capítulo 1_o objeto ensinado

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    SCHNEUWLY, B. L’objet enseigné. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (orgs).  Des objetsenseignés en classe de français  – Le travail de l’enseignant sur la rédaction de textsargumentatifs et sur la subordonnée relative. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes,2009, p. 17-28. Tradução Sandoval Nonato Gomes Santos. Faculdade de Educação,

    Universidade de São Paulo, 2011 [Uso restrito].

    Capítulo 1 O objeto ensinadoBernard Schneuwly

    O presente capítulo visa a três objetivos: inicialmente, definimosteoricamente o objeto da presente pesquisa, o objeto ensinado. Este conceitoancora-se na teoria da transposição didática que interrelaciona a forma e ofuncionamento do processo de transposição do sistema escolar pelos quaiseste processo se realiza, antes de tudo. Em seguida, para delimitar o objetode nossa pesquisa, apresentamos a unidade de análise com quetrabalhamos, a saber, a sequência de ensino em que se constitui o objetoensinado. Isto nos permitirá, em terceiro e último lugar, esboçar as primeiraspistas metodológicas com base em trabalhos existentes no campo. O focosobre o trabalho do professor em sala de aula é aquele por que optamos napesquisa. Ocupamo-nos dele no próximo capítulo.

    O objeto ensinado: elo de uma cadeia de transformações

    O objeto ensinado em sala é um maillon de uma longa cadeia detransformações do saber com vistas ao ensino e à aprendizagem. A teoria datransposição didática propõe uma modelização deste processo, de suasdeterminações e dos níveis que o caracterizam. Partamos da formulaçãooriginal proposta por Chevallard (1985) para defini-lo:

    O estudo científico do processo de transposição didática (que é umadimensão fundamental da didática da matemática1) supõe considerar atransposição didática em um lato sensu, representado pelo esquema: 

    ! objeto de saber! objeto a ensinar!  objeto de ensino (p. 49)2 

    Cada uma das flechas representa uma transformação profunda doobjeto em função de determinacyões didáticas. O estudo da transposiçãoconsiste exatamente, ao mesmo tempo, em descrever estas transformaçõesdos objetos e em compreender seus mecanismos e determinações. A teoriavai ao encontro de uma ilusão possível, mesmo desejável, entre objeto desaber e objeto de ensino. A teoria da transposição – e, com uma perspectivadiferente, a teoria da cultura escolar e da história das disciplinas escolares

    1 E nós postulamos, com inúmeros outros autores, uma dimensão fundamental de todas asdidáticas. Para apresentações em outras didáticas, ver por exemplo Arsac, Develay etTiberghien (1989); Marschall, Plazaola Giger, Rosat et Bronckart (2000); para o francês,

    Schneuwly (1995), Petitjean (1998) e Veck, Fournier, Lancrey-Javal et Robert (1989).2 Para uma discussão da especificidade desta formulação com relação àquela de Verret, verSchubauer-Leoni et Leutenegger (2005).

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    (Chervel, 1998; Goodson, 1993; Nieswandt, 1998) – mostra a inconsistência destas concepções que negligenciam o essencial daquilo que se passa noâmbito do sistema escolar: o ensino e a aprendizagem de saberes,sobredeterminados por processos de seleção e de distinção dos alunos3.Nossa pesquisa centra-se no terceiro elemento do esquema de Chevallard: o

    objeto de ensino. Aquilo que está em jogo na interação didática entreprofessor e alunos, o que consideramos do ponto de vista de seu resultado, post-hoc , podemos dizer: o objeto ensinado, o resultado constantementetransformado desta interação. 

    A forma escolar, a disciplina escolar e a transposição didática

    O processo de transposição didática, sendo implementado nainstituição escola, é condicionado pela forma escolar 4. A forma escolar atual,cujas raízes estão na Antiguidade e além dela, resulta inicialmente – em

    ligação com a criação dos estados nacionais – da generalização daescolarização, tornada necessária, de um lado, por um intensodesenvolvimento econômico e pelas novas formas de divisão do trabalho ede organização social que delas resultaram; de outro lado, pelas lutas sociaisem disputa pela democracia e pela participação de todos nas políticaspúblicas. Ela consiste em uma ruptura com os modos dominantes nopassado de transmissão de saberes, e visa a um acesso generalizado naconstrução de uma relação com o mundo mediada sobretudo pela cultura doescrito, e mais globalmente por sistemas de saber formalizados esistematizados. A construção desta relação ne se fait pas par frayage dansles lieux de la vie quotidienne, na família ou nos lugares de exercício do ofício(métier ), durante o próprio desenrolar da atividade, mas por uma ruptura como cotidiano e com a atividade profissional. Três elementos tornam possívelesta ruptura e se consituem em dimensões constitutivas da forma escolar: arelação com o espaço, a relação com o tempo e a relação didática.

    Encarnando de maneira particularmente visível a instituição escola, aturma como lugar físico, o prédio escolar e o mobiliário delimitam e dão formaao espaço escolar em que se movem atores cuja relação é definida pelafunção de ensinar e de aprender. Este espaço e seus objetos determinam,de certo modo, ce qui y est possible tout en rendant possible ce qui doit s’yfaire. Quanto ao tempo escolar, descrito finamente por Verret (1975), é

    programado, regulado, recortado em horas, dias, semanas, anos, em umaprogressão a longo prazo de conteúdos que impõe um percurso para quemnele ingressa.

