capítulo 1: os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

74
Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade: A “Família Silva” A comunidade negra “Família Silva” situa-se no bairro Três Figueiras, município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e ocupa um terreno de 4. 445,71 m 2 . Nele vivem 31 pessoas entre as faixas etárias de 0 a 48 anos, distribuídas em 7 unidades domiciliares ou residenciais 28 . Eles são um grupo de pessoas que reside, há mais de sessenta anos, em uma área sobreposta em parte ao traçado projetado da rua João Caetano, entre as ruas Nilo Peçanha e Carlos Gomes. Estão ligados entre si por laços de parentesco, por casamento ou consangüinidade: seis irmãos, seus respectivos cônjuges, filhos, netos e sobrinhos de duas irmãs falecidas 29 . Os atuais integrantes dessa coletividade são, em sua grande maioria, descendentes de negros oriundos do interior do Estado do Rio Grande do Sul que ali se instalaram nos meados do Século XX. Seus avós maternos, Naura Borges da Silva e Alípio Marques dos Santos, naturais de São Francisco de Paula e Cachoeira do Sul, respectivamente, foram sucedidos por seus pais, Anna Maria da Silva e Euclides José da Silva, ambos de São Francisco de Paula, na ocupação do território e na perpetuação de seus modos de vida e organização social. Foi a instalação no local que 28 As sete residências construídas na área são de compensado de madeira, teto de zinco, com dois ou três cômodos, com ligações clandestinas de luz e água. Existem no local apenas dois banheiros com vasos sanitários que são utilizados coletivamente. 29 Parte dos adultos do grupo tem apenas o primeiro grau completo em virtude de uma política assistêncial do Colégio Anchieta que, na década de 60, oferecia aos moradores pobres da região o ensino fundamental gratuito. Suas ocupações profissionais são mal remuneradas. As mulheres trabalham em serviços domésticos, os homens como vigias e jardineiros da luxuosa vizinhança ou caddies do Country Club. As crianças passam meio turno em uma escola pública das proximidades e o restante do dia no pátio do terreno sob o cuidado dos adultos que estão por casa naquele momento.

Upload: hahanh

Post on 09-Jan-2017

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade:

A “Família Silva”

A comunidade negra “Família Silva” situa-se no bairro Três Figueiras, município

de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e ocupa um terreno de 4. 445,71 m2. Nele vivem

31 pessoas entre as faixas etárias de 0 a 48 anos, distribuídas em 7 unidades

domiciliares ou residenciais28. Eles são um grupo de pessoas que reside, há mais de

sessenta anos, em uma área sobreposta em parte ao traçado projetado da rua João

Caetano, entre as ruas Nilo Peçanha e Carlos Gomes. Estão ligados entre si por laços

de parentesco, por casamento ou consangüinidade: seis irmãos, seus respectivos

cônjuges, filhos, netos e sobrinhos de duas irmãs falecidas29.

Os atuais integrantes dessa coletividade são, em sua grande maioria,

descendentes de negros oriundos do interior do Estado do Rio Grande do Sul que ali

se instalaram nos meados do Século XX. Seus avós maternos, Naura Borges da Silva

e Alípio Marques dos Santos, naturais de São Francisco de Paula e Cachoeira do Sul,

respectivamente, foram sucedidos por seus pais, Anna Maria da Silva e Euclides José

da Silva, ambos de São Francisco de Paula, na ocupação do território e na

perpetuação de seus modos de vida e organização social. Foi a instalação no local que

28 As sete residências construídas na área são de compensado de madeira, teto de zinco, com dois ou três cômodos,com ligações clandestinas de luz e água. Existem no local apenas dois banheiros com vasos sanitários que sãoutilizados coletivamente.29 Parte dos adultos do grupo tem apenas o primeiro grau completo em virtude de uma política assistêncial doColégio Anchieta que, na década de 60, oferecia aos moradores pobres da região o ensino fundamental gratuito.Suas ocupações profissionais são mal remuneradas. As mulheres trabalham em serviços domésticos, os homenscomo vigias e jardineiros da luxuosa vizinhança ou caddies do Country Club. As crianças passam meio turno emuma escola pública das proximidades e o restante do dia no pátio do terreno sob o cuidado dos adultos que estão porcasa naquele momento.

Page 2: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

hoje é conhecido como bairro Três Figueiras o que possibilitou aos seus antepassados

territorializarem-se, isto é, projetarem sobre um espaço física e geograficamente

delimitado suas práticas de resistência e de autonomia em relação a sociedade

envolvente. Tal ato é que possibilita ao grupo gestar-se enquanto uma unidade social

diferenciada organizacional e etnicamente ao longo de seis décadas.

Entre os integrantes da “Família Silva”, a identidade de “remanescente de

quilombo” está relacionada à luta que eles travam e outrora seus antepassados

travaram para constituir um território próprio e obter as condições mínimas de

sobrevivência de forma autônoma. Em audiência pública da Comissão de Participação

Legislativa Popular sobre a territorialidade negra no Rio Grande do Sul e a luta dos

remanescentes de quilombos no Estado, realizada no dia 13 de junho de 2003, Rita de

Cássia da Silva Dutra, representante da comunidade diz que:

“ Só por que somos negros, pobres e trabalhadores, não temos direitos

de estarmos nessa terra? Depois de anos e anos lutando, todo mundo

tem direito. A única coisa que queremos é a posse da terra, nada mais.

Não estamos pedindo favor a ninguém. Isso todo o ser humano quer: o

direito de plantar e colher o fruto desse trabalho, coisa que

antepassados da gente vêm buscando. Não só os de agora- na era de

2000-, mas os de muito tempo atrás, no tempo da escravidão.”30

Os que procuram uma imediata conexão do grupo com a África ou com a

escravidão podem ficar decepcionados. As lembranças de seus membros se referem

principalmente ao período que sucede a migração de seus antepassados do interior do

Estado para um recanto afastado e rural da cidade de Porto Alegre. A ausência de

30 Extraído de caderno produzido pela Comissão de Participação Legislativa Popular sobre Audiência Pública: ATerritorialidade negra no Rio Grande do Sul. A luta dos remanescentes de quilombos no Estado. 13 de junho de2003, pág.38.

23

Page 3: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

recordações sobre épocas anteriores pode ser explicada, em parte, pela sucessivas

“quebras geracionais”, isto é, os avós maternos morreram quando eles eram jovens,

ocorrendo alguns anos depois a perda da mãe31. Os contatos que eles tinham com

parentes e amigos das cidades de origem dos seus ancestrais foram se enfraquecendo

ao longo dos anos de forma simultânea aos falecimentos mencionados. Percebe-se,

claramente, uma ruptura no processo de transmissão da memória coletiva da

comunidade, provocada pelos reduzidos períodos de convivência entre as gerações

onde esses elementos pudessem ser repassados.

O relato de Jorge32, amigo e compadre do grupo desde 1968, nos fornece

indícios importantes quanto a essa questão. Segundo ele, “Vó Naura” se emocionava

ao ouvir no rádio uma música que falava dos sofrimentos de uma mulher negra, a “mãe

preta”. Ele percebia que aquela música lhe traziam recordações dolorosas que enchiam

seus olhos de lágrimas, no entanto, ela nunca falou sobre o assunto. Cabe ressaltar

que a valorização da memória dos negros sobre o período escravocrata é um processo

extremamente recente. Até alguns anos atrás falar de escravidão era falar de um

período vergonhoso, uma mancha de dor e sofrimento do passado que muitos negros

procuraram apagar de diversas formas, até mesmo pelo silêncio33.

A memória só pode se perpetuar se for trabalhada e compartilhada pelo grupo,

conformando-se naquilo que Halbwachs (1976) definiu como quadros sociais da

31 Alípio Marques dos Santos faleceu em 25/2/1971. Centro de Pesquisa e Documentação da Santa Casa deMisericórdia de Porto Alegre – livro de óbitos n. 71 f. 49v – guia 6542; Naura Borges da Silva faleceu em 1o/8/1980.Centro de Pesquisa e Documentação da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre – livro de óbitos n. 78 f. 120v –guia 35259; Anna Maria da Silva faleceu em 14/1/1987. Certidão de óbito n. 48925 do Ofício de Registro Civil dasPessoas Naturais da 4a Zona da Cidade de Porto Alegre; Euclides José da Silva faleceu em 6/3/1998. Certidão deóbito n. 121.829 do Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais da 4a Zona da Cidade de Porto Alegre.32 Jorge Bertoino Gomes, entrevista realizada em 21de maio de 2004.33 De acordo com GUSMÃO (1999), a terra tem sido desde sempre sinônimo de liberdade para os grupos negros, oque implicaria, muitas vezes, numa negação do passado de cativeiro.

24

Page 4: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

memória. A lembrança não é um ato individual de recordar, mas o resultado de laços

de solidariedade. As noções de espaço e tempo são fundamentais para o trabalho de

rememoração do passado uma vez que as localizações espaciais e temporais das

lembranças são efetivamente a essência da memória (ROCHA e ECKERT, 2000).

Tendo em vista que a territorialização do grupo remonta ao século passado, é

previsível que suas recordações se refiram principalmente a este período. Atualmente

esses eventos são interpretados sob a perspectiva de uma identidade quilombola que

se constitui a partir do recente surgimento da categoria jurídica “remanescentes das

comunidades dos quilombos”. Essa denominação passa a significar um tipo particular

de referência que permite recuperar uma identidade positiva do negro como cidadão de

direitos, não apenas de deveres34. Para exemplificar fazemos uso da declaração de

Lorivaldino da Silva, integrante da comunidade ora estudada, citada na matéria

veiculada na Revista Terra de julho de 2004 :

“ Antes de saber dos quilombos, eu tinha vergonha de sentar ao

lado de uma branca no ônibus. Para comer num bar, só entrava

quando não tinha ninguém . Agora isso mudou.” 35

Extraviados deste Rio Grande do Sul: em busca de origens.

Os integrantes da “Família Silva” freqüentemente referem-se a São Francisco de

Paula e a Cachoeira do Sul como lugar de origem de seus ancestrais. Partindo destas

34 Desde o final de 2002, integrantes do grupo passaram a participar de diversos eventos relacionados com a questãodos remanescentes de quilombos. Neles, os representantes da “Família Silva” têm protagonizado a sua luta pelaregularização da propriedade do território que habitam e pela conquista das condições mínimas de cidadania. Nomomento, encontram-se em processo de discussão para a constituição de sua associação.35Revista TERRA. Editora Peixes, julho de 2004- ano 12- n.º 147, páginas 14/15.

25

Page 5: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

lembranças, e tomando-as como linhas diretivas de nossa investigação, vamos

procurar na história destes municípios elementos que permitam compor uma narrativa

que trate das trajetórias dos antepassados da comunidade analisada ou de grupos

sociais a eles relacionados. A fim de completar a análise de sua sociodisséia

direcionaremos o olhar para as condições que levaram ao abandono desses locais e à

sua territorialização em um recôndito afastado na capital do estado do Rio Grande do

Sul.

Em Cima da Serra, no caminho das tropas

Guilhermino César aponta os Campos de Cima da Serra, ao longo ainda do

século XVII, como região de passagem de bandeiras paulistas, o que certamente

contribuiu para o extermínio de populações autóctones que ali viviam36. Os índios

Caaguás, identificados à tribo dos Coroados, costumam ser considerados “os primeiros

habitantes de São Francisco de Paula”, e seu desaparecimento é associado à

escravidão e às doenças ocasionadas pelos bandeirantes37. É necessário, porém, ter

cautela antes de concluir por um total extermínio da população indígena durante os

séculos XVII e XVIII. Afinal, no levantamento de moradores do Rio Grande de São

Pedro, realizado em 1784, na explicação do despovoamento desses campos e do

abandono de diversas estâncias eram responsabilizados os “índios bugres”, muito

embora seja difícil definir com maior precisão quais povos indígenas estavam sendo

referidos38.

36CÉSAR (1970). p. 64, 67.37Ver TEIXEIRA et alii (1996) p. 16; LUCENA (1971)38OSÓRIO (1990) p. 185. e OSÓRIO (1999). p. 115.

26

Page 6: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

São Francisco de Paula teve sua constituição intimamente ligada à produção e

comércio de gado muar e vacum. A localidade encontrava-se em uma posição

estratégica, isto é, no caminho das tropas que realizavam o trajeto entre o Rio Grande

do Sul e os mercados de São Paulo e Minas Gerais, através de Lages e Sorocaba:

[Em 1727] “com a abertura do caminho dos conventos, da

barra do Rio Araranguá até o planalto (no local da atual

cidade de Lages), possibilitou-se, através dos campos da

Vacaria, um acesso mais fácil a São Paulo e às Minas

Gerais. A partir de então, tropeiros percorreram este

caminho, com tropas de cavalos e rebanhos de gado e um

pouco mais tarde, mulas, iniciando um comércio

fundamental para a economia sulina”. 39

“(...) a “Estrada dos tropeiros”, também chamada “Estrada

real”, que partindo de Viamão, passava por Santo Antônio,

seguia pelo vale do rio Rolante, e depois subia a serra,

encontrando-se mais adiante com a 'Estrada dos Conventos'

que, proveniente do vale do rio Araranguá, se dirigia para

Curitiba e São Paulo. A 'Estrada dos tropeiros' (...),

encurtava consideravelmente a distância entre o Rio Grande

e São Paulo, e com subida da serra bem mais fácil que a da

'Estrada dos Conventos' nos Aparados”. 40

Corcino Medeiros dos Santos atribui à estrada a localização das primeiras

povoações do Rio Grande de São Pedro – Viamão, Vacaria, Santo Antônio da Patrulha,

Mostardas e Estreito. Contudo, posteriormente a região nordeste do estado decaiu em

importância em relação à região central, justamente a partir do momento em que “a

39OSÓRIO (1999) p. 69 Ruben Neis data de uma forma ligeiramente diferente a abertura do caminho dos Conventos,qual seja, entre 1728 e 1732. NEIS (1975). p. 2140 NEIS (1975) p. 27-28. O autor estima a construção desta estrada entre 1734 e 1736.

27

Page 7: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

estrada de São Paulo, desviando-se do rumo de Lajes e Vacaria, procura o centro-

oeste do Rio Grande do Sul”41.

Por outro lado, a região também era uma rica fonte de gado a ser apropriado,

através da Vacaria dos Pinhais, ou Campos de Vacaria, cuja origem freqüentemente é

atribuída ao gado introduzido no Rio Grande do Sul pelos jesuítas42.

“Souza Faria quando em 1729 aí chegou encontrou esses campos

repletos de gado. Cristóvão Pereira, quando dois anos depois chegou ao

alto da Serra, que domina essas paragens, onde se demorou dois dias,

só viu campos e gados, segundo suas próprias expressões”43.

Plínio Lucena, pesquisador da história deste município, afirma ser o nome do povoado

uma homenagem ao santo de devoção do Capitão Pedro da Silva Chaves, donatário

de sesmaria na região44. Falecido em 1777, Chaves foi contemporâneo da criação da

paróquia de São Francisco de Cima da Serra, em 1756, da freguesia de Santo Antônio

da Guarda Velha, em 1763, e de Vacaria em 176845.

Em fins de 1766, existiam 18 estâncias e 133 moradores no distrito de Cima da

Serra, assim como, respectivamente, em Lages e Vacaria, 16 e 18 estâncias e 82 e 77

pessoas46. Para termos uma idéia do povoamento da região anos mais tarde, temos, no

trabalho de Sebastião Fonseca de Oliveira, uma reprodução da relação de moradores

de 1784 na região serrana. Ali, podemos encontrar para Vacaria e São Francisco de

Paula, que foram tomadas conjuntamente no censo, 52 propriedades arroladas, muito

41SANTOS (1984).42CÉSAR (1970) p. 76-7743DOCA, Coronel Sousa. apud SANTOS (1984) p. 6344LUCENA (1992). 45NEIS (1975) p. 152, 160, 161. 46OSÓRIO (1990). p. 117

28

Page 8: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

embora, devido ao acúmulo de seis fazendas em mãos do Capitão Pedro da Silva

Chaves, tenhamos apenas 47 proprietários. Observando os sobrenomes dos donos

dessas terras, percebe-se que em alguns casos deveriam guardar relações de

parentesco entre si47. Com grande parte dos campos tenham sido declarados

despovoados, em virtude das já referidas irrupções dos índios bugres, e com alguns

dos fazendeiros (os maiores) residindo em Viamão, São Paulo e Laguna, a relação de

1784 evidencia a concentração fundiária nos campos de Cima da Serra48.

Os intercâmbios ao longo do caminho das tropas não se limitaram, portanto, às

trocas econômicas e à circulação de mercadorias. Também ocorreram deslocamentos

populacionais. Este é o caso da família Borges, que será analisada por nós em função

das suas relações com a trajetória histórica da “Família Silva”. Originário de Lages,

Felipe Borges do Amaral e Castro se estabeleceu nesta região. Filho de João Borges

do Amaral e Castro e de Maria Custódia do Amaral49, ao falecer, em 1876, deixou

fazendas de criação em São Francisco de Paula e em sua terra natal, oito escravos,

oito escravas e gado50. Na relação de matrícula realizada em 1872 e anexada ao

inventário, todos escravos do sexo masculino estavam identificados como campeiros;

além disso, uma cativa era lavadeira e as demais, costureiras. Dois escravos, Serafim e

José, encontravam-se fugidos51.

