-Alimentação, do Ministério da Saúde, e ainda receber o pagamento de contas, como água, luz e telefone.

Em 25 de maio de 2003, uma nova modalidade de conta corrente, denominada Conta Eletrônica Caixa Aqui, foi constituída para o “público não-bancarizado”, ou seja, para aquela parcela da população que não possuía acesso ao sistema bancário. Foi mais um passo na direção de possibilitar a inclusão social dessas pessoas, que somavam 25 milhões de famílias em todo o país. Era uma conta simplificada e movimentada apenas por meio do cartão magnético, dispensando os talões de cheque e tarifas bancárias, desde que obedecidos os limites de transações. A conta permitia a realização de saques, depósitos e consultas de saldo tanto nas agências como nos correspondentes não bancários.

Page 30: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 81

Até maio de 2007, foram abertas 5,04 milhões de contas Caixa Fácil (nova denominação), sendo 3,93 milhões mantidas ativas, observando-se o seguinte perfil do público alvo: 93% dos clientes ganhavam até R$ 800,00; 53% tinham idade até 35 anos; idosos, com mais de 60 anos, correspondiam a 12%; estado civil: 46% eram solteiros; saldo médio: R$ 30,00, que era muito próximo do ponto de equilíbrio. Quando as contas ativas estavam em 3,16 milhões, seu saldo total ultrapassava R$ 93,103 milhões.

Os 18.394 pontos-de-venda da Caixa lhe davam competitividade, devido aos custos mais baixos dos correspondentes. Mas isso não constitui um trunfo apenas para si. A rede de correspondentes não bancários foi um marco para a história bancária brasileira, pois permitiria distribuir benefícios sociais sem intermediários, por meio de cartões magnéticos entregues às famílias, de forma eficaz e segura. Atingiria, diretamente, a chamada “indústria da seca”, isto é, o desvio corrupto dos recursos para os miseráveis, combatendo o clientelismo político. Uma das principais falhas dos programas de combate à pobreza no Brasil era que os recursos e benefícios não chegavam às pessoas mais carentes. Com essa plataforma tornou-se viável atender famílias que não tinha acesso físico ou econômico a bancos. Estendeu-se o conceito de missão social para limites nunca antes alcançados pelo sistema bancário formal.

2.8. Identidade da Caixa

A Caixa, segundo imagem de seus próprios empregados, apreendida em pesquisa qualitativa, era instituição peculiar, pois envolvia, em simbiose, organização pública e privada. Sua principal característica era a pluralidade de funções: era “banco mais que múltiplo”. Seu desafio permanente era enfrentar (e equilibrar) as contradições inerentes às diferenças da lógica pública e da privada, tanto de estratégia mercadológica, quanto de gestão interna. A percepção, em 2005, era que, além de cumprir bem seu papel social, ela estava competitiva em suas ações comerciais.

Após se alcançar a estabilidade inflacionária, no Brasil, ocorreram muitas mudanças no setor bancário brasileiro. Com a nova ideologia neoliberal hegemônica, no governo FHC, as instituições públicas teriam de se tornar auto-sustentáveis ou seriam sujeitas às privatizações. Nesse quadro, segundo seus empregados, a Caixa teve que buscar alternativas para se manter: fortalecer sua área de negócios através da segmentação dos clientes e da regionalização dos escritórios de negócios; investir em tecnologia, ampliar carteira de produtos; implantar mudanças na gestão de pessoal, criando mecanismos de avaliação de desempenho e metas. O PRC (Programa de Racionalidade e Competitividade) foi o maior marco dessa época.

Os aspectos positivos dessa mudança, citados pelos empregados, foram o fortalecimento da Caixa como banco comercial; o início do processo de profissionalização do banco com foco em resultados; e a “mexida” na cultura dos empregados com uma cobrança muito maior de alcance de metas estabelecidas de maneira centralizada. Na realidade, o marco positivo foi que se mostrou a necessidade da Caixa se adaptar aos novos paradigmas competitivos para sobreviver.

