cantigas da cascavel

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In-Traduções, ISSN 2176-7904, Florianópolis, v. 6, n. 10, p. 180-186, jan./jun. 2014. Cantigas da Cascavel: tradução de cantigas de ninar Yawalapíti Laísa Fernandes Tossin Doutoranda - Universidade Estadual de Campinas [email protected] Recebida em: 01/03/2014 Aceita em: 31/05/2014 Resumo: Este trabalho apresenta a tradução de duas cantigas de ninar yawalapíti: Ui ishupalu natu e Nakumayaká. Os yawalapíti são um dos grupos étnicos que integram os povos do Alto Xingu. Sua busca por resgatar e manter as tradições orais: narrativas e cantos, teve como produto um livro e um CD que serviram como texto original para as traduções aqui apresentadas. Palavras-chave: Línguas indígenas brasileiras. Tradição oral. Cantos e narrativas tradicionais. Songs of Rattlesnake: Yawalapíti nursery rhymes translation Abstract: This paper presents two lullabies translated from Yawalapíti to Portuguese: Ui ishupalu natu and Nakumayaká. The Yawalapíti are an ethnic group who are part of the peoples of the Alto Xingu region of Brazil. Their efforts to preserve their oral traditions, particularly songs and stories, have resulted in a book and CD containing narratives and songs, which were used as original data for the translations presented herein. Keywords: Brazilian indigenous languages. Oral tradition. Traditional songs and narratives.

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cantigas indigenas brasileiras

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  • In-Tradues, ISSN 2176-7904, Florianpolis, v. 6, n. 10, p. 180-186, jan./jun. 2014.

    Cantigas da Cascavel: traduo de cantigas de ninar Yawalapti

    Lasa Fernandes Tossin

    Doutoranda - Universidade Estadual de Campinas

    [email protected]

    Recebida em: 01/03/2014

    Aceita em: 31/05/2014

    Resumo: Este trabalho apresenta a traduo de duas cantigas de ninar yawalapti: Ui ishupalu natu e Nakumayak. Os yawalapti so um dos grupos tnicos que integram os povos do Alto Xingu. Sua busca por resgatar e manter as tradies orais: narrativas e cantos, teve como produto um livro e um CD que serviram como texto original para as tradues aqui apresentadas. Palavras-chave: Lnguas indgenas brasileiras. Tradio oral. Cantos e narrativas tradicionais.

    Songs of Rattlesnake: Yawalapti nursery rhymes translation

    Abstract: This paper presents two lullabies translated from Yawalapti to Portuguese: Ui ishupalu natu and Nakumayak. The Yawalapti are an ethnic group who are part of the peoples of the Alto Xingu region of Brazil. Their efforts to preserve their oral traditions, particularly songs and stories, have resulted in a book and CD containing narratives and songs, which were used as original data for the translations presented herein.

    Keywords: Brazilian indigenous languages. Oral tradition. Traditional songs and narratives.

  • In-Tradues, ISSN 2176-7904, Florianpolis, v. 6, n. 10, p. 180-186, jan./jun. 2014. 181

    O mito do canto das mulheres

    Existe uma histria kalapalo que explica a origem do canto feminino. Originalmente,

    as mulheres eram as donas das flautas apapalu. Elas tocavam, danavam e

    cantavam, enfeitadas com adornos, todos os dias. Um dia os gmeos Kaminui

    ouviram o lindo som das flautas e decidiram sair da aldeia Mhritchirinhuii para ver

    os homens que faziam aquela msica. Ao chegar aldeia onde as mulheres

    tocavam as flautas, os irmos ficaram estarrecidos. Todos os homens estavam

    trancados dentro das casas e as mulheres alm de tocarem tambm pescavam e

    caavam. Desagradados, disseram s mulheres que os homens deveriam tocar as

    flautas, pois elas tocavam tudo errado. Como as mulheres no lhes deram ateno,

    decidiram assust-las argumentando que a flauta fazia cair o cabelo e crescer a

    barba, pois preciso encost-la no queixo para tocar, mas nada assustava as

    mulheres. Por fim, para tirar a flauta das mulheres, os irmos provocaram um

    estrondo como o canto dos espritos e o sopraram para cima das mulheres.