    3 A literatura a este propósito é imensa. Estamos longe, neste estudo, de teorizar sobre estasobredeterminação, essencial para compreender a totalidade dos embates. A teoria datransposição didática não dá suficientemente conta, aliás, desta dimensão, tanto quantoapenas margeia esta questão a teoria da cultura escolar proposta por Chervel (1998).Defendemos a ideia, que procuraremos desenvolver em estudos posteriores, de que osobjetos a ensinar e ensinados são fundamentalmente contraditórios, trazendo os traços,dans le etail de leur appret, da contradição constitutiva do sistema escolar. Para umdesenvolvimento desta ideia, ver Schneuwly, 2007a.4

     Para defini-la, apoiamo-nos em Thévenaz-Christen (2005), que se integra às contribuiçõesde Vicent (1994) e Vicent, Lahire & Thin (1994). Referimo-nos também aos estudos anglo-saxões da “grammar of schooling” (Tyack & Cuban, 1995).

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    Neste contexto a relação entre pessoas se baseia em uma definiçãoinstitucional precisa de papéis. Por um lado, o professor, peassoaassalariada, cujo trabalho consiste no uso de instrumentos para atransformação das capacidades de agir – ou seja, modos de pensar, de falare de agir – dos alunos, em uma relação em que ele apresenta os saberes e

    faz “conhecer pelos signos”, ao mesmo tempo em que assume uma posiçãode poder que impõe a aprendizagem inclusive pelos meios de coerção. Poroutro lado, os alunos, liberados de trbalho produtivo no espaço-tempodefinido exatamente para aprender, para se exercitar, sem efeitos sociaisimediatos, mas submetidos a pressões de aprendizagem em um sistema desanções diversas e de seleção. Pode-se descrever a relação que se instaura,em contraponto com “le frayage”, como sendo da ordem do “façonnage” (Greenfield & Lave, 1979).

    Estas características institucionais externas da forma escolardeterminam a configuração de seu conteúdo. A este propósito, pode-sedistinguir dois sistemas em estreita interação. O primeiro sistema, uma vez

    externo, engloba os princípios de seleção dos conteúdos de ensino econcorre na definição social e política das finalidades da escola, podendo-semanifestar nas tensões entre concepções opostas, como, por exemplo,escola privada ou pública, filieres homogêneas ou heterogêneas, ou, maisamplamente, educação e instrução.

    O segundo sistema, interno, é constituído pelo processo dedisciplinarização5, pelo qual os conteúdos são organizados de maneirasistemática para se tornarem ensináveis. O conjunto do percurso escolar é,assim, estruturado em disciplinas que garantem, por sua pluralidaderegulada, que se configura como uma espécie de cânone (Tenorth, 1999),uma diversidade de conteúdos. Este cânone  inclui disciplinas que atuariamem diferentes dimensões da pessoa: intelectuais, manuais, estéticas efísicas.

    Estas disciplinas escolares consistem em quadros de ação (Goodson,Hopmann & Riquarts, 1999) que definem, ao mesmo tempo, os conteúdos deensino que transformariam, por sua apropriação, os modos de pensar, defalar e de agir dos alunos, e os meios e procedimentos à disposição doprofessor para possibilitar esta apropriação. Elas delimitam domínios do realsocial convertidos em objetos de ensino, mais especificamente os domíniosdas línguas e de seu uso, dos saberes científicos, das artes e dos ofícios.Elas são, portanto, sempre ancoradas, em última instância, ao real

    extraescolar a que elas dão acesso pelos conteúdos de ensino e de estudosque representam aspectos deste real considerados essenciais. Os conteúdosdas disciplinas são elaborações da escola cuja finalidade didática permiteconstruir modos de pensar, de falar e de agir específicos com relação aos

    5 Utilizamos este termo para designar o processo de constituição das disciplinas escolares e

    sua implementação progressiva na organização escolar. O mesmo termo designa também aorganização do sistema das ciências nas sociedades contemporâneas (ver, para umadiscussão, Hofstetter e Schneuwly, 2001). Os dois guardam entre si um vínculo – asdisciplinas escolares são constituídas em relação com as disciplinas científicas,especialmente por meio da formação de professores. Não obstante, como mostra Chervel(1998), umas e outras seguem um curso bastante autônomo. A mesma analogia se encontra

    no alemão entre “Fach” que se estuda na universidade e “Schulfach”. As analogias são bemmenos fortes – e isto não por acaso; ver, por exemplo, as reflexões de Lenoir (2002) – noinglês entre “subject matter” e “academic discipline” .