47OLIVEIRA (1996). p. 33-3748OSÓRIO (1990) p. 185 49O pesquisador Sebastião Fonseca de Oliveira, em seu estudo dá conta de que João Antônio era nascido em Angra,Ilha Terceira, e falecido em 1823, enquanto sua esposa Maria era natural de Lages. OLIVEIRA (1996) p. 24050 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Inventariado – Felipe Borges do Amaral e Castro e s/m Mariado Nascimento Amaral. Inventariante – Olivério da Silva Esteves. Auto n. 3, maço 1, estante 39 e/c. Cartório doCivil e Crime – 187651É amplo o debate historiográfico a respeito da relação entre pecuária e escravidão no Rio Grande do Sul. Para umavisão a respeito, da qual os autores do presente trabalho compartilham, conferir OSÓRIO (1999) p. 130-148, eOSÓRIO (1990) p. 150-151 Chama a atenção o fato de que sobre estes dois foragidos não há indicação de qualquerrelação familiar que se temesse deixar para trás. Além desses dois, há três cujas relações familiares são ignoradas.Os demais são mãe e filhos, irmãos, tio materno e sobrinhos.

29

Page 9: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Esta trajetória foi seguida também por seu sobrinho, José Borges do Amaral e

Castro Sobrinho. Em testamento datado de 1875, declarava ter nascido em Lages e

residir em São Francisco de Paula. Chegando ao Rio Grande de São Pedro, adquiriu

terras de seu tio no ano de 1852, pagamento este realizado em gado: 200 reses52. A

composição de seu patrimônio ao momento do inventário novamente evidencia a

predominância de atividades produtivas pecuárias, inclusive pela denominação das

fazendas: “campos da fazenda da invernadinha”, “invernada”53. Em seu testamento,

instituiu como herança para Gertrudes Maria do Espírito Santo, mãe de seus filhos com

a qual nunca chegou a se casar, uma casa de moradias, um escravo e uma escrava.

Falecido seu marido após a abolição da escravatura, Gertrudes não recebeu – ao

menos enquanto propriedade formalizada enquanto tal, enquanto seres humanos

igualados a mercadorias – os escravos que lhe foram prometidos. Por outro lado, a

ausência dos mesmos no inventário de José Borges do Amaral e Castro nos impede de

obter maiores informações a respeito deles.

As propriedades da família Borges arroladas situavam-se em uma localidade do

interior de São Francisco de Paula denominada Chapéu, pertencente ao atual

município de Jaquirana, em direção a Cambará do Sul54. Em março de 1889, faleceu

52 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Medição da Fazenda do Chapéu ou Morrinho Agudo – autorJoão Pedro Pereira, réu José Monteiro Filho. Auto n. 162, maço 8, estante 152. Cartório do Civil e Crime – 188953 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Inventariado – José Borges do Amaral e Castro. Inventariante –Inácio Borges do Amaral e Castro. Auto n. 52, maço 2, estante 152. Cartório do Civil e Crime – 189154Anexamos a este laudo um mapa, originariamente pertencente ao supracitado livro de Sebastião Fonseca deOliveira, no qual tais propriedades e localidades constam com razoável precisão. OLIVEIRA (1996) As terras deFelipe Borges do Amaral e Castro, por exemplo, tinham Vitorino José Pereira como vizinho, e os rios Tainhas,Camisas e das Antas como limites, que aparecem no mapa desenhado por Oliveira. Do outro lado do Tainhassituava-se um lugar denominado Faxinal, que também aparece freqüentemente nos inventários analisados.Possivelmente ali se localizasse a fazenda denominada Capão Alto. Esta fazenda foi o local onde foi criado José IldoPereira, primo-irmão do pai dos Silva, Euclides José da Silva.

Em pesquisa realizada anteriormente por um dos autores, na comunidade negra de Morro Alto, municípiosde Osório e Maquiné, foi referida a existência de territórios negros em Tainhas.

30

Page 10: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Francisco Borges do Amaral e Castro Sobrinho, um dos filhos de José Borges do

Amaral e Castro Sobrinho. Seu irmão, João, declarou as condições de sua morte:

faleceu de morte natural, na casa de seu pai, no lugar denominado Chapéu. Seu

cunhado, José Vitorino Pereira, acrescentou que a casa de seu sogro distava 12 léguas

da vila de São Francisco de Paula55.

Este cunhado pertencia a uma das duas famílias – os Pereira e os Valim – que

sempre constam nos inventários da família e nos autos de medição consultados,

referidos por sua condição de lindeiros. As medições fornecem outras informações

importantes, concernentes à aquisição daquelas terras. Os Pereira tornaram-se

proprietários de grandes extensões de terra através de aquisições feitas no início do

século XIX56. Em 1826, Vitorino José Pereira comprou pela quantia de 192$000 “uma

sesmaria” de campo em cima da serra a Manoel Gonçalves Ribeiro e sua esposa Maria

Nolasca de Jesus. Dois anos depois, por 400$000 tornou-se proprietário de mais uma,

transação esta efetuada junto a Policarpo de Freitas Noronha e Dona Clara Cândida

Carvalho57.

Entrevistamos uma descendente da família Borges, que, indagada da localização das terras de sua família,respondeu serem para o lado de Jaquirana e Cambará do Sul. Esta entrevistada solicitou que seu nome permanecesseem sigilo. A entrevista com ela foi realizada em Porto Alegre no dia 11 de agosto de 2004.55 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Inventariado – Francisco Borges do Amaral e Castro Sobrinho.Inventariante – José Victorino Pereira. Auto n. 44, maço 2, estante 152. Cartório do Civil e Crime – 189056No mapa confeccionado por Oliveira, as terras entre os rios Camisas e Tainhas estão referidas como “FazendaSanta Bárbara”, e Manoel de Barros Pereira aparece como seu proprietário no ano de 1747. Se deduz uma relaçãoentre Manoel de Barros e Vitorino José. Da mesma forma, acreditamos que as famílias Borges e Valim tenham setornado proprietárias de terras na região por aquisição dos Pereira. 57 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Medição da Fazenda do Chapéu ou Morrinho Agudo – autorJosé Victorino Pereira, réu João Crescêncio de Almeida. Auto n. 145, maço 5, estante 152. Cartório do Civil e Crime– 1887. Os inventários analisados demonstram uma situação típica dos anos finais do regime escravista, qual seja, osproprietários de terras tentando regularizar situações fundiárias imprecisas e indefinidas, como diferentes atoressociais compartilhando da posse das propriedades e diversos integrantes de grandes famílias senhoriais tentandodefinir o quinhão que a cada um cabia nas grandes fazendas.

31

Page 11: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Posteriormente, integrantes das famílias Pereira e Borges celebraram

matrimônios entre si, transformando em parentesco relações de vizinhança e

agregando um patrimônio em comum. Na segunda metade do século XIX, José Vitorino

e João Pedro, netos de Vitorino José Pereira, casaram-se, respectivamente, com

Josefa e Carolina, ambas filhas de José Borges do Amaral e Castro Sobrinho. Como

veremos posteriormente, os pais e avós da “Família Silva” tinham diversas relações

com os descendentes deste primeiro casal.

Antes de investigar, contudo, estas relações, resta falar da família Valim,

também residente e proprietária na região do Chapéu. Esta família também guarda

ligações com os Silva. Ido José da Silva58, 87 anos, tio paterno da comunidade

estudada, nos relata que os Valim não gostavam de utilizar o seu sobrenome,

preferindo chamar-se de “José da Silva”. Este é o caso de Afonso José da Silva,

fazendeiro que “ficou de padrinho” de Ido até seus 17 anos. Posteriormente, quem

terminou de o criar foi seu filho, João da Silva Reis. Através do cruzamento da

documentação histórica com a memória comunitária, foi possível resgatar os vínculos

desta comunidade com o passado escravista. Ido relata que o pai de Afonso José da

Silva, o “velho que o criou”, tinha escravos.

Nos inventários da família Valim, efetivamente este sobrenome só era utilizado

pelas mulheres. Os homens aparecem na documentação como José da Silva, como é o

caso de Afonso no inventário de seu pai, em 1897, Luciano José da Silva Neto. Foi

inventariante Fortunata Maria Valim, a viúva59. Fortunata figura dentre os herdeiros de

58Ido José da Silva reside na vila Bom Jesus, é irmão de Euclides José da Silva, pai dos atuais integrantes dacomunidade estudada. Trata-se do informante mais idoso por nós entrevistado, sendo um importante guardião damemória do grupo em questão.59 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Inventariado – Luciano José da Silva Neto Inventariante –Fortunata Maria Valim Auto n. 87, maço 3, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 1897

32

Page 12: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

sua irmã Matilde Maria Valim, cujo inventário era datado deste mesmo ano. Matilde

faleceu solteira, deixando diversos bens para seus sobrinhos, irmãos e irmãs, escravos

e ex-escravos em um testamento de 6 de março de 189060.

Para quem está acostumado com cronologias históricas rígidas, esta data pode

surpreender. Afinal, costuma se datar o fim da escravidão em 1888. Ou melhor, há

quem diga que ela teria acabado no Rio Grande do Sul em 1884, apesar dos estudos

que demonstram ter a exploração compulsória do trabalho se perpetuado para muito

além destas datas, através, por exemplo, de cláusulas de prestação de serviços61. De

qualquer forma, poderíamos pensar que trata-se de mero engano de Matilde Valim no

momento de elaboração de seu testamento. Afinal, as transformações no campo

material costumam ser mais aceleradas do que no campo das mentalidades, lugar das

“defasagens, produto do retardamento dos espíritos em se adaptarem às mudanças”, já

ensinava um importante autor da disciplina histórica62.

Contudo, o uso da palavra “escravo”, em nosso entendimento, evidencia mais do

que um lapso, a sobrevivência de uma mentalidade senhorial. Afinal de contas, é feita

uma distinção entre “escravos” (Francisco e Belizário); Idalina - filha de Geralda,

Jacinta - filha de Leonarda, Maria - mulher de Ramiro (sem quaisquer qualificativos),

uma “ex-escrava” (Joana), Henriqueta - filha de Geralda (afilhada). Se há distintividade,

depreende-se de cada uma das palavras empregadas um significado diferenciado.

A situação de Francisco e Belizário é pensada como distinta da dos demais,

particularmente da de Joana. São pensados enquanto cativos, ao mesmo tempo em

60 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Inventariado – Mathilde Maria Valim Inventariante – AntônioValim de Azevedo Auto n. 88, maço 3, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 189761MOREIRA (2003). p .251-25762LE GOFF (1976). p. 72. Fernand Braudel também apontava a lentidão das transformações no campo da cultura,por ele associado à longa duração. BRAUDEL (1990). p. 14-16

33

Page 13: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

que outros não recebem esta qualificação. Dois anos após a lei áurea, assim referidos,

encontravam-se à margem da legalidade que proclamou o fim da escravidão. A

assinatura da lei na corte não implicou necessariamente em seu cumprimento no

interior do Rio Grande do Sul. Muito embora figurassem, ainda, como cativos, eles

foram arrolados no título de herdeiros, e não dentre os bens a serem partilhados:

Francisco recebeu seis reses de ventre e uma besta, Belizário oito reses de ventre e

uma besta. Entre os demais, a Idalina foram legadas quatro reses de ventre e um

cavalo, a Jacinta, quatro reses de ventre e um cavalo, a Maria, duas reses de ventre, a

Joana, uma rês de ventre, assim como à afilhada Henriqueta.

Diversos estudos têm demonstrado que o legado de heranças a escravos ou

forros (ou mesmo a promessa da libertação) era mais comum do que se costuma

acreditar. Muito mais do que um ato de bondade, tratava-se de uma prática de

disciplina ou de perpetuação de uma relação de dependência. Afinal, a esperança em

ganhos futuros – a possibilidade de produzir por meios próprios no interior da fazenda

senhorial, através de “pequeno direito de propriedade”; o ganho de determinada

quantia em gado ou terras; a conquista (ou esperança) da liberdade – tudo isso poderia

servir como um estímulo à passividade ou à cooperação do escravo. Por outro lado, por

tais benesses serem apresentadas como uma concessão senhorial, ficava o ex-escravo

em uma situação de dívida de gratidão em relação ao antigo senhor63.

O caso de Francisco e Belizário, qualificados como escravos, é uma

demonstração explícita desta continuidade de relações de exploração de mão-de-obra

dos libertos, em relações de trabalho que podem ser chamadas de escravidão

disfarçada (ou nem tanto). Pode-se dizer que se apoiavam em redes sociais de

63A respeito, ver SILVA (1999) p.22-31; SLENES (1996). p. 37-102; MATTOS (1998); BARCELLOS et alii(2004)

34

Page 14: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

dependência que eram alimentadas pelas famílias senhoriais, através de relações de

assistência ou compadrio; e eram de exploração, em função das condições de miséria

em que os libertos foram deixados. O projeto senhorial era o da permanência e controle

dos antigos escravos nas fazendas onde viveram, e aqueles que tinham relações

familiares mais profundamente enraizadas estavam mais vulneráveis a restrições em

sua mobilidade.

“A abolição formal da escravidão significou para grande

parte dos escravizados uma armadilha, na medida em que

toda uma série de dispositivos foi criada para manter o

trabalho do negro aprisionado. Uma das principais

armadilhas era a imposição da condição de agregado que,

mantendo o ex-escravo preso às terras do senhor, permitia

a continuação da extração forçada do trabalho sob novas

roupagens”64.

“Costuma-se alegar que aos libertos nada foi concedido

além da liberdade. Nem terras, nem instrução, nem qualquer

reparação pelos anos de cativeiro. Foram entregues à

própria sorte, o que podia ser especialmente dramático para

idosos e órfãos (...). No contexto da época, entretanto, salvo

a remota possibilidade de uma distribuição de terras, que

causou forte pânico entre os proprietários, a legislação

especial que se esperava tinha como base a idéia de tutela

do liberto pelo Estado, forçando-o a continuar na plantation

em condições cujos termos deviam ser definidos pelos ex-

senhores”65.

“Como se planejara desde a lei de terras, para os libertos as

alternativas eram empregar-se nas antigas propriedades

64ANJOS e SILVA (2004), p. 3565MATTOS (1998) p. 287

35

Page 15: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

escravistas, desde que não reunissem condições para a

aquisição de pequenas propriedades”66

“(...) a complexidade e a antigüidade dos laços familiares

herdados do cativeiro influíram diretamente nas decisões de

migração e permanência dos libertos”67.

Essa complexidade e enraizamento de laços familiares podem ser demonstrados

com precisão no caso em questão. Belizário é avô paterno da “Família Silva”, de

acordo com mapa genealógico a seguir. No ano de 1890 a ele era atribuída a idade de

25 anos. Francisco, seu companheiro de escravidão pós-escravista, era casado com

Joaquina de tal, indicava o testamento. Ou, em palavras mais íntimas, quando Ido

arrola seus padrinhos:

“Padrinho era irmão do meu pai. Chamava-se Francisco,

Chico. Ela chamava-se Joaquina, a tia Quina (risos)”.68

66MATTOS (1998) p. 32867MATTOS (1998) p. 31868Entrevista com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004.

36

BelizárioJosé da Silva

(Escravo)

Pedrosa Borgesda Silva

(Pedrosa JustinaBorges)

Francisco(Escravo)

Joaquina

Ido Euclides Olício

Page 16: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Para nos certificarmos que as informações obtidas na pesquisa documental

realmente se referiam às pessoas presentes na memória de Ido, nosso entrevistado,

achamos por bem perguntar a ele se lembrava de determinados nomes, presentes no

testamento de Matilde Valim. Não se trata de indução, uma vez que não trouxemos ao

seu conhecimento a origem dos nomes relacionados. Trata-se meramente de uma

estratégia para testar uma hipótese de trabalho que orientou a elaboração deste laudo.

Estratégia bem sucedida, já que ele reconheceu os nomes de Idalina e Joana, que não

lhe eram estranhos embora não lembrasse com exatidão de quem se tratava. Lembrou

de Ramiro, um vizinho, também criado de um fazendeiro, chamado Henrique Valim. Ele

“era parecido de idade” com seu pai. Recordou ainda de Henriqueta (para ele, tia

Henriqueta), que tem um parente chamado Gaspar e outro Bernufo. Este último tem um

filho que reside no Sarandi69. Lígia Maria, integrante da “Família Silva” também referiu-

se a este tio Bernufo, que vinha de São Francisco de Paula para visitar sua mãe e sua

avó70.

Belizário, segundo os documentos analisados, era nominado como Belizário

José da Silva71. A assunção do sobrenome pertencente à família senhorial pode ser

interpretada como uma estratégia para, por um lado, criar vínculos e uma identidade

para aqueles que até então supostamente não a tinham; por outro, tratava-se de

manter relações de dependência entre a família senhorial e os libertos. “Não se

emergia completamente livre do cativeiro, mas passava-se para o status de liberto, o

qual estava profundamente marcado pelas cicatrizes Da escravidão e no qual era

69Entrevista com Ido José da Silva no dia 30 de junho de 2004.70Entrevista com Lígia Maria da Silva no dia 25 de maio de 2004.71 A certidão de casamento de Anna Maria e Euclides, bem como as certidões de nascimento de seus filhosapresentam essa informação. Certidão n. 17208, fl. 59 do livro B-62 do Registro Civil de Nascimentos, Casamentose Óbitos da Terceira Zona de Porto Alegre, e também no registro de batismo de seu filho Olício, ao qual nosreportamos neste trabalho.