Os aspectos negativos da mudança ocorrida na gestão da Caixa, durante o governo FHC, envolveram, principalmente, o peso excessivo no comercial e relativo descaso com o social, desequilibrando sua identidade. Houve foco excessivo em resultados financeiros. A desejada mudança de paradigma na relação com os empregados não ofereceu o instrumental necessário em treinamento e tecnologia. Faltou

Page 31: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 82

inclusive implantar um plano de carreira. A proibição de contratar levou ao envelhecimento do quadro de pessoal. Na gestão 1999-2002, havia uma cobrança “desumana”, inclusive com tratamento desrespeitoso, sem educação, e muitas vezes humilhante para o funcionário. Portanto, os marcos negativos que ficaram na memória dos empregados foi a desmotivação pessoal, o autoritarismo das chefias em todas as instâncias, a falta de participação e transparência institucional para com os empregados.

As mudanças, na gestão do 1º mandato do governo Lula, foram percebidas de maneira distinta pelos empregados. Houve, principalmente, uma mudança de filosofia com a Caixa retomando seu papel de executor de políticas sociais. Essa sua valorização como instrumento de intervenção social redefiniu a concepção de metas e produtos, mudando inclusive a linguagem do banco com um foco mais “nobre” que equilibrava mais seus dois lados: o social e o comercial.

Um Gerente Geral expressou isso de maneira simples: – “Antes era financiamento habitacional, hoje é acesso à moradia. Era empréstimo para pessoa física, hoje é renda e consumo, e para pessoa jurídica é emprego, renda e produção. Antigamente, a gente captava dinheiro, hoje a gente faz formação de poupança. É mais nobre, não? É um ponto de equilíbrio melhor entre os objetivos da organização e seus negócios financeiros. Muito mais bonito falar em meta de acesso à moradia. ‘Acesso à moradia’: você lembra do cidadão, de um lugar para ele morar. Isso humaniza um pouco o nosso trabalho”.

A valorização da Caixa como instrumento de intervenção social ampliou e inovou em sua marca mais tradicional, a habitação, por exemplo, com a realização em série de “Feirão de Imóveis” e a vigorosa retomada do crédito imobiliário. Revigorou também um de seus produtos mais antigos, o penhor, com a criação do micropenhor. Criou produtos específicos e “únicos” no mercado, agregando à linha de “produtos comerciais” outros produtos com viés social: o crédito em consignação e o financiamento de material de construção e computadores são exemplos. Investiu também na abertura de contas para pessoas de baixa renda. Valorizou seu capital humano. Contratou 22.280 empregados, inclusive para substituição de “terceirizados”: seu quadro foi de 55.169 para 77.449 pessoas. Implantou nova postura de gestão, muito mais participativa e transparente. Incluiu seus empregados nas principais preocupações do Banco e sinalizou isto desde o início.

O maior marco dessas inovações foi o Planejamento Estratégico Participativo, realizado de maneira inédita sob discussão coletiva, em que houve transparência e divulgação dos rumos e objetivos de longo prazo, acertados em reuniões com participantes de representantes de diversos níveis hierárquicos. Inclusive houve a inclusão do ambiente de trabalho nestes objetivos com a meta de, até 2015, “a Caixa entrar na lista das melhores empresas para você trabalhar”.

O mais importante é que houve discussão prévia na definição de metas e resultados. Diminuiu a pressão das cobranças e valorizou seu capital humano. Ampliou o conceito de resultados, significando não só os financeiros, mas também a satisfação dos clientes no atendimento. Para isso, implementou pela primeira vez na rede bancária o sistema de agendamento. Aumentou disponibilidade dos empregados para atender bem a todos e investiu em instrumentos de capacitação profissional como a Universidade Corporativa, ampliando a educação à distância com amplo acesso à internet e intranet e serviços/consultas on line. Investiu na qualidade de vida dos

Page 32: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 83

funcionários, por exemplo, com o ponto eletrônico, as campanhas preventivas e de saúde (antitabagista e vacinação antigripe), o reconhecimento da igualdade dos direitos dos casais homossexuais. Implantou a Ouvidoria como um canal direto de comunicação. Deu maior autonomia de decisões às superintendências e gerências gerais.