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    domínios do real delimitados, transformando, recompondo e enriquecendo orepertório já apropriado pelos alunos. A seleção, a construção e aorganização destes conteúdos no interior das disciplinas não dependeunicamente da adequação à realidade de referência, mas igualmente daeficácia, em um dado contexto social e histórico, para a aprendizagem de

    novos modos de apropriação. A gramática escolar, por exemplo, não é acópia da descrição e da análise linguísticas concebidas pelos linguistas, masuma construção altamente original que franqueia  o acesso e o domínio dalíngua em situações formais, orais ou escritas. Os gêneros escolarestradicionais, como a redação ou a dissertação não são adaptações arbitrariesde gêneros literários, mas formas de textos, produzidas pela escola,concebidas para a apropriação da redação em um dado momento da históriaescolar.

     As disciplinas escolares detem ainda os meios para introduzir, fazercompreender e fixar os conteúdos a serem aprendidos, ou seja, um conjuntode discursos, de situações, de atividades e exercícios que permitem

    confrontar os alunos com os conteúdos, ensinar-lhes  a manipulá-los, areplicá-los e a automatizá-los; enfim, apropriar-se deles. O arsenal de meiosà disponíveis para o ensino define uma das dimensões essenciais daprofissão do professor e prefigura a maneira de construir  os conteúdos emnegociação com os alunos.

     A definição dos conteúdos e a elaboração de conjuntos de situações,de atividades e de exercícios se concretizam em uma organizaçãoprogressiva do ensino e da aprendizagem que prevê aparições sucessivas doobjeto, recontextualizadas na sala, articuladas de modo a assegurar acontinuidade necessária entre si. Esta continuidade implica umaprogramação dos conteúdos de ensino, de uma sequencia de ensino a outra,a médio e a longo termo. O estruturação  é não apenas antecipada peloprofessor, mas materializada e preconcebida nos programas e nos recursos de ensino. A programação é definida do ponto de vista do objeto de ensino talcomo conhecido e concebido, e em função das capacidades dos alunos. Elaconsiste em uma espécie de conceopção empírica do desenvolvimento dascapacidades dos alunos, decorrente de experiências da profissão e dosistema escolar. Esta organização é, aliás, sobredeterminada por fatoresligados à seleção, à distinção e à sujeição dos alunos.

    No interior das disciplinas, os conteúdos são organizados em sistemasrelativamente coerentes em vista de seu estudo. Isto os captura de seu uso

    imediato e os distingue de conteúdos cotidianos; sua organização sistemáticalhes confere um valor mais geral, socialmente reconhecido, possibilita outrasformas de apropriação e dá acesso a modos de pensar, de falar e de agirdiferentes e novos. Ao mesmo tempo, a sleção de conteúdos e de situações,de atividades e de exercícios é também imposta pela exigência que adistância criada pela organização necessária em sistemas de disciplinas nãoprovoque uma ruptura com o mundo de proveniência dos alunos a fim demanter interesse e motivação6.

    O processo de tansposição didática é, nesta direção, intimamenteligado à forma escolar. Ele é determinado por esta forma da qual ele consisteem uma das dimensões essenciais.

    6 Para uma discussão aprofundada desta problemática, ver Brossard, 1994.

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     As determinantes da transposição didática

    Consideremos, inicialmente, de maneira geral, as determinantes da

    transposição didática, da cadeia de transformações dos objetos de saber 7

     nocontexto da forma escolar atual, conforme definida anteriormente. Trata-se deduas determinantes.

     A primeira reside no fato de que um objeto de saber deve serformatado e declarado como objeto de ensino para ser ensinável; e, por isso,ele deve ser modelizado ou, pelo menos, explicitado por meio da escrita. Háquem fale, a este propósito, em “escriturização” de saberes. Como veremos,esta explicitação não satura o objeto de ensino, mas define seus contornosessenciais e funda a possibilidade de seu ensino. A modelização didáticadeve garantir principalmente que o objeto de saber possa ser“elementarizado”8, decomposto em elementos menores passíveis de se

    tornarem objetos de estudo; e, deste modo, que este objeto possa serestudado através de uma progressão delineada e definida em parte porpressões inerentes ao próprio objeto e/ou ligadas àqueles que aprendem eaos percursos de aprendizagem. A definição do objeto desta progressão,l’apprêt didactique, é sempre o resultado de experiências didáticasduradouras, como também do efeito de múltiplos fatores que agem nosistema escolar, mais especificamente as finalidades de distinção e deseleção, bem como da ideologia que pesam sobre ele. A modelizaçãodidática pode-se referir tanto a conjuntos de saberes constituídos nasdisciplinas científicas e academicamente legitimadas, quanto de saberes deexperiência9 que visam ao melhor domínio de práticas em contextos sociaispara além da produção do saber. A maior parte das modelizações recorreefetivamente aos dois tipos de saber ao mesmo tempo. A referência a

    7 Retomamos o termo “objeto de saber” utilizado por Chevallard em seu texto fundador que

    se ocupa da passagem do “saber científico ao saber ensinado”. O termo “saber” é pratico emfrancês na medida em que se pode falar também de “saber escrever um textoargumentativo”, cuja modelização, pelo menos parcial, funda a possibilidade de seu ensino.Os saberes são “objetivados”, delimitados, para tornarem-se exatamente “objetos de saber”transformáveis em “objetos a serem ensinados” (ver, a este propósito, Hofstetter eSchneuwly, no prelo).8 Retomamos o termo utilizado por Lakanal em seu projeto de lei de 28 de outubro de 1795:

    “Os cidadãos que trabalharam para este concurso em geral confundiram dois objetosbastante diferentes, des elémentaires  avec des abrégés. Condensar [=tornar mais estreito]uma extensa obra é sintetizá-la; apresentar os embriões e, de certo modo, a matriz de umaciência é elemtarizá-la. É fácil fazer uma síntese de Mézeray, enquanto que precisaria de umCondillac para descrever elementos da história”. Várias metáforas buscam designar esta“elementarização”, ou seja, a necessária decomposição do objeto de ensino em “elementos”que constituem, aliás, objetos novos de ensino, que podem, por sua vez, ser eventualmentedecompostos: partição, desdobramento, desconstrução, mise à plat, decomposição…Utilizaremos também “focalização”, que mostra que o ensino não pode ser concebido comoconstrução elemento por elemento, mas por uma espécie de alçamento de certas partes dotodo, de certos aspectos do objeto ensinado que se tornam, por sua vez, também objetos,em um processo teoricamente sem fim.9 O caso da constituição de um saber de experiência para as necessidades do ensino é

    relativamente freqüente em domínios escolares em que as “práticas sociais de referencia”(Martinand, 1986) são consideradas. Este caso pode-se manifestar especialmente notrabalho sobre textos escritos, como veremos mais adiante.

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    saberes conceituais e saberes experienciais e a modelização garantem aosobjetos a serem ensinados uma necessária legitimidade que parece, aliás,mais expressiva à medida que endossada pelo saber conceitual.

     A segunda determinante da transposição reside na transformação dafunção dos saberes, no sentido amplo, decorrente do novo contexto no qual

    são inseridos. Um saber é sempre produto de um contexto social de uso emque assume uma função prática: seja como saber conceitual para produzirnovos saberes, seja como saber experiencial, que compreende práticas pararealizar tarefas diversa, sempre inextrincavelmente conjugadas a múltiplasoutras, pouco reconhecíveis, pouco sistemáticas. O saber se torna, naescola, um objeto de ensino a ser ensinado e a ser aprendido, sendo aescola definida justamente por esta função. O saber não tem mais a mesmafunção porque o contexto de seu uso desaparece inelutavelmente nestainstituição definida como skholè, espaço de lazer de estudo. O saber é,assim, sustentado em outras formas de discurso e proposto em situaçõesque rompem com o uso habitual; ele se torna precisamente objeto de ensino

    (e de aprendizagem). Ademais, o objeto de ensino se encontranecessariamente em um contexto que inclui outros objetos, formando umsistema que funciona como um todo e dá a cada objeto de ensino, em umdomínio, em uma disciplina escolar, em um sistema de disciplinas, umsentido que difere inevitavelmente daquele que o saber tem, na instância deseu uso prático, para além do âmbito do ensino.

    O trabalho de transposição didática, cujas determinantes principaisacabamos de expor 10, é incessantemente concretizado, a cada momento eem cada lugar do sistema de ensino. Trata-se de um trabalho de grandefôlego, profundo, sem fim, seguindo um ritmo impossível de prever. Um novoobjeto de ensino, por exemplo, entra em um sistema já existente de objetos;ele é profundamente afetado, ao mesmo tempo que impõe uma readaptaçãoparcial do sistema. Uma disciplina pode sempre, portanto, ser analisadacomo um conjunto de camadas sedimentadas de objetos de ensino e depráticas em reciprocidade  que entram em interação com aquilo que a elavem-se juntar. O novo é sempre teinté do antigo, tanto quanto o antigo serenova pelo novo. Certamente, em determinados momentos, pode-se assistira inserções mais densas de novos objetos que precisam de readaptaçõesmais fortes. Os sistemas de objetos de ensino não se transformariam,entretanto, por revolução, o que não significa que não se possa,retrospectivamente e com base em uma longa duração de tempo, observar

    fases que parecem ensejar, no final das contas, mudanças radicais,mudanças de paradigmas.

    A transposição externa e a transposição interna

    Na esteira de Chevallard (1985), pode-se distinguir dois níveis detransposição didática que evidenciam o esquema apresentado anteriormente.Os dois, um externo e outro interno, submetem-se às mesmas pressõesgerais de explicitação, de delimitação e de programação. Eles se diferenciam,

    10  Para aprofundar a questão, seria por exemplo interessante voltar-se também para a

    formação de professores como fator interferente no processo transpositivo.

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    entretanto, por pressões que dependem exatamente do nível em quefuncionam. Para a transposição externa – do objeto de saber ao objeto deensino – a escriturização é a primeira das pressões, e, em consequência, asformas de discurso que lhe são próprias, essencialmente escritas:manifestadamente, instruções, programas e manuais didáticos. Este nível de

    transposição é objeto de inúmeros trabalhos em didática do francês nodomínio das orientações oficiais e dos programas curriculares (Petitjean &Privat, 1999), dos manuais didáticos (Collinot & Petiot, 1998; Plane, 1999), darelação com as disciplinas de referência (Chiss & Puech, 1999) que permitemobservar em ato os diferentes motores da transposição. As contínuastransformações operadas pelo processo de transposição externa provocamtensões que funcionam como motores potentes do processo:

    •  tensões entre o sistema de ensino as demandas sociais;•  tensões entre as disciplinas escolares e os saberes de referência

    científicos ou experienciais/técnicos/profissionais; •  tensões no próprio interior do sistema de ensino pela interação de

    seus diferentes componentes, principalmente tensões entre asdisciplinas escolares e, em seu interior, entre diferentes sub-domínios;

    •  e, finalmente, tensões no próprio processo de ensino face aos alunos,face a suas capacidades e face às expectativas em continuatransformação, por efeito do próprio sistema escolar sobre o nível e ascapacidades dos alunos11.