37

Page 17: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

arriscado abdicar dos sistemas de proteção dados pelas boas relações com seus ex-

senhores”72. Dentre estas marcas deixadas pelo cativeiro, o sobrenome pode ser

considerado um sinal que permanentemente estava a indicar um vínculo à família

daqueles senhores. Isso é bastante significativo: a antropologia social tem

compreendido o nome como algo que individualiza e categoriza as pessoas; denotando

pertenças e lugares sociais73.

Ellen Woortman, ao estudar a colônia alemã de Dois Irmãos, interior do Rio

Grande do Sul, constatou que os escravos recebiam o sobrenome da família à qual

pertenciam. Essa prática buscava burlar a interdição impostas às famílias alemãs de

possuir cativos. A adoção do sobrenome, portanto, evidenciava um vínculo de

dependência e subordinação porque os escravos nunca recebiam o prenome ancestral,

do patrimônio do tronco familiar. Embora não estivessem fora da organização

doméstica, os cativos ocupavam uma posição subordinada, simbolizada pelo fato de se

servirem à mesa após os brancos, tal como as crianças se serviam após os adultos74.

Acreditamos ser possível traçar um paralelo desta situação dos colonos de origem

germânica na segunda metade do século XIX, com a de ex-senhores, em geral, no

pós-abolição: sempre tentativas de contornar a proibição de utilizar mão-de-obra

escrava.

Nos registros paroquiais por nós analisados, de São Francisco de Paula e

também de Cachoeira do Sul, era freqüente, nos anos imediatamente posteriores à

abolição, tanto as crianças quanto as mães serem identificadas unicamente pelo

prenome, tal como ocorria com os escravos. No século XX, contudo, são mais comuns

72BARCELLOS et alii (2004) p. 12173Ver MAUSS (1974) e BRANDÃO (1986).74WOORTMANN (1995). p. 212-213.

38

Page 18: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

a presença de sobrenomes, os mesmos das antigas famílias senhoriais; além disso,

associados a relações de apadrinhamento pelas mesmas. Stuart Schwartz aponta que

alguns senhores viam a adoção destes nomes com “lisonja gratificante ao seu orgulho

e senso de paternalismo”75. Paternalismo é uma palavra muito significativa no que diz

respeito aos anos imediatamente posteriores ao fim da escravidão76. Uma relação

paternal é hierárquica, autoritária, e mantém o “protegido” alijado do exercício da

cidadania. Por outro lado, mascara uma relação de exploração econômica sob a

imagem de proteção paternal77.

A criação de camadas de indivíduos dependentes fez parte

da intenção dos grandes proprietários de terras em

garantirem seu capital simbólico através da existência de

famílias que lhes prestavam obediência, mas também mão-

de-obra para suas fazendas e demais empreendimentos.78

Se a “proteção” oferecida pelos proprietários de terras significava submissão à

exploração da força de trabalho, por outro lado a ausência desta proteção poderia

deixá-los à mercê de abusos e violências, em uma sociedade nitidamente racista, é o

que se depreende da leitura de alguns processos criminais.

Em 1905, Hortêncio José da Silva, 26 anos de idade, solteiro, jornaleiro, filho de

José Valim, respondeu a processo criminal por ter arremessado uma cadeira contra

Feliciano José Martins, qualificado ao longo do processo como “preto Feliciano”. A

75SCHWARTZ (1999) p.327.76A descendente da família Borges por nós entrevistada utilizou exatamente esta palavra, ipsis litteris, ao externar omotivo provável que, no seu entendimento, explicaria a coincidência de nomes entre os ascendentes dos Silva e osseus. 77 Ver LEITE (2002). p. 106 e MEILLASSOUX (1995). p. 13. O mesmo autor (p. 94) observa que “famíliasmanumissas, algumas, geralmente antigas, podiam entrar na familiaridade dos senhores, fornecer-lhes trabalhadoresdomésticos, auxiliares, mordomos, às vezes até tutores (...) Entretanto, senhores e escravos continuavam separados.A condição do escravo se transformara, mas não o seu estado”. 78BARCELLOS et alii (2004) p. 120

39

Page 19: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

agressão se deu durante um baile na casa de Antônio Joaquim de Oliveira e produziu

extenso ferimento na região frontal. À medida em que lemos os depoimentos das

testemunhas, vamos percebendo a situação em que o crime se deu. Feliciano José

Martins adquiriu de Pedro Francisco de Lima duas cestas e um lenço. Tendo pago o

preço conveniente, foi interpelado por Hortêncio José da Silva e Adriano Inácio da

Silva, que o acusaram de não ter dado a quantia suficiente. Ao tentar se defender da

acusação, afirmando já ter pago e não dever nada, foi-lhe atirada a cadeira. O que o

processo parece indicar é que, mesmo se acusados injustamente, a sociedade de

então não admitia voz de defesa à população negra79.

Vinte e cinco anos mais tarde, Justina Josefa da Silva protagonizou mais um

episódio de arbitrariedades contra a população negra na comarca de Taquara. Ela foi

processada por ter vibrado em Leontina Rodrigues da Silva uma pancada com um

cacete. Era sua vizinha, e ao longo do processo iremos descobrir que o motivo da briga

fôra a soga de uma cabrita, que Leontina arremessou um tamanco em Justina, e que

esta estava sendo processada por ter se defendido. O caso lembra o de Feliciano: ao

defender-se, corria-se o risco da agressão ou mesmo do processo judicial.

A origem negra da acusada não aparece ao longo de praticamente todo o

processo. Foi invocada pelo seu defensor, contudo, com base no estranho argumento

de que “nem os negros aceitam apanhar de tamanco”, o que tornaria aceitável que

Justina se defendesse. Enfim, ela foi absolvida, ainda que em base a uma defesa

francamente racista, que admitia, em certo grau, a agressão física aos negros, e que –

ponto freqüente no discurso racista – terminava pela animalização do outro:

79APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Autora – A Justiça Réu – Hortêncio José da Silva Auto n. 788,maço 32, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 1905

40

Page 20: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

“(...) Ora, Justina, consoante o que já ficou dito nas razões

de defesa, foi agredida por Leontina, que, com grande

antecedência, a vinha provocando insistentemente. Tentou,

por todos os meios suasórios ao seu alcance, desviar a

sanha feroz da sua agressora, sem entanto consegui-lo: a

guerreira colona, fingindo Mme. Roland de botequim,

investiu-a de tamanco em punho. Ora, há de convir o

meritíssimo Juiz julgador, muito mais do que o chicote, é

instrumento aviltante. De chicote só se dá em negro

escravo. De tamanco nem sequer em negro se dá. Só

mesmo em cachorro impertinente, quando incomoda a ponto

de fazer o cidadão perder a calma, esquecer a linha e cair

do bonde. Assim mesmo o cidadão não dá de tamanco no

cachorro, atira-lho, simplesmente. Era, pois, muito razoável

que Justina não quisesse apanhar de tamanco. Por isso,

num movimento ágil e robusto, desarmou a mimosa Erínea.

(...) Foi então que Justina, camponesa rude, entendendo

apenas de batatas e feijão, alma fechada às solicitações

artísticas, incapaz de “bancar” Shakespeare em qualquer

circunstância, não logrando alcançar a grandeza imaculada

da cena bíblica representada pela autora (Moisés falando

aos Hebreus no Sinai), julgou-se no direito de perder a

paciência e acariciar a sua adversária com um ou dois beijos

de tamanco no meio do frontal”80.

Por outro lado, se na situação de Justina Josefa, de pequena produtora81, havia o

risco de enfrentar arbitrariedades ou ser processada injustamente, para aqueles que

permaneciam agregados ou criados de fazendeiros existia o risco de serem co-

responsabilizados por delitos feitos a mando de seus patrões. Foi o caso de outro

processo criminal analisado, que a bem da verdade não passa de uma briga de família

que foi parar na justiça, em julho de 1902. Israel Borges do Amaral Fogaça ingressou

80APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Autora – A Justiça Ré – Justina Josefa da Silva Auto n. 1306,maço 65, estante 153 Cartório do Civil e Crime - 193081É o que o processo dá a entender, uma vez que é qualificada como camponesa rude, entendendo apenas de batatase feijão.

41

Page 21: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

com um processo judicial contra Olivério da Silva Esteves, seu tio, meio-irmão de sua

mãe, e contra “ Antônio de tal, conhecido por Antônio Mulato e capataz ou peão ou

agregado de Rosa da Silva Esteves”. No caso, sua prima.

A acusação, envolvida em uma complexa história de trocas de animais,

mudanças nas marcas, era de roubo de gado. No entanto, justamente devido às trocas,

feitas de forma consensual, e às mudanças das marcas delas decorrentes, tornava-se

impossível distinguir a quem pertencia a cabeça de gado em questão – o processo

referia-se a uma vaca. De qualquer maneira, Antônio era acusado de ser executor do

crime, a mando de seu tio.

“Esta vaca esteve sempre, desde a data da permuta, em poder do

querelante, que a tinha, no campo em frente à sua casa, à vista quem

quer que passasse e onde ela se acostumara e donde em dias do mês

de março deste ano foi subtraída, sem consentimento tácito ou expresso

do querelante, pelo querelado Antônio mulato e de ordem de Olivério

Esteves, sob o falso pretexto de que o querelante a possuísse

ilegitimamente, por provir ela de um suposto furto.”82

Ao fim das contas, por motivos que desconhecemos – talvez a argumentação do

advogado de Esteves tenha sido suficientemente convincente, talvez Israel Fogaça se

tenha novamente submetido à autoridade de seu tio (que ao fim das contas era um

coronel), talvez a vaca tenha proporcionado um saboroso churrasco de reconciliação –

o fato é que em agosto daquele ano o autor do processo abriu mão da ação. Se não

houve crime, Antônio mulato foi poupado de – mais uma – arbitrariedade. Se houve, ele

e seu patrão permaneceram impunes.

82 APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Autor – Israel Borges do Amaral Fogaça Réus – Olivério daSilva Esteves e Antônio Mulato Auto n. 740, maço 30, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 1902

42

Page 22: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

A lógica da adoção do nome daquele a quem se é dado em “criação” (nascidos

após 1888) ou do ex-senhor (libertos), por vezes gera famílias com muitos sobrenomes,

diferentes entre si. Ido José da Silva relata que sua mãe, Pedrosa Justina Borges83,

faleceu quando ele ainda era criança, o que implicou em ele, e os irmãos, terem sido

criados “extraviados” uns dos outros.

R “– O nome dos irmãos, quantos eram?

I – Eu nem conheci todos, mas diz minha irmã mais velha

que nós éramos 14.

R – E desses quais o senhor conheceu.

I - Tem uma coisa, a gente se criou muito extraviado uns

dos outros.

R - Como é que era isso de se criar extraviado?

I – Um lá, outro cá.

A – O senhor não foi criado com seus pais então?

I – Nós fomos criados até uma época com os pais, depois

morreu a mãe e o pai não tinha condições de criar. Então

davam.

A – Até que idade o senhor foi criado com seus pais?

I - Quando minha mãe faleceu eu estava com seis anos.

A – E depois o senhor foi para onde?

I - Eu fui para uma fazenda.

A – O senhor lembra o nome das pessoas da fazenda?

I – Não me lembro não. Me criei com ele até 17 anos.

A – Como era o nome dele?

I – Afonso José da Silva.

A – Silva sempre junto.

I – Era uma família que o sobrenome era Valim, mas parece

que eles não gostavam de ser Valim.

A – Tinha nome a fazenda?

I – A que eu terminei de me criar era a fazenda do Cais

Cais.

R – Quem era o fazendeiro desta fazenda?

83 Em alguns documentos como a certidão de casamento de Anna Maria e Euclides, supracitada, e certidões denascimento de seus filhos ela é nominada como Pedrosa Borges da Silva.

43

Page 23: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

I – João da Silva Reis, filho do Afonso.” 84

Note-se que em “reciprocidade” à criação, mas ocultando uma relação de

exploração econômica em muito semelhante à escravidão (Ido “passou” de pai para

filho, de forma muito semelhante à herança de uma propriedade), nosso informante

trabalhava e era parcamente remunerado85.

A:”– Nesse tempo que o senhor estava nessas duas

fazendas que o senhor se criou, o senhor fazia algum tipo

de trabalho nessas fazendas?

I – Lidar com a terra, lidar com o gado.

R – Recebia alguma coisa?

I – Recebia uns trocos.” 86

Os demais irmãos de Ido passaram por situações semelhantes, com outros

proprietários da região do Chapéu. É o caso, por exemplo, de Olício. Segundo relato de

seu irmão, Olício foi criado por um fazendeiro de nome Fogaça, e por esta razão “se

assinava” assim87. O registro de batismo de Olício confirma esta informação: filho

natural de Belizário José da Silva e Florentina Pedroso dos Santos88, nasceu no dia 28

de julho de 1910, e foi batizado em 16 de março de 191289. Seus padrinhos, Antônio

84Entrevista com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004.85 MEILLASSOUX (1995), destaca o descompasso entre o trabalho oferecido pelo escravo, “fornecido semmedida”, enquanto o senhor apenas arcava com custos “medidos” de atender às necessidades de sua vida individual.Esta correlação se aplica, também, a estes que eram “criados” e “trabalhavam”.86Entrevista com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004.87Depoimento de Ido José da Silva, em 17 de agosto de 2004.88Seu Ido garantiu que Olício era filho do mesmo pai e da mesma mãe que ele. É altamente provável que PedrosaJustina Borges e Florentina Pedroso dos Santos sejam a mesma pessoa, sobretudo considerando que nesta época,para famílias descendentes de escravos, os nomes não costumavam ter o rigor e a rigidez que a eles costumamosatribuir, como estamos vendo. Em uma comunidade negra rural dos dias de hoje, é plenamente plausível que umapessoa tenha mais de um nome, que são manejáveis, compostos, e grandes. BARCELLOS et alii (2004) p. 214; 219-22889Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 13o livro de batismos de São Francisco de Paula, 1911-1913, f. 42, batismo 364.

44

Page 24: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Soares Fogaça e Francisca Soares Fogaça, embora não possuíssem o sobrenome

Borges, eram descendentes de Felipe Borges do Amaral e Castro, já que sua filha

Ambrosina havia se casado, no século XIX, com João Fogaça de Oliveira Soares. As

relações eram as mesmas, junto às mesmas famílias, proprietários de terras na mesma

região.

A esposa de Belizário, Pedrosa, possuía o sobrenome Borges, o que é um forte

indício de descender de escravos desta família. Um primo-irmão paterno de Ido José

da Silva, José Ildo Pereira, por nós entrevistado, lembra-se de seus avós em comum.

Trata-se de Caetano e Josefina Pereira90. Não deve surpreender o fato de uma de suas

filhas, Pedrosa, ter o sobrenome Borges. Como já vimos, os Borges uniram-se

maritalmente aos Pereira. Além disso, Caetano consta como escravo no inventário de

José Vitorino Pereira, realizado em 1875, justamente o pai dos dois Pereira que

casaram-se com duas Borges. Nessa ocasião, Caetano era descrito como pardo, tinha

19 anos, e possivelmente por estar no auge da sua capacidade produtiva, era avaliado

por uma quantia mais elevada91.

Resta descrever, ainda, os vínculos sócio históricos que resgatamos da “Família

Silva”, no que tange à sua linhagem materna. Naura Borges dos Santos, avó materna

dos Silva, nasceu em 2 de agosto de 1915 e foi batizada em 17 de janeiro de 1916.

Sua mãe chamava-se Benta dos Santos, e seus padrinhos eram Ivo e Hilda Lucena

90Entrevista com José Ildo Pereira, em 30 de junho de 2004. 91APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Inventariado – José Vitorino Pereira Inventariante – MariaFrancisca da Conceição Auto n. 52, maço 3, estante 39 e/c Cartório de Órfãos e Ausentes – 1875

45

Page 25: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Borges92. Eram dois irmãos, netos de José Vitorino Pereira e Josefa Borges Pereira.

Durante um longo tempo, inclusive durante a trajetória da “Família Silva” em Porto

Alegre, a comunidade que é objeto deste laudo de pesquisa teve uma ligação estreita

com a família Borges, particularmente com os descendentes de Hilda, e a esposa de

Ivo, Maria Feijó Borges, chamada pelos Silva de “vó branca”93.

Porém, recuando um pouco mais na árvore genealógica dos Silva, é possível

nos remetermos ao nascimento de Benta, mãe de Naura. Seu registro de batismo,

realizado a 18 de junho de 1887, esclarece ter ela nascido em 6 de agosto de 1885,

sendo filha natural de Josefa, ex-escrava94. Além de ser mais um demonstrativo dos

vínculos históricos da comunidade dos Silva com o passado escravista, o documento

presente nos permite verificar outros aspectos. Por um lado, é impossível não traçar um

paralelo entre Josefa, avó materna de Naura, e Josefina, mãe de Pedrosa. Pertencem

à mesma geração. Eram cativas na região do Chapéu. Seus nomes estão associados à

92Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 15o livro de batismos de São Francisco de Paula, 1915-1916, f. 14-v.93 Essas relações serão devidamente detalhadas ao longo do texto.94Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 7o livro de batismos de São Francisco de Paula, 1886-1889, f. 31-v.