Em síntese, os marcos positivos na gestão administrativa, durante o 1º mandato do governo Lula, além de alcançar os maiores lucros de sua história, foram: o aumento da visibilidade da Caixa, a valorização de seu papel social e o enobrecimento de sua função tanto diante da sociedade quanto de seus empregados. A gestão era mais transparente e mais participativa, com clareza de rumos e as estratégias discutidas amplamente. Enfim, reconhecidamente, houve a melhoria do ambiente profissional interno, com a humanização do relacionamento e o ressurgimento do orgulho por se trabalhar na Caixa.

O aspecto negativo, salientado na pesquisa qualitativa interna, realizada entre os empregados, foi o aumento da ingerência política na política de promoção do banco: – “Isso sempre ocorreu, mas em cargos mais altos. Nesta gestão houve distribuição de cargos partidários até para gerente de conta” (Gerente). Apesar disso, o balanço da 1ª Gestão do Governo Lula foi muito positivo, pois as qualidades ultrapassaram em muito os defeitos. Os aspectos negativos eram, no máximo, desafios e problemas estruturais que a Caixa, aparentemente, tinha condições de enfrentar o mais breve possível: o excesso de “partidarização”.

Mas, isso não se revelou possível no governo Lula, em seu 2º mandato. Ele foi montado com base na troca de apoio político por ocupação de cargos em ministérios e empresas estatais. A sociedade brasileira teve a oportunidade de assistir a partilha de cargos no governo federal. O critério técnico de mérito e/ou reputação profissional foi substituído pelo de “laços afetivos (e efetivos)” com caciques de partidos. Em muitos casos, bastou simples diploma de curso superior para justificar a “competência” para o cargo.

Para se superar esse fisiologismo político, pode se criar a Escola Superior de Administração Bancária, a exemplo da Escola Superior de Administração Fazendária e/ou do Instituto Rio Branco, colocando seu diploma em nível de pós-graduação como requisito para a ocupação de cargos na alta administração dos bancos públicos inclusive do Banco Central do Brasil. Com a exigência de atestar essa formação de excelência, talvez se blindasse contra o assalto dos parlamentares ao butim. A burocracia do aparelho estatal brasileiro exige análise sociológica e política mais profunda. Entretanto, à primeira vista, salta aos olhos do observador sua fragilidade profissional. Com planos de cargos e salários defasados em relação ao mercado de trabalho, os burocratas, embora detenham suposta estabilidade no emprego, devido aos concursos públicos, estão mercê à hierarquia superior por causa do risco de perderem a função e com isso perderem suas comissões pelo cargo detido. Não é que se acovardam face aos de maior poder, mas se dobram à estratégia de sobrevivência burocrática.

Dificilmente burocratas assumem a responsabilidade de tomar individualmente uma decisão, mesmo sendo dentro de seu “regime de alçada”. Tendem a passar para cima até que caia em “comitês” e/ou “conselho diretor”. Estes coletivos são a forma de diluir responsabilidades: pode se jogar a culpa em outro. Quando se erra coletivamente, a defesa pode alegar que foi vítima de acontecimentos que surpreenderam a todos;

Page 33: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 84

quando se erra individualmente, a pessoa é julgada culpada por incompetência ou má-fé, sem perdão.

O que esperar então de incompetentes, isto é, políticos sem votos, assumindo a direção da máquina pública? Em troca das mordomias dos cargos delegam tudo aos subalternos, que os trata com todo o respeito que se deve ter por “rainhas da Inglaterra”. Reinam sem governar. Com isso, quem de fato perde é o resto da sociedade, dependente de políticas públicas. Nada de novo se cria, devido tanto à incapacidade criativa (para criar bem público), quanto à blindagem burocrática defensiva para se evitar criar problema maior. Tudo se arrasta em interminável processo de “mais do mesmo”...