     A transposição interna do objeto a ensinar  ao objeto ensinado12 opera-se pela textualização do objeto de ensino em função de exigências deprogressão no tempo e de redefinição contínua dos posicionamentos. Oobjeto de ensino deve aparecer como um objeto de duas faces, novo para serdesafio de aprendizagem e, ao mesmo tempo, antigo para poder ser religadoao já conhecido. Esta contradição entre novo e antigo o verdadeiro motor datransposição didática no nível interno, governando-lhe o funcionamento. Agestão da relação entre novo e antigo define, por um lado, a topogênese, namedida em que o novo garante, a cada momento, a hegemonia do professorna relação com o objeto de ensino. Define, por outro lado, a cronogênese, namedida em que o professor sabe sempre por antecipação o que ainda serafeito e introduz o novo a ensinar em função do antigo, supostamenteapreendido. O tempo de ensino – como propoe Vigotski (1934-1985a) peloconceito de zona de desenvolvimento proximal – não é jamais o tempo daaprendizagem. Há, por um lado, o tempo ficcional do ensino, aquele em se

    supõe que o aluno siga passo a passo um ensino que decompõe os objetospara torná-los acessíveis. Esta ficção é necessária para dar acesso, paraconstruir com os alunos estes objetos. O aluno, embarcando nesta ficção,manipulando seus ingredientes, imergindo nas situações propostas, enfim,

    11 É provavelmente por esta via que se manifesta massiçamente o fator “obsolecência” comomotor quase exclusivo de que trata Chevallard (1985-1991) em sua obra princeps. Estamosplenamente de acordo com Chervel (1998) que nota: “A transformação pelo público escolardo conteúdo de ensino é sem dúvida uma constante maior da história da educação” (p. 33).12 Preferimos o termo “ensinado” àquele utilizado por Chevallard no esquema – “objetos deensino” –, reservando este último termo para designar os objetos de saber integrados nosistema escolar e assim transformados precisamente em “objetos de ensino”. Tiberghien,

    Malkoun, Buty, Souassy e Mortimer (2007) utilizam, para a física, o termo “saber ensinado”.Seguindo o termo introduzido por Chevallard e, ao mesmo tempo, considerando que osobjetos de ensino são muito variados em francês, preferimos utilizar o termo neutro “objeto”.

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    aprendendo na situação escolar, constroi por si próprio as capacidadesligadas aos saberes conforme uma lógica certamente distinta daquela dopasso a passo do ensino, uma vez que opera por reestruturação evanescentede setores inteiros de seu funcionamento em determinados momentos. Oaluno deve fazer aquilo que ele não sabe (ainda) fazer; as exigências

    ultrapassam suas possibilidades reais, embora ele as possa responder, pelomenos parcialmente, graças à interação didática13: decomposição desistemas, simplificação e graduação de situações, regulação daaprendizagem por diversas formas de avaliação formativa. Isto colocaproblemas complexos de consideração do antigo, do pré-construído, dosuposto conhecido e de modalidades de reconstrução do antigo,reestruturações evanescentes que não seguem necessariamente o tempo doensino que, por sua vez, deve constantemente retroceder e avançar sefizesse conforme uma progressão cumulativa e regular. As múltiplasregulações do processo de aprendizagem no ensino repousam sobre estaficção da progressão regular e do pré-construído suposto.

    O objeto ensinado é, em consequencia, o resultado constantementeretrabalhado da ação do professor, que segue uma lógica própria, articuladacontinuamente a esta outra ação, a aprendizagem escolar, que seque alógica dos alunos14.

    É o resultado deste processo – o objeto a ensinar transformando-seem objeto ensinado – que está no centro de nossa pesquisa. Ele é definidode dois pontos de vista, interno e externo:

    •  Produto contuamente construído e transformado através da crono etopogênese, ele aparece, do ponto de vista interno, como constantetransformação de significações por recorte, acréscimo e porreconfiguração do já-dito. No centro desta perspectiva está aintrodução do novo em remissão ao antigo, o tear contínuo designificações novas por transformação e incremento de significações;a perspectiva é genética, o produto, o objeto ensinado, sendo oresultado desta gênese.