46

BelizárioJosé da Silva

(Escravo)

Pedrosa Borgesda Silva (PedrosaJustina Borges)

Ido Euclides Olício

JosefinaPereira

CaetanoPereira

(Escravo)

Page 26: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

família Borges95. Seriam a mesma pessoa? É uma possibilidade. Poderiam, também,

ser irmãs. Ou ainda, ter nomes assemelhados pelas respectivas mães terem decidido

homenagear uma à outra. Não se tratam de meras especulações. Seja qual for a

ligação, certamente há alguma. Se, como nos afirmou uma descendente da família

Borges, São Francisco de Paula era um universo muito pequeno em inícios do século

XX, quem dirá o dos negros do Chapéu em meados do século XIX.

Verificar uma ligação antiga entre as famílias Borges (negra) e José da Silva

(negra) nos ajuda a entender a “complexidade e antigüidade” dos laços de parentesco.

Nos permite pensar que o matrimônio de Euclides e Anna Maria96, ocorrido em Porto

Alegre, deveria estar atualizando ligações afetivas e comunitárias que remetem ao

século XIX, territorializadas no século XX no bairro Três Figueiras. Possibilita-nos

95Em entrevista realizada Ido José da Silva, tio paterno dos Silva, em 22 de maio de 2004, ele explicou que essa erauma prática comum e que sua mãe, Pedroza Borges da Silva, teria recebido o sobrenome Borges por ter sido criadapor alguém desta família.96Pai e mãe dos Silva. Anna Maria era filha de Naura. Euclides de Pedrosa.

47

Josefa(Ex-escrava)

Benta

NauraBorges

da Silva

Malvina

Page 27: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

perceber também entre os escravos, sentimentos e vínculos comunitários que estão

para além da força de trabalho extirpada97.

Uma leitura de batismos realizados no mesmo dia, registrados na mesma folha,

reforçam esta idéia, por nos permitir perceber relações de solidariedade dos forros

entre si.

Crianças, filhas de ex-escravas, batizadas no dia 18 de junho de 188798

Criança Filho natural

de

Nascido em Padrinho Madrinha

Benta Josefa, ex-

escrava

6 de agosto de

1885

Fermiano Geralda

Caetana Justina, ex-

escrava

7 de setembro

de 1884

Antônio Josefa

Malvina Josefa, ex-

escrava

19 de maio de

1887

Manoel Teixeira

dos Santos

Maria Inácia

Teixeira dos

Santos

Fermiano Justina, ex-

escrava

15 de outubro

de 1886

Floriano e sua mulher

97Sobre relações afetivas, parentesco, recordações e esperanças entre a população escrava, ver SLENES (1999). “Éimportante frisar que os novos estudos não amenizam nossa visão dos horrores da escravidão, nem procuram fazerisso. (...) as nossas pesquisas 'reabilitam' por assim dizer, a 'luta de classes' sob o escravismo, praticamenteinexistente na maioria das obras da Escola Paulista – como também, estranhamente, em alguns trabalhos maisrecentes, de cunho marxista”. (p. 45) A respeito da “economia do afeto” intra e inter plantéis cativos, verBARCELLOS et alii (2004) p. 99-11698Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 7o livro de batismos de São Francisco de Paula, 1886-1889, f. 31-v.

48

Page 28: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Realizando coletivamente o batismo de seus filhos, essas pessoas se instituíam

como comadres e compadres (a exceção é o batizado de Malvina), criando,

atualizando, reforçando laços de parentesco e afetividade. É muito provável que o

menino batizado por Justina tenha recebido este nome em homenagem ao Fermiano

que aparece como padrinho de Benta – poderia ser seu pai, um tio, um avô, um amigo

– certamente alguém íntimo da mãe. É possível traçar um paralelo entre o nome

Justina e a lembrança de Ido, para quem sua mãe se chamava Pedrosa Justina

Borges99. Também se pode lembrar que consta uma Geralda no testamento de Matilde

Valim100, e uma Justina no inventário de Felipe Borges do Amaral e Castro101. Todas

estas pessoas residiam no mesmo local: a coincidência de nomes expressa, ou a

identidade delas entre si, ou estreitos laços comunitários que os levassem a

compartilhar nomes desta forma.

99Na comunidade negra do Morro Alto, é absolutamente corriqueiro que as pessoas adicionem o nome paterno oumaterno, ou de algum outro ancestral, como nome seguido ao prenome. BARCELLOS et alii (2004) p. 219-228100APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo Inventariado – Mathilde Maria Valim Inventariante – AntônioValim de Azevedo Auto n. 88, maço 3, estante 152 Cartório do Civil e Crime - 1897101APERGS – comarca de Taquara do Mundo Novo. Inventariado – Felipe Borges do Amaral e Castro e s/m Mariado Nascimento Amaral. Inventariante – Olivério da Silva Esteves. Auto n. 3, maço 1, estante 39 e/c. Cartório doCivil e Crime – 1876. Justina tinha 9 anos em 1872, era costureira, preta, sua mãe chamava-se Albina e eralavadeira.

49

Josefa(Ex-escrava)

Justina(Ex-escrava)

1885

Benta (Padrinhos:

Fermiano e Geralda)1887

Malvina(Padrinhos:Manoel e Maria

Inácia Teixeira Santos)

1884

Caetana(Padrinhos:

Antonio e Josefa)

1886

Fermiano(Padrinhos: Floriano

e sua mulher)

Page 29: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

As relações de apadrinhamento e compadrio com homens e mulheres de outros

grupos sociais, quer de sua condição, quer de condição superior à deles representava

possivelmente a ampliação e ou consolidação de seus contatos, expandindo-se os

laços de solidariedade e afetividade, o que lhes garantia maior ajuda e segurança, além

de status e distintividade.

Desconhecemos detalhes da relação de Benta com a família Borges; no entanto,

acreditamos que se assemelhasse à de Belizário em relação aos Valim. Ao menos, a

relação de seus respectivos filhos (Naura e Ido) se assemelha. Além disso, a integrante

da família Borges que entrevistamos nos relatou diversos outros casos de filhos de

criação dentro de sua família, o que evidencia tratar-se de prática corriqueira. Ao

explicar em que consistiam estas relações, nossa informante contou que estes

prestavam serviços como lavar e passar roupa102. O relato de um filho de criação de

Naura é de que avó materna dos Silva foi criada pela família Borges, em Taquara,

como descreve João Brito Soares, 54 anos, filho de criação dela e de Alípio Marques

dos Santos103.

“- Sei que ela foi criada, lembro que ela dizia, que foi criada

pela família Borges, da qual ela ganhou o nome. Que são os

donos da empresa que faz aqui, como é que se diz? É...

Agora me faltou memória eu não me lembro o nome da

cidade. Taquara, da Citral. Os donos da empresa Citral. Ela

foi criada com a família Borges.”104

102Foram relatados como exemplo, José Netto, mulato, criado por Valêncio Netto, marido de uma integrante dafamília chamada Elisa; de Reni Padilha, criado por Hélio Lucena Borges (este é um irmão dos padrinhos de Naura);e finalmente, lembrou do nome de Otacília, que lavava roupa para uma familiar de nome Aurélia. Otacília teve umaneta que mora em Porto Alegre hoje, no bairro Teresópolis. 103É necessário destacar que existia uma grande ligação entre Taquara e São Francisco de Paula, pelo fato destaúltima constituir comarca daquela, em determinados períodos.104 Entrevista realizada com João Brito Soares no dia 05/06/2004. Ele foi criado por Naura e Alípio em função daprimeira ser conterrânea de sua mãe biológica e das duas se conhecerem e exercerem a mesmas atividades

50

Page 30: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Quando partiu para Porto Alegre, Naura deixou sua filha pequena para que a família de

seus padrinhos a criassem. Isso nos permite pensar que, se dar Anna Maria em criação

aos Borges constitui um depósito de confiança prestado a esta família, por outro lado é

possível que o preço da liberdade representada pela partida seja a de alguém – sua

filha – para sucedê-la nos afazeres decorrentes da condição de criada dos Borges. O

vínculo da pequena Anna Maria com os Borges eram os mesmos que ligavam sua mãe

a esta família, qual seja, de apadrinhamento. Batizada em 5 de maio de 1937, ela

nasceu em 22 de junho de 1936 e era filha de Naura Borges da Silva. Seus padrinhos

eram Hilda Borges Assis e José Vaz de Assis105. A madrinha era a mesma pessoa que

havia batizado e criado sua mãe. O padrinho era o marido de Hilda. A situação remete

diretamente ao caso de Ido. Como em uma herança, foi criado por pai e filho. No caso

em questão, são mãe e filha criadas pela mesma pessoa, novamente lembrando a

herança de uma relação que estava para além das gerações.

domésticas. Sete dias após o nascimento, ela o deixou sob os cuidados dos Silva.105Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Caxias do Sul, 27o livro de batismos de São Francisco de Paula, registronúmero 189.

51

Page 31: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Anna Maria da Silva quando pequena.

Foto reproduzida de original de Zuleica Briolandi da Silva.

De qualquer maneira, podemos depreender do relato de Ido José da Silva que a

partida para a cidade106 é percebida como um ato de liberdade, uma vez que representa

uma ruptura com uma situação de exploração, identificada com a ausência de direitos

trabalhistas e com a falta de trabalho para se fazer devido à sazonalidade das lides

campeiras:

“- Meu irmão levou cinco anos pra sair de lá. Eu nunca

demorei muito não. Cheguei a passar um ano. Eu cheguei

em março. Eu dizia: eu vou me embora. Ficar pra ser

explorado? Primeiro serviço que eu arrumei, quando eu

cheguei aqui eu não tinha nada de papel. Única coisa que

eu trouxe era a certidão de casamento. [diziam] Não tem

trabalho, quando precisar eu chamo [fazendo referência a

São Francisco de Paula].”107

Em 1952, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, preocupada com o rápido

crescimento daquilo que se qualificava como “malocas” – residências de pessoas

pobres, vistas pelos administradores como antros de imoralidade – realizou um estudo

a respeito. Nele, a busca por melhores oportunidades de trabalho foi apontada como

principal motivo (83,08%) que levava à migração do interior à capital, o que era

formulado nos seguintes termos:

106Ido José da Silva chega a Porto Alegre em 1951, encontrando seu irmão Euclides, que havia abandonado SãoFrancisco cinco anos antes. 107Entrevista com Ido José da Silva no dia 22 de maio de 2004.

52

Page 32: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

A precariedade da vida no interior, a falta de assistência ao

trabalhador rural, os baixos salários, acrescidos da

fascinação que as grandes cidades, com as suas diversões,

seu movimento e a procura de mão de obra exercem sobre

o povo, provocaram, entre outros fatores, o aumento

contínuo e cada vez maior das levas de emigrantes do

nosso “interland” para as capitais. 108

Como veremos, é discutível o quanto o ar da cidade efetivamente libertava109,

mas é significativo que esta experiência seja assim percebida por aqueles que a

vivenciaram. Porém, antes de chegarmos em Porto Alegre, temos necessidade de

fazer, também, uma breve incursão por Cachoeira do Sul, a fim de acompanhar a

trajetória que trouxe o avô materno dos Silva – Alípio Marques dos Santos – à capital110.

Ao sul do Jacuí, até a subida das águas do rio

De colonização lusitana bastante posterior à de São Francisco de Paula, a

ocupação das terras ao sul do Rio Jacuí está relacionada à apropriação militar do

108AHPOA - Relatório apresentado à Câmara Municipal pelo prefeito Ildo Meneghetti em 5 de abril de 1952 –Volume II – p. 861; 850. A pesquisa quantitativa certamente foi induzida, tendo em vista que as alternativas sãoexcludentes (embora não necessariamente devessem ser assim) e há poucas alternativas elencadas. 109Referimo-nos aqui a um provérbio alemão, segundo o qual “o ar da cidade liberta”. 110Alípio Marques dos Santos não era avô em termos biológicos, de consangüinidade, da comunidade em questão.Anna Maria, mãe dos Silva, era uma filha de Naura, deixada para ser criada em São Francisco antes de sua vindapara Porto Alegre, de conhecer Alípio e com ele se casar. Contudo, sempre foi reconhecido como pai por AnnaMaria e por seus irmãos adotivos; e como avô pelos atuais moradores do território. Alípio exercia, e tinhareconhecida como legítima, sua autoridade paterna. Nossos informantes chegavam a ter dificuldades para responder

se Anna Maria era filha de Alípio, na medida em que seu status de avô materno é consensual e imune aquestionamentos. O parentesco resulta do reconhecimento de uma relação social que pode ou não coincidir com umarelação biológica. Mais importante nessa definição são as atitudes de amor, afeição, temor e respeito que fazem da

família uma instituição única. Essas são as relações sociais de parentesco às quais estamos nos referindo, e que sãomuito mais significativas para a comunidade em questão do que eventuais laços biológicos.

53

Page 33: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

território durante a guerra de 1763-1777111. Naquele contexto, o controle sobre a

população indígena tinha significância estratégica, súditos e soldados em potencial que

eram para as monarquias ibéricas. Foi de fundamental importância para a formação de

Cachoeira o aldeamento de índios originários do espaço missioneiro – trazidos ao fim

da Guerra Guaranítica – naquela localidade. No ano de 1769, o governador José

Marcelino de Figueiredo determinou seu estabelecimento no Passo do Fandango112.

Conforme observa Helen Osório, “com a reconquista da vila de Rio Grande e o

Tratado de Limites de 1777, os portugueses puderam ocupar definitivamente as terras

entre o rio Jacuí e Camaquã, que já vinham sendo apropriadas naquela década”113. O

instrumento de legalização destas terras foi o edital de primeiro de janeiro de 1780, do

governador José Marcelino de Figueiredo, com base no qual foram concedidas terras

em freguesias como Triunfo, Santo Amaro, Encruzilhada, Rio Pardo e Cachoeira114.

Por ocasião da feitura da relação de moradores de 1784, Cachoeira era a

freguesia mais ocidental e de ocupação mais recente. Suas propriedades atingiam

imensas extensões, devidamente legalizadas pelos governantes115. Embora já tenha

sido demonstrado que as atividades agrícolas não estavam tão desvinculadas das

atividades de criação quanto se costuma acreditar116, Cachoeira, situada na região

fronteiriça, era caracterizada pelo predomínio da pecuária e do latifúndio. Era, talvez,

111SANTOS (1984) p. 47.112SCHUH e CARLOS (1991). p. 20113OSÓRIO (1990) p. 145. Grifos nossos.114OSÓRIO (1990). p. 160. Cachoeira passou a ser considerada uma freguesia a partir de 1779. SCHUH e CARLOS(1991) p. 20115OSÓRIO (1990) p. 181. 116OSÓRIO (1999)

54

Page 34: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

um dos poucos casos em que a idéia tradicional que fazemos do passado colonial sul-

riograndense, teve alguma correspondência com a realidade117.

Percebe-se que ao longo do século XIX118 esta situação gradualmente foi se

transformando. É o que demonstra, ao menos, a documentação que compulsamos. À

perseguição de pistas que nos levassem a Alípio Marques dos Santos e seus

ancestrais, investigamos diversos inventários de Cachoeira do Sul, daqueles

proprietários de sobrenome Marques. Nada encontramos de Alípio, mas reunimos

informações bastante importantes sobre seu lugar de origem.

Antes de mais nada, foi possível detectar a presença de pequenos proprietários

de terras, animais e escravos. Contrariando o predomínio do latifúndio no século

anterior, e mesmo resistindo à concentração social da propriedade cativa dos anos

finais da escravidão119, vemos, ao fim do século XIX, inventariados que possuíam 20

reses e uma escrava, uma atafona para a produção de farinha, engenho e pedaço de

campo120. Outros, também de sobrenome Marques, sem escravos, com diversos

animais, e bens que denotam atividades produtivas de natureza agrícola, com casas na

vila de Cachoeira, por vezes elevadíssimas dívidas passivas121.

117Em estudo comparativo das freguesias de Santo Amaro, Serro Pelado, Encruzilhada e Cachoeira, com base àRelação de 1784, esta última sempre apresenta de uma forma mais intensa as características arroladas. “Os criadoressão maioria apenas em dois distritos, Encruzilhada e Cachoeira, os mais fronteiriços” (p. 35) “O padrão das duasfreqüências superiores praticamente repete-se para os distritos de maiores rebanhos: Encruzilhada (35% dosproprietários detêm 62% das terras) e Cachoeira (36% detêm 61%)” (p. 36) “Cachoeira, certamente, é a localidadeque melhor representa a imagem típica ainda vigente sobre o Rio Grande do Sul colonial: grandes propriedadesdedicadas exclusivamente à pecuária” (p. 38) OSÓRIO (1995).118Em 1819, Cachoeira adquiriu status de Vila. De divisas “mal delineadas e imprecisas”, abrangia o território dosseguintes “atuais” [em 1926] municípios: “Cachoeira, Santa Maria, Caçapava, São Sepé, São Gabriel, Rosário,Livramento, Alegrete, Quarai e Uruguaiana, Bagé, e parte dos de Júlio de Castilhos, S. Vicente, Lavras e D. Pedrito”. PORTO (1926).119cf. MATTOS (1987). p. 38-45120APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – Manuel Marques Rabello Inventariante – Rita Luiza daCosta Auto n. 531, maço 25, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1885121APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – João Fortunato Marques Inventariante – Brizida Mariade Souza Nunes Auto n. 429, maço 21, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes – 1880;

55

Page 35: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Mesmo inventários mais antigos – e de proprietários de dimensões mais

avultadas – demonstram a concomitância de atividades agrícolas com a pecuária,

numa transformação da situação predominante no século XVIII. Em 1847, José

Marques da Silveira falecia, deixando à sua viúva e aos filhos do primeiro e do segundo

matrimônio os mais diversos utensílios agrícolas – uma atafona, carretinha, tachos,

foices, enxadas, enxós, cavadeiras. Para trabalhar na agricultura – e também na

criação, já que este produtor tinha também elevada quantidade de reses e de ovelhas –

contava com plantel de 15 escravos122.