Isso parece ser normal, em país e, especialmente, em cidade que tem Senado que “abriga em sua burocracia verdadeiros clãs encabeçados por funcionários que entraram na Casa por meio do ‘trem da alegria’, ascenderam a postos-chaves, e agora empregam mulheres, maridos, filhos, irmãos e agregados em cargos de confiança – sem a necessidade de concurso público” (FSP: 23/10/07). Têm salários muito superiores ao de qualquer professor-titular, que estudou durante vários anos e passou em todos os concursos públicos, com defesa de tese, obrigatórios para ascender na carreira universitária. Os nomes de senadores estão ligados à maioria dos clãs, sendo os padrinhos da indicação da maioria de seus afilhados, inclusive em bancos públicos.

Infelizmente, no 2º mandato do governo Lula, não se afastou o apadrinhamento político na escolha dos ocupantes dos cargos, pelo contrário, houve a exoneração daqueles sem padrinhos. Isto ocorreu mesmo no caso dos que, reconhecidamente, estavam apresentando bons desempenhos profissionais, inclusive contribuindo para os melhores resultados da história da Caixa.

2.9. Estratégia da tesouraria

Vale apresentar, para ficar registrada como memória (e fonte de conhecimento), a estratégia da tesouraria da Caixa no período de janeiro de 2003 a junho de 2007.

Analisando-se seus balanços, nesse período, saltava à vista o papel da carteira de títulos de dívida pública, tanto em porte (registrado no Balanço Patrimonial), quanto na obtenção do resultado bruto de intermediação financeira, constatado nas Contas de Resultado. A contrapartida passiva desses ativos, em parte, era realizada por operações compromissadas. Estas impressionavam também por sua dimensão e pela particularidade do seu uso estratégico por sua tesouraria.

As operações compromissadas com lastro em títulos públicos federais eram operações de curtíssimo prazo utilizadas pelos gestores como reserva de liquidez para atendimento de resgates ou para esperar o melhor momento para a compra de títulos no mercado. Por exemplo, aguardar leilões primários de títulos do Tesouro Nacional ou a divulgação de algum índice ou taxa de juros que pudesse influenciar o comportamento dos preços no mercado secundário, poderia ser oportuno. Quando o mercado passava por momentos de estresse, com súbita elevação dos deságios das LFT e volatilidade nos preços dos títulos financeiros, os gestores, para reduzir a volatilidade das carteiras, passavam a aplicar uma maior parcela em operações compromissadas de um dia, reduzindo o prazo médio e, conseqüentemente, o risco.

Page 34: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 85

Do lado do Banco Central, as operações compromissadas serviam para alocar a liquidez do mercado, evitando com que ela pressionasse para cima os preços dos ativos e para abaixo da meta a taxa de juros média do mercado. A posição de financiamento líquido dos títulos públicos federais, isto é, a diferença entre recursos tomados e concedidos pelo banco central, alcançou a média diária de R$ 80,7 bilhões em janeiro de 2003, R$ 76 bilhões em janeiro de 2004, e R$ 60 bilhões em janeiro de 2005, valor em torno do qual se manteve no mesmo mês dos dois anos seguintes. Isso significava que havia um extraordinário excesso de liquidez, no período, indicando que o saldo de reservas bancárias excedia o estoque de títulos em poder do mercado.