    13 Seria, aqui, oportuno introduzir o conceito de mesogênese (Chevallard, 1992). A própriaimportância do trabalho sobre o meio, sobre a disponibilização do saber para abordar oobjeto ensinado confere à mesogênese uma importância tal que não podemos colocá-la nomesmo nível da topo- e da cronogênese: é pelo trabalho sobre o meio que se definem e

    redefinem constantemente as relações de lugar e tempo entre alunos e professores no queconcerne os objetos de ensino. Ingadamo-nos, aliás, de modo mais amplo, se estaassimetria de conceitos não corre o risco de desaparecer caso sejam tratados ao mesmonível, a cadeia terminológica – topo-, crono-, mesogênese – selando esta equivalência. Abordaremos a questão no próximo sub-capítulo como uma problemática à parte.14  Temos reserva quanto ao uso do termo “ação conjunta”, proposto e demonstradosignificativamente na obra coletiva Sensevy et Mercier (2007), para designar o que se passaem sala de aula. Ele permite supor que haveria uma única e mesma ação operadaconjuntamente por dois. Como assinalamos, parece-nos não haver uma  ação didáticaconjunta, mas duas ações que se articulam, cada qual seguindo sua própria lógica e cujadiferença de lógica é constitutiva de cada uma delas. Notemos que esta estrutura de açõesarticuladasseguindo lógicas próprias, às vezes contraditórias é característica de inúmerosempreendimentos humanos em instituições sociais complexas. Poder-se-ia, ao menos,

    adotar o plural e falar de “ações conjuntas”. Notemos igualmente que é esta a razão pelaqual não recorremos à expressão recorrente em que se une, em um único signo gráfico,“ensino/aprendizagem”, sugerindo extamanete a existência de uma única e mesma ação.

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    •  Do ponto de vista externo, o objeto ensinado é o produto de umprocesso que tem uma determinada estrutura a qual define, por umlado, seu alcance [empan], e, de outro, as características geraissegundo as quais ele é construído.Consideremos mais em detalhe esta estrutura do processo.

    A unidade de análise “sequência de ensino”: hierarquia esequencialidade do trabalho sobre objetos de ensino

     A transposição didática interna concerne os objetos de ensino. Paraanalisá-los, é necessário definir uma unidade que permite delimitá-los. O queé de fato um “objeto de ensino”? Quais suas fronteiras? De fato, esteproblema não pode ser resolvido: todo objeto de ensino faz sempre parte deoutro objeto que o engloba. Assim, a oração subordinada relativa é uma partedo mecanismo de subordinação, e este da junção de frases e assim por

    diante. Inversamente, um objeto de ensino é decomponível em unidadesmenores que são do mesmo modo objetos de ensino, como, por exemplo, aoração subordinada introduzida pelo pronome que ou aquela pelo pronomecujo, ou a transformação da frase P por seu encadeamento em outra frase P.Parece ser, entretanto, possível – e metodologicamente necessário –recortar, em um fluxo contínuo de objetos de ensino nas aulas15, unidadesrelativamente bem delimitadas, compreendendo diversas atividadesarticuladas entre si, organizadas para o ensino de um objeto consideradocomo um todo com um início e um fim delimitado. A este propósito, não éraro utilizar-se, na escola, da metáfora de um novo capítulo que se abre ouque se retoma16. O objeto de ensino assim delimitado tem um certo alcance,recobre em geral várias aulas e inclui várias dimensões segundo as quais elepode ser considerado. Um tal objeto de ensino, delimitado no fluxo contínuodo ensino, concretiza uma sequência de ensino, ou seja, um conjunto deaulas organizadas sistematicamente para assim estudá-lo do ponto de vistade suas diferentes dimensões a serem consideradas. O objeto é determinadosignificativamente pelos programas curriculares e manuais didáticos, e, maisamplamente, pela instituição. A autonomia de uma sequência de ensino comrelação ao resto do ensino é relativa: em geral, o objeto foi já abordado eainda o será; ele pode inserir-se em outras unidades; ele pode se estenderpor períodos bastante longos; ele é em geral abordado de maneira

    descontínua. A unidade de análise “objeto de ensino em uma sequência deensino” parece-nos constituir-se em uma unidade constitutiva do objeto geral

    15 Designamos assim as unidades administrativas que estruturam para o bem e para o mal atemporalidade material da escola. A aula, por razões especialmente da organização emdisciplinas ligada a professores que a representa, é particularmente influente no ensinofundamental, espaço institucional de nosso estudo. Não é o caso de discutir, aqui, maisdetalhadamente a questão desta temporalidade e suas diferentes variantes no sistemaescolar.16 Clark & Yinger (1979) mostram que, em seu discurso sobre a planificação de seu ensino,os professores, para planejar os conteúdos, referem-se efetivamente a capítulos como

    unidade essencial. O termo não é apenas uma metáfora, mas parece ser uma unidade quefunciona realmente na mentalidade dos professores. “No caso brasileiro, parece que o termocapítulo é mais frequentemente referido como unidade” [N.T.].

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    da didática: as condições de transmissão de saberes em uma instituiçãoespecializada.