Antes disso, no ano de 1834, João Marques da Silveira realizou seu inventário,

no qual também apareciam bens de produção agrícola: enxadas, cavadeiras, arado,

carreta, atafona, prensa, um forno voltado à produção de farinha. Possuíam, estes sim,

uma quantidade elevadíssima de animais – apenas de reses, 870 xucras e 300

mansas, mas apenas um escravo e uma escrava para ali trabalhar123.

Outro inventário, porém, chamou-nos a atenção. Em 1865, por ocasião do

falecimento de Guilhermina Francisca da Silva Ilha124, seu marido Francisco Loreto do

Carvalho e Silva, um comerciante, inventariou os bens do casal. Eles possuíam dois

APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – Dona Maria Fortunata Marques Inventariante – Victorianode Souza Nunes Filho Auto n. 391, maço 19, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes – 1876Na cidade de Cachoeira, atualmente, existe uma rua chamada Dionísio Marques. Esta rua antigamente era chamadade estrada dos Marques, pois ali, segundo contaram profissionais do Arquivo Histórico Municipal, situavam-se aspropriedades desta família. A estrada era, então, fora da área urbana. Apenas posteriormente a cidade cresceu aponto de englobar a estrada dos Marques, que tornou-se rua Dionísio Marques.Ainda que hoje conste como área urbana, e tenha sua entrada próxima a uma das ruas mais movimentadas da cidade,ao caminharmos pela antiga estrada dos Marques percebe-se, ao fundo das casas, as lavouras, campos verdes,cochilas, lembretes de uma ruralidade da cidade de Cachoeira do Sul. 122APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – José Marques da Silveira Inventariante – Ana JoaquinaMarques Auto n. 126, maço 8, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1847123APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – João Marques da Silveira e sua mulher Inventariante –Joaquim Marques da Silveira Auto n. 83, maço 6, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1834124Investigamos também inventários da família Ilha por nos ter sido indicado, em Cachoeira do Sul, vínculos dealiança matrimonial entre esta família e os Marques – os mesmos da estrada dos Marques.

56

Page 36: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

armazéns: um na colônia de Santo Ângelo e outro na cidade de Cachoeira. Além de

grandes listas com os mais variados víveres a serem vendidos, dentre seus bens

constavam muitas dívidas ativas. Em sociedades de antigo regime, de baixa

quantidade de meio circulante, é bastante comum as transações se darem por meio de

contas correntes de débitos acumulados. No entanto, freqüentemente os devedores

não têm condições de saldar suas dívidas, criando-se, com isto, uma situação de

dependência125.

No caso analisado, destaca-se que, de um total de 166 endividados arrolados,

18 (um pouco mais de 10%) fossem qualificados como escravos, mulatos ou crioulos

de alguém, forros, libertos ou agregados126. Como interpretar esta informação? Por um

lado, podemos pensar que a população negra conseguiu alguma margem de

autonomia para gerir recursos próprios, inclusive administrando dinheiro e dívidas. Esta

leitura otimista cai por terra, contudo, se percebermos dois aspectos que saltam aos

olhos. Em primeiro lugar, ao “permitir” que um escravo se endivide no bolicho, no

mercado, no armazém, o senhor se desresponsabiliza parcialmente pelo seu

sustento127; por outro lado, podemos pensar que já em 1865 o tráfico negreiro se

encontrava extinto, e se sabia que o fim da escravatura era iminente. Talvez manter os

125O endividamento enquanto mecanismo de criação de relações sociais de dependência e de extração compulsóriade mão-de-obra tem sido bastante esmiuçado pelos estudos históricos. A respeito, ver, por exemplo, CARDOSO(1979) p. 69-70126APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariada – Dona Guilhermina Francisca da Silva Ilha Inventariante– Francisco Loreto do Carvalho e Silva Auto n. 274, maço 15, estante 9 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1865127 Garantir o sustento do escravo do qual extrai a força de trabalho é um papel primordial do senhor dentro da lógicado sistema escravocrata, conforme, por exemplo, texto de Meillassoux anteriormente referido. Em Cachoeira do Sul,por exemplo, ao já citado inventário de José Marques da Silveira, se apensou uma contabilidade das despesas ereceitas obtidas no ano de 1847. Entre remédios, gastos médicos, instrumentos de trabalho e algodão paravestimentas, o senhor escravista gastou 123$780 réis. É claro que esta receita era produzida pelos próprios cativos,enquanto força de trabalho. Ainda assim, era uma parcela do lucro senhorial que deveria ser reinvestida namanutenção da mão de obra. APERGS – comarca de Cachoeira do Sul Inventariado – José Marques da SilveiraInventariante – Ana Joaquina Marques Auto n. 126, maço 8, estante 52 Cartório de Órfãos e Ausentes - 1847

57

Page 37: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

forros, libertos, ou mesmo escravos em um sistema de dívidas fosse uma forma

preventiva para restringir sua autonomia128.

No entanto, não foi possível reconstituir os laços de descendência que

vinculavam Alípio Marques dos Santos ao passado escravista de Cachoeira do Sul. Os

estudiosos da história sabem muito bem que seu conhecimento é lacunar, e que as

lacunas jamais serão preenchidas de todo129. Entretanto, diversas outras informações

podem ser inferidas a partir do que conseguimos pesquisar. Originário de Cachoeira do

Sul, nos informam seus descendentes. Sua certidão de óbito, datada de 25 de fevereiro

de 1971, ocasião em que tinha 53 anos, nos dá a saber que Alípio era filho legítimo de

Ivo Marques dos Santos e de Antônia Marques dos Santos130. Muito embora tenhamos

pesquisado todos os livros de batismo de Cachoeira do Sul no intervalo entre 1916 e

1923, assim como os livros de casamentos entre 1889 e 1922, não conseguimos

localizar o batismo de Alípio, e sequer o casamento de seus pais131. A Cachoeira do Sul

imaginada pelos Silva – e declarada no momento do óbito – provavelmente

compreende uma área maior, com outros municípios e paróquias132. É possível que o

128A dívida média destas pessoas era de 26$876, substancialmente inferior à média do conjunto, 76$241, o queevidencia sua pauperização. De qualquer maneira, parece-nos que seria de difícil pagamento. 129As mesmas podem estar além do que as fontes têm a revelar, na inexistência de fontes, na disponibilização dasfontes existentes, ou mesmo nas condições e tempo disponíveis para pesquisa. Enfim, naquilo que um dosfundadores da historiografia francesa do século XX qualificou como “las faltas del destino”. BLOCH (1992). Semsombra de dúvidas, um dos aspectos que tornou a ancestralidade ao sul do Jacuí mais fugidia do que em Cima daSerra foi a ausência de guardiões da memória com maior familiaridade com a região de origem de Alípio. Ido Joséda Silva, por exemplo, conhece a história de seus pais, e mesmo da esposa e da sogra do seu irmão, já que eramoriginárias da mesma cidade. Por outro lado, pouco sabia sobre o sogro de seu irmão ou sobre Cachoeira do Sul.Partimos, portanto de indícios muito mais frágeis. Seu filho de criação, João Brito Soares, tinha mais lembrançassobre sua mãe, pessoa mais expansiva, do que a respeito de seu pai, mais reservado. 130Centro de Pesquisa e Documentação da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Livro de Óbitos n. 71, guia6542 f. 49v. 131Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Cachoeira do Sul. Freguesia Matriz. Livros de batismo n. 31, 32, 33, 34,35, 36, 37, 38; Livros de casamento n. 6, 7, 8. 132Muito embora também nos livros de batismo de Caçapava – entre 1915 e 1920 – Alípio esteja ausente. ArquivoHistórico da Cúria Diocesana de Cachoeira do Sul. Freguesia de Caçapava. Livros de batismo 18 e 19. No entanto,convém observar que sua situação pode ser semelhante à de Ido José da Silva, que nos contou que quando chegou

58

Page 38: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

imaginário popular tenha seguido considerando como parte de Cachoeira (ou de uma

“Grande Cachoeira”) regiões que ao longo do século XIX e XX a ela pertenceram,

particularmente aquelas mais próximas geograficamente133. No caso dos municípios

emancipados depois de 1941, é evidente sua inclusão na Cachoeira rememorada134.

Se não foi possível localizar o batismo de Alípio, identificamos o de seu pai. Aos

dezessete de maio de 1890, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição da

Cachoeira, o inocente Ivo foi batizado. Poucas mais informações foram dadas: nascido

em 5 de outubro de 1886, era filho natural de Ana. Os padrinhos chamavam-se Pedro

Estrenguin e Ana Lopes Terra135. Não há dúvidas de se tratar de descendentes de

escravos, é o que demonstra a ausência de sobrenome em um registro realizado

poucos anos após a abolição. O nome Ana, por ser muito comum, não nos auxilia muito

na reconstituição de sua trajetória. Teria sido escrava dos Estrenguin? Ou dos

Marques? Quem é esta Ana? De outro lado, o nome Ivo, bastante incomum136, não

deixa dúvidas de se tratar do bisavô dos Silva.

em Porto Alegre, o único documento que possuía era a certidão de casamento. Entrevista com Ido José da Silva, 22de maio de 2004. O fato de alguém não ter documentos comprova sua condição marginalizada no seio da sociedade. 133Pode ser o caso de Caçapava do Sul (emancipada em 1831) e São Sepé (1876). Apesar de terem se emancipadoainda no século XIX, os vínculos sociais estão para além das fronteiras políticas municipais.1341941 é um marco porque provavelmente foi neste ano que Alípio Marques dos Santos veio para Porto Alegre. Sãoestes os municípios emancipados de Cachoeira depois daquela ocasião – Agudo (1959); Cerro Branco (1988);Faxinal do Soturno (1959); Novo Cabrais (1995); Paraíso do Sul (1988); Restinga Seca (1959)135Arquivo Histórico da Cúria Diocesana de Cachoeira do Sul. Freguesia Matriz. Livro de batismo n. 19, f. 18136A título de exemplo: à procura dos laços de ancestralidade aqui esmiuçados, foram lidos 26 livros de batismos ecasamentos, entre as paróquias de Nossa Senhora da Conceição de Cachoeira e de Caçapava. O nome Ivo nãoapareceu nenhuma vez se não esta.

59

Page 39: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Ivo foi contemporâneo de uma profunda transformação da realidade econômica

e social de Cachoeira do Sul – qual seja, a implantação da lavoura de arroz. Um livro

de autoria de Fortunato Pimentel, escrito em 1941, permite historiar em linhas gerais

este processo. O seu tom geral é laudatório ao progresso que o autor acreditava que a

rizicultura tinha trazido para sua cidade. Muito embora o estudo não leve em conta as

conseqüências sociais da transformação de uma economia majoritariamente pecuária

para a produção em larga escala do cereal, ele é rico em dados empíricos que nos

auxiliam a vislumbrar a dinâmica desta prática econômica.

A rizicultura teve início na virada do século XIX para o século XX. O autor

enumera doze produtores cuja dedicação à lavoura de arroz de irrigação natural teve

início no intervalo entre 1892 e 1904137. Desde aquela ocasião até a escrita de seu

trabalho, Pimentel assistiu à introdução de variedades diferentes, mais vantajosas do

ponto de vista econômico138. Entre 1906 e 1916, o número de propriedades com levante

137PIMENTEL (1941).p.27138São arrolados, junto aos anos da sua adoção nas lavouras: “Carolina” e “Agulha”, predominantes até 1915;“Japonês” (qualificado como o 'zebu do arroz'), introduzido em 1918; em 1931 foram adotados o “Blue Rose” e o“Edith Leng”. Este último, junto ao 'zebu', eram os mais cultivados em 1934. PIMENTEL (1941) p. 18-19

60

Ana

IvoMarques

dos Santos

AntoniaMarques

dos Santos

AlípioMarques

dos Santos

Page 40: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

mecânico, isto é, bombas para elevar a água do rio para o alto das barrancas do Jacuí,

cresceu de forma geométrica, e a isso o autor atribui o incremento cada vez mais

intenso da produção, conforme os gráficos abaixo demonstram139.

Para além do progresso que Pimentel associava à lavoura do arroz, havia, no

entanto, uma outra faceta em todas essas transformações da economia regional. O

estudo relativo ao reconhecimento das comunidades de São Miguel e Martimianos

139PIMENTEL (1941) p. 18-19; 24; 31 A análise dos dados apresentados pelo autor, através do cálculo e comparaçãoda variação anual da produção em toneladas e em sacas, levou-nos à conclusão de que a saca de arroz em questãodeveria pesar 80kg.

61

Page 41: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

enquanto remanescentes de quilombos, nos auxilia na compreensão deste processo no

que diz respeito à sua incidência sobre a população negra. É importante observar que

estas comunidades pertencem ao município de Restinga Seca, que até 1959 fazia

parte de Cachoeira do Sul. Os autores analisaram o trabalho dos integrantes dos

referidos grupos nas lavouras de fumo e arroz nas primeiras décadas do século XX.

Diversas práticas econômicas amparadas na reciprocidade, na solidariedade e

no uso em comum da terra foram se perdendo,

“pelo avanço das lavouras de arroz e de fumo, amplamente

dotadas de equipamentos agrícolas modernos; pelo

avanço da expansão urbana sobre as comunidades negras

rurais, acompanhada de processos de expropriação de

terras, em grande parte por meio de processos escusos”140.

Os negros daquelas comunidades costumavam trabalhar na construção dos

açudes para a rizicultura. No entanto,

“quando são introduzidos o trator e, gradativamente, outros

maquinários agrícolas, reduz-se drasticamente a oferta de

emprego aos negros que integram as duas comunidades

rurais negras, já referidas. Mais do que isso, provocou uma

significativa migração de grande parte desta mão-de-obra.

Sobretudo dos homens, que vão buscar emprego nos

municípios no entorno de Restinga Seca, na fronteira e em

Porto Alegre, acarretando, também, a redução dos braços

na própria comunidade.” 141

140ANJOS e SILVA (2004) p. 188141ANJOS e SILVA, (2004) p. 187.

62

Page 42: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

O advento do trator na região é associado, neste estudo, aos anos de 1950. A

mecanização agrícola sabidamente é um fator de diáspora dos mais pauperizados do

mundo rural142. De acordo com Mari Baiocchi, que estudou uma comunidade negra em

Goiás, “Com a entrada das máquinas, falta serviço. A mecanização traz o

desemprego”143. Cachoeira tornou-se, pois, um pólo de expulsão de populacional.

Contudo, acreditamos que se esse processo explodiu nos anos 50, tem suas raízes

nas décadas pretéritas, quando podemos detectar os primórdios da mecanização e

ressaltar a transição de uma economia de predomínio pecuário e escravista para a

grande lavoura de cunho capitalista. Essas transformações acarretaram por um lado,

num acento muito grande sazonalidade do trabalho, que com o emprego das

trilhadeiras, se radicalizaria.

“A cultura do arroz é aquela que dá maior trabalho braçal. O

movimento flutuante de operários ao serviço da lavoura de

arroz em Cachoeira é estimado em 25 mil e 15 mil são

mantidos quase que efetivos. Enquanto isso, depois da

colheita vem o beneficiamento do indispensável cereal. Aí

muitas dezenas de operários são novamente

aproveitados."144

Pensamos que, se Ido queixava-se da pouca perspectiva para empregar-se em

São Francisco de Paula, tal situação deveria deixar muito mais apreensivos os

142GUIMARÃES (1979). Este autor afirma que: “para o mercado de trabalhos urbanos, à medida que se

intensificam, de um lado, o progresso técnico, e de outro, a miséria rural, também se transferem os recursos

humanos ociosos que emigram do campo.”(pág. 222). 143BAIOCCHI, Mari, apud ANJOS e SILVA (2004) p. 189144PIMENTEL (1941) p. 24. Grifos nossos.