Para ilustrar, os balanços de grandes bancos com os saldos finais de 2003 revelaram que 32 bancos eram tomadores de R$ 80 bilhões e 15 eram doadores de R$ 16 bilhões, em operações compromissadas. Podia-se comparar-se esse saldo líquido de R$ 64 bilhões tomados pelos bancos com o valor doado pelos fundos mútuos de investimento: do total de R$ 545 bilhões das carteiras de fundos mútuos, 20% eram doados em operações compromissadas, ou seja, R$ 107 bilhões. Verificava-se, então, porque o Banco Central vinha cumprindo, desde o início daquele ano, seu papel de enxugar esse excesso de liquidez (no exemplo, R$ 43 bilhões) no mercado de dinheiro. Se não fizesse isso, a taxa de juros média diária cairia bem abaixo da meta SELIC.

Essa atuação do Banco Central limitava as condições de baratear, mesmo em condições de excessiva liquidez, o funding para reduzir as taxas de juros dos empréstimos com recursos livres. Tais esforços diários para manter a média de juros próxima da meta SELIC, de acordo com o regime de metas de inflação, evitavam também a queda da taxa de juros de referência (CDI) para a captação de depósitos a prazo e letras hipotecárias.

Analisando esse contexto, traçou-se a estratégia da Tesouraria da Caixa. Poderia se verificar o caráter particular de sua carteira de títulos financeiros, por exemplo, pela análise comparativa dos balanços de todos os 50 maiores bancos, publicados pelo Banco Central do Brasil. Entre 2000 e 2005, caiu a participação dos bancos privados no ranking dos dez grandes financiadores do governo federal. A função foi assumida quase exclusivamente por instituições públicas, como o Banco do Brasil e a Caixa, e fundos de investimento vinculados a elas. A Caixa tornou-se, a partir de 2003, a maior detentora de títulos de dívida pública. Entre os dez maiores detentores individuais de títulos públicos federais, no final de 2005, dois eram bancos privados: o Pactual e um fundo de previdência do Bradesco. Em 2000, essa mesma lista estava equilibrada com cinco instituições privadas e cinco públicas. O levantamento mostra que, juntos, esses dez maiores detentores individuais somavam R$ 304 bilhões em títulos, no final de 2005. Esse valor equivalia a mais de 30% do total da dívida mobiliária federal, que, no período, estava em R$ 979,7 bilhões.

Na realidade, em termos de segmentos do mercado financeiro, os fundos mútuos de investimento em conjunto eram os maiores detentores de títulos de dívida pública, detendo 46% deles, em fevereiro de 2006. As carteiras próprias dos bancos, somadas, detinham 31%.

As operações compromissadas dos fundos, demandadas pela preferência pela liquidez de seus clientes, geralmente eram realizadas pelas tesourarias dos bancos de seus conglomerados financeiros. Em contrapartida à grande carteira própria, a Caixa era a maior tomadora de recursos via operações compromissadas.

Page 35: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 86

Por que as operações compromissadas (e/ou as captações no mercado aberto) na tesouraria da Caixa eram tão destacadas em relação às efetuadas por outros bancos? Em poucas palavras, a resposta seria imediata: porque ela tinha “crédito na praça” (bancária) e porque essas operações eram seguras (com o monitoramento contínuo do risco de liquidez e de variações da taxa de juros) e lucrativas (com a alavancagem financeira da carteira). Entretanto, a extensão dessa resposta pode ser interessante para o conhecimento de como se elaborou essa estratégia (entre outras) e se operou, em sua tesouraria, no período citado.

Até a reestruturação patrimonial, realizada em junho de 2001, sua carteira de títulos financeiros era relativamente diminuta. No final do ano 2000, representava apenas 7,5% do total dos ativos. Após a reestruturação, a composição de ativos se alterou de maneira que títulos e valores mobiliários passaram a representar 42,5%, no final daquele ano, e 44,7%, no final do ano seguinte. Mas, com a nova estratégia, a carteira de títulos financeiros passou representar mais de 50% dos seus ativos totais, entre janeiro de 2003 e junho de 2007. Seu valor absoluto passou, respectivamente, de R$ 57,7 bilhões a R$ 123,9 bilhões, com um crescimento de 115%, em quatro anos e meio.