    Apavoradas, elas se esconderam dentro de casa e entregaram as flautas. Os

    homens aprenderam a tocar todas as msicas de apapalu, porm os cantos ficaram

    com as mulheres. Hoje, quando os homens tocam apapalu, as mulheres ficam

    dentro de casa.

    As tradues

    Entre os diversos cantos femininos, escolhi duas canes de ninar

    relacionadas ao nascimento dos gmeos Kaminu. As canes integram o captulo

    "Yumlhtsi ashishakin" (Canes de ninar), pgina 217, do livro Awap: nosso

    canto; faixa 13 no CD de mesmo nome, e foram narradas por Wantsu Mehinaku

    Yawalapti.iii O longo mito que descreve o nascimento dos irmos se encerra com

    uma roda de mulheres que cantam cantigas de ninar para os rfos recm-nascidos.

    Estas mulheres pertencem a um tempo em que todos eram animais e, portanto,

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    assumem suas aparncias zoomrficas. Logo, quem canta primeiro a cascavel, a

    mais velha, e por ltimo, a pombinha, que consegue fazer os bebs dormirem.

    A primeira das duas cantigas aqui transcritas pertence cascavel. As

    cantigas da cascavel podem ser tambm feitios usados para atrair e levar homens

    at sua aldeia para que se casem com ela, por isso a tia tira os bebs da cascavel e

    os entrega pombinha para que esta os faa dormir. As tradues no intentam

    apenas trasladar palavras de uma lngua a outra, mas reproduzir o cuidado musical

    presente nos cantos femininos, assim como os detalhes mticos que se expressam

    sutilmente na potica de cada verso.

    Como no verso "kyshishi ishupalu natu. Kyshishi" significa "cascavel",

    mas bastante clara a presena de um elemento onomatopeico que remete ao

    chocalho da cascavel. Ento, para que o verso mantenha o sibilar caracterstico da

    fala deste ser/esprito, a traduo para o portugus incluiu um ditico que no est

    presente no verso original e, em vez de "eu sou filha da cascavel", a traduo literal,

    ficou "sou filha dessa cascavel". Tambm tentei manter um pouco do estranhamento

    sinttico, embora nem sempre possvel, ento, no primeiro verso, "ui ishupalu natu",

    literalmente "cobra sua filha eu", que seria traduzida corriqueiramente por "eu sou

    filha da cobra", em uma tentativa de manter o estranhamento sinttico, e assim,

    trazer ao leitor algo mais da lngua original da cantiga, a traduo ficou "filha da

    cobra eu sou".

    Assim tambm a rima e a cadncia da cantiga foram intencionalmente

    mantidas para que as fortuitas mes que tentarem cant-las para adormecerem

    seus filhos sejam bem-sucedidas em seu intento. Para tanto, foi necessrio fazer

    adequaes lexicais para que certos aspectos fonolgicos fossem mantidos, como a

    nasalidade presente nos versos "h iwajuni nakumayaka" "Meu bem, um dia eu

    vou-me embora, eu vou pra l" e "ohonh, ohonh " "Pequenino, pequenino", e o

    sibilar da cascavel.

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    Cantiga de ninar 1

    Ui ishupalu natu

    Ui ishupalu natu

    Ui ishupalu natu

    Kyshishi ishupalu natu

    Kyshishi ishupalu natu

    h iwajuni nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Ui ishupalu natu

    Ui ishupalu natu

    Kyshishi ishupalu natu

    Kyshishi ishupalu natu

    h iwajuni nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Ui ishupalu natu

    Ui ishupalu natu

    Kyshishi ishupalu natu

    Kyshishi ishupalu natu

    h iwajuni nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Sou filha da cascavel