63

Page 43: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

trabalhadores rurais de Cachoeira do Sul. A sujeição às flutuações do mercado de

trabalho de uma cultura cujas necessidades eram variáveis, nas quais a melhor

possibilidade é tornar-se “quase que efetivo” realmente não era uma perspectiva

alvissareira para ninguém. Se 15 mil conseguiam atingir um status de “quase

efetividade”, pode-se pensar que os demais 10 mil ficavam totalmente à mercê do

variável mercado de trabalho. Tudo indica que a situação desses últimos se

assemelhasse às preocupantes condições de trabalho em Restinga Seca constatada

pela equipe que realizou o relatório de pesquisa das comunidades ali localizadas:

“São contratados como diaristas ou são agregados e,

raramente, assalariados. (...) Quando deixa de ter esta

oferta de serviço, em uma lavoura de arroz, os diaristas

procuram outra ou, então, são requisitados por proprietários

de lavouras, situadas nos municípios vizinhos de Restinga

Seca. (...) Na falta de emprego local, os trabalhadores

negros rurais procuram por outros municípios, nos quais

encontram demanda de trabalho ou, senão, já são vistos

pelos lavoureiros brancos como um lugar, a comunidade

negra rural de Rincão dos Martimianos e São Miguel, de

grande oferta de mão-de-obra especializada nesses

serviços”. 145

Talvez, se não tivesse partido para Porto Alegre, teria sido essa a vida de Alípio

Marques dos Santos. Ao menos, pode-se traçar um paralelo com a situação de

pessoas de origem social semelhante à dele, que lá ficaram – vale lembrar, já viveram

um processo de pesquisa e confecção de um laudo e já tiveram seu reconhecimento

como comunidade remanescente de quilombos. Segundo Almeida (1998), as terras

145 ANJOS e SILVA (2004) p. 189-19064

Page 44: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

de preto compreendem as diversas situações decorrentes da reorganização da

economia brasileira no período pós-escravista. João lembra que seu pai adotivo,

chegado a Porto Alegre no início dos anos quarenta, era originário da lavoura de arroz.

“ - Era de Cachoeira do Sul. Quando ele veio para cá, ele

veio acostumado a trabalhar só na granja de arroz, não tinha

muita experiência em serviço na cidade grande.”146

Acreditamos que se, por um lado a situação de Alípio era mais precária do que a

dos seus futuros familiares de São Francisco de Paula – a falta de vínculos que parece

estar associada a estes “extraviados” da lavoura de arroz, a flutuação de seu trabalho

braçal – por outro, era também mais livre. Alípio Marques dos Santos aparece para nós

como alguém muito menos dependente ou comprometido com antigos senhores – que,

aliás, sequer conseguimos localizar, o que pode ser um sinal da menor importância

deste fato na trajetória individual deste sujeito histórico. Dirigir-se para a cidade – que

então aparecia como pólo de atração da população desvalida do interior do estado,

surgia como uma alternativa. Como observa Pesavento ao se referir à Porto Alegre das

primeiras décadas do século XX, a cidade se convertia no principal centro de atração

para os libertos, num momento de transição da escravidão para o assalariamento147.

Dados sobre as ocupações irregulares do município nos permitem dizer que tal

processo teve continuidade por um período maior do que o acima destacado. A opção

por migrar foi seguida, não apenas por Alípio Marques dos Santos, mas por muitas

outras pessoas. Nos diferentes discursos produzidos ao longo do século XX que

146Entrevista com João Brito Soares, em 5 de junho de 2004.147 PESAVENTO (1999).

65

Page 45: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

buscaram compreender, ou produzir políticas públicas a respeito da vida dos imigrantes

mais carentes na cidade de Porto Alegre, a região do vale do Jacuí freqüentemente foi

apontada como origem daqueles de quem se falava.

Em 1950, de 100 famílias residentes na “Vila Seca”, também conhecida como

Vila “Surgida das Águas”, 57 delas eram originárias do interior. Destas, 13 eram de

Butiá, 7 de Cachoeira, 5 de Triunfo, 5 de Taquari, 4 de General Câmara. Nada menos

de, dentre as famílias vindas do interior, 59,64% eram originárias do vale do Jacuí. Isso

indica que, possivelmente, no estabelecimento em Porto Alegre eram recriados

vínculos existentes nos locais de origem – note-se o quanto é significativo o nome da

Vila em questão148.

Em 1960, os motivos que levavam as pessoas a se estabelecerem em Porto

Alegre eram pensados da seguinte forma pelo arquiteto Jorge Neves:

“Não existem dados precisos sobre a origem desta

população, mas pode se informar que os adultos procedem,

em sua maioria, de três regiões principais: FRONTEIRA,

VALE DO JACUÍ E ESTADO DE SANTA CATARINA. Por

que se apresenta a migração tão significativa nas últimas

décadas? (...) cumpre recordar que não se operando

nenhuma modificação na estrutura agrária do interior, nem a

criação de centros industriais de importância, é óbvio que a

população emigre. E para onde? - Para a sede político-

administrativa do Estado, onde se concentram os maiores

interesses econômicos, onde se distribuem os recursos

oficiais, onde se pressupõe “melhores oportunidades”. 149

148MEDEIROS (1951). p. 85-86149NEVES (1962). Cópia mimeografada. p. 16-17

66

Page 46: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Vinte anos mais tarde, Cachoeira do Sul era a principal região de origem dos

adultos das então qualificadas “sub-habitações” elencadas (excetuando-se aqui a

região metropolitana de Porto Alegre). O autor deste estudo acreditava que tanto o

latifúndio de pecuária extensiva – pela sua baixa produtividade – quanto o minifúndio –

pela sua dificuldade de competir com a empresa rural mecanizada contribuíam para o

êxodo rural.

“Acredita-se que o desestímulo da produção primária se deu

de forma generalizada, atingindo, inclusive, a produção

principal da região, que é o arroz. Aqui convém lembrar que

Cachoeira do Sul é a capital do arroz no Estado. (...) A crise

do setor primário, dentro do que relatamos, consiste na

principal causa do índice excepcional de migrantes da região

de Cachoeira do Sul que hoje moram em Porto Alegre, nas

vilas pesquisadas”. 150

Muito embora estejamos de acordo com o autor em vincular as migrações

Cachoeira-Porto Alegre com a lavoura rizícola, nos parece que este trânsito não se deu

apenas no momento de crise do setor primário. Pelo contrário, faz parte da lógica da

lavoura arrozeira, que exige uma sazonalidade do trabalho que leva muitos a procurar

outras oportunidades de vida. Ao menos o avô da comunidade que nós estudamos

dirigiu-se para Porto Alegre nos primeiros momentos da década de 1940. Trata-se de

um período em que a lavoura de arroz encontrava-se em franca ascensão, não em

crise (ver gráfico); da ocasião em que Pimentel tecia loas ao cereal, e comemorava a

150PMPA – DEMHAB (1981) Este relatório foi pesquisado na biblioteca da Secretaria de Planejamento Municipal.67

Page 47: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

cheia do Jacuí do ano de 1941, por ter ela facilitado o escoamento dos grãos, realizado

que era pela via fluvial151.

Esta cheia, na cidade de Porto Alegre, provocou enchentes gravíssimas,

alagamentos na cidade que foram catastróficos para as populações de menos

recursos152. Como a do bairro Navegantes, por exemplo. À margem do rio, foi para lá

que Alípio dirigiu-se quando chegou à cidade. Localizada ao fim da linha do bonde de

Navegantes, a rua dona Teodora (ver adiante) era um dos núcleos mais importantes de

vilas populares da cidade – as “malocas” mais preocupantes. Muito provavelmente, no

imediato pós-enchente a região encontrava-se mais desvalorizada do que nunca, e foi

ali que foi possível que Alípio se estabelecesse nos primeiros tempos153.

A fixação de Alípio e Naura no bairro Três Figueiras corresponde ao período do

processo de resistência e de busca por autonomia - protagonizado pelos antepassados

e perpetuado na prática dos atuais integrantes do grupo- que encontra-se mais vivido

na memória desta coletividade. É a ele que iremos nos reportar agora.

Em busca de solo fértil para criar raízes.

A memória do grupo aponta a década de 1940 como a época da chegada de

seus ancestrais a região que hoje é conhecida como Bairro Três Figueiras. Os Silva

definem-se enquanto descendentes e sucessores territoriais de seus avós maternos e

151PIMENTEL (1941). p. 24152Ciro Flamarion Cardoso lembra que tais tragédias naturais, aparentemente tão externas à sociedade, sãoabsolutamente sociais no que diz respeito à sua incidência e conseqüências. CARDOSO (1979) p. 19-20153 Informação extraída do Processo de usucapião intentado por João José de Freitas em 20 de abril de 1964 no qualAlípio foi testemunha, e cujas cópias encontram-se anexadas ao Processo de usucapião promovido por Naura Silvados Santos de nº 12860, de 13 de novembro de 1972. É interessante ressaltar que esses fatos não eram conhecidospelos integrantes da comunidade. Desta forma não pudemos obter maiores dados sobre o período de poucos dias,segundo a declaração, que permaneceu ali em casa alugada.

68

Page 48: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

de seus pais, todos já falecidos. Não há um consenso quanto à época e forma pela

qual Naura e Alípio se conheceram, nem quanto às razões que os levaram a se

deslocar para lá. Sabe-se que ela já tinha duas filhas quando se uniu a ele: Anna Maria

e Elenir. Das duas, apenas a primeira veio residir com eles quando de seu casamento

com um conterrâneo de São Francisco de Paula154. Embora Alípio não fosse o pai

biológico de Anna Maria, os relatos indicam que a relação entre eles tinha esse status.

Segundo Antonia Teresinha Soares, esposa de João, filho de criação de Naura e

Alípio:

“- Só a gente de casa sabia que ele não era pai dela. Ela chamava de

pai.”155.”

Ainda que não saibamos de que forma os avós maternos dos Silva se conheceram, as

informações prestadas pelo tio paterno do grupo156 lançam luzes sobre as estratégias de

recrutamento de cônjuges nessa coletividade.

Ido e Euclides eram irmãos, naturais de São Francisco de Paula. Este último

migrou para Porto Alegre cinco anos antes que o primeiro, isto é, em 1946. Ido vem

para a capital no ano de 1951, logo após a morte de sua primeira esposa.

Transcorridos alguns dias de sua chegada ele encontrou o irmão no centro da cidade.

Passaram a morar juntos numa peça alugada no Bairro Santana. Euclides trabalhava

de ferreiro na construção civil, onde Ido começou a prestar alguns serviços de mão de

154 Relatos dos Silva indicam que Elenir não pôde residir no local por que Alípio não permitiu. Tal atitude sejustificava pelo fato dela não ter se casado oficialmente. No entanto, quando ela faleceu deixando um filho pequeno(Leodoro), Naura trouxe o menino para ser criado e viver com eles.155 Entrevista realizada com Antonia Terezinha Soares no dia 05/06/2004.156 Entrevista realizada em 22/05/2004.

69

Page 49: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

obra. Ambos terminaram por casar com mulheres que conheceram em sua cidade de

origem em bailes restritos a pessoas negras157.

Alguns anos depois da vinda de Euclides e Ido para Porto Alegre, Anna Maria

conheceu o primeiro em um baile em São Francisco de Paula. Eles dançaram e

conversaram bastante. Naquela ocasião, ela contou que sua mãe, Naura, vivia em

Porto Alegre158. Ao que tudo indica, esse encontro foi suficiente para estabelecer as

tratativas de uma união posterior. Meses mais tarde, Naura retornou a esta cidade para

buscar a filha para que a mesma se casasse com Euclides. Foi ele que, segundo os

relatos de suas filhas, custeou as despesas das viagens.

Ido demorou alguns anos para retornar à sua cidade natal, mas quando o fez foi

a um baile onde reencontrou uma conhecida, Rosa, que então estava viúva. Embora

ela tivesse dois filhos, Ido teve que pedir a sua mão em casamento para a mãe dela. A

resposta só veio depois de transcorrido algum tempo, por que a sua futura sogra a

condicionou ao sonho que ela tivesse naquela noite159.

Os locais de sociabilidade negra da cidade natal foram os espaços onde eles

encontraram suas esposas, configurando um processo intraracial de seleção dos

cônjuges, restrito a dois ou três grupos de forma semelhante ao que ocorria com as

principais famílias brancas do município de São Francisco de Paula. Como sugerido

anteriormente, o casamento de Anna Maria e Euclides poderia estar atualizando

157 Segundo Ido, o clube onde ocorriam os bailes era chamado de Sociedade União. Após algumas desavenças, partedos sócios fundaram a Sociedade Esperança. Ele relatou que chegou a freqüentar o Floresta Aurora, clube de negrosem Porto Alegre, mas como não conhecia ninguém não continuou a fazê-lo.158 Conforme Ido, Euclides já conhecia Naura de São Francisco Paula, antes de conhecer Anna Maria.159 BARCELLOS (1996) questiona o modelo de família negra que se construiu, principalmente, a partir dos estudosnorte-americanos. Para ela essa imagem de família desestruturada e instável serve como um estigma que não explicacomo ela opera e se reproduz socialmente.

70

Page 50: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

ligações afetivas e comunitárias que remetem ao século XIX, mas que se

territorializaram no século XX, no bairro Três Figueiras, em Porto Alegre.

Reproduções de fotos de Anna Maria e Euclides José da Silva

Após o casamento, Euclides e Anna Maria passam a residir com Naura e Alípio.

O casal teve onze filhos: Lígia Maria, Lídia Marina, Lorivaldino da Silva, Angela Maria,

Zuleica Briolandi, Jair, Zeneide, Ana Cristina, Euclides Guaraci, Maria de Lourdes e

Luiz Valdir. Estes últimos, por sua vez, casaram-se com pessoas negras da mesma

condição social, que residiam em vilas próximas ao seu território e com as quais

mantinham intensa sociabilidade. Lígia Maria foi companheira de Antonio Carlos,

oriundo da Vila do Beco do Resvalo (localizada aos fundos da comunidade). Lídia

Marina casou-se com Roberto, que vivia nesse mesmo local. Lorivaldino casou-se com

Cleusa e Angela Maria uniu-se a Paulo Roberto. Cleusa e Paulo viviam na Vila Caddie,

junto à Avenida Nilo Peçanha e aos fundos do Country Club. Zuleica Briolandi uniu-se a

Paulo Ricardo, oriundo da família Dutra, vizinhança negra contemporânea dos avós

maternos do grupo. Euclides Guaraci é marido de Rita de Cássia, da família Dutra já

referida e sobrinha do companheiro de Zuleica. Ana Cristina, já falecida, era casada

71

Page 51: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

com Carlos Alberto, oriundo da Vila do Beco do Resvalo acima mencionada. Estes são

exemplos que nos permitem dizer que a lógica que orientou a união de Anna Maria e

Euclides se perpetuou nas escolhas matrimoniais de seus filhos.

João, filho de criação de Naura e Alípio, desposou Antonia Teresinha, natural de

Venâncio Aires. Embora ela seja oriunda do interior do Estado, a forma como os dois

se conheceram corrobora as situações anteriormente descritas. Antonia trabalhava

como doméstica em uma casa de família nas proximidades dos Silva. Naura prestava

serviços de lavadeira nesta mesma residência. Aos fins de semana, ela a levava para a

sua casa. O convívio propiciou a união dos dois. Além disso, podemos identificar nos

casamentos das filhas de Lígia Maria a reprodução de tal critério. Lígia Letícia é

companheira de Rogério, pertencente à Vila do Beco do Resvalo. Cláudia Tatiana é

esposa de Jorge, que faz parte de uma família de vizinhos contemporâneos de seus

avós maternos conhecidos pelo sobrenome Boeira. Este último casal reside na Vila

Beco do Resvalo.

72

Page 52: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Este comportamento em relação ao recrutamento dos cônjuges, ainda que não

seja produto de ações intencionais, mas de um contexto de interação e segregação

historicamente constituído, torna o parentesco um setor de restrição em relação a

outros grupos étnicos. Nesse sentido, a uniformidade da comunidade em termos

étnicos que resulta dessa seletividade matrimonial possibilita que os seus integrantes

se percebam e sejam percebidos como uma coletividade diferenciada das outras com

as quais interagem. O parentesco por aliança opera nesse caso simultaneamente como

elemento restritivo e distintivo160.

Retomando a história do grupo, temos que fazer referências aos vínculos sociais

que o mesmo estabeleceu com os habitantes da região desde o momento em que ali

160 Tal situação pode ser observada também em outras comunidades negras que residem em núcleos urbanos. VideCARVALHO (2003).

73

Euclides Joséda Silva (São

Francisco)

Anna Mariada Silva (São

Francisco)

LígiaMaria

Antonio Carlos(morador da VilaBeco do Resvalo)

LídiaMarina

Roberto (moradorda Vila Beco do

Resvalo)

LorivaldinoCleusa

(moradora daVila Caddie)

AngelaMaria

Paulo Roberto(morador daVila Caddie)

ZuleicaBriolandi

Paulo Ricardo ( dafamília Dutra, tio

de Rita de Cássia)

Eucl idesGuaraci

Rita de Cássia (dafamíl ia Dutra, sobrinha

de Paulo Ricardo)

LígiaLetícia

Rogério (moradorda Vi la Beco do

Resvalo)

ClaudiaTatiana

Jorge ( dafamíl iaBoeira)

NauraBorges

da Silva

AlípioMarques

dos Santos

João BritoSoares (fi lhode criação)

Antonia TerezinhaSoares (colega detrabalho de Naura)

Pedrosa Borgesda Silva (Pedrosa

Justina Borges)

BelizárioJosé da

Silva

Ido José daSilva (SãoFrancisco)

Rosa de Limados Reis Silva

(São Francisco)

Page 53: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

se fixou. Os integrantes da comunidade fazem menção à existência de vizinhos

contemporâneos de seus avós maternos. Estes são identificados geralmente a partir do

sobrenome de suas famílias: os Dutra, os Boeira, os Freitas, entre outros. Segundo

João, filho de criação de Naura e Alípio:

“- Nós tínhamos três lindeiros conosco, que era a conhecida Maria, o

Freitas e os Dutra. Tinha um outro que eu não me lembro o nome desse.