A partir de 2001, a carteira de títulos ganhou porte, relativamente às de outros bancos. Inicialmente, foram 10 pontos percentuais em 2001, pois era 4% e foi para 14% do total de títulos e valores mobiliários do sistema bancário. Do início de 2003 até o final do 1º semestre de 2007, sua participação no total das carteiras próprias dos bancos foi sempre a maior, ficando entre 20% e 22%.

Portanto, a carteira de títulos financeiros não permaneceu com o mesmo volume desde a reestruturação patrimonial. A partir do segundo semestre de 2002, a economia brasileira sofreu momentos de grande volatilidade. Houve impactos fortes no mercado financeiro, advindos principalmente da instabilidade causada pelo momento pré-eleitoral e pela antecipação, de setembro para maio, da marcação a mercado das LFTs. Aliás, esses títulos já tinham uma pressão vendedora por conta da oferta, realizada pelo banco central, dos swaps cambiais casados com LFT.

Esse quadro adverso fez com que as instituições financeiras privadas não repusessem seus vencimentos de títulos públicos. Em paralelo, os fundos de investimentos tinham que vender títulos, para fazer frente ao aumento repentino de saques sofridos em razão das rentabilidades negativas, causadas pelo efeito da marcação a mercado. Houve, então, aumento contínuo de liquidez no sistema financeiro nacional, conjugado à elevação expressiva nos deságios das LFTs, pois o mercado era franco vendedor desses títulos.

Pode-se verificar isso analisando as variações dos fatores condicionantes (expansionistas ou contracionistas) da base monetária, no período. Os fatores mais responsáveis no sentido expansionista da base monetária foram os resgates de títulos de dívida pública e as operações externas, devido ao superávit no balanço de transações correntes. No sentido de contração da base monetária, foi o recolhimento de impostos realizado pelo Tesouro Nacional, em todos esses anos. Apenas no segundo semestre de 2002, a “fuga de capitais” provocou trocas de moeda nacional por estrangeiras e, portanto, contração da base monetária devido às operações do setor externo.

Page 36: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 87

Foi analisando esse cenário macroeconômico que, a partir de novembro de 2002, a tesouraria da Caixa vislumbrou a oportunidade de alavancar sua performance, adquirindo títulos com deságio favorável e financiando essa compra via captação no mercado aberto, tendo em vista o alto grau de liquidez existente. Assim, ao mesmo tempo em que aumentou sua carteira bancada, passou a financiar essa posição através de operações compromissadas. O volume dessas operações passou de R$ 12,8 bilhões, em outubro de 2002, para R$ 14,4 bilhões, em dezembro de 2002, houve, então, um aumento de 12,5%.

Esse quadro permaneceu durante todo o ano de 2003, quando a Caixa fechou o ano com volume de carteira em R$ 76,7 bilhões, ou seja, dimensão de R$ 19 bilhões acima do que aquela gestão tinha recebido da anterior (1/3 a mais), e elevou o total de operações compromissadas para valores acima dos R$ 30 bilhões. Porém, no decorrer de 2004, a estratégia de tesouraria passou por mudanças significativas de rumo, devido, principalmente, às alterações nas atuações do Banco Central. Em 2004, o volume em operações compromissadas variou do patamar diário de mais de R$ 30 bilhões para o de R$ 10 bilhões, no encerramento do ano. Esse volume era tomado integralmente dos próprios fundos de investimentos da Caixa.

Esse movimento se justificou pelas alterações nas condições de liquidez do mercado, influenciadas principalmente pelas atuações do Banco Central do Brasil no mercado monetário. Até o início do segundo semestre de 2004, o banco central operava tomando recursos do mercado nas operações de “go around” às taxas sempre abaixo da meta SELIC. Em meados de 2004, passou a tomar recursos a 100% da taxa SELIC. Essa mudança de taxas fez com que os doadores preferissem doar recursos a ele ao invés de passá-los para outras instituições.