    Filha da cobra eu sou

    Filha da cobra eu sou

    Sou filha dessa cascavel

    Sou filha dessa cascavel

    Meu bem, um dia eu vou-me embora,

    eu vou pra l

    Pequenino, pequenino

    Filha da cobra eu sou

    Filha da cobra eu sou

    Sou filha dessa cascavel

    Sou filha dessa cascavel

    Meu bem, um dia eu vou-me embora,

    eu vou pra l

    Pequenino, pequenino

    Filha da cobra eu sou

    Filha da cobra eu sou

    Sou filha dessa cascavel

    Sou filha dessa cascavel

    Meu bem, um dia eu vou-me embora,

    eu vou pra l

    Pequenino, pequenino

  • In-Tradues, ISSN 2176-7904, Florianpolis, v. 6, n. 10, p. 180-186, jan./jun. 2014. 184

    Cantiga de ninar 2

    Nakumayaka

    Nakumayaka, nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Nakumayaka, nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Mhritchirinhu wekene

    Elegukure wekene

    h iwajuni nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Nakumayaka, nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Mhritchirinhu wekene

    Elegukure wekene

    h iwajuni nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Mhritchirinhu wekene

    Elegukure wekene

    h iwajuni nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Nakumayaka, nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Nakumayaka, nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Elegukure wekene

    Mhritchirinhu wekene

    h iwajuni nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Mhritchirinhu wekene

    Vou me embora

    Vou-me embora, eu vou pra l, vou-

    me embora, eu vou pra l

    hum, hum, hum

    Vou-me embora, eu vou pra l, vou-

    me embora, eu vou pra l

    Hum, hum, hum

    Em Mhritchirinhu vai crescer

    Alegre vai quando crescer

    Meu bem, um dia eu vou-me embora,

    eu vou pra l

    Pequenino, pequenino

    Vou-me embora, eu vou pra l, vou-

    me embora, eu vou pra l

    hum, hum, hum

    Em Mhritchirinhu vai crescer

    Alegre vai quando crescer

    Meu bem, um dia eu vou-me embora,

    eu vou pra l

    Pequenino, pequenino

    Em Mhritchirinhu vai crescer

    Alegre vai quando crescer

    Meu bem, um dia eu vou-me embora,

    eu vou pra l

    Pequenino, pequenino

    Vou-me embora, eu vou pra l, vou-

    me embora, eu vou pra l

  • In-Tradues, ISSN 2176-7904, Florianpolis, v. 6, n. 10, p. 180-186, jan./jun. 2014. 185

    Elegukure wekene

    h iwajuni nakumayaka

    ohonh, ohonh

    Nakumayaka, nakumayaka

    ohonh, ohonh

    hum, hum, hum

    Vou-me embora, eu vou pra l, vou-

    me embora, eu vou pra l

    Hum, hum, hum

    Alegre vai quando crescer

    Em Mhritchirinhu vai crescer

    Meu bem, um dia eu vou-me embora,

    eu vou pra l

    Pequenino, pequenino

    Alegre vai quando crescer

    Meu bem, um dia eu vou-me embora,

    eu vou pra l

    Pequenino, pequenino

    Vou-me embora, eu vou pra l, vou-

    me embora, eu vou pra l

    hum, hum, hum

  • In-Tradues, ISSN 2176-7904, Florianpolis, v. 6, n. 10, p. 180-186, jan./jun. 2014. 186

    Referncias

    FUNAI. Awap, nosso canto. Braslia: CGDTI/Funai, 2008.

    FRANCHETTO, Bruna; HECKENBERGER, Michael. (Orgs.). Os povos do Alto Xingu: Histria e cultura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.

    MUJICA, Mitzila Isabel Ortega. Aspectos fonolgicos e gramaticais da lngua yawalapti. Dissertao. Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1992.

    i Kaminu significa dois sois juntos e designa os irmos Sol (Kami) e Lua (Kri), netos de Kuamuti, o demiurgo. ii Aldeia mtica onde o mundo foi criado. iii O mito e as canes de ninar foram narrados na lngua original por Wantsu Mehinaku Yawalapti. A verso do mito em lngua portuguesa foi feita por Aritana Yawalapti e Pirakum Yawalapti.