Eu não consigo me lembrar o nome (...)“Divisa com João Freitas era os

Dutra. Isso aqui era tudo fazendas, tambos e chácaras. A nossa era uma

chácara. (...)“Tinha os Boeira, família Boeira. Os Boeira moravam na

parte de cima, bem na subidinha, do lado direito, ao lado do colégio. Ali

morava a família Boeira. Angelino Boeira, e mais próximo à Carlos

Gomes morava o irmão dele que é o Inácio Boeira.”161

As relações de vizinhança são descritas por ele como:

“ - Olha, a relação era bem melhor do que existe hoje entre um

apartamento e outro. Uma época era assim: a divisa bem assim mesmo.

Tem um muro aqui que dividia a outra parte. Eles moravam bem perto,

próximo da Figueira. É onde eles moravam, bem próximo da Figueira.

Então a nossa distância era trezentos metros daqui até a casa deles. Os

outros eram um quilômetro. Nós não íamos na casa de vizinho, vizinho

não visitava vizinho, mas cada fim de mês uma família carneava um

porco, um boi. Nós não criávamos gado, criávamos porco. Então nós

carneávamos os porcos e dividíamos com os vizinhos. Eles carneavam

gado e dividiam conosco. Então, as vizinhanças nós éramos praticamente

uma família só.” 162

161 Entrevista realizada no dia 05 de junho de 2004.162 Entrevista realizada no dia 05 de junho de 2004.

74

Page 54: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Durante o processo de pesquisa tivemos a oportunidade de conversar com Teresa

Dutra Gonçalves163, 61 anos, atualmente residente na Vila Caddie, pertencente a uma

das famílias de vizinhos acima mencionada: os Dutra. Ela manteve relações de

amizade com os integrantes da “Família Silva” desde a infância que foram fortalecidas

pelas uniões de seu filho, Paulo Ricardo, com Zuleica, e de sua neta, Rita de Cássia,

com Euclides Guaraci. De acordo com o relato de Teresa, o seu pai, assim como os

avós maternos dos Silva, cultivava legumes, hortaliças e frutas e criava animais de

pequeno porte para a subsistência da própria família. O excedente da plantação era

vendido164. Além disso, seu pai trabalhava de capataz para o Country Club, antigamente

conhecido como clube dos americanos165 .

Ela, corroborando as informações prestadas por João sobre as relações entre os

vizinhos, nos disse que cada um vivia no seu canto, produzia na sua terra, mas que

eram muito amigos. O caráter desses relacionamentos se expressava através de rituais

como o Terno de Reis. João, filho de criação de Naura e Alípio, relata que:

J:” - Tinha Terno de Reis. Nós tínhamos.

A: - Tu tem lembrança de como é que funcionava isso aqui?

J: - Sim.

A: - E quem é que participava?

J: - Todas as comunidades daqui, todos os moradores e alguns outros

amigos que vinham de outros municípios. De Alvorada vinha gente. Tinha

um gaiteiro lá, muito amigo do meu pai, chamado Marino. Então, ele vinha

com a gaita para fazer o acompanhamento do Terno de Reis. Muitas

pessoas que vinham. Naquele tempo o Morro da Polícia também não era

163 Entrevista realizada no dia 30 de junho de 2004.164 No caso dos Dutra, as melancias eram vendidas para atravessadores que vinham buscar a produção paracomercializá-las junto aos mercados. Em relação aos Silva, eram as hortaliças e flores que eram vendidas de portaem porta no caso das primeiras e nos cemitérios no caso das últimas.165 O Country Club está instalado na região desde 1939. Tal denominação foi explicada por Teresa em função dasroupas que os jogadores usavam e do tipo de esporte que praticavam: golfe.

75

Page 55: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

tão habitado como hoje, tinha poucas pessoas, e muitos amigos que

vinham de lá vinham para cá (...) Dez, quinze, vinte pessoas com a gaita

na frente cantando e os outros roubando as galinhas e matando (...) É o

que se fazia nesse festejo. .

A:- E como é que era assim? Quanto tempo durava o Terno de Reis?

Como é que funcionava?

J:- O Terno de Reis a cada ano saía de uma casa. Hoje nos reunimos aqui

e saímos daqui. Fazendo aqueles vizinhos, aquelas pessoas com mais

afinidade. Então se procurava, era mais os nossos vizinhos mesmo, a

comunidade daqui mesmo .

A:- E aí tinha música? Como é que funcionava? Batia na porta? Como é

que era?

J:- Não, tu não batia na porta. Tu(...) Eu não lembro mais como é que era

(...). Sempre cantando a pessoa tinha que acordar e abrir a porta, a gente

entrava cantando. Quando abria a porta, os outros já atiravam os bichos

morto para dentro.

A:- Os bichos que eram da própria pessoa?

J: É, ia matar tuas galinhas para atirar dentro da tua casa. Aí o Terno já

ficava ali, já matava, cozinhava as galinhas, fritava assava, sumia, levava

para casa.

A: - E durava assim um dia todo? Como é que funcionava? Era de noite?

J:- Era de noite.

A:- E o falecido Sr. Alípio participava?

J:- Participava.

A:- E para participar, assim, o que precisava? Era ser da vizinhança

mesmo?

J:- Bastava fazer parte da comunidade e ter, como vou te dizer, uma

amizade com as pessoas, né? Ser parte da comunidade, tem que estar

participando da comunidade.”166.”

É interessante observar que essa manifestação congregava os vizinhos mais próximos,

mas também pessoas de outros bairros e municípios. As casas visitadas eram as

daqueles que eram considerados parte da comunidade, isto é, aqueles que

participavam ativamente para a construção do sentimento de existência da mesma.

166 Entrevista realizada em 05 de junho de 2004.76

Page 56: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Conforme referido anteriormente, os vizinhos davam uns aos outros partes dos animais

que carneavam. Esse ato nos parece ser aquele que estabelecia e reafirmava o

pertencimento a uma coletividade local167. O critério para participar do Terno de Reis,

segundo João, a afinidade e a amizade, extrapolava os limites territoriais da região

evidenciando a amplitude das redes sociais dos habitantes dessa zona de Porto

Alegre.

Lorivaldino, integrante da “Família Silva”, também tem lembranças do Terno de

Reis

L:” – Eles faziam antigamente o Ternos de Reis. Meu avô tocava muita

gaita. Ele tinha aquelas gaitinhas. Ele tocava muita gaita.

C: – Isto é muito importante Lorico. Tu sabe mais coisas?

L: – Eles agarravam e vinham. Minha mãe tinha muita galinha no

galinheiro, sabe? Batiam na porta e faziam aquela barulhada. Iam no

galinheiro e pegavam três ou quatro galinhas, puxavam o pescoço. De

madrugada todo mundo dormindo, cantavam o Terno de Reis. Entravam

pela cozinha.

C: – Quem fazia?

L :– Uns iam para cozinha e outros iam para o galinheiro. Tocavam violão.

“Abre a porta senhor dono da casa !” Aquela música que eles cantavam e

iam no galinheiro, e ficavam até de madrugada. Iam para outro vizinho,

para outra casa, batiam na porta, iam para o galinheiro. E assim passavam

a noite toda. Matando galinha e comendo. No outro dia minha mãe dava

falta das galinhas. Eram eles que tinham ...

C :– Tu sabe em que época, quantas vezes por ano?

L: – Uma vez por ano.”168.”

167 Como observa MAUSS (1974),Todas as sociedades obrigam o indivíduo a praticar a troca. Da mesma maneiraque a obrigação de dar pesa sobre o doador, o beneficiário da dádiva encontra-se na obrigação de aceitá-la e retribuí-la. Esse processo é o que denominamos de reciprocidade. Ele instaura relações sociais, assim como pode reordená-las. 168 Entrevista realizada com Lorivaldino da Silva, 44 anos, no dia 25 de maio de 2004.

77

Page 57: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Embora esse ritual não seja mais realizado há muitos anos, ele contínua

presente na memória do grupo como referência que permite a essa comunidade

vincular-se à trajetória histórica de ocupação do bairro Três Figueiras e às redes de

relações sociais que ali inicialmente se estabeleceram. O fim dessa prática é explicado

por João, filho de criação de Naura e Alípio, da seguinte forma :

“- Parou de ter quando cresceu a população. Deixou de ser aquelas

famílias, as chácaras. Tudo começou a ser vila mesmo. Aí parou-se.

Começou a ter as vilas. Aí terminou aquela festa, terminou tudo.” 169

Percebe-se em sua fala que é no momento em que a região começa a ser mais

habitada e que surgem as vilas que as relações de interconhecimento, reciprocidade e

solidariedade que possibilitavam a realização dos festejos não podem mais se

perpetuar da mesma maneira170.

Alguns moradores da Vila do Beco do Resvalo, como Jurumi, e Homero Abreu171,

residentes nesse local há trinta e cinco anos, recordam do Terno de Reis e da

participação de Euclides, pais dos Silva, nesse ritual. Jurumi referiu-se a ele pelo

apelido de “Tio Donga”, forma como era conhecido pelos mais íntimos, segundo seu

familiares. Ela disse ainda que nutria por ele um sentimento de filha por que, desde que

o conheceu, Euclides foi uma pessoa extremamente receptiva e solidária. É o que

indica o relato de uma de suas filhas, Lígia Maria172, quando esta diz que os moradores

169Entrevista realizada com João Brito Soares no dia 5 de junho de 2004.170 Acreditamos que, embora não existam mais momentos ritualizados publicamente onde essas relações seexpressem, elas tem continuidade através de outras práticas como os casamentos , por exemplo.171 Jurumi e Homero são casados e naturais de Vacaria. Nossa conversa ocorreu em sua residência no dia 26 de julhode 2004. Eles são uma das últimas famílias da Vila do Beco do Resvalo que resiste até os dias de hoje aos processosde remoção.172 Entrevista com Lígia Maria da Silva em 25 de maio de 2004.

78

Page 58: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

da Vila Beco do Resvalo usavam a água do poço deles e de que o pai dava aos

vizinhos e amigos aipim que plantava em sua roça.

“- Essa aqui sou eu!”173

A lembrança sobre o Colégio Anchieta, onde diversos integrantes da “Família

Silva” estudaram, cumpre um papel muito importante para esta comunidade, não

apenas por esta ter sido sua primeira experiência de contato com o sistema formal de

ensino. Nas primeiras vezes em que visitamos os Silva, eles nos falaram com bastante

ênfase sobre suas vivências naquela escola e nos apresentaram documentos

comprobatórios desses laços. Ao ser fotografada para jornais da capital, em

reportagens a respeito da demanda comunitária, uma integrante da família portou uma

foto das turmas da escola, na qual ela está presente174. Ter estudado ali se coloca como

demonstrativo de um vínculo com o bairro Três Figueiras, onde o colégio se localiza, e

onde os Silva têm enraizadas suas experiências de vida.175

No entanto, é necessário destacar que a comunidade está presente nessa

região desde muito antes do Colégio ali se estabelecer. Até o início dos anos de 1960,

esta instituição de ensino ligada à Companhia de Jesus, tinha seu funcionamento no

Centro da cidade: entre 1889, data de sua fundação, e 1939, situava-se na rua

173 Fala de Lígia Maria ao indicar a sua presença numa foto da turma do colégio Anchieta.174'Antropólogos pesquisarão quilombo urbano' In Zero Hora 6 de novembro de 2003. página 50. 'Existe um

quilombo na capital?' Diário Gaúcho 6 de novembro de 2003. página 5. Lígia Maria da Silva mostra uma fotoconstante no Relatório do Colégio Anchieta de 1968, e que será reproduzida neste capítulo, sob o número 4.175Isso se evidencia claramente através do processo de usucapião coletivo de número 107150600, Fórum de PortoAlegre. A ele os demandantes anexaram, entre as páginas 41 e 44, cópias das fichas de três irmãs naquela escola(Ângela Maria, Lígia Maria e Lídia Marina da Silva), assim como o requerimento apresentado à direção por suamãe, Anna Maria, em dezembro de 1979. Nele, solicitava que sua filha Zuleica Briolandi, que havia concluído aquarta série do primeiro grau, ali cursasse a quinta no ano seguinte. A apensão deste documento em um contexto deusucapião revela que para a comunidade o Anchieta é um importante referencial de seus vínculos com o território ecom o bairro.

79

Page 59: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Riachuelo. Deste momento até fins de 1962, ocupou um casarão na rua Duque de

Caxias. Em 1912, mesma ocasião em que a lei Rivadávia proibia as escolas

particulares de emitir títulos, a escola abria suas portas para crianças e operários

pobres176. No relatório do Colégio realizado no ano de 1961, algumas páginas foram

dedicadas a esta escola gratuita, inclusive com a seguinte citação do relatório de 1912:

“Resta dizer algumas palavras sobre o “Curso Noturno

Gratuito”, embora tenha com o Ginásio Anchieta apenas

uma ligação exterior, sendo que alguns professores do

mesmo instituto se encarregam da direção e ensino das

suas aulas. Tem por fim proporcionar aos operários e

meninos pobres, vítimas inocentes do desamparo e da

ignorância, alguns conhecimentos úteis para a vida,

mostrando-lhes, ao mesmo tempo, as obrigações para com

Deus e a sociedade e encarecendo-lhes a sua dignidade de

jovens operários.”177

Desde seu início, estavam muito claros os propósitos da Escola Gratuita. Fiéis à

sua tradição missionária, os jesuítas pretendiam, por um lado, formar cristãos fiéis e

devotos, por outro, operários disciplinados e dignos. No entanto, por trás desta

preocupação disciplinar se encontra a desconsideração dos padrões culturais alheios,

já que os educandos são encarados como desamparados e ignorantes, desprovidos de

conhecimentos úteis. Acreditamos que este descompasso entre o programa de ensino

e os saberes trazidos pelos discentes ajudou a afastá-los da aula. As proporções de

evadidos na ordem de 50% não podem ser explicadas apenas pelas dificuldades

176'Anchieta: do Casarão da Duque de Caxias à escola modelo de hoje' Folha da Tarde. 26 de maio de 1975, página63. Acervo de Recortes da Biblioteca Pública do Estado177Relatório do Colégio Anchieta – 1961 p. 49

80

Page 60: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

sofridas por aqueles que estudavam e trabalhavam, motivo apresentado pelo

relatório178. O mesmo informa os dados sobre evasão referentes a alguns anos:

Ano Matrícula Evadidos Proporção

de evadidos

1931 311 122 39,23%

1933 450 269 59,78%

1936 530 264 49,81%

1941 359 130 36,21%

1948 319 180 56,43%

1961 359 121 33,70%179

No já citado texto publicado na Folha da Tarde, o crescimento do Centro de

Porto Alegre foi apontado como o principal motivo para a transferência da escola para

um local, na ocasião, bastante afastado. A região central e mesmo as instalações do

casarão da Duque de Caxias foram considerados inadequados “às suas finalidades

didático-pedagógicas”180. Os inacianos adquiriram, em 1954, a área de 13 hectares onde

atualmente se localiza o Colégio, cuja construção teve início naquele ano e se

estendeu até 1967181. A foto seguinte demonstra o trabalho realizado pelos pedreiros.

178Relatório do Colégio Anchieta – 1961 p. 51179Relatório do Colégio Anchieta – 1961 p. 50180'Anchieta: do Casarão da Duque de Caxias à escola modelo de hoje' Folha da Tarde. 26 de maio de 1975, página63. Acervo de Recortes da Biblioteca Pública do Estado181SILVA (1990) p. 62

81

Page 61: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Pedreiro trabalhando na construção da escola.

Fonte: SILVA (1990) p. 68

Nessa ocasião, integrantes da comunidade estiveram presentes como mão-de-

obra utilizada na empreitada. É o caso de João, filho adotivo de Naura e Alípio. Chama

a atenção a pouca idade em que foi empregado em trabalhos penosos como o da

construção civil, considerando que em junho de 2004 sua idade era de 54 anos.

“ -Ajudei a construir esse colégio, Anchieta, parte do Colégio

Farroupilha. Tanto que se quiser fazer, é muito fácil saber quantos

anos tem este poço aqui. Vendo quantos anos tem a escola.

Porque estas pedras todas que tem calçadas neste poço aqui são

dali. Dinamitaram ali e trazia os tijolo, trazia numa carroça de

quatro rodas puxada a cavalo.” 182.

Mais do que uma oportunidade de trabalho, ou de estudo anos mais tarde, para os

integrantes da comunidade, a construção do Colégio Anchieta está intimamente

relacionada com outro elemento que representa para eles uma prova de sua

182Entrevista com João Brito Soares realizada no dia 5 de junho de 200482

Page 62: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

persistência no território e de seus vínculos com a região: o poço, que até seis anos

atrás era utilizado como única fonte de água da qual dispunham. Ele também figura nas

reportagens acerca da comunidade com a mesma freqüência que as fotos das turmas

da escola da qual os Silva fizeram parte183.

O poço ao lado da casa de Zuleica

Em um texto produzido pela Associação de Moradores e Amigos de Três

Figueiras, o bairro foi descrito como “Classe A por seu próprio esforço”184. Nesse texto, o

Farroupilha185 e o Anchieta aparecem praticamente como verdadeiros ícones míticos

que teriam dado origem ao bairro, junto à Companhia Schilling e Kuss. O que se omite,

contudo, é a presença anterior de outros atores sociais. O bairro pode ser considerado

“classe A” por seu próprio esforço, desde que nesse próprio incluamos o esforço

daqueles que trabalharam duramente para edificar o bairro ao qual pertencem, desde

antes da chegada dos colégios.