Outro movimento que dificultou a zeragem dos tomadores foi a elevação dos volumes tomados em operações prefixadas (com prazo de três meses) e a diminuição dos volumes tomados em operações posfixadas, que passaram de um prazo de duas semanas para quatro semanas. Desta forma, o dinheiro ficou mais tempo aplicado no Banco Central.

Apesar da diminuição no volume de operações compromissadas realizadas pela Caixa, no decorrer de 2004, da ordem de R$ 20 bilhões, a carteira de títulos não teve o mesmo decréscimo. Passou de R$ 76,6 bilhões, em 31/12/03, para R$ 72,1 bilhões, em 31/12/04, ou seja, diminuiu apenas R$ 4,5 bilhões. Esse movimento não proporcional se explica basicamente pela remuneração dos títulos em carteira, durante o ano, e pelo recebimento de R$ 6,3 bilhões em títulos CVS, na véspera do encerramento do ano de 2004.

Em 2005, as condições de liquidez no sistema voltaram a ficar favoráveis para as instituições tomadoras de recursos, o que proporcionou à tesouraria da Caixa executar a estratégia de elevar a escala da carteira de títulos, para que não houvesse queda no rendimento anual, apesar de que a queda na taxa SELIC estava ocorrendo desde 2003. Com essa estratégia de aumentar a massa (de títulos de dívida pública) para compensar a queda da taxa (de juros), o rendimento médio mensal em 2005 foi menor em apenas 4% frente ao de 2003, quando, no mesmo período, teve-se uma queda na taxa SELIC média de 23,35% aa para 19,05% aa, ou seja, queda de quase 18%. Nessa estratégia, o uso de operações compromissadas foi intenso.

Page 37: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 88

Pode-se verificar que, no período entre janeiro de 2003 e junho de 2007, houve aumento da escala da carteira, apesar da diminuição das operações compromissadas. Portanto, a tesouraria da Caixa Econômica Federal adotou, nesse período, pelo menos quatro estratégias:

• Adquirir títulos de dívida pública “baratos”, particularmente de bancos privados (nacionais e estrangeiros) que os resgatavam, desde a eleição de Lula, e carregá-los, captando no mercado aberto parte do excesso de liquidez existente, alavancando assim a carteira, para aproveitar a alta taxa de juros SELIC, cujo “pico” de 26,5% manteve-se até 18 de junho de 2003, e maximizar o ganho.

• Minimizar perdas com o alongamento e o encarecimento das operações compromissadas por parte do Banco Central do Brasil, a partir de maio de 2004, e a queda contínua da taxa SELIC, até setembro de 2004.

• Antecipação da reposição dos vencimentos de títulos de dívida pública, de acordo com as oportunidades surgidas em leilões primários e no mercado secundário, em 2005 e 2006.

• Reclassificação de 50% a 60% dos títulos financeiros para a categoria 3 (sem marcação a mercado), para evitar possíveis volatilidades em seus valores de mercado, provocadas por turbulências políticas ou externas.

Quanto ao rendimento dos títulos financeiros, vale destacar que os títulos

disponíveis para negociação eram marcados a mercado. Essa marcação se constituía um ajuste positivo ou negativo no balanço da Caixa, via provisionamento ou reversão de provisões. No entanto, as oportunidades de compra com preço no mercado abaixo do preço ao par do título (preço nominal evoluído pelo indexador) proporcionavam rentabilidade acima do indexador desse ativo.

A manutenção da escala da carteira da Caixa era um importante instrumento para o incremento do seu rendimento, porque proporcionava oportunidades de negócios no mercado primário e secundário. A mesa de operações comprava títulos no mercado primário (leilões do Tesouro Nacional e do Banco Central) com taxas que proporcionassem rentabilidade acima do custo de oportunidade, isto é, da taxa de juros SELIC. Desta forma, era possível maximizar os ganhos em termos de rendimento da carteira e ganhos com deságios.