    Toda sequência de ensino visa a construção, pelos alunos, de novascapacidades tornando acessível um objeto d ensino, transformando-o, paraos alunos, em objeto a ser aprendido. Ela tem duas características principais

    a serviço desta finalidade. Ela é construída hierarquicamente e, como atestaseu nome, apresenta-se como uma sequência organizada no tempo. Comefeito, na sequência de ensino, o objeto de ensino é tornado presente edecomposto em elementos que o aluno pode estudar – observar, analisar,praticar, manipular –, assim como das facetas17  do objeto a seremapropriadas. Estas facetas, longe de se constituírem no todo do objeto, sãodefinidas pela tradição escolar, prescritas nos textos de referência, mastambém transmitidas através de práticas em uma tradição secular. Ao mesmotempo, cada sequência também constitui sempre uma escolha concreta dedecomposição do objeto por um determinado professor em uma turmadeterminada. Esta decomposição implica uma hierarquização que pode

    compreender vários níveis: o próprio objeto, algumas de suas dimensões,alguns elementos de cada uma destas dimensões etc. Esta hierarquiadistribui-se sequencialmente no tempo: um dado elemento vem antes oudepois de outro. Ela pode se manifestar, em aberto, por um desenrolar dasequência a partir de um elemento simples em direção a um complexo, ou deum complexo em direção a sua decomposição e, eventualmente,recomposição. Mil maneiras de transformar uma hierarquia em sequência ãosempre possíveis. Subjacente à sequencialidade há a idéia de umaprogressão na construção do objeto.

     A estrutura sequencial e hierárquica da sequência de ensino é umefeito da forma escolar, e mais especificamente do fato de que aaprendizagem escolar se reliza em situações especialmente criadas paraaprender, em dispositivos progressivos que vão em direção a umacomplexificação e a uma especialização das capacidades construídas. Doponto de vista da compreensão e explicação da construção do objetoensinado, a sequência de ensino nos parece, assim, a unidade de análiseadequada18: ela contem todos os elementos essenciais do processo detransposição interna, cronogênese e topogênese em um processohierárquico, de decomposição e recomposição do objeto, e sequencial, deorganização de uma progressão. Para além da sequência, o objeto de ensinopode tornar-se muito geral e inacessível, confundindo-se com partes interias

    da disciplina escolar; neste caso, é a organização hierárquica e talvez mesmosequencial, no sentido que definimos, que ameaça desaparecer. A sequenciade ensino é efetivamente o ponto temporal e espacial em que se constroi, nainteração entre alunos e professor, aquilo que se constitui em objeto denossa pesquisa: o objeto ensinado. É a razão essencial por que o elegemoscomo unidade de análise.

    17  Utilizamos aqui o termo em seu sentido comum. Tiberghien, Mslkoun, Buty. Souassy etMortimer (2007) tomaram-no como um conceito: uma convergência que não é, sem dúvida,

    gratuita.18  Para uma discussão mais aprofundada da noção de unidade de análise no campo dadidática, ver Thévenaz et Schneuwly (2006a).

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    A transposição interna: um objeto tratado do ponto de vista científicoem língua primeira

    Poucos estudos têm como objeto principal o objeto ensinado e suaconstrução. Pioneiro, o trabalho de Canelas-Trevisi (1997a, 1997b, 2001,

    2008; ver também Canelas-Trevisi & Bulea, 2001) é particularmenteinteressante e original na medida em que é o primeiro a tentar comparar doisobjeots de ensino do francês, um objeto grammatical 9a frase subordinadacomplemento do verbo) e um objeto discursive (o texto narrativo).Considerando duas turmas, o trabalho evidencia deslocamentos importantesde cada objeto a ser ensinado através de seu ensino: o trabalho sobre asubordinada se tranforma em uma atividade estilística sobre a boa formaçãoda frase; a produção de textos torna-se análise e leitura de texto.

    Respondendo à pergunta “How is English made?”, Kress et al. (2005),em um amplo estudo dedicado ao “English in urban classrooms” e, portanto,sobre sequências de aula não raro longas, abordam o objeto construído em

    sala de aula. Interessantes por sua abordagem multimodal, estas análises decaso constrativas evidenciam, em um novo contexto socio-político, astransformações possíveis do objeto “linguagem” – por exemplo, aconsideração de dimensões comunicativas e enunciativas ou a articulação dalíngua com as múltiplas origens culturais – mostrando, ao mesmo tempo, apersitência de práticas ditas tradicionais.

    De maneira geral, vê-se, aliás, desenhar-se um movimento que, naesteira [dans le sillage] de trabalhos cada vez mais numerosos sobre aanálise de práticas de ensino19, começa a se interessar pelo que se ensinaefetivamente em sala, e isto mais particularmente do ponto de vista didático(Sensevy & Mercier, 2007). Uma obra recente (Schneuwly & Thévenaz-Christen, 2006) documenta que se trata de um movimento que ganha corpotambém em didática do francês. Ainda é difícil, entretanto, depreendertendências comuns fortes. Os procedimentos metodológicos são variados eas unidades de análise diversas: o foco pode incidir sobre uma aula, englobarvárias aulas, tratar-se de uma sequência, considerar vários objetos e aulaspara ilustrar uma dimensão da construção do objeto, ou apoiar-se sobre umadocumentação do ensino durante todo um ano letivo. A extensão dos objetosde ensino é também grande e pode englobar muito amplamente aargumentação, a construção de conhecimentos científicosem váriosdomínios, a leitura, ou, de maneira mais restrita, o resumo informativo, o

    engajamento em literatura ou ainda a explicação de uma regra de jogo.Metodologicamente, constata-se, entretanto, um denominador dominantecomum: o ponto de vitsa do trabalho docente é provilegiado para abordar aquestão do objeto de ensino.