183 Zero Hora, 20/12/2002, pág. 62: Herdeiros de escravos reivindicam área; e 06/11/2003, pág. 50: Antropólogospesquisarão quilombo urbano. 184'Bairro Três Figueiras – Classe A por seu próprio esforço'. AMATRES, 1988. Acervo de Recortes do ArquivoHistórico de Porto Alegre, recorte 0824.185O terreno onde hoje se localiza o Colégio Farroupilha foi adquirido em 1928 pela “Associação Beneficente eEducacional de 1858”, mantenedora da escola, em 1928; contudo, o lançamento da pedra fundamental foi realizadaapenas em 1957, dando início às obras.

83

Page 63: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Embora no livro editado por ocasião do centenário da escola não se dê muita

atenção àqueles que viviam no seu entorno, diversas referências a eles podem ser

encontradas nos próprios relatórios feitos à época. Acreditamos ser necessário resgatar

e dar maior atenção à Escola Assistencial, já que sua história não foi contada. Apesar

do Anchieta já ter se transferido em 1962, apenas em 1968 teve início o funcionamento

da Escola Assistêncial Vespertina:

Foto da escola assistencial em 1968.

Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1968 p. 110

A legenda da foto dizia o seguinte:

“A Escola Primária [Assistêncial] faz parte integrante do

Colégio Anchieta, confunde-se com o Anchieta. Isto é

intencional, não casualidade. A utilidade desta Escola é

confirmada pela grande procura que teve já no seu

primeiro ano de funcionamento: 250 matrículas. Destina-

se especificamente às crianças pobres e necessitadas

das favelas que por três lados rodeiam as modernas e

magníficas linhas arquitetônicas do colosso que é o

Anchieta”.

84

Page 64: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

“Nem todos têm a possibilidade de pagar pelo direito que

tem para entrar no mundo da cultura. É por isso que um

Colégio, como o Anchieta, numa verdadeira busca de

serviço, auxiliando pela compreensão dos pais e por outras

entidades, pôde prestar essa ajuda aos menos

favorecidos da zona.186

Há várias informações que devem ser ressaltadas nesses registros. Antes de

mais nada, o documento destaca o elevado número de matrículas já no ano de

implantação, e as associa às crianças da região. A “Família Silva” e os núcleos

populacionais circunvizinhos somavam no ano de 1968 pelo menos 250 crianças em

idade escolar, carentes de acesso ao ensino fundamental. Certamente são estas as

“favelas” as quais o texto se refere, rodeando o Colégio por três lados: ao sul, o beco

do Resvalo; a sudeste, a “Família Silva”; a nordeste a vila Caddie. Era especificamente

a elas que a Escola Assistêncial se destinava – esclarece o texto.

Por outro lado, novamente se percebe uma perspectiva segundo a qual as

crianças que ali estudavam seriam desprovidas de cultura e, receberiam uma

oportunidade de entrar para o mundo daqueles que a tinham. Outro trecho do relatório

reforça um estereótipo negativo a respeito dos alunos e explicita os objetivos

disciplinadores da Escola Assistêncial: “A quase totalidade das crianças matriculadas

nesta Escola [assistêncial] vêm de ambiente subdesenvolvido. A aprendizagem de

bons hábitos, ordem e disciplina se fazem necessarios [SIC]. O irmão Casemiro,

confundindo-se na massa deste mundo infantil, é um mestre bem sucedido nesta difícil

arte”187. Esta explicação encontra-se como legenda da seguinte fotografia , na qual

aparecem diversas crianças que ali estudavam, muitas das quais negras.

186Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 110. Os grifos são nossos. 187Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 113.

85

Page 65: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Alunos da escola assistencial – 1968

Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1968, p. 113

Desnecessário dizer que, em uma situação na qual as vivências culturais dos

alunos são deixadas de lado, muito pelo contrário, combatidas, o abandono e a

repetência novamente se colocam. O próprio relatório afirmava que diversos “alunos

difíceis, cuja vida fora perturbada seriamente” acabavam por ser “excluídos”, quando

havia “diversos problemas de indisciplina”. A expulsão era o remédio quando o projeto

disciplinador malograva; e as “experiências de vida, suas carências, que os tornavam

revoltados e incapazes de se integrarem socialmente num grupo” eram francamente

responsabilizadas pelo fracasso da prática pedagógica188.

Não possuímos dados numéricos concernentes à evasão escolar, porém

podemos ter uma idéia do grau a que chegava a repetência na Escola Assistêncial

durante os anos 70, com base nas fichas escolares apresentadas por algumas irmãs da

“Família Silva” em um processo judicial. Ali há o histórico escolar das alunas durante

188Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 116. 86

Page 66: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

sua estada no Anchieta. Lídia Marina cursou, entre 1968 e 1975, da segunda à quinta

série. Levou o dobro do tempo necessário, por ter repetido de ano uma vez em cada

série. Ângela Maria cursou três vezes a primeira série, e repetiu também a quarta série,

totalizando oito anos, entre 1971 e 1978, para chegar à quinta. Lígia Maria, por sua

vez, realizou a terceira série em 1968, e nos dois anos seguintes esteve na quarta

série. Somos de opinião que este quadro de repetência deveria se repetir em escala

maior, dado que a situação das irmãs Silva se assemelhava à de outros vizinhos.

Neste relatório consta, ainda, listagens nominais com os alunos das turmas da

Escola Assistêncial, dentre os quais constam os três irmãos mais velhos da “Família

Silva”. Lorivaldino da Silva encontrava-se na primeira série (turma 1-A); Lídia Marina da

Silva, na segunda (turma 2-B); e Lígia Maria da Silva, na terceira (turma 3-A)189. Lígia

também aparece na foto a seguir, que foi a mesma que ela quis segurar ao ser

retratada para os jornais Zero Hora e Diário Gaúcho, nas referidas reportagens.

189Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 118-120. 87

Page 67: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Alunos da escola assistencial em frente à Capela – 1968

Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1968 p. 114

A relação entre a Escola Assistêncial e o restante do Colégio Anchieta era,

predominantemente, de segregação. Ela funcionava em um prédio diferente do

restante da escola, que fazia frente à Nilo Peçanha, e que, coincidência ou não, era o

mais próximo aos núcleos populacionais citados, pode-se perceber pela seguinte

fotografia:

88

Page 68: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

A Escola Assistencial, segregada do restante do Colégio. 1965

Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1965 p. 53

A separação era evidente na própria denominação utilizada. A Escola

Assistêncial também era conhecida como “escola anexa”. O nome demonstra que ela

era pensada como um apêndice do Colégio. Fazia parte da escola, nos momentos de

se louvar a caridade cristã dos seus administradores, mas ainda assim não deixava de

ser muito bem caracterizada como algo distinto do restante. As situações de contato

entre alunos das duas escolas eram minimizadas pela existência de portas de acesso

diferentes entre ambas. A documentação consultada demonstra haver existido

momentos nos quais coleguinhas ricos declamavam poesias ou distribuíam presentes

para os coleguinhas pobres, confraternização da qual o colégio muito se orgulhou190.

Trata-se de uma relação paternal, uma relação de caridade, uma relação hierárquica,

em suma, na medida em que ficava muito bem demarcado simbolicamente os lugares

sociais daqueles que tinham a possibilidade de oferecer, e daqueles que dependiam,

190Relatório do Colégio Anchieta – 1968 p. 112-113;115.

89

Page 69: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

necessitavam da oferta. Da oferta de ensino gratuito em uma escola particular, por

exemplo.

As elites que estudavam no Colégio Anchieta, por um lado, aprendiam desde

cedo a convivência com classes e grupos étnicos socialmente desfavorecidos; por

outro, esta convivência se dava com base a uma redução do outro ou à condição de

rebelde “perturbado seriamente”, ou de dependente. Ou ainda, à condição de exótico,

de alteridade radical a ser mostrada às crianças. Através de um depoimento de um

famoso político sul-rio-grandense, que teria estudado no Colégio Anchieta pelos idos

de 1972, descobrimos que a escola tinha o hábito de levar seus alunos para visitar vilas

próximas ao Colégio, a que o mesmo teria atribuído o início de sua formação política191.

Esta situação se repete nos dias de hoje. A comunidade vem sendo

sistematicamente importunada pela visita de escolas, que querem ver “o quilombo”.

Muitas vezes, admitimos, na melhor das intenções, os “educadores libertadores”

interessados em demonstrar aos seus alunos o mundo dos menos favorecidos, acabam

por perturbar o sossego de comunidades que sofrem há muito tempo com o assédio de

estranhos. De qualquer forma, ainda que por meio de visões estereotipadas do outro -

“revoltados”, “dependentes” ou uma “miséria absoluta” a ser utilizada para despertar a

consciência política e social dos alunos – o fato é que há o reconhecimento de uma

alteridade por parte da escola.

191SILVA (1990) p. 62-6390

Page 70: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Alunos do Colégio Anchieta em frente à capela.

Fonte: Relatório do Colégio Anchieta, 1968, p. 121

É interessante observar que a adoção na década de 1970 de novas perspectivas

pedagógicas, com base em Paulo Freire e em Jean Piaget192, foi paralela a uma

crescente dificuldade de acesso à escola gratuita. O relato que obtivemos junto à

comunidade revela que, depois do estudo dos três irmãos mais velhos, os demais

tiveram crescentes dificuldades porque o “Anchieta começou a complicar”. Dentre

estas, estava um maior controle pelos guardas do acesso e trânsito na escola e a uma

exigência cada vez maior de documentos a serem apresentados. Como se sabe, dentre

as camadas populares a relação com a palavra escrita é distinta do que entre outros

grupos sociais. Uma maior exigência burocrática acaba por revelar-se fator de exclusão

na medida em que nem todos têm todos os documentos193.

Essas transformações representaram o prenúncio para o fechamento definitivo

da Escola Assistêncial, no ano de 1984. Na edição comemorativa aos cem anos do

Colégio Anchieta, é apenas nesse momento em que há menção aos “núcleos de

192SILVA (1990) p. 47193Talvez isso explique o fato de Zuleica Briolandi, mais nova do que Lígia Maria, Lídia Marina e Ângela Maria, terapensado ao seu usucapião um requerimento, e não uma ficha com Histórico Escolar.

91

Page 71: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

favelados” vizinhos à escola. No entanto, ênfase maior é dada a alunos oriundos de

“Alvorada e outros lugares distantes”. Tanto é assim que o autor explica a extinção da

escola da seguinte forma:

“Por volta de 1983, levando em conta que a condução se

tornava muito dispendiosa para aqueles alunos que

moravam longe do Colégio e que uma favela vizinha

começava a ser removida, a Escola Anexa Gratuita houve

por bem transferir os seus alunos para as escolas públicas

que se localizassem mais próximas às suas residências. “

Temos alguns reparos a fazer a esta leitura da realidade. Ela não se coaduna

com os dados de que dispomos. Os relatórios analisados, conforme demonstrado, dão

uma ênfase muito grande às vilas próximas ao Colégio, em contraste com o silêncio do

autor a esse respeito. Além disso, cumpre observar que, ainda que o pagamento de

passagens fosse caro a eventuais alunos originários de Alvorada (ou outros lugares

distantes), os alunos que moravam perto dali (e não eram poucos) foram obrigados a

se deslocar para os bairros vizinhos para continuarem estudando. Finalmente, há que

ter em conta que, conforme demonstraremos, a remoção da Vila Beco do Resvalo não

se tratou de um procedimento asséptico e trivial, como a narrativa do autor pode dar a

entender. Aconteceu em um contexto de pressão, de violência, conseqüência de um

ato de força. Trata-se, mais uma vez, da fúria saneadora da cidade que, à medida em

que cresce, empurra seus pobres para lugares distantes (ou Alvorada). A presença de

vilas nos bairros Três Figueiras, Boa Vista, ou da comunidade da “Família Silva” não

92

Page 72: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

mais eram desejáveis depois da abertura do Shopping Iguatemi194. Foi neste contexto

político que o Colégio Anchieta encerrou as atividades da escola assistêncial.

Religiosidade: católicos e encostados.

Outro aspecto da história do grupo que diz respeito aos seus vínculos sócio

culturais é aquele que se refere a religiosidade. Anna Maria e Euclides José da Silva se

casaram na igreja Auxiliadora no dia 24 de julho de 1954195. Lígia Maria, filha deles, foi,

segundo ela própria, batizada e crismada na Igreja São Sebastião da mesma forma

que João, seu tio 196. Angela Maria, sua irmã, quando questionada a respeito,

respondeu que freqüentava a Igreja Mont’ Serrat. Essas são as igrejas mais próximas.

Ter sido batizado e crismado em uma delas, ou ainda frequentá-las demonstra as

relações que os integrantes da “Família Silva” foram tecendo com os espaços religiosos

da região.

Lorivaldino, membro do grupo, declarou que ali todos eram católicos. No entanto,

o relato de Lígia indica que a avó materna freqüentava casas de Batuque na Vila

Jardim. Além disso, ela recorda de ocasiões onde pessoas vinham fazer limpeza

espiritual das casas. Ela revelou que sua mãe, Anna Maria e sua avó, Naura iam a uma

casa de Nação em Viamão. De acordo com Maria Helena da Rosa, 58 anos, irmã de

194 O Shopping Center Iguatemi foi inaugurado em abril de 1983. Um mês antes, era concluída a expansão daavenida Nilo Peçanha, no trecho entre a Luiz Manoel Gonzaga e a João Wallig. AHPOA, Zero Hora, 19/3/1983,recorte 4804; Folha da tarde, 19-20/3/1983, recorte 4802. 195 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, Paróquia da Auxiliadora, Livro 7 de registros decasamentos, f. 30-30v196 Referimo-nos a João Brito Soares, filho de criação de Naura e Alípio, que é assim classificado pelos filhos deAnna Maria e Euclides.

93

Page 73: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

Antonia Teresinha Soares197, mãe-de- santo do centro religioso em questão, a casa era

freqüentada por Zaida, vizinha da Vila Beco do Resvalo, que se tornou mais tarde

sogra de Lígia Maria. Foi essa conhecida que apresentou Naura à Sidnei, o pai –de -

santo da casa. Esta última por sua vez apresentou a ele Maria Helena com quem o

mesmo veio a se casar e pela qual foi sucedido na liderança da casa após a sua morte.

Ana Cristina, irmã falecida dos Silva, foi batizada na “religião” em função da fragilidade

de sua saúde.

A:” – Mas ela [referindo-se a Naura] vinha com freqüência?

MH: – Não vinha assim, não vinha sempre, duas vezes no mês.

A: – E a Anna Maria também?

MH: – Trazer algum cliente.

A :– Mas ela era filha de santo da casa ou não?

MH: – Ela era encostada. Não era filha de santo.

A: – Encostada?

MH: - Como a gente diz, para ter os cuidados espirituais. Não tinha

obrigações com a casa.

A: – E a Anna Maria tinha?

MH: – Não.

A :– Até a Angela e a Lígia comentaram que a irmã delas foi batizada....

MH:– Sim, ela tinha problema de saúde.

A :– E foi aqui?

MH: – Foi aqui.” 198

Ainda que Anna Maria e Naura não fossem filhas da casa, existiam outros aspectos

que as ligavam a Sidnei como informou Maria Helena.

197 Antonia Teresinha Soares é esposa de João Brito Soares. Ela veio de Venâncio Aires para trabalhar em uma casade família substituindo a irmã que estava doente. Maria Helena já conhecia Naura haja visto que esta última tambémprestava serviços domésticos para as mesmas pessoas.198 Entrevista com Maria Helena da Rosa realizada em 23 de junho de 2004.

94

Page 74: Capítulo 1: Os vínculos históricos e sócio culturais da comunidade

“– Elas continuavam vindo aqui. Às vezes também eu visitava. A amizade

era muito grande, a amizade do meu marido com a família deles.”199

Embora Alípio e Euclides não fossem ao local, ela nos relatou que :

A:”- Mas nem o Alípio e o Euclides freqüentavam casa de religião?

MH: – Não.

A: – Mas como é que a senhora sabe que eles gostavam de religião?

MH: – Eu convivi muito tempo com eles e eu trabalhava na religião.

Trabalhei muito para ele [referindo-se a Alípio].

A: – Ele também tinha um problema?

MH: – Tinha sim. Ele era bem doente.

A: – Mas ele acreditava então?

MH – Sim, ele acreditava.”200

Essas informações nos permitem dizer que a religiosidade, embora se manifestasse de

diferentes maneiras ao longo das gerações, é um elemento importante na memória do

grupo, que serve de metáfora para pensarmos outros aspectos da história dessa

comunidade como os vínculos com a localidade e seus moradores. Ser batizado,

crismado ou unir-se em matrimônio a alguém numa igreja católica da região significa

estabelecer laços de identificação com uma zona, um bairro, um território e seus

habitantes. Como pudemos observar, a ligação dos Silva com a casa de Batuque

localizada em Viamão se deu através de relação estabelecida com uma vizinha,

relação esta que posteriormente se tornou de parentesco.

199 Entrevista com Maria Helena da Rosa realizada em 23 de junho de 2004.200 Entrevista com Maria Helena da Rosa realizada em 23 de junho de 2004.

95