A captação de recursos em operações compromissadas com taxas abaixo do

custo de oportunidade possibilitava o incremento da carteira. O diferencial entre a despesa de captação e a receita de aplicação proporcionava ganhos que, apesar de parecerem pequenos em termos de pontos percentuais, devido à escala (muitos bilhões de reais), representavam uma das mais importantes fontes de lucro para a empresa. Além disso, o “encarteiramento” de títulos, nestas condições, viabilizava a negociação no mercado secundário, permitindo que as vendas proporcionassem a realização de lucro expressivo.

Em síntese, as operações da tesouraria da Caixa, no período entre janeiro de

2003 e junho de 2007, foram seguras e lucrativas. Os ganhos na dela foram provenientes das seguintes parcelas do investimento: rendimento do indexador do título; pagamentos periódicos de taxas de juros (cupom); ganhos embutidos no preço do título (deságio); e lucro com a venda do título no mercado (diferencial entre o preço de aquisição e o preço de venda). Foi essencial para o bom resultado da tesouraria, em termos da remuneração

Page 38: Capítulo 2 Caixa - Cidadania & Cultura · Desde o século XIX, as loterias no Brasil eram concessões do governo, geralmente solicitadas por irmandades religiosas, no ... asilos

Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 2: Caixa Econômica Federal. 89

média mensal, a compensação da queda da taxa de juros com a elevação da massa de títulos financeiros.

No primeiro mandato do governo Lula, a tesouraria da Caixa adotou a estratégia de manter volume médio na carteira de títulos financeiros que possibilitou rendimento médio mensal superior a R$ 1 bilhão. Para manter esse volume de carteira, fez uso de operações compromissadas sempre que as condições de mercado se mostraram favoráveis, ou seja, quando houve liquidez abundante.

Os resultados dessa estratégia, registrados nos balanços de 2003 ao do 1º semestre de 2007, podem ser avaliados. Foram R$ 56 bilhões de receita com títulos e valores mobiliários, acumulados nos quatro anos do 1º mandato do governo Lula. Descontando os R$ 20 bilhões gastos com operações compromissadas, resultaram em R$ 36 bilhões contabilizados na tesouraria para se descontar então as despesas com o floating e as administrativas. Como estas, na tesouraria, foram relativamente baixas, os lucros derivados, direto ou indiretamente, de suas atividades foram os mais expressivos da história da Caixa Econômica Federal.

A importância em se obter lucro em operações comerciais pode ser vista analisando a Alocação de Ativos e Passivos da Caixa. Em dezembro de 2006, por exemplo, podia-se observar que o spread do crédito em políticas públicas (habitação e saneamento com recursos do FGTS, crédito imobiliário, operações de agente de fomento) era relativamente baixo: 0,92 ponto percentual (pp). Nenhum banco possuía área de desenvolvimento urbano como ela.

Para compensar essa baixa remuneração de 28% dos ativos, assim como a dos depósitos compulsórios e exigibilidades (1,51 pp em 12% dos ativos), a Caixa obtinha spread de 0,77 pp em tesouraria e de 7,41 pp em caixa central (floating). Ambos eram frutos de aplicações em títulos e valores mobiliários que somavam 54% dos ativos. O spread era bem maior (36,98 pp) em operações comerciais de crédito, mas esse incidia sobre apenas 6% dos ativos. O spread médio ponderado era de somente 7,68 pp. Foram necessárias alavancagem financeira, receitas de prestação de serviços e controle de despesas, entre outros negócios bancários, para se alcançar o maior lucro líquido até então registrado em balanço, o de 2006: R$ 2,386 bilhões.

A participação das receitas com crédito no total das receitas da Caixa girava em torno de 36%, enquanto a das operações com títulos, 49%. Estava contabilizado o peso que a tesouraria tinha para o resultado. Os bons resultados gerados até então foram muito mais por ganhos com títulos (tesouraria) do que com os empréstimos.