    Estes estudos, e mais especificamente os dois primeirosmencionados, undicam uma direção: para compreender o que é ensinado emsala, primeiramente – e isto é evidente – é necessário registrar. Maisespecificamente, Kress et al. (2005) insistem sobre a dimensão multimodalda comunicação que deve considerar todos os sistemas semióticosimplementados para permitir a aprendizagem: a disposição da sala, todos osrecursos de apresentação do objeto, as diferentes modalidades de

    19 Para um panorama das metodologias, ver Lenoir (2005).

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    comunicação do professor. Isto significa, em segundo lugar, dado que éfundamentalmente o professor quem define o dispositivo didático, selecionaos recursos de apresentação do objeto e utiliza diferentes modalidades decomunicação, que o ponto de vista para construir o objeto ensinado –enfatizamos, objeto ensinado – é o professor e sua ação; em outros termos,

    seu trabalho. Os alunos, como atores coletivos, cuja ação de aprender seguesua própria lógica, interferem na definição das condições deste trabalho queevolui na proporção mesma de sua realização. Em outros termos, os atores“alunos” não são observados do ponto de vista de sua ação de aprender nemde sua aprendizagem escolar efetiva, mas do ponto de vista de sua reaçãoao dispositivo implementado pelo professor, reação que é certamente indíciode sua própria ação de aprendizagem.

    Primeiras pistas para encaminhar a investigação

     Adotar o ponto de vista do professor e de seu trabalho para abordar oobjeto ensinado como construção interativa, na esteira dos trabalhos quemencionamos, não implica que os métodos utilizados sejam os mesmos.Retornemos ao objeto de nossa pesquisa e sobre a unidade de análise quemelhor o delimita e materializa, para determinar alguns elementos maisprecisos de metodologia. A questão que nos colocamos está, inicialmente,em um nível geral e abstrato – conhecer e compreender, dado um objeto aensinar, como ele se transforma em objeto ensinado. Esta questão principalpode ser especificada assim: como são estruturadas as sequências deensino pelas quais se constroem os objetos ensinados e quais são seuscomponentes? Nas práticas observadas, há uma ou várias formas desequências? Qual a variabilidade delas? Há princípios de base comuns?Qual a relação entre a forma das sequências e a natureza dos objetos deensino: a variabilidade é maior ou menor em função do objeto? Os recursosimplementados para construir os objetos de ensino são específicos comrelação aos objetos de ensino?

    Esta definição geral da problemática implica uma primeira série dedecisões metodológicas que singularizam nossa abordagem com relação àmaior parte de outras voltadas aos objetos de ensino:

    1. nossa unidade de análise é o lugar institucional pelo qual se operafundamentalmente o processo de transformação dos objetos a ensinar

    em objetos ensinados: a sequência de ensino;2. nossa pesquisa ocupa-se de objetos de ensino delimitados, previstosnos currículos e programas, cuja transformação através de umasequência de ensino trata-se de observar. A definição do objeto deve,ao mesmo tempo, ser suficientemente precisa para garantir para opesquisador a possibilidade de comparação, deixando uma latitudesuficientemente ampla de projeção e de interpretação da parte dosprofessores em seu trabalho, a fim de permitir a variabilidade;

    3. observamos a transformação do mesmo objeto de ensino no trabalhode vários professores, a fim de descrever sua constância e suavariabilidade e de delinear as determinações do processo;

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    4. comparamos as transformações operadas sobre dois objetos damesma disciplina para determinar as determinações que agem noprocesso motivadas pela própria natureza do objeto.Estes quatro primeiros passos de operacionalização distinguem nossa

    abordagem do objeto de ensino da maior parte de outras na medida em que

    nós delimitamos a priori um objeto de ensino, que propusemos umaabordagem duplamente comparativa – entre professores trabalhando omesmo objeto e entre objetos confrontados – e que definimos uma unidadede análise e de observação no fluxo geral do ensino. Nos capítulos três equatro, aprofundamos a questão do objeto de ensino justificando a opção pornossos dois objetos e os descrevendo dos pontos de vista histórico econceitual.

    Os quatro passos evidenciam ainda outro aspecto essencial de nossotrabalho que aprofundaremos no capítulo dois. No presente capítulo,definimos o objeto geral de nossa pesquisa, o objeto ensinado, edeterminamos a unidade de análise que lhe corresponde constitutivamente,

     já que dela ele resulta: a sequencia de ensino. Determinamos ainda nossoponto de vista, comum à maior parte dos trabalhos voltados para o objetoensinado, a saber, o trabalho docente. Desenvolveremos, a partir de agora,este ponto de vista a partir do qual delimitamos o objeto de investigação, e,assim, podermos defini-lo mais precisamente. Em outros termos, a questãoque buscaremos responder é quais são as características do trabalhodocente que operam as transformações dos objetos a ensinar em objetosensinados. Isto nos permitirá definir, em seguida, nosso método de coleta dedados e de análise.